Apesar de imagens impactantes, FEMME não questiona como parece e retrata ao meu ver muito perigosamente elementos pornográficos por trás da natureza obsessiva dos personagens. O primeiro longa da dupla Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, fãs de Drag Race e filmes policiais de gênero, recebeu elogios nos principais festivais de cinema de 2023, estreando nos cinemas ingleses no final do ano passado e abrindo um festival belga cujo slogan "filmes que nos provocam e nos questionam" deixou-me reticente após a banalização excessiva de imaginário sexualizado deste filme, perguntando-me se isso basta para incomodar quem quer que seja na era onlyfans das redes sociais?
O filme se apresenta em festivais como um thriller neo-noir, inspirado por obras policiais hollywoodianas da era dourada com a figura quintessencial da femme fatale. Logo, no título FEMME. Plot twist: é uma trans.figuração, previsível diga-se de passagem, das posições pré-determinadas do film noir: a mulher que é desejada por sua aparência e o homem admirado por sua masculinidade trans.formam-se numa única figura de sensibilidades femininas e masculinas permitidas pelo drag. Sendo o ponto forte da sessão um jogo de força e vulnerabilidade manifestado por ambos o personagem homofóbico e a drag queen performativa. No entanto, o olhar crítico sociopolítico é rapidamente substituído por artifícios de thriller erótico com temáticas de obsessão, desejo e vingança.
Quem não gosta de um bom thriller? Especialmente FEMME que vai te deixar roendo as unhas postiças e esticando a peruca. E, ainda assim, é necessário engolir a dicotomia limitada, quase forçada, que se opera entre códigos de comportamento masculinos em boate hétero e femininos em boate gay, contradizendo em essência o potencial transgressivo drag que a trama poderia ter incorporado se não estivesse tão compulsivamente dedicada à representação do desejo sexual dos personagens. Em meio ao deleite de referências de espectador queer (xiè xiè rainha Chun Li!), a sessão que começara latejante em todos os sentidos do termo interrompe o gozo discursivo racial e sociopolítico muito precoce em prol de uma experiência erótica e tão eficaz como qualquer outro thriller elaborado.
Elogiado pelo brilhantíssimo Bong Joon-ho e aplaudido de pé na Semaine de la Critique do Festival de Cannes, Jason Yu, o diretor sul-coreano de SLEEP, que havia tido um pesadelo no qual todos vaiavam a estreia do seu primeiro longa-metragem, emocionou-se com a recepção francesa deslumbrada, quase unânime. Em pleno começo de carreira, uma obra de extremo rigor técnico e de grande inteligência roteirística para com os elementos sobrenaturais que explora, referenciando à história do K-horror com a temática xamanista abordada sem perder o seu potencial de olhar social crítico e contemporâneo.
Inclusive, é um verdadeiro retrato da "vida de casal" a partir do viés sarcástico e sem escrúpulos permitido pelas fórmulas do filme de horror. Arrastando-nos deliberadamente pelas situações traumáticas de seus personagens com o diferencial de também propor uma reflexão sobre distúrbios instrumentalizados pela medicina, o filme entrega numa experiência estética perspicaz a sua simbiose angustiante entre riso e desespero.
Em torno do duelo magistral de atuações das divas japonesas Shima Iwashita e Kaori Momoi, um grande cineasta como Yoshitaro Nomura, ainda que muito desconhecido do grande público internacional, recria a fórmula do filme de tribunal num espetacular quebra-cabeça psicológico transformado por elas em palco de luta livre. Os diálogos brilhantemente afiados e ferozes revelam também o lado sarcástico do filme, mas não podemos esquecer - onde tem Nomura, também terá o suspense literário de Seichō Matsumoto. Parceria prolífica!
Sucesso de público e de crítica durante o lançamento no Japão e marcado pelas questões socioculturais de seu tempo - dinheiro, posição social, casamento, SUSPICION não apenas se apropria do imaginário camp de mulheres fortes e ousadas das soap operas, mas revela brutalmente a misoginia vivida pelas mulheres japonesas da época.
Seria como dizer que se ela fosse submissa ao casamento e aos valores familiares, vestida de maneira honrada com seu kimono de seda, talvez não teria caído numa vida sórdida e vulgar. A mesma coisa vale para a sua defensora que seria mais realizada se não tivesse optado pelo trabalho, negligenciando o matrimônio e a própria filha. Curiosamente, apesar da diferença de status e estilo de vida entre a acusada e a advogada, sob o olhar patriarcal da sociedade japonesa que o filme insiste em provocar, ambas seriam criminosas e imorais.
Que surpresa incrível! Um retrato histórico de sensibilidade camp e queer nos anos do presidente Mitterrand finalmente resgatado e devidamente restaurado para a posteridade.
Realizado pela Yannick Bellon cujo feminismo lírico não decepcionava os franceses amantes do próprio cinema autoral, LA TRICHE (do verbo tricher, sinônimo de mentir, dissimular) aborda o homoerotismo de forma brilhante e muitíssimo diferente dos filmes da época e da ridicularização de homens efeminados em comédias populares. Como raramente visto no cinema francês com tamanha simplicidade e naturalidade, dois homens demasiadamente excitantes atraídos um pelo outro e mais nada além disso. Nenhum trauma de infância, nem sequer condição psicológica de justificativa: ode ao desejo!
Victor Lanoux soberbo no papel principal do policial casado com a família perfeita que (re)descobre o desejo nos braços de um jogador de rugby interpretado pelo belo Xavier Deluc, mas como se não bastassem as atuações sutis, incrivelmente justas dos mesmos, o resto do elenco também expressa muito bem a maturidade da produção. Boas escolhas na construção dos personagens permitem ao filme de mostrar ainda hoje a sua relevância política. Disfarçado de suspenso chabroliano, o filme aborda o desejo homoerótico e bissexual descomplexado através do olhar marginal dos apaixonados, deixando muito claro a sua posição desfavorável à mentalidade francoburguesa oitentista. ♥ ♥ ♥
Com seus corpos ardentes, Mieko Harada e Yutaka Mizutani incendeiam a película de uma das obras mais emblemáticas da nuberu bagu tardia e setentista. Do diretor Kazuhiko Hasegawa que apenas dirigiu dois filmes, THE YOUTH KILLER (青春の殺人者, 1976) recebeu elogios da crítica japonesa na época que muito admirou a simbiose estética entre a sexualidade do jovem casal e o desespero cada vez mais perigoso de se alienarem em seu próprio tempo. Desconectados das crises políticas e das manifestações sociais, Jun e Keiko seguem perdidos em busca de uma razão para existir. Esta juventude decadente era um tema essencial para a nuberu bagu que já estava se perdendo no final da década de 60.
Foi principalmente a pequena produtora e distribuidora ATG (Art Theatre Guild - vide a minha lista aqui no filmow) que relançou esta temática com a força e o estilo semi-documentário de cineastas dos anos 70. Intensamente marcado por contrastes de estilo (interior/exterior, fundo sonoro real/musical, luz natural/chiaroscuro), o filme coloca em cena de maneira simbólica o sacrifício da geração mais velha, a morte da família culmina na perda de convicção total e até mesmo do sentido de existir de Jun. O drama se sustenta graças ao tour de force do brilhante Yutaka Mizutani e da jovem Mieko Harada que se tornaram figuras cultuadas de seu tempo.
Assistido em pré-estreia internacional! O filme está IMPERDÍVEL se você aprecia o que representa a figura da Barbie. Se tiver memórias de infância, vai se emocionar. Se for colecionador, a sessão será inesquecível. Esperei anos por um filme assim que tivesse o investimento para homenagear a história da boneca mais amada de todos os tempos.
Antes mesmo de poder marcar "já vi", fiz questão de deixar um traço da minha experiência tão gratificante como fã e colecionador. Bonecas Barbie e Ken de diferentes épocas são celebradas na trama com humor e imaginação. "Então, é assim que os héteros se sentem quando estreia um filme de super-herói?", citando o comentário mais engraçado da página, pois quem desejava ver uma obra cinematográfica no mundo maravilhoso do plástico rosa e das miniaturas de comida de faz de conta terá o seu sonho realizado.
