Há toda uma progressão do sombrio, nessa história fabulesca, que a torna ainda mais bonita. Uma escalada que, cada vez mais, vai evadindo o tom inicial do filme, mas, surpreendentemente, no seu auge, retorna ao princípio. O que não significa desmerecer tudo o que foi construído, significa fechar um ciclo, perpassar por uma visão panorâmica antes de concluir seu ponto.
Toda essa cascata que menciono, se refere ao crescendo da gravidade e obscuridade da experiência. Mesmo num princípio muito agradável, com uma discussão de pregadores, o cenário e até o quê sugestivamente violento dos objetos já denunciam uma contradição que vai permanecer na obra, um polo extremamente confortável, bonitinho, fofo, que parece querer jogar tudo que há de ruim para fora do campo de visão.
Claro, essa alienação vai se tornando cada vez mais explícita, e esse é um dos auges do curta. Os traços delicados, a música suave e, fundamentalmente, a fábula dos objetos falantes e dos humanos mudos vai se tornando discrepante se contrastada ao cenário pós-apocalíptico de contornos bizarros. Ele joga com seus elementos expressivos tal como uma enxurrada de animes também faz, na maioria das vezes de modo hediondo (bem longe de conseguirem ser um Meu Amigo Totoro), usar a estética para maximizar a sensação do mundo colorido e delicado, mas, aqui, descontruindo a si mesmo, explicitando cada vez mais esse pendor à demência que a estética traz e acaba por rimar com a temática de alienação da protagonista.
Todavia, muito mais do que simplesmente querer abalar as estruturas daquele bonitinho universo particular mostrando a "verdade" (como a TV portátil diz repetidamente), o autor, de repente, inverte os valores das coisas. O lado de fora deixa de ser uma visão de horror, a "verdade" do objeto quase quebrado se torna a única música diegética e do além muralha surgem balões coloridos. É como se, ao tentar investigar o medonho mundo externo, descobrisse-se que o verdadeiro terror das coisas está no interno, ali mesmo, no universo isolado da casinha fabulesca. A famosa história de Platão, um dos mitos do âmago da humanidade.
O que já funciona muitíssimo bem, com tamanha singularidade, mesmo que reproduzindo um dos arquétipos mais retratados. Porém, o que se conta ao final é praticamente um plot twist discursivo, mais uma grande surpresa de uma experiência de menos de meia hora. É quando se fecha o ciclo inesperadamente, quando a voz dos objetos se torna maior que nunca através das decisões da protagonista humana que nega a liberdade. Um caminho reverso ao que se construíra até então? Bem, na verdade, nem tão reverso assim, além do mais, se íamos conhecendo mais do lado de fora era graças aqueles que nasceram sem a opção de liberdade: os objetos.
Dizem que é possível se fazer um poema bonito até falando de gangrena e acredito que Mitsuami no kamisama é a maior prova da asserção, com seu belo final que basicamente nos diz, "há certa dignidade em se viver como gado".
Depois do invencionismo e antes do diabólico Zecca se encontrou com o sagrado, dessa empreitada, surgiram inovações diferentes, pouco faladas e muito admiráveis.
É o filme que encontra a intersecção entre Méliès e Lumière através da narrativa, uma força coesiva que sincretiza as trucagens deslumbrantes com o alargamento do palco cinematográfico, menos uma invenção do que uma premonição sobre os rumos das estórias na sétima arte. É quando se utiliza das mágicas da sobreposição (o surgimento de objetos, pessoas, aparições) para torná-las orgânicas em seu mundo, retirar a fumaça para transformar o “truque” em “acontecimento”. O que presenciamos na tela não é um palco circense, um espaço como pretexto do espetáculo (de aliens virando fumaça a máquinas voadoras), é o início da tal tela centrífuga, particular ao cinema.
A receita da confecção é fácil de localizar, reside num plano como o do nascimento de Jesus: há tanta importância na trucagem da estrela sobre o presépio quanto no movimento de câmera (anterior a qualquer Pastrone) que perpassa por mais indivíduos surgindo do quadro vazio, nos revelando a extensão de seu mundo. Daí que irrompe sua idiossincrasia, uma quebra do habitual palco fixo, calcando lentamente contiguidades (fazendo, até mesmo, seus corpos caminhar em direção a câmera, a la Lumière), e que, mesmo assim, não nega os efeitos especiais para lidar com o concreto, pelo contrário, a trucagem é o baluarte da expressão divina que ronda a vida de Cristo.
Justamente essa temática, esse compromisso de filmar a vida de Cristo, que parece ter ocasionado um experimento tão interessante. É o espetáculo trazido à Terra, à seriedade máxima, quando andar sobre o mar, curar a cegueira, ressuscitar o falecido se tornam uma trama de fundação, uma história mítica, um acontecimento que necessita ser transmitido, daí, o pendor de ilusionista do diretor acaba se metamorfoseando. Ademais, um plano extraordinário, quase eisensteiniano (valendo-me de um anacronismo muito bem-vindo) que pausa a realidade para uma erupção alegórica do mesmo momento, desvela a dificuldade de transpor aquela trama para o rolo de filme e, consequentemente, toda a criatividade que se irrompe disso.
