Se tem uma coisa que admiro é quando um romance consegue transmitir mais uma sensação de realidade do que ficção. Não é que eu não goste de histórias que fujam dessa lógica mais realista, mas é que é tão bom poder acompanhar o desenvolvimento natural do amor entre as personagens em cena. No cinema antigo, sobretudo ali na primeira metade do século XX, não faltam casos de "amor à primeira vista" que sequer fazem sentido (pelo menos para os dias atuais). O personagem X encontra a personagem Y e, de repente, estão apaixonados e agendando o casamento para o dia seguinte. Esse tipo de situação dá até pra relevar, levando em consideração que muitos romances eram curtos e não tinham tempo suficiente para desenrolar a paixão com mais cautela. No caso de Um Homem, uma Mulher, assim como em Antes do Amanhecer, acho que os diretores foram muito felizes em conseguir trazer justamente essa química entre os atores. Em menos de 120 minutos, Claude Lelouch tornou possível acreditar que Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Anouk Aimée) sentiam uma forte atração um pelo outro. Um sentimento que foi crescendo ao longo das três semanas que marcam do momento em que se encontraram pela primeira vez à noite em que dormiram juntos. Em Antes do Amanhecer, o espaço para Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) é ainda menor: menos de 24 horas. Mas é aí que entra a tal "realidade" nos dois filmes.
Diferente do que aconteceria nos anos 40, Jean-Louis e Anne só vão trocar o primeiro beijo nos 20 minutos finais. Jesse e Céline também não se entregam de cara à atração puramente física que tiveram quando se conheceram no trem. Os cineastas dão tempo para que o casal se conheça e, enfim, presenteiam o público com o momento romântico que esperávamos tanto quanto suas personagens. Por coincidência, Um Homem, uma Mulher e Antes do Amanhecer fazem parte de uma trilogia separada por longos anos – muitos antes de Richard Linklater trazer de volta a dupla que lançou de vez sua carreira, Lelouch já fazia isso em 1986 com a continuação Um Homem, uma Mulher: 20 Anos Depois. Infelizmente, nem esse filme dos anos 80 e nem o encerramento da trilogia (Os Melhores Anos de uma Vida, 2019) chegam aos pés do original. Ao contrário de Linklater, Lelouch jamais conseguiu chegar perto do sucesso de Um Homem, uma Mulher.
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (atual Melhor Filme Internacional) e da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Um Homem, uma Mulher é um filme construído por pequenos detalhes. O casal principal, na casa dos 35 anos, é formado por dois pais que já têm uma experiência de vida (e amorosa) relativamente longa. Porém, a troca de sorrisos genuínos e incontroláveis, a timidez, o desvio de olhar e a aquela insegurança em tocar ou não tocar a mão (ou o ombro) da amada faz com que pareça que eles são dois adolescentes descobrindo o primeiro amor. E é lindo ver isso em cena. Mais uma vez trazendo Antes do Amanhecer como referência, é difícil não lembrar da tentativa e do recuo de mãos de Jesse ao tocar os cabelos de Céline.
À época das gravações de Um Homem, uma Mulher, Lelouch era um cineasta que sequer tinha completado 30 anos, o que contrasta, de certa forma, com a maturidade com a qual ele conduz o drama/romance. Em uma entrevista realizada nos bastidores, o cineasta diz este filme é o oposto daquilo que aconteceria de verdade em sua vida (ainda que ele desejasse), pois ele não era gentil/terno o suficiente para viver uma paixão assim tão delicada. É interessante ver esse pensamento partindo do próprio diretor, pois quando assistimos ao making of da produção, percebemos o cuidado e a dedicação de Lelouch em fazer com que tudo pareça o mais natural possível – para que mais pessoas, como ele, pudessem se identificar e sonhar com esta apaixonante história de amor. Sobre essa dose de realismo que o filme traz, o diretor nos conta que ele não regravava a mesma cena incontáveis vezes, o que permitia ações e diálogos menos mecânicos e mais dinâmicos. Quando era necessária uma segunda (ou terceira) tomada, Trintignant aponta que ela nunca era idêntica à anterior.
Segundo Lelouch, a direção dos atores era feita pouco antes da cena ser gravada (e sem a câmera estar ligada). Ele dava uma instrução específica a Trintignant e outra um pouco diferente à Aimée de modo que um pudesse pegar o outro de surpresa. Não é à toa que em alguns momentos podemos ver um pequeno atropelamento nos diálogos (algo normal de acontecer no dia a dia). Mais do que isso, vemos que os diálogos parecem sair de duas pessoas que querem mesmo se conhecer. Sem frase de efeito. Sem um roteiro pré-programado a ser seguido. Para destacar um momento em especial, fico com a sequência do restaurante, que é de uma simplicidade pura. Os quatro (Jean-Louis, Anne, Antoine e Françoise), à mesa, parecem felizes por estarem ali ao mesmo tempo em que é uma situação nova para eles.
Anne pede que Jean-Louis fale sobre sua profissão e é imediatamente interrompida por Antoine (o filho de Jean-Louis, de uns 5 anos), que fala sobre o que quer ser quando crescer. Esse atravessamento, vindo de uma criancinha, é crível. Logo depois, o menino pede uma Coca-Cola em espanhol a pedido do pai, que se orgulha ao contar à pretendente que seu filho sabe um pouco de inglês e espanhol. É aqui, nas entrelinhas e no sutil, que os personagens passam a se conhecer melhor. Não se trata de os adultos se conhecerem apenas. Os filhos também desempenham um papel importante para esta descoberta, pois a essa altura, no nosso imaginário, já torcemos para que os quatro virem uma família.
Quando Anne finalmente diz a Jean-Louis que o ama, e os dois conseguem ficar a sós num quarto, somos atingidos por um choque de realidade. Ao começar a cena (implícita) de sexo entre eles, percebemos no olhar e nas reações de Anne que algo está errado. O diretor, então, intercala a relação sexual com os momentos felizes da mulher com seu falecido marido. Fica claro nesta cena a complexidade de um sentimento que é muitas vezes banalizado nos cinemas. Ao se entregar e permitir amar de novo, Anne concretiza que seu ex-marido ainda não morreu para ela, mas ao mesmo tempo sabe que sua paixão por Jean-Louis é verdadeira, e que ela tem o direito de seguir em frente. A vida, e os nossos desejos, nem sempre são tão simples e fáceis quanto gostaríamos.
Ao subir sozinha no trem, Anne parece estar arrependida e decepcionada com si própria por não ter dado certo (e nós também ficamos tristes, apesar de que a situação é totalmente compreensível). Entre takes dela pensativa no vagão e de Jean-Louis pensando alto em seu carro, tudo nos leva a crer que eles vão se reencontrar e tentar mais uma vez – dito e feito. O abraço dos dois na estação aquece o nosso coração e deixa em aberto para que o espectador crie um final para esse casal. Como diria Lelouch, quanto mais frio é o filme (e Um Homem, uma Mulher é rondado por neblina e chuva), mais nós queremos o calor da paixão. Mesmo tendo assistido às duas continuações, prefiro fingir que elas não existem e acreditar que Jean-Louis e Anne viveram felizes e juntos por muito tempo. Aqui, abro um pouco a mão da realidade e opto pela fantasia do final feliz de um amor eterno.
Consigo entender perfeitamente o motivo pelo qual alguém não gostaria do filme, mas sigo achando extremamente importante e corajoso mesmo depois de quase três anos desde a minha primeira sessão. Lembro de ter lido uma vez que "o tom ativista é ultrapassado para os dias atuais". Ultrapassado? Antes fosse. Há 50 anos o filme era lançado, criticado, atacado e restrito nas salas de cinema dos EUA por ser taxado como uma propaganda política comunista para alguns. Com pesar, Punishment Park segue atual, e não datado. Nem de longe acho que Peter Watkins "exagerou" na premissa e na execução. O cenário fictício que ele propõe está distante, à risca, da nossa realidade, o que não significa que outras formas de punição (mais severas ou mais leves) não sejam aplicadas injustamente aos rebeldes.
