Lançado em 2001 e dirigido por David Lynch, Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr.), é um filme que instiga o espectador. Uma película que contém um enredo simplista, porém, por conta de uma direção brilhante, ganha contornos de obra-prima. De fato, trata-se de uma obra intrigante, obra esta que após o término, segue martelando na mente por um longo período: funciona como um quebra-cabeça, onde cada peça a ser montada exige raciocínio e paciência.
Em torno da indústria do cinema, personagens vivem suas fantasias, desejos e esperanças. Tal qual Betty (Naomi Watts), que chega do Canadá para se tornar atriz. Ela cruza com Rita (Laura Harring), que acabara de sofrer um acidente e nem se lembra do seu próprio nome. E assim, Betty tenta ajudá-la a descobrir quem é. Em outra parte da cidade, o Diretor de cinema Adam Kesher (Justin Theroux) está sendo convencido por dois irmãos, a contratar uma atriz específica para seu filme. De repente, todos se transformam em personagens distintos e as amigas mergulham em uma trama de crimes e paixão.
Cidade dos Sonhos é uma obra que segue longe dos padrões ditados pela indústria cultural. Como diz Adorno, dentro dos modelos enlatados, cada espectador sabe muito bem como irá terminar o filme e qualquer associação que exija perspicácia intelectual é deixada de lado. Pois bem, Cidade dos Sonhos, como já foi dito, não se enquadra neste recorte. David Lynch, de forma inteligente, conduz o espectador por um ambiente enigmático, repleto de suspense e dúvidas. Adentramos em um mundo extremante confuso, porém que funciona durante todo instante. Em nenhum momento o espectador se sente incomodado com os enigmas lançados, pelos contrário, com o decorrer da película, ficamos cada vez mais envolvidos, cada vez mais curiosos.
Lynch utiliza-se de uma montagem muito bem desenvolvida, um exemplo perfeito da montagem intelectual de Eisenstein, para oferecer forma a uma estória simples, que relata sobre um crime passional. A direção de David é magnifica, uma verdadeira aula de cinema. Cidade dos Sonhos é um filme Surrealista que trabalha, a todo instante, o cognitivo do espectador, e durante todo este processo, um ambiente de suspense envolve a trama. Um suspense impactante e, as vezes, assustador. As atuações de Laura Harring e Naomi Watts são brilhantes, o que ajuda e muito no efeito causado pela obra. Lynch, como já foi dito, se afasta dos modelos narrativos convencionais. O diretor propõe novas formas de fazer e pensar um filme. Com uma trilha brilhante, atuações grandiosas e uma direção magnífica, Cidade dos Sonhos é uma obra-prima. É o cinema muito distante dos limites mercadológicos. E só pra constar, a obra deixa uma reflexão: a a cidade dos sonhos (Los Angeles) e a badalada Hollywood, na realidade, podem não ser nada daquilo que imaginamos.
Charlie Chaplin é um dos nomes mais notórios da história do cinema, e para muitos, é o grande nome. Não querendo entrar neste mérito, afinal seu talento é inquestionável, e quem se prende apenas aos números e aos rankings são os limitados, quero somente deixar registrado todo o meu respeito ao artista genial. Com relação ao filme, lançado em 1952, Luzes da Ribalta, é sensível ao extremo: por meio do personagem Calvero, Chaplin transmite toda a angústia e depressão que sentia. Fica claro na trama que a obra retrata seu próprio declínio, pois seus grandes sucessos ocorrera no período do cinema mudo e seu humor não produzia o mesmo efeito com as falas. Desta forma, trata-se de uma obra com contraindicações. Afinal nem todos estão preparados para momentos tão sublimes.
Calvero (Charlie Chaplin) é um velho comediante que no passado fez grande sucesso. Porém, com o passar dos anos, caiu no esquecimento. Fato que o deixou muito próximo de se tornar um alcoólatra. Todavia as coisas começam a mudar quando, numa tarde, voltando para a pensão onde vive, sente um cheiro forte de gás, vindo de um dos quartos. Ele, então, arromba a porta e encontra inconsciente uma jovem, Thereza Ambrose (Claire Bloom). Thereza lhe explica que tentara o suicídio: sempre sonhou em ser uma bailarina, mas suas pernas se encontravam paralisadas. Calvero promete ajudá-la, mas sem saber, que na verdade, Thereza também fará de tudo para ajudá-lo.
Antes de qualquer coisa, Luzes da Ribalta, é uma estória de amor. Uma estória triste, porém belíssima. Imortalizada por atuações brilhantes, de Chaplin e Claire, além, é claro, da sensibilidade que rege toda a obra. O filme de 1952, trata sobre aspectos relacionados com a superação das dificuldades, do prazer e das dores da vida, e da busca por sonhos e objetivos. Com um roteiro excelente e uma trilha cativante, a película nos conquista logo nos primeiros minutos, e daí pra frente, nossas emoções se misturam numa variante entre choros e gargalhadas. Os dramas de Calvero e Thereza nos envolvem durante toda a trama. E pra quem conhece, impossível não lembrar dos versos de Antônio Marcos:
"Vejam só Que história boba eu tenho pra contar Quem é que vai querer me acreditar Eu sou palhaço sem querer
Vejam só Que coisa incrível o meu coração Todo pintado e nessa solidão Espera a hora de sonhar (...)
(...) Ah, no palco da ilusão Pintei meu coração Entreguei, entreguei amor e sonho sem saber Que o palhaço pinta o rosto pra viver
Vejam só E há quem diga que o palhaço é Do grande circo apenas o ladrão Do coração de uma mulher(...)"
O Carteiro e o poeta (Il postino) é uma obra sensível e cativante, ganha o espectador por seu apelo emotivo que se sustenta por este aspecto tocante, uma película que trata o ser humano por um viés amável e ligado por laços verdadeiros, retratados com maior destaque na amizade entre Pablo Neruda (Phillipe Noiret) e o carteiro Mario Ruoppolo (Massimo Troisi). Dirigido por Michael Radford, O carteiro e o poeta foi lançado em 1994, durante este período o filme ganhou visibilidade e um destaque merecido.
Mario é um homem simples que teve a oportunidade de ser o carteiro particular do poeta Pablo Neruda durante seu exílio numa ilha da Itália. Desta relação, inicialmente profissional, nasce uma amizade, que de forma tímida, ganha corpo e força. Assim, Mario passa a acreditar que Neruda pode se tornar seu cúmplice e ajudá-lo a conquistar uma jovem. E a partir disto, o carteiro descobre a poesia como linguagem, porém mais que isso, como meio de expressão da alma.
O filme de 94 tem a poesia como pano de fundo e a sensibilidade a flor da pele dita o tom durante sua exibição. Trata-se de uma obra delicada e emocionante que ganha o espectador desde os primeiros minutos. Tudo é belo e o roteiro, muito bem feito, em conjunto com a direção, explora os elementos com eficácia. O carteiro e o poeta também apresenta um discurso político em ataque a repressão contra os comunistas e retrata, mesmo que de forma leve, a exploração da miséria e da pobreza através de uma política mesquinha e torpe.
A união da poesia de Pablo Neruda com as belas paisagens e principalmente com a atuação de Massimo Troisi, torna o filme belo e delicado. Massimo, vivendo o carteiro Mario, se destaca de forma brilhante. Trata-se de uma atuação feita com alma e sensibilidade, sem dúvida um personagem que fascina por sua grande entrega emocional. Como nota triste, fica o relato de que o ator veio a falecer logo após as filmagens, por isso que nos créditos finais ele é homenageado. O filme de 94 é tão delicado quanto a obra de Neruda. E como é dito que a poesia não pertence ao poeta, mas aos que precisam dela, a película de Radford utiliza as palavras do poeta e se eterniza como poesia em formato de filme.
Um filme que se apega na simplicidade e conduz neste sentido um enredo cativante e sensível. A Princesa e o plebeu (Roman Holiday) se mostra grandioso nos pequenos detalhes e se apega nas relações simplistas como elo central. A obra se passa numa atmosfera em que este cenário aparece como primordial na medida em que Audrey Hepburn e Gregory Peck nos cativam com interpretações verdadeiras e sublimes. A película de 1953 é uma referência no gênero de comedia romântica e mesmo com o passar do tempo sua grandiosidade permanece inabalável, de fato continua intacta.
Princesa Ann (Audrey Hepburn) é uma princesa moderna, que se rebela contra os seus deveres reais e decide se aventurar em Roma. O que ela procura é viver como uma garota normal sem os compromissos que rodeiam sua vida. Certa noite foge do palácio e vai em busca de realizar o seu conto de fadas às avessas. Nesta empreitada, conhece Joe Bradley (Gregory Peck), um jornalista americano em busca de uma reportagem, que finge não saber da identidade de Ann. Porém certas situações fazem com que Joe mude sua intenção, na medida em que o tempo vai passando e o destino de Ann começa a cobrar o seu retorno.
A Princesa e o plebeu é uma espécie de conto de fadas às avessas: a princesa cansada de sua vida monótona e repleta de compromissos decide enveredar por caminhos comuns dentro da normatividade cotidiana. Numa das primeiras cenas, podemos perceber esta atmosfera que rodeia Ann quando na festa, no momento em que ela recepciona os convidados ilustres, a câmera nos mostra a princesa com um certo incômodo por conta de seu sapato. O diretor Willian Wyler consegue ambientar o incômodo em que se encontra a personagem com maestria e perspicácia. Nos planos seguintes, pós fuga, somos presenteados com atuações magnificas por parte de Audrey e Gregory. A malícia e malandragem do personagem de Peck é funcionalmente intercalada com um ar sedutor, onde o ator consegue oferecer vida a esta personagem com eficácia e brilhantismo. Já Audrey está fantástica. Uma atuação brilhante de um dos maiores ícones do cinema. A Princesa Ann é uma mistura de inocência com travessura, uma personagem apaixonante que cativa o espectador. Audrey mais uma vez aparece de forma doce e sublime.
O filme de 1953 tem nos seus personagens principais o ponto alto. As interpretações são gigantes e dão o tom para o prosseguimento da obra. O roteiro também aparece com este ar simplista que permeia todo o ambiente e faz da Princesa e o plebeu uma referência. A fotografia é belíssima e explora com precisão o cenário. Durante a película somos tomados por esta atmosfera e assim permanecemos atentos e instigados com a estória da princesa com o jornalista. Quando os minutos finais se aproximam nos envolvemos ainda mais e na sequência final, que é excelente e foge e muito do clichê, a única reação que podemos ter é levantar e aplaudir de pé. Uma obra-prima que permanece eterna mesmo com o passar do anos. A princesa e o plebeu é como os grandes vinhos, onde o tempo na verdade só faz bem.
Um grito que ecoa sem falsos pudores ou moralismos. Berros de uma realidade deixada de lado e marginalizada por padrões sufocantes e repressores, mas que se expressa através da arte e enxerga na arte um ângulo diferenciado e libertário para olhar o mundo. Uma maneira que foge do convencional, porém que preza por uma vida sem rótulos, liberdade no sentido mais restrito da palavra. Após Amarelo manga e Baixio das bestas, Claudio Assis consegue alcançar um amadurecimento grandioso em sua obra posterior, Febre do rato. Um filme lançado em 2012, uma obra que merece cada elogio: se apresenta de forma grandiosa e com um brilho original.
Zizo (Irandhir Santos) é um poeta contestador e anarquista que produz um pequeno tabloide chamado de febre do rato. Ele vive num universo que permite suas expressões e sentimentos. Cercado por amigos o personagem conduz suas indagações, anseios e convicções, com credibilidade e apreço. Porém suas crenças parecem entrar em divergência por conta de Eneida (Nanda Costa). Zizo, arrebatado por uma paixão exacerbada, enxerga no amor um elo antes negado, assim os conflitos entre o individuo e a coletividade se instaura e dá o tom para o restante da película.
O filme de 2012 apresenta um discurso muito bem definido. A obra contesta certos dogmas e valores sociais enraizados na sociedade. Abre um debate entre felicidade e pudor, dialogando de forma honesta e pertinente. Febre do rato mostra os desejos e cotidiano de uma parcela social esquecida e marginalizada, porém que buscou e busca constantemente seus próprios meios para alcançar a felicidade. O filme fala sobre certos grupos sociais que nos deparamos cotidianamente, mas que o preconceito e os pudores fazem questão de marginalizar e excluir. É um mundo que clama por entendimento e dialogo, mas enquanto eles não chegam, transforma o caos diário em arte e vida em poesia.
Febre do rato é uma obra belíssima. Sem dúvida alguma, trata-se de uma obra-prima. O filme apresenta uma grande direção, atuações excelentes, fotografia de primeira, trilha cativante e um roteiro genial. A forma como a estória é construída é grandiosa, uma obra de arte de fato. A direção de Claudio Assis é eficiente ao extremo e de muito bom gosto, quando as sequências em plongée, que remete a tarkovski, por exemplo, surgem na tela compravam esta afirmativa. Mas o personagem Zizo é o grande destaque. A atuação de Irandhir é fenomenal e consolida o personagem. A atmosfera do filme é ditada pelo poeta das ruas que de forma inflamada, porém dócil e cativante, oferece voz para os oprimidos e marginalizados. Há quem diga que o personagem é o alter ego de Cláudio Assis, sendo a diferença deles o fato de um fazer filmes como forma de expressão e o outro se expressar através das poesias, faz sentido, sem dúvida. Mas o fato é que Febre do rato é mais um filme com a assinatura de Claudio Assis, mais um filme honesto e que apresenta uma visão de mundo que se aproxima do real. Uma obra que encontra em Zizo a representação e um símbolo de liberdade e coragem, tal qual encontramos nos próprios filmes de Cláudio.
Uma homenagem a um dos maiores clássicos do cinema. Vestida para matar (Dressed to kill) é uma referência explicita ao imortal Psicose do genial Hitchcock. Em algumas outras oportunidades, comentei sobre certa alcunha que utilizo para me referir a Brian De Palma, trata-se de chamá-lo de o filho do suspense. Pois bem, neste filme que me refiro, tal alcunha é comprovada e mais que isso sacramentada. Muitos foram os diretores que tentaram remontar a atmosfera de suspense que permeia nas obras do mestre Inglês, Scorsese por exemplo tentou em A ilha do medo, porém na minha opinião, não alcançou a essência almejada. Mas não quero entrar neste mérito, o fato é que Brian De Palma conseguiu alcançar seu objetivo e se consolidou não como o sucessor de Hitch, mas como um grande diretor que procura no ídolo referências concretas e eficientes.
Em Vestida para matar o terapeuta Robert Elliott (Michael Caine) mantém um consultório em Manhattan. Bem requisitado, trata-se de um profissional competente e confiável. Porém sua vida se torna conturbada quando um psicopata começa a atacar suas clientes usando uma navalha roubada de seu escritório. A trama ganha um clima de suspense intenso e a caçada ao assassino assume o papel central do enredo. Asim Elliott se enxerga envolvido em um ambiente repleto de mistérios e de desejos reprimidos.
Vestida para matar, como já foi dito, é um referência a Psicose. Mas não se trata de uma referência esdrúxula ou capenga, Brian De Palma foi competente de forma extrema e o seu filme oferece características próprias e eficientes. Logo na sequência inicial o "ataque" no banheiro nos mostra que se trata de uma homenagem a este que é um dos maiores clássicos da história, além de nos preparar para os minutos seguintes. Aos poucos somos apresentados a rotina da personagem Kate Miller (Angie Dickinson), na medida em que a obra vai nos mostrando os aspectos que farão parte da trama. Somos ambientados com a película e envolvidos de forma competente.
Brian De Palma nos conduz como um grande regente, sua direção é impecável em cada detalhe, seja nos enquadramentos ou na escolha dos objetos. A sequência do museu é um dos momentos mais célebres da direção. A liberdade como a câmera caminha nos corredores do ambiente, os enquadramentos e a utilização de uma câmera subjetiva muito bem elaborada, coloca o espectador presente com intensidade e mais que isso, o suspense se mistura com os olhares atentos. Nesse momento, a trilha também assume um papel importantíssimo. A música em conjunto com as imagens, ambienta com eficiência o suspense exigido e assim nos confundimos: estamos diante de um filme de Hitchcock ou de Brian De Palma? Mas volto a dizer, não se trata de uma cópia barata. Tecnicamente De Palma também é, acima de tudo, um mestre.
Mas nem tudo são flores. Se tecnicamente De Palma se mostrou um mestre, numa direção fantástica que opta por uma liberdade exacerbada nos movimentos de câmera o que se mostra não só funcional, mas principalmente, com a grandeza de quem sabe montar cada detalhe de uma linguagem cinematográfica composta com maestria e eficiência, na composição do roteiro este referencial ficou no caminho. A estória é muito engessada. A narrativa fica muito presa em Psicose o que, de certa forma, prejudica e torna o enredo previsível. Mas não creio que tal situação chegue a prejudicar a qualidade da película, o fato não ofusca o brilho do filme e principalmente da direção de De Palma. Muitos afirmam que Scorsese é o maior diretor ainda vivo, talvez alguns desses não enxerguem a grandeza de Brian, mas foi assim com muitos, inclusive com Kubrick, que se tornou um ícone após a morte. Enquanto muitos criticam De Palma, os seus filmes surpreendem com uma direção ousada e artesanal, principalmente quando nos referimos a certas possibilidades que a câmera propicia.
"O sabiá no sertão, quando canta me comove, passa três meses cantando e sem cantar passa nove, porque tem a obrigação de só cantar quando chove..." O imaginário do sertão nordestino é um misto de miséria e fé. A realidade do sertanejo não difere muito do imaginário das grandes obras que retrataram este universo ao longo do tempo. Claro que este ambiente, assim como a sociedade de forma geral, sofreu algumas variantes com o tempo, o processo de urbanização do país, a consolidação dos meios de comunicação de massa, são alguns desses vetores. Mas irei parar por aqui, pois na verdade, proponho um regresso, a pauta do dia é o filme Deus e o diabo na terra do sol, um clássico do Cinema Novo Brasileiro, dirigido pelo baiano Glauber Rocha.
O filme conta a estória do vaqueiro Manoel (Geraldo del Rey) e sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães). Manoel se revolta contra a exploração do coronel Moraes (Milton Roda) e acaba matando-o. Os jagunços do coronel perseguem o vaqueiro que acaba fugindo com sua esposa. O casal se junta aos seguidores do beato Sebastião (Lídio Silva) que promete o término do sofrimento através da fé. Porém, em paralelo ao crescimento do grupo, um matador de aluguel a serviço da Igreja Católica e dos latifundiários da região, tem a missão de exterminar o beato e seus seguidores. Nesse contexto, Manoel e Rosa conseguem escapar com vida e acabam encontrando Corisco (Othon Bastos), um remanescente do bando de Lampião.
Deus e o diabo na terra do sol é um filme do movimento denominado por Cinema Novo. Motivados por diversos elementos da cultura brasileira, alguns jovens se uniram no intuito de fazer filmes com diálogos mais verdadeiros com a cultural local. Buscando referências no Neo-Realismo Italiano e na Nouvelle Vague, o Cinema Novo propôs uma produção autoral e livre de certos esteriótipos, além de uma abordagem politizada na produção de um discurso intelectual na tentativa de alertar as massas. O filme de Glauber é de 1963 e junto com os Fuzis e Vidas Secas, compõe a chamada trilogia do sertão produzida pelo Cinema Novo. O movimento brasileiro encontra na cultura popular um alicerce seguro, rompe-se com a identidade folclorista, na medida que a realidade pobre e marginalizada é apresentada em detrimento da ilusão de um suposto desenvolvimento econômico e social do país.
O filme de 63 é composto por todos os elementos basilares da cultura sertaneja, retratada na literatura e em diversas produções culturais. Temos seca, fé, mitos, interesses políticos, cangaceiros, coronéis, alienação, fome, miséria e até o cordel. A retratação deste ambiente é conduzida na medida em que um discurso forte e orientador é transmitido. A mensagem do filme é clara e não deixa dúvida: " a terra é do homem. Não é de Deus nem do Diabo..." O homem é o dono de seu destino, e precisa urgentemente, atentar para sua condição desumana, "é preciso estar atento e forte..." Glauber conduz o espectador por um clássico do cinema nacional. Somos colocados frente a frente com a exploração da miséria, com a exploração do homem pelo próprio homem, um espaço onde fé e alienação aparecem como sinônimos. Trata-se de um ambiente extremamente miserável, mas sustentador de um sistema parasitário e mesquinho.
Deus e o diabo na terra do sol se inicia com uma tomada panorâmica do sertão. Na obra percebemos a influência do "western" na composição da película e na retratação de certos personagens. A fé e a alienação são as bases do filme, além do coronelismo que também se mostra presente. Manoel segue Sebastião no intuito de encontrar um outro caminho, uma tentativa de fuga motivada por sua vontade de mudar uma realidade de extrema pobreza. Ele é o retrato de um homem humilde que sem alternativas concretas se ampara na fé e acredita que um dia "o sertão vai virar mar.." Já a esposa de Manoel, Rosa, representa a consciência: ela reluta em continuar onde vive e tenta de todas as formas esclarecer o marido. A forma como o baiano, Glauber Rocha, conduziu a obra referenda e justifica os elogios recebidos. Já bastava toda a ambientação do momento/local no aspecto visual, mas o diretor foi além e demostrou um toque refinado de genialidade na trilha sonora: ele intercala o eruditismo de Heitor Villa-Lobos com um elemento da cultura popular nordestina, o cordel. E é justamento o cordel, escrito pelo próprio Glauber, que anuncia e dita os passos de Manoel em sua empreitada.
A obra de Glauber é cercada por elogios e aclamações, mas nem só de glórias ela vive. É verdade que o seu legado é grandioso e enriquecedor, porém seu estilo não agrada uma parcela também considerável. Gostar ou não gostar da estética proposta pelo baiano não é coisa de outro mundo, nem sinônimo de déficit intelectual, na verdade trata-se de uma questão de gosto, muitas vezes. No meu caso, particularmente, eu gosto do cinema dele, como de tantos outros. A forma como propõe debates e questionamentos me agrada e mais que isso, me convence. Mas voltando a discussão anterior, não gostar da obra não é problema, porém negar a importância de Glauber no processo de construção e aceitação da própria identidade local é um erro gravíssimo. Deus e o diabo na terra do sol é uma das provas desta minha afirmativa. Na minha opinião,é um trabalho grandioso de um conterrâneo arretado! Uma obra-prima da sétima arte.
"Qualquer semelhança com eventos e pessoas da vida real não é coincidência, é intencional." É desta forma que Costa-Gavras inicia o seu filme, o polêmico Z. Lançada em 1969 a obra esteve censurada em diversos países, inclusive no Brasil onde permaneceu por pouco mais de uma década. Z é um discurso político forte. Uma película que utiliza a linguagem cinematográfica com o intuito de alertar o mundo contra a manipulação governamental em benefício de certos interesses políticos. Um fato real é utilizado como pano de fundo na composição do enredo, uma abordagem corajosa que ecoa como berros.
