Uma moça é traída pelo participante do BBB 24, expõe sua dor, e se torna famosa. Um ano antes, um motorista de uber atropela Kayke Brito e se torna famoso e até fala sobre se candidatar a deputado federal. É essa a lógica de relação do sujeito com o mundo que o filme retrata de forma cômica, irônica, ácida.
O título original, em tradução do norueguês, é "garota doente", syk (doente) pyke (garota). O título inglês e português respondem do quê a "garota" está "doente": de seu self. O self é um conceito que muda com o passar do tempo e das áreas que o estudam, entretanto há uma prevalência entre o que as definições tocam, sem divergir tanto: self é essa instância psíquica, que indica a experiência subjetiva que um sujeito tem de si mesmo. Essa experiência não se constrói apenas internamente, mas é transformada com na relação com o mundo.
É disso que Signe está doente: de seu self. O que causa a doença, por outro lado, é mais complexo, e não acho que deva se voltar para uma lógica diagnóstica psiquiátrica, mas sim social. Não interessa aqui apontar que ela é narcisista, histérica, ou o que for. É isso o que menos importa aqui, pois penso que ela é antes uma caricatura social, um modelo social ironizado, do que uma personagem a ser diagnosticada. As relações do filme ilustram isso:
Enquanto Thomas tem um self bem fundamentado em sua arte, reconhecido pelo público e pela mídia, ele pode se sustentar. Ele põe a cabeça no travesseiro à noite dizendo a si mesmo "sou um artista e sou reconhecido pelo Outro como tal". Tudo está em seus conformes, pois seu Eu está muito bem identificado a sua profissão. Todos os dias podemos encontrar pessoas assim, que identificam seu Eu ao que fazem profissionalmente. Lá para o fim do filme que vamos ver a queda dessa sustentação que ele inventava com a arte dele a partir de quando ele é preso, denunciando sua fraude. Signe, diante dele, é uma garçonete que trabalha numa cafeteria. Até então, não deveria ser uma relação que causasse crise, não fosse um imperativo social muito contemporâneo que adoenta não apenas o self de Signe, mas o self dos sujeitos na contemporaneidade: nossa sustentação diante de nós mesmos está cada vez mais alienada ao que os outros acham de nós, de modo que nos vemos incapazes de uma dialética, um furo na consistência tão rígida do poder do olhar do outro sobre nós.
O cômico do filme é o caminho pelo qual Signe busca o reconhecimento: é através do que uma vez funciona para ser reconhecida, que é estar às voltas com alguma catástrofe que acometa a ela ou a outrem, de modo que ela possa fazer ser sobre ela. Lembra bastante a onda de exposição exacerbada que todos os dias vemos nas redes sociais, das pessoas que de anônimas, com seus sofrimentos expostos se tornam famosas. A pergunta que o filme levanta para mim não é aquela clássica e rasa "vale tudo pela fama?", mas sim uma série de outras perguntas mais complexas:
Nas gerações anteriores haviam ideais a serem seguidos, que guiavam a vida de nossos avós. O sofrimento deles era por não estarem se encaminhando dentro dos ideais, que seja ter uma formação, um emprego, viver sua vida sexual e íntima restrita a sua intimidade, seja hetero, homo, ou o que for. O que há hoje é uma pulverização de ideais alcançáveis, ou então uma fragilidade muito grande nos caminhos possíveis a se alcançar ideais hoje em dia: se antes fazer um ensino superior era algo que poderia garantir algo, de hoje adiante isso está longe de ocorrer. Nosso sofrimento hoje não é o de estarmos fora dos ideais, porque nem mais sequer os ideais que serviam às gerações anteriores às nossas não nos sustentam mais. Se antes o sofrimento era o de não seguir os ideais, hoje o sofrimento é o de não ter ideal algum. Isso está no âmago da angústia tão contemporânea de sujeitos que seguem a vida e não encontram uma resposta ao se questionarem "Pra onde estou levando minha vida?". Brincamos com o fato de sermos a geração que não vai ter casa própria. O que se é então diante do outro, e em quais ideais se garantir? É possível criar ideais não conservadores para as gerações contemporâneas? E sobretudo: há esperança de que o mundo com sua lógica econômica e social esteja caminhando para a existência de ideais possíveis de sustentação?
Talvez essas questões sejam respondidas pelas gerações futuras, não a nossa. Enquanto isso, para alguns de nós, o que resta é sonhar em viralizar na internet e pagar as contas com patrocínio de marcas.
Salieri é típico personagem invejoso e ressentido, e as duas características nele explicam a diferença lógica entre um sentimento e o outro: na inveja, o sujeito invejoso quer tomar a qualidade que é do outro para si. Para tal, não é construindo em si a qualidade que ele enxerga no outro que o invejoso opera: é antes o destruindo. O invejoso portanto precisa manter perto de si seu rival (Mozart) que detêm seu objeto de desejo (o talento). Em sua fantasia, ele atua como se após a derrota de seu rival, ele terá finalmente livre o objeto de seu desejo para si. A grande decepção se dá ao descobrir que não é assim que a coisa funciona. Mesmo depois de morto, as composições de Mozart são mais conhecidas pelas pessoas do as dele, o que denuncia aquilo que o invejoso não enxerga, a saber, que sua disputa existe apenas na sua cabeça. Nem sempre os arranjos fantasiosos da fantasia conseguem ser bem amarrados. Outro ponto que o filme ilustra muito bem: o invejoso é o maior admirador de seu rival.
No ressentimento, diferente da inveja, não há um revide. O sujeito ressentido não revida o golpe que supõe ter sofrido. O ressentido é aquele que supõe que o Outro tomou dele o que lhe era de direito e deu a outro. Enquanto na inveja, o invejoso identifica o objeto de seu desejo pertencente a outro e o quer para si, no ressentimento, o ressentido identifica que o objeto de desejo que lhe era de direito foi dado a outro. Isso se ilustra na cena onde Salieri, ainda criança, décadas antes de conhecer Mozart, pede a Deus que ele seja talentoso e reconhecido. Sua revolta, no ressentimento, se volta toda em intermináveis queixas. No filme, isso se realiza com Salieri identificando em Deus o Outro que deu a Mozart o que era de direito a Salieri, ou seja, o talento. Como se ele se queiasse a Deus: "Eu pedi primeiro, era a mim que você deveria ter dado o talento". A partir de então ele vai se queixar com Deus, interminavelmente. Se vê sendo feito de chacota por Deus. Mas em momento nenhum é capaz de revidar o dano que sofreu ao fantasiar que Deus deu a Mozart o talento que seria de direito dele. As queixas do sujeito ressentido sempre giram através da mesma lógica: ele alguém que se imagina vítima de uma injustiça. "Eu sou mais merecedor, sou mais educado, sou moral, mais culto, me sacrifiquei mais, tive menos privilégios do que ele, que é um obsceno, um bêbado, um imoral enfim". Para o ressentido, seu desejo foi tomado, anulado por um outro, e assim ele sofre por não ser capaz de assumir o seu próprio desejo, pondo no lugar uma infinita queixa contra aquele que tem o objeto que seria seu de direito.
São ambas duas posições na vida muito paralisantes, que angustiam, mas servem de gozo: há um prazer no ressentido quando se ressente e há um prazer no invejoso quando ele trama os planos de sua inveja, mas é um prazer no sofrimento, e portanto o faz ficar fechado em si mesmo, incapaz de articular-se no mundo através do desejo. Para abrir mão de tal sofrimento, só com muita análise, mas esta só foi inventada mais de um século depois!
Há quem olhe para a tela do celular. Há quem olhe para a copa das árvores.
Hoje, diante do espaço de tempo que se abre no intervalo entre uma atividade, ou mesmo no meio de uma atividade que começa a se mostrar entediante, olhamos para a tela de um celular. Olhe ao redor quando estiver fora de casa, veja isso nas pessoas: cada uma com seu celular enquanto esperam o metrô, enquanto caminham, enquanto estão diante de outras pessoas, num encontro. Hirayama, protagonista de Dias Perfeitos, diante do espaço de tempo que se abre, ele olha para a copa das árvores.
Geralmente, filmes que tratam de personagens solitários o fazem por um viés dramático, como sujeitos que por formação reativa, consequência de algum acontecimento traumático, decidiram se isolar do mundo. Dias Perfeitos trata da beleza que há na solidão, quando ela, embora esteja fechada em si, põe sobre o mundo um olhar atento.
Nos faz pensar: é Hirayama o solitário ali, olhando para a copa das árvores, atento ao que acontece ao redor, escutando a quem se dirige a ele, ou são os outros, hiper conectados, incapazes de se relacionar? Talvez seja ele o menos solitário entre todos. Talvez ele viva uma outra qualidade de solidão.
Outra coisa que esse filme transmite: a cada sujeito cabe a sua forma de solidão, assim como a cada um cabe a própria medida da felicidade. Minha solidão não é silenciosa. Nela eu falo sozinho, com meu cachorro, canto música. Hirayama não fala, é silencioso e gosta do silêncio. A não ser quando ouve música. Cada um tem a sua própria forma de ser sozinho.
A cena do mendigo que abraça as árvores e dança nas ruas: ninguém ali olha para ele. É Hirayama quem o enxerga, tal qual enxerga a copa das árvores, faz do silêncio delas uma amiga. Isso me lembrou Manoel de Barros. Sua sobrinha talvez não se conecte com sua mãe como o faz com ele, que sem palavras, produz uma troca com o outro.
Claro que há ali também uma recusa da convivência com os outros. Mas não é uma recusa autista, recusado Outro, fechada em si. Como uma coisa que é, ele observa sem intervir os outros sendo como observa as árvores que também são. Como as folhas que se movem com o vento, ele observa sem interagir a vida dos outros que se movem com a vida. Quando é convocado a intervir, ele ensina algo muito emocionante: brincar com as sombras. Só mesmo alguém que se relaciona com a própria solidão é capaz de brincar com as próprias sombras.
O título faz referência à brincadeira semelhante ao que no Brasil temos com o jogo "Perfil": você tem personagens colados na sua testa, e você tem que tentar descobrir quem é você através das perguntas que você faz ao seu parceiro de jogo. Mas para além do título fazer referência à brincadeira, é essa a dinâmica da construção do filme: ele parece ser fragmentado como também são fragmentadas as perguntas que o jogador faz ao companheiro de partida até que se adivinha quem se é de fato. E o filme também traz isso: se no início tomamos uma conclusão, logo somos levados a entender que estivemos equivocados, e na verdade vamos para outra conclusão, e assim se segue até que chegamos na revelação final, a resposta definitiva para o "quem sou eu" do personagens. Pode parecer que os coadjuvantes tem um aprofundamento desnecessário, mas é exatamente o contrário: é quando vamos descobrindo a ótica dos coadjuvantes que vemos que a resposta para o que buscamos quando perguntamos durante o filme "quem são esses personagens" está em outro lugar. Como espectadores estamos também participando de uma rodada do jogo. É também um filme sobre o quão precipitado é nosso julgamento, sobre ir para além do que aparenta: na partida, não se pode tentar adivinhar quem você é sem antes fazer a quantidade necessária de perguntas, sem ter a quantidade necessária de respostas. E o que o filme nos põe a prova é isso: o quão rapidamente nós concluímos antes de entender.
