Talvez eu já tenha sido um Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands) em alguns momentos, que felizmente pertencem a um passado distante. Desajustado, esquisito, repelindo os demais, mas depois atraindo-os, tornando-me uma espécie de atração de circo, para então ser abandonado novamente. Edward é a perfeita metáfora do monstro, em sua acepção mais trágica. Ele não sabe se relacionar com as pessoas, porque nunca teve a chance de aprender. Portanto acaba machucando-as, quando tudo o que queria era ajudar. Afinal, suas intenções são singelas, mas suas mãos são de tesoura. As cicatrizes que carrega também foram todas causadas por ele mesmo, por sua incapacidade de fazer qualquer coisa com delicadeza ou cuidado. Ele tem pressa de ser amado, reconhecido, recompensado, não há espaço para sutilezas. Além dessa sublime caracterização do indivíduo que não pertence ao meio, a fábula de Tim Burton expõe a decadência da sociedade que o envolve. O subúrbio é um a grande maquete, com casinhas de brinquedo. Tudo é artificial, plástico, como a discutível perfeição daquela cidadezinha. Seus habitantes ficam agitados quando o estranho forasteiro aparece, tratando de transformá-lo imediatamente em celebridade, só para depois demonstrarem um sádico prazer em demonizá-lo. Após a suposta morte do monstro, ainda há espaço para lamentações. Afinal, a tragédia também é espetáculo. E o povo adora. Edward é um artista. Ele canaliza suas frustrações e as utiliza para transformar o trivial em singular, o feio em belo, com o auxílio das tesouras, mostrando que aprendeu a extrair de sua maior fraqueza seu maior dom. Quando a única pessoa que entendeu sua arte, já velhinha, afirma que "Antes de ele surgir nunca havia nevado, mas depois que ele se foi, nunca parou de nevar", o filme atinge o ápice de sua poesia. Ela nunca mais o reencontrou, nem teve a chance de rever suas belas esculturas, a não ser buscando-as na memória. Mas Edward a contaminou para sempre com sua incurável melancolia, sentimento que transformou em neve através da arte. É impossível ver esse filme sem deixar de escorrer ao menos uma lágrima.
Se me perguntam: "Algum filme de terror já te deixou completamente atordoado?", posso pensar em alguns, mas o que me vem imediatamente à cabeça é este, A Invasora (péssimo título em português afff), de Julien Maury e Alexandre Bustillo. Parte do sagrado movimento informal New French Extremity, que desafiava os limites do que pode ser mostrado explicitamente ao público, sempre em meio a temas sociais ou psicológicos. A Invasora (pra quê, senhor???) entra no segundo grupo, mas a temática só fica clara ao final, após o martírio da protagonista (e do espectador). O filme todo é ultraviolento, chega a ser poético o dilúvio de sangue falso. Há uma cena, porém, que me deixou realmente transtornado, cravando-se em minha memória para sempre. Hoje, o que esse filme me traz, quando lembro dele, é o seguinte questionamento: Como pode algo tão feio ser tão belo?
Há muitos anos não vejo um filme de "terror" (entre aspas pois, apesar de muitos elementos do gênero, é uma obra difícil de classificar) tão ferozmente satírico em relação às hipocrisias da sociedade, sem para isso se entregar ao tom cartunesco comumente empregado a obras com essas ambições. Extremamente simbólico, irônico e conectado ao tempo em que foi feito. O tempo das morais ilibadas, dos julgamentos coletivos cheios de correção política, também conhecidos como "cancelamento". Da história sendo convenientemente escondida, ou apagada, para justificar as máscaras morais que a sociedade escolhe vestir. É cedo para definir Tem Alguém na Sua Casa como um grande filme. Mas basta compreender a proposta para saber que se trata de uma obra importante. #TheresSomeoneInsideYourHouse #TemAlguemNaSuaCasa #Netflix #Filmes #Cinema
A primeira continuação da obra-prima Halloween, de John Carpenter, foi lançada há exatos 40 anos... e ela já descaracterizava Michael Myers. Depois veio a Trilogia Thorn, formada por Halloween 4, 5 e 6, que piorava as coisas nesse sentido. Halloween H20 ignorava Thorn, mas mantinha as ideias toscas da parte 2. Ressurreição é uma desgraça completa. Depois vieram Halloween e Halloween 2, de Rob Zombie, que sequer merecem ser comentados... e então David Gordon Green trouxe a primeira continuação digna do original, há dois anos atrás.
Mas Halloween Kills vai muito além de ser apenas digno. O filme devolve a Michael Myers o sentido, a razão de ser. Myers é um personagem alegórico, a personificação do mal, razão pela qual é impossível matá-lo. O filme original mostrava Laurie Strode se sentindo desconfortável num perfeito subúrbio de classe média americano e depois sendo ignorada pela população ao pedir ajuda para fugir de um psicopata. Halloween Kills mostra esse mesmo subúrbio, 40 anos depois, com um povo marcado pelo passado, mas incapaz de ter outra ideia para combater o mal do que devolver a violência que esse mal lhes infligiu... incapaz de fazer isso sem julgar - e matar! - erroneamente cidadãos inocentes e de fato se igualar ao algoz. Incapaz de perceber que Michael Myers é um espelho escancarado na cara da sociedade. O mal não pode ser morto enquanto essa sociedade não perceber que a origem do mal é ela.