O filme trata de fatos reais ocorridos na Grécia em 1963. Um professor de medicina e deputado grego, Gregoris Lambrakis, (Yves Montand) - um dos líderes da oposição esquerdista - organiza em conjunto com sua base, um comício pela paz e contra a instalação de mísseis americanos em território grego. Mesmo com empecilhos a reunião acontece, com um clima de tensão tomando conta do local. No final, o deputado é vítima de uma atitude violenta e dias depois acaba falecendo. A polícia conclui o caso como um acidente, porém existem indícios que levam um jovem juiz a suspeitar da conclusão e se aprofundar nas investigações. Com a ajuda indireta de um fotojornalista e algumas testemunhas, ele consegue revelar uma trama de membros do governo como os autores do crime. Todos são indiciados, mas as testemunhas acabam morrendo e os envolvidos são condenados a penas leves.
O filme de Costa-Gavras é baseado no romance homônimo de Vassilis Vassilikos. A obra retrata os acontecimentos que culminaram na instauração de uma ditadura militar na Grécia. O filme não aborda sobre o golpe em si, mas a morte do deputado foi o estopim para este processo. Com a morte do parlamentar e o governo sendo condenado, a esquerda criou força suficiente para vencer as eleições, porém os militares instauraram o golpe. Com o fim da Segunda Guerra o mundo se viu dividido entre comunistas e capitalistas, na chamada Guerra Fria, o clima de tensão e violência fazia parte do cotidiano naquele período. Diversas ditaduras assumiram o poder na América Latina e no sul da Europa, a maioria por golpes de Estado entre as décadas de 60 e 70, e na Grécia este processo ocorreu em 1965.
O assassinato do parlamentar, assim como retrata o filme, ocorreu em praça pública. O crime foi praticado por militantes de extrema direita e foi planejado e financiado por militares. A morte de Lambrakis provocou a revolta de seus seguidores, que durante as manifestações, pintavam a letra Z, inicial da palavra ZEI, que em grego significa "ele vive". É neste contexto de tensão e conspirações que Z se sustenta. A obra explora este cenário e assim somos guiados por um enredo baseado em fatos verídicos. A retratação do tema, no mínimo polêmico, é conduzida com eficiência e maestria.
Nos primeiros trinta minutos a obra apresenta alguns problemas e o ritmo é prejudicado, mas Costa-Gavras se recupera e ambienta com méritos o momento, e principalmente, o clima de tensão, que passa a tomar conta tanto do cenário quanto do espectador, vide a cena do comício onde a tensão é transmitida de forma extremamente funcional em cada olhar, em cada gesto. O terreno é preparado e quando o juiz passa a investigar o crime, a obra alcança o seu ponto máximo. Outro elemento que merece destaque é a trilha. Que consegue, também, fazer um clima ainda mais evidente. Na cena em que uma testemunha é perseguida por um carro, numa tentativa de atropelamento, temos um exemplo de como a música funciona neste processo. Z é uma das maiores obras do cinema político. Um filme necessário por seu papel esclarecedor e seu discurso contundente. Só por conta das censuras sofridas, o filme já aguça a curiosidade. Uma obra que merece cada prêmio e cada elogio recebido. Filmes como Z são armas, mas armamentos em prol do conhecimento e da cultura. Uma obra corajoso de um diretor conhecido por seu discurso político e por sua militância.
Acossado (À bout de souffle) de Jean-Luc Godard é um marco no cinema moderno, por isso falar sobre tal obra é no mínimo difícil, mas como os desafios movem o ser humano, tentarei comentar sobre o filme. Lançado em 1960 as inovações proporcionadas por esta obra continuam evidentes colocando-a como uma referência ainda nos dias atuais. Sem dúvida alguma, estamos falando de uma obra-prima cujo a eternidade é um patamar alcançado com todos os méritos possíveis. Com mais de 50 anos, fica evidente que o tempo só serviu para consolidar ainda mais o projeto de Godard, uma coroação merecida para um trabalho inovador e autêntico.
Após roubar um carro em Marselha, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) segue para Paris. No caminho um policial tenta prendê-lo por excesso de velocidade e Michael o assassina. Ao chegar em Paris, ele conquista a relutante Patricia Franchisi (Jean Seberg), uma estudante americana, e assim, permanece escondido para receber um dinheiro que viabilize a fuga de ambos pra Itália. Mas logo o crime cometido por Michel chega aos jornais e ele se encontra sem opções.
O enredo de Acossado não se mostra tão inovador. Desta forma, podemos perceber que não é na estória que se encontra o brilho do filme, na verdade, o máximo alcançado por parte da obra deve-se ao processo de construção da narrativa, é a forma como a estória é contada que coloca a película de Godard no mais alto degrau do cinema moderno e viabiliza sua eternidade. O filme foi um dos primeiros da Nouvelle Vague, movimento liderado por jovens críticos de cinema que escreviam na revista Cahiers du cinema, onde buscava-se uma ruptura com o modelo conservador que tomava conta do cinema, no intuito de estabelecer um diálogo autoral e autêntico. O lançamento de Acossado, já em 1960, causou polêmica e dividiu opiniões, uma parte se curvou diante das inovações propostas e reconheceu a obra como genial, e tantos outros, a condenaram. Mas a verdade é que o filme permanece inovador mesmo com o passar do tempo, confirmando o seu valor e mostrando quem estava certo e quem estava errado nesta discussão. Godard conduziu sua carreira e dedicou um bom tempo para uma minuciosa pesquisa estética. O experimentalismo e a ruptura foram características marcantes de Jean-Luc que dialogou não só com o cinema, mas com diversas esferas da arte.
Para entender a importância que Acossado tem para o cinema moderno, torna-se necessário um regresso histórico, sendo assim, tentarei montar este ambiente nas próximas linhas. Peço licença ao leitor, mas trata-se de uma situação necessária. Nos primórdios, o cinema não era visto com o glamour que hoje o acompanha, muito pelo contrário, tratava-se de uma "produção" voltado para as classes sociais menos abastadas, situava-se nos guetos. Segundo Arlindo Machado, ele reunia, na sua base de celuloide, várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia... Marginalizado pela sociedade, o cinema figurava nos guetos das cidades, em ambientes denominados de vaudevilles. Esses eram locais bastante populares e um tanto mal afamados, os vaudevilles eram abominados pelas plateias mais sofisticadas, visto como zona de bebedeira e prostituição.
Ainda de acordo com Machado, nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível insuportável, os industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na condição de fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses homens todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento comercial do cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe média e os segmentos da burguesia. Essa nova plateia não apenas era mais sólida em termos econômicos, podendo portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de lazer infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes. Assim surgiu um cara chamado D. W. Griffith que assumiu um papel de protagonista neste processo, onde seu filme O nascimento de uma nação de 1915 aparece como um marco desta ruptura. Pois bem, pegando emprestado uma prática cinematográfica, a chamada elipse, proponho um corte... Já nos encontramos em 1941, ano de lançamento do clássico Cidadão Kane de Orson Welles. Cidadão Kane, assim como O nascimento de uma nação, representa um marco. O filme de Welles propôs inovações narrativas e de enquadramentos cinematográficos, sendo fundamental para o amadurecimento do modelo de cinema clássico hollywoodiano, inaugurado lá atrás com Griffith.
E onde porra entra Acossado nessa história toda? Calma, jovem! Acossado aparece em 1960. Godard propõe uma ruptura com o modelo engessado, e até então, visto como único para contar uma estória nas telas. O Francês propõe diversas inovações, juntamente com outros membros da Nouvelle Vague, no intuito de inaugurar um cinema de baixo orçamento, com obras autorais e experimentais. O filme aparece como marco inicial, numa perspectiva que alcançaria seu amadurecimento com o tempo, porém que nascia ali. Sendo assim, é necessário esclarecer as características que fizeram de Acossado uma obra de tamanha importância.
Segundo o próprio Godard, ele foi escrevendo o roteiro de forma improvisada. “Acossado começa assim: eu havia escrito a primeira cena (Jean Seberg caminhando nos Champs Elysées), e para o resto do filme eu tinha uma pilha de notas, uma para cada cena. Disse a mim mesmo: “isto é terrível”, e parei tudo. Então pensei: se em um dia é possível filmar cerca de doze planos... então, em vez de escrever todo o roteiro antecipadamente, decidi improvisar as cenas de cada dia, tomando como referencia as notas que tinha em meu caderno”, disse Godard em 1961. E segundo o crítico Flavio Guirland, a displicência com que o realizador elaborou o roteiro acabou contaminando outros aspectos da produção, o que o levou a infringir certas regras características do cinema comercial: as filmagens minuciosamente planejadas dos estúdios cederam lugar às locações externas, sujeitas à ocorrência de todo tipo de acasos; as tomadas de planos, em geral repetidas até que se consiga atingir os limites da perfeição, foram realizadas muitas vezes em um único take; aos atores, normalmente condicionados a atuar segundo um estilo de interpretação bastante regrado, foi dada completa liberdade para improvisar.
Mas o grande lance de Acossado se encontra na narrativa. A forma como Godard construiu a estória é o que faz desta obra um marco. Trata-se de uma obra pioneira que ofereceu alternativas de qualidade ao modelo de estúdio hollywoodiano. Ângulos incomuns de câmera, fortes cortes na cena (jump cut) e o uso de câmeras portáteis que permitem movimentos livres, são algumas das inovações propostas nesta obra. De acordo com Guilrland, opondo-se ao modelo da narrativa causal, Godard agencia novos esquemas de relações entre os elementos cinematográficos, privilegiando agora uma “lógica da ação”, aqui a dedução discursiva de uma estória em nada auxilia na compreensão do filme. O sentido é dado por uma câmera que testemunha os fatos, mas não explica, não conclui. Ele existe numa relação orgânica com a ação dos personagens. O critério relativo à mise-en-scéne (direção de cena) passa a ser a dominante, sobrepondo-se à exposição coerente do enredo. Ainda segundo Guilrland, a valorização da descontinuidade (e não o seu ocultamento) será o traço estilístico distintivo que irá romper de vez com a ideia de identificação...tomemos como exemplo a seqüência em que Michel e Patrícia passeiam de carro pela cidade. Num plano próximo, vemos Patrícia (por trás, em plongée), sentada no banco dianteiro, ao lado de Michel. Enquanto ele discursa: “Amo uma garota com o pescoço lindo / com seios lindos / com uma voz linda / com pulsos lindos / com uma testa linda / e joelhos lindos... / mas que é covarde!”, ela permanece o tempo todo diante de nós, no mesmo enquadramento. Percebemos, no entanto, através dos cortes, que o carro trafega por diferentes avenidas e ruas da cidade, em diferentes momentos. Tal combinação produz, para além da descontinuidade visual, uma síntese de tempo, e nos sugere que a duração daquele passeio é bem maior do que poderíamos imaginar. O exemplo citado por Flavio, coloca Acossado na perspectiva definida por Aumont de filmes que buscam um rompimento com o olhar.
Poderíamos continuar debatendo sobre as inovações propostas em Acossado, e ainda assim, muitos seriam os pontos a serem abordados. Mas pra não alongar muito, proponho que o próprio leitor veja o filme e tire suas conclusões. Porém é evidente o quanto Acossado é importante na consolidação de um cinema autoral. Suas inovações influenciaram diversos movimentos cinematográficos, inclusive o cinema novo brasileiro. Estamos falando aqui, de uma referência não apenas cinematográfica, mas principalmente intelectual. Godard é uma das mentes mais brilhantes, e não só do cinema. Sua obra é essencial! Não é por acaso, que a Mônica, namorada do Eduardo, queria ver o filme do Godard, enquanto o Eduardo preferia uma lanchonete. Enfim, maluco para alguns e gênio para outros, mas o fato é que Godard permanece causando polêmica e aflorando debates, mesmo com o passar dos anos, seu legado se mantém atual. E as conclusões, ficam a cargo de cada um. O fato é que sua obra se mostra diferente a cada indivíduo. Não gostar do seu modo de fazer cinema é uma coisa, mas negar suas contribuições, é no mínimo um grande déficit cultural.
Os moldes econômicos da sociedade passaram por um processo de metamorfose no decorrer dos tempos. No Feudalismo, a sociedade majoritariamente rural produzia para sua sobrevivência. O excedente desta produção desenvolveu um mercado nas feiras, os chamados burgos. Nos burgos emergiu uma nova classe social que ficou conhecida como burguesia, um grupo ainda sem prestigio. Por isso várias vezes tal grupo aliou-se com pessoas que detinham um papel forte no contexto social da época, por exemplo, na consolidação dos estados nacionais (aliou-se com a nobreza), porém quando os burgueses perceberam que esta aliança não trazia mais vantagens para si, adotaram um papel revolucionário baseado nos pensamentos iluministas, que tiveram início no século XVII, na Inglaterra, inspirados por alguns filósofos importantes da época: René Descartes, Thomas Hobbes, entre outros. O Iluminismo sugere uma nova maneira de pensar o mundo. Rompe-se com o pensamento passado e a racionalidade é colocada como ideia central. O ideal iluminista impulsionou, por exemplo, a Revolução Francesa no século XVIII, acabando com a monarquia implantada na França e levando a burguesia ao poder, inaugurando assim, a chamada modernidade.
A modernidade se constituiu como uma espécie de revolução no pensamento e comportamento humano, percebido desde as ciências humanas até as artes, mas sua definição é algo conflitante dentre os diversos estudiosos e sua aplicação nas sociedades ocidentais se dá em todas as áreas do conhecimento. Após a divisão de classes e a consolidação do capitalismo, a humanidade atinge seu estado maduro, levando em consideração os rumos políticos e econômicos. Isto começou a acontecer a partir do momento em que o sistema capitalista foi se desenvolvendo e tomando suas formas atuais, o que intensificou a divisão do trabalho existente e esta foi se expandindo pelo formato de globalização de nosso mundo, cada vez mais ocidentalizado. Segundo Jürgen Habermas, “a Modernidade é um processo inacabado”, pois a sociedade não conseguiu atingir um patamar- e dificilmente atingirá- onde todos os seres humanos detenham as mínimas condições de vida. Após a implantação e consolidação do sistema capitalista, a luta de classes foi acirrada gerando uma disparidade entre os detentores do poder e do capital, em relação ao operariado, utilizados como “massa de manobra” para a obtenção de lucros. Mas no século XX, surgiu o pensamento Pós-Moderno, que busca romper com a racionalidade e colocar a subjetividade em evidência, porém este pensamento não pode ser considerado como algo totalmente inovador, pois no campo político e econômico a sociedade continua a seguir nos moldes do capitalismo. Assim o pensamento Pós-Moderno não conseguiu mudar e nem levar o mínimo de condição de vida para todos os indivíduos: as estruturas sociais continuam as mesmas.
Pois bem, visto um breve contexto com relação ao surgimento e consolidação da burguesia como classe social, iremos tratar do assunto exclusivo deste bendito Blog, vamos falar sobre cinema. O fato de ter iniciado com um relato sobre a burguesia não é de forma alguma algo fora da narrativa do texto que segue, afinal O discreto charme da burguesia, um filme dirigido por Luis Buñuel e lançado em 1972, é o alvo desta breve análise. Vamos lá, cara pálida! Chega de embromar! Tá certo, tá certo... Uma sátira direcionada a burguesia, construída de forma bastante inteligente, O discreto charme da burguesia é uma obra de muito bom gosto e direcionada para um público admirador do cinema, porém pensante acima de tudo. O filme mistura situações "reais" da narrativa com os sonhos e devaneios dos personagens. A obra se passa num momento em que alguns amigos tentam de todas as formas organizar um jantar, porém algumas situações sempre surgem para atrapalhar os planos. A obra é uma crítica a hipocrisia da vida social burguesa. Um retrato decadente de uma classe social sempre criticada e apontada, porém que se mantém "dando as ordens" graças ao talento diplomático. Buñuel escolheu este cenário para elaborar sua crítica a partir de um humor ácido através da comédia e da fantasia na tentativa de atingir seu objetivo.
O projeto do diretor foi extremamente funcional. A construção do filme consegue alcançar o planejado e assim a obra permanece como sinônimo de requinte intelectual. Partindo deste princípio, torna-se necessário esclarecer alguns aspectos da película, principalmente relacionados com a narrativa, para que o leitor, que ainda não viu o filme, ou mesmo o que viu, possa vislumbrar, mesmo que através das palavras, o cenário construído por parte do filme. Pois bem, a trama gira em torno de um jantar, porém um momento que sempre é "atrapalhado" por alguma situação. Trata-se de um jantar combinado por seis amigos burgueses que não contam com nada mais atrativo ou proveitoso para fazer, estão sempre a combinar, porém nunca conseguem concretizar seus desejos. E assim eles permanecem insistentes durante a película, afinal trata-se do clímax, abrir mão do jantar seria o mesmo que perder a única "emoção" proporcionada. Desta forma, o tal jantar se apresenta como o eixo para o desenrolar da narrativa.
Buñuel conduz os personagens e também o espectador na medida em que o jantar se configura como a "única" emoção do filme, assim em certos momentos nos enxergamos torcendo para que este acontece logo: poderemos perceber o que existe neste "suspense", mas na verdade nada existe, trata-se apenas de um jantar. A partir de certo ponto, Luis passa a questionar ainda mais a passividade do espectador: ele intercala sonhos e "realidade", deixando a narrativa caminhar entre o "real" e a fantasia. Nos sonhos somos apresentados a certos desejos e traços dos personagens de forma bastante ácida, e mais uma vez, o jantar se encontra como eixo central. Somos apresentados a pessoas mesquinhas, vagas e totalmente insensíveis. São pessoas que se odeiam entre si, porém por conveniência se suportam e trocam "figurinhas". A hipocrisia é mostrada de maneira inteligente, trata-se de uma abordagem construída nas entrelinhas que exige concentração e percepção ao espectador. Durante certos momentos observamos o grupo de "amigos" a caminhar sem rumo ou propósito, ou seja, do nada pra lugar nenhum. É assim que Buñuel enxerga e nos mostra a burguesia, uma classe social sustentada em falsidades e futilidades, pessoas sem propósito algum, que não ligam pra nada além do próprio umbigo. O discreto charme da burguesia é um filme essencial. Tecnicamente a obra é funcional, haja vista certos movimentos de câmera. As atuações são boas e a montagem é inteligente, porém, sem dúvida alguma, o roteiro é o grande destaque. O filme é uma sátira genial que me fez lembrar do poeta quando disse que a burguesia fede - porém me mostrou de forma ainda mais clara, o complemento dito por Falcão - mas tem dinheiro pra comprar perfume.
O cinema de Claudio Assis não é um cinema comum. A lógica adotada pelo diretor muitas vezes assusta e causa polêmica, porém seus filmes são honestos e buscam uma abordagem dura se aproximando ao máximo do real. Baixio das Bestas lançado em 2006 confirma este discurso e não me deixa mentir. Com um tom polêmico, mas uma polêmica causada por sua abordagem verdadeira e sem falso pudor, a obra é extremamente dura, porém retrata temas verdadeiros com discursos fortes e longe da espetacularidade.
Numa pequena comunidade no Estado de Pernambuco se passa a vida de Auxiliadora (Mariah Teixeira), uma menina explorada sexualmente por seu Avô, mas existem suposições de que na verdade ele é o seu pai, seu Heitor (Fernando Teixeira), um moralista ranzinza que em tudo vê falta de autoridade, mas ganha dinheiro explorando a menina. Cícero (Caio Blat) é um jovem de classe média que estuda em Recife e passa os fins de semana no interior onde vive sua família. Lá, se "diverte" na companhia dos amigos. O lazer dos rapazes é violentar as prostitutas da região, regados a muita bebida. Neste contexto, a vida de Cícero e Auxiliadora se cruzam, e a partir daí será decidido o destino da menina.
Prostituição, abusos e machismo são retratados de forma crua neste filme de Claudio Assis. Os pudores são deixados de lado numa obra visceral e dura. Com uma narrativa polêmica, Baixio das Bestas dialoga de forma honesta com uma realidade pesada, porém existente, mesmo que o interesse da sociedade em geral seja jogar toda esta merda pra "debaixo do tapete", afinal negar a realidade é muito mais cômodo do que abir os olhos e enfrentá-la. A prova disto, é que é comum as críticas aos filmes de Claudio Assis por seu estilo, considerado muito pesado, mas como afirma o próprio diretor, suas obras são tentativas de se aproximar ao máximo da realidade, e sem dúvida alguma, Assis tem tido êxito neste propósito.
A opção estética pelo grotesco reforça a intenção do diretor e se mostra extremamente funcional em seu propósito. A construção da fossa no quintal, por exemplo, que, aparentemente não tem serventia alguma, funciona como metáfora para uma visão de mundo particular, onde o odor desencadeado talvez pela fossa, ou pelo vinhoto produzido pelas usinas próximas, é na verdade, o cheiro da podridão do mundo.
Baixio das Bestas conta com um elenco de primeira. Nomes como Dira Paes, Matheus Nachtergaele e Caio Blat fazem parte da película, porém as atuações de Fernando Teixeira e Mariah Teixeira são fantásticas e merecidamente ganham destaque. O filme de 2006 sofreu, e ainda sofre, duras críticas por conta de sua abordagem, muitos consideram desnecessária a intensidade com que Claudio retrata o tema, porém não enxergo assim. Baixio das Bestas mostra uma realidade torpe e nojenta que precisa ser combatida: infelizmente é algo existente em nossa sociedade. E pra finalizar, fico com algumas palavras de Claudio Assis: "a gente tá fazendo uma coisa que acontece no dia-a-dia, eu não acho que isso é violento. Mais violento é ver um programa de madame na televisão, de manhã, mostrando a polícia matando adolescente porque roubou um ônibus. Bush exterminando uma nação na hora do almoço, na hora do jantar, e ninguém diz nada, ninguém reage...."
O Nordeste brasileiro ainda é vitimizado por um sistema opressor e mesquinho que explora as desgraças alheias de forma insensível e egoísta. A mercantilização da miséria se mostra rentável para grandes capitalistas que se aproveitam de um ciclo vicioso para ampliar lucros e riquezas. Sem dúvida alguma trata-se de uma temática polêmica e até mesmo perigosa, na medida em que envolve pessoas poderosas nesta postura torpe e arrogante, porém temos no cinema brasileiro uma obra que aborda tal questão de forma extremamente inteligente, me refiro ao filme Árido Movie do diretor Lírio Ferreira.
Lançado em 2005, Árido Movie mostra o trajeto de Jonas (Guilherme Weber) que vai de São Paulo até a cidade em que nasceu, Rocha, no interior de Pernambuco, onde sua família o espera para o enterro de seu pai. Durante a viagem de ônibus, em uma parada, conhece a videomaker Soledad (Giulia Gam) que lhe dá uma carona até a cidade. Soledad realiza um documentário sobre a escassez de água. O filme começa a tratar, em paralelo, sobre a trajetória de uma documentarista realizando um filme no sertão. O filme se apropria de um gênero muito popular do cinema, o road movie, estabelecendo nele um caminho na medida em que o "cinema fala sobre cinema ao fazer cinema."