No fundo, sabemos que esse pseudodocumentário não é tão falso quanto gostaríamos. Ou, pelo menos, deveríamos saber. Impossível não assistir ao filme e não lembrar do (triste) período em que estamos vivendo no Brasil. Um bando de velhos e """'cidadãos de bem"""' (cujo viés político sequer precisa ser mencionado) sentenciando jovens a penas absurdas por seus crimes contra o governo americano à medida que a verdade deles é irredutível e que seu soberano país deve estar acima de tudo e de todos. Você deve lutar na guerra pelo seu país. Você deve morrer pelo seu país. Você deve defender o seu país. A troco de quê? Não te deixam pensar. Não te deixam ter opinião própria. Se você alega ter, eles já têm respostas pré-programadas afirmando que fulaninho que te influenciou a pensar dessa forma. Você está errado, não a gente. "Meus filhos nunca seriam assim". "A educação que eu dei para eles é diferente", eles dizem.
É realmente deprimente (gostaria até de dizer "engraçado" como eufemismo, porém só é triste mesmo) ver como o mundo não evoluiu e como o alto escalão continua batendo na tecla de que todo mundo que se opõe a eles é comunista – culpa da China soberana que faz uma lavagem cerebral na nossa juventude. Há um diálogo, entre tantos outros que eu poderia citar, que acho precioso em Punishment Park porque mostra como as notícias falsas e o sensacionalismo criam um universo completamente paralelo àqueles que só veem o próprio umbigo. O opressor diz à moça julgada que A gente constrói escolas para nossos filhos e vocês a queimam; destroem. Ela responde que isso é invenção da mídia; que eles não agem assim. É evidente que não podemos ser ingênuos e esquecer que existem extremistas em qualquer lado espectro político – dentro do filme, Watkins traz personagens que são 100% contra a violência e outros que acreditam que a única forma de se conseguir algo é apostando na mesma moeda com a qual a polícia e o governo (n)os trata(m) (a repressão, as armas); que somente dessa forma poderia existir uma revolução capaz de mudar o país. Aqui, inclusive, acho que está um dos grandes pontos positivos de Punishment Park. O diretor define claramente qual é a sua posição em relação ao que está sendo evidenciado em cena, e dentro de sua escolha, ele não tem medo de expor as múltiplas facetas dos diferentes grupos de prisioneiros que lutam por objetivos iguais ou semelhantes. O inimigo é o mesmo; o caminho, não.
Aos que estão lendo este texto sem terem assistido ao filme: vejam sabendo que é uma história injusta. Fiquem tranquilos que não é um spoiler. Logo no início do filme você já sabe que os prisioneiros têm que percorrer mais de 80 km sob o sol escaldante do deserto durante 3 dias/2 noites, sem direito à água até metade do caminho, para chegarem à bandeira dos Estados Unidos e serem libertados. Se porventura fracassarem, ou forem pegos pelos policiais em treinamento no campo que são instruídos a atirarem sempre que se sentirem ameaçados/não forem obedecidos/sempre que quiserem porque quem manda ali são as armas e suas respectivas balas, os acusados deverão cumprir a pena estabelecida pelo juiz. Essa é a forma de reeducação do governo aos prisioneiros que optaram pelo "parque da punição" em vez de aceitarem as sentenças de 5, 7, 10, 20 anos por ameaçarem o bem-estar da nação. Sim, surpreendentemente eles te dão a chance de você fazer uma escolha em que a resposta é praticamente óbvia: correr o risco de sobreviver 3 dias em situação precária, caminhando dezenas de quilômetros por dia, ou ficar encarcerado por duas décadas sob condições igualmente precárias? Ninguém em sã consciência recusaria tentar a sorte no parque da punição. Enfim... Vá sabendo que você se sentirá impotente. Vá sabendo que é revoltante. Vá sabendo que muitas das injustiças aqui são reais.
Um ano e três meses (aproximadamente) separam a minha primeira investida no cinema do grego Theo Angelopoulos e o dia em que escrevo este texto. Para ser mais preciso, 23 de junho de 2020 foi quando "descobri" (entre aspas mesmo, porque já conhecia de nome os trabalhos do diretor há muito tempo) os filmes do cineasta, e minha jornada teve início, justamente, com "Paisagem na Neblina". Por ter sido o meu primeiro contato com sua filmografia, admito ter ficado maravilhado e um pouco perdido ao término da sessão. Não é que o filme seja complexo em sua estrutura narrativa, mas digamos que alguns momentos alegóricos acabaram me deixando confuso. Apenas como exemplos, vale citar (sem spoilers) as cenas das personagens imóveis quando a neve cai (com exceção das crianças); a noiva fugindo do casamento – e sendo resgatada para, então, sair dançando do local com os convidados e seu marido como forma de proporcionar um contraste com as lágrimas de Alexandros (Michalis Zeke) ao ver um animal sofrendo e morrendo – e a mão da estátua sendo resgatada da água. O que elas significam? Cabe a você interpretar.
"Paisagem na Neblina" me marcou tanto na época que eu senti a necessidade de correr atrás de mais filmes do diretor para tentar compreendê-lo. Baixei "A Eternidade e um Dia' logo em seguida e conferi dois dias depois. Novamente, fiquei intrigado. Havia algo no cinema do Angelopoulos que me fascinava, mas me afastava. No dia 28 de novembro de 2020, num tópico do fórum MKO, escrevi o seguinte:
"'Paisagem na Neblina' tem uma cena que me deixou completamente desolado. Quem já viu sabe de qual eu tô falando. Eu só balançava minha cabeça fazendo sinal de 'não' e pensava 'Angelopoulos [...] Você não vai fazer isso...'. Como foi o primeiro do diretor [...] eu não tinha ideia do que esperar, e acabei me surpreendendo. Gostei bastante [mesmo], mas fiquei com um amargo na boca que incomodou.
Depois fui ver 'A Eternidade e um Dia' e a mesma coisa aconteceu. Um gostinho amargo, mas que não tirava a grandeza do filme. A partir daí comecei a perceber o estilo do diretor e pude mergulhar' melhor nos filmes."
Esse quote significa, basicamente, que por mais que o cineasta estabelecesse uma forte conexão comigo, ao mesmo tempo eu ficava com o pé atrás sem saber aonde ele queria me levar. Por mais redundante que pareça (ou talvez nem tanto assim), os filmes do Angelopoulos são gregos até o talo. E esse era o ponto em que eu me desviava levemente de seus roteiros, porque me sentia um peixe fora d'água que estava presenciando algo aquém do meu conhecimento. Mais uma vez, trago as minhas palavras do passado para tentar exemplificar:
"Esses cinco filmes ['Paisagem na Neblina'; 'A Eternidade e um Dia'; 'Viagem a Citera'; 'Um Olhar a Cada Dia'; 'O Vale dos Lamentos'] do Angelopoulos estão no mesmo nível de 'O Espelho', do [Andrei] Tarkovsky, em termos de complexidade na minha opinião. Não obstante, todos soam como filmes pessoais onde o diretor parece ter realizado para ele mesmo. Talvez por isso sejam tão intrigantes e belos.
Já disse outras vezes e volto a dizer: não entendo um filme sequer do Angelopoulos. Claramente há muito simbolismo e referências à história e à cultura grega que eu tenho zero conhecimento. Mesmo assim, me perco em seus longos planos-sequência; em suas cenas de dança; cenas na chuva e nos diálogos teatrais carregados de melancolia."
Após essa tentativa de criar um raciocínio que traduzisse a minha relação com o diretor, volto à obra-prima 'Paisagem na Neblina'. Mesmo estando mais acostumado com o estilo do cineasta grego, revisitar o filme não foi uma tarefa simples. Em meio a uma Grécia polarizada – enquanto as crianças querem sair rumo à Alemanha para encontrarem o pai, dezenas de imigrantes desejam tentar a sorte entrando no país –, o que ganha destaque são os contrastes com os quais Angelopoulos trabalha: o bom e o mau; o ingênuo e o perverso; os artistas contra a indiferença da população; o sonho das crianças contra a dura realidade da vida – e como consequência, o amadurecimento precoce dos dois, além da trágica e irreversível experiência que afeta a pequena Voula (Tania Palaiologou) para sempre. Não importa quantas vezes você tenha visto o filme, a partir do momento em que os irmãos entram naquele caminhão você vai sentir um aperto no peito – e acostume-se, pois o universo do Angelopoulos é recheado de dor, tristeza e desesperança; por motivos diferentes, é claro, mas todos eles capazes de nos arrebatar.