Uma cena me tomou pela sensibilidade: "o que você tiver que dizer e não conseguir, sopre", que é a cena do trombone. Para além de ser difícil cada um dos personagens ali dizer o que tem a dizer, o protagonista, aquele adolescente, não parece ter mesmo recursos subjetivos para conseguir dizer o que há nele. Portanto, para o que não há ainda palavras que sejam possíveis de serem ditas, a coisa pode sair de outra forma, pelo grito. E não costuma ser assim nas diversas adolescências que se vê? O encontro sempre traumático com a sexualidade que aflora toma o corpo antes de tomar as palavras que o Outro dita que é certo ou errado. A masculinidade compulsória (não gosto nenhum pouco desse termo, mas é o que temos para hoje) que se vê na troca social entre os outros meninos é um caminho do qual as duas crianças não parecem compartilhar para resolver as consequências da puberdade em seus corpos e para onde apontam seus desejos. De fato, sendo um adolescente e tendo essa complexidade tamanha para lidar, o que resta ali é o grito, essa coisa que comunica sem palavras.
O que eu mais gosto nas histórias de amor é que é sempre possível contar cada uma de uma forma diferente. A equação de um elemento incógnito que é um sujeito com outro elemento incógnito que é um outro sujeito, sempre dá um resultado diferente a cada vez que se equaciona. E apesar das repetições que em uma análise descobrimos cometer, nenhuma outra equação dá o mesmíssimo resultado nas diversas histórias de amor. Na contemporaneidade que a gente vive principalmente. É por isso que nunca vão deixar de criar filmes que giram em torno desse tema inesgotável, porque os tempos e os arranjos amorosos mudam. As histórias de amor, vistas de longe, são iguais. De perto é que a coisa pega, porque sempre há o outro. As particulares estão no que cada história de amor vai criando no seu curso, e é por isso que o resultado de uma equação amorosa é sempre único, pois o decorrer da equação é diferente a cada novo arranjo amoroso.
A história de Nora e Hae Sung me pegou pelo que pude assistir da nostalgia que Hae personificou em Nora, sua paixão de infância que, mesmo tendo mudado de continente - da Ásia para a América - e mesmo tendo passado 20 anos, ele não pôde deixar perder. No que diz respeito àquela paixão, houve uma recusa de perda da parte dele, enquanto Nora seguiu sua vida: os 20 anos passados só deixaram latentes a paixão de Hae por uma Nora que, 20 anos depois, já não existia. . Nesse meio tempo, ela ainda tenta se fazer objeto do desejo de Hae, mas o corte que sua família proporcionou nela, fazendo-a mudar de país na infância durante o correr de sua primeira paixão fez dela alguém que desde cedo suportou os rompimentos - mais do que Hae Sung aprendeu a suportar. Nem mesmo o nome se mantém: ao mudar para os Estados Unidos, ela muda o nome de batismo, que era Na Yong para Nora. Para Hae, ela ainda é Na Young. É no olhar encantado dele diante do objeto de seu amor 20 anos depois, que a coisa me parece ficar evidente. Um olhar reticente quanto ao que ela sente, cauteloso para não ultrapassar um limite diante de uma Nora agora casada, mas sem pudor nenhum de seu encantamento diante dela.
Uma cena, entre tantas do fime, acho emblemática: Nora e Hae Sung vão a um encontro, mas eles tem uma terceira presença entre eles, a de Arthur, o atual marido de Nora, que sabe da paixão que os dois tiveram na infância. Saem os três juntos para jantar. Arthur não fala coreano, portanto ele não entende o que Nora e Hae estão conversando. Mas não é preciso entender a língua: o olhar e o corpo dos dois traduz o idioma. É uma sequência que estampa em cada rosto uma diferença: em Arthur a dor de presenciar a paixão de sua mulher diante dela; em Nora, a confusão de estar diante de sua paixão da infância e ao lado de seu amor, o marido; e Hae, que está suspenso pela paixão por Nora.
Hae Sung sabe que Nora também é apaixonada por ele, sem que ela precise dizer, pois o dizer dela está no ato. Mas é uma paixão de um outro lugar, de uma outra vida, aquela que tinha na Coreia. Sua vida agora é outra, com outro homem, disposta a outras coisas. O título do filme faz uma referência que me parece ser de duplo sentido com a uma fantasia de vidas passadas e a vida que passou com o tempo.,
Não estamos em paridade com o lugar a partir do qual nos relacionamos com o outro. Os laços se fazem a partir do que fazemos dos nomes com os quais amarramos e desamarramos as relações: "somos um casal", "não somos mais um casal", "você está em determinado lugar em minha vida", "você é minha mãe", "você é meu inimigo", "sou essa coisa que não consigo dar nome". Esse desencontro fundamental que edifica a estrutura móvel das relações é o ponto de identificação do espectador com o enredo do filme "A pior pessoa do mundo" muito mais do que com a personagem, Julie, que é uma espécie de errante nas relações que estabelece: cursava medicina quando decidiu largar o curso e fazer psicologia; acabou tornando-se uma livreira. Seu interesse está anunciado no início do filme: o que ela queria não era conhecer as entranhas de um corpo, como os médicos conhecem, mas a alma, como ela supunha que os psicólogos conheciam. Julie não tinha uma casa sua, ela mudava sempre para a casa dos namorados.
Esse estranhamento com a mobilidade do desejo, com o momento em que aquilo com o que se identificava passa a não se identificar mais, é algo que os personagens expressam bem no enredo do filme. Sai de uma relação onde não se sentia mais feliz para uma com alguém por quem havia se apaixonado a primeira vista: na fantasia isso poderia ser um final feliz, mas a vida não se soluciona assim. Sobretudo porque a vida não tem solução. Pelo menos não uma só. Seu laço era evanescente tal qual a fumaça que troca com Eivind. Há um pano de fundo que sustenta certa leveza e um tom de comédia dos caminhos da vida e que o filme expressa com muita delicadeza sobretudo nas cenas de contemplação e planos abertos.
"A Pior Pessoa do Mundo" é como poderia se sentir alguém que decide guiar-se pelo próprio desejo, sabendo que não é com o desejo do outro que ele há de se responsabilizar, mas com o próprio. Há também algo de narcísico nessa posição cujo o título enuncia: pois assim como ninguém é a melhor pessoa do mundo, ninguém é também a pior; não se é tão importante assim como os likes em uma foto nas redes sociais ou o hate em massa no twitter causam a ilusão. Convenhamos.
Quando a vida prega peças, é possível contornar; o que não se contorna é quando a morte decide pregar peças: a morte é um ponto chave no filme. Um dos personagens principais do filme descobre um câncer incurável. E a meu ver, é esse ponto mesmo que dá uma nova amarração ao traço de errância de Julie. Não é que o desejo, para ela, não tenha mais o traço de mobilidade, mas é que a questão implícita que ela parecia lançar para si na vida e que a movimentava de um lado para o outro encontra um ponto de basta exatamente no encontro com a morte. É quando vemos que ela tem uma casa. Essa aparente errância que marca o caminho de Julie me parece antes a expressão móvel do desejo, essa coisa disforme, mas que se realiza na concretude da vida íntima dos sujeitos. Claro que há, como se vê no filme, certa consequência de um não-lugar diante de seu pai, um sujeito completamente ausente da vida da filha, que se recusa a lhe dar um lugar diante de si. Parece ser a morte, esse encontro com algo que não tem sentido algum, o que dá certo basta na inquietude errante de Julie. Pois não é só ela quem é dona dos próprios caminhos; os outros também. E sobre isso não deve haver culpa, mas responsabilidade. Isso faz do desejo não algo passageiro, mas de nós os passageiros dos caminhos do desejo.
Fico imaginando que no episódio traumático de Nora deve ter acontecido algo muito delicado, complexo e peculiar: ao ser confundida com Amber, a garota de programa, ela se viu confusa em relação a quem era ela mesma. No sentido de que, a medida que se perguntou "O que os outros veem dela em mim?", ela precisou ir até a outra para também ela saber a resposta da questão. É preciso lembrar que o episódio traumático aconteceu num momento em que ela largou a vida que levava em Bordeaux como agente imobiliária para recomeçar em Paris continuando o curso de Direito. Era um momento de transição em sua vida. O processo da construção da relação das duas é muito complexo: elas vão se apresentando uma a outra, mostrando fotos de suas vidas, se reconhecendo na outra. Enquanto uma é a que transa com todos e se vê diante de seu duplo que é frígido, a outra que é frígida se vê diante de seu duplo que é alguém que transa com todos. Enquanto uma seria aquela que os homens chegam dizendo "quero gozar na sua cara", a outra é em determinada altura do filme chamada de "santa".
O que mais chama a atenção é a trama especular: parece que elas olhando uma para a outra através da superfície plana da tela, veem a a si mesma de forma invertida, tal como na superfície plana do espelho. E seguem assim, numa troca possível em busca de uma resposta impossível: que o ser de uma diga algo do ser da outra.
O nó que enlaça as duas me parece estar exatamente aí, nesse jogo de "quem sou eu, quem é você". É uma construção de laço muito confusa, mas não por isso sem uma lógica que o sustente.
Nora ainda tenta, através do desejo que Camille sente por ela, encontrar nessa via a resposta para sua sexualidade, que é uma resposta que tocaria um saber sobre o seu ser. Mas é impossível, não é através de Camille que ela poderia ter a resposta: é através de seu duplo, Amber, que ela crê encontrar a resposta para a questão.
É através da leitura do personagem Camille que enxergo a sutileza do cinema francês: cada diálogo importa, e a questão em torno de cada diálogo não é explicada se você não tomar bastante atenção na lógica do lugar que cada personagem ocupa na trama. Camille não consegue ter compromisso com nenhuma mulher porque o compromisso dele parece ter sido com a mãe morta. Em uma cena, ele se escandaliza que o pai já esteja namorando outra mulher. Como se seu escândalo dissesse: "Como ele, que foi o marido, ousou seguir em frente e amar outra mulher se eu, que sou o filho, ainda não que sinto o vazio deixado por minha mãe é possível de ser ocupado por qualquer uma das outras mulheres com quem eu transo?".
Ninguém preenche o vazio de ninguém. Nas relações, o que é possível é que uma outra pessoa ocupe, sem preencher, o vazio de outra pessoa. Amar é fazer suplência a esse vazio, a essa falta. Mas é necessário que a falta admita alguém para ocupá-la, para fazer suplência. Quando Nora termina com Camille, ele diz para sua irmã: "Eu sofri, mas mesmo quando eu estava com ela, eu sentia um vazio". Nem Camille foi capaz de ocupar o lugar do vazio que sua mãe deixou. É só no final com ele dizendo para Émilie "Eu te amo", que vemos que a questão dele foi resolvida: ele foi finalmente capaz de admitir que uma outra mulher possa ser amada por ele além da mãe, que ele com tanta dificuldade se separava, vide a cena da venda da cadeira de rodas que a mãe usou nos seus últimos seis meses de vida, onde ele chora ao se ver abrindo mão do objeto. Me parece ser só naquele momento que ele também abre mão de sua mãe morta, do objeto que ela ocupava pra ele em sua vida, deixando assim um espaço finalmente vazio a ser ocupado por uma outra mulher.