Árido Movie é uma obra riquíssima que apresenta alguns temas polêmicos em seu enredo. O roteiro escrito por Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira e Eduardo Nunes explora três importantes questões do Nordeste brasileiro: o dilema político da água , o coronelismo e a plantação e exploração da maconha. A narrativa conta com núcleos de personagens que vivem situações particulares e, em certos momentos, interagem com núcleos distintos. A montagem fundamentalmente fragmentada permite que tal narrativa se desenvolva de forma eficiente durante a película. Dentro do clima intimista regional criado em Árido Movie sobressai na narrativa o linguajar adotado pelos amigos de Jonas. O trio é responsável por imprimir uma veia cômica na obra com expressões de uma pseudo-intelectualidade. O sertão retratado no filme de Lírio Ferreira se mostra como um ambiente repleto de problemas políticos, além da água e da seca, trata também da comercialização da maconha, atividade desenvolvida pela família de Jonas, que se refere sempre como plantação de algodão.
Árido Movie é um filme produzido em Pernambuco. A obra apresenta, como já foi dito, discussões relevantes e densas. No filme, fica evidente, que é a partir do olhar sobre os conflitos identitários do protagonista que emerge a discussão do local, do regional e do nacional, temos um Jonas que não se encontra no Sertão, ele não se enxerga parte daquela realidade. O filme de Lírio é considerado de baixo orçamento, custou cerca de 750 mil. É o típico bom e barato, não é mesmo? Na verdade eu vou além, na minha opinião trata-se de uma obra-prima. Muitos não compreendem a problemática da narrativa do filme. Alguns enxergam como uma apologia a maconha construída de forma irrisória, mas o filme é muito mais. O debate com relação a legalização da maconha é extremamente importante numa sociedade que não mais vive a mesma realidade de anos atrás. Com um roteiro excelente e de muito bom gosto, uma direção de primeira e uma trilha, composta por Otto, extremamente funcional, Árido Movie é uma obra muito maior do que se mostra de forma aparente, mas com relação as opiniões ignorantes e preconceituosas dirigidas ao filme, só posso ficar com o conselho de Cazuza e pedir piedade. É como afirma o personagem Zé Elétrico: "Tá vendo, as coisas tão por aí e a gente não vê. Sabe por que? Preconceito. As pessoas só querem ver o que deixam. É preguiça e preconceito...."
Um Brasil esquecido pelas produções culturais. Na verdade, nem sempre esquecido, mas quando lembrado é formado por certos esteriótipos. Ou segue uma abordagem cômica bestificada ou uma pura violência num jogo entre gatos e ratos. Me refiro a periferia brasileira. Formada por um universo de pessoas, pessoas de carne e osso, muito diferente da abordagem existente no espetáculo midiático, as produções culturais brasileiras buscam um distanciamento desta realidade, na verdade, esta não é a imagem rentável do Brasil. Mas temos algumas exceções neste processo, alguns filmes autorais buscam um diálogo mais honesto com essa esfera social, um exemplo disso, é Amarelo Manga do Pernambucano Claudio Assis.
Lançado em 2003, Amarelo Manga, apresenta um tom verdadeiro. Uma produção representativa numa obra construída sem falsos pudores ou moralismos. A partir do olhar de alguns personagens somos conduzidos por este cotidiano de forma intensa. Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz e Leona Cavalli nos mostram o caminho a ser seguido durante a película com fatos de uma vida comum, repleta de sonhos e decepções, na periferia Recifense, que poderia ser qualquer outra do Brasil. Neste emaranhado de narrativas observamos aspectos do dia-a-dia e como certas questões cotidianas são utilizadas para montar o ambiente popular na construção da narrativa fílmica, numa abordagem que "choca" por seu tom verdadeiro e autoral.
Um filme de baixo orçamento que é eficiente em todos os aspectos. Amarelo Manga é uma produção pernambucana - Estado que tem ganhado destaque desde a retomada do cinema nacional - que propõe um diálogo honesto, sem esteriótipos ou pré-conceitos, com as classes menos abastadas. Os personagens são compostos por individualidades, conflitos pessoais e existenciais - sujeitos em busca da própria "identidade" (que aparece, por exemplo, de forma metafórica na cena em que o personagem de Jonas Bloch esquece sua identidade no bar e volta para recuperá-la) - e não mais representações alegóricas de uma parcela social e de uma região. Trata-se de uma abordagem das construções identitárias por meio da problematização das próprias representações de certos grupos sociais e da sua busca por reconhecimento e significação.
A negação de um cinema brasileiro é uma prática comum no território nacional, algo que não condeno pois cada qual faz as suas escolhas, mas muito desta negação se deve a um complexo de vira-lata que cega o povo brasileiro. Esta realidade não é exclusividade do cinema, porém como aqui o cinema é a pauta, irei retratar apenas esta questão. Os filmes brasileiros muitas vezes não são aceitos. Sei que falta muito para o cinema nacional, aspectos que ultrapassam a questão da produção, mas irei tratar do aspecto estético. Os filmes nacionais não se resumem aos modelos "pastel de vento" da Globo Filmes, temos produções autorais, com baixo orçamento, grandiosas em território tupiniquim, porém a negação desses conceitos é forte e limitadora. O que acontece na verdade é uma negação da própria identidade nacional. Nós não somos a Europa e nem os EUA, podemos até ser melhores, mas iguais nunca. Não somos aquilo que as novelas da Globo insistem em nos fazer acreditar, nós somos o Brasil, nossa realidade é outra. Assistimos aos filmes nacionais na busca por estéticas e modelos estrangeiros, por isso o cinema brasileiro é tão criticado em território nacional. Muitos são os críticos, que se dizem especializados, que condenam este cinema autoral, mas esses seriam os mesmos que outrora negariam Glauber Rocha e condenariam o Cinema Novo, tão elogiado, inclusive por Martin Scorsese. Voltando a Amarelo Manga, é um filme que cumpre as expectativas. Uma obra verdadeira e honesta.
A Doce Vida (La Dolce Vita) de Fellini não tem nada de doce. Começo meu texto com uma declaração polêmica, haja vista que um sentido dúbio foi lançado. Alguns estão imersos numa dúvida: será que ele se refere a uma obra máxima como um filme pífio? Ou simplesmente cita a vida ambientada no filme por Mastroianni? Sei que esta dúvida persiste na cabeça de vocês, porém irei saná-la, no momento certo, mas irei.
Lançado em 1960, A Doce Vida literalmente divide opiniões. Para alguns, figura entre as obras mais aclamadas de todos os tempos, uma verdadeira obra-prima, um filme além do tempo e acima de qualquer suspeita. Para outros trata-se de uma obra enfadonha, chata, na verdade um porre! Pois bem, podemos perceber que o filme de Federico é um desses ame-o ou deixo-o, não é mesmo? A obra retrata Roma no início dos anos 60, a partir da vida de Marcello (Marcello Mastroianni) um Jornalista que vive entre celebridades e ricos num mundo marcado por um vazio existencial. Ele é um jovem que passa os dias procurando a felicidade de forma efêmera, em festas, sexo e bebidas. Quando Sylvia (Anita Ekberg - extremamente sexy), uma estrela de cinema famosa, chega a Roma, Marcello vai esperá-la no aeroporto e faz de tudo para passar uns dias com ela. E assim certa vez, quando volta a casa na manhã seguinte, Marcello descobre que sua namorada, Emma (Yvonne Furneaux), se envenenou por causa dele. Trata-se de um retrato de uma sociedade decadente e arrasada.
Pois bem, como a obra já foi ambientada, irei comentar nas linhas seguintes as minhas impressões. Confesso que enquanto assistia a película não conseguia enxergar a obra de forma tão grandiosa, porém tenho sorte: o filme de Fellini é daqueles que o espectador não consegue tirar da cabeça e ele cresce ainda mais a partir das reflexões. Talvez não o tenha entendido como grandioso enquanto assistia por conta de uma certa ignorância, quem sabe? As vezes, não estamos tão preparados! Mas voltando ao filme, A Doce Vida apresenta uma das fotografias mais belas da história do cinema. Um filme em preto e branco que ambienta de forma grandiosa toda a decadência e estupidez de uma sociedade alienada e vaga. A trilha sonora é composta por Nino Rota, preciso dizer mais alguma coisa? O filme de Fellini mergulha em uma vida cercada por conflitos existenciais e repleta de futilidades. É uma obra densa e dura.
A Doce Vida não apresenta uma narrativa contínua. A impressão que temos é que a película é composta por várias estórias paralelas: os personagens aparecem e somem a todo instante e não sabemos o desfecho que teve cada um deles. Talvez este seja um dos aspectos que mais incomoda o espectador não ambientado com filmes que buscam um rompimento com a facilidade habitual do cinema, além é claro do tempo de duração. Mas como disse anteriormente, muitas vezes é preciso maior concentração e uma reflexão mais atenta com relação ao filme. A obra de 60 é uma crítica forte a sociedade de espetáculo, coloca a mídia como o picadeiro e o ser humano como palhaço (perdão aos palhaços que assim como Fellini, considero uma profissão belíssima) dono de uma vida vaga e tediosa, porém maquiada por um aparente "glamour". São pessoas reféns de padrões débeis e fúteis em um sistema alienador e mesquinho. A Doce Vida é totalmente fora dos padrões convencionais e mercadológicos, é um filme para poucos! Um dia quem sabe, esses poucos não se transformem em muitos? O recado já foi dado, desde 1960: essa vida na verdade não tem nada de doce, pelo contrário, é extremamente amarga! Uma obra-prima de 1960 que poderia muito bem ser de 2013. Ainda cairia como uma luva!
Um bom roteiro é um passo importantíssimo para a construção de um grande filme, todos concordam? Acredito que sim! Partindo deste plano, observando os roteiros de alguns filmes já assistidos, me arrisco em uma declaração, a partir de uma opinião pessoal, contundente e precisa: Woody Allen é um dos melhores roteiristas da história. Sei que muitos não gostam de seu estilo, mas negar a criatividade de Woody seria um erro, até mesmo um pecado capital. Em Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry), podemos observar elementos que embasam minha afirmativa. Não quero, em momento algum, ser comprado como verdade absoluta, mas estou certo que minha visão não cai em equívocos e sei que muitos concordam comigo neste quesito.
Lançado em 1997, Desconstruindo Harry é um filme inteligentíssimo. Harry Block (Woody Allen) é um escritor que tem a incomoda mania de utilizar fatos de sua própria vida em conjunto com os de pessoas próximas, como fonte de inspiração para suas obras. Esta prática irrita as pessoas que acabam se afastando do escritor. Block torna-se um ser odiado e evitado por quase todos que o rodeiam, e assim, ele nos guia durante a película.
A construção do filme é feita sob uma base bastante sólida, o roteiro. Woody Allen, na pele de Harry Block, nos guia em uma narrativa com criatividade exacerbada. Desconstruindo Harry dialoga com as obras dentro da obra, na medida que intercala os personagens criados por Harry com "elementos reais" da vida do escritor. Com maestria, Woody Allen consegue perpassar suas mensagens - como por exemplo no momento em que Blocke desce até o inferno - na cena o "diabo" afirma que recebeu uma proposta de trabalho em Holywood, mas recusou por não se tratar de um ambiente confiável e seguro. São sátiras como esta que observamos no decorrer da película que fazem do filme de 97 uma obra digna de elogios.
Desconstruindo Harry ainda é uma referência clara a Morangos Silvestres de Bergman, na medida em que coloca um personagem entre o céu e o inferno, como Isak Borg. Allen ainda baseia seu roteiro em um eixo que o liga ao do diretor sueco: um escritor faz uma viagem para uma cerimônia em sua homenagem na universidade na qual estudou, assim como Isak que faz uma viagem em direção à Catedral de Lund, onde será feita uma cerimônia em sua homenagem pelos 50 anos de medicina. Porém durante o desenrolar da história, Bergman utiliza de alegorias expressando a culpa de Isak, ora em formato de sonho, ora em formato de visões, já Allen as utiliza quase sempre de forma difusa com a realidade.
Woody Allen mais uma vez interpreta um ranzinza cheio de manias lunáticas. O personagem Harry é fascinante. Fascínio que pode ser explicado por sua personalidade polêmica e contundente. Em Desconstruindo Harry temos momentos impagáveis, como na cena em que ele conversa com o filho (de 9 anos, se não me engano) sobre sexo e cristianismo e quando o ator aparece desfocado. A forma como Woody consegue colocar humor e inteligência no mesmo campo é no mínimo louvável, ainda mais num momento em que as comédias da Globo Filmes estão enchendo o cenário de produções pífias e de péssimo gosto. Os diálogos típicos das grandes obras de Allen estão presentes no filme de 97. Por tudo isso e um pouco mais, Desconstruindo Harry é um filme inteligente e criativo é uma obra com a cara de Woody Allen.
Um tema delicado, porém que ainda carrega um ar de mistério e muitas dúvidas em volta. O filme Amém (Amen) de Costa-Gavras, lançado em 2002, aborda sobre a relação entre o Papa Pio XII e o Terceiro Reich. Tema até hoje muito debatido, onde diversos setores defendem a ideia da omissão do Papa perante o holocausto. Na oportunidade o Pontífice teria adotado um papel extremamente egoísta e mesquinho. A partir deste contexto Costa-Gravas, famoso por filmes com um debate político aprofundado, nos apresenta uma obra no mínimo polêmica em uma construção cinematográfica eficiente.
Kurt Gerstein (Ulrich Tukur) é um oficial do Terceiro Reich que trabalhou na fabricação do Zyklon B - gás mortífero desenvolvido para a matança de pragas, mas usado para exterminar Judeus nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial - quando descobre de que forma o gás desenvolvido por ele vem sendo usado, Kurt se revolta e tenta informar os Aliados sobre as atrocidades que acontecem nos campos de concentração. Gerstein também tenta informar a Igreja Católica, mas suas denúncias são ignoradas pelo alto clero, apenas um jovem Jesuíta lhe dá ouvidos, Riccardo (Mathieu Kassovitz), e o ajuda a organizar um campanha para que o Papa se manifeste contra as atrocidades ocorridas.
Com um discurso forte e polêmico, Costa-Gavras nos guia por um ambiente torpe e perigoso. Somos conduzidos por uma Alemanha sob domínio nazista, onde atrocidades e perseguições fazem parte da rotina. Com um discurso politizado, Amém mistura fatos reais e ficção na narrativa, por exemplo, Kurt Gerstein existiu e foi graças ao depoimento dele que o holocausto foi realmente confirmado. O tom adotado por Costa é extremamente funcional, na medida que envolve o espectador com os fatos e o instiga a pesquisar sobre o tema. Em Amém o discurso adotado além de polêmico é duro e pontual: a obra expõe a diplomacia como um elemento mais importante do que a salvação de milhares de pessoas. Somos ambientados em um universo extremamente interesseiro e corrupto, uma atmosfera podre, onde uma das mais importantes representações ocidental, a Igreja Católica, se apresenta com um dos protagonista e um mediador necessário em conchavos políticos.
O filme de 2002, além de apresentar um enredo instigante e atrativo, é composto por elementos cinematográficos eficientes. A composição música/imagem é extremamente funcional e as atuações são boas, com destaque para o doutor interpretado por Ulrich Muhe. Costa-Gavras utiliza uma atmosfera polêmica para compor um filme muito bom. A cena de abertura, por exemplo, é muito bem feita e nos prepara de forma forte para o restante da película. Um filme no mínimo polêmico que coloca a burocracia como verdadeiro protagonista de uma guerra. O jogo de interesses dita o ritmo, onde o controle das marionetes vai de acordo com os tratados. É desta forma que se apresenta Amém. Uma obra necessária e obrigatória.
O perfeccionismo envolto a Stanley Kubrick é uma marca, até mesmo um culto, que o diretor carrega junto a sua imagem. Reconhecido como um dos maiores - e para muitos o maior - diretor de todos os tempos, Kubrick não precisa de provação alguma, seu legado consolida e ratifica cada elogio recebido e todos aqueles que ainda virão. Afinal Stanley, além de marcar o nome na história cinematográfica, se consolidou de forma sólida e competente como uma referência, um nome que será sempre lembrado e cultuado. Diferente de Vargas, ele não saiu da vida para entrar pra história, mas se dedicou ao cinema, e conseguiu de fato, entrar pra história graças ao legado construído em vida.
Como já disse anteriormente, o perfeccionismo é uma marca de Kubrick, fato sempre comentado nos papos entre cinéfilos - chegando, muitas vezes, a alcançar o status de verdade absoluta - onde os argumentos se misturam com convicções formuladas a partir da filmografia do diretor e dos vários "mitos" da relação entre Kubrick, técnicos e atores, que até onde sabemos, era conturbada ao extremo, devido ao temperamento exigente do diretor. Muitos são os filmes que embasam este pensamento e que defendem e consolidam o perfeccionismo Kubrickniano, mas Barry Lyndon de 1975 é um forte candidato para número um em matéria de inovação e rigor técnico.
O filme de 1975 conta a história de um pobre Irlandês, do século XVIII, que se tornou membro da nobreza inglesa. A obra é baseada no livro de Willian Makepeace Thackeay e traça de forma minuciosa os aspectos da vida de Redmond Barry - um jovem humilde e apaixonado - até sua ascensão social e a consequente degradação pessoal sofrida de forma intensa e deteriorante. Numa trama construída de forma meticulosa, explorando a beleza de forma extrema, Kubrick nos presenteia com um épico fantástico que beira a perfeição em todos os aspectos cinematográficos possíveis.
Em Barry Lyndon o perfeccionismo Kubrickniano pode ser observado e compreendido. O filme de 1975 é um dos mais inovadores do diretor do ponto de vista cinematográfico. Kubrick mandou desenvolver lentes especiais para filmar cenas com baixa exposição, iluminadas apenas por luz de velas, com o objetivo de obter uma fotografia fílmica similar a uma pintura do século XVIII. Além disso, Stanley empregou um ritmo lento e mediativo nos movimentos de câmera e na duração dos planos, com o intuito de promover a sensação da passagem de tempo de um período pré-industrial. Podemos observar, o quanto Stanley foi um visionário e uma das peças mais importantes para o desenvolvimento do cinema. Seus planos sequência estão entre os mais famosos do cinema. E para finalizar o parágrafo e não me alongar na discussão, o inventor do steadicam, Garret Brown, afirmou que no filme O Iluminado seu equipamento foi utilizado pela primeira vez de forma correta no intuito narrativo, ele ainda disse que aprimorou a própria técnica ao trabalhar com Stanley.
Jacques Aumont - famoso teórico francês - em seu livro O Olho interminável, que teve a primeira edição - segundo pesquisas na rede - lançada em 1989, trata dentre outras coisas, principalmente da relação entre cinema e pintura. Segundo as palavras do autor existem pontos que aproximam os campos acima citados, mas também pontos que diferenciam. Com relação as semelhanças podemos citar geometria espectorial, imagens planas, dentre outros. Já com relação as diferenças irei me concentrar na luz. Segundo Aumont, a iluminação do dispositivo de apresentação de uma pintura não é nem muito forte nem muito fraca, já a exibição de um filme é formado por um feixe de luz projetado. Aumont cita algumas obras do cinema, a partir das ideias apresentadas em seu livro, que buscam se aproximar de forma ainda mais precisa da relação com a pintura, podemos citar Passion de Godard. O livro de Jacques é uma referência, sendo inclusive, considerado um marco nesta linha de pesquisa, por isso, é uma obra acima de qualquer suspeita, não é verdade? Pois quando estava lendo O olho interminável algo me incomodava de forma intensa: era justamente o tom meio que arrogante e egocêntrico adotado por parte do autor (haja vista a forma como Aumont se refere a Scorsese em um dos últimos capítulos do livro, que agora não lembro exatamente qual), mas ao finalizar minha leitura, algo me deixou ainda mais incomodado, justamente a ausência de Barry Lyndon entre as obras citadas no livro.
Primeiramente gostaria de pedir desculpas ao leitor, afinal Aumont é um grande teórico e eu sou apenas Alisson Gutemberg, um simples Jornalista, cinéfilo e blogueiro. Mas lendo os escritos de Gramsci sobre o papel do intelectual em nossa sociedade, comecei a julgar tal comportamento adotado por Jacques, como ainda mais egocêntrico, um olhar típico para o próprio umbigo, mas quem sou eu, não é verdade? Mais uma vez peço desculpa, mas desta vez para o intelectual Aumont, por minhas "desajustadas" e "incoerentes" palavras. Voltando a Barry Lyndon, prefiro finalizar meu texto com a opinião de Martin Scorsese: "Não estou certo se posso afirmar ter um filme favorito de Kubrick, mas retorno repetidamente a Barry Lyndon. Penso que é por ser uma experiência tão profundamente emocional. A emoção é transmitida através do movimento da câmera, da lentidão do ritmo, na forma como as personagens se movem naquilo que as envolve. As pessoas não o perceberam quando ele estreou. Muitos ainda não o percebem. Simplesmente, na cadência sucessiva de imagens de rara beleza, vemos o caminho de um homem à medida que ele evolui da mais pura inocência até à mais fria sofisticação, terminando numa absoluta amargura - a materialização elementar da sobrevivência. É um filme atemorizante pois a beleza da luz dos candelabros é apenas um manto diáfano sobre a pior crueldade. Mas uma crueza real, do tipo que se encontra todos os dias na sociedade civilizada."
A religião sempre influenciou Hitchcock, que quando criança, estudou em um colégio de Jesuítas. Este respeito e até temor divino, pode ser comprovado quando no final da vida o diretor inglês "reforça" seus laços com a Igreja Católica, uma atitude que demonstra o papel da religião e de sua formação intelectual, quando criança, no decorrer de sua vida. Mesmo que por alguns anos Hitch tenha se afastado da igreja, o respeito divino sempre esteve presente, e sem dúvida alguma, o filme A tortura do silêncio (I Confess) de 1953 não me deixa cair em descrença.
O Padre Michael Logan (Montgomery Clift) ouve a confissão de um homem, Otto (O. E. Heller), onde este confessa ter cometido um assassinato. Porém testemunhar o ocorrido do ponto de vista do assassino se torna um fardo para o Padre, afinal foi a partir de uma confissão religiosa que ele conseguiu tal informação, e desta forma, as normas da igreja o impedem de Falar. Mas o desenrolar do enredo coloca o Padre como principal suspeito do assassinato, assim Logan se enxerga em um ambiente complicado e repleto de dúvidas, afinal, o que ele deve fazer: romper com o sacerdócio e informar a polícia o que sabe sobre o crime, ou assumir a culpa do ocorrido?