Claro, sendo justo com Pastrone, as configurações espaciais do filme possuem nítidas limitações, ao contrário de Cabiria que sempre pulsa vida para o além das ações principais. É como eu disse, o espaço de Zecca se assemelha mais ao alargamento de um palco, o que continua a ser um palco. O quadro se move, realmente se torna mais versátil, porém, ainda possui certas cegueiras. Por exemplo, a fuga de José e Maria dos soldados romanos explicita como o próprio diretor considera o extra-campo local não vivente, não cinematográfico: basta que os perseguidores saiam da visão da câmera para que o casal ache-se salvo. A perseguição se dá de maneira teatral, não existe distância concreta ou algo próximo disso, nesse momento, o que não se vê torna-se espaço estéril. Uma noção rudimentar de espaço que poderíamos somar à sua noção rudimentar de tempo, considerando o aspecto extremamente capitular da obra, de apenas vislumbrar fragmentos bíblicos, bem distante de criar uma cadência narrativa para a sua biografia, o que logo mais viraria moda, principalmente, através da obra que Porter já realizava no mesmo ano. Nenhum defeito, apenas elucidações que mostram o que pertence ao seu tempo e o que há a frente dele.
Assim, é interessante de se perceber como toda essa abertura cósmica foi bem paulatina até chegar num Griffith, num Renoir, etc. Todavia, querendo ou não, aqui, Zecca já estava dando os primeiros passos para o infinito.
Uma experiência propositalmente e essencialmente repetitiva. Somos colocados a presenciar uma série de crimes de modo totalmente alheio à suas informações, o que acaba por salientar puramente as ações objetivas ocorridas em tela. Disso, costumam comentar o mesmo: como o filme ressalta a futilidade de um assassinato. Não que eu discorde totalmente desta nuance, mas acredito que por mais que possa parecer um filme sobre assassinatos, antes disso, é apenas um filme sobre pessoas caminhando.
A combinação Steadycam + grande angular, nitidamente, vem com a intenção de potencializar um realismo na tela, mas, se essa força observativa se completa, sua causa está muito mais vinculada ao seu uso do que da sua pura característica tecnológica. É sobre como essa fluidez e grande cobertura do espaço se integram ontologicamente na obra, sua mise-en-scène. E, nesse caso, parece querer retornar toda essa grande capacidade de movimentação a um âmbito primitivo da percepção. A mise-en-scène não quer codificar, simbolizar ou autocontemplar seu movimento, quer apenas ver. Emular o olhar humano que apenas acompanha a cinética ou a inércia dos corpos no espaço, uma ação muito objetiva que justifica a crueza da câmera que “futiliza os assassinatos”.
Nesse ponto, o cinema de Clarke parece ter concretizado uma hipérbole neorrealista ou talvez a transfigurado, o exemplo do filme ideal de Zavattini, a observação máxima, um filme plano sequência que só acompanha um homem. Aqui, sem o humanismo inerente dos italianos, mas com sua mesma investigação exaustiva, imaginada e nunca realizada, talvez pelo exemplo do roteirista ter sido mais uma espécie de “exagero didático”. A questão aqui é que, apesar das imagens voyeuristas tão palpáveis, seria uma negligência fatal considerar todos aqueles assassinatos apenas exercícios radicais de realismo. Principalmente, porque os rápidos planos do assassínio em si são bem contrastantes, formalmente, se comparados aos longos planos de caminhadas.
Toda aquela contiguidade, que aguça alguma impressão empírica do espectador, sempre se contraria com a aparição dos tiros de revólver. Ali, surge um falseamento mais clássico, uma pequenina retomada de uma continuidade convencional. O tiro nunca é visto de longe com a mesma energia observadora de antes, ele é posto num insert que trunca seus robustos blocos topométricos. Na verdade, até vemos, em alguns planos, tiros ao longe, mas o tiro mortal sempre pede um corte, um contraplano, um esquema próximo a de um insert, mesmo que de um rosto no lugar de uma arma. O ponto conclusivo da violência é elipsado, visto através do espaço virtual, sugerido pela montagem que irrompe a atmosfera anterior com imagens que denunciam a artificialidade dos planos e só retorna à força observadora para contemplar a inércia dos cadáveres.
Assim, se o fato de que todas as mortes ocorrem por armas de fogo é algo a ser ressaltado, devemos olhar para o rígido sistema formal com mais atenção ainda. A repetição OBSERVAÇÃO — INSERT — OBSERVAÇÃO não está lá por mero capricho. Tal como a variação de escopetas e pistolas caracterizam uma violência especificamente moderna, a montagem contrastante também se relaciona a outra especificidade: o mundo filmográfico que confecciona tiroteios.
É como se toda aquela fatia de “realidade”, subitamente, se transformasse num espetáculo por alguns segundos. Nesse sentido, tais inserts me soam quase como uma paródia, um momento que o tiroteio se assemelha a um faroeste, mas que, mesmo assim, é uma morte destituída de dramatização, corroborando com sua banalizadora energia final.
O que me faz crer nisso é pensar que (imergindo na hipótese anacrônica), por mais que a obra completa fosse impensável numa Hollywood clássica, as cenas isoladas de Elephant, talvez, não encontrassem tantos problemas com o código Hays.
Scorsese em seu documentário sobre o cinema americano, ao falar das transgressões de Bonnie e Clyde, comenta a cartilha formal instituída indiretamente pelo código. A violência de um filme só era aceita pelos censores caso o disparo e o alvejado fossem separados por planos distintos, uma saída facilmente encontrada por uma decupagem acostumada a naturalizar seus cortes. Tal saída acabou deixando de ser uma cartilha, tornando-se um dos métodos de toda uma tradição. Logo, quando Clarke o reproduz rapidamente na massiva dose de realidade banal, ele espetaculariza o homicídio em flashes, sem arrefecer toda a energia supérflua contida nos seres que habitam seus quadros.
