Embora muita gente não deva se lembrar, há mais ou menos um ano, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvejada com coquetéis molotov, depois que supostos grupos cristãos se indignaram com o especial de Natal então intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, muito por conta da presença de um personagem homossexual na sátira. Mais de duas milhões de assinaturas foram recolhidas com o intuito de pressionar a Netflix pela retirada do filme da plataforma com a consequente judicialização da tão nefasta heresia.
Como graças a Deus (Deus?) ninguém morreu, ninguém foi preso, ninguém foi amordaçado e não é só de Netflix que se vive o homem, cá estamos, ao fim do pandêmico ano de 2020, ainda livres para dar play no Youtube e conferir a mais nova paródia bíblica de um grupo mais do que consolidado e bem sucedido quando o assunto é apertar calos, esfregar feridas e estampar na nossa cara o carrossel de escárnios no qual esse país veio a se transformar ao longo dos últimos tempos, sem dar palco pra maluco.
O formato é bem simples e de fato lembra bastante o documentário brasileiro que concorreu ao último Oscar, “Democracia em Vertigem“, dirigido por Petra Costa (que é convidada especial, inclusive). Satirizando a trajetória de Jesus Cristo ao longo do ano 33, no período compreendido entre a sua crucificação e a ressurreição, o formato documental profano recolhe depoimentos de diversos personagens bíblicos que vão tentando montar um quebra-cabeça sobre o real paradeiro do Messias que viraria mito.
Como a própria divulgação do filme fez questão de frisar, a vida e obra de Jesus Cristo passa por uma infinidade de boatos, conspirações, injúrias, provocações e fanatismo. Seria ultrajante pensar que o maior de todos líderes, munido de um carisma inigualável, altruísta por vocação, bom samaritano e destacado pelo apreço com as causas ligadas aos direitos humanos, foi o grande responsável pela polarização da Galileia? Teria Jesus sofrido um golpe?
Uma overdose de referências do nosso cenário político caótico é embutida no roteiro e conduzida pela narração de Clarice Falcão, que nos guia pela tentativa frustrada de compreender os pormenores que culminaram na crucificação de Jesus (Fábio Porchat) através dos relatos de muitos daqueles que passaram pelo seu caminho em vida, desde Maria (Evelyn Castro), Judas Iscariotes (Daniel Furlan) e Maria Madalena (Thati Lopes) a Barrabás (Renato Góes) e José de Arimatéia (Rafael Portugal).
A obra de pouco mais de cinquenta minutos conta ainda com um elenco repleto de participações especiais que vão das grifes de Emicida e Teresa Cristina, passam pela pompa global de Marcos Palmeira, Helio de La Peña e Raphael Logam, fechando com o carisma dos maiores representantes do transporte alternativo do Rio de Janeiro. Só a nata da esquerda festiva.
A produção é muito bem feita e conta com toques refinados de fotografia e figurino que foram perfeitamente alinhados, como já vem sendo, há muito tempo, nos vídeos épicos do Porta. Reparei também que edição e direção se preocuparam em não engessar o ritmo da narrativa que foi quase toda construída com apenas um ator em cena. Foram bem sucedidos e não contaminaram ninguém com a gripezinha.
De tudo o que foi apresentado, o que mais impressiona, de longe, é a capacidade genial de linkar as referências diretas dos trágicos acontecimentos recentes da história do Brasil com as críticas àqueles que se usurpam de preceitos bíblicos em nome de uma fé que segrega, afasta, oprime e mata. Com a engenhosidade de uma mãe que coloca a papinha na boca da criança, o roteiro alimenta o espectador com a certeza de que se Jesus voltasse, provavelmente ele não chegaria nem perto dos trinta e três anos. Pelo contrário. Teria a sua morte inflada justamente por aqueles que se dizem “de bem”.
Até mesmo a desastrosa sequência musical dos minutos finais, que teria ficado cem vezes melhor na mão do Adnet em algum daqueles programas da MTV, consegue dar umas chacoalhadas muito bem dadas ao metaforizar que Jesus teria tentado voltar como mulher, negro e travesti, mas depois de ser morto em todas as ocasiões, cansou. Não volta mais. Já deu. A gente que se vire.
E pra quem gosta de caça-palavras, pescar referências pode ser um ótimo exercício. São obrigatórias: impeachment da Dilma, vice decorativo, guardiões do Crivella, carta do Temer, laranjal do Queiroz, tatuagem do Onyx, rachadinha, gabinete do ódio, power point da lava-jato, provas vs convicção, condução coercitiva, reunião ministerial e gado arrependido. Parei de contar.
Não assista!
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A fórmula de Borat que já não me agradava muito em 2006, o que é algo absolutamente pessoal, funcionava por conta da invisibilidade do personagem e do caráter velado da idiotice do americano médio. Em 2020, idiotice, preconceito e ignorância são sinônimos de marketing pessoal. O Borat já não consegue mais servir como lente de aumento. O absurdo no mundo real é maior do que na ficção e por isso o filme não choca tanto. É inacreditável a que ponto chegamos.
Se você ainda não esbarrou com a primeira obra norueguesa original Netflix, eu vou fazer o favor de não te segurar até o final desta crítica para dizer o que realmente interessa: Cadáver, do diretor novinho Jarand Herdal, tinha tudo para ser um filmaço do caralho!
Tinha.
Após um terrível desastre nuclear com proporções catastróficas, a miséria e o desespero nos levam para uma espécie de jornada pós-apocalíptica onde Leonora (Gitte Witt) e Jacob (Thomas Gullestad) precisarão fazer das tripas coração se quiserem sobreviver ao lado de sua filha Alice (Tuva Olivia Remman), em um canto qualquer do norte europeu.
É impossível não se sentir seduzido pela trama em suas nuances iniciais. Nas paredes do apartamento frio e escuro onde a família se abrigava, havia um pôster de uma apresentação da inominável “Macbeth”, a tragédia amaldiçoada de Shakespeare, num teatro norueguês na qual a ex-atriz Leonora havia desempenhado o papel de protagonista.
Quando uma gota de chuva escorreu como uma lágrima pelo rosto de Lady Macbeth, Leonora precisou tirar forças de onde não tinha para tentar servir de porto seguro para a pequena Alice, que embora ainda não tivesse caído na toca e tampouco conhecesse um país das maravilhas, já carregava o seu coelho (de pelúcia) em meio ao caos.
Diante da absoluta falta de perspectiva da população que restara, Mathias (Thorbjørn Harr), dono de um luxuoso hotel local, surge da atmosfera turva para convidar as pessoas para uma única apresentação de teatro com direito a banquete, numa espécie de refúgio pão e circo, onde qualquer espectador acordado já presumiria se tratar de uma armadilha, afinal, por que tem um Windsor funcionando no fim do mundo?
Ok, superando o espírito racional, a contradição visual entre a cidade arrasada e o hotel reluzente, adiciona de maneira eficiente o ar de mistério e um estilo de fotografia excelente ao filme, que tende a nos passar credibilidade e gera a expectativa necessária.
No momento em que o hotel é alçado a um patamar de protagonismo e caminhamos pelos seus gigantescos tapetes vermelhos, em corredores pouco iluminados e repletos de pinturas macabras, as câmeras, quase sempre posicionadas na parte de cima do quadro, mantém o constante estado de alerta e a sensação de ansiedade.
Essa atmosfera ainda é potencializada quando os convidados são informados de que vão participar da apresentação e que ela se desenvolverá por todo o edifício, mas que, para isso, precisarão trajar máscaras douradas ao longo do espetáculo de ação, sendo esta a única ferramenta capaz de diferenciar atores de espectadores.
Quando tudo parecia perfeitamente encaixado e eu já estava conformado que seria transportado para um estágio profundo de confusão mental entre realidade e ficção, o efeito do Viagra acabou. Dá-se início a uma sucessão de escolhas imbecis, seguidas de ramificações toscas, até que as resoluções da história são servidas que nem papinha, como se eu fosse um bebê desprovido de capacidade intelectual.
A partir daí o ki-suco azedou de vez. O tempo de espera pela resolução de cada evento óbvio parece uma eternidade, mesmo se tratando de uma obra de oitenta minutos. Não há mais nenhum personagem interessante, nenhum plot twist, nenhum mistério relevante a ser desvendado. Tudo é exatamente do jeito que você acha que vai ser.
O cara que não pode tirar a máscara vai tirar e vai se fuder (não tinha cloroquina), o quadro que pisca o olho vai ter uma passagem secreta, os capangas vão ficar brincando de gato e rato, o gore vai passar do tolerável em alguma morte ridícula e a filha desaparecida vai aparecer sem maiores explicações.
O potencial do argumento é arremessado na lata do lixo e aí fica difícil querer gerar reflexões sobre fragilidade da espécie, estado de necessidade, ética e moral. O horror que deveria emergir da cruel desconexão entre tragédia e compaixão, empaca na falta de capacidade do roteiro. Até mesmo a premissa canibal que deveria servir de alça para essas discussões, morre presa num gancho de açougue, sem aprofundar sobre porra nenhuma.
Frustrante.
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Com o rebuliço do Dilema das Redes, esse documentário também serve de lupa para os anos 2010s. Mídia sociais controlando e vendendo falácias, estelionatários enriquecendo de forma cada vez mais desleal, influenciadores ocos e quase nenhuma responsabilização. E sabemos que quem de fato se fodeu não foram eles.
Embora outros clássicos espanhóis contemporâneos do gênero como “O Poço”, “Um Contratempo” e “O Corpo” possam ser colocados, merecidamente, numa prateleira acima, o cardápio da Netflix ganha mais uma boa opção para os adeptos do coração acelerado sem a frescurada do cinema americano.
A premissa já parte de um lugar interessante. O protagonista Ángel (Mario Casas), um profissional de primeiros socorros que não faz a menor questão de ser agradável, vive a bordo de uma ambulância resgatando acidentados entre escombros e ferragens, até se deparar com uma abrupta inversão de papeis.
Logo na primeira parte do filme, é flagrante a intenção do diretor de moldar a personalidade do seu protagonista no limite da linha do socialmente aceitável. Entre um furto e outro a cada resgate, o absoluto desprezo pelas pessoas de modo geral e o comportamento possessivo com a sua namorada, Vane (Déborah François), os traços mais obscuros de Ángel vão sendo revelados a cada olhar sombrio de uma atuação acima da média.
No momento em que, ironicamente, Ángel sofre um grave acidente no exercício da sua profissão, sendo fadado a viver sob as rodas de uma cadeira, toda essa amargura acaba se misturando com as inseguranças do lento processo de adaptação e um personagem repleto de demônios criados por si mesmo passa a sucumbir a sua própria personalidade doentia.
Seguindo um ritmo que, ao meu ver, não é lento e se reveste de tensão durante praticamente todo o filme, nós acabamos sendo imersos nas obsessões cruas da masculinidade tóxica, até sermos afogados pela ótima fotografia que cria no apartamento do casal uma incômoda experiência de aprisionamento.
O pecado capital do roteiro é fazer do ciúmes delirante do nosso protagonista, Bentinho, e da ruptura da relação doméstica abusiva de Vane, Capitu. Simplesmente não deveria haver qualquer espaço para reflexão que suporte a tese de que uma coisa leva a outra.
De pouco importa como eram as interações sociais de Vane. O filme ilustra o florescer da psicopatia de um sujeito obcecado pelo sentimento de posse que exercia sobre a sua companheira, desde as fodas agressivas e os beijos babados fora de contexto, à perseguição sociopata e o cárcere privado.
Colocar Ricardo (Guillermo Pfening), pasme, o motorista da ambulância no fatídico dia do acidente de Ángel, como novo par de Vane, no momento em que a moça finalmente conseguiu se desfazer da relação perniciosa, traz aquele ar de “traiu ou não traiu?” que só faz por justificar o injustificável, exatamente como acontece na vida real. E na vida real morre mulher todo minuto por conta disso.
Como eu acabei ficando bastante estressado com o retorno esdrúxulo de Ricardo à história, eu precisava de um elemento que renovasse as minhas expectativas. E ele veio. Em forma de trilha sonora.
O jogo musical entre “L’Hymne à l’amour” de Édith Piaf e “Un sip of champagne” de Los Brincos, deram um tom lúdico sensacional, e não menos perturbador, às últimas curvas torturantes antes da virada final que de tão clichê, saciou a minha sede de vingança.
Sigo a favor da romantização da psicopatia no cinema. Com bom senso.
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Antes de questionarmos a qualidade de mais um longa de ação exageradamente preocupado em forçar situações de confronto ao invés de estruturar um roteiro capaz de nos proporcionar a tensão de maneira natural, Santana, primeiro filme angolano a ser disponibilizado na plataforma da Netflix, traz um caráter pioneiro que agrega valor à obra.
Dirigido por Maradona Dias dos Santos & Chris Roland, a obra já começa revestida de uma representatividade necessária que pode abrir espaço para que outras narrativas, além do eixo ocidental, sejam mais comumente consumidas por um espectador desinteressado em maiores problematizações. No dia em que dar play em um filme africano, por si só, for algo comum e não significar muita coisa além da busca pelo entretenimento, poderemos mudar a altura do sarrafo.
Beleza? Show. Pois bem, eu que não sou um consumidor assíduo do gênero, percebi que a qualidade das cenas de ação é um tanto quanto duvidosa e, até certo ponto, mal aproveitada, mas o que mais me incomodou foi a construção rasa dos personagens, que parecem distantes uns dos outros até que são entrelaçados pelo objetivo maior do filme que é a porradaria.
Com o nhenhenhem do "baseado em fatos reais", Santana conta um pedaço da história de dois irmãos, Dias (Paulo Americano) e Matias (Raul Rosario), um agente da divisão de narcóticos e um general respeitado, que acabam descobrindo a identidade do responsável pelo assassinato de seus pais, há mais de 35 anos, e partem em busca de vingança, cada um da sua maneira.
A partir desta premissa, surge uma história que acaba deixando o seu potencial para escanteio por não construir bem a personalidade dos principais personagens, se mostrando muito mais preocupada em se utilizar dos elementos clichês do cinema padrãozão, abusando de uma montagem pouco criativa e um tanto quanto desinteressante, em cenas longas e pouco amarradas.
Eu também me atrevo a dizer que é impossível assistir ao filme sem se incomodar com a mistura de idiomas totalmente despropositada que se vê em cena, o que já se tornou uma tradição da Netflix. Os diálogos que são passados na Angola ou na África do Sul, são violentados por trechos em inglês a cada meia dúzia de frases no português local. Parece aquele povo chato de colégio bilíngue que resolve "raciocinar" americanizando ao invés de conversar fingindo ser um ser humano normal. Um porre!
Eu não sei se o roteiro conseguiu exigir o nível de desatenção necessário para que as tentativas de reviravoltas pudessem fazer efeito na cabeça de alguém, mas a falta de vigor dos atores e a sempre exaustiva sexualização das personagens femininas, dentre elas, a estrela angolana Neide Van-Dúnem, me deram a receita do bolo muito antes da consumação desses plot twists frustrados a medida em que os longos 106 minutos de filme iam chegando ao final.
Entre a violência gráfica clichê, as batidas de carro tragicômicas, os chefões falando grosso no escuro, os policiais super-homens, os bumbuns de fora e os defeitos especiais, eu confesso que não vejo Santana numa prateleira muito inferior a outros filmes do gênero. Se você dá play em qualquer coisa que o algoritmo do streaming te indica, vale a pena prestigiar esse filme angolano, que tenta brincar de Hollywood, mesmo com uma cotação muito diferente dos Velozes e Furiosos da vida.
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Que elementos uma obra precisaria ter ou deixar de ter para ser considerada a pior película do mundo? Um roteiro sem qualquer caminho lógico evolutivo? Uma montagem caótica? Diálogos dramalhões à lá “A Usurpadora”? Barulinho de porta rangendo e gota d’água pingando na tigela em momentos completamente desapropriados? Cenas de luta corporal tão patéticas quanto as inexplicáveis fodas mal dadas? Saturação demasiadamente alaranjada? Hologramas terríveis?