Hitchcock, como sempre, nos conduz por um cenário repleto de suspense e intriga. O enredo em si, que já é um prato cheio para o estilo do diretor inglês, é composto de mistérios que ambientam a atmosfera "hitchcockiana" de forma satisfatória e convincente. O espectador enxerga o filme na perspectiva desta dúvida que vive o Padre Logan e isto, de certa forma, o coloca em um ambiente "metade seguro": a todo instante sabemos quem é o verdadeiro assassino, mas certos elementos são lançados de forma gradual, o que torna o ambiente, apesar da revelação do crime, funcional. A presença da mulher é o fator que dita este ambiente, e pra não fugir da lógica de Hitch, a mulher é loira. Trata-se da personagem Ruth, interpretada por Anne Baxter.
A tortura do silêncio é um filme composto por altos e baixos. Em certos momentos, o enredo se perde um pouco, como por exemplo, no processo de degradação psicológica do personagem Otto, que soa como uma forçação de barra e não funciona como esperado. Como principal ponto desta obra destaco os aspectos visuais. Em A tortura do silêncio a culpa se tornou real. Hitch filma vários planos em que uma cruz ou algum símbolo religioso está enquadrado, dando uma sensação não só de onipresença, mas de pressão. O ambiente é construído como se Deus estivesse sempre observando e testando o padre Logan, com isso, Hitch faz com que o espectador sinta o processo de forma intensa e precisa.
Podemos observar, como já foi dito anteriormente, as influências da formação religiosa na composição da obra. Em nenhum momento o Padre fere os princípios religiosos. Desta forma, Hitchcock na representação de Logan, expõe a igreja como um terreno seguro de seus dogmas e convicções, uma fé que apesar da provação dura, permanece inabalável. A tortura do silêncio não é, nem de longe, a obra máxima de Hitch, mas sem dúvida, é um filme onde temos momentos impagáveis de genialidade do mestre inglês. E pra finalizar jogo um pouco de polêmica: a obra de 1953 é um filme pra Católico nenhum botar defeito, ainda mais, em tempos de pedofilia e corrupção no ventre da "Santa da Igreja".
Uma homenagem ao cinema de forma leve e apaixonante. Não poderia começar este texto de forma diferente, não que existam regras ou uma linha editorial rígida e caolha no Conversa Fiada, mas na verdade, esta foi a impressão que tive com o filme A noite Americana (La Nuit Américaine), dirigido por François Truffaut e lançado em 1973. A obra aborda sobre os bastidores da sétima arte, na verdade, um filme dentro do filme. Uma forma inteligente e tocante de mostrar o universo do cinema.
Diretor de um provável fracasso, Ferrand (François Truffaut) vive imerso em um mundo conturbado. Ele tem de contornar romances entre os membros de equipe e elenco, pressões comerciais, brigas, atores decadentes, lágrimas e risadas - tudo isso presente na rotina das filmagens - para concluir seu filme em tempo. Por todos os elementos presentes na obra, sem dúvida alguma, A noite Americana é um dos filmes - se não o mais - que melhor representa as loucuras presentes em um set de filmagem. Um filme criativo e inteligente, onde somos guiados de forma confusa, conturbada, mas acima de tudo, apaixonante.
A noite Americana é uma declaração de amor, sim! Mesmo me aproximando do que muitos chamam de clichê, é desta forma que caracterizo a obra: é uma declaração de amor ao cinema. Um filme construído de forma criativa. A obra apresenta um tom leve e divertido na medida que nos mostra o cotidiano em um set de filmagem, além de nos revelar certos mistérios em torno da produção cinematográfica, uma realidade que diga-se de passagem fica distante do, apenas, glamour que é retratado constantemente. Truffaut, que interpreta o diretor Ferrand, coloca elementos da própria vida na tela, retratado na maioria das vezes nos sonhos do personagem, como por exemplo, na cena em que uma criança rouba cartazes do filme Cidadão Kane em um cinema.
Truffaut que ao lado de Godard é um dos maiores expoentes da Nouvelle Vague, adotou a metalinguagem como essência na obra de 1973. A metalinguagem é a linguagem retratando a própria linguagem, meio confuso, não é verdade? No caso da sétima arte, esta figura de linguagem é usada quando o cinema fala dele próprio. Partindo desta premissa, Truffaut, Woody Allen em A Rosa Púrpura do Cairo e Giuseppe Tornatore em Cinema Paradiso, apresentam o uso da metalinguagem, pelo menos em uma obra, como ponto comum. Mas na minha opinião, Truffaut foi além ao falar sobre o cinema. A forma como o universo é construído, a maneira como somos conduzidos, nos coloca, de fato, dentro de um set de filmagem. Fazemos parte daquela realidade conturbada, somos peça integrante da película e também contamos e corremos contra o tempo para que os prazos sejam cumpridos.
François consegue nos mostrar o universo cinematográfico longe do brilho que sustenta este campo. Somos conduzidos por um set composto por pessoas comuns, pessoas normais que enfrentam problemas e crises, tal qual qualquer um de nós. Mas mesmo com esta atmosfera antagônica ao glamour retratado como essência, a mise en scène na obra de Truffaut não perde a mágica e o poder de nos fazer sonhar, digo até na direção contrária, mesmo com a cortina nos revelando os bastidores do espetáculo, o encanto não altera. Muito da realidade do cinema não chega aos espectadores. As brigas de bastidores, as manias, os mistérios dos efeitos visuais, entre outros, jamais chegam aos nossos olhos. Em A noite Americana, Truffaut traz um pouco desta mística para as telas, nos revela um universo real, longe dos encantos, mas que mesmo assim continua mágico e intenso. Uma aula de direção do genial Truffaut. Um filme de cinéfilo para cinéfilo.
Vamos lá! Devido a inúmeros pedidos - mentira da porra, acho que adotei o toque de humor de Billy ao profanar tamanha blasfêmia - vou comentar sobre mais um filme de Billy Wilder. É verdade que recentemente escrevi sobre Amor na Tarde, porém não tenho culpa se os filmes de Billy são obras fantásticas que merecem total visibilidade, vrááá na cara dos caretas e mal amado. Pois bem, hoje irei falar sobre o filme Irma La Dolce de 1963.
Irma La Dolce (Shirley MacLaine) é uma das prostitutas mais requisitas de Paris. Ela faz ponto na Rua Casanova e apesar da prostituição ser proibida, existe um acordo no qual cafetões e prostitutas pagam propina para os policiais que cobrem a área da Rua. Porém um policial honesto, Nestor Patou (Jack Lemon), chega para trabalhar em Casanova, mas acaba demitido por fazer cumprir a lei. Em meio a este processo, Patou se apaixona por Irma e ainda se torna seu cafetão. Coberto de ciúmes, ele faz de tudo para atrapalhar os "negócios" e assim poder ter uma vida normal, de fato, com sua amada.
O filme apresenta a leveza característica das obra de Billy. Apesar de ser longo, somos conduzidos por um ambiente satisfatório e eficaz. Mesmo "alongando a piada", Wilder consegue manter o espectador concentrado e satisfeito. Outra característica marcante dos filmes de Billy, também se encontra presente na obra de 63, trata-se da atmosfera de suspense e mentira intercalada com humor e descontração. Não preciso nem dizer que o Diretor é um verdadeiro mestre neste aspecto. Afinal, estamos falando de Billy Wilder. Em Irma La Dolce temos atuações excelentes, por parte de Shirley e Lemon, mas o destaque maior fica com Lou Jacobi, interpretando Mustache, o proprietário de um comércio bastante frequentado em Casanova, o personagem vivido por ele é sensacional e extremamente eficiente no processo de desenvolvimento da obra.
Com relação a Jack Lemon, Shirley MacLaine e Billy Wilder, a parceria funciona de forma brilhante, tal qual Se meu apartamento falasse. Já comentar de Jack e Billy é, com certeza, o que chamam de "chover no molhado". A dupla que trabalhou em sete produções, sendo uma delas Quanto mais quente melhor, dispensa comentários, não concorda? Voltando ao filme de 63, a obra é baseada em um musical. Irma La Dolce, assim como todos os outros treze filmes que já vi de Wilder - aproveito e lanço um desafio: me apresente algum filme fraco deste gênio, só quero um! - é uma obra deliciosa. Trata-se de uma obra-prima de alguém que não conheço, até hoje, nada abaixo deste nível. Recomendo!
O cinema transporta o espectador para um mundo paralelo. Mesmo que por algumas horas apenas, somos conduzidos por um ambiente mágico, repleto de momentos intrigantes, estamos em um universo fascinante e seguro. O chato fica por conta de termos que voltar para nossa realidade, que saco! Mas enfim, A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo), dirigido por Woody Allen e lançado em 1985, aborda justamente sobre a questão da ficção x real. Trata do universo proporcionado por parte do cinema. É um filme extremamente criativo que mexe com o imaginário do público. Por isso, é uma obra para quem ainda se permite sonhar.
Cecília (Mia Farrow) tem uma vida extremamente infeliz. Ela mora na cidade de Nova Jersey no período da Depressão Econômica. Mergulhada em um casamento fracassado, ela busca refúgio nas salas escuras do cinema. Na tentativa de escapar da realidade, mesmo que por alguns momentos, ela mergulha no universo da sétima arte e assim, vive no cinema o sonho de um mundo perfeito. Cecília trabalha como garçonete. Ela sustenta o marido bêbado e desempregado que a trata de forma grosseira e violenta e para fugir desta realidade, ela frenquentemente vai ao cinema da cidade. Porém quando ver pela quinta vez "A Rosa Púrpura do Cairo", o herói da película sai da tela e declara seu amor por ela. Assim, Cecília começa a misturar ficção e realidade de forma romântica e envolvente.
Woody Allen, que também é o roteirista do filme, nos guia por um universo mágico e fascinante. Somos arrebatados por uma história que toca de forma intensa todos os que enxergam o cinema como arte. Cecília representa um grande número de pessoas que fogem de uma realidade triste e amargurada a partir das projeções cinematográficas. Quando estamos diante de uma película, somos transportados de forma arrebatadora, e mesmo por alguns momentos, vivemos uma vida totalmente diferente, somos peça integrante do enredo, e assim, o real e a ficção se misturam de forma instigante e intensa. Sentimos a obra como parte integrante de nós mesmos, a sétima arte é de fato uma arte, e com certeza, a forma como nos prende e fascina explica tal alcunha.
Como Arlindo Machado aborda em seu livro: Pré-cinemas e pós-cinemas, por mais que Freud nunca tenha falado diretamente sobre o cinema, enxergamos de forma fácil algumas relações entre o pai da psicanálise e a sétima arte. Em Die Traumdeutung, Freud sugere que devemos representar o instrumento que executa nossas funções mentais como semelhante a um microscópio composto, a um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. E acrescenta que o lugar psíquico corresponde a um ponto do aparelho em que se forma a imagem. Ora do que estava falando o pai da psicanálise? Do olhar, é claro! Porém apesar de tais escritos, Freud sempre negou a importância do olhar na psicanálise. Mas alguns autores como: Stein, Schneider e Mezan, analisaram esta cisão entre fala e olhar existente nas teorias de Freud. Desta forma notaram, em primeiro lugar, que há um traço de fobia na recusa freudiana do olhar, facilmente identificável na análise de seus próprios sonhos, em que quase sempre os olhos adotam um papel central.
As relações entre Freud e o cinema podem ser consideradas interligadas levando como eixo central a ideia de que ao entrar no cinema o espectador passa para um estágio de subconsciência onde se enxerga na vida dos personagens exibidos. Quando Freud explica o sonho – como um cenário composto de imagens - ele está falando de cinema e o espectador concentrado e arrebatado por imagens, que se reconhece na tela-espelho, tem total semelhança com Narciso na água. Sendo assim, Cecília teria se enxergado como parte integrante da vida dos personagens da película. Passou a fazer parte daquela rotina já conhecida por ela, uma vida amável e prazerosa, totalmente diferente de sua realidade. Mas é verdade afirmar que todos os presentes na sala também enxergaram o personagem abandonar a tela, então na verdade, seria um surto coletivo? Claro que não! Estamos nos referindo ao cinema, sendo assim, todos aquelas pessoas se enxergavam como pertencentes, durante a projeção, ao mundo da tela. A mágica cinematográfica consiste justamente neste ponto.
A Rosa Púrpura do Cairo é um filme excelente. A obra aborda sobre questões que envolvem ficção e real. Somos conduzidos por um universo sensível e mágico. Um mundo existente, sem dúvida alguma, na cabeça de cada cinéfilo, afinal, se cada um de nós não acreditássemos na magia do cinema, a sétima arte não seria tão importante em nossas vidas. O filme de Woody Allen é um prato cheio para todos que sonham e se deixam guiar pelos sonhos. A realidade muitas vezes nos fere e machuca, porém ainda podemos sonhar. E enquanto isto for possível, podemos tirar os pés do chão, mesmo sentados numa sala escura. Enfim, o cinema é isso! E quando a sétima arte deixar de ser vista e sentida como uma fuga, como um refúgio, como um mundo mágico, perderá totalmente o sentido. Assim, prefiro acreditar no que diz Raul Seixas: "sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade."
"...E quando chega em casa e liga a TV, vê tanta gente mais feliz do que você. Apaga a luz e antes de dormir, fica pensando o que fazer pra conseguir o que é dos outros... " Ao som de Arnaldo Antunes, mais precisamente da música invejoso, começo a comentar sobre o filme Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich) dirigido por Spike Jonze e lançado em 1999. A obra aborda sobre questões pertinentes do comportamento humano, ao questionar aspectos relacionados com a insatisfação constante do homem com a própria vida. Somos conduzidos por um ambiente rico filosoficamente e ao mesmo tempo, inovador e intrigante.
Craig Schwartz (John Cusack) consegue um novo emprego no sétimo e meio andar de um edifício comercial, onde todos os funcionários devem andar curvados. Lá encontra uma porta secreta que dá acesso a mente do ator John Malkovich, onde a pessoa pode permanecer por 15 minutos, até ser "cuspida" numa estrada. Impressionado com a descoberta, Craig resolve contar para Maxine (Catherine Keener) - colega de trabalho por quem Schwartz se encontra perdidamente apaixonado - que o convence a alugar a passagem secreta para outras pessoas.
O produto oferecido por Craig e Maxine é a possibilidade do ser humano ser outra pessoa, e mesmo que por apenas 15 minutos, o sucesso tornou-se inevitável. O desejo de ter uma vida diferente faz parte do imaginário humano. Ambição, inveja, enfim, diversos podem ser os fatores que condicionam o pensamento neste sentido. A partir desta vontade tão constante em cada um de nós, de querer ser aquilo que não somos, Quero ser John Malkovich se apresenta de forma inusitada e extremamente original. O roteiro de Charlie Kauffman (roteirista também de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças) é genial em todos os aspectos. O enredo pode não ser tão atrativo no primeiro momento, mas quando estamos diante da película percebemos que trata-se de uma obra grande e extremamente envolvente.
Como ponto principal não podemos destacar algo diferente. Com certeza o roteiro - extremamente ousado, mas principalmente inovador - aparece como o destaque. A direção de Spike Jonze não oferece nada de tão grande, porém apresenta um ponto importantíssimo: uma obra repleta de fatos improváveis e até fantasiosos, se não contasse com uma direção modesta e bem controlada, poderia pecar por excesso, se transformar numa coisa qualquer, mas Jonze foi bem em sua tarefa, e sem dúvida alguma, este é o principal destaque do seu trabalho. As atuações são boas. Deixo o destaque maior para John Cusack e principalmente John Malkovich. Trata-se de um filme ousado e extremamente original, que apresenta questões filosóficas relacionadas com o comportamento humano. Por tudo isso afirmo: Quero ser John Malkovich é um filme excelente. Um sopro de criatividade e genialidade em uma indústria cada vez mais bestializada e enlatada. Uma obra inteligente, original e verdadeira!
Charlie Chaplin é um dos nomes mais conhecidos do cinema, se não o mais. Suas obras variam desde a crítica social severa e pontual, até os toques de amor e sensibilidade. Seu personagem Carlitos é, sem dúvida alguma, o mais conhecido da história e sua forma de fazer cinema é aclamada até os dias atuais. Trata-se de uma das carreiras mais sólidas e brilhantes, um nome marcado na história não só do cinema, mas também da própria humanidade. Chaplin que era um crítico social de marca maior, um idealista - termo que erroneamente é taxado de forma pejorativa, num país em que malandragem é sinônimo de sabedoria - era também um romântico sensível e cativante. O filme Luzes da Cidade (City Lights) comprova tal afirmativa e não me deixa cair em descrença. Lançado em 1931, a obra continua bela e sensível. Com certeza, estamos falando de uma película eterna.
A paixão de um vagabundo por uma pobre florista cega, que acredita que ele é um milionário, o motiva a fazer o possível e o impossível para melhorar a vida de sua amada. Nutrido de um amor platônico, Carlitos se dedica neste objetivo, sendo capaz de se envolver nas maiores encrencas para obter o resultado desejado. Por ironia do destino, ele se aproxima de um milionário, que tentara o suicídio e fora salvo por ele, afim de arranjar algumas maneiras para ajudar a moça, mas nem sempre consegue o que deseja. Ao descobrir que um Médico havia descoberto a cura para a cegueira, Carlitos fará de tudo para conseguir o dinheiro necessário para a operação, mesmo que para isso ele precise trabalhar ou até mesmo lutar boxe.
Luzes da Cidade é simples. A obra dialoga com os sentimentos de forma pura, verdadeira e sensível. Somos tomados por um misto de sentimentos que variam entre risadas e choros, uma verdadeira overdose de genialidade, uma genialidade simples e cativante. Durante o processo de transição do cinema mudo para o cinema falado, Chaplin continuou produzindo filmes mudos por mais treze anos, e a obra de 31 se enquadra neste período. Mas neste filme, Charlie utilizou alguns artefatos sonoros na composição da película, como por exemplo, na cena do apito, ou na cena da luta de boxe.
A trilha sonora de Luzes da Cidade, composta pelo próprio Chaplin, se agrupa de forma extramente harmoniosa, um casamento perfeito entre sonoridade e imagem. As atuações são fantásticas. A forma como os personagens se expressam é de uma pureza imensa, é algo que só pode ser vindo d´alma. A cena final é um dos momentos mais sublimes da história da sétima arte. Enfim, são apenas alguns aspectos de uma obra perfeita. Mas Luzes da Cidade é genial e sensível de forma extrema, é um filme grandioso demais para ser definido por palavras, é muito mais fácil senti-lo: é simples e genial como o próprio Chaplin.
O nascimento de uma parceria de sucesso é sempre algo fantástico, independente do ramo, é uma conexão forte e mágica que impulsiona carreiras e vidas. Podemos citar diversos exemplos: Lennon/McCartney, David Gilmour/Roger Waters, Jagger/Richards, Cazuza/Frejat, Tom/Jerry, Pinky/Cérebro, enfim, os exemplos são diversos e comprovam a afirmativa anterior. Mas com relação ao cinema, uma parceria em especial ganhou notoriedade e fama, claro que com todos os méritos possíveis, me refiro a parceria Scorsese/ De Niro. Quem conhece e gosta de cinema, com certeza, admira os frutos da união desta dupla, claro que existe uma crítica ou outra, mas nada que ofusque a genialidade de ambos. Pois bem - como iniciei falando sobre parcerias, devo voltar ao fio da meada - é com o filme Caminhos perigosos (Mean Streets) de 1973 que nasce esta parceria. Ainda bem que um dia eles se conheceram, trocaram uma ideia, ouviram uma música, tomaram algumas doses de Jack Daniel´s, ou quem sabe simplesmente se olharam, mas enfim, o importante é que começaram a trabalhar juntos. Nós agradecemos por este encontro ter acontecido. A sétima arte - sem dúvida, se é que isso é possível - se tornou ainda mais arte com a contribuição de vocês.
Deixando os agradecimentos, encheção de linguiça - ou como quiserem chamar - de lado, vamos ao que de fato interessa. Vamos ao que faz cada um de vocês visitarem este amado blog de forma empolgada e curiosa (se é que alguém realmente acompanha o Conversa Fiada.. rs), mas enfim, vamos falar sobre o filme. Caminhos perigosos soa de certa forma como autobiográfico. De certa forma? Tens razão, cara pálida! Soa quase que totalmente. O filme se passa no bairro em que Martin Scorsese cresceu. Se passa em Little Italy, na cidade de Nova York. Charlie (Harvey Keitel) é um cara extremante religioso. Ele trabalha para crescer no submundo dos guetos de Little Italy. Ao seu lado se encontra Johnny Boy (De Niro) um jovem inconsequente e extremamente endividado, o que de certa forma, atrapalha os desejos de Charlie. Charlie também sustenta um relacionamento secreto com a prima de Johnny Boy, Teresa (Amy Robinson), que não é vista com bom olhos por seu tio. Caminhos perigosos retrata o cotidiano em Little Italy. Aborda sobre violência nos guetos americanos, é um retrato realista do ambiente em que cresceu Martin Scorsese - que sonhava em ser Padre, sendo tão religioso quanto Charlie - assim podemos compreender um pouco sobre os temas presentes na carreira do diretor.
O filme de 73 é excelente. Martin consegue ambientar a violência existente no submundo de forma crua e forte. O fato de ter convivido com esta realidade com certeza ajudou na construção do filme, que soa como verdadeiro a todo instante. A construção do ambiente é fantástica. Somos conduzidos pelos guetos americanos de forma atenta e curiosa, a fotografia é impecável. As atuações de Keitel e De Niro são ótimas. E a trilha é de um gosto refinadíssimo. Grandes sucessos da década de 60 (Be My Baby, Please Mr. Postman, Tell Me (You’re Coming Back).....) se intercalam com músicas Italiana, o resultado agradou. Mas apesar de todos esses pontos positivos, o filme teve um certo deslize, trata-se do roteiro. O roteiro não é tão bom. Em certos momentos soa como desconexo, principalmente nos primeiros 50 min, mas não chega a prejudicar o desenrolar da obra.
Caminhos perigosos é um filme que retrata a violência de forma crua. Somos conduzidos por um ambiente extremamente preconceituoso e violento. Scorsese deixa o moralismo de lado e nos apresenta todo o submundo que ele cresceu de forma realista e visceral. Não é atoa que Tarantino cita este filme como principal referência na construção de seu estilo. E pra finalizar, afirmo sem medo de errar: Caminhos perigosos é um Scorsese de respeito!
Cidade dos Sonhos
4.2 1,7K Assista AgoraLançado em 2001 e dirigido por David Lynch, Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr.), é um filme que instiga o espectador. Uma película que contém um enredo simplista, porém, por conta de uma direção brilhante, ganha contornos de obra-prima. De fato, trata-se de uma obra intrigante, obra esta que após o término, segue martelando na mente por um longo período: funciona como um quebra-cabeça, onde cada peça a ser montada exige raciocínio e paciência.