Em uma entrevista concedida no ano passado, a atriz Tania Palaiologou comenta sobre como era trabalhar com Angelopoulos; sobre sua amizade desenvolvida com o ator Michelis Zekis (seu irmão mais novo no filme); sobre Voula, entre outras coisas. Na conversa, Tania explica como
sua personagem se apaixona por Orestis (Stratos Tzortzoglou) mesmo depois de ter sido abusada pelo caminhoneiro. Nas palavras da atriz, em tradução livre, ela diz algo como: "Voula se apaixona por Orestis como uma criança que ainda acredita em conto de fadas. Ela até mesmo está disposta a 'se entregar' a ele, que significava (para Voula) uma passagem da infância à fase adulta [...] Após o abuso, é emocionante ver como ela ainda pode confiar em alguém e se apaixonar".
Como sabemos, Orestis não vê a pequena da mesma forma. Ele, na verdade, assume uma função paternal para Alexandros e Voula – e possivelmente a paixonite de Voula ocorre porque ela se vê como a mãe de Alexandros, já que a menina precisa cuidar do irmão a todo momento.
Ainda usando como base a entrevista, é interessante ouvir os pensamentos de quem esteve presente durante toda a gravação. Mais interessante ainda é ver a própria Tania falando que mesmo depois de assistir ao filme umas dez vezes ela não é capaz de compreender exatamente o que estava na cabeça do Angelopoulos/o que ele queria dizer em determinados momentos. A cada revisita ela tem uma impressão diferente. Daí parte a grandiosidade e a singularidade das obras do diretor.
Se no ano passado eu acabei dando 4/5 para Paisagem na Neblina alegando "não ter compreendido determinadas passagens", hoje asseguro que independente de qualquer coisa, o impacto que este filme me causou (e causa) é maior do que toda metáfora (ou simbolismo) que passou despercebida. Como mencionado parágrafos acima, existe algo no cinema do Angelopoulos que me fascina – e que não me distancia mais. Estou ansioso para revisitar, em especial, A Eternidade e um Dia, sem falar que agora, mais do que nunca, quero conferir os outros trabalhos dele que não vi ainda. Apesar do desconforto causado, Paisagem na Neblina virou um dos filmes da minha vida. Muito obrigado por tudo, Angelopoulos.
Muito já foi dito sobre o clássico Laranja Mecânica. Desde sua estreia, em 1971, espectadores e críticos se propõem a comentar e dissecar a obra. Não tenho o intuito de prestar uma análise técnica nas linhas abaixo – primeiro porque não sei escrever críticas, e segundo porque há centenas de textos com esse objetivo –, mas sim de expor a minha experiência com aquele que considero um dos filmes mais importantes da minha vida. Para isso, precisamos voltar a 2013, ano em que descobri um nome que me perseguiria durante toda a minha jornada cinematográfica: Stanley Kubrick. Nessa época, ainda adolescente (15), eu não dava muita bola para o cinema. Para ser sincero, assistia a filmes numa frequência baixa, e quando os via, minhas prioridades costumavam ser animações, terror e revisitar qualquer coisa que eu havia gostado anteriormente.
Num belo dia, enquanto pesquisava algo para assistir, caí numa lista que recomendava o tal Laranja Mecânica. Após ler a sinopse, achei a proposta, no mínimo, curiosa – o que despertou o meu interesse. Eu não fazia ideia de que era considerado um clássico, e muito menos tinha noção de quem era Kubrick. Como minha memória é um tanto falha, não consigo criar uma linha temporal precisa, então não sei se o meu primeiro contato com o diretor foi aqui ou em O Iluminado. De qualquer forma, fato é que eu não estava muito habituado com um cinema mais antigo – leia-se "qualquer coisa pré-2000". Meses antes, com 14 anos, mas ainda em 2013, larguei Psicose na metade porque era em P&B e eu não conseguia ver o motivo pelo qual o filme era tão aclamado.
Logo no início Laranja Mecânica já tinha me deixado boquiaberto. Minha inexperiência fílmica gritava "como assim era permitido violência e nudez nos anos 70?". Ingenuidade, eu sei. Mas naquele período não me pareceu tão ingênuo assim. Confesso que o choque inicial foi tão grande que eu nem consegui processar o que estava nas entrelinhas – além, é claro, da imaturidade natural da maioria dos adolescentes de 15 anos. Se antes da sessão me preocupei por ser um trabalho "antigo" nem me recordo mais, mas olhando para o filme nos dias atuais, depois de revê-lo por quatro ou cinco vezes, continuo me surpreendendo com o fato de que ele parece ter sido rodado há poucos anos – não nego, porém, que algumas cenas têm, sim, um ar datado.
Quando digo que Laranja Mecânica mudou minha vida, me refiro especificamente ao fato de que o filme fez com que eu olhasse com mais atenção à Sétima Arte. Hoje em dia, afirmo com a maior certeza do mundo que o cinema é a minha maior paixão, e grande parte dessa fascinação começou com a filmografia do Kubrick – ainda em 2013 eu vi o já mencionado O Iluminado e Nascido para Matar; esse em questão foi bem no finalzinho do ano, justamente no período em que "comecei a gostar de cinema" –, sem ter a menor ideia de que todos eram do mesmo diretor – e tendo gostado verdadeiramente deles. Quando me toquei que Stanley Kubrick assinava a direção dos três, foi amor à primeira vista. Naquele dia decidi que Kubrick seria o meu cineasta favorito, e nem precisei fazer esforço para que isso se tornasse real quando assisti as suas demais produções – em especial 2001: Uma Odisseia no Espaço , que foi outra experiência sublime. Até o presente momento, agosto de 2021, sigo falando que ele é o meu diretor preferido – e não é da boca pra fora por ele ser um diretor cultuado ou porque não quero assumir que mudei de opinião, mas porque "descobrir o cinema" através de seus filmes foi algo mágico para mim.
Há 8 anos, depois de terminar Laranja Mecânica, eu não tinha como saber que, no futuro, estaria trabalhando para uma empresa de mídia física (a Versátil Home Video), escrevendo sobre os lançamentos e recebendo, mensalmente, dezenas de pérolas em minha casa em DVD e Blu-ray – a mídia física vive! –, mas nos meses seguintes eu já desejava estar envolvido, mesmo que indiretamente, com o cinema. Em 2016, escolhi cursar Publicidade e Propaganda por achar que seria uma área "próxima" à produção audiovisual. De fato pode até ser, mas eu acabei indo para o caminho contrário e quis focar na parte de redação publicitária/criação de conteúdo... Mas a vida dá voltas e prepara (boas) surpresas. Estou na Versátil desde junho de 2020, e a cada dia mais me apaixono por cinema.
Se eu não tivesse assistido e me impactado tanto com Laranja Mecânica na adolescência, talvez o ímpeto de descobrir mais filmes não existisse – ou, mais racionalmente, uma outra produção cumpriria esse papel de "me impressionar" cedo ou tarde, e eu a consideraria como o filme que mudou minha vida. Enfim... jamais saberei. De toda forma, não tem como não ser grato à filmografia do Kubrick por tudo que ela me proporcionou. Ao meu ver, essa é a verdadeira magia do cinema: ele é capaz de atingir seu público das mais diversificadas formas, e no final das contas, o que vale é isso: a sua experiência. Pouco importa se um filme é clássico ou não, quando você se depara com algo que te toque e te marque, sua vida jamais será a mesma.
Assisti a este filme pela primeira vez no início de 2015. Naquele momento, era minha terceira gratificante experiência com o cinema de Wim Wenders. Dentre os três que eu havia visto até então, "Paris, Texas" foi certamente o que mais mexeu comigo. Dois anos depois, decidi rever o filme. Algo dentro de mim dizia que eu precisava conferir essa obra mais uma vez. De janeiro de 2015 a janeiro de 2017 (época da revisão) o filme ficava martelando na minha cabeça, até que finalmente (e merecidamente) reencontrei Travis e sua família.