Bom, eu vou encarar essa crítica como um grande gesto de generosidade. Mastiguem cada palavra como se fosse uma profunda demonstração de altruísmo, pois os pouco mais de oitenta minutos de Fogo Sombrio, novo thriller mexicano da Netflix que mais poderia ser discutido como mecanismo punitivo ao invés de entretenimento, eu não desejo nem para os meus piores inimigos.
Pelo que me foi possibilitado inferir da premissa do filme dirigido pelo mexicano Bernardo Arellano, o protagonista Franco (Tenoch Huerta), uma espécie de criminoso renegado, está a procura de uma parente sequestrada até que resolve se hospedar, sem maiores explicações, em um hotel macabro que serve de abrigo a um elenco digno da temporada mais espetacular do reality show “A Fazenda”.
Tem bizarrice para todos os gostos. Além do canastrão bigodudo, temos a femme fatale Rubi (Eréndira Ibarra), anões, zarolhas, prostitutas, cafetinas, mestre dos magos, médium albina, vampiros, demônios e mais o que você quiser. Sempre munidos do figurino mais antiquado possível e de uma maquiagem rivalizando breguice com o penteado.
Depois deste encontro assíncrono, pasmem: essa trupe acaba sendo interligada por uma grande lesma em formato de pênis com dentes afiados. Sim, é esse o elemento ritualístico genial que a direção encontrou para hospedar nos protagonistas a ideia de possessão em cadeia e representação do mal. Não existem palavras capazes de descrever tamanha bizarrice.
Como se não bastasse a nojeira, nada tem lógica. A montagem, a direção e o roteiro parecem ter sido feitos pelo mesmo adolescente satanista durante alguma dessas apresentações góticas repletas de mau gosto.
Previsivelmente tudo acontece de noite e o tratamento visual dado pela iluminação horrorosa destrói os resquícios de cenografia bem estruturados que poderiam ser valorizados pelo espectador cansado da fotografia escura.
Com o trash de meio século atrás e a tosquice das novelas mexicanas dos anos 90 competindo firme pelo prêmio de segundo pior elemento do filme, surgem as cenas de ação, os símbolos esotéricos e o misticismo sem pé nem cabeça pra acabar de vez com o bom humor de qualquer um que deu play nesta aberração da Netflix.
Eu confesso que muito antes do desfecho já tinha me perdido há muito tempo e mal conseguia me concentrar em quaisquer dos personagens, mas o parasita sobrenatural em formato de rola-molusco, passando de garganta em garganta, mantinha uma sensação letárgica de “aonde é que esta merda vai dar” que me impediu de desistir antes da última cena.
Pois eu deveria ter desistido.
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Assim como em tantos outros filmes de investigação criminal que eu definitivamente tenho pouquíssima paciência para assistir, Na Solidão da Noite parte daquela premissa clássica do “Quem matou Lineu?”: um corpo e uma porrada de suspeitos. Thakur Raghubeer Singh, um poderoso empresário indiano, foi baleado e coronhado durante a sua noite de núpcias e há tantos potenciais assassinos quanto membros da família, quase todos eles com algum motivo pra dar fim ao velho. É quando entra em cena a figura do investigador Jatil Yadav, o protagonista do filme. O policial eternamente rejeitado por noivas em potencial, é a figura do agente da lei honesto e aficionado pela busca de todos os elementos do quebra-cabeça.
Com diversas camadas, a história é cheia de reviravoltas que buscam fazer com que o espectador duvide de todas as partes em algum contexto específico. O roteiro caminha em seu próprio ritmo para desembaraçar a teia, afinal de contas, são quase duas horas e meia de filme, e só depois de um tempo considerável é possível perceber que encontrar o criminoso não é a única coisa que realmente interessa nessa história.
O diretor Honey Trehan se utiliza muito bem dos elementos de tensão para emoldurar um duro retrato do patriarcado. As figuras masculinas do filme oscilam entre autoridades intocáveis a estupradores, traficantes de pessoas e assassinos. Já as mulheres, independentemente do seu status de esposa rica, vassala da família ou prostituta, são alegorias, meios para a reprodução desse poder, sempre abusadas e intimidadas de acordo com a conveniência.
O roteiro vai se tornando mais pesado conforme os corpos vão se amontoando e as demonstrações de ganância, corrupção, politicagem e imoralidade vão sendo nutridas e trazendo consequências práticas dentro daquelas relações.
Somos constantemente apresentados à facetas obscuras de personagens que sempre parecem estar escondendo alguma coisa. O casarão dos Thakur, com longos corredores, panos esticados, escadas nos fundos e decorações luxuosas, é uma grande personagem por si só. É lá que as mulheres parecem enclausuradas numa espécie de masmorra travestida.
O relacionamento entre o investigador Jatil e sua mãe, interpretada por Ila Arun, fornece os poucos tons de humor do filme. Tudo o que ela quer é que ele se case e o policial está determinado a encontrar uma moça decente, mas, evidentemente, durante o curso das investigações, esse conceito de “decência” vai sofrendo algumas flexibilizações um tanto quanto previsíveis, permitindo que uma atmosfera de romance fosse desabrochada.
Na Solidão da Noite é uma tentativa sincera de enigma de detetive, mas se preocupa muito mais em escancarar pistas do que nos brindar com um suspense fora da caixinha. Tudo é extremamente mastigado, não havendo margem para um pingo de mistério ou ambiguidade quando as letrinhas sobem no final. A maneira com que entrelaça política e relações de abuso com o enredo central da investigação é apreciável, mas o filme peca pela vasta lista de clichês, pela falta de relevância de vários personagens e por uma edição tão expositiva que me chegou a dar saudades dos episódios do “Linha Direta”.
Eu sei, parece que foi em outro mundo, mas a nossa distância para a angústia contida nas palavras que Anne Frank narrou em seu diário não chega a ter nem oito décadas. Eu devia ter uns treze anos quando tive o meu primeiro contato com a obra da menina alemã de família judaica que se manteve escondida com os pais, a irmã e outros judeus em um anexo secreto no prédio onde o pai trabalhava, por mais de dois anos. Sua obra é um relato jovial que mostra a passagem da infância para uma adolescência imersa em condições extremas de horror, no período mais perverso da história recente da humanidade, quase sempre sob a perspectiva turva do que era possível deduzir através do que se ouvia nos rádios.
Anne Frank teve a ideia de escrever um livro depois de surgir uma notícia que incentivava as pessoas a documentarem seus eventos pessoais ligados à guerra, uma vez que, futuramente, este material teria algum significado histórico. Ela pincela em seus escritos tudo o que se passava no cotidiano dos fugitivos, não se abstendo de divulgar seus conflitos familiares, bem como revelar aspectos mais íntimos do despertar da sua sexualidade em meio ao medo incessante de ser encontrada pelos nazistas.
Setenta e cinco anos depois daquela menininha questionar a sua própria capacidade de “escrever algo grande”, cá estamos em #AnneFrank – Histórias Paralelas, documentário dirigido por Sabina Fedeli e Anna Migotto que busca entrelaçar as páginas históricas daquele diário com a vida de cinco sobreviventes: Arianna Szörenyi, Sarah Lichtsztejn-Montard, Helga Weiss e as irmãs Andra e Tatiana Bucci.
A direção da obra é bastante simples. De um lado, Hellen Mirren (Vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Rainha” em 2006) é a responsável por narrar um pouco da vida de Anne Frank através das páginas do seu diário, que é um dos principais textos responsáveis por tornar a tragédia do nazismo conhecida por milhões de leitores ao redor do mundo. Do outro, cinco histórias de mulheres em idades ou circunstâncias parecidas com as de Anne, ilustrando um pouco das terríveis experiências que foram obrigadas a viver. A maneira com que esses paralelos são traçados é crua e dolorosa, mas foi possível sentir a dor sob uma perspectiva luminosa, sem jamais distanciar as feridas latentes do contexto da tragédia.
A obra ainda conta com outro elemento interessante. Como a fotografia percorre diferentes paisagens por onde Anne Frank passou ou que foram importantes ao longo da sua trajetória, resta a @KaterinaKat (Martina Gatti) a responsabilidade de guiar os espectadores ao longo desta viagem. Assim como Frank, @KaterinaKat também tem o seu diário. Aquele chato, que apita, conta like, aguça a ansiedade e acaba com a saúde mental.
Como a própria hashtag do título tenta induzir, a ideia é que fotos carregadas no Instagram, um toque visual e moderno dado pela personagem, sejam capazes de atrair jovens que ainda desconhecem a história de Anne Frank. Embora soe tosco e eu ache brega, é possível que tenha sido útil.
A fotografia que passa por Paris, Amsterdã, Terezín e Bergen-Belsen é muito bem feita. Juntamente com o material de arquivo, é possível combinar um retrato pessoal e rigoroso do que essas experiências significavam à nível bárbaro.
Contudo, o bem mais precioso deste trabalho é o testemunho humano. Enquanto Mirren e Gatti trazem momentos emocionantes para a tela, com destaque para a narradora que se desdobra para controlar todas as emoções que emanam do livro através da sua dicção e ritmo narrativo excelentes, os mais comoventes certamente vêm das cinco sobreviventes que são entrevistadas ao longo de uma hora e meia. As vozes daquelas cinco mulheres imensamente fortes e corajosas são acompanhadas por relatos de rabinos, historiadores, psicólogos, músicos, jornalistas, fotógrafos e responsáveis pela casa de Anne Frank. São diferentes camadas que se unem para tentar nos manter em constante estado de alerta, traçando um elo entre a crueldade da Segunda Guerra Mundial e as relações de ódio, abuso de poder, discriminação, racismo e antissemitismo que insistimos em contemporizar em pleno ano de 2020.
Em tempos de pandemia e flerte com o fascismo, #AnneFrank – Vidas Paralelas merece ser visto e é bom que doa ainda mais.
Dirigido pelo francês Olivier Assayas, cujo entusiasmo cinematográfico costuma permear a interseção de grandes questões políticas e peculiaridades de cunho pessoal, buscando intensificar emocionalmente os seus personagens, Wasp Network: Rede de Espiões nos apresenta uma narrativa fundamentada em um pouco de muita coisa e em muito de quase nada.
O excelente elenco que deveria exalar borogodó latino com a cubana Ana de Armas, o brasileiro Wagner Moura, o mexicano Gael García Bernal, o venezuelano Edgar Ramírez e a cereja do bolo, a espanhola Penélope Cruz, se afasta da direção à medida em que a salada de situações inorgânicas vai sendo temperada.
O filme nos transporta para Havana, em meados da década de 90, quando René González (Edgar Ramírez), um piloto de avião cubano, furta uma aeronave de pequeno porte e foge de Cuba, deixando sua esposa Olga Salanueva (Pénélope Cruz) e sua filha sem maiores explicações iniciais.
Ao dar início a uma nova trajetória em Miami, logo outros desertores cubanos como Juan Pablo Roque (Wagner Moura), chegam ao território norte-americano sob a premissa do exílio político e dão início ao auxílio no resgate de compatriotas que fogem do país em busca de liberdade.
Embora o título do filme já sirva como spoiler, somente depois de uns bons oitenta minutos ele revela vagamente como tudo fazia parte do plano da Rede Vespa, criada pelo governo de Fidel Castro, para monitorar a ação de organizações violentas responsáveis por ataques terroristas em pontos turísticos da ilha.
A ideia é abordar essa teia que foi tecida durante o período pós-Guerra Fria, quando espionagem e contra-espionagem eram descaradamente os principais motores desse tipo de monitoramento internacional.
O que parece ser pano pra manga de uma série inteirinha, acaba por se reduzir a uma obra desorganizada, obrigando o espectador a permanecer exaustivamente atento a detalhes que sequer existem, com medo de se perder no enredo.
Uma infinidade de contextos paralelos e pouco aprofundados são ligados pela péssima montagem que só serve para irritar o espectador. Embora haja algumas premissas interessantes em parte dessa relação entre Cuba e Estados Unidos, o diretor peca ao descontrolar a evolução do filme e permanece em cima de um muro que nos confunde com relação ao que foi registrado pelos livros de História.
O mais irônico é que isso tudo parece cansativo pelas duas horas, ao mesmo tempo em que soa curto pelo emaranhado de propostas. Apesar do elenco de peso, não houve espaço para o desenvolvimento das personagens, com menção honrosa à Penélope Cruz e Ana de Armas, ambas se destacando nas migalhas que o roteiro lhes proporcionam, em um contexto tosco de mulheres coitadinhas abandonadas pelos conjes. Não há português que traduza tamanho potencial jogado na lata do lixo.
É preciso pontuar, ainda, que a obra passa por diversos gêneros distintos sem causar muita empolgação em qualquer um deles. Não há quase nada de tensão, de ação, de drama, de suspense, mas há um pouco de tudo. Pau mole do início ao fim.
O fator atraente de Wasp Network: Rede de Espiões é a inegável qualidade visual ao recriar algumas paisagens paradisíacas usufruídas pelo turista em Havana, mas sem desfocar a posição de privilégios usurpados dos cubanos em seu dia a dia. A realidade pomposa de Miami também é visualmente sedutora.
No mais, aquilo tudo que não pode faltar: homens que colocam uma ideia turva de pátria acima da própria família, defesa do socialismo cubano regada a muita Piña Colada em Miami, ausência de limites na profusão do imperialismo americano, algumas toneladas de cocaína pra fazer caixa, slogan de liberdade através do medo e cena de Wagner Moura e Ana de Armas pelados.
Eu shippo esse casal.
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Me desculpe interromper o silêncio da sua viagem, mas precisamos conversar sobre um dos filmes mais constrangedores da história recente desta Terra plana. The Last Days of American Crime, que de tão ruim sequer foi traduzido para o português, é um novo longa da Netflix que parte de uma premissa distópica de ficção científica, com bastante cara de Black Mirror, e se afoga na tentativa frustrada de repetir a fórmula de sucesso desses filmes que passam na Tela Quente.
A história é ambientada em uma cidade situada na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, na semana em que o governo americano implantará nacionalmente a denominada “Iniciativa de Paz Americana”, que consiste na transmissão de um sinal capaz de interferir na mente da população através de chips, impedindo que as pessoas consumem qualquer espécie de conduta criminosa de maneira consciente. As controvérsias sobre o procedimento e o prazo iminente para a sua aplicação intensificam o estado de caos social e potencializam a tentativa de migração da população para o país vizinho.
O que não parece ser um pano de fundo ruim (inspirado pelo quadrinista Rick Remender, que teve a sua obra homônima adaptada), já para por aí sem qualquer aprofundamento sobre os processos neuroquímicos dessa medida revolucionária ou seus possíveis desdobramentos legais capazes de garantir a sua eficácia. O roteiro de Karl Gajdusek não faz a menor questão de explicar se todos os cidadãos estariam obrigados a implantar os chips ou se apenas os sujeitos fichados seriam controlados. O seu texto paupérrimo sequestra essa premissa para tentar justificar a vergonha alheia que viria pela frente.
Finalmente chegamos ao protagonista Graham Bricke (Edgar Ramírez), um criminoso de carreira, cheio de inimigos, cujo irmão mais novo supostamente teria acabado de cometer suicídio na cadeia. Mais uma vez o roteiro falha miseravelmente ao tentar construir o entediante Bricke como o anti-herói da trama. Vale destacar a atuação regular de Edgar Ramírez… Seu personagem tem uma única expressão ao longo das duas horas e meia de filme, seja encurralado pelos rivais, sendo espancado, sendo queimado, sendo fuzilado ou mesmo fodendo.
