Embora seja uma discussão absolutamente necessária em nosso tempo, entender este filme apenas como uma apologia à naturalização do estupro pode ser uma perspectiva limitada. Sem desmerecer esse debate, acredito que contribui bastante trazer a filosofia de Nietzsche à crítica de "Elle": “Minha doutrina ensina: vive de tal maneira que devas desejar reviver, é o dever”. Com alguns elementos dessa filosofia – anti-cristã, inclusive, assim como o filme –, pode-se aprofundar o debate moral que envolve Michèle, ao se analisar a sua relação com seus desejos, a sua relação com o outro e o seu modo de viver a vida.
Não vejo um descolamento forte entre a sua moral e os seus desejos – quando ela afirma a Patrick que o que estão fazendo é muito perverso, logo em seguida o fazem novamente, ou seja, o julgamento moral sucumbe imediatamente ao desejo. A propósito, se ela quer transar com o marido da vizinha, o faz; se quer saber quem é o estuprador, manda hackear os computadores, mesmo que acesse informações privadas; se não quer ver o pai, não o faz; se quer transar com o marido da colega, o faz. Nesse caso, inclusive, ainda que ela diga que não irá mais fazer, o faz. Isso porque Michèle vive a vida na vida, e não fora dela: não adianta ela negar o seu desejo em um futuro, pois, se no momento ela quiser, ela irá fazer, mesmo tendo dito que não iria fazer. Isso, ao limite, implica um severo descompromisso com o outro, já que Michèle atropela quem for necessário para vivenciar os seus desejos de determinado momento. Pode-se entender, então, que o “dever” de Michèle não é formado pelas regras tradicionais da sociedade, e, sim, pelos seus desejos. O interessante é que o filme radicaliza esse pensamento, uma vez que Michèle encontra entre os seus desejos justamente uma relação sexual que não seria de acordo com o seu desejo! Não se pode negar que ela até brinca com isso, afinal, quando consente com a transa, percebe que Patrick para, e, em seguida, para Patrick continuar, bate nele demonstrando não consentimento. Nesse momento, portanto, é novamente ela quem está no controle, ainda que embaixo. Isso não pode, de modo nenhum, ser levado a conclusões gerais: “toda mulher gosta disso”. Nem um homem, ao ver o filme, pode achar que mulheres gostam de sexo à força. O homem que faz esse tipo de dedução é estúpido, pois banaliza o tema do estupro e suas diversas facetas cotidianas. Uma vez sublinhado isso, o que deve ser especialmente focalizado na análise de "Elle" é a moral da personagem Michèle, aliás, coerente do início ao fim do filme, uma moral estritamente relacionada a seus desejos, o que implica o descompromisso com o outro, enquanto uma das formas de viver a vida na vida – só não se pode afirmar se Michèle diagnostica bem os seus desejos, ou seja, se são desejos pueris, ou se são desejos merecedores do "eterno retorno". Obs.: se toda essa perspectiva moral dessa personagem é fruto da imaginação de um homem branco, a qual jamais ocorreria na mente de uma mulher, é também um debate importante. Só tentei focar a moral da personagem Michèle, entendendo-a como um ser único, e de modo nenhum metáfora de todas as mulheres.
A cena em que Jacqueline amarra o filho na cama tem um poder simbólico muito forte dentro do filme. É ali que ela tenta, mas depois vai perceber, que não adianta prender alguém para se ter seu amor. O filme me surpreendeu ao se tratar não de duas histórias, mas de uma história, a qual, gerada por um tópico espírita, foi narrada como deveria ser, de modo fragmentado, diluindo e unindo a trama. Jacqueline, agora ex-mulher de quem na outra encarnação foi seu filho, levou uma vida para compreender que amor não é posse, que não se obriga alguém a lhe amar com a reciprocidade esperada, e, finalmente aceitando essa condição, reconheceu o valor da liberdade, enquanto autonomia de escolha.
Como alguns já disseram aqui, é um filme o qual se vai absorvendo aos poucos, e que merece ser revisto outras vezes, devido a sutileza de inúmeras referências que se casam ao longo das três partes. É um filme de retrato, amostra das relações interpessoais - ou entre papéis sociais - especialmente da classe média. (entre os diversos retratos, cativa o relacionamento entre João e Sofia: intenso, não superficial, curto e... descartável?) A sonoplastia tem destaque no filme, e, levando em consideração o título dele, me intrigou quanto à sua função. Os ruídos amplificados que por vezes nos passam despercebidos pode ser uma metáfora dos conflitos latentes que o filme retrata e estão ao nosso redor, sem que nos déssemos conta. Infelizmente, quem deveria assistir a esse filme provavelmente não assistirá - e se for ao cinema, sairá no meio da sessão.