Fiquei comovidíssimo com os avessos desse filme: são dois sujeitos de um mesmo lugar em um país estrangeiro; e não qualquer país, mas um que faz contraponto exato com o país de origem dos dois: enquanto na Argentina é noite, na China é dia. E embora os dois falem a mesma língua, são ambos, cada um, estrangeiros da língua do outro. A palavra, na relação dos dois, está completamente desgastada; o que um consegue repetir para o outro é "vamos recomeçar". Mas ambos se perdem no caminho, porque o recomeço de fato não é mais possível de existir.
Na completa queda da palavra, o que resta é a agressão e o sexo: o corpo do outro precisa ser atingido, já que a palavra perdeu o poder de atingir o corpo do outro, de através dela articular alguma coisa que arranje uma relação que não destrua os dois. Isso se expressa de uma forma bonita e triste ao ouvirmos Lai Yiu Fai narrar que o momento mais feliz que os dois tiveram foi quando Ho Po Wing estava muito debilitado após levar uma surra e o que ele podia fazer pelo amado era cuidar de seu corpo.
Nesse filme nós vemos o que Chico Buarque quis dizer no verso "te adorando pelo avesso", de "Atrás da Porta": é preciso que haja mesmo muita adoração entre duas pessoas que insistem de forma tão destrutiva em amar uma a outra. São ambos também muito pobres. Tudo o que parecem ter é um ao outro.
O ódio é o avesso do amor. Basta que o outro que amamos se mostre um outro que não está em absoluta relação conosco - e nunca está - , como sonham os amantes, para que a frustração se expresse no ódio. É comum ver a cena da criança que quando é frustrada pela mãe, sente por ela um ódio expresso no choro, no espernear, no grito. A palavra que aqui poderia mediar, dar um novo destino à frustração e ao ódio, como já dito não é possível. Ho Po Wing e Lai Yiu Fai são esse casal que estão em uma dança - um tango!, já que estão na Argentina - onde um passo é o amor, e o outro é o ódio. Dançam assim.
É necessário também pensar separadamente cada um: Lai Yiu Fai tenta amar; ele é cuidadoso e responsável; parece ter uma consciência mais pacífica de sua solidão. Sua mão constantemente se estende para Ho Po Wing; este, por sua vez, está mais voltado para a destruição; quer amar, mas não parece conseguir se deixar amar. A forma com que ele busca o amor de Lai Yiu Fai é agressiva, descabida, com mordidas nas costas, baldes dágua. O insuportável do desencontro entre os dois me parece estar exatamente aí.
A viagem é a carta de suicídio de Calum para Sophie, sua filha.
A questão do suicídio é um tabu, e a sociedade diante dessa questão tenta reprimi-la pelo silêncio ou pelo discurso motivador, que cala uma discussão que precisa tomar outros caminhos para ser abordada, dada a sua densidade. Tão comumente relegado aos psicólogos e psiquiatras discutir ou medicar, o suicídio é abordado nesse filme por uma perspectiva diferente do que se costuma ter em obras que tratam da questão: Calum está se divertindo com sua filha, e ela, seja pela idade, não tem dimensão da angústia que ele está enfrentando. Alguma coisa, entretanto, se coloca: ela tenta alcançá-lo, e sabe que não é entrando em embate, mas simplesmente acompanhando o pai numa parceria que é vista através das férias que eles tiram juntos. Quando o vocalista do Linkin Park, Chester Bennington cometeu suicídio, poucos dias depois circulou na internet um vídeo de horas antes dele cometer o ato: ele estava sorrindo, parecia se divertir genuinamente entre os seus.
O que pode isso nos dizer? Provavelmente muita coisa, mas uma delas é que o sujeito, diante da angústia de se ver dentro de uma cena onde conclui não valer a pena o viver, ainda assim precisa preceder de uma cena, de um lugar no Outro do qual decide resolver saindo literalmente através da morte.
Há alguns sinais que o filme dá sobre o destino de Calum: ele não tem uma relação com sua mãe, já não encontra um lugar nas raízes da cidade onde cresceu, gasta um dinheiro que não tem porque sabe que a dívida, após a consumação do ano, não importará; e principalmente: ele não se vê aos 40 anos. Essa fala dele, de achar que não chegaria nem aos 30, representa muito bem a questão do suicídio: quando alguém se mata, é a imagem de si diante do Outro que ela está tirando de cena, e com isso ela o faz levando-se junto. É repetido que Freud já apontava que o sujeito não deseja a morte, pois a morte não é representável: o que é representável é o sofrimento que um sujeito sente, e que é livrar-se desse sofrimento que ele deseja quando toma por saída o suicídio. Não há, tamanha a angústia, espaço para que uma dialética seja possível para se costurar a uma outra possibilidade de vida, para uma outra cena para a imagem de si. Isso nos fala também acerta do quanto a fantasia é a tela de nossa realidade, e o quão robusta ela é para poder nos sustentar dentro do viver.
O filme é muito delicado. E uma coisa magistral nele é a representação da memória com o "erro de continuação" que lhe é próprio: em uma cena onde Calum diz "uma vez que você deixa o lugar onde cresceu, você não pertence inteiramente lá novamente", ele começa falando essa frase com Sophie nos braços, em pé, e termina a mesmíssima frase com ela deitada e os dois na cama. Um analista técnico poderia dizer que houve ali um erro de continuação: como assim alguém começa uma frase de uma forma e termina a mesma frase depois de um corte para outra cena? Pois é: mas nossa memória funciona assim. A fantasia a distorce. Não sabemos mesmo muito bem se aquilo que alguém nos falou em tal tempo aconteceu enquanto estávamos desse ou daquele modo. A nossa memória tem, por si mesma, erros de continuação. Nossa tentativa de resgatá-la através das lembranças é sempre uma costura precária.
E é uma tentativa de resgatar seu pai que Sophie faz quando recorda aquelas férias através das imagens filmadas e das imagens que constrói em sua lembrança. É seu aniversário, e parece que ela ali está completando a idade que seu pai tinha quando ele faleceu. É de uma potência imensa o ápice do filme, o lugar onde ele chega em sua crescente: Sophie buscando seu pai no escuro entre tantas pessoas enquanto toca Under Pressure. Mas é também estranho porque há um avesso no tempo: é sua imagem adulta que busca o pai jovem. A vida, com sua maturação, se mostra diferente depois das transformações da infância e da adolescência. Abraçar seu pai na cena final é um encontro de finalmente compreensão da face dura do viver. O mistério da morte, para ela se atualiza através do suicídio do pai. Se o que ele deixa é uma filmagem de suas férias, é esse o registro mais verifico, material que ela pode ter dele.
Gostei do filme menos pelas atuações e partes do enredo, e mais pela lição que ele passa. É muito comum encontrarmos casais onde um dos dois é dependente do outro. Quando o amor acaba, seja para os dois lados, é necessário se reconhecer novamente no mundo. Mas para Antonio, ele tem que se orientar é em vários aspectos da vida: o profissional, o financeiro, o relacional com suas amizades, com tudo. De fato, ele deixou-se largar pela relação que vivia, e ao sair dela, foi seu mundo que ele precisou reconstruir em etapas que seu ex companheiro, por exemplo, já tinha construído, como a profissional e as amizades.
Uma coisa comum e interessante de acrescentar: pensa-se que se dedicando mais a uma relação do que a si é uma forma de sustentar melhor uma relação. Ledo engano. É exatamente quando o companheiro perde a própria identidade, mesmo que para viver apenas em nome da relação, que o amor é ameaçado, pois já não há no outro uma pessoa que tenha os próprios desejos, os próprios caminho, e isso é exatamente que empobrece a relação.
, Antonio aprende desde o início a construir para si um lugar. Ele escolhe a confeitaria e segue por aí. Há nisso muito mais base para construir uma relação mais saudável com Antonio do que havia com seu ex, para quem ele se reduzia a uma "dona de casa" sem experiências de vida.
Outras coisas me fazem gostar muito desse filme: ele não é um desses filmes que goza do clichê dramático do amor que termina em tragédia. Ele é uma verdadeira lição importante para pessoas gays: a comunidade lgbt tem menos apoio da família e precisa seguir a vida mais por si só, e esse filme fala sobre sustentar-se num lugar para si na vida antes de procurar o afeto e segurança que não se teve com a família em outra pessoa.
O que esse filme tem de desconfortável, ele tem de genial. É que o desconforto que ele causa é a tela que nos impede de em um primeiro momento sacar a sua lição, as nuances de seus contrastes e o quanto ele toca em questões pertinentes para a vida. Há muitos símbolos aqui. É de fato um filme muito profundo, se formos pensar bem. Há nele um contraponto, um contraste que é o seguinte: de um lado, os convidados, que por um imenso senso de educação, respeito e civilidade, cedem a tudo e a todos, mais do que deveriam e falam uma língua diferente; e do lado oposto, os anfitriões, que não tem educação, são desrespeitosos com a vontade de outro, mas que fazem apenas aquilo que querem, sem sentir nenhuma culpa, mais do que deveriam e que falam outra língua diferente. São reflexos no espelho, dois opostos extremos.
Poucos filmes me deixaram tão, mas tão desconfortável assistindo. Fisicamente mesmo. O filme não precisou apelar para cenas sangrentas, gore, para poder causar incômodo logo no início. E o que incomodava em assistir não era o conflito entre os costumes das duas famílias, mas sim o fato da família convidada ceder tanto de si mesma para a família anfitriã. A única forma de superar o trauma que é esse filme é levar em conta a lição que ele traz: sempre priorize as suas vontades e não ceda em detrimento do outro.
Tanto a mulher cedeu em relação ao marido: em várias vezes eu me imaginando no lugar dela, teria sem dúvidas dito ao meu companheiro: "Pois fique aqui você, porque eu estou indo!"; os dois cederam a vontade da filha em voltar para pegar o coelho, bastava dizer não e pronto; e o marido, ele cedeu da própria vida em relação a qualquer um. A conversa no carro, onde ele diz se sentir enjaulado, diz exatamente sobre isso. Depois os dois cederam ao convite de permanecerem com os anfitriões mesmo depois deles terem cruzado a linha do tolerável. Numa hora dessas, você tem que se perguntar: "Depois dessa pessoa ter demonstrado tudo o que já demonstrou até aqui, vale a pena continuar a tê-la em minha vida daqui adiante?". Se você diz sim, de fato, como os anfitriões responderam ao pai quando ele perguntou "Por que vocês estão fazendo isso?", a única resposta possível é: "Porque vocês deixaram". E de fato eles deixaram. E não foram os únicos. O filme mostrar a quantidade de outras vítimas do casal nos faz pensar no tanto de gente que comete o mesmo erro na vida.