Novamente: Elephant pode parecer somente sobre violência, mas, se ele o é, antes disso, necessita ser um filme de perambulações.
Afinal, acredito que se Elephant fosse passado numa exposição, em looping, por 24 horas, com seu intertítulo inicial posto numa placa, como introdução à entrada de sua sala exibidora, ele teria o mesmíssimo efeito. E afirmo essa continuidade da experiência consciente das implicações dessa metamorfose que sugiro.
Nesta situação, por exemplo, nem todas as pessoas veriam seus 39 minutos, o tempo da obra seria variável, conforme a duração da estadia do espectador na instalação. Pra alguns, ela poderia ter até mais tempo, caso alguns visitantes não percebessem o looping de imediato. E em tal evento, a maior discrepância da singularidade da experiência para cada um, com certeza, seria a ausência de início e fim unívocos, estes só seriam determinados pela entrada e saída arbitrária dos visitantes. Mesmo assim, digo confiante, esse caos não afetaria a obra de Clarke. Isso, porque suas intenções nunca dependeram de ordem para se concretizar.
Por isso, talvez seja aqui que está expressa a maior intersecção entre o cinema experimental, o cinema de fluxo e a arte ambiente/instalação. É uma obra antinarrativa e só por esse aspecto ela facilmente poderia evocar um cinema combativo, de vanguarda, que costuma ser marginalizado. Contudo, acima disso, sua característica mais especial está em toda essa antisequência citada, a indiferença perante qualquer ordenação de seus blocos independentes, uma experiência que se consolida pela pura repetição e pelo corolário fenomenológico que circunda suas formas. Características suficientes para compreendê-lo nesse elo que, talvez surja desde um Warhol, perpassando para artes não fílmicas e desembocando nos novos cineastas dos anos 2000. Uma obra bem singular que possui uma descendência óbvia — com o mesmo nome do pai, mas que conquistou, além da Palma de Ouro, um lugar confortável no panteão do cinema de fluxo.
Entretanto, longe de querer valida-lo pela sua prole, o filme de Clarke merece uma atenção hermética, uma destruição temporária de seus filhos e tudo que sucede seu tempo a fim de voltarmos ao projeto televisivo de 89 e lhe dar seus devidos méritos em sua devida época.
Eis aqui a força capaz de confundir e desmascarar o espectador de hoje, aquele momento que o olhar contemporâneo se encontra com o olhar de seus antepassados. Isto, porque assistir os primeiros anos de um Griffith cineasta, neófito da Biograph, acabam por comprovar o viés raso que essa história do cinema tem sido revisitada por cinéfilos e críticos.
O que mais há hoje em dia — depois da imensidão de "amantes do cinema" que só encostam nos anos 50 para pescar um Hitchcock ou um Orson Welles, graças a alguma lista da Sight and Sound (se é que chegam até aí) — é uma incessante procura de revoluções formais em prol de (re)validar clássicos. Uma espécie de vício ainda advindo daquela Cahiers do Rivette ansioso que sua geração seja a do CinemaScope, a era dos “metteurs en scène finalmente dignos desse título”. Ou seja, a compulsão de assistir Cidadão Kane só pra confirmar que estavam certos sobre a profundidade de campo naquela cena com o garoto Charles ao lado de fora da janela ou, ainda, assistir Acossado somente pelo momento que Michel Poiccard vá se virar para a câmera e soltar uma piadinha pro espectador. Montar um panteão da história do cinema se tornou uma questão anacrônica de busca pelo “moderno”.
Claro, as diversas “modernidades” têm toda uma importância dentro da arte, basta conferir A Regra do Jogo: as melhores revoluções não são temporais, pelo contrário, são acrônicas. Entretanto, para além dessa revolução que, aparentemente, ocorreu todos os meses, a maior problemática desse monóculo de só uma imagem — que apenas vê beleza através da transgressão formal, do superautor e da modernice — é sobre ignorar muito mais do que só UMA arte (ao mesmo tempo que se aplaude Psicose por mostrar uma privada).
Diante de tudo isso que Griffith urge. Essa figura indispensável, horrorosa, antitética, paradoxal e manancial — essencialmente, a aporia máxima de todo o cinema — é a maior força contra pensamentos unívocos. Se o autor de O Nascimento de uma Nação é impregnado pela controvérsia acredito que isso não se deve apenas pelo filme citado, pelo contrário, penso que sua maior controvérsia está, justamente, em ser um autor além deste axioma racista. O diretor não precisa de ineditismos ou inaugurações, antes de ter a própria produtora ele já era um grande artista do cinematógrafo.
Se normalmente denomina-se O Nascimento de Uma Nação como um ascendente clássico, devido toda a abertura de um poderoso sistema formal orgânico que se eternizou em Hollywood, para A Corner in Wheat eu nomearia esse “clássico” por outras vias, mesmo que tão somente como uma fachada do filme. O classicismo de concepção mourletiana (ou ao menos a metonímia de seu conceito) que utiliza de todo um sistema já conhecido rumo aos seus valores absolutos — o que, talvez, outros de seus filmes da Biograph possam corresponder mais diretamente a esses valores, considerando toda confiança no poder do corpo diante da encenação de um The Unchanging Sea — considerando que, diante das convenções formais desse primeiro momento, o realizador não queria clamar por idiossincrasia, nem mesmo indireta: é sobre utilizar do que se dispõe para alçar alguma excelência.