Quando o caminho do protagonista se cruza com o de Kevin Cash (Michael Pitt) e Shelby Dupree (Anna Brewster), o festival de bizarrices se multiplica. De uma hora para a outra, Bricke é informado sobre a morte de seu irmão, é abordado aleatoriamente por Shelby em um bar, os dois transam no banheiro, Kevin surge como companheiro de cela do falecido, apresenta Shelby como sua esposa e revela ter um último grande assalto planejado que permitirá que Bricke se vingue do sistema que arruinou a vida de seu irmão. Sim, isso tudo em uma cena.
Com a totalidade de zero argumentos minimamente bem elaborados, o casal convence Bricke a participar de um plano para roubar um bilhão de dólares (rs) e fugir para o Canadá antes que o sistema entrasse em pleno funcionamento. O resultado disso é uma trama atropelada, repleta daquelas sequências esdrúxulas em que alguém surge do nada para limpar os problemas, não há qualquer diálogo interessante e a grande disputa é pelo Oscar de personagem mais detestável.
O Kevin Cash de Michael Pitt mistura o pior cosplay de Travis Bickle (“Taxi Driver”), se inspira numa caricatura de Tony Montana (“Scarface”) e toma doses homeopáticas de Jesse Pinkman (“Breaking Bad”). O resultado é uma salada de clichês impedida de ultrapassar a gritaria e os péssimos bordões. A cereja do bolo é a cena durante aquela confraternização familiar. Gostaria que Mr. Quentin Tarantino pudesse tecer alguns comentários sobre um dos momentos mais patéticos que eu já pude assistir.
Mas a Shelby Dupree de Anna Brewster também não deixa a desejar. A personagem que deveria ser daquelas mulheres fatais, bandida enigmática e sedutora, é hostilizada por uma direção que mais parece a visão de um adolescente idiota sobre a contextualização de uma personagem feminina em um filme de ação. Alguém que figura exclusivamente para satisfazer vontades sexuais ou colocar tudo a perder. O seu papel como hacker especialista também não tem qualquer aprofundamento.
É preciso mencionar, ainda, uma espécie de subtrama envolvendo o policial William Sawyer (Sharlto Copley) que não tem absolutamente nem pé, nem cabeça. Nenhuma de suas motivações e paranoias são demonstradas. A única transmissão feita através de suas cenas é o seu amor pela profissão. Quando o seu caminho se cruza com o dos protagonistas, o obstáculo é simplesmente superado. Um desperdício de personagem que vai do nada ao porra nenhuma.
Quando tudo já estava mais do que perdido, me lembrei do que poderia salvar esse show de horrores e transformá-lo em mero entretenimento vazio (o que já estaria de excelente tamanho): a ação.
Meus amigos, parece implicância, mas cada corpo perfurado necessitava de uns mil tiros disparados. As sequências são picotadas, porém intermináveis. Tudo é extremamente cafona. A montagem é tão ou mais perdida que a direção. Eu juro por Deus que a minha capotagem na vida real foi dez vezes mais empolgante que as do filme.
E uma grande obra não poderia se despedir sem um grande desfecho:
"Te Quiero, Imbécil" é uma comédia romântica bem padrãozinha que narra o período da vida de Marcos (Quim Gutiérrez, uma espécie de primo hispânico do Fiuk) em que as suas relações mais sólidas começaram a ser esfaceladas de uma só vez. O protagonista é um trintão largado pela namorada, Ana (Alba Ribas), durante o jantar de noivado, que, no dia seguinte, é demitido do seu emprego. Vendo-se solteiro após oito anos de namoro, é obrigado a voltar a morar com os pais, sem ter a menor ideia de como se relacionar com as mulheres sendo “um homem do século XXI”, conforme repete ao longo filme.
Debruçando-se nos conselhos de seu amigo canastrão Diego (Alfonso Bassave), aquela clássica caricatura de comedor do século passado, e assistindo aos vídeos publicados pelo guru virtual Sebastián Vennet (Ernesto Alterio), em clara sátira à pandemia de influencers descartáveis que nos assola, o protagonista dá início a sua busca por adaptação ao mundo contemporâneo, entrando no universo dos aplicativos de relacionamento, repaginando o guarda-roupas e tendo cuidados estéticos que jamais havia tido.
Quando Raquel (Natalia Tena), sua antiga colega de escola, entra em cena, de uma hora para a outra, dando luz àquela mesma personagem de garota independente de tantos outros filmes do gênero, o roteiro tenta emplacar uma mensagem de autoconhecimento, reconectando o personagem principal ao seu passado e iniciando uma reconstrução da sua personalidade ao lado de Raquel, que representa o contraponto aos conselhos do macho alfa e do guru da internet, ao melhor estilo anjinho vs diabinho.
O roteiro de Abraham Sastre e Iván Bouso, dirigido por Laura Mañá, mira na crítica sobre relacionamentos tóxicos, na superficialidade da nossa sociedade hodierna e no revestimento machista que ainda não fomos capazes de superar, mas acerta em piadas banais que têm origem num sentimento enraizado de transfobia e homofobia, além de atolar as personagens femininas em torno de Marcos, desperdiçando os seus potenciais narrativos em meros gatilhos para as motivações do protagonista.
Muito por conta das fagulhas decorrentes da relação entre Marcos e Raquel, algumas cenas cômicas são acompanhadas pela voz do próprio protagonista se comunicando diretamente com o espectador, trazendo um humor atual que se beneficia do nosso cenário efêmero de relações casuais. Permitam-me cometer esta heresia, mas eu acabei sendo remetido à “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” de Woody Allenem algumas destas crises existenciais, e fui levado pelo carisma pontual de alguns contextos.
Como não sou consumidor assíduo de obras desse gênero, fico na dúvida sobre a relevância negativa de tantos clichês, da falta de aprofundamento sobre os personagens secundários e da entrega de todo o desenrolar da trama já no seu título (“Imbécil” é o termo “carinhoso” utilizado por Raquel desde o seu primeiro contato com Marcos).
De qualquer forma, a duração curta da obra me permitiu simpatizar com o filme e me desprender de maiores análises críticas, embora alguns comportamentos, discussões e posicionamentos dos personagens não devessem ter lugar em uma produção dirigida por uma “mulher do século XXI”.
Do lugar de fala de um exímio desapreciador de trailers, confesso que 18 Presentes me aliviou pois não entrega exatamente o que a sua sinopse dramalhona propõem. A obra italiana dirigida por Francesco Amato, se inspira na história real de Elisa Girotto, uma mãe que descobre um tumor irreversível durante a gestação de sua primogênita, e decide deixar um presente para cada um dos seus aniversários até que ela atingisse a maioridade.
Através de um primeiro ato aparentemente afobado, o roteiro pincela alguns momentos da vida da pequena Anna (Benedetta Porcaroli, a mistura perfeita de Kristen Stewart com Bianca Bin), crescendo sob os cuidados de seu pai Alessio (Edoardo Leo), até alcançar os fatídicos 18 anos, momento no qual a sua rebeldia ao universo que lhe é imposto chega ao limite, fazendo com que ela recusasse o último presente da falecida mãe e saísse de casa sem rumo, tendo esta empreitada sido interrompida por um acidente em meio a fuga.
É sempre difícil retroceder a complexidade da realidade através de filmes inspirados em pessoas. Essa experiência se torna ainda mais complicada quando elementos surreais são inseridos na trajetória. À primeira vista, 18 Presentes culminaria, portanto, em mais um desses roteiros construídos especificamente para roubar lágrimas fáceis por nos envolver numa sequência de acontecimentos dolorosos e com apelo emocional.
Acontece que a direção opta por não mostrar imediatamente essa sequência dramática e insere um truque narrativo
que possibilita reunir mãe e filha em uma dimensão paralela, sendo a ânsia de Anna pela figura feminina da sua progenitora a grande base sobre a qual toda a obra se desenrolará.
A consequência disso é que o espectador interrompe a construção de pontes quando se torna evidente a impalpabilidade do contexto exposto. Dentro de tudo o que foi apresentado, essa é certamente a ferramenta menos convencional do filme, capaz de potencializar a originalidade e desviar a história do banal.
O tempo passa a ser manipulado e o impossível deixa de existir, proporcionando trocas orgânicas entre mãe e filha separadas há dezoito anos.
Se por um lado 18 Presentes não faz concessões aos clichês mais apelativos neste tipo de drama, há algumas metáforas visuais que ao serem embaladas por um trilha sonora até certo ponto intrometida, permitiram que a protagonista desfrutasse de uma personagem multifacetada com bastante coerência, injetando muita química nas cenas com a sua mãe Elisa (Vittoria Puccini).
Ainda que esteja longe de ser uma produção com um grau de criatividade marcante, não dá pra acusar 18 Presentes de ser um filme meramente descartável. O melodrama italiano nos faz torcer pelo surgimento de cenas independente do que fosse preciso para que elas acontecessem. Nesses momentos, os zoinhos se encheram d'água e o objetivo foi totalmente cumprido.
(18 Presentes estreou na NETFLIX neste final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Seguindo com o nosso catálogo de títulos exaustivamente recriados em busca de um apelo comercial que nem sempre faz sentido, Estranhos em Casa, do francês Furie, segue a premissa do "baseado em fatos reais" para colar o nosso bumbum na cadeira. O filme nos conta sobre a saga de uma família que ao retornar de suas férias de verão, dois meses depois, se depara com a sua propriedade abruptamente usucapida pela babá de seu filho e o seu namorado.
Impedidos de retornar à sua própria residência por conta das inevitáveis ilusões burocráticas e brechas legais que permeariam o caso, a família composta por Paul (Adama Niane), Chloé (Stéphane Caillard) e seu filho Louise (Matthieu Kacou), não teve alternativa a não ser permanecer alocada em seu motorhome até que a batalha judicial fosse solucionada.
O roteiro evolui basicamente em torno de Paul, um professor de história, preto, que aparenta ser blindado por um verniz de civilidade que potencialmente será rompido diante de uma instabilidade emocional acumulada. Conforme a alcunha de "preto por fora e branco por dentro" vai sendo destilada em contextos velados, as até então homeopáticas doses de fúria acabam sendo concentradas de modo a fazer com que o protagonista questione os seus valores colocados em conflito.
A discussão central sobre a posse da casa, acaba se tornando apenas mais um detonador capaz de levar o protagonista ao encontro do seu lado mais obscuro. Quando Mickey (Paul Hami), o canastrão proprietário do parque de trailers, começa a forçar uma aproximação com Paul, os seus verdadeiros demônios começam a ser aflorados e o filme nos direciona a reflexões mais complexas que vão de masculinidade tóxica, virilidade e monogamia, até mesmo a herança do racismo estrutural e as relações de privilégio.
Com o contínuo looping do personagem principal em suas próprias emoções, incitado pelo maniqueísmo representado pela personalidade de Mickey, acumulamos uma quantidade bem considerável de tensão. Quando uma antiga relação jovial entre Chloé e Mickey fica escancarada (sem maiores explorações), o roteiro é competente e consegue angustiar ainda mais do que propôs inicialmente.
Como desde os primeiros segundos o filme busca nos convencer de que teremos que lidar com a violência e os seu desdobramentos, o diretor Olivier Abbou quase não nos confunde, o que pode ser analisado como um aspecto ruim da obra. Essa ponte entre pavio e explosão não é particularmente harmoniosa e, de uma hora para a outra, somos testemunhas forçadas da carnificina.
Por outro lado, assim como em outras produções francesas, essa violência é filmada de maneira crua e sem maiores firulas, surgindo muito mais grosseiramente do que na maioria dos blockbusters de baixa qualidade no gênero. Se a evolução deixa a desejar, a intensidade pode ter sido compensatória.
Estranhos em Casa é totalmente baseado na observação de comportamentos, o que tende a nutrir relevância às performances principais. Nesse aspecto, a fotografia de Laurent Tangy consegue fornecer ao espectador as camadas que o filme conquista de maneira gradativa, traduzindo em sua iluminação a corda bamba entre o lado racionalizado e o lado primitivo dos protagonistas. O charme fica por conta da construção de suspense advinda da manutenção de todos os elementos típicos da categoria e aqueles que só fazem sentido exatamente nesse contexto.
Depois de todo o caos, foi interessante perceber a metáfora montada em cima dos caçadores de porcos, partindo dessa para uma melhor, ironicamente, como meros porcos assassinados, ressignificando as duas maiores etapas do filme
.
Ah, e como se trata de um filminho francês, antes das letrinhas subirem ainda há tempo para uma foda indie, com direito a orgasmo e refrão em sincronia. Isso que é terror psicológico!
(Estranhos em Casa estreou na NETFLIX neste final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Como não foi possível mergulhar de cabeça naquela lama e aspirar toda a água necessária para que os meus pulmões parassem de funcionar e me livrassem de vez desta tortura, sigo vivo, com menos uma hora e meia de vida, disposto a tentar colocar em palavras o que foi O Silêncio do Pântano, a mais nova tentativa frustrada de thriller da Netflix.
O personagem central da trama, identificado apenas como Q. (Pedro Alonso, o hypado Berlim de La Casa de Papel), é um misterioso romancista do crime que ao imergir em sua obra mais recente com base em um complexo esquema de corrupção e lavagem de dinheiro, nos dá a entender que os assassinatos ocorridos no livro, na realidade, são homicídios cometidos pelo próprio autor, sendo esta a inovadora sacada do filme.
Em um dos momentos iniciais, Q. é abordado por uma leitora durante uma sessão de autógrafos e é questionado sobre o por quê de seu personagem matar as pessoas e quais são as suas verdadeiras motivações por trás de cada morte. A resposta é curta e grossa: "Porque ele pode".
Mastigada a dupla jornada do personagem, o roteiro falha miseravelmente ao tentar brincar com essa linha tênue entre realidade e ficção, através de meios de execução pavorosos. Desde o primeiro crime não há qualquer estímulo ao interesse do espectador. A culpa é toda do ritmo da narrativa. A sensação é a mesma de assistir a um episódio aleatório de uma série muito ruim. Quase nada se conecta. Os personagens surgem e somem à esmo. O pano de fundo do esquema de corrupção não tem qualquer aprofundamento.
Quando a lista de vítimas de Q. se volta para um dos corruptos do alto escalão do governo espanhol, o protagonista se vê perseguido por uma operação lava-jato da vida, cuspida no meio da história na esperança de servir como ponte para um longo cardápio de metáforas banais com o pântano, o lodo e as abelhas, moscas, mosquitos ou seja lá quem for o dono daqueles zumbidos.
Em dado momento, a direção manipula as nossas sensações como se nos últimos instantes do filme algo fosse ser desmembrado ou desvendado. Há um festival de planos longos que em nada ajudam na narrativa ou sequer na construção estética. Cada ambiente, cada corte parece receber uma importância que não tem qualquer fundamento.
Pra fechar com chave de ouro, a cena final é a mais manjada possível.
O barulho da impressora funcionando é o último sussurro desesperado do diretor Marc Vigil implorando para que você se contente com a discussão realidade vs ficção, dentro da exaustiva premissa do "ele estava narrando a história ou isso tudo aconteceu de verdade?"
.
O filme mira em uma proposta e acerta na nossa cabeça. Até as críticas sociais potencialmente apreciáveis são jogadas dentro da privada.
Sabe aquela época de colégio em que você chegava para a aula de 07:30h e descobria que esqueceu de fazer o dever de casa da aula de 08:30h? Então, o título do trabalho que deu para ser entregue é O Silêncio do Pântano.
(O Silêncio do Pântano estreou na NETFLIX nessa semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Batizar um filme como homônimo de alguma personalidade que tenha atingido um nível elevado de notoriedade vai ser sempre uma tarefa complexa e tenderá a uma série de insatisfações. Sergio, ao contrário do que tenta sugerir a publicidade da Netflix, está longe de se tratar de uma cinebiografia do primeiro diplomata brasileiro a atingir o alto escalão da Organização das Nações Unidas.