O filme mostra de modo bastante sensível como o corpo pode ser uma limitação, mas não uma prisão - para quem não se deixa aprisionar. E o quanto é excepcional o desejo de Philippe em ser tratado como um ser humano qualquer? Um desprezo ao politicamente correto, cadeira de rodas dos que se deixam aprisionar.
Me pareceu que a trama apresentou diversos problemas - como um garoto tão obcecado e disciplinado não teria visto o "Black" no envelope, ou o número de telefone no recorte de jornal? São detalhes, mas mostram um caráter apelativo em criar suspense e drama. Ainda assim, há cenas sutis e muito perspicazes; lembro-me do momento em que Thomas pula do balanço, símbolo de sua coragem e metáfora de sua morte. O que mais me interessou é como o filme trabalha a ideia de que há situações que não tem significado, explicação e que jamais teremos como entender.
Este filme me lembrou de uma frase, que a civilização é a institucionalização da barbárie. A linguagem simultaneamente mascara e provoca os mais diversos instintos dos quatro personagens - o que exigiu e foi bem recompensando com o trabalho dos atores escolhidos, em especial Christoph Waltz. O roteiro trabalhou uma história em espiral, não se mudou o fato ocorrido, mas cada palavra, entonação, olhar e gesto, transformava e revelava os pontos de vista.
Gostei do filme, achei que Tarantino explorou muito bem recursos simples. Não há também como não destacar a trilha sonora e a atuação (esta, talvez, mais atraente que os próprios personagens, não sei)! Me pareceu, no entanto, que as mais interessantes questões ficaram sob o sangue - ainda que todo aquele sangue seja uma das questões. Em especial, a cena dos encapuzados é muito boa! Sobre a história de amor - motor do filme - ainda não sei o que dizer aqui hehe
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Elle
3.8 886Embora seja uma discussão absolutamente necessária em nosso tempo, entender este filme apenas como uma apologia à naturalização do estupro pode ser uma perspectiva limitada. Sem desmerecer esse debate, acredito que contribui bastante trazer a filosofia de Nietzsche à crítica de "Elle": “Minha doutrina ensina: vive de tal maneira que devas desejar reviver, é o dever”. Com alguns elementos dessa filosofia – anti-cristã, inclusive, assim como o filme –, pode-se aprofundar o debate moral que envolve Michèle, ao se analisar a sua relação com seus desejos, a sua relação com o outro e o seu modo de viver a vida.
Não vejo um descolamento forte entre a sua moral e os seus desejos – quando ela afirma a Patrick que o que estão fazendo é muito perverso, logo em seguida o fazem novamente, ou seja, o julgamento moral sucumbe imediatamente ao desejo. A propósito, se ela quer transar com o marido da vizinha, o faz; se quer saber quem é o estuprador, manda hackear os computadores, mesmo que acesse informações privadas; se não quer ver o pai, não o faz; se quer transar com o marido da colega, o faz. Nesse caso, inclusive, ainda que ela diga que não irá mais fazer, o faz. Isso porque Michèle vive a vida na vida, e não fora dela: não adianta ela negar o seu desejo em um futuro, pois, se no momento ela quiser, ela irá fazer, mesmo tendo dito que não iria fazer. Isso, ao limite, implica um severo descompromisso com o outro, já que Michèle atropela quem for necessário para vivenciar os seus desejos de determinado momento. Pode-se entender, então, que o “dever” de Michèle não é formado pelas regras tradicionais da sociedade, e, sim, pelos seus desejos. O interessante é que o filme radicaliza esse pensamento, uma vez que Michèle encontra entre os seus desejos justamente uma relação sexual que não seria de acordo com o seu desejo! Não se pode negar que ela até brinca com isso, afinal, quando consente com a transa, percebe que Patrick para, e, em seguida, para Patrick continuar, bate nele demonstrando não consentimento. Nesse momento, portanto, é novamente ela quem está no controle, ainda que embaixo. Isso não pode, de modo nenhum, ser levado a conclusões gerais: “toda mulher gosta disso”. Nem um homem, ao ver o filme, pode achar que mulheres gostam de sexo à força. O homem que faz esse tipo de dedução é estúpido, pois banaliza o tema do estupro e suas diversas facetas cotidianas. Uma vez sublinhado isso, o que deve ser especialmente focalizado na análise de "Elle" é a moral da personagem Michèle, aliás, coerente do início ao fim do filme, uma moral estritamente relacionada a seus desejos, o que implica o descompromisso com o outro, enquanto uma das formas de viver a vida na vida – só não se pode afirmar se Michèle diagnostica bem os seus desejos, ou seja, se são desejos pueris, ou se são desejos merecedores do "eterno retorno".