Barbie possui inúmeras referências, incluindo fantasia, comédia e trechos musicais com um toque de sarcasmo e uma trilha sonora deliciosa. Embora o foco principal seja seguir as normas de um bom blockbuster hollywoodiano para emocionar o espectador, o que vai surpreender muita gente é o seu lado didático sobre a história da boneca. Ela foi criada em 1959 por uma mulher, Ruth Handler, sem a aprovação das pessoas ao seu redor e hoje faz parte do imaginário do mundo. Um ícone eterno de imaginação! ♥
Brasileiros no Japão! Muito surpreso com a proposta do filme e em partes desapontado após a sessão. Lançado há poucos meses no cinema e agora em bluray, FAMÍLIA (ファミリア, a nossa palavra escrita no sistema fonético deles para as palavras estrangeiras) representa a vida de imigrantes brasileiros e de seus filhos em terras nipônicas, fazendo referência inclusive à era do "sonho japonês" dos anos 80/90 quando muitos brasileiros se mudaram para lá em busca de uma vida melhor. É curioso ver tanta brasilidade em meio aos costumes japoneses e às diferenças de comportamento nas duas culturas. O filme também tem diálogos em português e atores de fato nipo-brasileiros, mas infelizmente o resultado sofreu por conta de suas atuações irregulares com apenas algumas cenas de destaque. Entre o drama dos brasileiros e a história de um pai japonês ceramista, pareciam dois filmes diferentes intercalados. A presença impecável de Kōji Yakusho que salvou o filme.
Extraordinário! Diferentemente do BL convencional, EGOIST (エゴイスト, 2023) entra com força e beleza na história do cinema queer japonês. Seu olhar humano e cuidadoso do cotidiano gay e homoerótico é marcado pela complexidade das relações humanas e do sentimento de perda. Caso não tenha visto as pérolas antigas do cinema gay nipônico, recomendo a minha lista GAY & JAPONESA, na qual pesquiso obras que abordaram (explicitamente ou não) a diversidade de sexo e gênero na terra do sol nascente. Dos idosos de Ozu aos laços familiares de Yamada, o imaginário de narrativas dramáticas de pessoas do cotidiano atravessou a história do cinema japonês e se manifesta ainda em obras atuais. Ao encarnar vidas queers invisíveis até então neste universo tradicional tão simples, familiar e nipônico, EGOIST ultrapassa os limites do BL, lembrando-nos de celebrar também os antepassados com uma afiliação direta ao clássico gay OKOGE (おこげ, 1992). Difícil ignorar o fato de que ambos produziram algumas das cenas de sexo mais lindas que já vi e, sobretudo, de cumplicidade entre amigos gays. Suzuki-san e Miyazawa-san - lindos de morrer - interpretam o casal Kōsuke e Ryūta que eu poderia assistir eternamente naquela cena em que um seca os cabelos do outro. É o amor! ゲイの愛ですよ。
Telefilme adaptado do romance de 1957 escrito por Seicho Matsumoto, estrelando Takeshi Kitano e dirigido por Noboru Tanaka. O romance foi previamente adaptado em 1978 intitulado O DEMÔNIO com Ken Ogata e direção impecável de Yoshitaro Nomura.
Quando um homem casado não consegue mais sustentar a amante, ela abandona três filhos pequenos com ele e a esposa furiosa que não sabia da existência dos pequenos. Consumidos pelo ciúme e o desequilibrio de suas próprias relações, eles envolvem as crianças em seus jogos de puro sadismo e os resultados são trágicos. O termo "Kichiku" (鬼畜) em japonês como "demônio" é carregado de sentido religioso budista e se refere também a pessoas que cometem atos de grande crueldade para além da compreensão humana.
A obra de Kinoshita que fascina cada vez mais os interessados pela história do cinema queer japonês, ADEUS À PRIMAVERA (惜春鳥 lê-se 'sekishunchō' e representa uma metáfora de pássaros lamentando o fim dessa estação e da juventude) se tornara uma sessão obrigatória para descobrir como o diretor abordou uma história de grande afeto entre garotos desiludidos com o passar do tempo e a finitude das coisas, sobretudo das relações.
No ano passado, uma exposição na Universidade de Waseda sobre a diversidade sexual no cinema nipônico foi realizada sob a curadoria de Yutaka Kubo, um jovem especialista de Kinoshita que se interessou pela possibilidade do espectador queer de fazer leituras deste filme a partir dos detalhes que escapam à norma e geram identificação com o que não poderia ser representado na época. Apesar dos rumores da sexualidade do próprio diretor, trata-se de um filme que não faz nenhuma referência explícita à homossexualidade.
Críticos japoneses como Ikuko Ishihara e Yuka Kanno estudam os comportamentos destes personagens atípicos e indiferentes ao casamento tradicional que demonstravam grande conforto na companhia de pessoas do mesmo sexo. As teorias de Yuka Kanno sobre uma Noriko lésbica nos filmes do Ozu são o puro deleite. Recomendo a leitura.
Muitas dessas figuras marcaram a era clássica dos estúdios japoneses, alimentando assim um sistema de sexualidade discreta. Todavia fiquei surpreso com as grandes emoções retratadas por Kinoshita em Adeus à Primavera. Concordo com o escritor Hideo Osabe sobre a possibilidade de um amor da parte de Masugi pelo garoto de maior destaque Iwagaki interpretado por Yusuke Kawasu - também brilhante em outros filmes sobre a juventude. O estudioso Yutaka Kubo analisa de maneira reveladora a deficiência física de Masugi e a falta de interesse do mesmo por garotas como uma falha da masculinidade dominante que atormenta o filme e também lhe coloca lágrimas nos olhos diante do fim de uma bela amizade.
De uma brilhante sobriedade estética, esta Promessa / Le Rendez-vous (Yakusoku, 約束 1972) do diretor Koichi Saito é também uma grande homenagem ao cinema francês sessentista de filmes como "Un Homme et Une femme" (Lelouch, 1966) e às trilhas jazzísticas de Francis Lai. Filme que emociona especialmente em suas dualidades - a história de amor de uma vida se passando em apenas algumas horas, na sutileza extrema de uma mulher condenada e na infantilidade de seu amante, duas almas perdidas em uma viagem de trem...
Estrelando a magnífica Keiko Kishi no papel feminino principal com sua figura statuesque de sempre, uma atriz conhecida por seus filmes românticos na década de 1950, pela sua parceria com o diretor Kon Ichikawa e o seu casamento francês que lhe permitiu de trabalhar também internacionalmente. Seu amante pleno de ingenuidade foi a interpretação controversa de Kenichi Hagiwara, ninguém menos que Shōken - como era chamado nos palcos, uma estrela pop e líder de banda à la Beatles no final dos anos 1960 que decidia experimentar a carreira como ator - em um de seus primeiros papéis dramáticos após o filme musical de sua banda.
Apesar da sutil fotografia de Noritaka Sakamoto com cores invernais, das paisagens marítimas frias e da elegância discreta dos sobretudos vestidos pelos personagens, trata-se de um filme muito caloroso, um romance intenso e poético embora passageiro. Por meio de andanças quase existenciais, os amantes cujos nomes comportam significados Keiko (螢子, escrito não pelo kanji de gentileza, mas de vaga-lume) e Akira (朗, escrito não pelo kanji de claridade, mas de alegria) incarnam estas personalidades que se completam. Ela com o sentimento de ter se apagado e ele com aquela agitação infantil, mas ambos com esta promessa, dissimulando uma grande solidão que poderiam ter eliminado juntos...
Pérola brilhante redescoberta do cinema japonês sessentista com uma direção sofisticada e um tema social altamente controverso. Apesar de ter recebido duas indicações ao Oscar, Noboru Nakamura foi esquecido nas últimas décadas pela crítica ocidental. Seus filmes se tornaram raros e as últimas restaurações de suas obras ainda não receberam mídia física com o devido cuidado. Este Shape of the Night (1964) encontra-se disponível com legendas em inglês no site rarefilmm / The cave of forgotten films e merece ser assistido.
Nakamura adapta um romance de Kyoko Ohta e retrata a prostituição na vida noturna de Tóquio. A atriz Miyuki Kuwano, lembrada principalmente por sua interpretação em Cruel Story of Youth (1960) de Nagisa Oshima, está sublime no papel principal. Seu semblante melancólico em primeiro plano, rodeado pelos letreiros de neon dos bares mais badalados da cidade, incarna em oposição à noite libertina uma desilusão profunda, amarga e inconsolável. É a tristeza presente no seu olhar que parece guiar todo o filme com grande poesia.
Neste submundo noturno embriagado de glamour, as luzes de neon da cidade que haviam prometido sonhos de felicidade - se casar e formar uma família dentro dos valores tradicionais da sociedade japonesa, agora revelam apenas a impotência vivida pela personagem e a experiência de vidas esvaziadas de sentido. Este microcosmo alienado dos eventos políticos que vivia o Japão - as manifestações contra a parceria invasiva dos americanos (que a protagonista diz nem saber do que se trata!) - é representado com grande proeza técnica. Seu mundo interior de jovem prostituída nas ruas da cidade é colocado em destaque pelo som, momentos brilhantes de supressão sonora e de identificação com a sua dor. Projeções de luzes coloridas artificiais respondem à altura da modernidade formalista da Nuberu Bagu e nos brindam com imagens de puro deleite visual, momentos pictóricos da tragédia de uma mulher neste melodrama de Nakamura que é um dos melhores de sua época.