Uma outra lição interessante: a mãe até se posiciona quando tentam invadir o espaço dela, como quando a anfitriã tenta dar ordens a filha dela. Mas ela não sustenta uma posição diante do marido. De fato, não é tão difícil impor limites a estranhos. Difícil mesmo é impor limites aos que amamos.
Quando estudamos um pouco sobe serial killers, logo vemos que eles tem um perfil de vítima que escolhem. É preciso olhar melhor para as vítimas desse casal: não são simplesmente outras famílias com filhos. São, na verdade, pessoas que não se mantém firmes em suas posições na vida. A cena em que o assassino mostra aquela duna onde o convidado grita para se libertar é uma cena que serve mais para nós, espectadores, do que para o personagem. Ele não quer ensinar nada ao convidado que planeja matar. Ele na verdade quer mostrar ao espectador o perfil de sua vítima: aqueles que se sentem enjaulados, negando as próprias vontades e "sorrindo para gente que não gosta". Há muitos desse tipo por aí. Para os assassinos do filme esses tipos não merecem viver porque, enquanto estão vivos, não vivem.
Não preciso dizer que também é muito simbólico eles cortarem a língua de suas vítimas. Enquanto estavam vivos, os convidados também não "usavam as suas línguas" para poderem fazer valer de fato o que deveriam dizer ao casal anfitrião.
Quando criança, a gente escuta que não deve receber doce de estranhos, não deve andar sozinho em lugares perigosos, não deve aceitar convite de gente desconhecida. Sempre nos ensinam isso contando uma história de alguém que se deu mal por não seguir esses conselhos. Eu só vou conseguir superar esse filme agora pensando que ele é como uma dessas lições que nos passam para não cair no mesmo erro, que é, mais uma vez: priorizar a sua vontade. Isso é um limite. Se você não dá limites ao outro, é na verdade a si mesmo que você não está dando limites.
Se formos encarar esse filme como uma metáfora, seria a de perdermos a própria vida não porque vamos encontrar assassinos, mas porque abrimos mão dela por não nos mantermos firmes em nossas posições quando as situações obviamente pedem que tomemos uma posição e não voltemos atrás. Outra cena emblemática: o carro "voltando atrás", retornando para a casa dos assassinos. Eles abriram mão da própria decisão ali. E a nossa vida é, entre outras coisas, o conjunto de nossas decisões.
Depois que começa a assistir, você vai até o final de qualquer jeito. Te prende pela angústia e por um fortíssimo efeito de te fazer pensar "e se fosse eu nessa situação?". Você torce pela protagonista como se estivesse torcendo por si mesmo se estivesse nessa situação - ou ao menos pra aprender o que fazer se parar na mesma situação hahaha.
É um filme que trata da solidão. A da protagonista. A do gênio. A do espectador. A de cada sujeito que, "para suprir uma falta", precisa fazer uso da imaginação. Djinn, o gênio, em determinada cena pergunta a Alithea se ela entende o que é passar pela solidão que ele passou preso na lâmpada, e ela diz entender. De fato, a experiência da solidão não é algo que se mede por quantidade de tempo ou intensidade. Foram as histórias as suas maiores companheiras, e ela faz uso de uma sua, que ela mesma inventa, para dar conta de sua solidão. Foi assim com seu amigo imaginário, é assim com gênio.
Na cena final,, em que ela está com o caderno, preenchendo-o com a história do gênio assim como o fez com seu amigo imaginário na infância, vemos ela defronte a um casal de apaixonados. O gênio então realiza sei terceiro e último desejo, que é o de fazê-la companhia diante da solidão. É aí que ele ressurge.
Algumas pessoas tem seus "confort movies", filmes que assistem pra relaxar. Geralmente uma comédia romântica, um drama com final feliz, sem complexidades. O Exorcista é tipo um "confort movie" pra mim kkkk Reassisti pela sétima vez esses dias e a cada vez o filme me parece mais rico. E isso vai para além da questão sobrenatural. Os personagens são tão bem colocados.
Adoro assistir esse filme não como a história de uma possessão apenas, mas como a história a de um padre que está perdendo a fé, se vê falido, tendo uma formação em psiquiatria, mas seguindo o sacerdócio. Ele se vê "abandonado" por Deus quando sua mãe morre. O que salva sua fé é exatamente o contraponto de Deus: o Demônio. É aceitando fazer o exorcismo que ele recupera o sentido de sua fé, nem que para isso ele precise ir às últimas consequências.
Em Ghost Story o fantasma de um músico recém falecido retorna para sua casa, onde morava com sua esposa. Esta não é uma história de terror, apesar do título. O artifício que David Lowey, diretor e roteirista usa para solucionar a questão, é representar o fantasma como aqueles dos desenhos animados, cobertos por um pano, com dois furos no lugar dos olhos. O filme tem um tom poético, um ar melancólico, mas sustentado por um bom ritmo, mesmo com cenas contemplativas. Ele está em todas as cenas, a maioria delas se passa dentro da mesma casa, e de todas há da parte dele apenas um único, curtíssimo, mas afiado diálogo. Logo esse fantasma vai se transformando diante de nossos olhos. Sua transformação não é concreta, mas simbólica: de fantasma do marido, de repente transforma-se no fantasma do tempo. Esse que está ao redor de todos e de tudo. A casa, afinal, é também uma personagem do filme.
A esposa, que fora o motivo de sua volta para a casa onde moravam, um dia se vai. Novos moradores chegam, mas também se vão. O tempo passa. E o fantasma permanece lá. Já não é mais pela mulher que se dá a permanência. Em um breve diálogo com o fantasma que habita a casa vizinha, isso se justifica:
"-Estou a espera de alguém. -Quem? -Não me lembro”
O fantasma de uma pessoa morta, ou aquilo que a representaria, em algum momento torna-se o fantasma do tempo. Este, embora tenha se tornado um fantasma em um tempo e em um lugar, permanece atravessando gerações. Cleópatra, Shakespeare, Pedro Álvares Cabral, ou mesmo Hitler, Napoleão Bonaparte, etc. Mesmo aqueles que não tem o nome cravado nos livros de história tem um lugar e um tempo. E é desse fantasma - não espírito, mas fantasma - que A Ghost Story trata.
Uma obra que aproveita bem suas influências é aquela onde sentimos uma experiência próxima das outras que a influenciaram. A Ghost Story, logo em sua abertura, traz a citação de um conto chamado A Casa Assombrada, da maravilhosa Virgínia Woolf. Diz: “A qualquer hora que se acordasse havia uma porta se fechando”. Logo que vi a citação, pausei o filme e corri para ler o conto. Não tem mais de 700 palavras e conta a história de um casal de fantasmas que anda pela casa onde moravam. O uso de imagens poéticas - a luz do sol que entra em casa e deita sobre a parede, o reflexo das árvores sobre os vidros da janela, pequenos e significativos gestos - é algo próprio da escrita de Virginia, e o diretor aproveita, trazendo junto algo do filme de Terrence Malick, A Árvore da Vida, de 2011 e Oscar de melhor Filme.
Mas há uma outra influência, e esta mais curiosa e para mim nostálgica: Beetlejuice, o filme sombrio de comédia de Tim Burton, que foi também inspirado pelo conto de Virginia, inclusive. Há mesmo algo triste na história do casal de fantasmas da comédia burtiana que David faz uso, trazendo em seu filme. Como se colocasse a questão: se os fantasmas são imortais, o que sentiriam diante do tempo que passam na solidão de uma casa abandonada?
A Ghost Story torna-se diante de nossos olhos um filme sobre a passagem do tempo. Sobre a profundidade que está bordada pelos gestos - há no filme uma cena de 6 minutos da esposa do fantasma comendo uma torta após voltar do necrotério, onde precisou reconhecer seu corpo. Em contraste, está enquadrado na outra extremidade da cena o fantasma, em silêncio, observando-a. Penso sobre cena: há uma lógica na sucessão dos fatos. Tendo ido reconhecer o corpo morto do marido, a torta que M. come não tem gosto de torta, mas o gosto intragável da morte. Não à toa, após comê-la, ela corre ao banheiro para vomitá-la. Ela, desde criança, gosta de escrever pequenos bilhetes e escondê-los, para serem achados pelo acaso em um outro tempo. E é um desses bilhetes que o fantasma a vê esconder numa das frestas da parede que ele tenta com o passar dos tempos retirar para ler. O bilhete é escrito para o tempo, e ele, o fantasma, não é mais o fantasma do marido: é o fantasma do tempo. A carta chega ao seu destino.
Assim como A Viagem de Chihiro, há nas entrelinhas uma lição de amadurecimento. E o amadurecimento não se dá sem alguma dor. O choro dela ao ouvir a crítica sobre o que ela escreveu é para mim um momento de passagem de amadurecimento. É incrível a forma como os filmes desse estúdio mostram isso com uma delicadeza, um tato imensos. A gente vira mesmo criança assistindo, sem deixar de ser adulto. É preciso sustentar nossos desejos (e maravilhoso como ela não apenas sustenta o desejo pela literatura, como parece se sustentar nele), mas entender que o mundo tem seus próprios sistemas, e que é preciso passar por eles. É o que ela descobre quando decide cursar uma faculdade apesar de viver o seu sonho.
As relações de não-proporção mostradas através da proporção: o velho e a criança; cada um deles com a sua deficiência: ele com o alzheimer, ela com a mobilidade reduzida; ele com o brilho do vivido, ela com o brilho da forma com que fura toda a organização de vida dele; ela, nova, ensinando algo desses tempos tão novos: a tecnologia; ele, com o desejo de reencontrar um amor do passado, que só viu uma vez, mostrando a ela e a nós, que o assistimos, que as relações são para além do instantâneo tecnológico.
E que final. Me arrepiei do dedinho do pé ao último fio de cabelo. O choro escorreu. Filme belíssimo, leve, engraçado, caricato, que mexe tão ousadamente com temas tão pesados. O envelhecimento, a doença, as limitações do corpo, a família, tanta coisa.
Um dado a mais dentro da lógica das deficiências com que cada um tem que estar às voltas: aquela família, ali reunida, formada cada um pela sua questão falha, forma um conjunto no todo deficiente: é em determinado grau a deficiência a nossa normalidade.
Doente de Mim Mesma
3.9 95 Assista AgoraUma moça é traída pelo participante do BBB 24, expõe sua dor, e se torna famosa. Um ano antes, um motorista de uber atropela Kayke Brito e se torna famoso e até fala sobre se candidatar a deputado federal. É essa a lógica de relação do sujeito com o mundo que o filme retrata de forma cômica, irônica, ácida.
O título original, em tradução do norueguês, é "garota doente", syk (doente) pyke (garota). O título inglês e português respondem do quê a "garota" está "doente": de seu self. O self é um conceito que muda com o passar do tempo e das áreas que o estudam, entretanto há uma prevalência entre o que as definições tocam, sem divergir tanto: self é essa instância psíquica, que indica a experiência subjetiva que um sujeito tem de si mesmo. Essa experiência não se constrói apenas internamente, mas é transformada com na relação com o mundo.