Simples, se Griffith já está inscrito na história como o demiurgo da montagem, aqui, podemos reivindicar sua maestria da composição de cena. Uma locação é igual a somente um plano, e um plano significa um mesmo enquadramento: o plano geral. Essa é a regra invisível, mas disso mesmo que se extrai ouro. É sobre como se dialetiza o espaço para alcançar o auge de sua potência, pois se uma cena é sinônimo daquela mesmíssima imagem, então é nesse quadro que se coagula todas as suas forças possíveis.
Daí, uma cena incrível que não encontra a miséria no desespero da fome que alguma família passe em sua casa, mas a encontra num mercadinho que teve que subir seus preços, perpetuando toda a lógica de acompanhar a cadeia econômica. Realizando-o através de um velho jogo cênico de três — o rapaz, a mocinha e a mãe com sua criança que passarão pelo vendedor de pão para receber as más notícias — ao lado da contração das formas, isso é, a placa ao fundo que tenta desculpabilizar os vendedores e, essencialmente, a que está logo a frente, servindo como um espelho distorcido de mote dramático, feito apenas para que os rostos se agachem, olhem para aquele objeto posto para estar, propositalmente, o tempo todo, de cara com o espectador e, assim, retornem ao seus cotidianos com um outro semblante.
E que não me venham falar de cortes, planos detalhes ou inserts, pois, aqui, pouco me importa a imagem da carta posta como um intertítulo ou mesmo o vai e vem do mortal buraco de trigo, o que me interessa é como seus contrastes se concretizam pela ausência da montagem de intervenções, tão cara ao que ainda viria na carreira do diretor. Contraposições que não se fazem pelo formalismo da conectividade direta, pelo contrário, as antíteses se manifestam por uma sutileza virtual. Só há o embate do camponês versus o magnata através da máxima plástica de cada plano individual, ou seja, confeccionar o olhar do campo através da imensidão do quadro vazio, do cavalo que vêm vagarosamente à câmera e dos dois homens que o acompanham, logo que a sucessão natural da narrativa nos fará presenciar o antônimo através das dúzias de figurantes agitados, das roupas suntuosas e do espaço interno. A “mensagem” vêm muito mais daí do que de seu movimento narrativo moralista que mata o ricaço.
Tudo isso é o suficiente para redescobrirmos o que se precisa para realizar um discurso social, uma imagem dramática e uma excelência formal, isso é, um único plano pra uma única cena. Sendo assim, há de surgir uma breve questão sobre D.W. Griffith: ele só é um grande autor graças aos seus filmes da década de 10 ou por já ser um grande artista que ele chegou nestas obras?
Bem, para mim, a resposta só depende se você usa ou não usa o monóculo da modernice.
Se normalmente se vê um tsunami de réplicas de um 8½ por aí, dentre elas, pouquíssimas são a respeito de um cinema independente em frangalhos, de um tour de force do filme Z. Algo que o George Kuchar fez com perfeição por aqui.
O filme que necessita ser e não ser simultaneamente. Conceber essa atração erótica da cabeça do personagem-diretor ao mesmo tempo que se destrói ela mesma, bota o espetáculo para correr ao lado do patético. Afinal, enquanto para o Kuchar-personagem esse glamour que se deseja atingir não passa de uma vontade, de um imaginário mal concretizado, para o Kuchar-diretor do curta, ele precisa ser algo que realmente foi executado.
Daí ele começa muito bem: a atriz de vestido sofisticado, correndo num simulacro de filme Hollywoodiano, ao mesmo tempo que a voz patética de seu diretor, dando instruções, anuncia, indiretamente, para nós, como aquela cena é sobre uma tentativa de cena e não sobre a sua execução genuína. Um paradoxo que prosseguirá quando se filma os corpos nus através do vitral colorido, naquele enquadramento de obsessão específica para o personagem-diretor que, surpreendentemente, continuamos a ver mesmo após a câmera ser desligada.
Disso, esse filme obstruído (para o personagem), porém realizado (para nós), só ganha ares mais contundentes quando essas cenas eróticas e patéticas vão se espraiando para além dessa lógica metalinguística de se “filmar o que se filma”. Todas as imagens “românticas” que vão surgindo em sequência, para além dos domínios do personagem-diretor, não tendo mais nada a ver com essa filmagem direta (na verdade, são cenas justamente sobre a atriz que, entre os braços de seu affair , reclama sobre não querer mais participar do tal filme), continuam a executar essa vontade erótica “não realizada”, justamente por pertencer apenas a um imaginário/a uma hipótese do protagonista — construindo-as apenas para nós e não para seu universo específico. Logo, a cereja do bolo de tais momentos surge na dublagem tosca do realizador, como se, até mesmo nas vezes que as tais cenas vislumbrassem a chance de angariar a tão desejada sensualidade genuína, elas fossem maldosamente interrompidas em prol de uma sinceridade mor.
Qual sinceridade? A do autor que desnuda os próprios medos que rondam seu imaginário e sua persona através da fragilidade dos paupérrimos meios de produção que lhe pertencem. Por isso, temos que aceitar: a montagem paralela do banho, que intitula o curta, é nada mais do que genial.
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A Garota das Tranças
3.5 6Há toda uma progressão do sombrio, nessa história fabulesca, que a torna ainda mais bonita. Uma escalada que, cada vez mais, vai evadindo o tom inicial do filme, mas, surpreendentemente, no seu auge, retorna ao princípio. O que não significa desmerecer tudo o que foi construído, significa fechar um ciclo, perpassar por uma visão panorâmica antes de concluir seu ponto.