Entre a sedução e a repugnância total, Ken Ogata brilha no papel principal de um dos filmes mais importantes de Shohei Imamura. Um papel que conseguiu indubitavelmente graças ao seu tour de force do ano anterior em O Demônio (1978). Quando pensava que não podia ser mais monstruosamente rigoroso e expressivo, Ogata-san surpreende na pele de um serial killer e faz justiça aos desdobramentos de sua carreira no cinema autoral japonês.
Conhecido por adotar o olhar marginal da sociedade, por sua filosofia quase antiozuesca, pela recusa das normas e dos enquadramentos minuciosos perfeitamente japoneses aos olhares ocidentais, Imamura adapta com um toque de perversão e ironia o romance de mesmo título do autor nipo-coreano Ryuzo Saki. Baseado na vida real do serial killer Akira Nishiguchi, MINHA VINGANÇA (pois "Fukushū Suru" no título significa literalmente o ato de se vingar) é um filme não-linear e despido de julgamento moral contra o protagonista.
O assassino em questão não explicita o motivo de suas monstruosidades. Não há explicações psicológicas redutoras ou posicionamento punitivo da parte do diretor. A obra de Imamura sempre foi dedicada ao imoral e à crítica de uma sociedade disfuncional que marginaliza tudo aquilo que não segue a lógica dominante. Se haveria de existir uma vingança, esta seria talvez a resposta do personagem à própria existência em uma sociedade desigual na qual nunca encontrou seu lugar e ao rir insanamente do que lhe é imposto como racional.
Eis então que o lado fascinante do filme surge ao mostrar esta pulsão de destruição não como princípio de espetáculo, mas de forma estranhamente antropológica como se fosse um olhar do estado humano mais primitivo. O trabalho assíduo nas parcerias de Imamura com o diretor de fotografia Shinsaku Himeda é brilhante. Entre os movimentos de câmera extremamente fluidos e uma iluminação de contraste que coloca em valor a atmosfera decadente da trama, este setentismo delicioso é um dos maiores títulos do cinema japonês.
Em mais uma parceria infalível do diretor japonês Yoshitaro Nomura com o escritor de tramas de suspense Seicho Matsumoto, surgia um filme policial marcante dos anos 1970 que na época ficou tão popular quanto à camisa entreaberta do galã Go Kato. Embora tenha recebido inúmeros prêmios e também a aclamação do público, "Castelo de Areia" ainda hoje deixa muitos cinéfilos reticentes por conta do ritmo da intriga e de sua duração. A abordagem no filme da investigação policial joga com a nossa paciência, mostrando ao mesmo tempo inúmeras pistas e teorias do crime nos mínimos detalhes.
Neste raciocínio que buscaria um olhar investigativo verossímil, o exercício da minúcia (sobretudo nas hipóteses equivocadas dos dois detetives principais) foi necessário para se revelar facetas do trabalho policial incomum até então no cinema popular japonês e que singularizou o filme de Nomura em relação a esta tradição já consolidada em Hollywood. Um enredo investigativo misterioso e hermético que se torna cada vez mais fascinante por conta de uma progressão rítmica rigorosa. T. Kawamata (dir.fotografia) enquadra com astúcia paisagens rurais japonesas, atribuindo valor ao espaço geográfico de uma busca que pretende chegar ao detalhe mais preciso do crime a partir de um contexto social.
Dos lugares mais afastados nos quais até a polícia parece se perder, o mistério da trama ganha em profundidade. Inclusive, muitas lacunas nunca foram explicadas. É da genialidade de ultrapassar os limites do gênero fÍlmico e fazer a irrupção do melodrama depois da metade da sessão, como se houvesse outro filme a ser assistido e que estivéssemos diante de uma homenagem ao pai do diretor, Hotei Nomura - cineasta da Shochiku na época do cinema mudo - com uma experiência de orquestra sinfônica inscrita na ficção e nostálgica de uma relação com a imagem que ultrapassa a palavra, criando uma ruptura interessante no filme.
Sublime! Encantado com o trabalho de Kon Ichikawa e a parceria com o diretor de fotografia Kiyoshi Hasegawa no final dos anos 1970, passando por A família Inugami de 1976 e chegando ao ápice visual em As Irmãs Makioka de 1983. Nesta incursão fílmica pela obra de um dos diretores japoneses mais expressivos visualmente - uma experiência indubitavelmente pictórica em cores e enquadramentos, descobrimos KOTO (古都, 1980), adaptação em melodrama parcimonioso do romance aclamado de 1962 do escritor Yasunari Kawabata.
"Koto" significa cidade ou capital antiga e faz referência à nostalgia do Japão de outrora, de suas tradições e costumes em sociedade, especialmente na relação das pessoas com a natureza. Ichikawa consegue nos transportar a um imaginário atemporal e isolado de tudo, distante das grandes capitais e dos pontos turísticos. Escolha delicada à princípio ao adaptar uma obra literária importante, afastando-se das características mais evidentes da topografia de cidades como Kyoto, dos templos budistas e dos monumentos históricos.
Em sintonia com uma floresta imensa, delicada e misteriosa de árvores criptomérias, o reencontro de duas irmãs gêmeas separadas no berço surge do anseio de uma delas de retornar às próprias origens por ter sido abandonada. Como o símbolo de sábia longevidade do cedro japonês e trabalhando neste poético mundo arbóreo que vemos no cartaz do filme, a segunda irmã cultiva um respeito religioso das tradições, desejando em sororidade recompensá-la pelo trauma sofrido. Inútil dizer que Momoe Yamaguchi está maravilhosa interpretando as duas irmãs, mas direi sobretudo que foi uma lástima ter sido a sua última aparição fílmica, pois casou-se com Tomokazu Miura (o lenhador bonitão que também trabalha na floresta do filme) e abandonou sua carreira de atriz e cantora.
Dos maiores traumas cinematográficos que já experienciei, KICHIKU (O Demônio, 1978) de Yoshitaro Nomura é uma obra cruel e fascinante, pois aborda um dos grandes tabus de representação explícita no cinema - a violência infantil.
E, visto o impacto emocional deixado pelo abuso e o sofrimento das três crianças durante a sessão, surpreendo-me ao ver a falta de reações de outros cinéfilos para com este filme e o fato de não ser tão lembrado como deveria. É um verdadeiro questionamento dos limites da violência na ficção em um contexto histórico particular. A industrialização e o progresso econômico da época ainda estavam marcados pela memória do pós-guerra e dos sacrifícios para reconstruir a nação, mas também, no que diz respeito ao "demônio" em questão, pelas histórias reais de crianças abandonadas por famílias em precariedade.
Yoshitaro Nomura nos propõe uma experiência tão emocionante quanto às outras obras que ele adaptou de narrativas de investigação policial do célebre escritor Seicho Matsumoto. A parceria Nomura/Matsumoto é genial. Em "O Demônio", também temos o brilhante Ken Ogata que à princípio não pretendia aceitar o papel, mas acabou mudando de ideia, trazendo uma interpretação psicologicamente multifacetada para o seu personagem e recebendo vários prêmios de melhor ator. Graças a este papel, Ogata pôde interpretar em seguida diversos personagens complexos no cinema autoral dos anos 80 e 90.
Assim como em The Shadow Within (1970) do mesmo diretor, percebemos títulos misteriosos e indecifráveis. Como em japonês, não temos acordo de substantivo no plural, o "demônio" poderia ser um ou vários. No entanto, Kichiku (鬼畜) quer dizer selvagem, bruto, etc, mas quem? A tentação é grande de querer qualificar o protagonista masculino, porém Nomura relata que partiu do intuito de mostrar a interferência da maldade no cotidiano de pessoas em precariedade. O título internacional sugere um filme de horror, apesar de que o sobrenatural em si é quase ausente da história. Pelo contrário, é do olhar do cotidiano e das banalidades de uma famÍlia disfuncional que surge o macabro.
...E contendo as lágrimas de entusiasmo de poder encontrar ainda filmes que chegam às profundezas do âmago e que, principalmente, não perdem o próprio potencial de serem surpreendentes - apesar do excesso de filmes que assistimos, KAGE NO KURUMA [影の 車, "O carro da sombra", (e não "A sombra do carro") de 1970] é uma obra espetacular de um dos diretores mais subestimados da indústria cinematográfica japonesa.