Particularmente, considero "Paris, Texas" uma das obras mais sensíveis do cinema. Mais uma vez deixando meu lado pessoal falar mais alto, eu criei uma simpatia enorme com Travis. Era como se, de alguma forma, eu sentisse o vazio do personagem. Aquele vazio que já o vinha consumindo e se materializou de vez quando partiu e deixou tudo para trás. E tudo, para Travis, era apenas dois nomes: Hunter (filho) e Jane (mulher).
Durante boa parte do filme, não sabemos como é Jane, por onde ela anda ou o que ela faz. Sabemos apenas que mensalmente ela envia dinheiro para seu filho Hunter, que desde a partida de Travis e Jane está sob os cuidados dos tios. A primeira aparição de Jane ocorre em um momento em que Travis, o irmão, a cunhada e o filho estão vendo umas antigas fitas caseiras. É um momento misto de dor e alegria. Dor porque é difícil olhar para o passado e perceber que não é possível voltar atrás, e alegria porque, naquela época, eles eram felizes. Mas a felicidade nas fitas não condiz com o que Travis sente agora.
A trama continua e Travis tenta, aos poucos, reconquistar a confiança de seu filho e reencontrar sua ex-mulher. O vazio de Travis só poderia estar completo quando ele reencontrasse Jane e falasse com ela novamente.
Como era de se esperar, o ritmo do filme flui sem pressa. Wenders não se incomoda em criar um ritmo dinâmico, até porque não se encaixaria com o estilo do filme. Um momento importante sobre essa relação de "reconquistar a confiança de Hunter" é quando Travis vai até a escola do menino para buscá-lo e levá-lo de volta para casa.
Na primeira tentativa, ainda estranhando a presença de seu pai verdadeiro, Hunter prefere voltar de carro com um colega de classe. Nós, como espectadores, ficamos tristes por Travis ser rejeitado pelo próprio filho, mas ao mesmo tempo, não julgamos a atitude do menino, que fora abandonado pelo pai e pela mãe.
Na segunda, porém, Hunter aceita voltar com seu pai. Durante esse trajeto de volta não há diálogo entre os dois. Mas eles trocam sorrisos e interagem. Mesmo que os dois estivessem em lados opostos da rua, eles estão conectados depois de muito tempo, e o espectador torce - e se alegra - ao ver o relacionamento dos dois caminhando. Dentre diversas cenas para "conhecermos" mais nosso personagem principal, e depois de aproximadamente 1h30 de filme, chega a hora de pôr o pé na estrada e ir à procura de Jane.
Travis e Hunter (que decide acompanhar seu pai na viagem) partem em busca da mulher da vida dos dois, que está vivendo em Houston. O plano era o seguinte: viajar da Califórnia a Houston e esperar que Jane fizesse o depósito mensal para Hunter no banco (ela sempre fazia o depósito no início do mês, então eles tinham essa estimativa de quando e como encontrá-la).
Hunter espera em uma posição fora do carro, enquanto Travis fica no veículo, não muito afastado, pois não pode tirar o olho de Hunter. O tempo passa e é aí que finalmente Hunter reconhecesse sua mãe dentro de um carro vermelho. Entusiasmado, ele avisa ao pai rapidamente - que está cochilando dentro do carro. A perseguição começa e os leva até o local de trabalho dela.
Jane está trabalhando em um estabelecimento em que ela, atrás de uma cabine, "conversa" com quem está do outro lado. Os clientes conseguem ver perfeitamente a moça com quem estão se relacionando, mas tudo o que elas podem ver são o reflexo de si mesma. Não sei bem como explicar o que esse cenário causa em mim, mas diria que é um certo desconforto. É uma situação extrema de solidão, que é essencial à proposta do filme. Solidão tanto por parte de quem precisa ir à cabine para se relacionar quanto por parte das funcionárias, que são observadas por um estranho e pretendem estar interessadas para agradá-lo. É uma solidão conjunta. Mesmo em situações onde estamos cercados por outra(s) pessoa(s), às vezes nos sentimos vazios e desligados.
Ao chegar no local, somente Travis entra no estabelecimento e pede para que Hunter fique esperando no carro. Ele vai em direção à cabine de Jane, senta na cadeira e trava. Para ele, é difícil falar. Após tantos anos sozinho, reencontrar a ex-esposa é um impacto enorme. Sem saber que o pai de seu filho e o ex-amor de sua vida está do outro lado, apenas Jane conversa.
Sem mais nem menos, Travis abandona o local e deixa Jane falando sozinha. A vontade de encontrá-la era maior que tudo, mas faltou coragem para quando isso acontecesse. Todo o roteiro que ele tinha em mente vai por água abaixo em segundos, porque a vida é assim: o seu planejamento não significa que será real quando o momento chegar. Talvez ele idealizasse tanto esse momento que, no fundo, ele não queria que se tornasse verdade e preferiria que ficasse apenas em seu imaginário - e nas (boas) memórias do passado.
Mesmo assim, ele volta lá no dia seguinte. E dessa vez, diz tudo o que tem para dizer. Vira-se de costas a ela (estar de frente a alguém que você tanto amou depois de anos não deve ser simples), pega o telefone e começa a contar sua história. O relato dura em torno de 20 minutos, e, pra mim, ali nasceu uma das cenas mais lindas do cinema.
Nesses minutos finais de filme, a história de Travis e Jane toma conta e podemos, enfim, conhecê-los. É possível ver quando e como o relacionamento deles desmoronou. Acompanhamos de perto as reações de Jane ao descobrir pouco a pouco que aquela história não era apenas uma coincidência, mas sim a história de parte da sua vida. As lágrimas caem de seus olhos ao perceber que quem está do outro lado não é um cliente qualquer, mas sim seu ex-marido.
Mas não é apenas o relato de Travis que a gente escuta. Wenders ainda nos dá o prazer de ouvir o depoimento de Jane, que ainda emocionada com a situação, diz a Travis que durante muito tempo, a voz de todos os homens com quem ela conversava era igual a voz dele. Tudo relembrava o seu grande amor no início após a fuga, mas um dia a gente se acostuma, e tudo aquilo que nós lembrávamos com tanta clareza se torna um borrão. Por mais que tentemos lembrar, nem sempre conseguiremos. E esse é um dos grandes feitos de "Paris, Texas". Mostrar os relacionamentos como muitas vezes eles são: intensos e destrutivos.
Em meio a um passado tão amargo, eles vivenciaram o amor. O amor que destrói. O amor que corrompe o homem. O amor que se torna ciúme e beira o doentio. Mas esse amor, e arrependimento, também transformou Travis em um homem melhor tanto no passado quanto no presente - e certamente, no futuro. Todos nós cometemos erros. Não justificando as atitudes de Travis, porque ele não estava certo, mas é difícil não perdoá-lo ao ouvir tudo aquilo. Sabemos que ele não foi o melhor marido do mundo e nem Jane foi a melhor esposa e mãe. A inexperiência dela junto à imaturidade, problemas alcoólicos e à desconfiança dele deram fim no que poderia ter sido um relacionamento para a vida toda.
Por fim: "Paris, Texas" é um road movie que vai muito além da estrada. Não se trata de um carro percorrendo caminhos. É, na verdade, um road movie humano, onde somos submetidos e imersos em nossas lembranças e memórias, oferecendo uma experiência única e uma viagem a nossos relacionamentos. Traz a nós todas as alegrias e tristezas que a vida pode nos proporcionar. O amor, a decepção e a redenção caminham na mesma linha aqui.
Se em muitos filmes a felicidade é o que há de mais belo e confortante, em "Paris, Texas" a solidão, o vazio e apenas as recordações do que um dia fora perfeito é o que há de mais verdadeiro.
Um dos melhores filmes que já assisti. Hannibal é um gênio, mais do que isso, ele é um gênio assassino. Um Dr. canibal. Atuações excelentes e um roteiro impecável.
Um homem normal com uma família normal, até que a solidão; isolamento muda tudo. Simplesmente genial. Vindo de Kubrick e baseado na obra de Stephen King só poderia sair uma obra prima.