Em torno da indústria do cinema, personagens vivem suas fantasias, desejos e esperanças. Tal qual Betty (Naomi Watts), que chega do Canadá para se tornar atriz. Ela cruza com Rita (Laura Harring), que acabara de sofrer um acidente e nem se lembra do seu próprio nome. E assim, Betty tenta ajudá-la a descobrir quem é. Em outra parte da cidade, o Diretor de cinema Adam Kesher (Justin Theroux) está sendo convencido por dois irmãos, a contratar uma atriz específica para seu filme. De repente, todos se transformam em personagens distintos e as amigas mergulham em uma trama de crimes e paixão.
Cidade dos Sonhos é uma obra que segue longe dos padrões ditados pela indústria cultural. Como diz Adorno, dentro dos modelos enlatados, cada espectador sabe muito bem como irá terminar o filme e qualquer associação que exija perspicácia intelectual é deixada de lado. Pois bem, Cidade dos Sonhos, como já foi dito, não se enquadra neste recorte. David Lynch, de forma inteligente, conduz o espectador por um ambiente enigmático, repleto de suspense e dúvidas. Adentramos em um mundo extremante confuso, porém que funciona durante todo instante. Em nenhum momento o espectador se sente incomodado com os enigmas lançados, pelos contrário, com o decorrer da película, ficamos cada vez mais envolvidos, cada vez mais curiosos.
Lynch utiliza-se de uma montagem muito bem desenvolvida, um exemplo perfeito da montagem intelectual de Eisenstein, para oferecer forma a uma estória simples, que relata sobre um crime passional. A direção de David é magnifica, uma verdadeira aula de cinema. Cidade dos Sonhos é um filme Surrealista que trabalha, a todo instante, o cognitivo do espectador, e durante todo este processo, um ambiente de suspense envolve a trama. Um suspense impactante e, as vezes, assustador. As atuações de Laura Harring e Naomi Watts são brilhantes, o que ajuda e muito no efeito causado pela obra. Lynch, como já foi dito, se afasta dos modelos narrativos convencionais. O diretor propõe novas formas de fazer e pensar um filme. Com uma trilha brilhante, atuações grandiosas e uma direção magnífica, Cidade dos Sonhos é uma obra-prima. É o cinema muito distante dos limites mercadológicos. E só pra constar, a obra deixa uma reflexão: a a cidade dos sonhos (Los Angeles) e a badalada Hollywood, na realidade, podem não ser nada daquilo que imaginamos.
Crítica em : http://migre.me/h6vX5
Luzes da Ribalta
4.5 281 Assista AgoraCharlie Chaplin é um dos nomes mais notórios da história do cinema, e para muitos, é o grande nome. Não querendo entrar neste mérito, afinal seu talento é inquestionável, e quem se prende apenas aos números e aos rankings são os limitados, quero somente deixar registrado todo o meu respeito ao artista genial. Com relação ao filme, lançado em 1952, Luzes da Ribalta, é sensível ao extremo: por meio do personagem Calvero, Chaplin transmite toda a angústia e depressão que sentia. Fica claro na trama que a obra retrata seu próprio declínio, pois seus grandes sucessos ocorrera no período do cinema mudo e seu humor não produzia o mesmo efeito com as falas. Desta forma, trata-se de uma obra com contraindicações. Afinal nem todos estão preparados para momentos tão sublimes.
Calvero (Charlie Chaplin) é um velho comediante que no passado fez grande sucesso. Porém, com o passar dos anos, caiu no esquecimento. Fato que o deixou muito próximo de se tornar um alcoólatra. Todavia as coisas começam a mudar quando, numa tarde, voltando para a pensão onde vive, sente um cheiro forte de gás, vindo de um dos quartos. Ele, então, arromba a porta e encontra inconsciente uma jovem, Thereza Ambrose (Claire Bloom). Thereza lhe explica que tentara o suicídio: sempre sonhou em ser uma bailarina, mas suas pernas se encontravam paralisadas. Calvero promete ajudá-la, mas sem saber, que na verdade, Thereza também fará de tudo para ajudá-lo.
Antes de qualquer coisa, Luzes da Ribalta, é uma estória de amor. Uma estória triste, porém belíssima. Imortalizada por atuações brilhantes, de Chaplin e Claire, além, é claro, da sensibilidade que rege toda a obra. O filme de 1952, trata sobre aspectos relacionados com a superação das dificuldades, do prazer e das dores da vida, e da busca por sonhos e objetivos. Com um roteiro excelente e uma trilha cativante, a película nos conquista logo nos primeiros minutos, e daí pra frente, nossas emoções se misturam numa variante entre choros e gargalhadas. Os dramas de Calvero e Thereza nos envolvem durante toda a trama. E pra quem conhece, impossível não lembrar dos versos de Antônio Marcos:
"Vejam só
Que história boba eu tenho pra contar
Quem é que vai querer me acreditar
Eu sou palhaço sem querer
Vejam só
Que coisa incrível o meu coração
Todo pintado e nessa solidão
Espera a hora de sonhar (...)
(...) Ah, no palco da ilusão
Pintei meu coração
Entreguei, entreguei amor e sonho sem saber
Que o palhaço pinta o rosto pra viver
Vejam só
E há quem diga que o palhaço é
Do grande circo apenas o ladrão
Do coração de uma mulher(...)"
Crítica em: http://migre.me/h59AP
O Carteiro e o Poeta
4.2 300O Carteiro e o poeta (Il postino) é uma obra sensível e cativante, ganha o espectador por seu apelo emotivo que se sustenta por este aspecto tocante, uma película que trata o ser humano por um viés amável e ligado por laços verdadeiros, retratados com maior destaque na amizade entre Pablo Neruda (Phillipe Noiret) e o carteiro Mario Ruoppolo (Massimo Troisi). Dirigido por Michael Radford, O carteiro e o poeta foi lançado em 1994, durante este período o filme ganhou visibilidade e um destaque merecido.
Mario é um homem simples que teve a oportunidade de ser o carteiro particular do poeta Pablo Neruda durante seu exílio numa ilha da Itália. Desta relação, inicialmente profissional, nasce uma amizade, que de forma tímida, ganha corpo e força. Assim, Mario passa a acreditar que Neruda pode se tornar seu cúmplice e ajudá-lo a conquistar uma jovem. E a partir disto, o carteiro descobre a poesia como linguagem, porém mais que isso, como meio de expressão da alma.
O filme de 94 tem a poesia como pano de fundo e a sensibilidade a flor da pele dita o tom durante sua exibição. Trata-se de uma obra delicada e emocionante que ganha o espectador desde os primeiros minutos. Tudo é belo e o roteiro, muito bem feito, em conjunto com a direção, explora os elementos com eficácia. O carteiro e o poeta também apresenta um discurso político em ataque a repressão contra os comunistas e retrata, mesmo que de forma leve, a exploração da miséria e da pobreza através de uma política mesquinha e torpe.
A união da poesia de Pablo Neruda com as belas paisagens e principalmente com a atuação de Massimo Troisi, torna o filme belo e delicado. Massimo, vivendo o carteiro Mario, se destaca de forma brilhante. Trata-se de uma atuação feita com alma e sensibilidade, sem dúvida um personagem que fascina por sua grande entrega emocional. Como nota triste, fica o relato de que o ator veio a falecer logo após as filmagens, por isso que nos créditos finais ele é homenageado. O filme de 94 é tão delicado quanto a obra de Neruda. E como é dito que a poesia não pertence ao poeta, mas aos que precisam dela, a película de Radford utiliza as palavras do poeta e se eterniza como poesia em formato de filme.
A Princesa e o Plebeu
4.3 417 Assista AgoraUm filme que se apega na simplicidade e conduz neste sentido um enredo cativante e sensível. A Princesa e o plebeu (Roman Holiday) se mostra grandioso nos pequenos detalhes e se apega nas relações simplistas como elo central. A obra se passa numa atmosfera em que este cenário aparece como primordial na medida em que Audrey Hepburn e Gregory Peck nos cativam com interpretações verdadeiras e sublimes. A película de 1953 é uma referência no gênero de comedia romântica e mesmo com o passar do tempo sua grandiosidade permanece inabalável, de fato continua intacta.
Princesa Ann (Audrey Hepburn) é uma princesa moderna, que se rebela contra os seus deveres reais e decide se aventurar em Roma. O que ela procura é viver como uma garota normal sem os compromissos que rodeiam sua vida. Certa noite foge do palácio e vai em busca de realizar o seu conto de fadas às avessas. Nesta empreitada, conhece Joe Bradley (Gregory Peck), um jornalista americano em busca de uma reportagem, que finge não saber da identidade de Ann. Porém certas situações fazem com que Joe mude sua intenção, na medida em que o tempo vai passando e o destino de Ann começa a cobrar o seu retorno.
A Princesa e o plebeu é uma espécie de conto de fadas às avessas: a princesa cansada de sua vida monótona e repleta de compromissos decide enveredar por caminhos comuns dentro da normatividade cotidiana. Numa das primeiras cenas, podemos perceber esta atmosfera que rodeia Ann quando na festa, no momento em que ela recepciona os convidados ilustres, a câmera nos mostra a princesa com um certo incômodo por conta de seu sapato. O diretor Willian Wyler consegue ambientar o incômodo em que se encontra a personagem com maestria e perspicácia. Nos planos seguintes, pós fuga, somos presenteados com atuações magnificas por parte de Audrey e Gregory. A malícia e malandragem do personagem de Peck é funcionalmente intercalada com um ar sedutor, onde o ator consegue oferecer vida a esta personagem com eficácia e brilhantismo. Já Audrey está fantástica. Uma atuação brilhante de um dos maiores ícones do cinema. A Princesa Ann é uma mistura de inocência com travessura, uma personagem apaixonante que cativa o espectador. Audrey mais uma vez aparece de forma doce e sublime.
O filme de 1953 tem nos seus personagens principais o ponto alto. As interpretações são gigantes e dão o tom para o prosseguimento da obra. O roteiro também aparece com este ar simplista que permeia todo o ambiente e faz da Princesa e o plebeu uma referência. A fotografia é belíssima e explora com precisão o cenário. Durante a película somos tomados por esta atmosfera e assim permanecemos atentos e instigados com a estória da princesa com o jornalista. Quando os minutos finais se aproximam nos envolvemos ainda mais e na sequência final, que é excelente e foge e muito do clichê, a única reação que podemos ter é levantar e aplaudir de pé. Uma obra-prima que permanece eterna mesmo com o passar do anos. A princesa e o plebeu é como os grandes vinhos, onde o tempo na verdade só faz bem.
Febre do Rato
4.0 657Um grito que ecoa sem falsos pudores ou moralismos. Berros de uma realidade deixada de lado e marginalizada por padrões sufocantes e repressores, mas que se expressa através da arte e enxerga na arte um ângulo diferenciado e libertário para olhar o mundo. Uma maneira que foge do convencional, porém que preza por uma vida sem rótulos, liberdade no sentido mais restrito da palavra. Após Amarelo manga e Baixio das bestas, Claudio Assis consegue alcançar um amadurecimento grandioso em sua obra posterior, Febre do rato. Um filme lançado em 2012, uma obra que merece cada elogio: se apresenta de forma grandiosa e com um brilho original.
Zizo (Irandhir Santos) é um poeta contestador e anarquista que produz um pequeno tabloide chamado de febre do rato. Ele vive num universo que permite suas expressões e sentimentos. Cercado por amigos o personagem conduz suas indagações, anseios e convicções, com credibilidade e apreço. Porém suas crenças parecem entrar em divergência por conta de Eneida (Nanda Costa). Zizo, arrebatado por uma paixão exacerbada, enxerga no amor um elo antes negado, assim os conflitos entre o individuo e a coletividade se instaura e dá o tom para o restante da película.
O filme de 2012 apresenta um discurso muito bem definido. A obra contesta certos dogmas e valores sociais enraizados na sociedade. Abre um debate entre felicidade e pudor, dialogando de forma honesta e pertinente. Febre do rato mostra os desejos e cotidiano de uma parcela social esquecida e marginalizada, porém que buscou e busca constantemente seus próprios meios para alcançar a felicidade. O filme fala sobre certos grupos sociais que nos deparamos cotidianamente, mas que o preconceito e os pudores fazem questão de marginalizar e excluir. É um mundo que clama por entendimento e dialogo, mas enquanto eles não chegam, transforma o caos diário em arte e vida em poesia.
Febre do rato é uma obra belíssima. Sem dúvida alguma, trata-se de uma obra-prima. O filme apresenta uma grande direção, atuações excelentes, fotografia de primeira, trilha cativante e um roteiro genial. A forma como a estória é construída é grandiosa, uma obra de arte de fato. A direção de Claudio Assis é eficiente ao extremo e de muito bom gosto, quando as sequências em plongée, que remete a tarkovski, por exemplo, surgem na tela compravam esta afirmativa. Mas o personagem Zizo é o grande destaque. A atuação de Irandhir é fenomenal e consolida o personagem. A atmosfera do filme é ditada pelo poeta das ruas que de forma inflamada, porém dócil e cativante, oferece voz para os oprimidos e marginalizados. Há quem diga que o personagem é o alter ego de Cláudio Assis, sendo a diferença deles o fato de um fazer filmes como forma de expressão e o outro se expressar através das poesias, faz sentido, sem dúvida. Mas o fato é que Febre do rato é mais um filme com a assinatura de Claudio Assis, mais um filme honesto e que apresenta uma visão de mundo que se aproxima do real. Uma obra que encontra em Zizo a representação e um símbolo de liberdade e coragem, tal qual encontramos nos próprios filmes de Cláudio.
Vestida Para Matar
3.8 252 Assista AgoraUma homenagem a um dos maiores clássicos do cinema. Vestida para matar (Dressed to kill) é uma referência explicita ao imortal Psicose do genial Hitchcock. Em algumas outras oportunidades, comentei sobre certa alcunha que utilizo para me referir a Brian De Palma, trata-se de chamá-lo de o filho do suspense. Pois bem, neste filme que me refiro, tal alcunha é comprovada e mais que isso sacramentada. Muitos foram os diretores que tentaram remontar a atmosfera de suspense que permeia nas obras do mestre Inglês, Scorsese por exemplo tentou em A ilha do medo, porém na minha opinião, não alcançou a essência almejada. Mas não quero entrar neste mérito, o fato é que Brian De Palma conseguiu alcançar seu objetivo e se consolidou não como o sucessor de Hitch, mas como um grande diretor que procura no ídolo referências concretas e eficientes.
Em Vestida para matar o terapeuta Robert Elliott (Michael Caine) mantém um consultório em Manhattan. Bem requisitado, trata-se de um profissional competente e confiável. Porém sua vida se torna conturbada quando um psicopata começa a atacar suas clientes usando uma navalha roubada de seu escritório. A trama ganha um clima de suspense intenso e a caçada ao assassino assume o papel central do enredo. Asim Elliott se enxerga envolvido em um ambiente repleto de mistérios e de desejos reprimidos.
Vestida para matar, como já foi dito, é um referência a Psicose. Mas não se trata de uma referência esdrúxula ou capenga, Brian De Palma foi competente de forma extrema e o seu filme oferece características próprias e eficientes. Logo na sequência inicial o "ataque" no banheiro nos mostra que se trata de uma homenagem a este que é um dos maiores clássicos da história, além de nos preparar para os minutos seguintes. Aos poucos somos apresentados a rotina da personagem Kate Miller (Angie Dickinson), na medida em que a obra vai nos mostrando os aspectos que farão parte da trama. Somos ambientados com a película e envolvidos de forma competente.
Brian De Palma nos conduz como um grande regente, sua direção é impecável em cada detalhe, seja nos enquadramentos ou na escolha dos objetos. A sequência do museu é um dos momentos mais célebres da direção. A liberdade como a câmera caminha nos corredores do ambiente, os enquadramentos e a utilização de uma câmera subjetiva muito bem elaborada, coloca o espectador presente com intensidade e mais que isso, o suspense se mistura com os olhares atentos. Nesse momento, a trilha também assume um papel importantíssimo. A música em conjunto com as imagens, ambienta com eficiência o suspense exigido e assim nos confundimos: estamos diante de um filme de Hitchcock ou de Brian De Palma? Mas volto a dizer, não se trata de uma cópia barata. Tecnicamente De Palma também é, acima de tudo, um mestre.
Mas nem tudo são flores. Se tecnicamente De Palma se mostrou um mestre, numa direção fantástica que opta por uma liberdade exacerbada nos movimentos de câmera o que se mostra não só funcional, mas principalmente, com a grandeza de quem sabe montar cada detalhe de uma linguagem cinematográfica composta com maestria e eficiência, na composição do roteiro este referencial ficou no caminho. A estória é muito engessada. A narrativa fica muito presa em Psicose o que, de certa forma, prejudica e torna o enredo previsível. Mas não creio que tal situação chegue a prejudicar a qualidade da película, o fato não ofusca o brilho do filme e principalmente da direção de De Palma. Muitos afirmam que Scorsese é o maior diretor ainda vivo, talvez alguns desses não enxerguem a grandeza de Brian, mas foi assim com muitos, inclusive com Kubrick, que se tornou um ícone após a morte. Enquanto muitos criticam De Palma, os seus filmes surpreendem com uma direção ousada e artesanal, principalmente quando nos referimos a certas possibilidades que a câmera propicia.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 429 Assista Agora"O sabiá no sertão, quando canta me comove, passa três meses cantando e sem cantar passa nove, porque tem a obrigação de só cantar quando chove..." O imaginário do sertão nordestino é um misto de miséria e fé. A realidade do sertanejo não difere muito do imaginário das grandes obras que retrataram este universo ao longo do tempo. Claro que este ambiente, assim como a sociedade de forma geral, sofreu algumas variantes com o tempo, o processo de urbanização do país, a consolidação dos meios de comunicação de massa, são alguns desses vetores. Mas irei parar por aqui, pois na verdade, proponho um regresso, a pauta do dia é o filme Deus e o diabo na terra do sol, um clássico do Cinema Novo Brasileiro, dirigido pelo baiano Glauber Rocha.
O filme conta a estória do vaqueiro Manoel (Geraldo del Rey) e sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães). Manoel se revolta contra a exploração do coronel Moraes (Milton Roda) e acaba matando-o. Os jagunços do coronel perseguem o vaqueiro que acaba fugindo com sua esposa. O casal se junta aos seguidores do beato Sebastião (Lídio Silva) que promete o término do sofrimento através da fé. Porém, em paralelo ao crescimento do grupo, um matador de aluguel a serviço da Igreja Católica e dos latifundiários da região, tem a missão de exterminar o beato e seus seguidores. Nesse contexto, Manoel e Rosa conseguem escapar com vida e acabam encontrando Corisco (Othon Bastos), um remanescente do bando de Lampião.
Deus e o diabo na terra do sol é um filme do movimento denominado por Cinema Novo. Motivados por diversos elementos da cultura brasileira, alguns jovens se uniram no intuito de fazer filmes com diálogos mais verdadeiros com a cultural local. Buscando referências no Neo-Realismo Italiano e na Nouvelle Vague, o Cinema Novo propôs uma produção autoral e livre de certos esteriótipos, além de uma abordagem politizada na produção de um discurso intelectual na tentativa de alertar as massas. O filme de Glauber é de 1963 e junto com os Fuzis e Vidas Secas, compõe a chamada trilogia do sertão produzida pelo Cinema Novo. O movimento brasileiro encontra na cultura popular um alicerce seguro, rompe-se com a identidade folclorista, na medida que a realidade pobre e marginalizada é apresentada em detrimento da ilusão de um suposto desenvolvimento econômico e social do país.
O filme de 63 é composto por todos os elementos basilares da cultura sertaneja, retratada na literatura e em diversas produções culturais. Temos seca, fé, mitos, interesses políticos, cangaceiros, coronéis, alienação, fome, miséria e até o cordel. A retratação deste ambiente é conduzida na medida em que um discurso forte e orientador é transmitido. A mensagem do filme é clara e não deixa dúvida: " a terra é do homem. Não é de Deus nem do Diabo..." O homem é o dono de seu destino, e precisa urgentemente, atentar para sua condição desumana, "é preciso estar atento e forte..." Glauber conduz o espectador por um clássico do cinema nacional. Somos colocados frente a frente com a exploração da miséria, com a exploração do homem pelo próprio homem, um espaço onde fé e alienação aparecem como sinônimos. Trata-se de um ambiente extremamente miserável, mas sustentador de um sistema parasitário e mesquinho.
Deus e o diabo na terra do sol se inicia com uma tomada panorâmica do sertão. Na obra percebemos a influência do "western" na composição da película e na retratação de certos personagens. A fé e a alienação são as bases do filme, além do coronelismo que também se mostra presente. Manoel segue Sebastião no intuito de encontrar um outro caminho, uma tentativa de fuga motivada por sua vontade de mudar uma realidade de extrema pobreza. Ele é o retrato de um homem humilde que sem alternativas concretas se ampara na fé e acredita que um dia "o sertão vai virar mar.." Já a esposa de Manoel, Rosa, representa a consciência: ela reluta em continuar onde vive e tenta de todas as formas esclarecer o marido. A forma como o baiano, Glauber Rocha, conduziu a obra referenda e justifica os elogios recebidos. Já bastava toda a ambientação do momento/local no aspecto visual, mas o diretor foi além e demostrou um toque refinado de genialidade na trilha sonora: ele intercala o eruditismo de Heitor Villa-Lobos com um elemento da cultura popular nordestina, o cordel. E é justamento o cordel, escrito pelo próprio Glauber, que anuncia e dita os passos de Manoel em sua empreitada.
A obra de Glauber é cercada por elogios e aclamações, mas nem só de glórias ela vive. É verdade que o seu legado é grandioso e enriquecedor, porém seu estilo não agrada uma parcela também considerável. Gostar ou não gostar da estética proposta pelo baiano não é coisa de outro mundo, nem sinônimo de déficit intelectual, na verdade trata-se de uma questão de gosto, muitas vezes. No meu caso, particularmente, eu gosto do cinema dele, como de tantos outros. A forma como propõe debates e questionamentos me agrada e mais que isso, me convence. Mas voltando a discussão anterior, não gostar da obra não é problema, porém negar a importância de Glauber no processo de construção e aceitação da própria identidade local é um erro gravíssimo. Deus e o diabo na terra do sol é uma das provas desta minha afirmativa. Na minha opinião,é um trabalho grandioso de um conterrâneo arretado! Uma obra-prima da sétima arte.
Z
4.4 122"Qualquer semelhança com eventos e pessoas da vida real não é coincidência, é intencional." É desta forma que Costa-Gavras inicia o seu filme, o polêmico Z. Lançada em 1969 a obra esteve censurada em diversos países, inclusive no Brasil onde permaneceu por pouco mais de uma década. Z é um discurso político forte. Uma película que utiliza a linguagem cinematográfica com o intuito de alertar o mundo contra a manipulação governamental em benefício de certos interesses políticos. Um fato real é utilizado como pano de fundo na composição do enredo, uma abordagem corajosa que ecoa como berros.