Yoshitaro Nomura preparou um coquetel a base de filme de horror psicológico e melodrama familiar setentista tão misterioso quanto seu título indecifrável. Esta "sombra interior" que atormentaria o protagonista com dúvidas e que não se pode definir explicitamente a não ser pelas inúmeras sugestões que esta experiência fílmica propõe. O que levaria um homem adulto a se sentir ameaçado por uma criança de seis anos?
Hamajima é o típico trabalhador assalariado de grandes centros urbanos que encontramos nas ficções populares japonesas com idas e vindas do trabalho, numa rotina familiar monótona, quase como se estivesse aguardando o acontecimento de algo arrebatador na vida dele.
A delicadeza de Go Kato interpretando este personagem ao encontrar a charmosa viúva Yasuko (a brilhante Shima Iwashita) com seu filho misterioso é singular. A posição de grande fraqueza e insegurança neste gênero que geralmente é associada à vítima feminina surpreende ao insistir na fragilidade masculina do protagonista.
Nomura realiza aqui mais uma adaptação do célebre autor de narrativas de investigação policial, Seicho Matsumoto, e deveria se destacar não apenas por este exercício de gênero de horror cinematográfico (incomum entre os diretores japoneses de sua geração, diga-se de passagem), mas também por ter atravessado várias décadas do cinema nipônico e ter feito prova de grande versatilidade em suas obras - dos musicais aos filmes de época - dentro da estrutura de produção dos grandes estúdios japoneses.
Sublime! Nessa experiência fílmica sem igual, o diretor Kon Ichikawa triunfa em duas propostas: primeiramente, ele nos convida com extrema sutileza ao imaginário floral de uma das obras míticas da literatura japonesa. E, acima de tudo, ao seu olhar refinado numa adaptação para além da reprodução literária óbvia que muitos espectadores gostariam de ter visto, AS IRMÃS MAKIOKA é um tratado estético, crítico e social que não se contenta com a imitação, buscando ser uma companion piece à obra de Jun'ichirō Tanizaki.
É interessante mencionar que o diretor conhecia muito bem a região onde se passava a obra original e possuía até mesmo o sotaque particular de Osaka. Era o diretor ideal para o projeto, pois já havia feito também filmes com essa especifidade regional de Kansai e adaptado outras obras de Tanizaki para o cinema. Foi com muito êxito e atores emblemáticos do mundo nipônico que Ichikawa realizou esta verdadeira pintura social de uma classe média alta japonesa em decadência antes da segunda guerra mundial.
Os Makioka - uma familía predominantemente feminina com maridos de classe social inferior, "adotados" - desfilam na tela com kimonos de seda, bordados e ornamentos de um refinamento em extinção. No filme, o requinte visual dos figurinos e a arte téxtil tradicional japonesa evocam a nostalgia cultural tão importante no livro. São os diálogos marcados pelo sotaque do sudoeste do Japão, o deslumbramento pela natureza e a rotina pacata de suas personagens privilegiadas que dão ritmo ao filme, evocando sutilmente o declínio de seus valores familiares antes de culminar numa separação extrema e nas transformações socioeconômicas que formatariam o Japão do pós-guerra.
Seios eternos, em japonês. "Para sempre, uma mulher" (1955). Filme restaurado em 4K pela Nikkatsu e exibido no festival de Tóquio com visual deslumbrante. A temática é delicada e abordada com um olhar inteligente dentro das limitações de representação do corpo da mulher no cinema de sua época. Kinuyo Tanaka está triunfante na direção de seu terceiro longa-metragem adaptado de uma história real sobre a escritora Fumiko Nakajō que morreu aos 31 anos de um câncer de mama. Roteiro e direção na mão de mulheres influentes em sua época. Yumeji Tsukioka está belíssima no papel principal e trouxe a pungência, assim como a poesia, da vida da protagonista com muito êxito! Um luxo cinematográfico.
Trata-se de um nascer da lua ozuesco e um verdadeiro dilema cômico para com o título do filme. Em japonês, a lua não sobe, mas em inglês sim. A lendária atriz Kinuyo Tanaka está muito espirituosa na direção de seu segundo filme. Outro retrato de feminilidade em seu tempo, investigando as possibilidades de realização pessoal feminina que uma sociedade japonesa do pós-guerra podia oferecer. No papel mais marcante entre as filhas, a interpretação de Mie Kitahara está de um atrevimento e impetuosidade sem iguais. Diante de seus impulsos casamenteiros sem limites, ficamos literalmente hipnotizados durante toda a sessão. Sensível e muito delicado!
A lendária e atriz pioneira Kinuyo Tanaka na direção impecável da sua filmografia de seis filmes cujo primeiro foi dirigido cuidadosamente e deixou um marco na era de ouro do cinema japonês. CARTAS DE AMOR (1953) deveria ser considerado um clássico cinematográfico do pós-guerra. Um filme que revela o trauma na sociedade japonesa da época a partir do amor perdido entre seus protagonistas, Reikichi e Michiko. É também com um grande olhar crítico que o roteiro escrito pelo famoso Keisuke Kinoshita retrata a economia do consumo ocidental por trás de uma xenofobia hipócrita e as demandas de sucesso com valores patriarcais em tempos de escassez material. A guerra deixou marcas inenarráveis na vida daquelas pessoas. A necessidade de redenção exige aqui o dobro de uma mulher, mas todos terminam julgados. Afinal de contas, quem poderá lançar a primeira pedra? O filme, inclusive, questiona a participação da nação japonesa na guerra com uma cena formidável. Filme excelente!
.... E bem no começo desta pepita sensual, a primeira aparição de todas de Isabelle Huppert. Gostei da proposta do filme, filmar o verão, apesar de achar que ficou cafona com o tempo. Mas quem não gosta de cafona ? Um filme realizado por uma mulher que coloca o personagem de Muriel Catala no primeiro plano e o olhar dela do mundo. Longe do "male gaze" tão tradicional na história do cinema ? O que é ver uma mulher dando "prazer visual" a si mesma ? E aquela vontade de inverter um pouco a ordem das coisas ?
Não há formula para construir um roteiro longe dos clichês discursivos e sexuais de gênero, mas aqui é ao menos uma experiência erótica no cinema muita distinta daquela proposta na série de filmes "Emmanuelle". Sabe-se que é muito frequente no cinema o fato do espectador ser convidado a se projetar em personagens masculinos ativos e corajosos em detrimento a personages femininos passivos e sofredores....
Em FAUSTINE ET LE BEL ÉTÉ, a singularidade do filme é aos meus olhos a sequência tão doce, mas complexa cinematograficamente falando, na qual Faustine pega a câmera da família para utilizar a objetiva zoom e não para ver melhor, mas para ver de maneira diferente, o mundo, com a qual o espectador vive a experiência dos outros e da natureza pelo seu olhar insistente e provocador. Agora o corpo dela desnudado pela câmera como em filmes masculinistas, isso é uma outra historia...
Que privilégio assistir ao novo filme do cearense Guto Parente no Tournai Ramdam Festival antes mesmo da primeira sessão do filme no Brasil. O diretor contou que já viajou com o filme em vários festivais e que vai apresentá-lo em breve no Brasil. Um filme de gênero, algo que vimos com pouca frequência na história do nosso cinema e me lembrou AS BOAS MANEIRAS, 2017, filme de horror sublime de Juliana Rojas e Marco Dutra.
Nesta iniciativa de Guto Parente, filme de horror com elementos cômicos, plenos de sarcasmo, se integram numa reflexão política sobre questões atuais no Brasil : as políticas de dominação, opressão e exploração do outro, em tempos do mais puro analfabetismo histórico e político jamais vivido no país. Guto realizou o filme antes mesmo do inominável ser eleito, que horror twist este de ver se tornar real aquilo que ele concebeu em ficção.
Com um olhar ainda sobre os limites entre esfera privada e pública ( pensar em "AQUARIUS" do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, 2016 ) que a imaginação nos permite de ultrapassar, e os códigos delirantes do cinema de gênero dando vasão às neuroses da elite brasileira ( pensar esta elite como "DOMINGO" de Felipe Barbosa e Clara Linhart, 2018 ). Imagina que a historia do cinema brasileiro no futuro vai contar com todos estes títulos que ousaram projetar um olhar singular e crítico nas contradições políticas brasileiras.
Femme
3.7 30Apesar de imagens impactantes, FEMME não questiona como parece e retrata ao meu ver muito perigosamente elementos pornográficos por trás da natureza obsessiva dos personagens. O primeiro longa da dupla Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, fãs de Drag Race e filmes policiais de gênero, recebeu elogios nos principais festivais de cinema de 2023, estreando nos cinemas ingleses no final do ano passado e abrindo um festival belga cujo slogan "filmes que nos provocam e nos questionam" deixou-me reticente após a banalização excessiva de imaginário sexualizado deste filme, perguntando-me se isso basta para incomodar quem quer que seja na era onlyfans das redes sociais?