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Um Homem, Uma Mulher
4.1 87Entre olhares e sorrisos
Se tem uma coisa que admiro é quando um romance consegue transmitir mais uma sensação de realidade do que ficção. Não é que eu não goste de histórias que fujam dessa lógica mais realista, mas é que é tão bom poder acompanhar o desenvolvimento natural do amor entre as personagens em cena. No cinema antigo, sobretudo ali na primeira metade do século XX, não faltam casos de "amor à primeira vista" que sequer fazem sentido (pelo menos para os dias atuais). O personagem X encontra a personagem Y e, de repente, estão apaixonados e agendando o casamento para o dia seguinte. Esse tipo de situação dá até pra relevar, levando em consideração que muitos romances eram curtos e não tinham tempo suficiente para desenrolar a paixão com mais cautela. No caso de Um Homem, uma Mulher, assim como em Antes do Amanhecer, acho que os diretores foram muito felizes em conseguir trazer justamente essa química entre os atores. Em menos de 120 minutos, Claude Lelouch tornou possível acreditar que Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Anouk Aimée) sentiam uma forte atração um pelo outro. Um sentimento que foi crescendo ao longo das três semanas que marcam do momento em que se encontraram pela primeira vez à noite em que dormiram juntos. Em Antes do Amanhecer, o espaço para Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) é ainda menor: menos de 24 horas. Mas é aí que entra a tal "realidade" nos dois filmes.
Diferente do que aconteceria nos anos 40, Jean-Louis e Anne só vão trocar o primeiro beijo nos 20 minutos finais. Jesse e Céline também não se entregam de cara à atração puramente física que tiveram quando se conheceram no trem. Os cineastas dão tempo para que o casal se conheça e, enfim, presenteiam o público com o momento romântico que esperávamos tanto quanto suas personagens. Por coincidência, Um Homem, uma Mulher e Antes do Amanhecer fazem parte de uma trilogia separada por longos anos – muitos antes de Richard Linklater trazer de volta a dupla que lançou de vez sua carreira, Lelouch já fazia isso em 1986 com a continuação Um Homem, uma Mulher: 20 Anos Depois. Infelizmente, nem esse filme dos anos 80 e nem o encerramento da trilogia (Os Melhores Anos de uma Vida, 2019) chegam aos pés do original. Ao contrário de Linklater, Lelouch jamais conseguiu chegar perto do sucesso de Um Homem, uma Mulher.
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (atual Melhor Filme Internacional) e da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Um Homem, uma Mulher é um filme construído por pequenos detalhes. O casal principal, na casa dos 35 anos, é formado por dois pais que já têm uma experiência de vida (e amorosa) relativamente longa. Porém, a troca de sorrisos genuínos e incontroláveis, a timidez, o desvio de olhar e a aquela insegurança em tocar ou não tocar a mão (ou o ombro) da amada faz com que pareça que eles são dois adolescentes descobrindo o primeiro amor. E é lindo ver isso em cena. Mais uma vez trazendo Antes do Amanhecer como referência, é difícil não lembrar da tentativa e do recuo de mãos de Jesse ao tocar os cabelos de Céline.
À época das gravações de Um Homem, uma Mulher, Lelouch era um cineasta que sequer tinha completado 30 anos, o que contrasta, de certa forma, com a maturidade com a qual ele conduz o drama/romance. Em uma entrevista realizada nos bastidores, o cineasta diz este filme é o oposto daquilo que aconteceria de verdade em sua vida (ainda que ele desejasse), pois ele não era gentil/terno o suficiente para viver uma paixão assim tão delicada. É interessante ver esse pensamento partindo do próprio diretor, pois quando assistimos ao making of da produção, percebemos o cuidado e a dedicação de Lelouch em fazer com que tudo pareça o mais natural possível – para que mais pessoas, como ele, pudessem se identificar e sonhar com esta apaixonante história de amor. Sobre essa dose de realismo que o filme traz, o diretor nos conta que ele não regravava a mesma cena incontáveis vezes, o que permitia ações e diálogos menos mecânicos e mais dinâmicos. Quando era necessária uma segunda (ou terceira) tomada, Trintignant aponta que ela nunca era idêntica à anterior.
Segundo Lelouch, a direção dos atores era feita pouco antes da cena ser gravada (e sem a câmera estar ligada). Ele dava uma instrução específica a Trintignant e outra um pouco diferente à Aimée de modo que um pudesse pegar o outro de surpresa. Não é à toa que em alguns momentos podemos ver um pequeno atropelamento nos diálogos (algo normal de acontecer no dia a dia). Mais do que isso, vemos que os diálogos parecem sair de duas pessoas que querem mesmo se conhecer. Sem frase de efeito. Sem um roteiro pré-programado a ser seguido. Para destacar um momento em especial, fico com a sequência do restaurante, que é de uma simplicidade pura. Os quatro (Jean-Louis, Anne, Antoine e Françoise), à mesa, parecem felizes por estarem ali ao mesmo tempo em que é uma situação nova para eles.
Anne pede que Jean-Louis fale sobre sua profissão e é imediatamente interrompida por Antoine (o filho de Jean-Louis, de uns 5 anos), que fala sobre o que quer ser quando crescer. Esse atravessamento, vindo de uma criancinha, é crível. Logo depois, o menino pede uma Coca-Cola em espanhol a pedido do pai, que se orgulha ao contar à pretendente que seu filho sabe um pouco de inglês e espanhol. É aqui, nas entrelinhas e no sutil, que os personagens passam a se conhecer melhor. Não se trata de os adultos se conhecerem apenas. Os filhos também desempenham um papel importante para esta descoberta, pois a essa altura, no nosso imaginário, já torcemos para que os quatro virem uma família.
Quando Anne finalmente diz a Jean-Louis que o ama, e os dois conseguem ficar a sós num quarto, somos atingidos por um choque de realidade. Ao começar a cena (implícita) de sexo entre eles, percebemos no olhar e nas reações de Anne que algo está errado. O diretor, então, intercala a relação sexual com os momentos felizes da mulher com seu falecido marido. Fica claro nesta cena a complexidade de um sentimento que é muitas vezes banalizado nos cinemas. Ao se entregar e permitir amar de novo, Anne concretiza que seu ex-marido ainda não morreu para ela, mas ao mesmo tempo sabe que sua paixão por Jean-Louis é verdadeira, e que ela tem o direito de seguir em frente. A vida, e os nossos desejos, nem sempre são tão simples e fáceis quanto gostaríamos.
Ao subir sozinha no trem, Anne parece estar arrependida e decepcionada com si própria por não ter dado certo (e nós também ficamos tristes, apesar de que a situação é totalmente compreensível). Entre takes dela pensativa no vagão e de Jean-Louis pensando alto em seu carro, tudo nos leva a crer que eles vão se reencontrar e tentar mais uma vez – dito e feito. O abraço dos dois na estação aquece o nosso coração e deixa em aberto para que o espectador crie um final para esse casal. Como diria Lelouch, quanto mais frio é o filme (e Um Homem, uma Mulher é rondado por neblina e chuva), mais nós queremos o calor da paixão. Mesmo tendo assistido às duas continuações, prefiro fingir que elas não existem e acreditar que Jean-Louis e Anne viveram felizes e juntos por muito tempo. Aqui, abro um pouco a mão da realidade e opto pela fantasia do final feliz de um amor eterno.
Parque da Punição
4.3 18Consigo entender perfeitamente o motivo pelo qual alguém não gostaria do filme, mas sigo achando extremamente importante e corajoso mesmo depois de quase três anos desde a minha primeira sessão. Lembro de ter lido uma vez que "o tom ativista é ultrapassado para os dias atuais". Ultrapassado? Antes fosse. Há 50 anos o filme era lançado, criticado, atacado e restrito nas salas de cinema dos EUA por ser taxado como uma propaganda política comunista para alguns. Com pesar, Punishment Park segue atual, e não datado. Nem de longe acho que Peter Watkins "exagerou" na premissa e na execução. O cenário fictício que ele propõe está distante, à risca, da nossa realidade, o que não significa que outras formas de punição (mais severas ou mais leves) não sejam aplicadas injustamente aos rebeldes.