É disso que Signe está doente: de seu self. O que causa a doença, por outro lado, é mais complexo, e não acho que deva se voltar para uma lógica diagnóstica psiquiátrica, mas sim social. Não interessa aqui apontar que ela é narcisista, histérica, ou o que for. É isso o que menos importa aqui, pois penso que ela é antes uma caricatura social, um modelo social ironizado, do que uma personagem a ser diagnosticada. As relações do filme ilustram isso:
Enquanto Thomas tem um self bem fundamentado em sua arte, reconhecido pelo público e pela mídia, ele pode se sustentar. Ele põe a cabeça no travesseiro à noite dizendo a si mesmo "sou um artista e sou reconhecido pelo Outro como tal". Tudo está em seus conformes, pois seu Eu está muito bem identificado a sua profissão. Todos os dias podemos encontrar pessoas assim, que identificam seu Eu ao que fazem profissionalmente. Lá para o fim do filme que vamos ver a queda dessa sustentação que ele inventava com a arte dele a partir de quando ele é preso, denunciando sua fraude. Signe, diante dele, é uma garçonete que trabalha numa cafeteria. Até então, não deveria ser uma relação que causasse crise, não fosse um imperativo social muito contemporâneo que adoenta não apenas o self de Signe, mas o self dos sujeitos na contemporaneidade: nossa sustentação diante de nós mesmos está cada vez mais alienada ao que os outros acham de nós, de modo que nos vemos incapazes de uma dialética, um furo na consistência tão rígida do poder do olhar do outro sobre nós.
O cômico do filme é o caminho pelo qual Signe busca o reconhecimento: é através do que uma vez funciona para ser reconhecida, que é estar às voltas com alguma catástrofe que acometa a ela ou a outrem, de modo que ela possa fazer ser sobre ela. Lembra bastante a onda de exposição exacerbada que todos os dias vemos nas redes sociais, das pessoas que de anônimas, com seus sofrimentos expostos se tornam famosas. A pergunta que o filme levanta para mim não é aquela clássica e rasa "vale tudo pela fama?", mas sim uma série de outras perguntas mais complexas:
Nas gerações anteriores haviam ideais a serem seguidos, que guiavam a vida de nossos avós. O sofrimento deles era por não estarem se encaminhando dentro dos ideais, que seja ter uma formação, um emprego, viver sua vida sexual e íntima restrita a sua intimidade, seja hetero, homo, ou o que for. O que há hoje é uma pulverização de ideais alcançáveis, ou então uma fragilidade muito grande nos caminhos possíveis a se alcançar ideais hoje em dia: se antes fazer um ensino superior era algo que poderia garantir algo, de hoje adiante isso está longe de ocorrer. Nosso sofrimento hoje não é o de estarmos fora dos ideais, porque nem mais sequer os ideais que serviam às gerações anteriores às nossas não nos sustentam mais. Se antes o sofrimento era o de não seguir os ideais, hoje o sofrimento é o de não ter ideal algum. Isso está no âmago da angústia tão contemporânea de sujeitos que seguem a vida e não encontram uma resposta ao se questionarem "Pra onde estou levando minha vida?". Brincamos com o fato de sermos a geração que não vai ter casa própria. O que se é então diante do outro, e em quais ideais se garantir? É possível criar ideais não conservadores para as gerações contemporâneas? E sobretudo: há esperança de que o mundo com sua lógica econômica e social esteja caminhando para a existência de ideais possíveis de sustentação?
Talvez essas questões sejam respondidas pelas gerações futuras, não a nossa. Enquanto isso, para alguns de nós, o que resta é sonhar em viralizar na internet e pagar as contas com patrocínio de marcas.
Amadeus
4.4 1,1KUma aula sobre a inveja e o ressentimento.
Salieri é típico personagem invejoso e ressentido, e as duas características nele explicam a diferença lógica entre um sentimento e o outro: na inveja, o sujeito invejoso quer tomar a qualidade que é do outro para si. Para tal, não é construindo em si a qualidade que ele enxerga no outro que o invejoso opera: é antes o destruindo. O invejoso portanto precisa manter perto de si seu rival (Mozart) que detêm seu objeto de desejo (o talento). Em sua fantasia, ele atua como se após a derrota de seu rival, ele terá finalmente livre o objeto de seu desejo para si. A grande decepção se dá ao descobrir que não é assim que a coisa funciona. Mesmo depois de morto, as composições de Mozart são mais conhecidas pelas pessoas do as dele, o que denuncia aquilo que o invejoso não enxerga, a saber, que sua disputa existe apenas na sua cabeça. Nem sempre os arranjos fantasiosos da fantasia conseguem ser bem amarrados. Outro ponto que o filme ilustra muito bem: o invejoso é o maior admirador de seu rival.
No ressentimento, diferente da inveja, não há um revide. O sujeito ressentido não revida o golpe que supõe ter sofrido. O ressentido é aquele que supõe que o Outro tomou dele o que lhe era de direito e deu a outro. Enquanto na inveja, o invejoso identifica o objeto de seu desejo pertencente a outro e o quer para si, no ressentimento, o ressentido identifica que o objeto de desejo que lhe era de direito foi dado a outro. Isso se ilustra na cena onde Salieri, ainda criança, décadas antes de conhecer Mozart, pede a Deus que ele seja talentoso e reconhecido. Sua revolta, no ressentimento, se volta toda em intermináveis queixas. No filme, isso se realiza com Salieri identificando em Deus o Outro que deu a Mozart o que era de direito a Salieri, ou seja, o talento. Como se ele se queiasse a Deus: "Eu pedi primeiro, era a mim que você deveria ter dado o talento". A partir de então ele vai se queixar com Deus, interminavelmente. Se vê sendo feito de chacota por Deus. Mas em momento nenhum é capaz de revidar o dano que sofreu ao fantasiar que Deus deu a Mozart o talento que seria de direito dele. As queixas do sujeito ressentido sempre giram através da mesma lógica: ele alguém que se imagina vítima de uma injustiça. "Eu sou mais merecedor, sou mais educado, sou moral, mais culto, me sacrifiquei mais, tive menos privilégios do que ele, que é um obsceno, um bêbado, um imoral enfim". Para o ressentido, seu desejo foi tomado, anulado por um outro, e assim ele sofre por não ser capaz de assumir o seu próprio desejo, pondo no lugar uma infinita queixa contra aquele que tem o objeto que seria seu de direito.
São ambas duas posições na vida muito paralisantes, que angustiam, mas servem de gozo: há um prazer no ressentido quando se ressente e há um prazer no invejoso quando ele trama os planos de sua inveja, mas é um prazer no sofrimento, e portanto o faz ficar fechado em si mesmo, incapaz de articular-se no mundo através do desejo. Para abrir mão de tal sofrimento, só com muita análise, mas esta só foi inventada mais de um século depois!
Dias Perfeitos
4.2 264 Assista AgoraHá quem olhe para a tela do celular. Há quem olhe para a copa das árvores.
Hoje, diante do espaço de tempo que se abre no intervalo entre uma atividade, ou mesmo no meio de uma atividade que começa a se mostrar entediante, olhamos para a tela de um celular. Olhe ao redor quando estiver fora de casa, veja isso nas pessoas: cada uma com seu celular enquanto esperam o metrô, enquanto caminham, enquanto estão diante de outras pessoas, num encontro. Hirayama, protagonista de Dias Perfeitos, diante do espaço de tempo que se abre, ele olha para a copa das árvores.
Geralmente, filmes que tratam de personagens solitários o fazem por um viés dramático, como sujeitos que por formação reativa, consequência de algum acontecimento traumático, decidiram se isolar do mundo. Dias Perfeitos trata da beleza que há na solidão, quando ela, embora esteja fechada em si, põe sobre o mundo um olhar atento.
Nos faz pensar: é Hirayama o solitário ali, olhando para a copa das árvores, atento ao que acontece ao redor, escutando a quem se dirige a ele, ou são os outros, hiper conectados, incapazes de se relacionar? Talvez seja ele o menos solitário entre todos. Talvez ele viva uma outra qualidade de solidão.
Outra coisa que esse filme transmite: a cada sujeito cabe a sua forma de solidão, assim como a cada um cabe a própria medida da felicidade. Minha solidão não é silenciosa. Nela eu falo sozinho, com meu cachorro, canto música. Hirayama não fala, é silencioso e gosta do silêncio. A não ser quando ouve música. Cada um tem a sua própria forma de ser sozinho.
A cena do mendigo que abraça as árvores e dança nas ruas: ninguém ali olha para ele. É Hirayama quem o enxerga, tal qual enxerga a copa das árvores, faz do silêncio delas uma amiga. Isso me lembrou Manoel de Barros. Sua sobrinha talvez não se conecte com sua mãe como o faz com ele, que sem palavras, produz uma troca com o outro.
Claro que há ali também uma recusa da convivência com os outros. Mas não é uma recusa autista, recusado Outro, fechada em si. Como uma coisa que é, ele observa sem intervir os outros sendo como observa as árvores que também são. Como as folhas que se movem com o vento, ele observa sem interagir a vida dos outros que se movem com a vida. Quando é convocado a intervir, ele ensina algo muito emocionante: brincar com as sombras. Só mesmo alguém que se relaciona com a própria solidão é capaz de brincar com as próprias sombras.
Monstro
4.3 263 Assista AgoraO título faz referência à brincadeira semelhante ao que no Brasil temos com o jogo "Perfil": você tem personagens colados na sua testa, e você tem que tentar descobrir quem é você através das perguntas que você faz ao seu parceiro de jogo. Mas para além do título fazer referência à brincadeira, é essa a dinâmica da construção do filme: ele parece ser fragmentado como também são fragmentadas as perguntas que o jogador faz ao companheiro de partida até que se adivinha quem se é de fato. E o filme também traz isso: se no início tomamos uma conclusão, logo somos levados a entender que estivemos equivocados, e na verdade vamos para outra conclusão, e assim se segue até que chegamos na revelação final, a resposta definitiva para o "quem sou eu" do personagens. Pode parecer que os coadjuvantes tem um aprofundamento desnecessário, mas é exatamente o contrário: é quando vamos descobrindo a ótica dos coadjuvantes que vemos que a resposta para o que buscamos quando perguntamos durante o filme "quem são esses personagens" está em outro lugar. Como espectadores estamos também participando de uma rodada do jogo. É também um filme sobre o quão precipitado é nosso julgamento, sobre ir para além do que aparenta: na partida, não se pode tentar adivinhar quem você é sem antes fazer a quantidade necessária de perguntas, sem ter a quantidade necessária de respostas. E o que o filme nos põe a prova é isso: o quão rapidamente nós concluímos antes de entender.