O filme se apresenta em festivais como um thriller neo-noir, inspirado por obras policiais hollywoodianas da era dourada com a figura quintessencial da femme fatale. Logo, no título FEMME. Plot twist: é uma trans.figuração, previsível diga-se de passagem, das posições pré-determinadas do film noir: a mulher que é desejada por sua aparência e o homem admirado por sua masculinidade trans.formam-se numa única figura de sensibilidades femininas e masculinas permitidas pelo drag. Sendo o ponto forte da sessão um jogo de força e vulnerabilidade manifestado por ambos o personagem homofóbico e a drag queen performativa. No entanto, o olhar crítico sociopolítico é rapidamente substituído por artifícios de thriller erótico com temáticas de obsessão, desejo e vingança.
Quem não gosta de um bom thriller? Especialmente FEMME que vai te deixar roendo as unhas postiças e esticando a peruca. E, ainda assim, é necessário engolir a dicotomia limitada, quase forçada, que se opera entre códigos de comportamento masculinos em boate hétero e femininos em boate gay, contradizendo em essência o potencial transgressivo drag que a trama poderia ter incorporado se não estivesse tão compulsivamente dedicada à representação do desejo sexual dos personagens. Em meio ao deleite de referências de espectador queer (xiè xiè rainha Chun Li!), a sessão que começara latejante em todos os sentidos do termo interrompe o gozo discursivo racial e sociopolítico muito precoce em prol de uma experiência erótica e tão eficaz como qualquer outro thriller elaborado.
Sleep - O Mal Nunca Dorme
3.2 21Elogiado pelo brilhantíssimo Bong Joon-ho e aplaudido de pé na Semaine de la Critique do Festival de Cannes, Jason Yu, o diretor sul-coreano de SLEEP, que havia tido um pesadelo no qual todos vaiavam a estreia do seu primeiro longa-metragem, emocionou-se com a recepção francesa deslumbrada, quase unânime. Em pleno começo de carreira, uma obra de extremo rigor técnico e de grande inteligência roteirística para com os elementos sobrenaturais que explora, referenciando à história do K-horror com a temática xamanista abordada sem perder o seu potencial de olhar social crítico e contemporâneo.
Inclusive, é um verdadeiro retrato da "vida de casal" a partir do viés sarcástico e sem escrúpulos permitido pelas fórmulas do filme de horror. Arrastando-nos deliberadamente pelas situações traumáticas de seus personagens com o diferencial de também propor uma reflexão sobre distúrbios instrumentalizados pela medicina, o filme entrega numa experiência estética perspicaz a sua simbiose angustiante entre riso e desespero.
Suspicion
4.7 1Em torno do duelo magistral de atuações das divas japonesas Shima Iwashita e Kaori Momoi, um grande cineasta como Yoshitaro Nomura, ainda que muito desconhecido do grande público internacional, recria a fórmula do filme de tribunal num espetacular quebra-cabeça psicológico transformado por elas em palco de luta livre. Os diálogos brilhantemente afiados e ferozes revelam também o lado sarcástico do filme, mas não podemos esquecer - onde tem Nomura, também terá o suspense literário de Seichō Matsumoto. Parceria prolífica!
Sucesso de público e de crítica durante o lançamento no Japão e marcado pelas questões socioculturais de seu tempo - dinheiro, posição social, casamento, SUSPICION não apenas se apropria do imaginário camp de mulheres fortes e ousadas das soap operas, mas revela brutalmente a misoginia vivida pelas mulheres japonesas da época.
Seria como dizer que se ela fosse submissa ao casamento e aos valores familiares, vestida de maneira honrada com seu kimono de seda, talvez não teria caído numa vida sórdida e vulgar. A mesma coisa vale para a sua defensora que seria mais realizada se não tivesse optado pelo trabalho, negligenciando o matrimônio e a própria filha. Curiosamente, apesar da diferença de status e estilo de vida entre a acusada e a advogada, sob o olhar patriarcal da sociedade japonesa que o filme insiste em provocar, ambas seriam criminosas e imorais.
La Triche
3.6 2Que surpresa incrível! Um retrato histórico de sensibilidade camp e queer nos anos do presidente Mitterrand finalmente resgatado e devidamente restaurado para a posteridade.
Realizado pela Yannick Bellon cujo feminismo lírico não decepcionava os franceses amantes do próprio cinema autoral, LA TRICHE (do verbo tricher, sinônimo de mentir, dissimular) aborda o homoerotismo de forma brilhante e muitíssimo diferente dos filmes da época e da ridicularização de homens efeminados em comédias populares. Como raramente visto no cinema francês com tamanha simplicidade e naturalidade, dois homens demasiadamente excitantes atraídos um pelo outro e mais nada além disso. Nenhum trauma de infância, nem sequer condição psicológica de justificativa: ode ao desejo!
Victor Lanoux soberbo no papel principal do policial casado com a família perfeita que (re)descobre o desejo nos braços de um jogador de rugby interpretado pelo belo Xavier Deluc, mas como se não bastassem as atuações sutis, incrivelmente justas dos mesmos, o resto do elenco também expressa muito bem a maturidade da produção. Boas escolhas na construção dos personagens permitem ao filme de mostrar ainda hoje a sua relevância política. Disfarçado de suspenso chabroliano, o filme aborda o desejo homoerótico e bissexual descomplexado através do olhar marginal dos apaixonados, deixando muito claro a sua posição desfavorável à mentalidade francoburguesa oitentista. ♥ ♥ ♥
The Youth Killer
3.6 1Com seus corpos ardentes, Mieko Harada e Yutaka Mizutani incendeiam a película de uma das obras mais emblemáticas da nuberu bagu tardia e setentista. Do diretor Kazuhiko Hasegawa que apenas dirigiu dois filmes, THE YOUTH KILLER (青春の殺人者, 1976) recebeu elogios da crítica japonesa na época que muito admirou a simbiose estética entre a sexualidade do jovem casal e o desespero cada vez mais perigoso de se alienarem em seu próprio tempo. Desconectados das crises políticas e das manifestações sociais, Jun e Keiko seguem perdidos em busca de uma razão para existir. Esta juventude decadente era um tema essencial para a nuberu bagu que já estava se perdendo no final da década de 60.
Foi principalmente a pequena produtora e distribuidora ATG (Art Theatre Guild - vide a minha lista aqui no filmow) que relançou esta temática com a força e o estilo semi-documentário de cineastas dos anos 70. Intensamente marcado por contrastes de estilo (interior/exterior, fundo sonoro real/musical, luz natural/chiaroscuro), o filme coloca em cena de maneira simbólica o sacrifício da geração mais velha, a morte da família culmina na perda de convicção total e até mesmo do sentido de existir de Jun. O drama se sustenta graças ao tour de force do brilhante Yutaka Mizutani e da jovem Mieko Harada que se tornaram figuras cultuadas de seu tempo.
Barbie
3.9 1,6K Assista AgoraAssistido em pré-estreia internacional! O filme está IMPERDÍVEL se você aprecia o que representa a figura da Barbie. Se tiver memórias de infância, vai se emocionar. Se for colecionador, a sessão será inesquecível. Esperei anos por um filme assim que tivesse o investimento para homenagear a história da boneca mais amada de todos os tempos.
Antes mesmo de poder marcar "já vi", fiz questão de deixar um traço da minha experiência tão gratificante como fã e colecionador. Bonecas Barbie e Ken de diferentes épocas são celebradas na trama com humor e imaginação. "Então, é assim que os héteros se sentem quando estreia um filme de super-herói?", citando o comentário mais engraçado da página, pois quem desejava ver uma obra cinematográfica no mundo maravilhoso do plástico rosa e das miniaturas de comida de faz de conta terá o seu sonho realizado.
Barbie possui inúmeras referências, incluindo fantasia, comédia e trechos musicais com um toque de sarcasmo e uma trilha sonora deliciosa. Embora o foco principal seja seguir as normas de um bom blockbuster hollywoodiano para emocionar o espectador, o que vai surpreender muita gente é o seu lado didático sobre a história da boneca. Ela foi criada em 1959 por uma mulher, Ruth Handler, sem a aprovação das pessoas ao seu redor e hoje faz parte do imaginário do mundo. Um ícone eterno de imaginação! ♥
Família
3.0 1Brasileiros no Japão! Muito surpreso com a proposta do filme e em partes desapontado após a sessão. Lançado há poucos meses no cinema e agora em bluray, FAMÍLIA (ファミリア, a nossa palavra escrita no sistema fonético deles para as palavras estrangeiras) representa a vida de imigrantes brasileiros e de seus filhos em terras nipônicas, fazendo referência inclusive à era do "sonho japonês" dos anos 80/90 quando muitos brasileiros se mudaram para lá em busca de uma vida melhor. É curioso ver tanta brasilidade em meio aos costumes japoneses e às diferenças de comportamento nas duas culturas. O filme também tem diálogos em português e atores de fato nipo-brasileiros, mas infelizmente o resultado sofreu por conta de suas atuações irregulares com apenas algumas cenas de destaque. Entre o drama dos brasileiros e a história de um pai japonês ceramista, pareciam dois filmes diferentes intercalados. A presença impecável de Kōji Yakusho que salvou o filme.