Com uma tara inexplicável por flashbacks nitidamente exagerados, em meio às trágicas consequências de um atentado terrorista realizado pela Al-Qaeda na sede da ONU em Bagdá, em meados do ano de 2003, o diretor Greg Barker (que já dirigira o bom documentário sobre o personagem anos antes) nos insere nos momentos finais da vida do diplomata Sergio Vieira de Mello (Wagner Moura), ao lado de seu colega Gil Loescher (Brian F. O’Byrne), então soterrados pelo monte de concreto retorcido, enquanto dois bombeiros americanos lutam de maneira infrutífera pela sua retirada dos escombros, dando ao protagonista duas horas de reflexão sobre alguns episódios de uma vida inteira dedicada aos direitos humanos no cenário internacional.
Conforme spoiler dado pelo Jornal Nacional de 19 de agosto de 2003, apenas cinco dias após a criação da Missão de Assistência das Nações Unidas no Iraque, um homem-bomba solitário explodiu um caminhão no terreno do Canal Hotel de Bagdá, ferindo centenas de pessoas, matando duas dezenas delas e alterando os rumos da diplomacia mundial.
Partindo desta premissa, podemos dividir Sergio em três atos: a viagem inicial do diplomata ao Iraque, seu amor à primeira vista por Carolina (Ana de Armas) e a tentativa final de resgate. Sergio e Gil chegam ao Iraque após a conveniente invasão americana, buscando acalmar os ânimos da população e estabelecer eleições democráticas, pincelando uma visão geral da série de violações humanitárias cometidas pelos Estados Unidos à época.
Assim que somos apresentados a Paul Bremer (Bradley Whitford), líder da invasão americana, a postura combativa do protagonista nos sugere uma atmosfera de cabo de guerra entre idealismo e pragmatismo político dentro de um cenário de ocupação. No entanto, quando o roteiro simplesmente coloca o personagem interpretado por Whitford para escanteio, a qualidade dramática da narrativa evapora.
Embora seja provável que a grande maioria dos espectadores não esteja por dentro dos desdobramentos da atuação de Vieira de Mello no cenário global, os primeiros minutos de Sergio oferecem elementos mais do que suficientes para que nos interessemos pelas nuances de sua história de vida. É exatamente pelo surgimento desta expectativa que a frustração começa a contaminar a evolução do roteiro.
Por que os objetivos de um humanista assassinado em missão de paz não são suficientemente interessantes para liderar um contexto narrativo de quase duas horas? Por que o impacto do atentado e a morte de Vieira de Mello se reduz a um epílogo? Por que poupar as peças mais importantes? Por que tantos vícios em cenas novelescas e puramente estéticas?
Wagner Moura, à sombra de Capitão Nascimento e Pablo Emilio Escobar Gaviria, se salvou ao destilar alguma potência de uma história desamarrada que mais parece preocupada em se negar a pintar o seu personagem como santo, mas também tem medo de expor os seus próprios demônios. A química instantânea de Wagner Moura e Ana de Armas, ao eclodir de uma paixão três anos antes em missão no Timor Leste, é suficiente para manter interessantes as cenas mais expositivas, embora escancarem os problemas inerentes à característica mais prejudicada do roteiro, que é justamente o fato de utilizar uma história de amor com prazo de validade praticamente como único pano de fundo de uma biografia. Até as relações familiares mais profundas do protagonista são inseridas de forma destrambelhada. A falta de criatividade chega a ser constrangedora.
Como se não bastasse, Carolina passa todo o seu tempo em cena instigando diálogos que tirassem Sergio de sua zona de conforto. Embora ela também possuísse algum protagonismo em sua atuação na ONU, o roteiro jamais incutiu profundidade em sua personagem, sendo uma mera alegoria da personalidade do protagonista até os seus momentos finais.
Enfim, entre pedidos de socorro em Bagdá e beijos na chuva no Timor leste, Sergio finge contar uma história que eu finjo saber qual é. O lado bom é que os críticos do sotaque do Wagner Moura, desta vez, vão ter mais sarna pra se coçar. Sobrou até para o povo iraquiano, como sempre, responsabilizado por uma política de segurança americana calcada no extermínio
(Sergio estreou na NETFLIX nesse final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Napoleonizações do cinema asiático à parte, a trama de Tigertail, que se inspira na história pessoal do seu diretor Alan Yang, percorre três camadas da vida de Pin-Jui (Tzi Ma, Hong-Chi Lee e Zhi-Hao Yang) através de flashbacks pouco lineares sobre a personalidade de uma criança desolada, um jovem reticente e um adulto resignado.
O roteiro, que muito se baseia na máxima choraniana “cada escolha, uma renúncia, isso é a vida”, constrói a potência do seu protagonista através dos seus relacionamentos com as mulheres preponderantes em sua história: sua mãe, seu grande amor jovial, sua esposa arranjada e sua primogênita.
Conforme anda a carruagem, as inconciliáveis versões de Pin-Jui vão sendo reveladas na medida em que o interesse do jovem taiwanês em viver o American Dream se torna mais evidente. Quando resolve encarar a sua maior ambição de maneira pragmática, ele abre mão de sua maior paixão, Yuan (Yo-Hsing Fang), e concorda em se casar com a filha de seu chefe, Zhenzhen (Kunjue Li), em troca da oportunidade de se mudar para os Estados Unidos.
Entre a desolação taiwanesa e o desmoronamento do nem tão meritocrático sonho americano, Tigertail é o retrato angustiante de um homem que nunca foi capaz de cruzar com a própria sorte e romper as barreiras da sua inconsistência emocional, estando esgotado de carregar o peso da sua própria cruz. À medida em que mofa em uma quitanda enquanto a sua esposa grávida chega ao limite inevitável de uma rotina de abandono, Ping Jui se torna um marido exigente e desprovido de empatia, fadando o rumo das suas relações familiares ao fracasso.
Com o protagonista mais velho, divorciado e introspectivo, o filme nos transporta para uma previsível tentativa de aproximação entre pai e filha, preparando uma atmosfera de nebulosidade sob a personalidade da já adulta Angela. Quando esse processo se inicia, o diretor de fotografia, Nigel Bluck, é esplêndido ao conectar o idealismo das memórias de Ping Jui a sua natureza atual adepta a auto sabotagem. O maior patrimônio do filme passa justamente pelos melancólicos planos naturais até as cenas interpretadas pelo excelente Tzi Ma, sozinho, transmitindo a luta interior de seu personagem através de uma poderosa linguagem corporal.
Se for necessário sintetizar as qualidades de Tigertail em uma só cena, não há como ser diferente. A composição quadro a quadro nos últimos instantes da curta obra, desemboca em um homem eternamente vinculado ao seu passado, mas que consegue dar uma trégua às suas próprias imperfeições. Diante do que se foi. Ao lado do que lhe resta.
(Eu publiquei essa e outras críticas no site: metafictions . com)
Com o surgimento do verbo quarentenar em nosso cotidiano, o indiano Maska, do diretor Niraaj Udhwani, surge como um prato cheio aos adeptos daquele filminho de Sessão da Tarde que a princípio não fede nem cheira, mas arranca uns sorrisinhos e traça paralelos bem sutis entre as mais variadas relações de afeto e os sonhos e anseios de um jovem protagonista.
Passado em Mumbai, o roteiro conta a história de uma família Parsi, um grupo étnico-religioso com origem iraniana, responsável pela administração de um tradicional café que ao longo dos últimos noventa e nove anos se tornou o maior legado daquela família de imigrantes. Maska leva o título da fatia de pão amanteigado servido no estabelecimento e tido como o carro chefe em praticamente todos os cafés da manhã e lanches da tarde servidos ao seu público fiel.
Diana (Manisha Koirala) dirige o café, símbolo máximo de sua família há algumas gerações, e espera que o seu filho Rumi (Prit Kamani), de 19 anos, assuma os negócios. Ela só não esperava que o seu primogênito vencesse, inexplicavelmente, um concurso de beleza local, criando outras expectativas com relação ao seu futuro próximo. A partir daquele momento, Rumi se matricula em cursos de teatro e se apaixona instantaneamente por uma de suas colegas de grupo, Mallika (Nikta Dutta).
Embora a evolução do roteiro nos dê razões óbvias pelas quais o protagonista não atingirá o tão sonhado estrelato, encorajado pela namorada e aficionado pela possibilidade de se tornar um ator de sucesso, Rumi se depara com um produtor cinematográfico que lhe oferece o papel principal de sua próxima produção caso ele arrecadasse uma alta quantia de dinheiro para o financiamento do filme. Eis que o Rustom Cafe entra na reta.
Disposto a encerrar as atividades do seu negócio de família para poder prosseguir em busca do seu maior sonho pessoal, Rumi acaba conhecendo Persis (Shirley Setia), uma jovem escritora que está trabalhando em um livro sobre as mais diversas histórias de vida retratadas nas mesas de café dos principais restaurantes iranianos de Mumbai. É evidente que o cupido flecharia o coração dos dois pombinhos enquanto Persis tentava fazer com que o rapaz entendesse que a conexão entre lembranças felizes e lugares que resistem ao tempo são mais fortes do que ele imagina.
Maska conta aquele tipo de história que não precisa de um alerta de spoiler. Praticamente todos os elementos nos foram entregues em outros filmes desse mesmo estilo e não há muito para onde correr. A dinâmica mais parece uma propaganda de margarina estendida por quase duas horas, com a mensagem principal discriminada em times new roman fonte 6 no avesso da embalagem.
Não há absolutamente nada de novo. Embora Bollywood, nome que surge através da fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai) e Hollywood, não seja atrativa para todos os gostos, no quesito comédia romântica podemos considerar que Maska cumpre com o objetivo e atinge uma nota mediana, afinal de contas, há gosto pra tudo.
(Maska estreou na NETFLIX nesse final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Nesses tempos em que o coronga é apenas mais uma bolacha do pacote de desgraças cotidianas que nos assola, "El Hoyo", do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, surge como uma potente caricatura da nossa estrutura de sociedade fadada ao fracasso, ao desmascarar de uma faceta que nem todo espelho é capaz de refletir: o lado mais selvagem do ser humano.
O grande protagonista do filme, o poço vertical, é utilizado de maneira alegórica nesta distopia social representada em três níveis. Os de cima. Os de baixo. E os que caem.
Conforme a falácia da solidariedade espontânea vai sendo desmitificada, cada variação da plataforma parece potencializar o poder de autodestruição gerado por um sistema dominado pela produção e consumo exacerbado, onde os do topo estão pouco se fudendo para os de baixo, mas quando a roda gira, vale tudo para sobreviver. É a luz vermelha avisando que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
A estrutura do roteiro é convidativa pois coloca o personagem central "Goreng" e o espectador transitando juntos pelos mais distintos níveis, sem maiores explicações sobre os pormenores alheios ao poço. Durante essa montanha russa, é possível traçar diferentes estratégias para que se altere a configuração de um mecanismo entranhado no egoísmo legitimado pela postura dos que estão momentaneamente por cima.
O clássico coração acelerado do terror, a repulsa sintomática do horror e o breguíssimo sangue espirrando do gore de outrora, são elementos trazidos para ratificar a vulnerabilidade de cada personagem, todos exaustos demais para questionar as regras do jogo.
Por conta de uma enxurrada de simbolismos, do clima uníssono de tensão e da evolução da história sem maiores presepadas, "O Poço" vale uma hora e meia. Embora algumas lacunas tenham ficado abertas e o desejo por respostas seja inevitável, você que assistiu ao filme, mais do que ninguém, deveria saber que comida mastigada é menos gostosa. O desfecho não é entregue de mão beijada. Superemos.
E Antes do ponto final, é sempre bom transformar um spoiler em imaginação: se dividirmos o número da besta por duas pessoas, em que andar chegamos?
"Gentileza gera gentileza" é brega mas nunca sai de moda. Fofíssima a forma original como foram introduzindo os elementos que todos nós já conhecemos sobre o Papai Noel, a fábrica, o trenó, as renas, os presentes, os duendes... A menininha da Lapônia me lembrou muito o Stitch. <3
Já ouvi em algum desses programas do Discovery que se um dia as abelhas deixarem de existir, a humanidade entrará em colapso. Nessa produção poética demais para documentário e crua demais para ficção, acompanhamos a harmoniosa relação entre a apicultora Hatidze e a natureza.
A protagonista, cuja dedicação à mãe idosa apenas é rivalizada com o modo como trata o seu apiário, alimenta-se do mínimo possível e tem o "luxo" representado pela tintura capilar e pelo leque com que abana a mãe, até que tem a rotina abalada com a chegada de uma família nômade.
Embora não fique perfeitamente claro se os indesejosos vizinhos tenham agido de maneira maldosa, a família interfere decisivamente no contexto onde a personagem está inserida, criando contornos de concorrência entre um meio de sustentabilidade e um de exploração desenfreada.
Como não há depoimentos para a câmera, narrações em off ou imagens de arquivo, o documentário cria a sua própria identidade através de uma montagem perfeita e fotografia maravilhosa. Ficou fácil perceber os ecos da obra no mundo de hoje.
O plano sequencial do filme é a coisa mais bem feita que eu pude assistir nos últimos tempos. Se a câmera de "Birdman" muito me agradou, em "1917" a dificuldade é multiplicada e os cortes quase que imperceptíveis são a cereja do bolo. Os ensaios devem ter sido surreais.
O espetáculo nos quesitos técnicos é tão grande que conseguiu me transportar para o que poderia ser apenas mais um desses exaustivos roteiros americanos de campo de batalha. Pelo contrário. A angústia não é exagerada e a história é percorrida quase como se fosse um jogo de videogame.
A parte blasé foi pulverizada pela força da edição e da montagem. O que também me agradou foi a naturalidade da ascensão do coadjuvante a protagonista, passando pelas ótimas atuações principais. A fotografia é esplendorosa e o som numa sala Xplus faz a diferença. Vai levar tudo!
A ressalva que fica são os vários momentos monótonos com diálogos pra encher linguiça enquanto o telespectador vai sendo distraído até a próxima explosão. Ao melhor estilo susto em filme de demônio. O roteiro também poderia ter sido mais criativo na hora de matar os soldados.
Filme de pé na estrada narrado sob a ótica de uma amizade nada convencional. A ambientação desértica contribui para a sensação de isolamento e marasmo que se opõe à realidade distante da guerra. É como se o sertão nordestino fosse o mundo.
A ingenuidade de Ranulpho é a cara do povo brasileiro. Contada com muita sinceridade, a história encanta mais pelas pessoas que encontramos durante o caminho do que pela viagem em si. Kleber Mendonça que me perdoe mas a parte boa de Bacurau vem das referências desse filme, rs.
- Que foi? - Nada não... É que esse filme é tão triste. - Triste? Eu acho feliz. - É feliz, mas é triste. A gente começa a pensar na vida e a pensar na vida da gente. Uma vida que devia ser assim: buscar a felicidade e mais nada. Cada vez que a gente procura acontece algo errado.
Me perdoem mas o mais inacreditável do filme é a Jennifer Lopez ter 50 anos. Todos hipnotizados naquela bunda. Pole dance ao som de Fiona Apple, pqp. "This city, this country, is a strip club. You've got people tossing the money, and people doing the dance."
Teocracia em Vertigem
3.5 147Embora muita gente não deva se lembrar, há mais ou menos um ano, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvejada com coquetéis molotov, depois que supostos grupos cristãos se indignaram com o especial de Natal então intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, muito por conta da presença de um personagem homossexual na sátira. Mais de duas milhões de assinaturas foram recolhidas com o intuito de pressionar a Netflix pela retirada do filme da plataforma com a consequente judicialização da tão nefasta heresia.
Como graças a Deus (Deus?) ninguém morreu, ninguém foi preso, ninguém foi amordaçado e não é só de Netflix que se vive o homem, cá estamos, ao fim do pandêmico ano de 2020, ainda livres para dar play no Youtube e conferir a mais nova paródia bíblica de um grupo mais do que consolidado e bem sucedido quando o assunto é apertar calos, esfregar feridas e estampar na nossa cara o carrossel de escárnios no qual esse país veio a se transformar ao longo dos últimos tempos, sem dar palco pra maluco.