O filme trata de fatos reais ocorridos na Grécia em 1963. Um professor de medicina e deputado grego, Gregoris Lambrakis, (Yves Montand) - um dos líderes da oposição esquerdista - organiza em conjunto com sua base, um comício pela paz e contra a instalação de mísseis americanos em território grego. Mesmo com empecilhos a reunião acontece, com um clima de tensão tomando conta do local. No final, o deputado é vítima de uma atitude violenta e dias depois acaba falecendo. A polícia conclui o caso como um acidente, porém existem indícios que levam um jovem juiz a suspeitar da conclusão e se aprofundar nas investigações. Com a ajuda indireta de um fotojornalista e algumas testemunhas, ele consegue revelar uma trama de membros do governo como os autores do crime. Todos são indiciados, mas as testemunhas acabam morrendo e os envolvidos são condenados a penas leves.
O filme de Costa-Gavras é baseado no romance homônimo de Vassilis Vassilikos. A obra retrata os acontecimentos que culminaram na instauração de uma ditadura militar na Grécia. O filme não aborda sobre o golpe em si, mas a morte do deputado foi o estopim para este processo. Com a morte do parlamentar e o governo sendo condenado, a esquerda criou força suficiente para vencer as eleições, porém os militares instauraram o golpe. Com o fim da Segunda Guerra o mundo se viu dividido entre comunistas e capitalistas, na chamada Guerra Fria, o clima de tensão e violência fazia parte do cotidiano naquele período. Diversas ditaduras assumiram o poder na América Latina e no sul da Europa, a maioria por golpes de Estado entre as décadas de 60 e 70, e na Grécia este processo ocorreu em 1965.
O assassinato do parlamentar, assim como retrata o filme, ocorreu em praça pública. O crime foi praticado por militantes de extrema direita e foi planejado e financiado por militares. A morte de Lambrakis provocou a revolta de seus seguidores, que durante as manifestações, pintavam a letra Z, inicial da palavra ZEI, que em grego significa "ele vive". É neste contexto de tensão e conspirações que Z se sustenta. A obra explora este cenário e assim somos guiados por um enredo baseado em fatos verídicos. A retratação do tema, no mínimo polêmico, é conduzida com eficiência e maestria.
Nos primeiros trinta minutos a obra apresenta alguns problemas e o ritmo é prejudicado, mas Costa-Gavras se recupera e ambienta com méritos o momento, e principalmente, o clima de tensão, que passa a tomar conta tanto do cenário quanto do espectador, vide a cena do comício onde a tensão é transmitida de forma extremamente funcional em cada olhar, em cada gesto. O terreno é preparado e quando o juiz passa a investigar o crime, a obra alcança o seu ponto máximo. Outro elemento que merece destaque é a trilha. Que consegue, também, fazer um clima ainda mais evidente. Na cena em que uma testemunha é perseguida por um carro, numa tentativa de atropelamento, temos um exemplo de como a música funciona neste processo. Z é uma das maiores obras do cinema político. Um filme necessário por seu papel esclarecedor e seu discurso contundente. Só por conta das censuras sofridas, o filme já aguça a curiosidade. Uma obra que merece cada prêmio e cada elogio recebido. Filmes como Z são armas, mas armamentos em prol do conhecimento e da cultura. Uma obra corajoso de um diretor conhecido por seu discurso político e por sua militância.
Acossado
4.1 510 Assista AgoraAcossado (À bout de souffle) de Jean-Luc Godard é um marco no cinema moderno, por isso falar sobre tal obra é no mínimo difícil, mas como os desafios movem o ser humano, tentarei comentar sobre o filme. Lançado em 1960 as inovações proporcionadas por esta obra continuam evidentes colocando-a como uma referência ainda nos dias atuais. Sem dúvida alguma, estamos falando de uma obra-prima cujo a eternidade é um patamar alcançado com todos os méritos possíveis. Com mais de 50 anos, fica evidente que o tempo só serviu para consolidar ainda mais o projeto de Godard, uma coroação merecida para um trabalho inovador e autêntico.
Após roubar um carro em Marselha, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) segue para Paris. No caminho um policial tenta prendê-lo por excesso de velocidade e Michael o assassina. Ao chegar em Paris, ele conquista a relutante Patricia Franchisi (Jean Seberg), uma estudante americana, e assim, permanece escondido para receber um dinheiro que viabilize a fuga de ambos pra Itália. Mas logo o crime cometido por Michel chega aos jornais e ele se encontra sem opções.
O enredo de Acossado não se mostra tão inovador. Desta forma, podemos perceber que não é na estória que se encontra o brilho do filme, na verdade, o máximo alcançado por parte da obra deve-se ao processo de construção da narrativa, é a forma como a estória é contada que coloca a película de Godard no mais alto degrau do cinema moderno e viabiliza sua eternidade. O filme foi um dos primeiros da Nouvelle Vague, movimento liderado por jovens críticos de cinema que escreviam na revista Cahiers du cinema, onde buscava-se uma ruptura com o modelo conservador que tomava conta do cinema, no intuito de estabelecer um diálogo autoral e autêntico. O lançamento de Acossado, já em 1960, causou polêmica e dividiu opiniões, uma parte se curvou diante das inovações propostas e reconheceu a obra como genial, e tantos outros, a condenaram. Mas a verdade é que o filme permanece inovador mesmo com o passar do tempo, confirmando o seu valor e mostrando quem estava certo e quem estava errado nesta discussão. Godard conduziu sua carreira e dedicou um bom tempo para uma minuciosa pesquisa estética. O experimentalismo e a ruptura foram características marcantes de Jean-Luc que dialogou não só com o cinema, mas com diversas esferas da arte.
Para entender a importância que Acossado tem para o cinema moderno, torna-se necessário um regresso histórico, sendo assim, tentarei montar este ambiente nas próximas linhas. Peço licença ao leitor, mas trata-se de uma situação necessária. Nos primórdios, o cinema não era visto com o glamour que hoje o acompanha, muito pelo contrário, tratava-se de uma "produção" voltado para as classes sociais menos abastadas, situava-se nos guetos. Segundo Arlindo Machado, ele reunia, na sua base de celuloide, várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia... Marginalizado pela sociedade, o cinema figurava nos guetos das cidades, em ambientes denominados de vaudevilles. Esses eram locais bastante populares e um tanto mal afamados, os vaudevilles eram abominados pelas plateias mais sofisticadas, visto como zona de bebedeira e prostituição.
Ainda de acordo com Machado, nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível insuportável, os industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na condição de fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses homens todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento comercial do cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe média e os segmentos da burguesia. Essa nova plateia não apenas era mais sólida em termos econômicos, podendo portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de lazer infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes. Assim surgiu um cara chamado D. W. Griffith que assumiu um papel de protagonista neste processo, onde seu filme O nascimento de uma nação de 1915 aparece como um marco desta ruptura. Pois bem, pegando emprestado uma prática cinematográfica, a chamada elipse, proponho um corte... Já nos encontramos em 1941, ano de lançamento do clássico Cidadão Kane de Orson Welles. Cidadão Kane, assim como O nascimento de uma nação, representa um marco. O filme de Welles propôs inovações narrativas e de enquadramentos cinematográficos, sendo fundamental para o amadurecimento do modelo de cinema clássico hollywoodiano, inaugurado lá atrás com Griffith.
E onde porra entra Acossado nessa história toda? Calma, jovem! Acossado aparece em 1960. Godard propõe uma ruptura com o modelo engessado, e até então, visto como único para contar uma estória nas telas. O Francês propõe diversas inovações, juntamente com outros membros da Nouvelle Vague, no intuito de inaugurar um cinema de baixo orçamento, com obras autorais e experimentais. O filme aparece como marco inicial, numa perspectiva que alcançaria seu amadurecimento com o tempo, porém que nascia ali. Sendo assim, é necessário esclarecer as características que fizeram de Acossado uma obra de tamanha importância.
Segundo o próprio Godard, ele foi escrevendo o roteiro de forma improvisada. “Acossado começa assim: eu havia escrito a primeira cena (Jean Seberg caminhando nos Champs Elysées), e para o resto do filme eu tinha uma pilha de notas, uma para cada cena. Disse a mim mesmo: “isto é terrível”, e parei tudo. Então pensei: se em um dia é possível filmar cerca de doze planos... então, em vez de escrever todo o roteiro antecipadamente, decidi improvisar as cenas de cada dia, tomando como referencia as notas que tinha em meu caderno”, disse Godard em 1961. E segundo o crítico Flavio Guirland, a displicência com que o realizador elaborou o roteiro acabou contaminando outros aspectos da produção, o que o levou a infringir certas regras características do cinema comercial: as filmagens minuciosamente planejadas dos estúdios cederam lugar às locações externas, sujeitas à ocorrência de todo tipo de acasos; as tomadas de planos, em geral repetidas até que se consiga atingir os limites da perfeição, foram realizadas muitas vezes em um único take; aos atores, normalmente condicionados a atuar segundo um estilo de interpretação bastante regrado, foi dada completa liberdade para improvisar.
Mas o grande lance de Acossado se encontra na narrativa. A forma como Godard construiu a estória é o que faz desta obra um marco. Trata-se de uma obra pioneira que ofereceu alternativas de qualidade ao modelo de estúdio hollywoodiano. Ângulos incomuns de câmera, fortes cortes na cena (jump cut) e o uso de câmeras portáteis que permitem movimentos livres, são algumas das inovações propostas nesta obra. De acordo com Guilrland, opondo-se ao modelo da narrativa causal, Godard agencia novos esquemas de relações entre os elementos cinematográficos, privilegiando agora uma “lógica da ação”, aqui a dedução discursiva de uma estória em nada auxilia na compreensão do filme. O sentido é dado por uma câmera que testemunha os fatos, mas não explica, não conclui. Ele existe numa relação orgânica com a ação dos personagens. O critério relativo à mise-en-scéne (direção de cena) passa a ser a dominante, sobrepondo-se à exposição coerente do enredo. Ainda segundo Guilrland, a valorização da descontinuidade (e não o seu ocultamento) será o traço estilístico distintivo que irá romper de vez com a ideia de identificação...tomemos como exemplo a seqüência em que Michel e Patrícia passeiam de carro pela cidade. Num plano próximo, vemos Patrícia (por trás, em plongée), sentada no banco dianteiro, ao lado de Michel. Enquanto ele discursa: “Amo uma garota com o pescoço lindo / com seios lindos / com uma voz linda / com pulsos lindos / com uma testa linda / e joelhos lindos... / mas que é covarde!”, ela permanece o tempo todo diante de nós, no mesmo enquadramento. Percebemos, no entanto, através dos cortes, que o carro trafega por diferentes avenidas e ruas da cidade, em diferentes momentos. Tal combinação produz, para além da descontinuidade visual, uma síntese de tempo, e nos sugere que a duração daquele passeio é bem maior do que poderíamos imaginar. O exemplo citado por Flavio, coloca Acossado na perspectiva definida por Aumont de filmes que buscam um rompimento com o olhar.
Poderíamos continuar debatendo sobre as inovações propostas em Acossado, e ainda assim, muitos seriam os pontos a serem abordados. Mas pra não alongar muito, proponho que o próprio leitor veja o filme e tire suas conclusões. Porém é evidente o quanto Acossado é importante na consolidação de um cinema autoral. Suas inovações influenciaram diversos movimentos cinematográficos, inclusive o cinema novo brasileiro. Estamos falando aqui, de uma referência não apenas cinematográfica, mas principalmente intelectual. Godard é uma das mentes mais brilhantes, e não só do cinema. Sua obra é essencial! Não é por acaso, que a Mônica, namorada do Eduardo, queria ver o filme do Godard, enquanto o Eduardo preferia uma lanchonete. Enfim, maluco para alguns e gênio para outros, mas o fato é que Godard permanece causando polêmica e aflorando debates, mesmo com o passar dos anos, seu legado se mantém atual. E as conclusões, ficam a cargo de cada um. O fato é que sua obra se mostra diferente a cada indivíduo. Não gostar do seu modo de fazer cinema é uma coisa, mas negar suas contribuições, é no mínimo um grande déficit cultural.
O Discreto Charme da Burguesia
4.1 284 Assista AgoraOs moldes econômicos da sociedade passaram por um processo de metamorfose no decorrer dos tempos. No Feudalismo, a sociedade majoritariamente rural produzia para sua sobrevivência. O excedente desta produção desenvolveu um mercado nas feiras, os chamados burgos. Nos burgos emergiu uma nova classe social que ficou conhecida como burguesia, um grupo ainda sem prestigio. Por isso várias vezes tal grupo aliou-se com pessoas que detinham um papel forte no contexto social da época, por exemplo, na consolidação dos estados nacionais (aliou-se com a nobreza), porém quando os burgueses perceberam que esta aliança não trazia mais vantagens para si, adotaram um papel revolucionário baseado nos pensamentos iluministas, que tiveram início no século XVII, na Inglaterra, inspirados por alguns filósofos importantes da época: René Descartes, Thomas Hobbes, entre outros. O Iluminismo sugere uma nova maneira de pensar o mundo. Rompe-se com o pensamento passado e a racionalidade é colocada como ideia central. O ideal iluminista impulsionou, por exemplo, a Revolução Francesa no século XVIII, acabando com a monarquia implantada na França e levando a burguesia ao poder, inaugurando assim, a chamada modernidade.
A modernidade se constituiu como uma espécie de revolução no pensamento e comportamento humano, percebido desde as ciências humanas até as artes, mas sua definição é algo conflitante dentre os diversos estudiosos e sua aplicação nas sociedades ocidentais se dá em todas as áreas do conhecimento. Após a divisão de classes e a consolidação do capitalismo, a humanidade atinge seu estado maduro, levando em consideração os rumos políticos e econômicos. Isto começou a acontecer a partir do momento em que o sistema capitalista foi se desenvolvendo e tomando suas formas atuais, o que intensificou a divisão do trabalho existente e esta foi se expandindo pelo formato de globalização de nosso mundo, cada vez mais ocidentalizado. Segundo Jürgen Habermas, “a Modernidade é um processo inacabado”, pois a sociedade não conseguiu atingir um patamar- e dificilmente atingirá- onde todos os seres humanos detenham as mínimas condições de vida. Após a implantação e consolidação do sistema capitalista, a luta de classes foi acirrada gerando uma disparidade entre os detentores do poder e do capital, em relação ao operariado, utilizados como “massa de manobra” para a obtenção de lucros. Mas no século XX, surgiu o pensamento Pós-Moderno, que busca romper com a racionalidade e colocar a subjetividade em evidência, porém este pensamento não pode ser considerado como algo totalmente inovador, pois no campo político e econômico a sociedade continua a seguir nos moldes do capitalismo. Assim o pensamento Pós-Moderno não conseguiu mudar e nem levar o mínimo de condição de vida para todos os indivíduos: as estruturas sociais continuam as mesmas.
Pois bem, visto um breve contexto com relação ao surgimento e consolidação da burguesia como classe social, iremos tratar do assunto exclusivo deste bendito Blog, vamos falar sobre cinema. O fato de ter iniciado com um relato sobre a burguesia não é de forma alguma algo fora da narrativa do texto que segue, afinal O discreto charme da burguesia, um filme dirigido por Luis Buñuel e lançado em 1972, é o alvo desta breve análise. Vamos lá, cara pálida! Chega de embromar! Tá certo, tá certo... Uma sátira direcionada a burguesia, construída de forma bastante inteligente, O discreto charme da burguesia é uma obra de muito bom gosto e direcionada para um público admirador do cinema, porém pensante acima de tudo. O filme mistura situações "reais" da narrativa com os sonhos e devaneios dos personagens. A obra se passa num momento em que alguns amigos tentam de todas as formas organizar um jantar, porém algumas situações sempre surgem para atrapalhar os planos. A obra é uma crítica a hipocrisia da vida social burguesa. Um retrato decadente de uma classe social sempre criticada e apontada, porém que se mantém "dando as ordens" graças ao talento diplomático. Buñuel escolheu este cenário para elaborar sua crítica a partir de um humor ácido através da comédia e da fantasia na tentativa de atingir seu objetivo.
O projeto do diretor foi extremamente funcional. A construção do filme consegue alcançar o planejado e assim a obra permanece como sinônimo de requinte intelectual. Partindo deste princípio, torna-se necessário esclarecer alguns aspectos da película, principalmente relacionados com a narrativa, para que o leitor, que ainda não viu o filme, ou mesmo o que viu, possa vislumbrar, mesmo que através das palavras, o cenário construído por parte do filme. Pois bem, a trama gira em torno de um jantar, porém um momento que sempre é "atrapalhado" por alguma situação. Trata-se de um jantar combinado por seis amigos burgueses que não contam com nada mais atrativo ou proveitoso para fazer, estão sempre a combinar, porém nunca conseguem concretizar seus desejos. E assim eles permanecem insistentes durante a película, afinal trata-se do clímax, abrir mão do jantar seria o mesmo que perder a única "emoção" proporcionada. Desta forma, o tal jantar se apresenta como o eixo para o desenrolar da narrativa.
Buñuel conduz os personagens e também o espectador na medida em que o jantar se configura como a "única" emoção do filme, assim em certos momentos nos enxergamos torcendo para que este acontece logo: poderemos perceber o que existe neste "suspense", mas na verdade nada existe, trata-se apenas de um jantar. A partir de certo ponto, Luis passa a questionar ainda mais a passividade do espectador: ele intercala sonhos e "realidade", deixando a narrativa caminhar entre o "real" e a fantasia. Nos sonhos somos apresentados a certos desejos e traços dos personagens de forma bastante ácida, e mais uma vez, o jantar se encontra como eixo central. Somos apresentados a pessoas mesquinhas, vagas e totalmente insensíveis. São pessoas que se odeiam entre si, porém por conveniência se suportam e trocam "figurinhas". A hipocrisia é mostrada de maneira inteligente, trata-se de uma abordagem construída nas entrelinhas que exige concentração e percepção ao espectador. Durante certos momentos observamos o grupo de "amigos" a caminhar sem rumo ou propósito, ou seja, do nada pra lugar nenhum. É assim que Buñuel enxerga e nos mostra a burguesia, uma classe social sustentada em falsidades e futilidades, pessoas sem propósito algum, que não ligam pra nada além do próprio umbigo. O discreto charme da burguesia é um filme essencial. Tecnicamente a obra é funcional, haja vista certos movimentos de câmera. As atuações são boas e a montagem é inteligente, porém, sem dúvida alguma, o roteiro é o grande destaque. O filme é uma sátira genial que me fez lembrar do poeta quando disse que a burguesia fede - porém me mostrou de forma ainda mais clara, o complemento dito por Falcão - mas tem dinheiro pra comprar perfume.
Baixio das Bestas
3.5 397O cinema de Claudio Assis não é um cinema comum. A lógica adotada pelo diretor muitas vezes assusta e causa polêmica, porém seus filmes são honestos e buscam uma abordagem dura se aproximando ao máximo do real. Baixio das Bestas lançado em 2006 confirma este discurso e não me deixa mentir. Com um tom polêmico, mas uma polêmica causada por sua abordagem verdadeira e sem falso pudor, a obra é extremamente dura, porém retrata temas verdadeiros com discursos fortes e longe da espetacularidade.
Numa pequena comunidade no Estado de Pernambuco se passa a vida de Auxiliadora (Mariah Teixeira), uma menina explorada sexualmente por seu Avô, mas existem suposições de que na verdade ele é o seu pai, seu Heitor (Fernando Teixeira), um moralista ranzinza que em tudo vê falta de autoridade, mas ganha dinheiro explorando a menina. Cícero (Caio Blat) é um jovem de classe média que estuda em Recife e passa os fins de semana no interior onde vive sua família. Lá, se "diverte" na companhia dos amigos. O lazer dos rapazes é violentar as prostitutas da região, regados a muita bebida. Neste contexto, a vida de Cícero e Auxiliadora se cruzam, e a partir daí será decidido o destino da menina.
Prostituição, abusos e machismo são retratados de forma crua neste filme de Claudio Assis. Os pudores são deixados de lado numa obra visceral e dura. Com uma narrativa polêmica, Baixio das Bestas dialoga de forma honesta com uma realidade pesada, porém existente, mesmo que o interesse da sociedade em geral seja jogar toda esta merda pra "debaixo do tapete", afinal negar a realidade é muito mais cômodo do que abir os olhos e enfrentá-la. A prova disto, é que é comum as críticas aos filmes de Claudio Assis por seu estilo, considerado muito pesado, mas como afirma o próprio diretor, suas obras são tentativas de se aproximar ao máximo da realidade, e sem dúvida alguma, Assis tem tido êxito neste propósito.
A opção estética pelo grotesco reforça a intenção do diretor e se mostra extremamente funcional em seu propósito. A construção da fossa no quintal, por exemplo, que, aparentemente não tem serventia alguma, funciona como metáfora para uma visão de mundo particular, onde o odor desencadeado talvez pela fossa, ou pelo vinhoto produzido pelas usinas próximas, é na verdade, o cheiro da podridão do mundo.
Baixio das Bestas conta com um elenco de primeira. Nomes como Dira Paes, Matheus Nachtergaele e Caio Blat fazem parte da película, porém as atuações de Fernando Teixeira e Mariah Teixeira são fantásticas e merecidamente ganham destaque. O filme de 2006 sofreu, e ainda sofre, duras críticas por conta de sua abordagem, muitos consideram desnecessária a intensidade com que Claudio retrata o tema, porém não enxergo assim. Baixio das Bestas mostra uma realidade torpe e nojenta que precisa ser combatida: infelizmente é algo existente em nossa sociedade. E pra finalizar, fico com algumas palavras de Claudio Assis: "a gente tá fazendo uma coisa que acontece no dia-a-dia, eu não acho que isso é violento. Mais violento é ver um programa de madame na televisão, de manhã, mostrando a polícia matando adolescente porque roubou um ônibus. Bush exterminando uma nação na hora do almoço, na hora do jantar, e ninguém diz nada, ninguém reage...."
Árido Movie
3.6 207O Nordeste brasileiro ainda é vitimizado por um sistema opressor e mesquinho que explora as desgraças alheias de forma insensível e egoísta. A mercantilização da miséria se mostra rentável para grandes capitalistas que se aproveitam de um ciclo vicioso para ampliar lucros e riquezas. Sem dúvida alguma trata-se de uma temática polêmica e até mesmo perigosa, na medida em que envolve pessoas poderosas nesta postura torpe e arrogante, porém temos no cinema brasileiro uma obra que aborda tal questão de forma extremamente inteligente, me refiro ao filme Árido Movie do diretor Lírio Ferreira.
Lançado em 2005, Árido Movie mostra o trajeto de Jonas (Guilherme Weber) que vai de São Paulo até a cidade em que nasceu, Rocha, no interior de Pernambuco, onde sua família o espera para o enterro de seu pai. Durante a viagem de ônibus, em uma parada, conhece a videomaker Soledad (Giulia Gam) que lhe dá uma carona até a cidade. Soledad realiza um documentário sobre a escassez de água. O filme começa a tratar, em paralelo, sobre a trajetória de uma documentarista realizando um filme no sertão. O filme se apropria de um gênero muito popular do cinema, o road movie, estabelecendo nele um caminho na medida em que o "cinema fala sobre cinema ao fazer cinema."