Egoist
4.0 4Extraordinário! Diferentemente do BL convencional, EGOIST (エゴイスト, 2023) entra com força e beleza na história do cinema queer japonês. Seu olhar humano e cuidadoso do cotidiano gay e homoerótico é marcado pela complexidade das relações humanas e do sentimento de perda. Caso não tenha visto as pérolas antigas do cinema gay nipônico, recomendo a minha lista GAY & JAPONESA, na qual pesquiso obras que abordaram (explicitamente ou não) a diversidade de sexo e gênero na terra do sol nascente. Dos idosos de Ozu aos laços familiares de Yamada, o imaginário de narrativas dramáticas de pessoas do cotidiano atravessou a história do cinema japonês e se manifesta ainda em obras atuais. Ao encarnar vidas queers invisíveis até então neste universo tradicional tão simples, familiar e nipônico, EGOIST ultrapassa os limites do BL, lembrando-nos de celebrar também os antepassados com uma afiliação direta ao clássico gay OKOGE (おこげ, 1992). Difícil ignorar o fato de que ambos produziram algumas das cenas de sexo mais lindas que já vi e, sobretudo, de cumplicidade entre amigos gays. Suzuki-san e Miyazawa-san - lindos de morrer - interpretam o casal Kōsuke e Ryūta que eu poderia assistir eternamente naquela cena em que um seca os cabelos do outro. É o amor! ゲイの愛ですよ。
Go
4.2 4Que há num simples nome?
名前ってなに?
O que chamamos rosa,
バラと呼んでいる花を
sob uma outra designação
別の名前にしてみても
teria igual perfume.
美しい香りはそのまま。
Kichiku
1Telefilme adaptado do romance de 1957 escrito por Seicho Matsumoto, estrelando Takeshi Kitano e dirigido por Noboru Tanaka. O romance foi previamente adaptado em 1978 intitulado O DEMÔNIO com Ken Ogata e direção impecável de Yoshitaro Nomura.
Quando um homem casado não consegue mais sustentar a amante, ela abandona três filhos pequenos com ele e a esposa furiosa que não sabia da existência dos pequenos. Consumidos pelo ciúme e o desequilibrio de suas próprias relações, eles envolvem as crianças em seus jogos de puro sadismo e os resultados são trágicos. O termo "Kichiku" (鬼畜) em japonês como "demônio" é carregado de sentido religioso budista e se refere também a pessoas que cometem atos de grande crueldade para além da compreensão humana.
Farewell to Spring
4.5 2A obra de Kinoshita que fascina cada vez mais os interessados pela história do cinema queer japonês, ADEUS À PRIMAVERA (惜春鳥 lê-se 'sekishunchō' e representa uma metáfora de pássaros lamentando o fim dessa estação e da juventude) se tornara uma sessão obrigatória para descobrir como o diretor abordou uma história de grande afeto entre garotos desiludidos com o passar do tempo e a finitude das coisas, sobretudo das relações.
No ano passado, uma exposição na Universidade de Waseda sobre a diversidade sexual no cinema nipônico foi realizada sob a curadoria de Yutaka Kubo, um jovem especialista de Kinoshita que se interessou pela possibilidade do espectador queer de fazer leituras deste filme a partir dos detalhes que escapam à norma e geram identificação com o que não poderia ser representado na época. Apesar dos rumores da sexualidade do próprio diretor, trata-se de um filme que não faz nenhuma referência explícita à homossexualidade.
Críticos japoneses como Ikuko Ishihara e Yuka Kanno estudam os comportamentos destes personagens atípicos e indiferentes ao casamento tradicional que demonstravam grande conforto na companhia de pessoas do mesmo sexo. As teorias de Yuka Kanno sobre uma Noriko lésbica nos filmes do Ozu são o puro deleite. Recomendo a leitura.
Muitas dessas figuras marcaram a era clássica dos estúdios japoneses, alimentando assim um sistema de sexualidade discreta. Todavia fiquei surpreso com as grandes emoções retratadas por Kinoshita em Adeus à Primavera. Concordo com o escritor Hideo Osabe sobre a possibilidade de um amor da parte de Masugi pelo garoto de maior destaque Iwagaki interpretado por Yusuke Kawasu - também brilhante em outros filmes sobre a juventude. O estudioso Yutaka Kubo analisa de maneira reveladora a deficiência física de Masugi e a falta de interesse do mesmo por garotas como uma falha da masculinidade dominante que atormenta o filme e também lhe coloca lágrimas nos olhos diante do fim de uma bela amizade.
The Rendezvous
4.0 2De uma brilhante sobriedade estética, esta Promessa / Le Rendez-vous (Yakusoku, 約束 1972) do diretor Koichi Saito é também uma grande homenagem ao cinema francês sessentista de filmes como "Un Homme et Une femme" (Lelouch, 1966) e às trilhas jazzísticas de Francis Lai. Filme que emociona especialmente em suas dualidades - a história de amor de uma vida se passando em apenas algumas horas, na sutileza extrema de uma mulher condenada e na infantilidade de seu amante, duas almas perdidas em uma viagem de trem...
Estrelando a magnífica Keiko Kishi no papel feminino principal com sua figura statuesque de sempre, uma atriz conhecida por seus filmes românticos na década de 1950, pela sua parceria com o diretor Kon Ichikawa e o seu casamento francês que lhe permitiu de trabalhar também internacionalmente. Seu amante pleno de ingenuidade foi a interpretação controversa de Kenichi Hagiwara, ninguém menos que Shōken - como era chamado nos palcos, uma estrela pop e líder de banda à la Beatles no final dos anos 1960 que decidia experimentar a carreira como ator - em um de seus primeiros papéis dramáticos após o filme musical de sua banda.
Apesar da sutil fotografia de Noritaka Sakamoto com cores invernais, das paisagens marítimas frias e da elegância discreta dos sobretudos vestidos pelos personagens, trata-se de um filme muito caloroso, um romance intenso e poético embora passageiro. Por meio de andanças quase existenciais, os amantes cujos nomes comportam significados Keiko (螢子, escrito não pelo kanji de gentileza, mas de vaga-lume) e Akira (朗, escrito não pelo kanji de claridade, mas de alegria) incarnam estas personalidades que se completam. Ela com o sentimento de ter se apagado e ele com aquela agitação infantil, mas ambos com esta promessa, dissimulando uma grande solidão que poderiam ter eliminado juntos...
Paixão Mórbida
4.7 2Pérola brilhante redescoberta do cinema japonês sessentista com uma direção sofisticada e um tema social altamente controverso. Apesar de ter recebido duas indicações ao Oscar, Noboru Nakamura foi esquecido nas últimas décadas pela crítica ocidental. Seus filmes se tornaram raros e as últimas restaurações de suas obras ainda não receberam mídia física com o devido cuidado. Este Shape of the Night (1964) encontra-se disponível com legendas em inglês no site rarefilmm / The cave of forgotten films e merece ser assistido.
Nakamura adapta um romance de Kyoko Ohta e retrata a prostituição na vida noturna de Tóquio. A atriz Miyuki Kuwano, lembrada principalmente por sua interpretação em Cruel Story of Youth (1960) de Nagisa Oshima, está sublime no papel principal. Seu semblante melancólico em primeiro plano, rodeado pelos letreiros de neon dos bares mais badalados da cidade, incarna em oposição à noite libertina uma desilusão profunda, amarga e inconsolável. É a tristeza presente no seu olhar que parece guiar todo o filme com grande poesia.
Neste submundo noturno embriagado de glamour, as luzes de neon da cidade que haviam prometido sonhos de felicidade - se casar e formar uma família dentro dos valores tradicionais da sociedade japonesa, agora revelam apenas a impotência vivida pela personagem e a experiência de vidas esvaziadas de sentido. Este microcosmo alienado dos eventos políticos que vivia o Japão - as manifestações contra a parceria invasiva dos americanos (que a protagonista diz nem saber do que se trata!) - é representado com grande proeza técnica. Seu mundo interior de jovem prostituída nas ruas da cidade é colocado em destaque pelo som, momentos brilhantes de supressão sonora e de identificação com a sua dor. Projeções de luzes coloridas artificiais respondem à altura da modernidade formalista da Nuberu Bagu e nos brindam com imagens de puro deleite visual, momentos pictóricos da tragédia de uma mulher neste melodrama de Nakamura que é um dos melhores de sua época.