O formato é bem simples e de fato lembra bastante o documentário brasileiro que concorreu ao último Oscar, “Democracia em Vertigem“, dirigido por Petra Costa (que é convidada especial, inclusive). Satirizando a trajetória de Jesus Cristo ao longo do ano 33, no período compreendido entre a sua crucificação e a ressurreição, o formato documental profano recolhe depoimentos de diversos personagens bíblicos que vão tentando montar um quebra-cabeça sobre o real paradeiro do Messias que viraria mito.
Como a própria divulgação do filme fez questão de frisar, a vida e obra de Jesus Cristo passa por uma infinidade de boatos, conspirações, injúrias, provocações e fanatismo. Seria ultrajante pensar que o maior de todos líderes, munido de um carisma inigualável, altruísta por vocação, bom samaritano e destacado pelo apreço com as causas ligadas aos direitos humanos, foi o grande responsável pela polarização da Galileia? Teria Jesus sofrido um golpe?
Uma overdose de referências do nosso cenário político caótico é embutida no roteiro e conduzida pela narração de Clarice Falcão, que nos guia pela tentativa frustrada de compreender os pormenores que culminaram na crucificação de Jesus (Fábio Porchat) através dos relatos de muitos daqueles que passaram pelo seu caminho em vida, desde Maria (Evelyn Castro), Judas Iscariotes (Daniel Furlan) e Maria Madalena (Thati Lopes) a Barrabás (Renato Góes) e José de Arimatéia (Rafael Portugal).
A obra de pouco mais de cinquenta minutos conta ainda com um elenco repleto de participações especiais que vão das grifes de Emicida e Teresa Cristina, passam pela pompa global de Marcos Palmeira, Helio de La Peña e Raphael Logam, fechando com o carisma dos maiores representantes do transporte alternativo do Rio de Janeiro. Só a nata da esquerda festiva.
A produção é muito bem feita e conta com toques refinados de fotografia e figurino que foram perfeitamente alinhados, como já vem sendo, há muito tempo, nos vídeos épicos do Porta. Reparei também que edição e direção se preocuparam em não engessar o ritmo da narrativa que foi quase toda construída com apenas um ator em cena. Foram bem sucedidos e não contaminaram ninguém com a gripezinha.
De tudo o que foi apresentado, o que mais impressiona, de longe, é a capacidade genial de linkar as referências diretas dos trágicos acontecimentos recentes da história do Brasil com as críticas àqueles que se usurpam de preceitos bíblicos em nome de uma fé que segrega, afasta, oprime e mata. Com a engenhosidade de uma mãe que coloca a papinha na boca da criança, o roteiro alimenta o espectador com a certeza de que se Jesus voltasse, provavelmente ele não chegaria nem perto dos trinta e três anos. Pelo contrário. Teria a sua morte inflada justamente por aqueles que se dizem “de bem”.
Até mesmo a desastrosa sequência musical dos minutos finais, que teria ficado cem vezes melhor na mão do Adnet em algum daqueles programas da MTV, consegue dar umas chacoalhadas muito bem dadas ao metaforizar que Jesus teria tentado voltar como mulher, negro e travesti, mas depois de ser morto em todas as ocasiões, cansou. Não volta mais. Já deu. A gente que se vire.
E pra quem gosta de caça-palavras, pescar referências pode ser um ótimo exercício. São obrigatórias: impeachment da Dilma, vice decorativo, guardiões do Crivella, carta do Temer, laranjal do Queiroz, tatuagem do Onyx, rachadinha, gabinete do ódio, power point da lava-jato, provas vs convicção, condução coercitiva, reunião ministerial e gado arrependido. Parei de contar.
Não assista!
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Borat: Fita de Cinema Seguinte
3.6 552 Assista AgoraA fórmula de Borat que já não me agradava muito em 2006, o que é algo absolutamente pessoal, funcionava por conta da invisibilidade do personagem e do caráter velado da idiotice do americano médio. Em 2020, idiotice, preconceito e ignorância são sinônimos de marketing pessoal. O Borat já não consegue mais servir como lente de aumento. O absurdo no mundo real é maior do que na ficção e por isso o filme não choca tanto. É inacreditável a que ponto chegamos.
Cadáver
2.5 254 Assista AgoraSe você ainda não esbarrou com a primeira obra norueguesa original Netflix, eu vou fazer o favor de não te segurar até o final desta crítica para dizer o que realmente interessa: Cadáver, do diretor novinho Jarand Herdal, tinha tudo para ser um filmaço do caralho!
Tinha.
Após um terrível desastre nuclear com proporções catastróficas, a miséria e o desespero nos levam para uma espécie de jornada pós-apocalíptica onde Leonora (Gitte Witt) e Jacob (Thomas Gullestad) precisarão fazer das tripas coração se quiserem sobreviver ao lado de sua filha Alice (Tuva Olivia Remman), em um canto qualquer do norte europeu.
É impossível não se sentir seduzido pela trama em suas nuances iniciais. Nas paredes do apartamento frio e escuro onde a família se abrigava, havia um pôster de uma apresentação da inominável “Macbeth”, a tragédia amaldiçoada de Shakespeare, num teatro norueguês na qual a ex-atriz Leonora havia desempenhado o papel de protagonista.
Quando uma gota de chuva escorreu como uma lágrima pelo rosto de Lady Macbeth, Leonora precisou tirar forças de onde não tinha para tentar servir de porto seguro para a pequena Alice, que embora ainda não tivesse caído na toca e tampouco conhecesse um país das maravilhas, já carregava o seu coelho (de pelúcia) em meio ao caos.
Diante da absoluta falta de perspectiva da população que restara, Mathias (Thorbjørn Harr), dono de um luxuoso hotel local, surge da atmosfera turva para convidar as pessoas para uma única apresentação de teatro com direito a banquete, numa espécie de refúgio pão e circo, onde qualquer espectador acordado já presumiria se tratar de uma armadilha, afinal, por que tem um Windsor funcionando no fim do mundo?
Ok, superando o espírito racional, a contradição visual entre a cidade arrasada e o hotel reluzente, adiciona de maneira eficiente o ar de mistério e um estilo de fotografia excelente ao filme, que tende a nos passar credibilidade e gera a expectativa necessária.
No momento em que o hotel é alçado a um patamar de protagonismo e caminhamos pelos seus gigantescos tapetes vermelhos, em corredores pouco iluminados e repletos de pinturas macabras, as câmeras, quase sempre posicionadas na parte de cima do quadro, mantém o constante estado de alerta e a sensação de ansiedade.
Essa atmosfera ainda é potencializada quando os convidados são informados de que vão participar da apresentação e que ela se desenvolverá por todo o edifício, mas que, para isso, precisarão trajar máscaras douradas ao longo do espetáculo de ação, sendo esta a única ferramenta capaz de diferenciar atores de espectadores.
Quando tudo parecia perfeitamente encaixado e eu já estava conformado que seria transportado para um estágio profundo de confusão mental entre realidade e ficção, o efeito do Viagra acabou. Dá-se início a uma sucessão de escolhas imbecis, seguidas de ramificações toscas, até que as resoluções da história são servidas que nem papinha, como se eu fosse um bebê desprovido de capacidade intelectual.
A partir daí o ki-suco azedou de vez. O tempo de espera pela resolução de cada evento óbvio parece uma eternidade, mesmo se tratando de uma obra de oitenta minutos. Não há mais nenhum personagem interessante, nenhum plot twist, nenhum mistério relevante a ser desvendado. Tudo é exatamente do jeito que você acha que vai ser.
O cara que não pode tirar a máscara vai tirar e vai se fuder (não tinha cloroquina), o quadro que pisca o olho vai ter uma passagem secreta, os capangas vão ficar brincando de gato e rato, o gore vai passar do tolerável em alguma morte ridícula e a filha desaparecida vai aparecer sem maiores explicações.
O potencial do argumento é arremessado na lata do lixo e aí fica difícil querer gerar reflexões sobre fragilidade da espécie, estado de necessidade, ética e moral. O horror que deveria emergir da cruel desconexão entre tragédia e compaixão, empaca na falta de capacidade do roteiro. Até mesmo a premissa canibal que deveria servir de alça para essas discussões, morre presa num gancho de açougue, sem aprofundar sobre porra nenhuma.
Frustrante.
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FYRE Festival: Fiasco no Caribe
3.6 227Com o rebuliço do Dilema das Redes, esse documentário também serve de lupa para os anos 2010s. Mídia sociais controlando e vendendo falácias, estelionatários enriquecendo de forma cada vez mais desleal, influenciadores ocos e quase nenhuma responsabilização. E sabemos que quem de fato se fodeu não foram eles.
Obs: Cadê o Ja Rule?
Remédio Amargo
2.8 266Embora outros clássicos espanhóis contemporâneos do gênero como “O Poço”, “Um Contratempo” e “O Corpo” possam ser colocados, merecidamente, numa prateleira acima, o cardápio da Netflix ganha mais uma boa opção para os adeptos do coração acelerado sem a frescurada do cinema americano.
A premissa já parte de um lugar interessante. O protagonista Ángel (Mario Casas), um profissional de primeiros socorros que não faz a menor questão de ser agradável, vive a bordo de uma ambulância resgatando acidentados entre escombros e ferragens, até se deparar com uma abrupta inversão de papeis.
Logo na primeira parte do filme, é flagrante a intenção do diretor de moldar a personalidade do seu protagonista no limite da linha do socialmente aceitável. Entre um furto e outro a cada resgate, o absoluto desprezo pelas pessoas de modo geral e o comportamento possessivo com a sua namorada, Vane (Déborah François), os traços mais obscuros de Ángel vão sendo revelados a cada olhar sombrio de uma atuação acima da média.
No momento em que, ironicamente, Ángel sofre um grave acidente no exercício da sua profissão, sendo fadado a viver sob as rodas de uma cadeira, toda essa amargura acaba se misturando com as inseguranças do lento processo de adaptação e um personagem repleto de demônios criados por si mesmo passa a sucumbir a sua própria personalidade doentia.
Seguindo um ritmo que, ao meu ver, não é lento e se reveste de tensão durante praticamente todo o filme, nós acabamos sendo imersos nas obsessões cruas da masculinidade tóxica, até sermos afogados pela ótima fotografia que cria no apartamento do casal uma incômoda experiência de aprisionamento.
O pecado capital do roteiro é fazer do ciúmes delirante do nosso protagonista, Bentinho, e da ruptura da relação doméstica abusiva de Vane, Capitu. Simplesmente não deveria haver qualquer espaço para reflexão que suporte a tese de que uma coisa leva a outra.
De pouco importa como eram as interações sociais de Vane. O filme ilustra o florescer da psicopatia de um sujeito obcecado pelo sentimento de posse que exercia sobre a sua companheira, desde as fodas agressivas e os beijos babados fora de contexto, à perseguição sociopata e o cárcere privado.
Colocar Ricardo (Guillermo Pfening), pasme, o motorista da ambulância no fatídico dia do acidente de Ángel, como novo par de Vane, no momento em que a moça finalmente conseguiu se desfazer da relação perniciosa, traz aquele ar de “traiu ou não traiu?” que só faz por justificar o injustificável, exatamente como acontece na vida real. E na vida real morre mulher todo minuto por conta disso.
Como eu acabei ficando bastante estressado com o retorno esdrúxulo de Ricardo à história, eu precisava de um elemento que renovasse as minhas expectativas. E ele veio. Em forma de trilha sonora.
O jogo musical entre “L’Hymne à l’amour” de Édith Piaf e “Un sip of champagne” de Los Brincos, deram um tom lúdico sensacional, e não menos perturbador, às últimas curvas torturantes antes da virada final que de tão clichê, saciou a minha sede de vingança.
Sigo a favor da romantização da psicopatia no cinema. Com bom senso.
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Santana
2.5 6 Assista AgoraAntes de questionarmos a qualidade de mais um longa de ação exageradamente preocupado em forçar situações de confronto ao invés de estruturar um roteiro capaz de nos proporcionar a tensão de maneira natural, Santana, primeiro filme angolano a ser disponibilizado na plataforma da Netflix, traz um caráter pioneiro que agrega valor à obra.
Dirigido por Maradona Dias dos Santos & Chris Roland, a obra já começa revestida de uma representatividade necessária que pode abrir espaço para que outras narrativas, além do eixo ocidental, sejam mais comumente consumidas por um espectador desinteressado em maiores problematizações. No dia em que dar play em um filme africano, por si só, for algo comum e não significar muita coisa além da busca pelo entretenimento, poderemos mudar a altura do sarrafo.
Beleza? Show. Pois bem, eu que não sou um consumidor assíduo do gênero, percebi que a qualidade das cenas de ação é um tanto quanto duvidosa e, até certo ponto, mal aproveitada, mas o que mais me incomodou foi a construção rasa dos personagens, que parecem distantes uns dos outros até que são entrelaçados pelo objetivo maior do filme que é a porradaria.
Com o nhenhenhem do "baseado em fatos reais", Santana conta um pedaço da história de dois irmãos, Dias (Paulo Americano) e Matias (Raul Rosario), um agente da divisão de narcóticos e um general respeitado, que acabam descobrindo a identidade do responsável pelo assassinato de seus pais, há mais de 35 anos, e partem em busca de vingança, cada um da sua maneira.
A partir desta premissa, surge uma história que acaba deixando o seu potencial para escanteio por não construir bem a personalidade dos principais personagens, se mostrando muito mais preocupada em se utilizar dos elementos clichês do cinema padrãozão, abusando de uma montagem pouco criativa e um tanto quanto desinteressante, em cenas longas e pouco amarradas.
Eu também me atrevo a dizer que é impossível assistir ao filme sem se incomodar com a mistura de idiomas totalmente despropositada que se vê em cena, o que já se tornou uma tradição da Netflix. Os diálogos que são passados na Angola ou na África do Sul, são violentados por trechos em inglês a cada meia dúzia de frases no português local. Parece aquele povo chato de colégio bilíngue que resolve "raciocinar" americanizando ao invés de conversar fingindo ser um ser humano normal. Um porre!
Eu não sei se o roteiro conseguiu exigir o nível de desatenção necessário para que as tentativas de reviravoltas pudessem fazer efeito na cabeça de alguém, mas a falta de vigor dos atores e a sempre exaustiva sexualização das personagens femininas, dentre elas, a estrela angolana Neide Van-Dúnem, me deram a receita do bolo muito antes da consumação desses plot twists frustrados a medida em que os longos 106 minutos de filme iam chegando ao final.
Entre a violência gráfica clichê, as batidas de carro tragicômicas, os chefões falando grosso no escuro, os policiais super-homens, os bumbuns de fora e os defeitos especiais, eu confesso que não vejo Santana numa prateleira muito inferior a outros filmes do gênero. Se você dá play em qualquer coisa que o algoritmo do streaming te indica, vale a pena prestigiar esse filme angolano, que tenta brincar de Hollywood, mesmo com uma cotação muito diferente dos Velozes e Furiosos da vida.
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Fogo Sombrio
1.1 19 Assista AgoraQue elementos uma obra precisaria ter ou deixar de ter para ser considerada a pior película do mundo? Um roteiro sem qualquer caminho lógico evolutivo? Uma montagem caótica? Diálogos dramalhões à lá “A Usurpadora”? Barulinho de porta rangendo e gota d’água pingando na tigela em momentos completamente desapropriados? Cenas de luta corporal tão patéticas quanto as inexplicáveis fodas mal dadas? Saturação demasiadamente alaranjada? Hologramas terríveis?