Árido Movie é uma obra riquíssima que apresenta alguns temas polêmicos em seu enredo. O roteiro escrito por Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira e Eduardo Nunes explora três importantes questões do Nordeste brasileiro: o dilema político da água , o coronelismo e a plantação e exploração da maconha. A narrativa conta com núcleos de personagens que vivem situações particulares e, em certos momentos, interagem com núcleos distintos. A montagem fundamentalmente fragmentada permite que tal narrativa se desenvolva de forma eficiente durante a película. Dentro do clima intimista regional criado em Árido Movie sobressai na narrativa o linguajar adotado pelos amigos de Jonas. O trio é responsável por imprimir uma veia cômica na obra com expressões de uma pseudo-intelectualidade. O sertão retratado no filme de Lírio Ferreira se mostra como um ambiente repleto de problemas políticos, além da água e da seca, trata também da comercialização da maconha, atividade desenvolvida pela família de Jonas, que se refere sempre como plantação de algodão.
Árido Movie é um filme produzido em Pernambuco. A obra apresenta, como já foi dito, discussões relevantes e densas. No filme, fica evidente, que é a partir do olhar sobre os conflitos identitários do protagonista que emerge a discussão do local, do regional e do nacional, temos um Jonas que não se encontra no Sertão, ele não se enxerga parte daquela realidade. O filme de Lírio é considerado de baixo orçamento, custou cerca de 750 mil. É o típico bom e barato, não é mesmo? Na verdade eu vou além, na minha opinião trata-se de uma obra-prima. Muitos não compreendem a problemática da narrativa do filme. Alguns enxergam como uma apologia a maconha construída de forma irrisória, mas o filme é muito mais. O debate com relação a legalização da maconha é extremamente importante numa sociedade que não mais vive a mesma realidade de anos atrás. Com um roteiro excelente e de muito bom gosto, uma direção de primeira e uma trilha, composta por Otto, extremamente funcional, Árido Movie é uma obra muito maior do que se mostra de forma aparente, mas com relação as opiniões ignorantes e preconceituosas dirigidas ao filme, só posso ficar com o conselho de Cazuza e pedir piedade. É como afirma o personagem Zé Elétrico: "Tá vendo, as coisas tão por aí e a gente não vê. Sabe por que? Preconceito. As pessoas só querem ver o que deixam. É preguiça e preconceito...."
Amarelo Manga
3.8 543 Assista AgoraUm Brasil esquecido pelas produções culturais. Na verdade, nem sempre esquecido, mas quando lembrado é formado por certos esteriótipos. Ou segue uma abordagem cômica bestificada ou uma pura violência num jogo entre gatos e ratos. Me refiro a periferia brasileira. Formada por um universo de pessoas, pessoas de carne e osso, muito diferente da abordagem existente no espetáculo midiático, as produções culturais brasileiras buscam um distanciamento desta realidade, na verdade, esta não é a imagem rentável do Brasil. Mas temos algumas exceções neste processo, alguns filmes autorais buscam um diálogo mais honesto com essa esfera social, um exemplo disso, é Amarelo Manga do Pernambucano Claudio Assis.
Lançado em 2003, Amarelo Manga, apresenta um tom verdadeiro. Uma produção representativa numa obra construída sem falsos pudores ou moralismos. A partir do olhar de alguns personagens somos conduzidos por este cotidiano de forma intensa. Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz e Leona Cavalli nos mostram o caminho a ser seguido durante a película com fatos de uma vida comum, repleta de sonhos e decepções, na periferia Recifense, que poderia ser qualquer outra do Brasil. Neste emaranhado de narrativas observamos aspectos do dia-a-dia e como certas questões cotidianas são utilizadas para montar o ambiente popular na construção da narrativa fílmica, numa abordagem que "choca" por seu tom verdadeiro e autoral.
Um filme de baixo orçamento que é eficiente em todos os aspectos. Amarelo Manga é uma produção pernambucana - Estado que tem ganhado destaque desde a retomada do cinema nacional - que propõe um diálogo honesto, sem esteriótipos ou pré-conceitos, com as classes menos abastadas. Os personagens são compostos por individualidades, conflitos pessoais e existenciais - sujeitos em busca da própria "identidade" (que aparece, por exemplo, de forma metafórica na cena em que o personagem de Jonas Bloch esquece sua identidade no bar e volta para recuperá-la) - e não mais representações alegóricas de uma parcela social e de uma região. Trata-se de uma abordagem das construções identitárias por meio da problematização das próprias representações de certos grupos sociais e da sua busca por reconhecimento e significação.
A negação de um cinema brasileiro é uma prática comum no território nacional, algo que não condeno pois cada qual faz as suas escolhas, mas muito desta negação se deve a um complexo de vira-lata que cega o povo brasileiro. Esta realidade não é exclusividade do cinema, porém como aqui o cinema é a pauta, irei retratar apenas esta questão. Os filmes brasileiros muitas vezes não são aceitos. Sei que falta muito para o cinema nacional, aspectos que ultrapassam a questão da produção, mas irei tratar do aspecto estético. Os filmes nacionais não se resumem aos modelos "pastel de vento" da Globo Filmes, temos produções autorais, com baixo orçamento, grandiosas em território tupiniquim, porém a negação desses conceitos é forte e limitadora. O que acontece na verdade é uma negação da própria identidade nacional. Nós não somos a Europa e nem os EUA, podemos até ser melhores, mas iguais nunca. Não somos aquilo que as novelas da Globo insistem em nos fazer acreditar, nós somos o Brasil, nossa realidade é outra. Assistimos aos filmes nacionais na busca por estéticas e modelos estrangeiros, por isso o cinema brasileiro é tão criticado em território nacional. Muitos são os críticos, que se dizem especializados, que condenam este cinema autoral, mas esses seriam os mesmos que outrora negariam Glauber Rocha e condenariam o Cinema Novo, tão elogiado, inclusive por Martin Scorsese. Voltando a Amarelo Manga, é um filme que cumpre as expectativas. Uma obra verdadeira e honesta.
A Doce Vida
4.2 316 Assista AgoraA Doce Vida (La Dolce Vita) de Fellini não tem nada de doce. Começo meu texto com uma declaração polêmica, haja vista que um sentido dúbio foi lançado. Alguns estão imersos numa dúvida: será que ele se refere a uma obra máxima como um filme pífio? Ou simplesmente cita a vida ambientada no filme por Mastroianni? Sei que esta dúvida persiste na cabeça de vocês, porém irei saná-la, no momento certo, mas irei.
Lançado em 1960, A Doce Vida literalmente divide opiniões. Para alguns, figura entre as obras mais aclamadas de todos os tempos, uma verdadeira obra-prima, um filme além do tempo e acima de qualquer suspeita. Para outros trata-se de uma obra enfadonha, chata, na verdade um porre! Pois bem, podemos perceber que o filme de Federico é um desses ame-o ou deixo-o, não é mesmo? A obra retrata Roma no início dos anos 60, a partir da vida de Marcello (Marcello Mastroianni) um Jornalista que vive entre celebridades e ricos num mundo marcado por um vazio existencial. Ele é um jovem que passa os dias procurando a felicidade de forma efêmera, em festas, sexo e bebidas. Quando Sylvia (Anita Ekberg - extremamente sexy), uma estrela de cinema famosa, chega a Roma, Marcello vai esperá-la no aeroporto e faz de tudo para passar uns dias com ela. E assim certa vez, quando volta a casa na manhã seguinte, Marcello descobre que sua namorada, Emma (Yvonne Furneaux), se envenenou por causa dele. Trata-se de um retrato de uma sociedade decadente e arrasada.
Pois bem, como a obra já foi ambientada, irei comentar nas linhas seguintes as minhas impressões. Confesso que enquanto assistia a película não conseguia enxergar a obra de forma tão grandiosa, porém tenho sorte: o filme de Fellini é daqueles que o espectador não consegue tirar da cabeça e ele cresce ainda mais a partir das reflexões. Talvez não o tenha entendido como grandioso enquanto assistia por conta de uma certa ignorância, quem sabe? As vezes, não estamos tão preparados! Mas voltando ao filme, A Doce Vida apresenta uma das fotografias mais belas da história do cinema. Um filme em preto e branco que ambienta de forma grandiosa toda a decadência e estupidez de uma sociedade alienada e vaga. A trilha sonora é composta por Nino Rota, preciso dizer mais alguma coisa? O filme de Fellini mergulha em uma vida cercada por conflitos existenciais e repleta de futilidades. É uma obra densa e dura.
A Doce Vida não apresenta uma narrativa contínua. A impressão que temos é que a película é composta por várias estórias paralelas: os personagens aparecem e somem a todo instante e não sabemos o desfecho que teve cada um deles. Talvez este seja um dos aspectos que mais incomoda o espectador não ambientado com filmes que buscam um rompimento com a facilidade habitual do cinema, além é claro do tempo de duração. Mas como disse anteriormente, muitas vezes é preciso maior concentração e uma reflexão mais atenta com relação ao filme. A obra de 60 é uma crítica forte a sociedade de espetáculo, coloca a mídia como o picadeiro e o ser humano como palhaço (perdão aos palhaços que assim como Fellini, considero uma profissão belíssima) dono de uma vida vaga e tediosa, porém maquiada por um aparente "glamour". São pessoas reféns de padrões débeis e fúteis em um sistema alienador e mesquinho. A Doce Vida é totalmente fora dos padrões convencionais e mercadológicos, é um filme para poucos! Um dia quem sabe, esses poucos não se transformem em muitos? O recado já foi dado, desde 1960: essa vida na verdade não tem nada de doce, pelo contrário, é extremamente amarga! Uma obra-prima de 1960 que poderia muito bem ser de 2013. Ainda cairia como uma luva!
Desconstruindo Harry
4.0 335 Assista AgoraUm bom roteiro é um passo importantíssimo para a construção de um grande filme, todos concordam? Acredito que sim! Partindo deste plano, observando os roteiros de alguns filmes já assistidos, me arrisco em uma declaração, a partir de uma opinião pessoal, contundente e precisa: Woody Allen é um dos melhores roteiristas da história. Sei que muitos não gostam de seu estilo, mas negar a criatividade de Woody seria um erro, até mesmo um pecado capital. Em Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry), podemos observar elementos que embasam minha afirmativa. Não quero, em momento algum, ser comprado como verdade absoluta, mas estou certo que minha visão não cai em equívocos e sei que muitos concordam comigo neste quesito.
Lançado em 1997, Desconstruindo Harry é um filme inteligentíssimo. Harry Block (Woody Allen) é um escritor que tem a incomoda mania de utilizar fatos de sua própria vida em conjunto com os de pessoas próximas, como fonte de inspiração para suas obras. Esta prática irrita as pessoas que acabam se afastando do escritor. Block torna-se um ser odiado e evitado por quase todos que o rodeiam, e assim, ele nos guia durante a película.
A construção do filme é feita sob uma base bastante sólida, o roteiro. Woody Allen, na pele de Harry Block, nos guia em uma narrativa com criatividade exacerbada. Desconstruindo Harry dialoga com as obras dentro da obra, na medida que intercala os personagens criados por Harry com "elementos reais" da vida do escritor. Com maestria, Woody Allen consegue perpassar suas mensagens - como por exemplo no momento em que Blocke desce até o inferno - na cena o "diabo" afirma que recebeu uma proposta de trabalho em Holywood, mas recusou por não se tratar de um ambiente confiável e seguro. São sátiras como esta que observamos no decorrer da película que fazem do filme de 97 uma obra digna de elogios.
Desconstruindo Harry ainda é uma referência clara a Morangos Silvestres de Bergman, na medida em que coloca um personagem entre o céu e o inferno, como Isak Borg. Allen ainda baseia seu roteiro em um eixo que o liga ao do diretor sueco: um escritor faz uma viagem para uma cerimônia em sua homenagem na universidade na qual estudou, assim como Isak que faz uma viagem em direção à Catedral de Lund, onde será feita uma cerimônia em sua homenagem pelos 50 anos de medicina. Porém durante o desenrolar da história, Bergman utiliza de alegorias expressando a culpa de Isak, ora em formato de sonho, ora em formato de visões, já Allen as utiliza quase sempre de forma difusa com a realidade.
Woody Allen mais uma vez interpreta um ranzinza cheio de manias lunáticas. O personagem Harry é fascinante. Fascínio que pode ser explicado por sua personalidade polêmica e contundente. Em Desconstruindo Harry temos momentos impagáveis, como na cena em que ele conversa com o filho (de 9 anos, se não me engano) sobre sexo e cristianismo e quando o ator aparece desfocado. A forma como Woody consegue colocar humor e inteligência no mesmo campo é no mínimo louvável, ainda mais num momento em que as comédias da Globo Filmes estão enchendo o cenário de produções pífias e de péssimo gosto. Os diálogos típicos das grandes obras de Allen estão presentes no filme de 97. Por tudo isso e um pouco mais, Desconstruindo Harry é um filme inteligente e criativo é uma obra com a cara de Woody Allen.
Amém
3.9 95 Assista AgoraUm tema delicado, porém que ainda carrega um ar de mistério e muitas dúvidas em volta. O filme Amém (Amen) de Costa-Gavras, lançado em 2002, aborda sobre a relação entre o Papa Pio XII e o Terceiro Reich. Tema até hoje muito debatido, onde diversos setores defendem a ideia da omissão do Papa perante o holocausto. Na oportunidade o Pontífice teria adotado um papel extremamente egoísta e mesquinho. A partir deste contexto Costa-Gravas, famoso por filmes com um debate político aprofundado, nos apresenta uma obra no mínimo polêmica em uma construção cinematográfica eficiente.
Kurt Gerstein (Ulrich Tukur) é um oficial do Terceiro Reich que trabalhou na fabricação do Zyklon B - gás mortífero desenvolvido para a matança de pragas, mas usado para exterminar Judeus nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial - quando descobre de que forma o gás desenvolvido por ele vem sendo usado, Kurt se revolta e tenta informar os Aliados sobre as atrocidades que acontecem nos campos de concentração. Gerstein também tenta informar a Igreja Católica, mas suas denúncias são ignoradas pelo alto clero, apenas um jovem Jesuíta lhe dá ouvidos, Riccardo (Mathieu Kassovitz), e o ajuda a organizar um campanha para que o Papa se manifeste contra as atrocidades ocorridas.
Com um discurso forte e polêmico, Costa-Gavras nos guia por um ambiente torpe e perigoso. Somos conduzidos por uma Alemanha sob domínio nazista, onde atrocidades e perseguições fazem parte da rotina. Com um discurso politizado, Amém mistura fatos reais e ficção na narrativa, por exemplo, Kurt Gerstein existiu e foi graças ao depoimento dele que o holocausto foi realmente confirmado. O tom adotado por Costa é extremamente funcional, na medida que envolve o espectador com os fatos e o instiga a pesquisar sobre o tema. Em Amém o discurso adotado além de polêmico é duro e pontual: a obra expõe a diplomacia como um elemento mais importante do que a salvação de milhares de pessoas. Somos ambientados em um universo extremamente interesseiro e corrupto, uma atmosfera podre, onde uma das mais importantes representações ocidental, a Igreja Católica, se apresenta com um dos protagonista e um mediador necessário em conchavos políticos.
O filme de 2002, além de apresentar um enredo instigante e atrativo, é composto por elementos cinematográficos eficientes. A composição música/imagem é extremamente funcional e as atuações são boas, com destaque para o doutor interpretado por Ulrich Muhe. Costa-Gavras utiliza uma atmosfera polêmica para compor um filme muito bom. A cena de abertura, por exemplo, é muito bem feita e nos prepara de forma forte para o restante da película. Um filme no mínimo polêmico que coloca a burocracia como verdadeiro protagonista de uma guerra. O jogo de interesses dita o ritmo, onde o controle das marionetes vai de acordo com os tratados. É desta forma que se apresenta Amém. Uma obra necessária e obrigatória.
Barry Lyndon
4.2 400 Assista AgoraO perfeccionismo envolto a Stanley Kubrick é uma marca, até mesmo um culto, que o diretor carrega junto a sua imagem. Reconhecido como um dos maiores - e para muitos o maior - diretor de todos os tempos, Kubrick não precisa de provação alguma, seu legado consolida e ratifica cada elogio recebido e todos aqueles que ainda virão. Afinal Stanley, além de marcar o nome na história cinematográfica, se consolidou de forma sólida e competente como uma referência, um nome que será sempre lembrado e cultuado. Diferente de Vargas, ele não saiu da vida para entrar pra história, mas se dedicou ao cinema, e conseguiu de fato, entrar pra história graças ao legado construído em vida.
Como já disse anteriormente, o perfeccionismo é uma marca de Kubrick, fato sempre comentado nos papos entre cinéfilos - chegando, muitas vezes, a alcançar o status de verdade absoluta - onde os argumentos se misturam com convicções formuladas a partir da filmografia do diretor e dos vários "mitos" da relação entre Kubrick, técnicos e atores, que até onde sabemos, era conturbada ao extremo, devido ao temperamento exigente do diretor. Muitos são os filmes que embasam este pensamento e que defendem e consolidam o perfeccionismo Kubrickniano, mas Barry Lyndon de 1975 é um forte candidato para número um em matéria de inovação e rigor técnico.
O filme de 1975 conta a história de um pobre Irlandês, do século XVIII, que se tornou membro da nobreza inglesa. A obra é baseada no livro de Willian Makepeace Thackeay e traça de forma minuciosa os aspectos da vida de Redmond Barry - um jovem humilde e apaixonado - até sua ascensão social e a consequente degradação pessoal sofrida de forma intensa e deteriorante. Numa trama construída de forma meticulosa, explorando a beleza de forma extrema, Kubrick nos presenteia com um épico fantástico que beira a perfeição em todos os aspectos cinematográficos possíveis.
Em Barry Lyndon o perfeccionismo Kubrickniano pode ser observado e compreendido. O filme de 1975 é um dos mais inovadores do diretor do ponto de vista cinematográfico. Kubrick mandou desenvolver lentes especiais para filmar cenas com baixa exposição, iluminadas apenas por luz de velas, com o objetivo de obter uma fotografia fílmica similar a uma pintura do século XVIII. Além disso, Stanley empregou um ritmo lento e mediativo nos movimentos de câmera e na duração dos planos, com o intuito de promover a sensação da passagem de tempo de um período pré-industrial. Podemos observar, o quanto Stanley foi um visionário e uma das peças mais importantes para o desenvolvimento do cinema. Seus planos sequência estão entre os mais famosos do cinema. E para finalizar o parágrafo e não me alongar na discussão, o inventor do steadicam, Garret Brown, afirmou que no filme O Iluminado seu equipamento foi utilizado pela primeira vez de forma correta no intuito narrativo, ele ainda disse que aprimorou a própria técnica ao trabalhar com Stanley.
Jacques Aumont - famoso teórico francês - em seu livro O Olho interminável, que teve a primeira edição - segundo pesquisas na rede - lançada em 1989, trata dentre outras coisas, principalmente da relação entre cinema e pintura. Segundo as palavras do autor existem pontos que aproximam os campos acima citados, mas também pontos que diferenciam. Com relação as semelhanças podemos citar geometria espectorial, imagens planas, dentre outros. Já com relação as diferenças irei me concentrar na luz. Segundo Aumont, a iluminação do dispositivo de apresentação de uma pintura não é nem muito forte nem muito fraca, já a exibição de um filme é formado por um feixe de luz projetado. Aumont cita algumas obras do cinema, a partir das ideias apresentadas em seu livro, que buscam se aproximar de forma ainda mais precisa da relação com a pintura, podemos citar Passion de Godard. O livro de Jacques é uma referência, sendo inclusive, considerado um marco nesta linha de pesquisa, por isso, é uma obra acima de qualquer suspeita, não é verdade? Pois quando estava lendo O olho interminável algo me incomodava de forma intensa: era justamente o tom meio que arrogante e egocêntrico adotado por parte do autor (haja vista a forma como Aumont se refere a Scorsese em um dos últimos capítulos do livro, que agora não lembro exatamente qual), mas ao finalizar minha leitura, algo me deixou ainda mais incomodado, justamente a ausência de Barry Lyndon entre as obras citadas no livro.
Primeiramente gostaria de pedir desculpas ao leitor, afinal Aumont é um grande teórico e eu sou apenas Alisson Gutemberg, um simples Jornalista, cinéfilo e blogueiro. Mas lendo os escritos de Gramsci sobre o papel do intelectual em nossa sociedade, comecei a julgar tal comportamento adotado por Jacques, como ainda mais egocêntrico, um olhar típico para o próprio umbigo, mas quem sou eu, não é verdade? Mais uma vez peço desculpa, mas desta vez para o intelectual Aumont, por minhas "desajustadas" e "incoerentes" palavras. Voltando a Barry Lyndon, prefiro finalizar meu texto com a opinião de Martin Scorsese: "Não estou certo se posso afirmar ter um filme favorito de Kubrick, mas retorno repetidamente a Barry Lyndon. Penso que é por ser uma experiência tão profundamente emocional. A emoção é transmitida através do movimento da câmera, da lentidão do ritmo, na forma como as personagens se movem naquilo que as envolve. As pessoas não o perceberam quando ele estreou. Muitos ainda não o percebem. Simplesmente, na cadência sucessiva de imagens de rara beleza, vemos o caminho de um homem à medida que ele evolui da mais pura inocência até à mais fria sofisticação, terminando numa absoluta amargura - a materialização elementar da sobrevivência. É um filme atemorizante pois a beleza da luz dos candelabros é apenas um manto diáfano sobre a pior crueldade. Mas uma crueza real, do tipo que se encontra todos os dias na sociedade civilizada."
A Tortura do Silêncio
3.9 141 Assista AgoraA religião sempre influenciou Hitchcock, que quando criança, estudou em um colégio de Jesuítas. Este respeito e até temor divino, pode ser comprovado quando no final da vida o diretor inglês "reforça" seus laços com a Igreja Católica, uma atitude que demonstra o papel da religião e de sua formação intelectual, quando criança, no decorrer de sua vida. Mesmo que por alguns anos Hitch tenha se afastado da igreja, o respeito divino sempre esteve presente, e sem dúvida alguma, o filme A tortura do silêncio (I Confess) de 1953 não me deixa cair em descrença.
O Padre Michael Logan (Montgomery Clift) ouve a confissão de um homem, Otto (O. E. Heller), onde este confessa ter cometido um assassinato. Porém testemunhar o ocorrido do ponto de vista do assassino se torna um fardo para o Padre, afinal foi a partir de uma confissão religiosa que ele conseguiu tal informação, e desta forma, as normas da igreja o impedem de Falar. Mas o desenrolar do enredo coloca o Padre como principal suspeito do assassinato, assim Logan se enxerga em um ambiente complicado e repleto de dúvidas, afinal, o que ele deve fazer: romper com o sacerdócio e informar a polícia o que sabe sobre o crime, ou assumir a culpa do ocorrido?