No fundo, sabemos que esse pseudodocumentário não é tão falso quanto gostaríamos. Ou, pelo menos, deveríamos saber. Impossível não assistir ao filme e não lembrar do (triste) período em que estamos vivendo no Brasil. Um bando de velhos e """'cidadãos de bem"""' (cujo viés político sequer precisa ser mencionado) sentenciando jovens a penas absurdas por seus crimes contra o governo americano à medida que a verdade deles é irredutível e que seu soberano país deve estar acima de tudo e de todos. Você deve lutar na guerra pelo seu país. Você deve morrer pelo seu país. Você deve defender o seu país. A troco de quê? Não te deixam pensar. Não te deixam ter opinião própria. Se você alega ter, eles já têm respostas pré-programadas afirmando que fulaninho que te influenciou a pensar dessa forma. Você está errado, não a gente. "Meus filhos nunca seriam assim". "A educação que eu dei para eles é diferente", eles dizem.
É realmente deprimente (gostaria até de dizer "engraçado" como eufemismo, porém só é triste mesmo) ver como o mundo não evoluiu e como o alto escalão continua batendo na tecla de que todo mundo que se opõe a eles é comunista – culpa da China soberana que faz uma lavagem cerebral na nossa juventude. Há um diálogo, entre tantos outros que eu poderia citar, que acho precioso em Punishment Park porque mostra como as notícias falsas e o sensacionalismo criam um universo completamente paralelo àqueles que só veem o próprio umbigo. O opressor diz à moça julgada que A gente constrói escolas para nossos filhos e vocês a queimam; destroem. Ela responde que isso é invenção da mídia; que eles não agem assim. É evidente que não podemos ser ingênuos e esquecer que existem extremistas em qualquer lado espectro político – dentro do filme, Watkins traz personagens que são 100% contra a violência e outros que acreditam que a única forma de se conseguir algo é apostando na mesma moeda com a qual a polícia e o governo (n)os trata(m) (a repressão, as armas); que somente dessa forma poderia existir uma revolução capaz de mudar o país. Aqui, inclusive, acho que está um dos grandes pontos positivos de Punishment Park. O diretor define claramente qual é a sua posição em relação ao que está sendo evidenciado em cena, e dentro de sua escolha, ele não tem medo de expor as múltiplas facetas dos diferentes grupos de prisioneiros que lutam por objetivos iguais ou semelhantes. O inimigo é o mesmo; o caminho, não.
Aos que estão lendo este texto sem terem assistido ao filme: vejam sabendo que é uma história injusta. Fiquem tranquilos que não é um spoiler. Logo no início do filme você já sabe que os prisioneiros têm que percorrer mais de 80 km sob o sol escaldante do deserto durante 3 dias/2 noites, sem direito à água até metade do caminho, para chegarem à bandeira dos Estados Unidos e serem libertados. Se porventura fracassarem, ou forem pegos pelos policiais em treinamento no campo que são instruídos a atirarem sempre que se sentirem ameaçados/não forem obedecidos/sempre que quiserem porque quem manda ali são as armas e suas respectivas balas, os acusados deverão cumprir a pena estabelecida pelo juiz. Essa é a forma de reeducação do governo aos prisioneiros que optaram pelo "parque da punição" em vez de aceitarem as sentenças de 5, 7, 10, 20 anos por ameaçarem o bem-estar da nação. Sim, surpreendentemente eles te dão a chance de você fazer uma escolha em que a resposta é praticamente óbvia: correr o risco de sobreviver 3 dias em situação precária, caminhando dezenas de quilômetros por dia, ou ficar encarcerado por duas décadas sob condições igualmente precárias? Ninguém em sã consciência recusaria tentar a sorte no parque da punição. Enfim... Vá sabendo que você se sentirá impotente. Vá sabendo que é revoltante. Vá sabendo que muitas das injustiças aqui são reais.
Paisagem na Neblina
4.3 129Um ano e três meses (aproximadamente) separam a minha primeira investida no cinema do grego Theo Angelopoulos e o dia em que escrevo este texto. Para ser mais preciso, 23 de junho de 2020 foi quando "descobri" (entre aspas mesmo, porque já conhecia de nome os trabalhos do diretor há muito tempo) os filmes do cineasta, e minha jornada teve início, justamente, com "Paisagem na Neblina". Por ter sido o meu primeiro contato com sua filmografia, admito ter ficado maravilhado e um pouco perdido ao término da sessão. Não é que o filme seja complexo em sua estrutura narrativa, mas digamos que alguns momentos alegóricos acabaram me deixando confuso. Apenas como exemplos, vale citar (sem spoilers) as cenas das personagens imóveis quando a neve cai (com exceção das crianças); a noiva fugindo do casamento – e sendo resgatada para, então, sair dançando do local com os convidados e seu marido como forma de proporcionar um contraste com as lágrimas de Alexandros (Michalis Zeke) ao ver um animal sofrendo e morrendo – e a mão da estátua sendo resgatada da água. O que elas significam? Cabe a você interpretar.
"Paisagem na Neblina" me marcou tanto na época que eu senti a necessidade de correr atrás de mais filmes do diretor para tentar compreendê-lo. Baixei "A Eternidade e um Dia' logo em seguida e conferi dois dias depois. Novamente, fiquei intrigado. Havia algo no cinema do Angelopoulos que me fascinava, mas me afastava. No dia 28 de novembro de 2020, num tópico do fórum MKO, escrevi o seguinte:
"'Paisagem na Neblina' tem uma cena que me deixou completamente desolado. Quem já viu sabe de qual eu tô falando. Eu só balançava minha cabeça fazendo sinal de 'não' e pensava 'Angelopoulos [...] Você não vai fazer isso...'. Como foi o primeiro do diretor [...] eu não tinha ideia do que esperar, e acabei me surpreendendo. Gostei bastante [mesmo], mas fiquei com um amargo na boca que incomodou.
Depois fui ver 'A Eternidade e um Dia' e a mesma coisa aconteceu. Um gostinho amargo, mas que não tirava a grandeza do filme. A partir daí comecei a perceber o estilo do diretor e pude mergulhar' melhor nos filmes."
Esse quote significa, basicamente, que por mais que o cineasta estabelecesse uma forte conexão comigo, ao mesmo tempo eu ficava com o pé atrás sem saber aonde ele queria me levar. Por mais redundante que pareça (ou talvez nem tanto assim), os filmes do Angelopoulos são gregos até o talo. E esse era o ponto em que eu me desviava levemente de seus roteiros, porque me sentia um peixe fora d'água que estava presenciando algo aquém do meu conhecimento. Mais uma vez, trago as minhas palavras do passado para tentar exemplificar:
"Esses cinco filmes ['Paisagem na Neblina'; 'A Eternidade e um Dia'; 'Viagem a Citera'; 'Um Olhar a Cada Dia'; 'O Vale dos Lamentos'] do Angelopoulos estão no mesmo nível de 'O Espelho', do [Andrei] Tarkovsky, em termos de complexidade na minha opinião. Não obstante, todos soam como filmes pessoais onde o diretor parece ter realizado para ele mesmo. Talvez por isso sejam tão intrigantes e belos.
Já disse outras vezes e volto a dizer: não entendo um filme sequer do Angelopoulos. Claramente há muito simbolismo e referências à história e à cultura grega que eu tenho zero conhecimento. Mesmo assim, me perco em seus longos planos-sequência; em suas cenas de dança; cenas na chuva e nos diálogos teatrais carregados de melancolia."
Após essa tentativa de criar um raciocínio que traduzisse a minha relação com o diretor, volto à obra-prima 'Paisagem na Neblina'. Mesmo estando mais acostumado com o estilo do cineasta grego, revisitar o filme não foi uma tarefa simples. Em meio a uma Grécia polarizada – enquanto as crianças querem sair rumo à Alemanha para encontrarem o pai, dezenas de imigrantes desejam tentar a sorte entrando no país –, o que ganha destaque são os contrastes com os quais Angelopoulos trabalha: o bom e o mau; o ingênuo e o perverso; os artistas contra a indiferença da população; o sonho das crianças contra a dura realidade da vida – e como consequência, o amadurecimento precoce dos dois, além da trágica e irreversível experiência que afeta a pequena Voula (Tania Palaiologou) para sempre. Não importa quantas vezes você tenha visto o filme, a partir do momento em que os irmãos entram naquele caminhão você vai sentir um aperto no peito – e acostume-se, pois o universo do Angelopoulos é recheado de dor, tristeza e desesperança; por motivos diferentes, é claro, mas todos eles capazes de nos arrebatar.