Edward Mãos de Tesoura
4.2 3,0K Assista AgoraTalvez eu já tenha sido um Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands) em alguns momentos, que felizmente pertencem a um passado distante. Desajustado, esquisito, repelindo os demais, mas depois atraindo-os, tornando-me uma espécie de atração de circo, para então ser abandonado novamente. Edward é a perfeita metáfora do monstro, em sua acepção mais trágica. Ele não sabe se relacionar com as pessoas, porque nunca teve a chance de aprender. Portanto acaba machucando-as, quando tudo o que queria era ajudar. Afinal, suas intenções são singelas, mas suas mãos são de tesoura. As cicatrizes que carrega também foram todas causadas por ele mesmo, por sua incapacidade de fazer qualquer coisa com delicadeza ou cuidado. Ele tem pressa de ser amado, reconhecido, recompensado, não há espaço para sutilezas. Além dessa sublime caracterização do indivíduo que não pertence ao meio, a fábula de Tim Burton expõe a decadência da sociedade que o envolve. O subúrbio é um a grande maquete, com casinhas de brinquedo. Tudo é artificial, plástico, como a discutível perfeição daquela cidadezinha. Seus habitantes ficam agitados quando o estranho forasteiro aparece, tratando de transformá-lo imediatamente em celebridade, só para depois demonstrarem um sádico prazer em demonizá-lo. Após a suposta morte do monstro, ainda há espaço para lamentações. Afinal, a tragédia também é espetáculo. E o povo adora.
Edward é um artista. Ele canaliza suas frustrações e as utiliza para transformar o trivial em singular, o feio em belo, com o auxílio das tesouras, mostrando que aprendeu a extrair de sua maior fraqueza seu maior dom. Quando a única pessoa que entendeu sua arte, já velhinha, afirma que "Antes de ele surgir nunca havia nevado, mas depois que ele se foi, nunca parou de nevar", o filme atinge o ápice de sua poesia. Ela nunca mais o reencontrou, nem teve a chance de rever suas belas esculturas, a não ser buscando-as na memória. Mas Edward a contaminou para sempre com sua incurável melancolia, sentimento que transformou em neve através da arte. É impossível ver esse filme sem deixar de escorrer ao menos uma lágrima.
#EdwardScissorhands #EdwardMaosDeTesoura #TimBurton #Cinema
A Invasora
3.4 705Se me perguntam: "Algum filme de terror já te deixou completamente atordoado?", posso pensar em alguns, mas o que me vem imediatamente à cabeça é este, A Invasora (péssimo título em português afff), de Julien Maury e Alexandre Bustillo. Parte do sagrado movimento informal New French Extremity, que desafiava os limites do que pode ser mostrado explicitamente ao público, sempre em meio a temas sociais ou psicológicos. A Invasora (pra quê, senhor???) entra no segundo grupo, mas a temática só fica clara ao final, após o martírio da protagonista (e do espectador). O filme todo é ultraviolento, chega a ser poético o dilúvio de sangue falso. Há uma cena, porém, que me deixou realmente transtornado, cravando-se em minha memória para sempre. Hoje, o que esse filme me traz, quando lembro dele, é o seguinte questionamento:
Como pode algo tão feio ser tão belo?
#ALinteriur #Inside #AInvasora #NewFrenchExtremity #FilmesdeTerror #Cinema
Tem Alguém na sua Casa
2.3 239Há muitos anos não vejo um filme de "terror" (entre aspas pois, apesar de muitos elementos do gênero, é uma obra difícil de classificar) tão ferozmente satírico em relação às hipocrisias da sociedade, sem para isso se entregar ao tom cartunesco comumente empregado a obras com essas ambições.
Extremamente simbólico, irônico e conectado ao tempo em que foi feito. O tempo das morais ilibadas, dos julgamentos coletivos cheios de correção política, também conhecidos como "cancelamento". Da história sendo convenientemente escondida, ou apagada, para justificar as máscaras morais que a sociedade escolhe vestir.
É cedo para definir Tem Alguém na Sua Casa como um grande filme. Mas basta compreender a proposta para saber que se trata de uma obra importante.
#TheresSomeoneInsideYourHouse #TemAlguemNaSuaCasa #Netflix #Filmes #Cinema
Halloween Kills: O Terror Continua
3.0 683 Assista AgoraA primeira continuação da obra-prima Halloween, de John Carpenter, foi lançada há exatos 40 anos... e ela já descaracterizava Michael Myers. Depois veio a Trilogia Thorn, formada por Halloween 4, 5 e 6, que piorava as coisas nesse sentido. Halloween H20 ignorava Thorn, mas mantinha as ideias toscas da parte 2. Ressurreição é uma desgraça completa. Depois vieram Halloween e Halloween 2, de Rob Zombie, que sequer merecem ser comentados... e então David Gordon Green trouxe a primeira continuação digna do original, há dois anos atrás.
Mas Halloween Kills vai muito além de ser apenas digno. O filme devolve a Michael Myers o sentido, a razão de ser. Myers é um personagem alegórico, a personificação do mal, razão pela qual é impossível matá-lo. O filme original mostrava Laurie Strode se sentindo desconfortável num perfeito subúrbio de classe média americano e depois sendo ignorada pela população ao pedir ajuda para fugir de um psicopata. Halloween Kills mostra esse mesmo subúrbio, 40 anos depois, com um povo marcado pelo passado, mas incapaz de ter outra ideia para combater o mal do que devolver a violência que esse mal lhes infligiu... incapaz de fazer isso sem julgar - e matar! - erroneamente cidadãos inocentes e de fato se igualar ao algoz. Incapaz de perceber que Michael Myers é um espelho escancarado na cara da sociedade. O mal não pode ser morto enquanto essa sociedade não perceber que a origem do mal é ela.
Meu veredito?
Chocante, catártico e maravilhoso.
❤
#HalloweenKills #Halloween #FilmesdeTerror #Cinema