Toda essa cascata que menciono, se refere ao crescendo da gravidade e obscuridade da experiência. Mesmo num princípio muito agradável, com uma discussão de pregadores, o cenário e até o quê sugestivamente violento dos objetos já denunciam uma contradição que vai permanecer na obra, um polo extremamente confortável, bonitinho, fofo, que parece querer jogar tudo que há de ruim para fora do campo de visão.
Claro, essa alienação vai se tornando cada vez mais explícita, e esse é um dos auges do curta. Os traços delicados, a música suave e, fundamentalmente, a fábula dos objetos falantes e dos humanos mudos vai se tornando discrepante se contrastada ao cenário pós-apocalíptico de contornos bizarros. Ele joga com seus elementos expressivos tal como uma enxurrada de animes também faz, na maioria das vezes de modo hediondo (bem longe de conseguirem ser um Meu Amigo Totoro), usar a estética para maximizar a sensação do mundo colorido e delicado, mas, aqui, descontruindo a si mesmo, explicitando cada vez mais esse pendor à demência que a estética traz e acaba por rimar com a temática de alienação da protagonista.
Todavia, muito mais do que simplesmente querer abalar as estruturas daquele bonitinho universo particular mostrando a "verdade" (como a TV portátil diz repetidamente), o autor, de repente, inverte os valores das coisas. O lado de fora deixa de ser uma visão de horror, a "verdade" do objeto quase quebrado se torna a única música diegética e do além muralha surgem balões coloridos. É como se, ao tentar investigar o medonho mundo externo, descobrisse-se que o verdadeiro terror das coisas está no interno, ali mesmo, no universo isolado da casinha fabulesca. A famosa história de Platão, um dos mitos do âmago da humanidade.
O que já funciona muitíssimo bem, com tamanha singularidade, mesmo que reproduzindo um dos arquétipos mais retratados. Porém, o que se conta ao final é praticamente um plot twist discursivo, mais uma grande surpresa de uma experiência de menos de meia hora. É quando se fecha o ciclo inesperadamente, quando a voz dos objetos se torna maior que nunca através das decisões da protagonista humana que nega a liberdade. Um caminho reverso ao que se construíra até então? Bem, na verdade, nem tão reverso assim, além do mais, se íamos conhecendo mais do lado de fora era graças aqueles que nasceram sem a opção de liberdade: os objetos.
Dizem que é possível se fazer um poema bonito até falando de gangrena e acredito que Mitsuami no kamisama é a maior prova da asserção, com seu belo final que basicamente nos diz, "há certa dignidade em se viver como gado".
A Vida e a Paixão de Jesus Cristo
4.0 11Depois do invencionismo e antes do diabólico Zecca se encontrou com o sagrado, dessa empreitada, surgiram inovações diferentes, pouco faladas e muito admiráveis.
É o filme que encontra a intersecção entre Méliès e Lumière através da narrativa, uma força coesiva que sincretiza as trucagens deslumbrantes com o alargamento do palco cinematográfico, menos uma invenção do que uma premonição sobre os rumos das estórias na sétima arte. É quando se utiliza das mágicas da sobreposição (o surgimento de objetos, pessoas, aparições) para torná-las orgânicas em seu mundo, retirar a fumaça para transformar o “truque” em “acontecimento”. O que presenciamos na tela não é um palco circense, um espaço como pretexto do espetáculo (de aliens virando fumaça a máquinas voadoras), é o início da tal tela centrífuga, particular ao cinema.
A receita da confecção é fácil de localizar, reside num plano como o do nascimento de Jesus: há tanta importância na trucagem da estrela sobre o presépio quanto no movimento de câmera (anterior a qualquer Pastrone) que perpassa por mais indivíduos surgindo do quadro vazio, nos revelando a extensão de seu mundo. Daí que irrompe sua idiossincrasia, uma quebra do habitual palco fixo, calcando lentamente contiguidades (fazendo, até mesmo, seus corpos caminhar em direção a câmera, a la Lumière), e que, mesmo assim, não nega os efeitos especiais para lidar com o concreto, pelo contrário, a trucagem é o baluarte da expressão divina que ronda a vida de Cristo.
Justamente essa temática, esse compromisso de filmar a vida de Cristo, que parece ter ocasionado um experimento tão interessante. É o espetáculo trazido à Terra, à seriedade máxima, quando andar sobre o mar, curar a cegueira, ressuscitar o falecido se tornam uma trama de fundação, uma história mítica, um acontecimento que necessita ser transmitido, daí, o pendor de ilusionista do diretor acaba se metamorfoseando. Ademais, um plano extraordinário, quase eisensteiniano (valendo-me de um anacronismo muito bem-vindo) que pausa a realidade para uma erupção alegórica do mesmo momento, desvela a dificuldade de transpor aquela trama para o rolo de filme e, consequentemente, toda a criatividade que se irrompe disso.