Bom, eu vou encarar essa crítica como um grande gesto de generosidade. Mastiguem cada palavra como se fosse uma profunda demonstração de altruísmo, pois os pouco mais de oitenta minutos de Fogo Sombrio, novo thriller mexicano da Netflix que mais poderia ser discutido como mecanismo punitivo ao invés de entretenimento, eu não desejo nem para os meus piores inimigos.
Pelo que me foi possibilitado inferir da premissa do filme dirigido pelo mexicano Bernardo Arellano, o protagonista Franco (Tenoch Huerta), uma espécie de criminoso renegado, está a procura de uma parente sequestrada até que resolve se hospedar, sem maiores explicações, em um hotel macabro que serve de abrigo a um elenco digno da temporada mais espetacular do reality show “A Fazenda”.
Tem bizarrice para todos os gostos. Além do canastrão bigodudo, temos a femme fatale Rubi (Eréndira Ibarra), anões, zarolhas, prostitutas, cafetinas, mestre dos magos, médium albina, vampiros, demônios e mais o que você quiser. Sempre munidos do figurino mais antiquado possível e de uma maquiagem rivalizando breguice com o penteado.
Depois deste encontro assíncrono, pasmem: essa trupe acaba sendo interligada por uma grande lesma em formato de pênis com dentes afiados. Sim, é esse o elemento ritualístico genial que a direção encontrou para hospedar nos protagonistas a ideia de possessão em cadeia e representação do mal. Não existem palavras capazes de descrever tamanha bizarrice.
Como se não bastasse a nojeira, nada tem lógica. A montagem, a direção e o roteiro parecem ter sido feitos pelo mesmo adolescente satanista durante alguma dessas apresentações góticas repletas de mau gosto.
Previsivelmente tudo acontece de noite e o tratamento visual dado pela iluminação horrorosa destrói os resquícios de cenografia bem estruturados que poderiam ser valorizados pelo espectador cansado da fotografia escura.
Com o trash de meio século atrás e a tosquice das novelas mexicanas dos anos 90 competindo firme pelo prêmio de segundo pior elemento do filme, surgem as cenas de ação, os símbolos esotéricos e o misticismo sem pé nem cabeça pra acabar de vez com o bom humor de qualquer um que deu play nesta aberração da Netflix.
Eu confesso que muito antes do desfecho já tinha me perdido há muito tempo e mal conseguia me concentrar em quaisquer dos personagens, mas o parasita sobrenatural em formato de rola-molusco, passando de garganta em garganta, mantinha uma sensação letárgica de “aonde é que esta merda vai dar” que me impediu de desistir antes da última cena.
Pois eu deveria ter desistido.
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Na Solidão da Noite
3.5 10 Assista AgoraAssim como em tantos outros filmes de investigação criminal que eu definitivamente tenho pouquíssima paciência para assistir, Na Solidão da Noite parte daquela premissa clássica do “Quem matou Lineu?”: um corpo e uma porrada de suspeitos. Thakur Raghubeer Singh, um poderoso empresário indiano, foi baleado e coronhado durante a sua noite de núpcias e há tantos potenciais assassinos quanto membros da família, quase todos eles com algum motivo pra dar fim ao velho. É quando entra em cena a figura do investigador Jatil Yadav, o protagonista do filme. O policial eternamente rejeitado por noivas em potencial, é a figura do agente da lei honesto e aficionado pela busca de todos os elementos do quebra-cabeça.
Com diversas camadas, a história é cheia de reviravoltas que buscam fazer com que o espectador duvide de todas as partes em algum contexto específico. O roteiro caminha em seu próprio ritmo para desembaraçar a teia, afinal de contas, são quase duas horas e meia de filme, e só depois de um tempo considerável é possível perceber que encontrar o criminoso não é a única coisa que realmente interessa nessa história.
O diretor Honey Trehan se utiliza muito bem dos elementos de tensão para emoldurar um duro retrato do patriarcado. As figuras masculinas do filme oscilam entre autoridades intocáveis a estupradores, traficantes de pessoas e assassinos. Já as mulheres, independentemente do seu status de esposa rica, vassala da família ou prostituta, são alegorias, meios para a reprodução desse poder, sempre abusadas e intimidadas de acordo com a conveniência.
O roteiro vai se tornando mais pesado conforme os corpos vão se amontoando e as demonstrações de ganância, corrupção, politicagem e imoralidade vão sendo nutridas e trazendo consequências práticas dentro daquelas relações.
Somos constantemente apresentados à facetas obscuras de personagens que sempre parecem estar escondendo alguma coisa. O casarão dos Thakur, com longos corredores, panos esticados, escadas nos fundos e decorações luxuosas, é uma grande personagem por si só. É lá que as mulheres parecem enclausuradas numa espécie de masmorra travestida.
O relacionamento entre o investigador Jatil e sua mãe, interpretada por Ila Arun, fornece os poucos tons de humor do filme. Tudo o que ela quer é que ele se case e o policial está determinado a encontrar uma moça decente, mas, evidentemente, durante o curso das investigações, esse conceito de “decência” vai sofrendo algumas flexibilizações um tanto quanto previsíveis, permitindo que uma atmosfera de romance fosse desabrochada.
Na Solidão da Noite é uma tentativa sincera de enigma de detetive, mas se preocupa muito mais em escancarar pistas do que nos brindar com um suspense fora da caixinha. Tudo é extremamente mastigado, não havendo margem para um pingo de mistério ou ambiguidade quando as letrinhas sobem no final. A maneira com que entrelaça política e relações de abuso com o enredo central da investigação é apreciável, mas o filme peca pela vasta lista de clichês, pela falta de relevância de vários personagens e por uma edição tão expositiva que me chegou a dar saudades dos episódios do “Linha Direta”.
Aquele programa sim era tenso.
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Anne Frank: Parallel Stories
4.0 44Eu sei, parece que foi em outro mundo, mas a nossa distância para a angústia contida nas palavras que Anne Frank narrou em seu diário não chega a ter nem oito décadas. Eu devia ter uns treze anos quando tive o meu primeiro contato com a obra da menina alemã de família judaica que se manteve escondida com os pais, a irmã e outros judeus em um anexo secreto no prédio onde o pai trabalhava, por mais de dois anos. Sua obra é um relato jovial que mostra a passagem da infância para uma adolescência imersa em condições extremas de horror, no período mais perverso da história recente da humanidade, quase sempre sob a perspectiva turva do que era possível deduzir através do que se ouvia nos rádios.
Anne Frank teve a ideia de escrever um livro depois de surgir uma notícia que incentivava as pessoas a documentarem seus eventos pessoais ligados à guerra, uma vez que, futuramente, este material teria algum significado histórico. Ela pincela em seus escritos tudo o que se passava no cotidiano dos fugitivos, não se abstendo de divulgar seus conflitos familiares, bem como revelar aspectos mais íntimos do despertar da sua sexualidade em meio ao medo incessante de ser encontrada pelos nazistas.
Setenta e cinco anos depois daquela menininha questionar a sua própria capacidade de “escrever algo grande”, cá estamos em #AnneFrank – Histórias Paralelas, documentário dirigido por Sabina Fedeli e Anna Migotto que busca entrelaçar as páginas históricas daquele diário com a vida de cinco sobreviventes: Arianna Szörenyi, Sarah Lichtsztejn-Montard, Helga Weiss e as irmãs Andra e Tatiana Bucci.
A direção da obra é bastante simples. De um lado, Hellen Mirren (Vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Rainha” em 2006) é a responsável por narrar um pouco da vida de Anne Frank através das páginas do seu diário, que é um dos principais textos responsáveis por tornar a tragédia do nazismo conhecida por milhões de leitores ao redor do mundo. Do outro, cinco histórias de mulheres em idades ou circunstâncias parecidas com as de Anne, ilustrando um pouco das terríveis experiências que foram obrigadas a viver. A maneira com que esses paralelos são traçados é crua e dolorosa, mas foi possível sentir a dor sob uma perspectiva luminosa, sem jamais distanciar as feridas latentes do contexto da tragédia.
A obra ainda conta com outro elemento interessante. Como a fotografia percorre diferentes paisagens por onde Anne Frank passou ou que foram importantes ao longo da sua trajetória, resta a @KaterinaKat (Martina Gatti) a responsabilidade de guiar os espectadores ao longo desta viagem. Assim como Frank, @KaterinaKat também tem o seu diário. Aquele chato, que apita, conta like, aguça a ansiedade e acaba com a saúde mental.
Como a própria hashtag do título tenta induzir, a ideia é que fotos carregadas no Instagram, um toque visual e moderno dado pela personagem, sejam capazes de atrair jovens que ainda desconhecem a história de Anne Frank. Embora soe tosco e eu ache brega, é possível que tenha sido útil.
A fotografia que passa por Paris, Amsterdã, Terezín e Bergen-Belsen é muito bem feita. Juntamente com o material de arquivo, é possível combinar um retrato pessoal e rigoroso do que essas experiências significavam à nível bárbaro.
Contudo, o bem mais precioso deste trabalho é o testemunho humano. Enquanto Mirren e Gatti trazem momentos emocionantes para a tela, com destaque para a narradora que se desdobra para controlar todas as emoções que emanam do livro através da sua dicção e ritmo narrativo excelentes, os mais comoventes certamente vêm das cinco sobreviventes que são entrevistadas ao longo de uma hora e meia. As vozes daquelas cinco mulheres imensamente fortes e corajosas são acompanhadas por relatos de rabinos, historiadores, psicólogos, músicos, jornalistas, fotógrafos e responsáveis pela casa de Anne Frank. São diferentes camadas que se unem para tentar nos manter em constante estado de alerta, traçando um elo entre a crueldade da Segunda Guerra Mundial e as relações de ódio, abuso de poder, discriminação, racismo e antissemitismo que insistimos em contemporizar em pleno ano de 2020.
Em tempos de pandemia e flerte com o fascismo, #AnneFrank – Vidas Paralelas merece ser visto e é bom que doa ainda mais.
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Wasp Network: Rede de Espiões
3.1 116 Assista AgoraDirigido pelo francês Olivier Assayas, cujo entusiasmo cinematográfico costuma permear a interseção de grandes questões políticas e peculiaridades de cunho pessoal, buscando intensificar emocionalmente os seus personagens, Wasp Network: Rede de Espiões nos apresenta uma narrativa fundamentada em um pouco de muita coisa e em muito de quase nada.
O excelente elenco que deveria exalar borogodó latino com a cubana Ana de Armas, o brasileiro Wagner Moura, o mexicano Gael García Bernal, o venezuelano Edgar Ramírez e a cereja do bolo, a espanhola Penélope Cruz, se afasta da direção à medida em que a salada de situações inorgânicas vai sendo temperada.
O filme nos transporta para Havana, em meados da década de 90, quando René González (Edgar Ramírez), um piloto de avião cubano, furta uma aeronave de pequeno porte e foge de Cuba, deixando sua esposa Olga Salanueva (Pénélope Cruz) e sua filha sem maiores explicações iniciais.
Ao dar início a uma nova trajetória em Miami, logo outros desertores cubanos como Juan Pablo Roque (Wagner Moura), chegam ao território norte-americano sob a premissa do exílio político e dão início ao auxílio no resgate de compatriotas que fogem do país em busca de liberdade.
Embora o título do filme já sirva como spoiler, somente depois de uns bons oitenta minutos ele revela vagamente como tudo fazia parte do plano da Rede Vespa, criada pelo governo de Fidel Castro, para monitorar a ação de organizações violentas responsáveis por ataques terroristas em pontos turísticos da ilha.
A ideia é abordar essa teia que foi tecida durante o período pós-Guerra Fria, quando espionagem e contra-espionagem eram descaradamente os principais motores desse tipo de monitoramento internacional.
O que parece ser pano pra manga de uma série inteirinha, acaba por se reduzir a uma obra desorganizada, obrigando o espectador a permanecer exaustivamente atento a detalhes que sequer existem, com medo de se perder no enredo.
Uma infinidade de contextos paralelos e pouco aprofundados são ligados pela péssima montagem que só serve para irritar o espectador. Embora haja algumas premissas interessantes em parte dessa relação entre Cuba e Estados Unidos, o diretor peca ao descontrolar a evolução do filme e permanece em cima de um muro que nos confunde com relação ao que foi registrado pelos livros de História.
O mais irônico é que isso tudo parece cansativo pelas duas horas, ao mesmo tempo em que soa curto pelo emaranhado de propostas. Apesar do elenco de peso, não houve espaço para o desenvolvimento das personagens, com menção honrosa à Penélope Cruz e Ana de Armas, ambas se destacando nas migalhas que o roteiro lhes proporcionam, em um contexto tosco de mulheres coitadinhas abandonadas pelos conjes. Não há português que traduza tamanho potencial jogado na lata do lixo.
É preciso pontuar, ainda, que a obra passa por diversos gêneros distintos sem causar muita empolgação em qualquer um deles. Não há quase nada de tensão, de ação, de drama, de suspense, mas há um pouco de tudo. Pau mole do início ao fim.
O fator atraente de Wasp Network: Rede de Espiões é a inegável qualidade visual ao recriar algumas paisagens paradisíacas usufruídas pelo turista em Havana, mas sem desfocar a posição de privilégios usurpados dos cubanos em seu dia a dia. A realidade pomposa de Miami também é visualmente sedutora.
No mais, aquilo tudo que não pode faltar: homens que colocam uma ideia turva de pátria acima da própria família, defesa do socialismo cubano regada a muita Piña Colada em Miami, ausência de limites na profusão do imperialismo americano, algumas toneladas de cocaína pra fazer caixa, slogan de liberdade através do medo e cena de Wagner Moura e Ana de Armas pelados.
Eu shippo esse casal.
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The Last Days of American Crime
1.7 97 Assista AgoraMe desculpe interromper o silêncio da sua viagem, mas precisamos conversar sobre um dos filmes mais constrangedores da história recente desta Terra plana. The Last Days of American Crime, que de tão ruim sequer foi traduzido para o português, é um novo longa da Netflix que parte de uma premissa distópica de ficção científica, com bastante cara de Black Mirror, e se afoga na tentativa frustrada de repetir a fórmula de sucesso desses filmes que passam na Tela Quente.
A história é ambientada em uma cidade situada na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, na semana em que o governo americano implantará nacionalmente a denominada “Iniciativa de Paz Americana”, que consiste na transmissão de um sinal capaz de interferir na mente da população através de chips, impedindo que as pessoas consumem qualquer espécie de conduta criminosa de maneira consciente. As controvérsias sobre o procedimento e o prazo iminente para a sua aplicação intensificam o estado de caos social e potencializam a tentativa de migração da população para o país vizinho.
O que não parece ser um pano de fundo ruim (inspirado pelo quadrinista Rick Remender, que teve a sua obra homônima adaptada), já para por aí sem qualquer aprofundamento sobre os processos neuroquímicos dessa medida revolucionária ou seus possíveis desdobramentos legais capazes de garantir a sua eficácia. O roteiro de Karl Gajdusek não faz a menor questão de explicar se todos os cidadãos estariam obrigados a implantar os chips ou se apenas os sujeitos fichados seriam controlados. O seu texto paupérrimo sequestra essa premissa para tentar justificar a vergonha alheia que viria pela frente.
Finalmente chegamos ao protagonista Graham Bricke (Edgar Ramírez), um criminoso de carreira, cheio de inimigos, cujo irmão mais novo supostamente teria acabado de cometer suicídio na cadeia. Mais uma vez o roteiro falha miseravelmente ao tentar construir o entediante Bricke como o anti-herói da trama. Vale destacar a atuação regular de Edgar Ramírez… Seu personagem tem uma única expressão ao longo das duas horas e meia de filme, seja encurralado pelos rivais, sendo espancado, sendo queimado, sendo fuzilado ou mesmo fodendo.