Minha Vingança
4.1 14Entre a sedução e a repugnância total, Ken Ogata brilha no papel principal de um dos filmes mais importantes de Shohei Imamura. Um papel que conseguiu indubitavelmente graças ao seu tour de force do ano anterior em O Demônio (1978). Quando pensava que não podia ser mais monstruosamente rigoroso e expressivo, Ogata-san surpreende na pele de um serial killer e faz justiça aos desdobramentos de sua carreira no cinema autoral japonês.
Conhecido por adotar o olhar marginal da sociedade, por sua filosofia quase antiozuesca, pela recusa das normas e dos enquadramentos minuciosos perfeitamente japoneses aos olhares ocidentais, Imamura adapta com um toque de perversão e ironia o romance de mesmo título do autor nipo-coreano Ryuzo Saki. Baseado na vida real do serial killer Akira Nishiguchi, MINHA VINGANÇA (pois "Fukushū Suru" no título significa literalmente o ato de se vingar) é um filme não-linear e despido de julgamento moral contra o protagonista.
O assassino em questão não explicita o motivo de suas monstruosidades. Não há explicações psicológicas redutoras ou posicionamento punitivo da parte do diretor. A obra de Imamura sempre foi dedicada ao imoral e à crítica de uma sociedade disfuncional que marginaliza tudo aquilo que não segue a lógica dominante. Se haveria de existir uma vingança, esta seria talvez a resposta do personagem à própria existência em uma sociedade desigual na qual nunca encontrou seu lugar e ao rir insanamente do que lhe é imposto como racional.
Eis então que o lado fascinante do filme surge ao mostrar esta pulsão de destruição não como princípio de espetáculo, mas de forma estranhamente antropológica como se fosse um olhar do estado humano mais primitivo. O trabalho assíduo nas parcerias de Imamura com o diretor de fotografia Shinsaku Himeda é brilhante. Entre os movimentos de câmera extremamente fluidos e uma iluminação de contraste que coloca em valor a atmosfera decadente da trama, este setentismo delicioso é um dos maiores títulos do cinema japonês.
Castelo de Areia
3.9 4Em mais uma parceria infalível do diretor japonês Yoshitaro Nomura com o escritor de tramas de suspense Seicho Matsumoto, surgia um filme policial marcante dos anos 1970 que na época ficou tão popular quanto à camisa entreaberta do galã Go Kato. Embora tenha recebido inúmeros prêmios e também a aclamação do público, "Castelo de Areia" ainda hoje deixa muitos cinéfilos reticentes por conta do ritmo da intriga e de sua duração. A abordagem no filme da investigação policial joga com a nossa paciência, mostrando ao mesmo tempo inúmeras pistas e teorias do crime nos mínimos detalhes.
Neste raciocínio que buscaria um olhar investigativo verossímil, o exercício da minúcia (sobretudo nas hipóteses equivocadas dos dois detetives principais) foi necessário para se revelar facetas do trabalho policial incomum até então no cinema popular japonês e que singularizou o filme de Nomura em relação a esta tradição já consolidada em Hollywood. Um enredo investigativo misterioso e hermético que se torna cada vez mais fascinante por conta de uma progressão rítmica rigorosa. T. Kawamata (dir.fotografia) enquadra com astúcia paisagens rurais japonesas, atribuindo valor ao espaço geográfico de uma busca que pretende chegar ao detalhe mais preciso do crime a partir de um contexto social.
Dos lugares mais afastados nos quais até a polícia parece se perder, o mistério da trama ganha em profundidade. Inclusive, muitas lacunas nunca foram explicadas. É da genialidade de ultrapassar os limites do gênero fÍlmico e fazer a irrupção do melodrama depois da metade da sessão, como se houvesse outro filme a ser assistido e que estivéssemos diante de uma homenagem ao pai do diretor, Hotei Nomura - cineasta da Shochiku na época do cinema mudo - com uma experiência de orquestra sinfônica inscrita na ficção e nostálgica de uma relação com a imagem que ultrapassa a palavra, criando uma ruptura interessante no filme.
Koto
4.3 1Sublime! Encantado com o trabalho de Kon Ichikawa e a parceria com o diretor de fotografia Kiyoshi Hasegawa no final dos anos 1970, passando por A família Inugami de 1976 e chegando ao ápice visual em As Irmãs Makioka de 1983. Nesta incursão fílmica pela obra de um dos diretores japoneses mais expressivos visualmente - uma experiência indubitavelmente pictórica em cores e enquadramentos, descobrimos KOTO (古都, 1980), adaptação em melodrama parcimonioso do romance aclamado de 1962 do escritor Yasunari Kawabata.
"Koto" significa cidade ou capital antiga e faz referência à nostalgia do Japão de outrora, de suas tradições e costumes em sociedade, especialmente na relação das pessoas com a natureza. Ichikawa consegue nos transportar a um imaginário atemporal e isolado de tudo, distante das grandes capitais e dos pontos turísticos. Escolha delicada à princípio ao adaptar uma obra literária importante, afastando-se das características mais evidentes da topografia de cidades como Kyoto, dos templos budistas e dos monumentos históricos.
Em sintonia com uma floresta imensa, delicada e misteriosa de árvores criptomérias, o reencontro de duas irmãs gêmeas separadas no berço surge do anseio de uma delas de retornar às próprias origens por ter sido abandonada. Como o símbolo de sábia longevidade do cedro japonês e trabalhando neste poético mundo arbóreo que vemos no cartaz do filme, a segunda irmã cultiva um respeito religioso das tradições, desejando em sororidade recompensá-la pelo trauma sofrido. Inútil dizer que Momoe Yamaguchi está maravilhosa interpretando as duas irmãs, mas direi sobretudo que foi uma lástima ter sido a sua última aparição fílmica, pois casou-se com Tomokazu Miura (o lenhador bonitão que também trabalha na floresta do filme) e abandonou sua carreira de atriz e cantora.
O Demônio
4.3 1Dos maiores traumas cinematográficos que já experienciei, KICHIKU (O Demônio, 1978) de Yoshitaro Nomura é uma obra cruel e fascinante, pois aborda um dos grandes tabus de representação explícita no cinema - a violência infantil.
E, visto o impacto emocional deixado pelo abuso e o sofrimento das três crianças durante a sessão, surpreendo-me ao ver a falta de reações de outros cinéfilos para com este filme e o fato de não ser tão lembrado como deveria. É um verdadeiro questionamento dos limites da violência na ficção em um contexto histórico particular. A industrialização e o progresso econômico da época ainda estavam marcados pela memória do pós-guerra e dos sacrifícios para reconstruir a nação, mas também, no que diz respeito ao "demônio" em questão, pelas histórias reais de crianças abandonadas por famílias em precariedade.
Yoshitaro Nomura nos propõe uma experiência tão emocionante quanto às outras obras que ele adaptou de narrativas de investigação policial do célebre escritor Seicho Matsumoto. A parceria Nomura/Matsumoto é genial. Em "O Demônio", também temos o brilhante Ken Ogata que à princípio não pretendia aceitar o papel, mas acabou mudando de ideia, trazendo uma interpretação psicologicamente multifacetada para o seu personagem e recebendo vários prêmios de melhor ator. Graças a este papel, Ogata pôde interpretar em seguida diversos personagens complexos no cinema autoral dos anos 80 e 90.
Assim como em The Shadow Within (1970) do mesmo diretor, percebemos títulos misteriosos e indecifráveis. Como em japonês, não temos acordo de substantivo no plural, o "demônio" poderia ser um ou vários. No entanto, Kichiku (鬼畜) quer dizer selvagem, bruto, etc, mas quem? A tentação é grande de querer qualificar o protagonista masculino, porém Nomura relata que partiu do intuito de mostrar a interferência da maldade no cotidiano de pessoas em precariedade. O título internacional sugere um filme de horror, apesar de que o sobrenatural em si é quase ausente da história. Pelo contrário, é do olhar do cotidiano e das banalidades de uma famÍlia disfuncional que surge o macabro.
The Shadow Within
4.6 1...E contendo as lágrimas de entusiasmo de poder encontrar ainda filmes que chegam às profundezas do âmago e que, principalmente, não perdem o próprio potencial de serem surpreendentes - apesar do excesso de filmes que assistimos, KAGE NO KURUMA [影の 車, "O carro da sombra", (e não "A sombra do carro") de 1970] é uma obra espetacular de um dos diretores mais subestimados da indústria cinematográfica japonesa.