Em uma entrevista concedida no ano passado, a atriz Tania Palaiologou comenta sobre como era trabalhar com Angelopoulos; sobre sua amizade desenvolvida com o ator Michelis Zekis (seu irmão mais novo no filme); sobre Voula, entre outras coisas. Na conversa, Tania explica como
sua personagem se apaixona por Orestis (Stratos Tzortzoglou) mesmo depois de ter sido abusada pelo caminhoneiro. Nas palavras da atriz, em tradução livre, ela diz algo como: "Voula se apaixona por Orestis como uma criança que ainda acredita em conto de fadas. Ela até mesmo está disposta a 'se entregar' a ele, que significava (para Voula) uma passagem da infância à fase adulta [...] Após o abuso, é emocionante ver como ela ainda pode confiar em alguém e se apaixonar".
Ainda usando como base a entrevista, é interessante ouvir os pensamentos de quem esteve presente durante toda a gravação. Mais interessante ainda é ver a própria Tania falando que mesmo depois de assistir ao filme umas dez vezes ela não é capaz de compreender exatamente o que estava na cabeça do Angelopoulos/o que ele queria dizer em determinados momentos. A cada revisita ela tem uma impressão diferente. Daí parte a grandiosidade e a singularidade das obras do diretor.
Se no ano passado eu acabei dando 4/5 para Paisagem na Neblina alegando "não ter compreendido determinadas passagens", hoje asseguro que independente de qualquer coisa, o impacto que este filme me causou (e causa) é maior do que toda metáfora (ou simbolismo) que passou despercebida. Como mencionado parágrafos acima, existe algo no cinema do Angelopoulos que me fascina – e que não me distancia mais. Estou ansioso para revisitar, em especial, A Eternidade e um Dia, sem falar que agora, mais do que nunca, quero conferir os outros trabalhos dele que não vi ainda. Apesar do desconforto causado, Paisagem na Neblina virou um dos filmes da minha vida. Muito obrigado por tudo, Angelopoulos.
Laranja Mecânica
4.3 3,8K Assista AgoraLaranja Mecânica: um filme que mudou a minha vida
Muito já foi dito sobre o clássico Laranja Mecânica. Desde sua estreia, em 1971, espectadores e críticos se propõem a comentar e dissecar a obra. Não tenho o intuito de prestar uma análise técnica nas linhas abaixo – primeiro porque não sei escrever críticas, e segundo porque há centenas de textos com esse objetivo –, mas sim de expor a minha experiência com aquele que considero um dos filmes mais importantes da minha vida. Para isso, precisamos voltar a 2013, ano em que descobri um nome que me perseguiria durante toda a minha jornada cinematográfica: Stanley Kubrick. Nessa época, ainda adolescente (15), eu não dava muita bola para o cinema. Para ser sincero, assistia a filmes numa frequência baixa, e quando os via, minhas prioridades costumavam ser animações, terror e revisitar qualquer coisa que eu havia gostado anteriormente.
Num belo dia, enquanto pesquisava algo para assistir, caí numa lista que recomendava o tal Laranja Mecânica. Após ler a sinopse, achei a proposta, no mínimo, curiosa – o que despertou o meu interesse. Eu não fazia ideia de que era considerado um clássico, e muito menos tinha noção de quem era Kubrick. Como minha memória é um tanto falha, não consigo criar uma linha temporal precisa, então não sei se o meu primeiro contato com o diretor foi aqui ou em O Iluminado. De qualquer forma, fato é que eu não estava muito habituado com um cinema mais antigo – leia-se "qualquer coisa pré-2000". Meses antes, com 14 anos, mas ainda em 2013, larguei Psicose na metade porque era em P&B e eu não conseguia ver o motivo pelo qual o filme era tão aclamado.
Logo no início Laranja Mecânica já tinha me deixado boquiaberto. Minha inexperiência fílmica gritava "como assim era permitido violência e nudez nos anos 70?". Ingenuidade, eu sei. Mas naquele período não me pareceu tão ingênuo assim. Confesso que o choque inicial foi tão grande que eu nem consegui processar o que estava nas entrelinhas – além, é claro, da imaturidade natural da maioria dos adolescentes de 15 anos. Se antes da sessão me preocupei por ser um trabalho "antigo" nem me recordo mais, mas olhando para o filme nos dias atuais, depois de revê-lo por quatro ou cinco vezes, continuo me surpreendendo com o fato de que ele parece ter sido rodado há poucos anos – não nego, porém, que algumas cenas têm, sim, um ar datado.
Quando digo que Laranja Mecânica mudou minha vida, me refiro especificamente ao fato de que o filme fez com que eu olhasse com mais atenção à Sétima Arte. Hoje em dia, afirmo com a maior certeza do mundo que o cinema é a minha maior paixão, e grande parte dessa fascinação começou com a filmografia do Kubrick – ainda em 2013 eu vi o já mencionado O Iluminado e Nascido para Matar; esse em questão foi bem no finalzinho do ano, justamente no período em que "comecei a gostar de cinema" –, sem ter a menor ideia de que todos eram do mesmo diretor – e tendo gostado verdadeiramente deles. Quando me toquei que Stanley Kubrick assinava a direção dos três, foi amor à primeira vista. Naquele dia decidi que Kubrick seria o meu cineasta favorito, e nem precisei fazer esforço para que isso se tornasse real quando assisti as suas demais produções – em especial 2001: Uma Odisseia no Espaço , que foi outra experiência sublime. Até o presente momento, agosto de 2021, sigo falando que ele é o meu diretor preferido – e não é da boca pra fora por ele ser um diretor cultuado ou porque não quero assumir que mudei de opinião, mas porque "descobrir o cinema" através de seus filmes foi algo mágico para mim.
Há 8 anos, depois de terminar Laranja Mecânica, eu não tinha como saber que, no futuro, estaria trabalhando para uma empresa de mídia física (a Versátil Home Video), escrevendo sobre os lançamentos e recebendo, mensalmente, dezenas de pérolas em minha casa em DVD e Blu-ray – a mídia física vive! –, mas nos meses seguintes eu já desejava estar envolvido, mesmo que indiretamente, com o cinema. Em 2016, escolhi cursar Publicidade e Propaganda por achar que seria uma área "próxima" à produção audiovisual. De fato pode até ser, mas eu acabei indo para o caminho contrário e quis focar na parte de redação publicitária/criação de conteúdo... Mas a vida dá voltas e prepara (boas) surpresas. Estou na Versátil desde junho de 2020, e a cada dia mais me apaixono por cinema.
Se eu não tivesse assistido e me impactado tanto com Laranja Mecânica na adolescência, talvez o ímpeto de descobrir mais filmes não existisse – ou, mais racionalmente, uma outra produção cumpriria esse papel de "me impressionar" cedo ou tarde, e eu a consideraria como o filme que mudou minha vida. Enfim... jamais saberei. De toda forma, não tem como não ser grato à filmografia do Kubrick por tudo que ela me proporcionou. Ao meu ver, essa é a verdadeira magia do cinema: ele é capaz de atingir seu público das mais diversificadas formas, e no final das contas, o que vale é isso: a sua experiência. Pouco importa se um filme é clássico ou não, quando você se depara com algo que te toque e te marque, sua vida jamais será a mesma.
Um filme pode mudar uma vida.
Paris, Texas
4.3 696 Assista AgoraTexto gigantesco sobre minha experiência com um dos filmes mais lindos que já vi na vida.
O meu reencontro com Travis, Hunter e Jane.
Assisti a este filme pela primeira vez no início de 2015. Naquele momento, era minha terceira gratificante experiência com o cinema de Wim Wenders. Dentre os três que eu havia visto até então, "Paris, Texas" foi certamente o que mais mexeu comigo. Dois anos depois, decidi rever o filme. Algo dentro de mim dizia que eu precisava conferir essa obra mais uma vez. De janeiro de 2015 a janeiro de 2017 (época da revisão) o filme ficava martelando na minha cabeça, até que finalmente (e merecidamente) reencontrei Travis e sua família.