Uma cena me tomou pela sensibilidade: "o que você tiver que dizer e não conseguir, sopre", que é a cena do trombone. Para além de ser difícil cada um dos personagens ali dizer o que tem a dizer, o protagonista, aquele adolescente, não parece ter mesmo recursos subjetivos para conseguir dizer o que há nele. Portanto, para o que não há ainda palavras que sejam possíveis de serem ditas, a coisa pode sair de outra forma, pelo grito. E não costuma ser assim nas diversas adolescências que se vê? O encontro sempre traumático com a sexualidade que aflora toma o corpo antes de tomar as palavras que o Outro dita que é certo ou errado. A masculinidade compulsória (não gosto nenhum pouco desse termo, mas é o que temos para hoje) que se vê na troca social entre os outros meninos é um caminho do qual as duas crianças não parecem compartilhar para resolver as consequências da puberdade em seus corpos e para onde apontam seus desejos. De fato, sendo um adolescente e tendo essa complexidade tamanha para lidar, o que resta ali é o grito, essa coisa que comunica sem palavras.
Vidas Passadas
4.2 737 Assista AgoraO que eu mais gosto nas histórias de amor é que é sempre possível contar cada uma de uma forma diferente. A equação de um elemento incógnito que é um sujeito com outro elemento incógnito que é um outro sujeito, sempre dá um resultado diferente a cada vez que se equaciona. E apesar das repetições que em uma análise descobrimos cometer, nenhuma outra equação dá o mesmíssimo resultado nas diversas histórias de amor. Na contemporaneidade que a gente vive principalmente. É por isso que nunca vão deixar de criar filmes que giram em torno desse tema inesgotável, porque os tempos e os arranjos amorosos mudam. As histórias de amor, vistas de longe, são iguais. De perto é que a coisa pega, porque sempre há o outro. As particulares estão no que cada história de amor vai criando no seu curso, e é por isso que o resultado de uma equação amorosa é sempre único, pois o decorrer da equação é diferente a cada novo arranjo amoroso.
A história de Nora e Hae Sung me pegou pelo que pude assistir da nostalgia que Hae personificou em Nora, sua paixão de infância que, mesmo tendo mudado de continente - da Ásia para a América - e mesmo tendo passado 20 anos, ele não pôde deixar perder. No que diz respeito àquela paixão, houve uma recusa de perda da parte dele, enquanto Nora seguiu sua vida: os 20 anos passados só deixaram latentes a paixão de Hae por uma Nora que, 20 anos depois, já não existia. . Nesse meio tempo, ela ainda tenta se fazer objeto do desejo de Hae, mas o corte que sua família proporcionou nela, fazendo-a mudar de país na infância durante o correr de sua primeira paixão fez dela alguém que desde cedo suportou os rompimentos - mais do que Hae Sung aprendeu a suportar. Nem mesmo o nome se mantém: ao mudar para os Estados Unidos, ela muda o nome de batismo, que era Na Yong para Nora. Para Hae, ela ainda é Na Young. É no olhar encantado dele diante do objeto de seu amor 20 anos depois, que a coisa me parece ficar evidente. Um olhar reticente quanto ao que ela sente, cauteloso para não ultrapassar um limite diante de uma Nora agora casada, mas sem pudor nenhum de seu encantamento diante dela.
Uma cena, entre tantas do fime, acho emblemática: Nora e Hae Sung vão a um encontro, mas eles tem uma terceira presença entre eles, a de Arthur, o atual marido de Nora, que sabe da paixão que os dois tiveram na infância. Saem os três juntos para jantar. Arthur não fala coreano, portanto ele não entende o que Nora e Hae estão conversando. Mas não é preciso entender a língua: o olhar e o corpo dos dois traduz o idioma. É uma sequência que estampa em cada rosto uma diferença: em Arthur a dor de presenciar a paixão de sua mulher diante dela; em Nora, a confusão de estar diante de sua paixão da infância e ao lado de seu amor, o marido; e Hae, que está suspenso pela paixão por Nora.
Hae Sung sabe que Nora também é apaixonada por ele, sem que ela precise dizer, pois o dizer dela está no ato. Mas é uma paixão de um outro lugar, de uma outra vida, aquela que tinha na Coreia. Sua vida agora é outra, com outro homem, disposta a outras coisas. O título do filme faz uma referência que me parece ser de duplo sentido com a uma fantasia de vidas passadas e a vida que passou com o tempo.,
Clube da Luta Para Meninas
3.4 227 Assista AgoraEu não sabia que eu precisava tanto de um besteirol americano queer.
A Pior Pessoa do Mundo
4.0 601 Assista AgoraNão estamos em paridade com o lugar a partir do qual nos relacionamos com o outro. Os laços se fazem a partir do que fazemos dos nomes com os quais amarramos e desamarramos as relações: "somos um casal", "não somos mais um casal", "você está em determinado lugar em minha vida", "você é minha mãe", "você é meu inimigo", "sou essa coisa que não consigo dar nome". Esse desencontro fundamental que edifica a estrutura móvel das relações é o ponto de identificação do espectador com o enredo do filme "A pior pessoa do mundo" muito mais do que com a personagem, Julie, que é uma espécie de errante nas relações que estabelece: cursava medicina quando decidiu largar o curso e fazer psicologia; acabou tornando-se uma livreira. Seu interesse está anunciado no início do filme: o que ela queria não era conhecer as entranhas de um corpo, como os médicos conhecem, mas a alma, como ela supunha que os psicólogos conheciam. Julie não tinha uma casa sua, ela mudava sempre para a casa dos namorados.
Esse estranhamento com a mobilidade do desejo, com o momento em que aquilo com o que se identificava passa a não se identificar mais, é algo que os personagens expressam bem no enredo do filme. Sai de uma relação onde não se sentia mais feliz para uma com alguém por quem havia se apaixonado a primeira vista: na fantasia isso poderia ser um final feliz, mas a vida não se soluciona assim. Sobretudo porque a vida não tem solução. Pelo menos não uma só. Seu laço era evanescente tal qual a fumaça que troca com Eivind. Há um pano de fundo que sustenta certa leveza e um tom de comédia dos caminhos da vida e que o filme expressa com muita delicadeza sobretudo nas cenas de contemplação e planos abertos.
"A Pior Pessoa do Mundo" é como poderia se sentir alguém que decide guiar-se pelo próprio desejo, sabendo que não é com o desejo do outro que ele há de se responsabilizar, mas com o próprio. Há também algo de narcísico nessa posição cujo o título enuncia: pois assim como ninguém é a melhor pessoa do mundo, ninguém é também a pior; não se é tão importante assim como os likes em uma foto nas redes sociais ou o hate em massa no twitter causam a ilusão. Convenhamos.
Quando a vida prega peças, é possível contornar; o que não se contorna é quando a morte decide pregar peças: a morte é um ponto chave no filme. Um dos personagens principais do filme descobre um câncer incurável. E a meu ver, é esse ponto mesmo que dá uma nova amarração ao traço de errância de Julie. Não é que o desejo, para ela, não tenha mais o traço de mobilidade, mas é que a questão implícita que ela parecia lançar para si na vida e que a movimentava de um lado para o outro encontra um ponto de basta exatamente no encontro com a morte. É quando vemos que ela tem uma casa.
Essa aparente errância que marca o caminho de Julie me parece antes a expressão móvel do desejo, essa coisa disforme, mas que se realiza na concretude da vida íntima dos sujeitos. Claro que há, como se vê no filme, certa consequência de um não-lugar diante de seu pai, um sujeito completamente ausente da vida da filha, que se recusa a lhe dar um lugar diante de si. Parece ser a morte, esse encontro com algo que não tem sentido algum, o que dá certo basta na inquietude errante de Julie. Pois não é só ela quem é dona dos próprios caminhos; os outros também. E sobre isso não deve haver culpa, mas responsabilidade. Isso faz do desejo não algo passageiro, mas de nós os passageiros dos caminhos do desejo.
Paris, 13° Distrito
3.8 32 Assista AgoraFico imaginando que no episódio traumático de Nora deve ter acontecido algo muito delicado, complexo e peculiar: ao ser confundida com Amber, a garota de programa, ela se viu confusa em relação a quem era ela mesma. No sentido de que, a medida que se perguntou "O que os outros veem dela em mim?", ela precisou ir até a outra para também ela saber a resposta da questão. É preciso lembrar que o episódio traumático aconteceu num momento em que ela largou a vida que levava em Bordeaux como agente imobiliária para recomeçar em Paris continuando o curso de Direito. Era um momento de transição em sua vida. O processo da construção da relação das duas é muito complexo: elas vão se apresentando uma a outra, mostrando fotos de suas vidas, se reconhecendo na outra. Enquanto uma é a que transa com todos e se vê diante de seu duplo que é frígido, a outra que é frígida se vê diante de seu duplo que é alguém que transa com todos. Enquanto uma seria aquela que os homens chegam dizendo "quero gozar na sua cara", a outra é em determinada altura do filme chamada de "santa".
O que mais chama a atenção é a trama especular: parece que elas olhando uma para a outra através da superfície plana da tela, veem a a si mesma de forma invertida, tal como na superfície plana do espelho. E seguem assim, numa troca possível em busca de uma resposta impossível: que o ser de uma diga algo do ser da outra.
O nó que enlaça as duas me parece estar exatamente aí, nesse jogo de "quem sou eu, quem é você". É uma construção de laço muito confusa, mas não por isso sem uma lógica que o sustente.
Nora ainda tenta, através do desejo que Camille sente por ela, encontrar nessa via a resposta para sua sexualidade, que é uma resposta que tocaria um saber sobre o seu ser. Mas é impossível, não é através de Camille que ela poderia ter a resposta: é através de seu duplo, Amber, que ela crê encontrar a resposta para a questão.
É através da leitura do personagem Camille que enxergo a sutileza do cinema francês: cada diálogo importa, e a questão em torno de cada diálogo não é explicada se você não tomar bastante atenção na lógica do lugar que cada personagem ocupa na trama. Camille não consegue ter compromisso com nenhuma mulher porque o compromisso dele parece ter sido com a mãe morta. Em uma cena, ele se escandaliza que o pai já esteja namorando outra mulher. Como se seu escândalo dissesse: "Como ele, que foi o marido, ousou seguir em frente e amar outra mulher se eu, que sou o filho, ainda não que sinto o vazio deixado por minha mãe é possível de ser ocupado por qualquer uma das outras mulheres com quem eu transo?".
Ninguém preenche o vazio de ninguém. Nas relações, o que é possível é que uma outra pessoa ocupe, sem preencher, o vazio de outra pessoa. Amar é fazer suplência a esse vazio, a essa falta. Mas é necessário que a falta admita alguém para ocupá-la, para fazer suplência. Quando Nora termina com Camille, ele diz para sua irmã: "Eu sofri, mas mesmo quando eu estava com ela, eu sentia um vazio". Nem Camille foi capaz de ocupar o lugar do vazio que sua mãe deixou. É só no final com ele dizendo para Émilie "Eu te amo", que vemos que a questão dele foi resolvida: ele foi finalmente capaz de admitir que uma outra mulher possa ser amada por ele além da mãe, que ele com tanta dificuldade se separava, vide a cena da venda da cadeira de rodas que a mãe usou nos seus últimos seis meses de vida, onde ele chora ao se ver abrindo mão do objeto. Me parece ser só naquele momento que ele também abre mão de sua mãe morta, do objeto que ela ocupava pra ele em sua vida, deixando assim um espaço finalmente vazio a ser ocupado por uma outra mulher.