Yoshitaro Nomura preparou um coquetel a base de filme de horror psicológico e melodrama familiar setentista tão misterioso quanto seu título indecifrável. Esta "sombra interior" que atormentaria o protagonista com dúvidas e que não se pode definir explicitamente a não ser pelas inúmeras sugestões que esta experiência fílmica propõe. O que levaria um homem adulto a se sentir ameaçado por uma criança de seis anos?
Hamajima é o típico trabalhador assalariado de grandes centros urbanos que encontramos nas ficções populares japonesas com idas e vindas do trabalho, numa rotina familiar monótona, quase como se estivesse aguardando o acontecimento de algo arrebatador na vida dele.
A delicadeza de Go Kato interpretando este personagem ao encontrar a charmosa viúva Yasuko (a brilhante Shima Iwashita) com seu filho misterioso é singular. A posição de grande fraqueza e insegurança neste gênero que geralmente é associada à vítima feminina surpreende ao insistir na fragilidade masculina do protagonista.
Nomura realiza aqui mais uma adaptação do célebre autor de narrativas de investigação policial, Seicho Matsumoto, e deveria se destacar não apenas por este exercício de gênero de horror cinematográfico (incomum entre os diretores japoneses de sua geração, diga-se de passagem), mas também por ter atravessado várias décadas do cinema nipônico e ter feito prova de grande versatilidade em suas obras - dos musicais aos filmes de época - dentro da estrutura de produção dos grandes estúdios japoneses.
As Irmãs Makioka
3.8 5Sublime! Nessa experiência fílmica sem igual, o diretor Kon Ichikawa triunfa em duas propostas: primeiramente, ele nos convida com extrema sutileza ao imaginário floral de uma das obras míticas da literatura japonesa. E, acima de tudo, ao seu olhar refinado numa adaptação para além da reprodução literária óbvia que muitos espectadores gostariam de ter visto, AS IRMÃS MAKIOKA é um tratado estético, crítico e social que não se contenta com a imitação, buscando ser uma companion piece à obra de Jun'ichirō Tanizaki.
É interessante mencionar que o diretor conhecia muito bem a região onde se passava a obra original e possuía até mesmo o sotaque particular de Osaka. Era o diretor ideal para o projeto, pois já havia feito também filmes com essa especifidade regional de Kansai e adaptado outras obras de Tanizaki para o cinema. Foi com muito êxito e atores emblemáticos do mundo nipônico que Ichikawa realizou esta verdadeira pintura social de uma classe média alta japonesa em decadência antes da segunda guerra mundial.
Os Makioka - uma familía predominantemente feminina com maridos de classe social inferior, "adotados" - desfilam na tela com kimonos de seda, bordados e ornamentos de um refinamento em extinção. No filme, o requinte visual dos figurinos e a arte téxtil tradicional japonesa evocam a nostalgia cultural tão importante no livro. São os diálogos marcados pelo sotaque do sudoeste do Japão, o deslumbramento pela natureza e a rotina pacata de suas personagens privilegiadas que dão ritmo ao filme, evocando sutilmente o declínio de seus valores familiares antes de culminar numa separação extrema e nas transformações socioeconômicas que formatariam o Japão do pós-guerra.
Para Sempre Uma Mulher
4.3 6 Assista AgoraSeios eternos, em japonês. "Para sempre, uma mulher" (1955). Filme restaurado em 4K pela Nikkatsu e exibido no festival de Tóquio com visual deslumbrante. A temática é delicada e abordada com um olhar inteligente dentro das limitações de representação do corpo da mulher no cinema de sua época. Kinuyo Tanaka está triunfante na direção de seu terceiro longa-metragem adaptado de uma história real sobre a escritora Fumiko Nakajō que morreu aos 31 anos de um câncer de mama. Roteiro e direção na mão de mulheres influentes em sua época. Yumeji Tsukioka está belíssima no papel principal e trouxe a pungência, assim como a poesia, da vida da protagonista com muito êxito! Um luxo cinematográfico.
A Lua Nasceu
3.8 2 Assista AgoraTrata-se de um nascer da lua ozuesco e um verdadeiro dilema cômico para com o título do filme. Em japonês, a lua não sobe, mas em inglês sim. A lendária atriz Kinuyo Tanaka está muito espirituosa na direção de seu segundo filme. Outro retrato de feminilidade em seu tempo, investigando as possibilidades de realização pessoal feminina que uma sociedade japonesa do pós-guerra podia oferecer. No papel mais marcante entre as filhas, a interpretação de Mie Kitahara está de um atrevimento e impetuosidade sem iguais. Diante de seus impulsos casamenteiros sem limites, ficamos literalmente hipnotizados durante toda a sessão. Sensível e muito delicado!
Cartas de Amor
3.7 7A lendária e atriz pioneira Kinuyo Tanaka na direção impecável da sua filmografia de seis filmes cujo primeiro foi dirigido cuidadosamente e deixou um marco na era de ouro do cinema japonês. CARTAS DE AMOR (1953) deveria ser considerado um clássico cinematográfico do pós-guerra. Um filme que revela o trauma na sociedade japonesa da época a partir do amor perdido entre seus protagonistas, Reikichi e Michiko. É também com um grande olhar crítico que o roteiro escrito pelo famoso Keisuke Kinoshita retrata a economia do consumo ocidental por trás de uma xenofobia hipócrita e as demandas de sucesso com valores patriarcais em tempos de escassez material. A guerra deixou marcas inenarráveis na vida daquelas pessoas. A necessidade de redenção exige aqui o dobro de uma mulher, mas todos terminam julgados. Afinal de contas, quem poderá lançar a primeira pedra? O filme, inclusive, questiona a participação da nação japonesa na guerra com uma cena formidável. Filme excelente!
Uma Lágrima... Um Amor...
3.5 1' O OLHAR DE UMA MULHER '
.... E bem no começo desta pepita sensual, a primeira aparição de todas de Isabelle Huppert. Gostei da proposta do filme, filmar o verão, apesar de achar que ficou cafona com o tempo. Mas quem não gosta de cafona ? Um filme realizado por uma mulher que coloca o personagem de Muriel Catala no primeiro plano e o olhar dela do mundo. Longe do "male gaze" tão tradicional na história do cinema ? O que é ver uma mulher dando "prazer visual" a si mesma ? E aquela vontade de inverter um pouco a ordem das coisas ?
Não há formula para construir um roteiro longe dos clichês discursivos e sexuais de gênero, mas aqui é ao menos uma experiência erótica no cinema muita distinta daquela proposta na série de filmes "Emmanuelle". Sabe-se que é muito frequente no cinema o fato do espectador ser convidado a se projetar em personagens masculinos ativos e corajosos em detrimento a personages femininos passivos e sofredores....
Em FAUSTINE ET LE BEL ÉTÉ, a singularidade do filme é aos meus olhos a sequência tão doce, mas complexa cinematograficamente falando, na qual Faustine pega a câmera da família para utilizar a objetiva zoom e não para ver melhor, mas para ver de maneira diferente, o mundo, com a qual o espectador vive a experiência dos outros e da natureza pelo seu olhar insistente e provocador. Agora o corpo dela desnudado pela câmera como em filmes masculinistas, isso é uma outra historia...
O Clube dos Canibais
3.1 149 Assista AgoraQue privilégio assistir ao novo filme do cearense Guto Parente no Tournai Ramdam Festival antes mesmo da primeira sessão do filme no Brasil. O diretor contou que já viajou com o filme em vários festivais e que vai apresentá-lo em breve no Brasil. Um filme de gênero, algo que vimos com pouca frequência na história do nosso cinema e me lembrou AS BOAS MANEIRAS, 2017, filme de horror sublime de Juliana Rojas e Marco Dutra.
Nesta iniciativa de Guto Parente, filme de horror com elementos cômicos, plenos de sarcasmo, se integram numa reflexão política sobre questões atuais no Brasil : as políticas de dominação, opressão e exploração do outro, em tempos do mais puro analfabetismo histórico e político jamais vivido no país. Guto realizou o filme antes mesmo do inominável ser eleito, que horror twist este de ver se tornar real aquilo que ele concebeu em ficção.
Com um olhar ainda sobre os limites entre esfera privada e pública ( pensar em "AQUARIUS" do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, 2016 ) que a imaginação nos permite de ultrapassar, e os códigos delirantes do cinema de gênero dando vasão às neuroses da elite brasileira ( pensar esta elite como "DOMINGO" de Felipe Barbosa e Clara Linhart, 2018 ). Imagina que a historia do cinema brasileiro no futuro vai contar com todos estes títulos que ousaram projetar um olhar singular e crítico nas contradições políticas brasileiras.