Particularmente, considero "Paris, Texas" uma das obras mais sensíveis do cinema. Mais uma vez deixando meu lado pessoal falar mais alto, eu criei uma simpatia enorme com Travis. Era como se, de alguma forma, eu sentisse o vazio do personagem. Aquele vazio que já o vinha consumindo e se materializou de vez quando partiu e deixou tudo para trás. E tudo, para Travis, era apenas dois nomes: Hunter (filho) e Jane (mulher).
Durante boa parte do filme, não sabemos como é Jane, por onde ela anda ou o que ela faz. Sabemos apenas que mensalmente ela envia dinheiro para seu filho Hunter, que desde a partida de Travis e Jane está sob os cuidados dos tios. A primeira aparição de Jane ocorre em um momento em que Travis, o irmão, a cunhada e o filho estão vendo umas antigas fitas caseiras. É um momento misto de dor e alegria. Dor porque é difícil olhar para o passado e perceber que não é possível voltar atrás, e alegria porque, naquela época, eles eram felizes. Mas a felicidade nas fitas não condiz com o que Travis sente agora.
A trama continua e Travis tenta, aos poucos, reconquistar a confiança de seu filho e reencontrar sua ex-mulher. O vazio de Travis só poderia estar completo quando ele reencontrasse Jane e falasse com ela novamente.
Como era de se esperar, o ritmo do filme flui sem pressa. Wenders não se incomoda em criar um ritmo dinâmico, até porque não se encaixaria com o estilo do filme. Um momento importante sobre essa relação de "reconquistar a confiança de Hunter" é quando Travis vai até a escola do menino para buscá-lo e levá-lo de volta para casa.
Na primeira tentativa, ainda estranhando a presença de seu pai verdadeiro, Hunter prefere voltar de carro com um colega de classe. Nós, como espectadores, ficamos tristes por Travis ser rejeitado pelo próprio filho, mas ao mesmo tempo, não julgamos a atitude do menino, que fora abandonado pelo pai e pela mãe.
Na segunda, porém, Hunter aceita voltar com seu pai. Durante esse trajeto de volta não há diálogo entre os dois. Mas eles trocam sorrisos e interagem. Mesmo que os dois estivessem em lados opostos da rua, eles estão conectados depois de muito tempo, e o espectador torce - e se alegra - ao ver o relacionamento dos dois caminhando. Dentre diversas cenas para "conhecermos" mais nosso personagem principal, e depois de aproximadamente 1h30 de filme, chega a hora de pôr o pé na estrada e ir à procura de Jane.
Travis e Hunter (que decide acompanhar seu pai na viagem) partem em busca da mulher da vida dos dois, que está vivendo em Houston. O plano era o seguinte: viajar da Califórnia a Houston e esperar que Jane fizesse o depósito mensal para Hunter no banco (ela sempre fazia o depósito no início do mês, então eles tinham essa estimativa de quando e como encontrá-la).
Hunter espera em uma posição fora do carro, enquanto Travis fica no veículo, não muito afastado, pois não pode tirar o olho de Hunter. O tempo passa e é aí que finalmente Hunter reconhecesse sua mãe dentro de um carro vermelho. Entusiasmado, ele avisa ao pai rapidamente - que está cochilando dentro do carro. A perseguição começa e os leva até o local de trabalho dela.
Jane está trabalhando em um estabelecimento em que ela, atrás de uma cabine, "conversa" com quem está do outro lado. Os clientes conseguem ver perfeitamente a moça com quem estão se relacionando, mas tudo o que elas podem ver são o reflexo de si mesma. Não sei bem como explicar o que esse cenário causa em mim, mas diria que é um certo desconforto. É uma situação extrema de solidão, que é essencial à proposta do filme. Solidão tanto por parte de quem precisa ir à cabine para se relacionar quanto por parte das funcionárias, que são observadas por um estranho e pretendem estar interessadas para agradá-lo. É uma solidão conjunta. Mesmo em situações onde estamos cercados por outra(s) pessoa(s), às vezes nos sentimos vazios e desligados.
Ao chegar no local, somente Travis entra no estabelecimento e pede para que Hunter fique esperando no carro. Ele vai em direção à cabine de Jane, senta na cadeira e trava. Para ele, é difícil falar. Após tantos anos sozinho, reencontrar a ex-esposa é um impacto enorme. Sem saber que o pai de seu filho e o ex-amor de sua vida está do outro lado, apenas Jane conversa.
Sem mais nem menos, Travis abandona o local e deixa Jane falando sozinha. A vontade de encontrá-la era maior que tudo, mas faltou coragem para quando isso acontecesse. Todo o roteiro que ele tinha em mente vai por água abaixo em segundos, porque a vida é assim: o seu planejamento não significa que será real quando o momento chegar. Talvez ele idealizasse tanto esse momento que, no fundo, ele não queria que se tornasse verdade e preferiria que ficasse apenas em seu imaginário - e nas (boas) memórias do passado.
Mesmo assim, ele volta lá no dia seguinte. E dessa vez, diz tudo o que tem para dizer. Vira-se de costas a ela (estar de frente a alguém que você tanto amou depois de anos não deve ser simples), pega o telefone e começa a contar sua história. O relato dura em torno de 20 minutos, e, pra mim, ali nasceu uma das cenas mais lindas do cinema.
Nesses minutos finais de filme, a história de Travis e Jane toma conta e podemos, enfim, conhecê-los. É possível ver quando e como o relacionamento deles desmoronou. Acompanhamos de perto as reações de Jane ao descobrir pouco a pouco que aquela história não era apenas uma coincidência, mas sim a história de parte da sua vida. As lágrimas caem de seus olhos ao perceber que quem está do outro lado não é um cliente qualquer, mas sim seu ex-marido.
Mas não é apenas o relato de Travis que a gente escuta. Wenders ainda nos dá o prazer de ouvir o depoimento de Jane, que ainda emocionada com a situação, diz a Travis que durante muito tempo, a voz de todos os homens com quem ela conversava era igual a voz dele. Tudo relembrava o seu grande amor no início após a fuga, mas um dia a gente se acostuma, e tudo aquilo que nós lembrávamos com tanta clareza se torna um borrão. Por mais que tentemos lembrar, nem sempre conseguiremos. E esse é um dos grandes feitos de "Paris, Texas". Mostrar os relacionamentos como muitas vezes eles são: intensos e destrutivos.
Em meio a um passado tão amargo, eles vivenciaram o amor. O amor que destrói. O amor que corrompe o homem. O amor que se torna ciúme e beira o doentio. Mas esse amor, e arrependimento, também transformou Travis em um homem melhor tanto no passado quanto no presente - e certamente, no futuro. Todos nós cometemos erros. Não justificando as atitudes de Travis, porque ele não estava certo, mas é difícil não perdoá-lo ao ouvir tudo aquilo. Sabemos que ele não foi o melhor marido do mundo e nem Jane foi a melhor esposa e mãe. A inexperiência dela junto à imaturidade, problemas alcoólicos e à desconfiança dele deram fim no que poderia ter sido um relacionamento para a vida toda.
Por fim: "Paris, Texas" é um road movie que vai muito além da estrada. Não se trata de um carro percorrendo caminhos. É, na verdade, um road movie humano, onde somos submetidos e imersos em nossas lembranças e memórias, oferecendo uma experiência única e uma viagem a nossos relacionamentos. Traz a nós todas as alegrias e tristezas que a vida pode nos proporcionar. O amor, a decepção e a redenção caminham na mesma linha aqui.
Se em muitos filmes a felicidade é o que há de mais belo e confortante, em "Paris, Texas" a solidão, o vazio e apenas as recordações do que um dia fora perfeito é o que há de mais verdadeiro.
O Silêncio dos Inocentes
4.4 2,8K Assista AgoraUm dos melhores filmes que já assisti. Hannibal é um gênio, mais do que isso, ele é um gênio assassino. Um Dr. canibal. Atuações excelentes e um roteiro impecável.
O Iluminado
4.3 4,0K Assista AgoraUm homem normal com uma família normal, até que a solidão; isolamento muda tudo. Simplesmente genial. Vindo de Kubrick e baseado na obra de Stephen King só poderia sair uma obra prima.