Quando o caminho do protagonista se cruza com o de Kevin Cash (Michael Pitt) e Shelby Dupree (Anna Brewster), o festival de bizarrices se multiplica. De uma hora para a outra, Bricke é informado sobre a morte de seu irmão, é abordado aleatoriamente por Shelby em um bar, os dois transam no banheiro, Kevin surge como companheiro de cela do falecido, apresenta Shelby como sua esposa e revela ter um último grande assalto planejado que permitirá que Bricke se vingue do sistema que arruinou a vida de seu irmão. Sim, isso tudo em uma cena.
Com a totalidade de zero argumentos minimamente bem elaborados, o casal convence Bricke a participar de um plano para roubar um bilhão de dólares (rs) e fugir para o Canadá antes que o sistema entrasse em pleno funcionamento. O resultado disso é uma trama atropelada, repleta daquelas sequências esdrúxulas em que alguém surge do nada para limpar os problemas, não há qualquer diálogo interessante e a grande disputa é pelo Oscar de personagem mais detestável.
O Kevin Cash de Michael Pitt mistura o pior cosplay de Travis Bickle (“Taxi Driver”), se inspira numa caricatura de Tony Montana (“Scarface”) e toma doses homeopáticas de Jesse Pinkman (“Breaking Bad”). O resultado é uma salada de clichês impedida de ultrapassar a gritaria e os péssimos bordões. A cereja do bolo é a cena durante aquela confraternização familiar. Gostaria que Mr. Quentin Tarantino pudesse tecer alguns comentários sobre um dos momentos mais patéticos que eu já pude assistir.
Mas a Shelby Dupree de Anna Brewster também não deixa a desejar. A personagem que deveria ser daquelas mulheres fatais, bandida enigmática e sedutora, é hostilizada por uma direção que mais parece a visão de um adolescente idiota sobre a contextualização de uma personagem feminina em um filme de ação. Alguém que figura exclusivamente para satisfazer vontades sexuais ou colocar tudo a perder. O seu papel como hacker especialista também não tem qualquer aprofundamento.
É preciso mencionar, ainda, uma espécie de subtrama envolvendo o policial William Sawyer (Sharlto Copley) que não tem absolutamente nem pé, nem cabeça. Nenhuma de suas motivações e paranoias são demonstradas. A única transmissão feita através de suas cenas é o seu amor pela profissão. Quando o seu caminho se cruza com o dos protagonistas, o obstáculo é simplesmente superado. Um desperdício de personagem que vai do nada ao porra nenhuma.
Quando tudo já estava mais do que perdido, me lembrei do que poderia salvar esse show de horrores e transformá-lo em mero entretenimento vazio (o que já estaria de excelente tamanho): a ação.
Meus amigos, parece implicância, mas cada corpo perfurado necessitava de uns mil tiros disparados. As sequências são picotadas, porém intermináveis. Tudo é extremamente cafona. A montagem é tão ou mais perdida que a direção. Eu juro por Deus que a minha capotagem na vida real foi dez vezes mais empolgante que as do filme.
E uma grande obra não poderia se despedir sem um grande desfecho:
quase todo mundo morto e um bilhão de dólares abandonados na caçamba de um caminhão.
Acho que nem o Choque de Cultura será capaz de salvar esse The Last Days of American Crime.
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Te Quiero, Imbécil
3.1 94"Te Quiero, Imbécil" é uma comédia romântica bem padrãozinha que narra o período da vida de Marcos (Quim Gutiérrez, uma espécie de primo hispânico do Fiuk) em que as suas relações mais sólidas começaram a ser esfaceladas de uma só vez. O protagonista é um trintão largado pela namorada, Ana (Alba Ribas), durante o jantar de noivado, que, no dia seguinte, é demitido do seu emprego. Vendo-se solteiro após oito anos de namoro, é obrigado a voltar a morar com os pais, sem ter a menor ideia de como se relacionar com as mulheres sendo “um homem do século XXI”, conforme repete ao longo filme.
Debruçando-se nos conselhos de seu amigo canastrão Diego (Alfonso Bassave), aquela clássica caricatura de comedor do século passado, e assistindo aos vídeos publicados pelo guru virtual Sebastián Vennet (Ernesto Alterio), em clara sátira à pandemia de influencers descartáveis que nos assola, o protagonista dá início a sua busca por adaptação ao mundo contemporâneo, entrando no universo dos aplicativos de relacionamento, repaginando o guarda-roupas e tendo cuidados estéticos que jamais havia tido.
Quando Raquel (Natalia Tena), sua antiga colega de escola, entra em cena, de uma hora para a outra, dando luz àquela mesma personagem de garota independente de tantos outros filmes do gênero, o roteiro tenta emplacar uma mensagem de autoconhecimento, reconectando o personagem principal ao seu passado e iniciando uma reconstrução da sua personalidade ao lado de Raquel, que representa o contraponto aos conselhos do macho alfa e do guru da internet, ao melhor estilo anjinho vs diabinho.
O roteiro de Abraham Sastre e Iván Bouso, dirigido por Laura Mañá, mira na crítica sobre relacionamentos tóxicos, na superficialidade da nossa sociedade hodierna e no revestimento machista que ainda não fomos capazes de superar, mas acerta em piadas banais que têm origem num sentimento enraizado de transfobia e homofobia, além de atolar as personagens femininas em torno de Marcos, desperdiçando os seus potenciais narrativos em meros gatilhos para as motivações do protagonista.
Muito por conta das fagulhas decorrentes da relação entre Marcos e Raquel, algumas cenas cômicas são acompanhadas pela voz do próprio protagonista se comunicando diretamente com o espectador, trazendo um humor atual que se beneficia do nosso cenário efêmero de relações casuais. Permitam-me cometer esta heresia, mas eu acabei sendo remetido à “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” de Woody Allenem algumas destas crises existenciais, e fui levado pelo carisma pontual de alguns contextos.
Como não sou consumidor assíduo de obras desse gênero, fico na dúvida sobre a relevância negativa de tantos clichês, da falta de aprofundamento sobre os personagens secundários e da entrega de todo o desenrolar da trama já no seu título (“Imbécil” é o termo “carinhoso” utilizado por Raquel desde o seu primeiro contato com Marcos).
De qualquer forma, a duração curta da obra me permitiu simpatizar com o filme e me desprender de maiores análises críticas, embora alguns comportamentos, discussões e posicionamentos dos personagens não devessem ter lugar em uma produção dirigida por uma “mulher do século XXI”.
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18 Presentes
3.6 100 Assista AgoraDo lugar de fala de um exímio desapreciador de trailers, confesso que 18 Presentes me aliviou pois não entrega exatamente o que a sua sinopse dramalhona propõem. A obra italiana dirigida por Francesco Amato, se inspira na história real de Elisa Girotto, uma mãe que descobre um tumor irreversível durante a gestação de sua primogênita, e decide deixar um presente para cada um dos seus aniversários até que ela atingisse a maioridade.
Através de um primeiro ato aparentemente afobado, o roteiro pincela alguns momentos da vida da pequena Anna (Benedetta Porcaroli, a mistura perfeita de Kristen Stewart com Bianca Bin), crescendo sob os cuidados de seu pai Alessio (Edoardo Leo), até alcançar os fatídicos 18 anos, momento no qual a sua rebeldia ao universo que lhe é imposto chega ao limite, fazendo com que ela recusasse o último presente da falecida mãe e saísse de casa sem rumo, tendo esta empreitada sido interrompida por um acidente em meio a fuga.
É sempre difícil retroceder a complexidade da realidade através de filmes inspirados em pessoas. Essa experiência se torna ainda mais complicada quando elementos surreais são inseridos na trajetória. À primeira vista, 18 Presentes culminaria, portanto, em mais um desses roteiros construídos especificamente para roubar lágrimas fáceis por nos envolver numa sequência de acontecimentos dolorosos e com apelo emocional.
Acontece que a direção opta por não mostrar imediatamente essa sequência dramática e insere um truque narrativo
que possibilita reunir mãe e filha em uma dimensão paralela, sendo a ânsia de Anna pela figura feminina da sua progenitora a grande base sobre a qual toda a obra se desenrolará.
A consequência disso é que o espectador interrompe a construção de pontes quando se torna evidente a impalpabilidade do contexto exposto. Dentro de tudo o que foi apresentado, essa é certamente a ferramenta menos convencional do filme, capaz de potencializar a originalidade e desviar a história do banal.
O tempo passa a ser manipulado e o impossível deixa de existir, proporcionando trocas orgânicas entre mãe e filha separadas há dezoito anos.
Se por um lado 18 Presentes não faz concessões aos clichês mais apelativos neste tipo de drama, há algumas metáforas visuais que ao serem embaladas por um trilha sonora até certo ponto intrometida, permitiram que a protagonista desfrutasse de uma personagem multifacetada com bastante coerência, injetando muita química nas cenas com a sua mãe Elisa (Vittoria Puccini).
Ainda que esteja longe de ser uma produção com um grau de criatividade marcante, não dá pra acusar 18 Presentes de ser um filme meramente descartável. O melodrama italiano nos faz torcer pelo surgimento de cenas independente do que fosse preciso para que elas acontecessem. Nesses momentos, os zoinhos se encheram d'água e o objetivo foi totalmente cumprido.
(18 Presentes estreou na NETFLIX neste final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Estranhos em Casa
2.7 202 Assista AgoraSeguindo com o nosso catálogo de títulos exaustivamente recriados em busca de um apelo comercial que nem sempre faz sentido, Estranhos em Casa, do francês Furie, segue a premissa do "baseado em fatos reais" para colar o nosso bumbum na cadeira. O filme nos conta sobre a saga de uma família que ao retornar de suas férias de verão, dois meses depois, se depara com a sua propriedade abruptamente usucapida pela babá de seu filho e o seu namorado.
Impedidos de retornar à sua própria residência por conta das inevitáveis ilusões burocráticas e brechas legais que permeariam o caso, a família composta por Paul (Adama Niane), Chloé (Stéphane Caillard) e seu filho Louise (Matthieu Kacou), não teve alternativa a não ser permanecer alocada em seu motorhome até que a batalha judicial fosse solucionada.
O roteiro evolui basicamente em torno de Paul, um professor de história, preto, que aparenta ser blindado por um verniz de civilidade que potencialmente será rompido diante de uma instabilidade emocional acumulada. Conforme a alcunha de "preto por fora e branco por dentro" vai sendo destilada em contextos velados, as até então homeopáticas doses de fúria acabam sendo concentradas de modo a fazer com que o protagonista questione os seus valores colocados em conflito.
A discussão central sobre a posse da casa, acaba se tornando apenas mais um detonador capaz de levar o protagonista ao encontro do seu lado mais obscuro. Quando Mickey (Paul Hami), o canastrão proprietário do parque de trailers, começa a forçar uma aproximação com Paul, os seus verdadeiros demônios começam a ser aflorados e o filme nos direciona a reflexões mais complexas que vão de masculinidade tóxica, virilidade e monogamia, até mesmo a herança do racismo estrutural e as relações de privilégio.
Com o contínuo looping do personagem principal em suas próprias emoções, incitado pelo maniqueísmo representado pela personalidade de Mickey, acumulamos uma quantidade bem considerável de tensão. Quando uma antiga relação jovial entre Chloé e Mickey fica escancarada (sem maiores explorações), o roteiro é competente e consegue angustiar ainda mais do que propôs inicialmente.
Como desde os primeiros segundos o filme busca nos convencer de que teremos que lidar com a violência e os seu desdobramentos, o diretor Olivier Abbou quase não nos confunde, o que pode ser analisado como um aspecto ruim da obra. Essa ponte entre pavio e explosão não é particularmente harmoniosa e, de uma hora para a outra, somos testemunhas forçadas da carnificina.
Por outro lado, assim como em outras produções francesas, essa violência é filmada de maneira crua e sem maiores firulas, surgindo muito mais grosseiramente do que na maioria dos blockbusters de baixa qualidade no gênero. Se a evolução deixa a desejar, a intensidade pode ter sido compensatória.
Estranhos em Casa é totalmente baseado na observação de comportamentos, o que tende a nutrir relevância às performances principais. Nesse aspecto, a fotografia de Laurent Tangy consegue fornecer ao espectador as camadas que o filme conquista de maneira gradativa, traduzindo em sua iluminação a corda bamba entre o lado racionalizado e o lado primitivo dos protagonistas. O charme fica por conta da construção de suspense advinda da manutenção de todos os elementos típicos da categoria e aqueles que só fazem sentido exatamente nesse contexto.
Depois de todo o caos, foi interessante perceber a metáfora montada em cima dos caçadores de porcos, partindo dessa para uma melhor, ironicamente, como meros porcos assassinados, ressignificando as duas maiores etapas do filme
Ah, e como se trata de um filminho francês, antes das letrinhas subirem ainda há tempo para uma foda indie, com direito a orgasmo e refrão em sincronia. Isso que é terror psicológico!
(Estranhos em Casa estreou na NETFLIX neste final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
O Silêncio do Pântano
2.1 61 Assista AgoraComo não foi possível mergulhar de cabeça naquela lama e aspirar toda a água necessária para que os meus pulmões parassem de funcionar e me livrassem de vez desta tortura, sigo vivo, com menos uma hora e meia de vida, disposto a tentar colocar em palavras o que foi O Silêncio do Pântano, a mais nova tentativa frustrada de thriller da Netflix.
O personagem central da trama, identificado apenas como Q. (Pedro Alonso, o hypado Berlim de La Casa de Papel), é um misterioso romancista do crime que ao imergir em sua obra mais recente com base em um complexo esquema de corrupção e lavagem de dinheiro, nos dá a entender que os assassinatos ocorridos no livro, na realidade, são homicídios cometidos pelo próprio autor, sendo esta a inovadora sacada do filme.
Em um dos momentos iniciais, Q. é abordado por uma leitora durante uma sessão de autógrafos e é questionado sobre o por quê de seu personagem matar as pessoas e quais são as suas verdadeiras motivações por trás de cada morte. A resposta é curta e grossa: "Porque ele pode".
Mastigada a dupla jornada do personagem, o roteiro falha miseravelmente ao tentar brincar com essa linha tênue entre realidade e ficção, através de meios de execução pavorosos. Desde o primeiro crime não há qualquer estímulo ao interesse do espectador. A culpa é toda do ritmo da narrativa. A sensação é a mesma de assistir a um episódio aleatório de uma série muito ruim. Quase nada se conecta. Os personagens surgem e somem à esmo. O pano de fundo do esquema de corrupção não tem qualquer aprofundamento.
Quando a lista de vítimas de Q. se volta para um dos corruptos do alto escalão do governo espanhol, o protagonista se vê perseguido por uma operação lava-jato da vida, cuspida no meio da história na esperança de servir como ponte para um longo cardápio de metáforas banais com o pântano, o lodo e as abelhas, moscas, mosquitos ou seja lá quem for o dono daqueles zumbidos.
Em dado momento, a direção manipula as nossas sensações como se nos últimos instantes do filme algo fosse ser desmembrado ou desvendado. Há um festival de planos longos que em nada ajudam na narrativa ou sequer na construção estética. Cada ambiente, cada corte parece receber uma importância que não tem qualquer fundamento.
Pra fechar com chave de ouro, a cena final é a mais manjada possível.
O barulho da impressora funcionando é o último sussurro desesperado do diretor Marc Vigil implorando para que você se contente com a discussão realidade vs ficção, dentro da exaustiva premissa do "ele estava narrando a história ou isso tudo aconteceu de verdade?"
O filme mira em uma proposta e acerta na nossa cabeça. Até as críticas sociais potencialmente apreciáveis são jogadas dentro da privada.
Sabe aquela época de colégio em que você chegava para a aula de 07:30h e descobria que esqueceu de fazer o dever de casa da aula de 08:30h? Então, o título do trabalho que deu para ser entregue é O Silêncio do Pântano.