Claro, sendo justo com Pastrone, as configurações espaciais do filme possuem nítidas limitações, ao contrário de Cabiria que sempre pulsa vida para o além das ações principais. É como eu disse, o espaço de Zecca se assemelha mais ao alargamento de um palco, o que continua a ser um palco. O quadro se move, realmente se torna mais versátil, porém, ainda possui certas cegueiras. Por exemplo, a fuga de José e Maria dos soldados romanos explicita como o próprio diretor considera o extra-campo local não vivente, não cinematográfico: basta que os perseguidores saiam da visão da câmera para que o casal ache-se salvo. A perseguição se dá de maneira teatral, não existe distância concreta ou algo próximo disso, nesse momento, o que não se vê torna-se espaço estéril. Uma noção rudimentar de espaço que poderíamos somar à sua noção rudimentar de tempo, considerando o aspecto extremamente capitular da obra, de apenas vislumbrar fragmentos bíblicos, bem distante de criar uma cadência narrativa para a sua biografia, o que logo mais viraria moda, principalmente, através da obra que Porter já realizava no mesmo ano. Nenhum defeito, apenas elucidações que mostram o que pertence ao seu tempo e o que há a frente dele.
Assim, é interessante de se perceber como toda essa abertura cósmica foi bem paulatina até chegar num Griffith, num Renoir, etc. Todavia, querendo ou não, aqui, Zecca já estava dando os primeiros passos para o infinito.
Elephant
3.6 22Uma experiência propositalmente e essencialmente repetitiva. Somos colocados a presenciar uma série de crimes de modo totalmente alheio à suas informações, o que acaba por salientar puramente as ações objetivas ocorridas em tela. Disso, costumam comentar o mesmo: como o filme ressalta a futilidade de um assassinato. Não que eu discorde totalmente desta nuance, mas acredito que por mais que possa parecer um filme sobre assassinatos, antes disso, é apenas um filme sobre pessoas caminhando.
A combinação Steadycam + grande angular, nitidamente, vem com a intenção de potencializar um realismo na tela, mas, se essa força observativa se completa, sua causa está muito mais vinculada ao seu uso do que da sua pura característica tecnológica. É sobre como essa fluidez e grande cobertura do espaço se integram ontologicamente na obra, sua mise-en-scène. E, nesse caso, parece querer retornar toda essa grande capacidade de movimentação a um âmbito primitivo da percepção. A mise-en-scène não quer codificar, simbolizar ou autocontemplar seu movimento, quer apenas ver. Emular o olhar humano que apenas acompanha a cinética ou a inércia dos corpos no espaço, uma ação muito objetiva que justifica a crueza da câmera que “futiliza os assassinatos”.
Nesse ponto, o cinema de Clarke parece ter concretizado uma hipérbole neorrealista ou talvez a transfigurado, o exemplo do filme ideal de Zavattini, a observação máxima, um filme plano sequência que só acompanha um homem. Aqui, sem o humanismo inerente dos italianos, mas com sua mesma investigação exaustiva, imaginada e nunca realizada, talvez pelo exemplo do roteirista ter sido mais uma espécie de “exagero didático”. A questão aqui é que, apesar das imagens voyeuristas tão palpáveis, seria uma negligência fatal considerar todos aqueles assassinatos apenas exercícios radicais de realismo. Principalmente, porque os rápidos planos do assassínio em si são bem contrastantes, formalmente, se comparados aos longos planos de caminhadas.
Toda aquela contiguidade, que aguça alguma impressão empírica do espectador, sempre se contraria com a aparição dos tiros de revólver. Ali, surge um falseamento mais clássico, uma pequenina retomada de uma continuidade convencional. O tiro nunca é visto de longe com a mesma energia observadora de antes, ele é posto num insert que trunca seus robustos blocos topométricos. Na verdade, até vemos, em alguns planos, tiros ao longe, mas o tiro mortal sempre pede um corte, um contraplano, um esquema próximo a de um insert, mesmo que de um rosto no lugar de uma arma. O ponto conclusivo da violência é elipsado, visto através do espaço virtual, sugerido pela montagem que irrompe a atmosfera anterior com imagens que denunciam a artificialidade dos planos e só retorna à força observadora para contemplar a inércia dos cadáveres.
Assim, se o fato de que todas as mortes ocorrem por armas de fogo é algo a ser ressaltado, devemos olhar para o rígido sistema formal com mais atenção ainda. A repetição OBSERVAÇÃO — INSERT — OBSERVAÇÃO não está lá por mero capricho. Tal como a variação de escopetas e pistolas caracterizam uma violência especificamente moderna, a montagem contrastante também se relaciona a outra especificidade: o mundo filmográfico que confecciona tiroteios.
É como se toda aquela fatia de “realidade”, subitamente, se transformasse num espetáculo por alguns segundos. Nesse sentido, tais inserts me soam quase como uma paródia, um momento que o tiroteio se assemelha a um faroeste, mas que, mesmo assim, é uma morte destituída de dramatização, corroborando com sua banalizadora energia final.
O que me faz crer nisso é pensar que (imergindo na hipótese anacrônica), por mais que a obra completa fosse impensável numa Hollywood clássica, as cenas isoladas de Elephant, talvez, não encontrassem tantos problemas com o código Hays.
Scorsese em seu documentário sobre o cinema americano, ao falar das transgressões de Bonnie e Clyde, comenta a cartilha formal instituída indiretamente pelo código. A violência de um filme só era aceita pelos censores caso o disparo e o alvejado fossem separados por planos distintos, uma saída facilmente encontrada por uma decupagem acostumada a naturalizar seus cortes. Tal saída acabou deixando de ser uma cartilha, tornando-se um dos métodos de toda uma tradição. Logo, quando Clarke o reproduz rapidamente na massiva dose de realidade banal, ele espetaculariza o homicídio em flashes, sem arrefecer toda a energia supérflua contida nos seres que habitam seus quadros.