Hitchcock, como sempre, nos conduz por um cenário repleto de suspense e intriga. O enredo em si, que já é um prato cheio para o estilo do diretor inglês, é composto de mistérios que ambientam a atmosfera "hitchcockiana" de forma satisfatória e convincente. O espectador enxerga o filme na perspectiva desta dúvida que vive o Padre Logan e isto, de certa forma, o coloca em um ambiente "metade seguro": a todo instante sabemos quem é o verdadeiro assassino, mas certos elementos são lançados de forma gradual, o que torna o ambiente, apesar da revelação do crime, funcional. A presença da mulher é o fator que dita este ambiente, e pra não fugir da lógica de Hitch, a mulher é loira. Trata-se da personagem Ruth, interpretada por Anne Baxter.
A tortura do silêncio é um filme composto por altos e baixos. Em certos momentos, o enredo se perde um pouco, como por exemplo, no processo de degradação psicológica do personagem Otto, que soa como uma forçação de barra e não funciona como esperado. Como principal ponto desta obra destaco os aspectos visuais. Em A tortura do silêncio a culpa se tornou real. Hitch filma vários planos em que uma cruz ou algum símbolo religioso está enquadrado, dando uma sensação não só de onipresença, mas de pressão. O ambiente é construído como se Deus estivesse sempre observando e testando o padre Logan, com isso, Hitch faz com que o espectador sinta o processo de forma intensa e precisa.
Podemos observar, como já foi dito anteriormente, as influências da formação religiosa na composição da obra. Em nenhum momento o Padre fere os princípios religiosos. Desta forma, Hitchcock na representação de Logan, expõe a igreja como um terreno seguro de seus dogmas e convicções, uma fé que apesar da provação dura, permanece inabalável. A tortura do silêncio não é, nem de longe, a obra máxima de Hitch, mas sem dúvida, é um filme onde temos momentos impagáveis de genialidade do mestre inglês. E pra finalizar jogo um pouco de polêmica: a obra de 1953 é um filme pra Católico nenhum botar defeito, ainda mais, em tempos de pedofilia e corrupção no ventre da "Santa da Igreja".
A Noite Americana
4.3 188Uma homenagem ao cinema de forma leve e apaixonante. Não poderia começar este texto de forma diferente, não que existam regras ou uma linha editorial rígida e caolha no Conversa Fiada, mas na verdade, esta foi a impressão que tive com o filme A noite Americana (La Nuit Américaine), dirigido por François Truffaut e lançado em 1973. A obra aborda sobre os bastidores da sétima arte, na verdade, um filme dentro do filme. Uma forma inteligente e tocante de mostrar o universo do cinema.
Diretor de um provável fracasso, Ferrand (François Truffaut) vive imerso em um mundo conturbado. Ele tem de contornar romances entre os membros de equipe e elenco, pressões comerciais, brigas, atores decadentes, lágrimas e risadas - tudo isso presente na rotina das filmagens - para concluir seu filme em tempo. Por todos os elementos presentes na obra, sem dúvida alguma, A noite Americana é um dos filmes - se não o mais - que melhor representa as loucuras presentes em um set de filmagem. Um filme criativo e inteligente, onde somos guiados de forma confusa, conturbada, mas acima de tudo, apaixonante.
A noite Americana é uma declaração de amor, sim! Mesmo me aproximando do que muitos chamam de clichê, é desta forma que caracterizo a obra: é uma declaração de amor ao cinema. Um filme construído de forma criativa. A obra apresenta um tom leve e divertido na medida que nos mostra o cotidiano em um set de filmagem, além de nos revelar certos mistérios em torno da produção cinematográfica, uma realidade que diga-se de passagem fica distante do, apenas, glamour que é retratado constantemente. Truffaut, que interpreta o diretor Ferrand, coloca elementos da própria vida na tela, retratado na maioria das vezes nos sonhos do personagem, como por exemplo, na cena em que uma criança rouba cartazes do filme Cidadão Kane em um cinema.
Truffaut que ao lado de Godard é um dos maiores expoentes da Nouvelle Vague, adotou a metalinguagem como essência na obra de 1973. A metalinguagem é a linguagem retratando a própria linguagem, meio confuso, não é verdade? No caso da sétima arte, esta figura de linguagem é usada quando o cinema fala dele próprio. Partindo desta premissa, Truffaut, Woody Allen em A Rosa Púrpura do Cairo e Giuseppe Tornatore em Cinema Paradiso, apresentam o uso da metalinguagem, pelo menos em uma obra, como ponto comum. Mas na minha opinião, Truffaut foi além ao falar sobre o cinema. A forma como o universo é construído, a maneira como somos conduzidos, nos coloca, de fato, dentro de um set de filmagem. Fazemos parte daquela realidade conturbada, somos peça integrante da película e também contamos e corremos contra o tempo para que os prazos sejam cumpridos.
François consegue nos mostrar o universo cinematográfico longe do brilho que sustenta este campo. Somos conduzidos por um set composto por pessoas comuns, pessoas normais que enfrentam problemas e crises, tal qual qualquer um de nós. Mas mesmo com esta atmosfera antagônica ao glamour retratado como essência, a mise en scène na obra de Truffaut não perde a mágica e o poder de nos fazer sonhar, digo até na direção contrária, mesmo com a cortina nos revelando os bastidores do espetáculo, o encanto não altera. Muito da realidade do cinema não chega aos espectadores. As brigas de bastidores, as manias, os mistérios dos efeitos visuais, entre outros, jamais chegam aos nossos olhos. Em A noite Americana, Truffaut traz um pouco desta mística para as telas, nos revela um universo real, longe dos encantos, mas que mesmo assim continua mágico e intenso. Uma aula de direção do genial Truffaut. Um filme de cinéfilo para cinéfilo.
Irma La Douce
4.0 76Vamos lá! Devido a inúmeros pedidos - mentira da porra, acho que adotei o toque de humor de Billy ao profanar tamanha blasfêmia - vou comentar sobre mais um filme de Billy Wilder. É verdade que recentemente escrevi sobre Amor na Tarde, porém não tenho culpa se os filmes de Billy são obras fantásticas que merecem total visibilidade, vrááá na cara dos caretas e mal amado. Pois bem, hoje irei falar sobre o filme Irma La Dolce de 1963.
Irma La Dolce (Shirley MacLaine) é uma das prostitutas mais requisitas de Paris. Ela faz ponto na Rua Casanova e apesar da prostituição ser proibida, existe um acordo no qual cafetões e prostitutas pagam propina para os policiais que cobrem a área da Rua. Porém um policial honesto, Nestor Patou (Jack Lemon), chega para trabalhar em Casanova, mas acaba demitido por fazer cumprir a lei. Em meio a este processo, Patou se apaixona por Irma e ainda se torna seu cafetão. Coberto de ciúmes, ele faz de tudo para atrapalhar os "negócios" e assim poder ter uma vida normal, de fato, com sua amada.
O filme apresenta a leveza característica das obra de Billy. Apesar de ser longo, somos conduzidos por um ambiente satisfatório e eficaz. Mesmo "alongando a piada", Wilder consegue manter o espectador concentrado e satisfeito. Outra característica marcante dos filmes de Billy, também se encontra presente na obra de 63, trata-se da atmosfera de suspense e mentira intercalada com humor e descontração. Não preciso nem dizer que o Diretor é um verdadeiro mestre neste aspecto. Afinal, estamos falando de Billy Wilder. Em Irma La Dolce temos atuações excelentes, por parte de Shirley e Lemon, mas o destaque maior fica com Lou Jacobi, interpretando Mustache, o proprietário de um comércio bastante frequentado em Casanova, o personagem vivido por ele é sensacional e extremamente eficiente no processo de desenvolvimento da obra.
Com relação a Jack Lemon, Shirley MacLaine e Billy Wilder, a parceria funciona de forma brilhante, tal qual Se meu apartamento falasse. Já comentar de Jack e Billy é, com certeza, o que chamam de "chover no molhado". A dupla que trabalhou em sete produções, sendo uma delas Quanto mais quente melhor, dispensa comentários, não concorda? Voltando ao filme de 63, a obra é baseada em um musical. Irma La Dolce, assim como todos os outros treze filmes que já vi de Wilder - aproveito e lanço um desafio: me apresente algum filme fraco deste gênio, só quero um! - é uma obra deliciosa. Trata-se de uma obra-prima de alguém que não conheço, até hoje, nada abaixo deste nível. Recomendo!
A Rosa Púrpura do Cairo
4.1 590 Assista AgoraO cinema transporta o espectador para um mundo paralelo. Mesmo que por algumas horas apenas, somos conduzidos por um ambiente mágico, repleto de momentos intrigantes, estamos em um universo fascinante e seguro. O chato fica por conta de termos que voltar para nossa realidade, que saco! Mas enfim, A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo), dirigido por Woody Allen e lançado em 1985, aborda justamente sobre a questão da ficção x real. Trata do universo proporcionado por parte do cinema. É um filme extremamente criativo que mexe com o imaginário do público. Por isso, é uma obra para quem ainda se permite sonhar.
Cecília (Mia Farrow) tem uma vida extremamente infeliz. Ela mora na cidade de Nova Jersey no período da Depressão Econômica. Mergulhada em um casamento fracassado, ela busca refúgio nas salas escuras do cinema. Na tentativa de escapar da realidade, mesmo que por alguns momentos, ela mergulha no universo da sétima arte e assim, vive no cinema o sonho de um mundo perfeito. Cecília trabalha como garçonete. Ela sustenta o marido bêbado e desempregado que a trata de forma grosseira e violenta e para fugir desta realidade, ela frenquentemente vai ao cinema da cidade. Porém quando ver pela quinta vez "A Rosa Púrpura do Cairo", o herói da película sai da tela e declara seu amor por ela. Assim, Cecília começa a misturar ficção e realidade de forma romântica e envolvente.
Woody Allen, que também é o roteirista do filme, nos guia por um universo mágico e fascinante. Somos arrebatados por uma história que toca de forma intensa todos os que enxergam o cinema como arte. Cecília representa um grande número de pessoas que fogem de uma realidade triste e amargurada a partir das projeções cinematográficas. Quando estamos diante de uma película, somos transportados de forma arrebatadora, e mesmo por alguns momentos, vivemos uma vida totalmente diferente, somos peça integrante do enredo, e assim, o real e a ficção se misturam de forma instigante e intensa. Sentimos a obra como parte integrante de nós mesmos, a sétima arte é de fato uma arte, e com certeza, a forma como nos prende e fascina explica tal alcunha.
Como Arlindo Machado aborda em seu livro: Pré-cinemas e pós-cinemas, por mais que Freud nunca tenha falado diretamente sobre o cinema, enxergamos de forma fácil algumas relações entre o pai da psicanálise e a sétima arte. Em Die Traumdeutung, Freud sugere que devemos representar o instrumento que executa nossas funções mentais como semelhante a um microscópio composto, a um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. E acrescenta que o lugar psíquico corresponde a um ponto do aparelho em que se forma a imagem. Ora do que estava falando o pai da psicanálise? Do olhar, é claro! Porém apesar de tais escritos, Freud sempre negou a importância do olhar na psicanálise. Mas alguns autores como: Stein, Schneider e Mezan, analisaram esta cisão entre fala e olhar existente nas teorias de Freud. Desta forma notaram, em primeiro lugar, que há um traço de fobia na recusa freudiana do olhar, facilmente identificável na análise de seus próprios sonhos, em que quase sempre os olhos adotam um papel central.
As relações entre Freud e o cinema podem ser consideradas interligadas levando como eixo central a ideia de que ao entrar no cinema o espectador passa para um estágio de subconsciência onde se enxerga na vida dos personagens exibidos. Quando Freud explica o sonho – como um cenário composto de imagens - ele está falando de cinema e o espectador concentrado e arrebatado por imagens, que se reconhece na tela-espelho, tem total semelhança com Narciso na água. Sendo assim, Cecília teria se enxergado como parte integrante da vida dos personagens da película. Passou a fazer parte daquela rotina já conhecida por ela, uma vida amável e prazerosa, totalmente diferente de sua realidade. Mas é verdade afirmar que todos os presentes na sala também enxergaram o personagem abandonar a tela, então na verdade, seria um surto coletivo? Claro que não! Estamos nos referindo ao cinema, sendo assim, todos aquelas pessoas se enxergavam como pertencentes, durante a projeção, ao mundo da tela. A mágica cinematográfica consiste justamente neste ponto.
A Rosa Púrpura do Cairo é um filme excelente. A obra aborda sobre questões que envolvem ficção e real. Somos conduzidos por um universo sensível e mágico. Um mundo existente, sem dúvida alguma, na cabeça de cada cinéfilo, afinal, se cada um de nós não acreditássemos na magia do cinema, a sétima arte não seria tão importante em nossas vidas. O filme de Woody Allen é um prato cheio para todos que sonham e se deixam guiar pelos sonhos. A realidade muitas vezes nos fere e machuca, porém ainda podemos sonhar. E enquanto isto for possível, podemos tirar os pés do chão, mesmo sentados numa sala escura. Enfim, o cinema é isso! E quando a sétima arte deixar de ser vista e sentida como uma fuga, como um refúgio, como um mundo mágico, perderá totalmente o sentido. Assim, prefiro acreditar no que diz Raul Seixas: "sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade."
Quero Ser John Malkovich
4.0 1,4K Assista Agora"...E quando chega em casa e liga a TV, vê tanta gente mais feliz do que você. Apaga a luz e antes de dormir, fica pensando o que fazer pra conseguir o que é dos outros... " Ao som de Arnaldo Antunes, mais precisamente da música invejoso, começo a comentar sobre o filme Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich) dirigido por Spike Jonze e lançado em 1999. A obra aborda sobre questões pertinentes do comportamento humano, ao questionar aspectos relacionados com a insatisfação constante do homem com a própria vida. Somos conduzidos por um ambiente rico filosoficamente e ao mesmo tempo, inovador e intrigante.
Craig Schwartz (John Cusack) consegue um novo emprego no sétimo e meio andar de um edifício comercial, onde todos os funcionários devem andar curvados. Lá encontra uma porta secreta que dá acesso a mente do ator John Malkovich, onde a pessoa pode permanecer por 15 minutos, até ser "cuspida" numa estrada. Impressionado com a descoberta, Craig resolve contar para Maxine (Catherine Keener) - colega de trabalho por quem Schwartz se encontra perdidamente apaixonado - que o convence a alugar a passagem secreta para outras pessoas.
O produto oferecido por Craig e Maxine é a possibilidade do ser humano ser outra pessoa, e mesmo que por apenas 15 minutos, o sucesso tornou-se inevitável. O desejo de ter uma vida diferente faz parte do imaginário humano. Ambição, inveja, enfim, diversos podem ser os fatores que condicionam o pensamento neste sentido. A partir desta vontade tão constante em cada um de nós, de querer ser aquilo que não somos, Quero ser John Malkovich se apresenta de forma inusitada e extremamente original. O roteiro de Charlie Kauffman (roteirista também de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças) é genial em todos os aspectos. O enredo pode não ser tão atrativo no primeiro momento, mas quando estamos diante da película percebemos que trata-se de uma obra grande e extremamente envolvente.
Como ponto principal não podemos destacar algo diferente. Com certeza o roteiro - extremamente ousado, mas principalmente inovador - aparece como o destaque. A direção de Spike Jonze não oferece nada de tão grande, porém apresenta um ponto importantíssimo: uma obra repleta de fatos improváveis e até fantasiosos, se não contasse com uma direção modesta e bem controlada, poderia pecar por excesso, se transformar numa coisa qualquer, mas Jonze foi bem em sua tarefa, e sem dúvida alguma, este é o principal destaque do seu trabalho. As atuações são boas. Deixo o destaque maior para John Cusack e principalmente John Malkovich. Trata-se de um filme ousado e extremamente original, que apresenta questões filosóficas relacionadas com o comportamento humano. Por tudo isso afirmo: Quero ser John Malkovich é um filme excelente. Um sopro de criatividade e genialidade em uma indústria cada vez mais bestializada e enlatada. Uma obra inteligente, original e verdadeira!
Luzes da Cidade
4.6 625 Assista AgoraCharlie Chaplin é um dos nomes mais conhecidos do cinema, se não o mais. Suas obras variam desde a crítica social severa e pontual, até os toques de amor e sensibilidade. Seu personagem Carlitos é, sem dúvida alguma, o mais conhecido da história e sua forma de fazer cinema é aclamada até os dias atuais. Trata-se de uma das carreiras mais sólidas e brilhantes, um nome marcado na história não só do cinema, mas também da própria humanidade. Chaplin que era um crítico social de marca maior, um idealista - termo que erroneamente é taxado de forma pejorativa, num país em que malandragem é sinônimo de sabedoria - era também um romântico sensível e cativante. O filme Luzes da Cidade (City Lights) comprova tal afirmativa e não me deixa cair em descrença. Lançado em 1931, a obra continua bela e sensível. Com certeza, estamos falando de uma película eterna.
A paixão de um vagabundo por uma pobre florista cega, que acredita que ele é um milionário, o motiva a fazer o possível e o impossível para melhorar a vida de sua amada. Nutrido de um amor platônico, Carlitos se dedica neste objetivo, sendo capaz de se envolver nas maiores encrencas para obter o resultado desejado. Por ironia do destino, ele se aproxima de um milionário, que tentara o suicídio e fora salvo por ele, afim de arranjar algumas maneiras para ajudar a moça, mas nem sempre consegue o que deseja. Ao descobrir que um Médico havia descoberto a cura para a cegueira, Carlitos fará de tudo para conseguir o dinheiro necessário para a operação, mesmo que para isso ele precise trabalhar ou até mesmo lutar boxe.
Luzes da Cidade é simples. A obra dialoga com os sentimentos de forma pura, verdadeira e sensível. Somos tomados por um misto de sentimentos que variam entre risadas e choros, uma verdadeira overdose de genialidade, uma genialidade simples e cativante. Durante o processo de transição do cinema mudo para o cinema falado, Chaplin continuou produzindo filmes mudos por mais treze anos, e a obra de 31 se enquadra neste período. Mas neste filme, Charlie utilizou alguns artefatos sonoros na composição da película, como por exemplo, na cena do apito, ou na cena da luta de boxe.
A trilha sonora de Luzes da Cidade, composta pelo próprio Chaplin, se agrupa de forma extramente harmoniosa, um casamento perfeito entre sonoridade e imagem. As atuações são fantásticas. A forma como os personagens se expressam é de uma pureza imensa, é algo que só pode ser vindo d´alma. A cena final é um dos momentos mais sublimes da história da sétima arte. Enfim, são apenas alguns aspectos de uma obra perfeita. Mas Luzes da Cidade é genial e sensível de forma extrema, é um filme grandioso demais para ser definido por palavras, é muito mais fácil senti-lo: é simples e genial como o próprio Chaplin.
Caminhos Perigosos
3.6 255 Assista AgoraO nascimento de uma parceria de sucesso é sempre algo fantástico, independente do ramo, é uma conexão forte e mágica que impulsiona carreiras e vidas. Podemos citar diversos exemplos: Lennon/McCartney, David Gilmour/Roger Waters, Jagger/Richards, Cazuza/Frejat, Tom/Jerry, Pinky/Cérebro, enfim, os exemplos são diversos e comprovam a afirmativa anterior. Mas com relação ao cinema, uma parceria em especial ganhou notoriedade e fama, claro que com todos os méritos possíveis, me refiro a parceria Scorsese/ De Niro. Quem conhece e gosta de cinema, com certeza, admira os frutos da união desta dupla, claro que existe uma crítica ou outra, mas nada que ofusque a genialidade de ambos. Pois bem - como iniciei falando sobre parcerias, devo voltar ao fio da meada - é com o filme Caminhos perigosos (Mean Streets) de 1973 que nasce esta parceria. Ainda bem que um dia eles se conheceram, trocaram uma ideia, ouviram uma música, tomaram algumas doses de Jack Daniel´s, ou quem sabe simplesmente se olharam, mas enfim, o importante é que começaram a trabalhar juntos. Nós agradecemos por este encontro ter acontecido. A sétima arte - sem dúvida, se é que isso é possível - se tornou ainda mais arte com a contribuição de vocês.
Deixando os agradecimentos, encheção de linguiça - ou como quiserem chamar - de lado, vamos ao que de fato interessa. Vamos ao que faz cada um de vocês visitarem este amado blog de forma empolgada e curiosa (se é que alguém realmente acompanha o Conversa Fiada.. rs), mas enfim, vamos falar sobre o filme. Caminhos perigosos soa de certa forma como autobiográfico. De certa forma? Tens razão, cara pálida! Soa quase que totalmente. O filme se passa no bairro em que Martin Scorsese cresceu. Se passa em Little Italy, na cidade de Nova York. Charlie (Harvey Keitel) é um cara extremante religioso. Ele trabalha para crescer no submundo dos guetos de Little Italy. Ao seu lado se encontra Johnny Boy (De Niro) um jovem inconsequente e extremamente endividado, o que de certa forma, atrapalha os desejos de Charlie. Charlie também sustenta um relacionamento secreto com a prima de Johnny Boy, Teresa (Amy Robinson), que não é vista com bom olhos por seu tio. Caminhos perigosos retrata o cotidiano em Little Italy. Aborda sobre violência nos guetos americanos, é um retrato realista do ambiente em que cresceu Martin Scorsese - que sonhava em ser Padre, sendo tão religioso quanto Charlie - assim podemos compreender um pouco sobre os temas presentes na carreira do diretor.
O filme de 73 é excelente. Martin consegue ambientar a violência existente no submundo de forma crua e forte. O fato de ter convivido com esta realidade com certeza ajudou na construção do filme, que soa como verdadeiro a todo instante. A construção do ambiente é fantástica. Somos conduzidos pelos guetos americanos de forma atenta e curiosa, a fotografia é impecável. As atuações de Keitel e De Niro são ótimas. E a trilha é de um gosto refinadíssimo. Grandes sucessos da década de 60 (Be My Baby, Please Mr. Postman, Tell Me (You’re Coming Back).....) se intercalam com músicas Italiana, o resultado agradou. Mas apesar de todos esses pontos positivos, o filme teve um certo deslize, trata-se do roteiro. O roteiro não é tão bom. Em certos momentos soa como desconexo, principalmente nos primeiros 50 min, mas não chega a prejudicar o desenrolar da obra.
Caminhos perigosos é um filme que retrata a violência de forma crua. Somos conduzidos por um ambiente extremamente preconceituoso e violento. Scorsese deixa o moralismo de lado e nos apresenta todo o submundo que ele cresceu de forma realista e visceral. Não é atoa que Tarantino cita este filme como principal referência na construção de seu estilo. E pra finalizar, afirmo sem medo de errar: Caminhos perigosos é um Scorsese de respeito!