Obs.: se toda essa perspectiva moral dessa personagem é fruto da imaginação de um homem branco, a qual jamais ocorreria na mente de uma mulher, é também um debate importante. Só tentei focar a moral da personagem Michèle, entendendo-a como um ser único, e de modo nenhum metáfora de todas as mulheres.
Café de Flore
4.2 127A cena em que Jacqueline amarra o filho na cama tem um poder simbólico muito forte dentro do filme. É ali que ela tenta, mas depois vai perceber, que não adianta prender alguém para se ter seu amor. O filme me surpreendeu ao se tratar não de duas histórias, mas de uma história, a qual, gerada por um tópico espírita, foi narrada como deveria ser, de modo fragmentado, diluindo e unindo a trama. Jacqueline, agora ex-mulher de quem na outra encarnação foi seu filho, levou uma vida para compreender que amor não é posse, que não se obriga alguém a lhe amar com a reciprocidade esperada, e, finalmente aceitando essa condição, reconheceu o valor da liberdade, enquanto autonomia de escolha.
O Som ao Redor
3.8 1,1K Assista AgoraComo alguns já disseram aqui, é um filme o qual se vai absorvendo aos poucos, e que merece ser revisto outras vezes, devido a sutileza de inúmeras referências que se casam ao longo das três partes. É um filme de retrato, amostra das relações interpessoais - ou entre papéis sociais - especialmente da classe média.
(entre os diversos retratos, cativa o relacionamento entre João e Sofia: intenso, não superficial, curto e... descartável?)
A sonoplastia tem destaque no filme, e, levando em consideração o título dele, me intrigou quanto à sua função. Os ruídos amplificados que por vezes nos passam despercebidos pode ser uma metáfora dos conflitos latentes que o filme retrata e estão ao nosso redor, sem que nos déssemos conta.
Infelizmente, quem deveria assistir a esse filme provavelmente não assistirá - e se for ao cinema, sairá no meio da sessão.
Intocáveis
4.4 4,1K Assista AgoraO filme mostra de modo bastante sensível como o corpo pode ser uma limitação, mas não uma prisão - para quem não se deixa aprisionar.
E o quanto é excepcional o desejo de Philippe em ser tratado como um ser humano qualquer? Um desprezo ao politicamente correto, cadeira de rodas dos que se deixam aprisionar.
Tão Forte e Tão Perto
4.0 2,0K Assista AgoraMe pareceu que a trama apresentou diversos problemas - como um garoto tão obcecado e disciplinado não teria visto o "Black" no envelope, ou o número de telefone no recorte de jornal? São detalhes, mas mostram um caráter apelativo em criar suspense e drama.
Ainda assim, há cenas sutis e muito perspicazes; lembro-me do momento em que Thomas pula do balanço, símbolo de sua coragem e metáfora de sua morte.
O que mais me interessou é como o filme trabalha a ideia de que há situações que não tem significado, explicação e que jamais teremos como entender.
Deus da Carnificina
3.8 1,4KEste filme me lembrou de uma frase, que a civilização é a institucionalização da barbárie.
A linguagem simultaneamente mascara e provoca os mais diversos instintos dos quatro personagens - o que exigiu e foi bem recompensando com o trabalho dos atores escolhidos, em especial Christoph Waltz.
O roteiro trabalhou uma história em espiral, não se mudou o fato ocorrido, mas cada palavra, entonação, olhar e gesto, transformava e revelava os pontos de vista.
Django Livre
4.4 5,8K Assista AgoraGostei do filme, achei que Tarantino explorou muito bem recursos simples. Não há também como não destacar a trilha sonora e a atuação (esta, talvez, mais atraente que os próprios personagens, não sei)! Me pareceu, no entanto, que as mais interessantes questões ficaram sob o sangue - ainda que todo aquele sangue seja uma das questões.
Em especial, a cena dos encapuzados é muito boa!
Sobre a história de amor - motor do filme - ainda não sei o que dizer aqui hehe