Novamente: Elephant pode parecer somente sobre violência, mas, se ele o é, antes disso, necessita ser um filme de perambulações.
Afinal, acredito que se Elephant fosse passado numa exposição, em looping, por 24 horas, com seu intertítulo inicial posto numa placa, como introdução à entrada de sua sala exibidora, ele teria o mesmíssimo efeito. E afirmo essa continuidade da experiência consciente das implicações dessa metamorfose que sugiro.
Nesta situação, por exemplo, nem todas as pessoas veriam seus 39 minutos, o tempo da obra seria variável, conforme a duração da estadia do espectador na instalação. Pra alguns, ela poderia ter até mais tempo, caso alguns visitantes não percebessem o looping de imediato. E em tal evento, a maior discrepância da singularidade da experiência para cada um, com certeza, seria a ausência de início e fim unívocos, estes só seriam determinados pela entrada e saída arbitrária dos visitantes. Mesmo assim, digo confiante, esse caos não afetaria a obra de Clarke. Isso, porque suas intenções nunca dependeram de ordem para se concretizar.
Por isso, talvez seja aqui que está expressa a maior intersecção entre o cinema experimental, o cinema de fluxo e a arte ambiente/instalação. É uma obra antinarrativa e só por esse aspecto ela facilmente poderia evocar um cinema combativo, de vanguarda, que costuma ser marginalizado. Contudo, acima disso, sua característica mais especial está em toda essa antisequência citada, a indiferença perante qualquer ordenação de seus blocos independentes, uma experiência que se consolida pela pura repetição e pelo corolário fenomenológico que circunda suas formas. Características suficientes para compreendê-lo nesse elo que, talvez surja desde um Warhol, perpassando para artes não fílmicas e desembocando nos novos cineastas dos anos 2000. Uma obra bem singular que possui uma descendência óbvia — com o mesmo nome do pai, mas que conquistou, além da Palma de Ouro, um lugar confortável no panteão do cinema de fluxo.
Entretanto, longe de querer valida-lo pela sua prole, o filme de Clarke merece uma atenção hermética, uma destruição temporária de seus filhos e tudo que sucede seu tempo a fim de voltarmos ao projeto televisivo de 89 e lhe dar seus devidos méritos em sua devida época.
Um Canto no Trigo
4.0 5Eis aqui a força capaz de confundir e desmascarar o espectador de hoje, aquele momento que o olhar contemporâneo se encontra com o olhar de seus antepassados. Isto, porque assistir os primeiros anos de um Griffith cineasta, neófito da Biograph, acabam por comprovar o viés raso que essa história do cinema tem sido revisitada por cinéfilos e críticos.
O que mais há hoje em dia — depois da imensidão de "amantes do cinema" que só encostam nos anos 50 para pescar um Hitchcock ou um Orson Welles, graças a alguma lista da Sight and Sound (se é que chegam até aí) — é uma incessante procura de revoluções formais em prol de (re)validar clássicos. Uma espécie de vício ainda advindo daquela Cahiers do Rivette ansioso que sua geração seja a do CinemaScope, a era dos “metteurs en scène finalmente dignos desse título”. Ou seja, a compulsão de assistir Cidadão Kane só pra confirmar que estavam certos sobre a profundidade de campo naquela cena com o garoto Charles ao lado de fora da janela ou, ainda, assistir Acossado somente pelo momento que Michel Poiccard vá se virar para a câmera e soltar uma piadinha pro espectador. Montar um panteão da história do cinema se tornou uma questão anacrônica de busca pelo “moderno”.
Claro, as diversas “modernidades” têm toda uma importância dentro da arte, basta conferir A Regra do Jogo: as melhores revoluções não são temporais, pelo contrário, são acrônicas. Entretanto, para além dessa revolução que, aparentemente, ocorreu todos os meses, a maior problemática desse monóculo de só uma imagem — que apenas vê beleza através da transgressão formal, do superautor e da modernice — é sobre ignorar muito mais do que só UMA arte (ao mesmo tempo que se aplaude Psicose por mostrar uma privada).
Diante de tudo isso que Griffith urge. Essa figura indispensável, horrorosa, antitética, paradoxal e manancial — essencialmente, a aporia máxima de todo o cinema — é a maior força contra pensamentos unívocos. Se o autor de O Nascimento de uma Nação é impregnado pela controvérsia acredito que isso não se deve apenas pelo filme citado, pelo contrário, penso que sua maior controvérsia está, justamente, em ser um autor além deste axioma racista. O diretor não precisa de ineditismos ou inaugurações, antes de ter a própria produtora ele já era um grande artista do cinematógrafo.
Se normalmente denomina-se O Nascimento de Uma Nação como um ascendente clássico, devido toda a abertura de um poderoso sistema formal orgânico que se eternizou em Hollywood, para A Corner in Wheat eu nomearia esse “clássico” por outras vias, mesmo que tão somente como uma fachada do filme. O classicismo de concepção mourletiana (ou ao menos a metonímia de seu conceito) que utiliza de todo um sistema já conhecido rumo aos seus valores absolutos — o que, talvez, outros de seus filmes da Biograph possam corresponder mais diretamente a esses valores, considerando toda confiança no poder do corpo diante da encenação de um The Unchanging Sea — considerando que, diante das convenções formais desse primeiro momento, o realizador não queria clamar por idiossincrasia, nem mesmo indireta: é sobre utilizar do que se dispõe para alçar alguma excelência.