Felizes Juntos
4.2 261 Assista AgoraFiquei comovidíssimo com os avessos desse filme: são dois sujeitos de um mesmo lugar em um país estrangeiro; e não qualquer país, mas um que faz contraponto exato com o país de origem dos dois: enquanto na Argentina é noite, na China é dia. E embora os dois falem a mesma língua, são ambos, cada um, estrangeiros da língua do outro. A palavra, na relação dos dois, está completamente desgastada; o que um consegue repetir para o outro é "vamos recomeçar". Mas ambos se perdem no caminho, porque o recomeço de fato não é mais possível de existir.
Na completa queda da palavra, o que resta é a agressão e o sexo: o corpo do outro precisa ser atingido, já que a palavra perdeu o poder de atingir o corpo do outro, de através dela articular alguma coisa que arranje uma relação que não destrua os dois. Isso se expressa de uma forma bonita e triste ao ouvirmos Lai Yiu Fai narrar que o momento mais feliz que os dois tiveram foi quando Ho Po Wing estava muito debilitado após levar uma surra e o que ele podia fazer pelo amado era cuidar de seu corpo.
Nesse filme nós vemos o que Chico Buarque quis dizer no verso "te adorando pelo avesso", de "Atrás da Porta": é preciso que haja mesmo muita adoração entre duas pessoas que insistem de forma tão destrutiva em amar uma a outra. São ambos também muito pobres. Tudo o que parecem ter é um ao outro.
O ódio é o avesso do amor. Basta que o outro que amamos se mostre um outro que não está em absoluta relação conosco - e nunca está - , como sonham os amantes, para que a frustração se expresse no ódio. É comum ver a cena da criança que quando é frustrada pela mãe, sente por ela um ódio expresso no choro, no espernear, no grito. A palavra que aqui poderia mediar, dar um novo destino à frustração e ao ódio, como já dito não é possível. Ho Po Wing e Lai Yiu Fai são esse casal que estão em uma dança - um tango!, já que estão na Argentina - onde um passo é o amor, e o outro é o ódio. Dançam assim.
É necessário também pensar separadamente cada um: Lai Yiu Fai tenta amar; ele é cuidadoso e responsável; parece ter uma consciência mais pacífica de sua solidão. Sua mão constantemente se estende para Ho Po Wing; este, por sua vez, está mais voltado para a destruição; quer amar, mas não parece conseguir se deixar amar. A forma com que ele busca o amor de Lai Yiu Fai é agressiva, descabida, com mordidas nas costas, baldes dágua. O insuportável do desencontro entre os dois me parece estar exatamente aí.
Aftersun
4.1 702A viagem é a carta de suicídio de Calum para Sophie, sua filha.
A questão do suicídio é um tabu, e a sociedade diante dessa questão tenta reprimi-la pelo silêncio ou pelo discurso motivador, que cala uma discussão que precisa tomar outros caminhos para ser abordada, dada a sua densidade. Tão comumente relegado aos psicólogos e psiquiatras discutir ou medicar, o suicídio é abordado nesse filme por uma perspectiva diferente do que se costuma ter em obras que tratam da questão: Calum está se divertindo com sua filha, e ela, seja pela idade, não tem dimensão da angústia que ele está enfrentando. Alguma coisa, entretanto, se coloca: ela tenta alcançá-lo, e sabe que não é entrando em embate, mas simplesmente acompanhando o pai numa parceria que é vista através das férias que eles tiram juntos. Quando o vocalista do Linkin Park, Chester Bennington cometeu suicídio, poucos dias depois circulou na internet um vídeo de horas antes dele cometer o ato: ele estava sorrindo, parecia se divertir genuinamente entre os seus.
O que pode isso nos dizer? Provavelmente muita coisa, mas uma delas é que o sujeito, diante da angústia de se ver dentro de uma cena onde conclui não valer a pena o viver, ainda assim precisa preceder de uma cena, de um lugar no Outro do qual decide resolver saindo literalmente através da morte.
Há alguns sinais que o filme dá sobre o destino de Calum: ele não tem uma relação com sua mãe, já não encontra um lugar nas raízes da cidade onde cresceu, gasta um dinheiro que não tem porque sabe que a dívida, após a consumação do ano, não importará; e principalmente: ele não se vê aos 40 anos. Essa fala dele, de achar que não chegaria nem aos 30, representa muito bem a questão do suicídio: quando alguém se mata, é a imagem de si diante do Outro que ela está tirando de cena, e com isso ela o faz levando-se junto. É repetido que Freud já apontava que o sujeito não deseja a morte, pois a morte não é representável: o que é representável é o sofrimento que um sujeito sente, e que é livrar-se desse sofrimento que ele deseja quando toma por saída o suicídio. Não há, tamanha a angústia, espaço para que uma dialética seja possível para se costurar a uma outra possibilidade de vida, para uma outra cena para a imagem de si. Isso nos fala também acerta do quanto a fantasia é a tela de nossa realidade, e o quão robusta ela é para poder nos sustentar dentro do viver.
O filme é muito delicado. E uma coisa magistral nele é a representação da memória com o "erro de continuação" que lhe é próprio: em uma cena onde Calum diz "uma vez que você deixa o lugar onde cresceu, você não pertence inteiramente lá novamente", ele começa falando essa frase com Sophie nos braços, em pé, e termina a mesmíssima frase com ela deitada e os dois na cama. Um analista técnico poderia dizer que houve ali um erro de continuação: como assim alguém começa uma frase de uma forma e termina a mesma frase depois de um corte para outra cena? Pois é: mas nossa memória funciona assim. A fantasia a distorce. Não sabemos mesmo muito bem se aquilo que alguém nos falou em tal tempo aconteceu enquanto estávamos desse ou daquele modo. A nossa memória tem, por si mesma, erros de continuação. Nossa tentativa de resgatá-la através das lembranças é sempre uma costura precária.
E é uma tentativa de resgatar seu pai que Sophie faz quando recorda aquelas férias através das imagens filmadas e das imagens que constrói em sua lembrança. É seu aniversário, e parece que ela ali está completando a idade que seu pai tinha quando ele faleceu. É de uma potência imensa o ápice do filme, o lugar onde ele chega em sua crescente: Sophie buscando seu pai no escuro entre tantas pessoas enquanto toca Under Pressure. Mas é também estranho porque há um avesso no tempo: é sua imagem adulta que busca o pai jovem. A vida, com sua maturação, se mostra diferente depois das transformações da infância e da adolescência. Abraçar seu pai na cena final é um encontro de finalmente compreensão da face dura do viver. O mistério da morte, para ela se atualiza através do suicídio do pai. Se o que ele deixa é uma filmagem de suas férias, é esse o registro mais verifico, material que ela pode ter dele.
Mascarpone
3.4 20Gostei do filme menos pelas atuações e partes do enredo, e mais pela lição que ele passa. É muito comum encontrarmos casais onde um dos dois é dependente do outro. Quando o amor acaba, seja para os dois lados, é necessário se reconhecer novamente no mundo. Mas para Antonio, ele tem que se orientar é em vários aspectos da vida: o profissional, o financeiro, o relacional com suas amizades, com tudo. De fato, ele deixou-se largar pela relação que vivia, e ao sair dela, foi seu mundo que ele precisou reconstruir em etapas que seu ex companheiro, por exemplo, já tinha construído, como a profissional e as amizades.
Uma coisa comum e interessante de acrescentar: pensa-se que se dedicando mais a uma relação do que a si é uma forma de sustentar melhor uma relação. Ledo engano. É exatamente quando o companheiro perde a própria identidade, mesmo que para viver apenas em nome da relação, que o amor é ameaçado, pois já não há no outro uma pessoa que tenha os próprios desejos, os próprios caminho, e isso é exatamente que empobrece a relação.
Gosto muito de como com o Luca
, Antonio aprende desde o início a construir para si um lugar. Ele escolhe a confeitaria e segue por aí. Há nisso muito mais base para construir uma relação mais saudável com Antonio do que havia com seu ex, para quem ele se reduzia a uma "dona de casa" sem experiências de vida.
Outras coisas me fazem gostar muito desse filme: ele não é um desses filmes que goza do clichê dramático do amor que termina em tragédia. Ele é uma verdadeira lição importante para pessoas gays: a comunidade lgbt tem menos apoio da família e precisa seguir a vida mais por si só, e esse filme fala sobre sustentar-se num lugar para si na vida antes de procurar o afeto e segurança que não se teve com a família em outra pessoa.
O Enfermeiro da Noite
3.4 401 Assista AgoraParece que a onda do momento é serial killers, credo.
Abracadabra 2
3.3 349 Assista AgoraAssisti com um sorriso no rosto, gente! Tão sessão da tarde quanto o primeiro.
Não Fale o Mal
3.6 674O que esse filme tem de desconfortável, ele tem de genial. É que o desconforto que ele causa é a tela que nos impede de em um primeiro momento sacar a sua lição, as nuances de seus contrastes e o quanto ele toca em questões pertinentes para a vida. Há muitos símbolos aqui. É de fato um filme muito profundo, se formos pensar bem. Há nele um contraponto, um contraste que é o seguinte: de um lado, os convidados, que por um imenso senso de educação, respeito e civilidade, cedem a tudo e a todos, mais do que deveriam e falam uma língua diferente; e do lado oposto, os anfitriões, que não tem educação, são desrespeitosos com a vontade de outro, mas que fazem apenas aquilo que querem, sem sentir nenhuma culpa, mais do que deveriam e que falam outra língua diferente. São reflexos no espelho, dois opostos extremos.
Poucos filmes me deixaram tão, mas tão desconfortável assistindo. Fisicamente mesmo. O filme não precisou apelar para cenas sangrentas, gore, para poder causar incômodo logo no início. E o que incomodava em assistir não era o conflito entre os costumes das duas famílias, mas sim o fato da família convidada ceder tanto de si mesma para a família anfitriã. A única forma de superar o trauma que é esse filme é levar em conta a lição que ele traz: sempre priorize as suas vontades e não ceda em detrimento do outro.
Tanto a mulher cedeu em relação ao marido: em várias vezes eu me imaginando no lugar dela, teria sem dúvidas dito ao meu companheiro: "Pois fique aqui você, porque eu estou indo!"; os dois cederam a vontade da filha em voltar para pegar o coelho, bastava dizer não e pronto; e o marido, ele cedeu da própria vida em relação a qualquer um. A conversa no carro, onde ele diz se sentir enjaulado, diz exatamente sobre isso. Depois os dois cederam ao convite de permanecerem com os anfitriões mesmo depois deles terem cruzado a linha do tolerável. Numa hora dessas, você tem que se perguntar: "Depois dessa pessoa ter demonstrado tudo o que já demonstrou até aqui, vale a pena continuar a tê-la em minha vida daqui adiante?". Se você diz sim, de fato, como os anfitriões responderam ao pai quando ele perguntou "Por que vocês estão fazendo isso?", a única resposta possível é: "Porque vocês deixaram". E de fato eles deixaram. E não foram os únicos. O filme mostrar a quantidade de outras vítimas do casal nos faz pensar no tanto de gente que comete o mesmo erro na vida.