(O Silêncio do Pântano estreou na NETFLIX nessa semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Sérgio
3.2 222Batizar um filme como homônimo de alguma personalidade que tenha atingido um nível elevado de notoriedade vai ser sempre uma tarefa complexa e tenderá a uma série de insatisfações. Sergio, ao contrário do que tenta sugerir a publicidade da Netflix, está longe de se tratar de uma cinebiografia do primeiro diplomata brasileiro a atingir o alto escalão da Organização das Nações Unidas.
Com uma tara inexplicável por flashbacks nitidamente exagerados, em meio às trágicas consequências de um atentado terrorista realizado pela Al-Qaeda na sede da ONU em Bagdá, em meados do ano de 2003, o diretor Greg Barker (que já dirigira o bom documentário sobre o personagem anos antes) nos insere nos momentos finais da vida do diplomata Sergio Vieira de Mello (Wagner Moura), ao lado de seu colega Gil Loescher (Brian F. O’Byrne), então soterrados pelo monte de concreto retorcido, enquanto dois bombeiros americanos lutam de maneira infrutífera pela sua retirada dos escombros, dando ao protagonista duas horas de reflexão sobre alguns episódios de uma vida inteira dedicada aos direitos humanos no cenário internacional.
Conforme spoiler dado pelo Jornal Nacional de 19 de agosto de 2003, apenas cinco dias após a criação da Missão de Assistência das Nações Unidas no Iraque, um homem-bomba solitário explodiu um caminhão no terreno do Canal Hotel de Bagdá, ferindo centenas de pessoas, matando duas dezenas delas e alterando os rumos da diplomacia mundial.
Partindo desta premissa, podemos dividir Sergio em três atos: a viagem inicial do diplomata ao Iraque, seu amor à primeira vista por Carolina (Ana de Armas) e a tentativa final de resgate. Sergio e Gil chegam ao Iraque após a conveniente invasão americana, buscando acalmar os ânimos da população e estabelecer eleições democráticas, pincelando uma visão geral da série de violações humanitárias cometidas pelos Estados Unidos à época.
Assim que somos apresentados a Paul Bremer (Bradley Whitford), líder da invasão americana, a postura combativa do protagonista nos sugere uma atmosfera de cabo de guerra entre idealismo e pragmatismo político dentro de um cenário de ocupação. No entanto, quando o roteiro simplesmente coloca o personagem interpretado por Whitford para escanteio, a qualidade dramática da narrativa evapora.
Embora seja provável que a grande maioria dos espectadores não esteja por dentro dos desdobramentos da atuação de Vieira de Mello no cenário global, os primeiros minutos de Sergio oferecem elementos mais do que suficientes para que nos interessemos pelas nuances de sua história de vida. É exatamente pelo surgimento desta expectativa que a frustração começa a contaminar a evolução do roteiro.
Por que os objetivos de um humanista assassinado em missão de paz não são suficientemente interessantes para liderar um contexto narrativo de quase duas horas? Por que o impacto do atentado e a morte de Vieira de Mello se reduz a um epílogo? Por que poupar as peças mais importantes? Por que tantos vícios em cenas novelescas e puramente estéticas?
Wagner Moura, à sombra de Capitão Nascimento e Pablo Emilio Escobar Gaviria, se salvou ao destilar alguma potência de uma história desamarrada que mais parece preocupada em se negar a pintar o seu personagem como santo, mas também tem medo de expor os seus próprios demônios. A química instantânea de Wagner Moura e Ana de Armas, ao eclodir de uma paixão três anos antes em missão no Timor Leste, é suficiente para manter interessantes as cenas mais expositivas, embora escancarem os problemas inerentes à característica mais prejudicada do roteiro, que é justamente o fato de utilizar uma história de amor com prazo de validade praticamente como único pano de fundo de uma biografia. Até as relações familiares mais profundas do protagonista são inseridas de forma destrambelhada. A falta de criatividade chega a ser constrangedora.
Como se não bastasse, Carolina passa todo o seu tempo em cena instigando diálogos que tirassem Sergio de sua zona de conforto. Embora ela também possuísse algum protagonismo em sua atuação na ONU, o roteiro jamais incutiu profundidade em sua personagem, sendo uma mera alegoria da personalidade do protagonista até os seus momentos finais.
Enfim, entre pedidos de socorro em Bagdá e beijos na chuva no Timor leste, Sergio finge contar uma história que eu finjo saber qual é. O lado bom é que os críticos do sotaque do Wagner Moura, desta vez, vão ter mais sarna pra se coçar. Sobrou até para o povo iraquiano, como sempre, responsabilizado por uma política de segurança americana calcada no extermínio
(Sergio estreou na NETFLIX nesse final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
Tigertail
3.6 47 Assista AgoraNapoleonizações do cinema asiático à parte, a trama de Tigertail, que se inspira na história pessoal do seu diretor Alan Yang, percorre três camadas da vida de Pin-Jui (Tzi Ma, Hong-Chi Lee e Zhi-Hao Yang) através de flashbacks pouco lineares sobre a personalidade de uma criança desolada, um jovem reticente e um adulto resignado.
O roteiro, que muito se baseia na máxima choraniana “cada escolha, uma renúncia, isso é a vida”, constrói a potência do seu protagonista através dos seus relacionamentos com as mulheres preponderantes em sua história: sua mãe, seu grande amor jovial, sua esposa arranjada e sua primogênita.
Conforme anda a carruagem, as inconciliáveis versões de Pin-Jui vão sendo reveladas na medida em que o interesse do jovem taiwanês em viver o American Dream se torna mais evidente. Quando resolve encarar a sua maior ambição de maneira pragmática, ele abre mão de sua maior paixão, Yuan (Yo-Hsing Fang), e concorda em se casar com a filha de seu chefe, Zhenzhen (Kunjue Li), em troca da oportunidade de se mudar para os Estados Unidos.
Entre a desolação taiwanesa e o desmoronamento do nem tão meritocrático sonho americano, Tigertail é o retrato angustiante de um homem que nunca foi capaz de cruzar com a própria sorte e romper as barreiras da sua inconsistência emocional, estando esgotado de carregar o peso da sua própria cruz. À medida em que mofa em uma quitanda enquanto a sua esposa grávida chega ao limite inevitável de uma rotina de abandono, Ping Jui se torna um marido exigente e desprovido de empatia, fadando o rumo das suas relações familiares ao fracasso.
Com o protagonista mais velho, divorciado e introspectivo, o filme nos transporta para uma previsível tentativa de aproximação entre pai e filha, preparando uma atmosfera de nebulosidade sob a personalidade da já adulta Angela. Quando esse processo se inicia, o diretor de fotografia, Nigel Bluck, é esplêndido ao conectar o idealismo das memórias de Ping Jui a sua natureza atual adepta a auto sabotagem. O maior patrimônio do filme passa justamente pelos melancólicos planos naturais até as cenas interpretadas pelo excelente Tzi Ma, sozinho, transmitindo a luta interior de seu personagem através de uma poderosa linguagem corporal.
Se for necessário sintetizar as qualidades de Tigertail em uma só cena, não há como ser diferente. A composição quadro a quadro nos últimos instantes da curta obra, desemboca em um homem eternamente vinculado ao seu passado, mas que consegue dar uma trégua às suas próprias imperfeições. Diante do que se foi. Ao lado do que lhe resta.
(Eu publiquei essa e outras críticas no site: metafictions . com)
Maska
3.1 2Com o surgimento do verbo quarentenar em nosso cotidiano, o indiano Maska, do diretor Niraaj Udhwani, surge como um prato cheio aos adeptos daquele filminho de Sessão da Tarde que a princípio não fede nem cheira, mas arranca uns sorrisinhos e traça paralelos bem sutis entre as mais variadas relações de afeto e os sonhos e anseios de um jovem protagonista.
Passado em Mumbai, o roteiro conta a história de uma família Parsi, um grupo étnico-religioso com origem iraniana, responsável pela administração de um tradicional café que ao longo dos últimos noventa e nove anos se tornou o maior legado daquela família de imigrantes. Maska leva o título da fatia de pão amanteigado servido no estabelecimento e tido como o carro chefe em praticamente todos os cafés da manhã e lanches da tarde servidos ao seu público fiel.
Diana (Manisha Koirala) dirige o café, símbolo máximo de sua família há algumas gerações, e espera que o seu filho Rumi (Prit Kamani), de 19 anos, assuma os negócios. Ela só não esperava que o seu primogênito vencesse, inexplicavelmente, um concurso de beleza local, criando outras expectativas com relação ao seu futuro próximo. A partir daquele momento, Rumi se matricula em cursos de teatro e se apaixona instantaneamente por uma de suas colegas de grupo, Mallika (Nikta Dutta).
Embora a evolução do roteiro nos dê razões óbvias pelas quais o protagonista não atingirá o tão sonhado estrelato, encorajado pela namorada e aficionado pela possibilidade de se tornar um ator de sucesso, Rumi se depara com um produtor cinematográfico que lhe oferece o papel principal de sua próxima produção caso ele arrecadasse uma alta quantia de dinheiro para o financiamento do filme. Eis que o Rustom Cafe entra na reta.
Disposto a encerrar as atividades do seu negócio de família para poder prosseguir em busca do seu maior sonho pessoal, Rumi acaba conhecendo Persis (Shirley Setia), uma jovem escritora que está trabalhando em um livro sobre as mais diversas histórias de vida retratadas nas mesas de café dos principais restaurantes iranianos de Mumbai. É evidente que o cupido flecharia o coração dos dois pombinhos enquanto Persis tentava fazer com que o rapaz entendesse que a conexão entre lembranças felizes e lugares que resistem ao tempo são mais fortes do que ele imagina.
Maska conta aquele tipo de história que não precisa de um alerta de spoiler. Praticamente todos os elementos nos foram entregues em outros filmes desse mesmo estilo e não há muito para onde correr. A dinâmica mais parece uma propaganda de margarina estendida por quase duas horas, com a mensagem principal discriminada em times new roman fonte 6 no avesso da embalagem.
Não há absolutamente nada de novo. Embora Bollywood, nome que surge através da fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai) e Hollywood, não seja atrativa para todos os gostos, no quesito comédia romântica podemos considerar que Maska cumpre com o objetivo e atinge uma nota mediana, afinal de contas, há gosto pra tudo.
(Maska estreou na NETFLIX nesse final de semana. Veja o que achamos! #metafictions . com)
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraNesses tempos em que o coronga é apenas mais uma bolacha do pacote de desgraças cotidianas que nos assola, "El Hoyo", do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, surge como uma potente caricatura da nossa estrutura de sociedade fadada ao fracasso, ao desmascarar de uma faceta que nem todo espelho é capaz de refletir: o lado mais selvagem do ser humano.
O grande protagonista do filme, o poço vertical, é utilizado de maneira alegórica nesta distopia social representada em três níveis. Os de cima. Os de baixo. E os que caem.
Conforme a falácia da solidariedade espontânea vai sendo desmitificada, cada variação da plataforma parece potencializar o poder de autodestruição gerado por um sistema dominado pela produção e consumo exacerbado, onde os do topo estão pouco se fudendo para os de baixo, mas quando a roda gira, vale tudo para sobreviver. É a luz vermelha avisando que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
A estrutura do roteiro é convidativa pois coloca o personagem central "Goreng" e o espectador transitando juntos pelos mais distintos níveis, sem maiores explicações sobre os pormenores alheios ao poço. Durante essa montanha russa, é possível traçar diferentes estratégias para que se altere a configuração de um mecanismo entranhado no egoísmo legitimado pela postura dos que estão momentaneamente por cima.
O clássico coração acelerado do terror, a repulsa sintomática do horror e o breguíssimo sangue espirrando do gore de outrora, são elementos trazidos para ratificar a vulnerabilidade de cada personagem, todos exaustos demais para questionar as regras do jogo.
Por conta de uma enxurrada de simbolismos, do clima uníssono de tensão e da evolução da história sem maiores presepadas, "O Poço" vale uma hora e meia. Embora algumas lacunas tenham ficado abertas e o desejo por respostas seja inevitável, você que assistiu ao filme, mais do que ninguém, deveria saber que comida mastigada é menos gostosa. O desfecho não é entregue de mão beijada. Superemos.
E Antes do ponto final, é sempre bom transformar um spoiler em imaginação: se dividirmos o número da besta por duas pessoas, em que andar chegamos?
Klaus
4.3 610 Assista Agora"Gentileza gera gentileza" é brega mas nunca sai de moda. Fofíssima a forma original como foram introduzindo os elementos que todos nós já conhecemos sobre o Papai Noel, a fábrica, o trenó, as renas, os presentes, os duendes... A menininha da Lapônia me lembrou muito o Stitch. <3
Honeyland
4.1 153Já ouvi em algum desses programas do Discovery que se um dia as abelhas deixarem de existir, a humanidade entrará em colapso. Nessa produção poética demais para documentário e crua demais para ficção, acompanhamos a harmoniosa relação entre a apicultora Hatidze e a natureza.
A protagonista, cuja dedicação à mãe idosa apenas é rivalizada com o modo como trata o seu apiário, alimenta-se do mínimo possível e tem o "luxo" representado pela tintura capilar e pelo leque com que abana a mãe, até que tem a rotina abalada com a chegada de uma família nômade.
Embora não fique perfeitamente claro se os indesejosos vizinhos tenham agido de maneira maldosa, a família interfere decisivamente no contexto onde a personagem está inserida, criando contornos de concorrência entre um meio de sustentabilidade e um de exploração desenfreada.
Como não há depoimentos para a câmera, narrações em off ou imagens de arquivo, o documentário cria a sua própria identidade através de uma montagem perfeita e fotografia maravilhosa. Ficou fácil perceber os ecos da obra no mundo de hoje.
"Metade para elas, metade para mim."
1917
4.2 1,8K Assista AgoraO plano sequencial do filme é a coisa mais bem feita que eu pude assistir nos últimos tempos. Se a câmera de "Birdman" muito me agradou, em "1917" a dificuldade é multiplicada e os cortes quase que imperceptíveis são a cereja do bolo. Os ensaios devem ter sido surreais.
O espetáculo nos quesitos técnicos é tão grande que conseguiu me transportar para o que poderia ser apenas mais um desses exaustivos roteiros americanos de campo de batalha. Pelo contrário. A angústia não é exagerada e a história é percorrida quase como se fosse um jogo de videogame.
A parte blasé foi pulverizada pela força da edição e da montagem. O que também me agradou foi a naturalidade da ascensão do coadjuvante a protagonista, passando pelas ótimas atuações principais. A fotografia é esplendorosa e o som numa sala Xplus faz a diferença. Vai levar tudo!
A ressalva que fica são os vários momentos monótonos com diálogos pra encher linguiça enquanto o telespectador vai sendo distraído até a próxima explosão. Ao melhor estilo susto em filme de demônio. O roteiro também poderia ter sido mais criativo na hora de matar os soldados.
Cinema, Aspirinas e Urubus
3.9 364 Assista AgoraFilme de pé na estrada narrado sob a ótica de uma amizade nada convencional. A ambientação desértica contribui para a sensação de isolamento e marasmo que se opõe à realidade distante da guerra. É como se o sertão nordestino fosse o mundo.
A ingenuidade de Ranulpho é a cara do povo brasileiro. Contada com muita sinceridade, a história encanta mais pelas pessoas que encontramos durante o caminho do que pela viagem em si. Kleber Mendonça que me perdoe mas a parte boa de Bacurau vem das referências desse filme, rs.
- Que foi?
- Nada não... É que esse filme é tão triste.
- Triste? Eu acho feliz.
- É feliz, mas é triste. A gente começa a pensar na vida e a pensar na vida da gente. Uma vida que devia ser assim: buscar a felicidade e mais nada. Cada vez que a gente procura acontece algo errado.
As Golpistas
3.5 538 Assista AgoraMe perdoem mas o mais inacreditável do filme é a Jennifer Lopez ter 50 anos. Todos hipnotizados naquela bunda. Pole dance ao som de Fiona Apple, pqp. "This city, this country, is a strip club. You've got people tossing the money, and people doing the dance."