Simples, se Griffith já está inscrito na história como o demiurgo da montagem, aqui, podemos reivindicar sua maestria da composição de cena. Uma locação é igual a somente um plano, e um plano significa um mesmo enquadramento: o plano geral. Essa é a regra invisível, mas disso mesmo que se extrai ouro. É sobre como se dialetiza o espaço para alcançar o auge de sua potência, pois se uma cena é sinônimo daquela mesmíssima imagem, então é nesse quadro que se coagula todas as suas forças possíveis.
Daí, uma cena incrível que não encontra a miséria no desespero da fome que alguma família passe em sua casa, mas a encontra num mercadinho que teve que subir seus preços, perpetuando toda a lógica de acompanhar a cadeia econômica. Realizando-o através de um velho jogo cênico de três — o rapaz, a mocinha e a mãe com sua criança que passarão pelo vendedor de pão para receber as más notícias — ao lado da contração das formas, isso é, a placa ao fundo que tenta desculpabilizar os vendedores e, essencialmente, a que está logo a frente, servindo como um espelho distorcido de mote dramático, feito apenas para que os rostos se agachem, olhem para aquele objeto posto para estar, propositalmente, o tempo todo, de cara com o espectador e, assim, retornem ao seus cotidianos com um outro semblante.
E que não me venham falar de cortes, planos detalhes ou inserts, pois, aqui, pouco me importa a imagem da carta posta como um intertítulo ou mesmo o vai e vem do mortal buraco de trigo, o que me interessa é como seus contrastes se concretizam pela ausência da montagem de intervenções, tão cara ao que ainda viria na carreira do diretor. Contraposições que não se fazem pelo formalismo da conectividade direta, pelo contrário, as antíteses se manifestam por uma sutileza virtual. Só há o embate do camponês versus o magnata através da máxima plástica de cada plano individual, ou seja, confeccionar o olhar do campo através da imensidão do quadro vazio, do cavalo que vêm vagarosamente à câmera e dos dois homens que o acompanham, logo que a sucessão natural da narrativa nos fará presenciar o antônimo através das dúzias de figurantes agitados, das roupas suntuosas e do espaço interno. A “mensagem” vêm muito mais daí do que de seu movimento narrativo moralista que mata o ricaço.
Tudo isso é o suficiente para redescobrirmos o que se precisa para realizar um discurso social, uma imagem dramática e uma excelência formal, isso é, um único plano pra uma única cena. Sendo assim, há de surgir uma breve questão sobre D.W. Griffith: ele só é um grande autor graças aos seus filmes da década de 10 ou por já ser um grande artista que ele chegou nestas obras?
Bem, para mim, a resposta só depende se você usa ou não usa o monóculo da modernice.
Paisagem é Narrativa
2.8 1AMV cinéfilo não assumido.
Se, no cinema, "paisagem é narrativa", aqui, na verdade, são apenas sons e imagens homenageativas.
Hold Me While I'm Naked
2.9 16Adorei. Amei. Incrível!
Se normalmente se vê um tsunami de réplicas de um 8½ por aí, dentre elas, pouquíssimas são a respeito de um cinema independente em frangalhos, de um tour de force do filme Z. Algo que o George Kuchar fez com perfeição por aqui.
O filme que necessita ser e não ser simultaneamente. Conceber essa atração erótica da cabeça do personagem-diretor ao mesmo tempo que se destrói ela mesma, bota o espetáculo para correr ao lado do patético. Afinal, enquanto para o Kuchar-personagem esse glamour que se deseja atingir não passa de uma vontade, de um imaginário mal concretizado, para o Kuchar-diretor do curta, ele precisa ser algo que realmente foi executado.
Daí ele começa muito bem: a atriz de vestido sofisticado, correndo num simulacro de filme Hollywoodiano, ao mesmo tempo que a voz patética de seu diretor, dando instruções, anuncia, indiretamente, para nós, como aquela cena é sobre uma tentativa de cena e não sobre a sua execução genuína. Um paradoxo que prosseguirá quando se filma os corpos nus através do vitral colorido, naquele enquadramento de obsessão específica para o personagem-diretor que, surpreendentemente, continuamos a ver mesmo após a câmera ser desligada.
Disso, esse filme obstruído (para o personagem), porém realizado (para nós), só ganha ares mais contundentes quando essas cenas eróticas e patéticas vão se espraiando para além dessa lógica metalinguística de se “filmar o que se filma”. Todas as imagens “românticas” que vão surgindo em sequência, para além dos domínios do personagem-diretor, não tendo mais nada a ver com essa filmagem direta (na verdade, são cenas justamente sobre a atriz que, entre os braços de seu affair , reclama sobre não querer mais participar do tal filme), continuam a executar essa vontade erótica “não realizada”, justamente por pertencer apenas a um imaginário/a uma hipótese do protagonista — construindo-as apenas para nós e não para seu universo específico. Logo, a cereja do bolo de tais momentos surge na dublagem tosca do realizador, como se, até mesmo nas vezes que as tais cenas vislumbrassem a chance de angariar a tão desejada sensualidade genuína, elas fossem maldosamente interrompidas em prol de uma sinceridade mor.
Qual sinceridade? A do autor que desnuda os próprios medos que rondam seu imaginário e sua persona através da fragilidade dos paupérrimos meios de produção que lhe pertencem. Por isso, temos que aceitar: a montagem paralela do banho, que intitula o curta, é nada mais do que genial.