Uma outra lição interessante: a mãe até se posiciona quando tentam invadir o espaço dela, como quando a anfitriã tenta dar ordens a filha dela. Mas ela não sustenta uma posição diante do marido. De fato, não é tão difícil impor limites a estranhos. Difícil mesmo é impor limites aos que amamos.
Quando estudamos um pouco sobe serial killers, logo vemos que eles tem um perfil de vítima que escolhem. É preciso olhar melhor para as vítimas desse casal: não são simplesmente outras famílias com filhos. São, na verdade, pessoas que não se mantém firmes em suas posições na vida. A cena em que o assassino mostra aquela duna onde o convidado grita para se libertar é uma cena que serve mais para nós, espectadores, do que para o personagem. Ele não quer ensinar nada ao convidado que planeja matar. Ele na verdade quer mostrar ao espectador o perfil de sua vítima: aqueles que se sentem enjaulados, negando as próprias vontades e "sorrindo para gente que não gosta". Há muitos desse tipo por aí. Para os assassinos do filme esses tipos não merecem viver porque, enquanto estão vivos, não vivem.
Não preciso dizer que também é muito simbólico eles cortarem a língua de suas vítimas. Enquanto estavam vivos, os convidados também não "usavam as suas línguas" para poderem fazer valer de fato o que deveriam dizer ao casal anfitrião.
Quando criança, a gente escuta que não deve receber doce de estranhos, não deve andar sozinho em lugares perigosos, não deve aceitar convite de gente desconhecida. Sempre nos ensinam isso contando uma história de alguém que se deu mal por não seguir esses conselhos. Eu só vou conseguir superar esse filme agora pensando que ele é como uma dessas lições que nos passam para não cair no mesmo erro, que é, mais uma vez: priorizar a sua vontade. Isso é um limite. Se você não dá limites ao outro, é na verdade a si mesmo que você não está dando limites.
Se formos encarar esse filme como uma metáfora, seria a de perdermos a própria vida não porque vamos encontrar assassinos, mas porque abrimos mão dela por não nos mantermos firmes em nossas posições quando as situações obviamente pedem que tomemos uma posição e não voltemos atrás. Outra cena emblemática: o carro "voltando atrás", retornando para a casa dos assassinos. Eles abriram mão da própria decisão ali. E a nossa vida é, entre outras coisas, o conjunto de nossas decisões.
A Queda
3.2 739 Assista AgoraDepois que começa a assistir, você vai até o final de qualquer jeito. Te prende pela angústia e por um fortíssimo efeito de te fazer pensar "e se fosse eu nessa situação?". Você torce pela protagonista como se estivesse torcendo por si mesmo se estivesse nessa situação - ou ao menos pra aprender o que fazer se parar na mesma situação hahaha.
Era Uma Vez um Gênio
3.5 159 Assista AgoraÉ um filme que trata da solidão.
A da protagonista. A do gênio. A do espectador. A de cada sujeito que, "para suprir uma falta", precisa fazer uso da imaginação. Djinn, o gênio, em determinada cena pergunta a Alithea se ela entende o que é passar pela solidão que ele passou preso na lâmpada, e ela diz entender. De fato, a experiência da solidão não é algo que se mede por quantidade de tempo ou intensidade. Foram as histórias as suas maiores companheiras, e ela faz uso de uma sua, que ela mesma inventa, para dar conta de sua solidão. Foi assim com seu amigo imaginário, é assim com gênio.
Na cena final,, em que ela está com o caderno, preenchendo-o com a história do gênio assim como o fez com seu amigo imaginário na infância, vemos ela defronte a um casal de apaixonados. O gênio então realiza sei terceiro e último desejo, que é o de fazê-la companhia diante da solidão. É aí que ele ressurge.
O Exorcista
4.1 2,3K Assista AgoraAlgumas pessoas tem seus "confort movies", filmes que assistem pra relaxar. Geralmente uma comédia romântica, um drama com final feliz, sem complexidades. O Exorcista é tipo um "confort movie" pra mim kkkk Reassisti pela sétima vez esses dias e a cada vez o filme me parece mais rico. E isso vai para além da questão sobrenatural. Os personagens são tão bem colocados.
Adoro assistir esse filme não como a história de uma possessão apenas, mas como a história a de um padre que está perdendo a fé, se vê falido, tendo uma formação em psiquiatria, mas seguindo o sacerdócio. Ele se vê "abandonado" por Deus quando sua mãe morre. O que salva sua fé é exatamente o contraponto de Deus: o Demônio. É aceitando fazer o exorcismo que ele recupera o sentido de sua fé, nem que para isso ele precise ir às últimas consequências.
Sombras da Vida
3.8 1,3K Assista AgoraEm Ghost Story o fantasma de um músico recém falecido retorna para sua casa, onde morava com sua esposa. Esta não é uma história de terror, apesar do título. O artifício que David Lowey, diretor e roteirista usa para solucionar a questão, é representar o fantasma como aqueles dos desenhos animados, cobertos por um pano, com dois furos no lugar dos olhos. O filme tem um tom poético, um ar melancólico, mas sustentado por um bom ritmo, mesmo com cenas contemplativas. Ele está em todas as cenas, a maioria delas se passa dentro da mesma casa, e de todas há da parte dele apenas um único, curtíssimo, mas afiado diálogo. Logo esse fantasma vai se transformando diante de nossos olhos. Sua transformação não é concreta, mas simbólica: de fantasma do marido, de repente transforma-se no fantasma do tempo. Esse que está ao redor de todos e de tudo. A casa, afinal, é também uma personagem do filme.
A esposa, que fora o motivo de sua volta para a casa onde moravam, um dia se vai. Novos moradores chegam, mas também se vão. O tempo passa. E o fantasma permanece lá. Já não é mais pela mulher que se dá a permanência. Em um breve diálogo com o fantasma que habita a casa vizinha, isso se justifica:
"-Estou a espera de alguém.
-Quem?
-Não me lembro”
O fantasma de uma pessoa morta, ou aquilo que a representaria, em algum momento torna-se o fantasma do tempo. Este, embora tenha se tornado um fantasma em um tempo e em um lugar, permanece atravessando gerações. Cleópatra, Shakespeare, Pedro Álvares Cabral, ou mesmo Hitler, Napoleão Bonaparte, etc. Mesmo aqueles que não tem o nome cravado nos livros de história tem um lugar e um tempo. E é desse fantasma - não espírito, mas fantasma - que A Ghost Story trata.
Uma obra que aproveita bem suas influências é aquela onde sentimos uma experiência próxima das outras que a influenciaram. A Ghost Story, logo em sua abertura, traz a citação de um conto chamado A Casa Assombrada, da maravilhosa Virgínia Woolf. Diz: “A qualquer hora que se acordasse havia uma porta se fechando”. Logo que vi a citação, pausei o filme e corri para ler o conto. Não tem mais de 700 palavras e conta a história de um casal de fantasmas que anda pela casa onde moravam. O uso de imagens poéticas - a luz do sol que entra em casa e deita sobre a parede, o reflexo das árvores sobre os vidros da janela, pequenos e significativos gestos - é algo próprio da escrita de Virginia, e o diretor aproveita, trazendo junto algo do filme de Terrence Malick, A Árvore da Vida, de 2011 e Oscar de melhor Filme.
Mas há uma outra influência, e esta mais curiosa e para mim nostálgica: Beetlejuice, o filme sombrio de comédia de Tim Burton, que foi também inspirado pelo conto de Virginia, inclusive. Há mesmo algo triste na história do casal de fantasmas da comédia burtiana que David faz uso, trazendo em seu filme. Como se colocasse a questão: se os fantasmas são imortais, o que sentiriam diante do tempo que passam na solidão de uma casa abandonada?
A Ghost Story torna-se diante de nossos olhos um filme sobre a passagem do tempo. Sobre a profundidade que está bordada pelos gestos - há no filme uma cena de 6 minutos da esposa do fantasma comendo uma torta após voltar do necrotério, onde precisou reconhecer seu corpo. Em contraste, está enquadrado na outra extremidade da cena o fantasma, em silêncio, observando-a. Penso sobre cena: há uma lógica na sucessão dos fatos. Tendo ido reconhecer o corpo morto do marido, a torta que M. come não tem gosto de torta, mas o gosto intragável da morte. Não à toa, após comê-la, ela corre ao banheiro para vomitá-la. Ela, desde criança, gosta de escrever pequenos bilhetes e escondê-los, para serem achados pelo acaso em um outro tempo. E é um desses bilhetes que o fantasma a vê esconder numa das frestas da parede que ele tenta com o passar dos tempos retirar para ler. O bilhete é escrito para o tempo, e ele, o fantasma, não é mais o fantasma do marido: é o fantasma do tempo. A carta chega ao seu destino.
O Mundo dos Pequeninos
4.2 652 Assista AgoraEu MORARIA dentro desse filme!
Verão de 85
3.5 173 Assista AgoraAssisti com meu namorado e na metade do filme ele já tava se acabando de chorar e se declarando pra mim comovidíssimo. Nota 10.
Sussurros do Coração
4.3 482 Assista AgoraAssim como A Viagem de Chihiro, há nas entrelinhas uma lição de amadurecimento. E o amadurecimento não se dá sem alguma dor. O choro dela ao ouvir a crítica sobre o que ela escreveu é para mim um momento de passagem de amadurecimento. É incrível a forma como os filmes desse estúdio mostram isso com uma delicadeza, um tato imensos. A gente vira mesmo criança assistindo, sem deixar de ser adulto. É preciso sustentar nossos desejos (e maravilhoso como ela não apenas sustenta o desejo pela literatura, como parece se sustentar nele), mas entender que o mundo tem seus próprios sistemas, e que é preciso passar por eles. É o que ela descobre quando decide cursar uma faculdade apesar de viver o seu sonho.
A Viagem de Chihiro
4.5 2,3K Assista AgoraImpossível encontrar defeitos.
Ilha dos Cachorros
4.2 655 Assista AgoraMaravilhoso!
Viver Duas Vezes
3.9 192 Assista AgoraAs relações de não-proporção mostradas através da proporção: o velho e a criança; cada um deles com a sua deficiência: ele com o alzheimer, ela com a mobilidade reduzida; ele com o brilho do vivido, ela com o brilho da forma com que fura toda a organização de vida dele; ela, nova, ensinando algo desses tempos tão novos: a tecnologia; ele, com o desejo de reencontrar um amor do passado, que só viu uma vez, mostrando a ela e a nós, que o assistimos, que as relações são para além do instantâneo tecnológico.
E que final. Me arrepiei do dedinho do pé ao último fio de cabelo. O choro escorreu.
Filme belíssimo, leve, engraçado, caricato, que mexe tão ousadamente com temas tão pesados. O envelhecimento, a doença, as limitações do corpo, a família, tanta coisa.
Um dado a mais dentro da lógica das deficiências com que cada um tem que estar às voltas: aquela família, ali reunida, formada cada um pela sua questão falha, forma um conjunto no todo deficiente: é em determinado grau a deficiência a nossa normalidade.