O ESCÂNDALO, novo filme de Jay Roach, aborda o processo pelo qual passou o ex-presidente e chefe executivo da FOX News, Roger Ailes, quando denunciado por assédio sexual pelas suas funcionárias. Tendo vencido o Oscar de melhor maquiagem e penteados, o filme é dinâmico e conta uma das principais histórias contemporâneas sobre práticas abusivas por um homem com poder – trata-se, também, de um dos casos que reavivou o movimento #MeToo nos Estados Unidos, e que mais tarde culminaria na prisão de outro magnata abusador, de nome Harvey Weinstein... O longa, em si, parece ter pouco fôlego e a necessidade de correr com todos os detalhes incomoda bastante. São personagens demais, há pouco tempo para processá-los e acaba se saindo muito rápido para o peso de seu tema, que precisa de uma delicadeza na abordagem que é posta de lado em favor de uma edição mais ágil e frenética, quase saltando capítulos sem dar espaço para respirar. Para além disso, o trio “bombshell blonde” formado por Kidman, Theron e Robbie não representa a atuação de peso que as três individualmente já apresentaram – como se o grupo não tivesse química junto, ou a direção das atrizes tenha sido pouco proveitosa. No mais, é aquele tipo de filme que você vê uma vez só. É relevante por contar um momento importante na história do feminismo contemporâneo, mesmo que às vezes pareça mal debatido aqui. Na média, ainda que seja intenso.
“Megyn Kelly: Se eu aprendi alguma coisa este ano, foi não se estender numa briga com alguém que tem uma razão melhor que você para fazê-lo.”
Um filme anti-herói que acaba se saindo melhor que muitos filmes de heróis por aí... MEGAMENTE, produção da DreamWorks dirigida por Tom McGrath (o mesmo responsável pela trilogia “Madagascar”), é outro dos exemplos pelos quais o estúdio de animação é o melhor de seu ramo em termos de comédia. O filme, que no original tem seus protagonistas dublados por Will Ferrell e Brad Pitt, se distancia de uma narrativa “comum” da dualidade super-herói/super-vilão e entra numa reflexão mais profunda, nunca antes vista, sobre a importância de escolher quem a gente é. Metro Man e MegaMente são os lados opostos de uma histórica batalha – a batalha do bem contra o mal. Porém, o filme sobre o seu adversário não é comum, uma vez que aborda explicitamente esta tomada de decisão: quem eu sou, afinal? MegaMente, depois de ser confrontado com uma situação atípica para os super-vilões, passa a precisar de uma companhia para se relacionar – o “eu” se constituindo em relação ao “outro”, como tantas vezes disse Lacan... É nisso que MEGAMENTE atinge seus maiores êxitos; ao fazer o vilão rever suas atitudes, e com isso repensar quem ele foi e quem deseja ser, o longa dá a ele uma chance de se reinventar, começar do zero, ser alguma outra coisa que não o “antagonista” de seu clássico combate. Com o desequilíbrio narrativo que esta decisão provoca, o filme não será mais o mesmo, e da metade para o final, o que regerá será a mudança, e para um lugar inesperado, mas muito, muito bonito... É uma grata surpresa. Vale a pipoca. Assista!
“Megamente: Interessante. Acho que o destino não é o caminho escolhido para nós, mas o caminho que nós escolhemos para nós mesmos.”
A coisa mais graciosa sobre este filme é como o tempo, que passou, tornou algumas “rebeldias” educadas, e algumas obediências bastante “rebeldes”. CURTINDO A VIDA ADOIDADO é um clássico da comédia estadunidense, estrelado pelo ironicamente desconhecido Matthew Broderick, e que tem sido um sucesso com todas as gerações que o assistiram. O filme, pertencente à trilogia da juventude americana de John Hughes, aborda um dia na vida de Ferris Bueller, um rapaz tido como vagabundo pelo colégio, mas santo pelos pais. O longa acompanha o dia de folga que Bueller decide tirar por estar “de saco cheio da escola”, e o seu resultado é maravilhoso pra dizer o mínimo... Quem lê o título hoje, ao encontrar esse adjetivo “adoidado”, pode pensar que o filme aborda toda uma relação com as drogas, sinestesias ou coisas do tipo, mas a “rebeldia” de Bueller passa longe disso: ele reivindica uma diversão quase “antiga”, associada à velhice: ir a um museu, assistir a um desfile e passear de carro por Chicago. Junto de seu melhor amigo Cameron e sua namorada Sloane, Bueller se diverte como o jovem que ele é e quer se manter sendo, porque “se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perder de vista a vida”. Os elogios são pouco para o que este filme faz com o nosso coração. Mesmo que por vezes soe datado, e precisemos abstrair algumas falas aqui e ali, o longa ainda hoje se sai muito bem, seja como comédia ou o como um retrato da juventude que cresceu e ganhou os anos 80, e que hoje assiste a ele com sua família – ou solitariamente, da maneira que a gente quiser. É uma graça – assista sem pensar duas vezes!
“Cameron: Eu não sei o que vou fazer. Sloane: Faculdade. Cameron: Sim, mas fazer o quê? Sloane: Você tem interesse em quê? Cameron: Nada. Sloane: Eu também não!”
É, definitivamente, um dos nossos marcos culturais. A notável diretora brasileira Laís Bodanzky inicia sua carreira em longa com um filme poético, visceral e disruptivo no melhor sentido possível: BICHO DE SETE CABEÇAS, estrelado por um já experiente Rodrigo Santoro, marca um momento no cinema novo do Brasil e segue vivo, atual e principalmente atuante na questão da luta antimanicomial que ocorria então – e ocorre até hoje. Recheado de preciosidades poético-musicais de Arnaldo Antunes, e contando com desempenhos fora da curva de Santoro e restante do elenco, o filme de Bodanzky elege o lado humano e nele firma suas mais fortes bases. Denunciando os abusos denunciados no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, BICHO... ainda questiona, por exemplo, quem é que decide “quem é louco e quem não é”. O fato é que o encarceramento e o punitivismo, presentes nas práticas manicomiais, foram e ainda são uma realidade em alguns lugares do país, a despeito da aprovação da Lei Antimanicomial de 2001. O depoimento de Austregésilo, por isso mesmo, se apresenta até hoje como uma voz contrária à desumanização, que por tanto tempo vitimou os ditos “loucos” do nosso país. É ainda importante ressaltar a importância que este filme tem para o tema que ele aborda; a Lei da Reforma Psiquiátrica só seria aprovada em abril de 2001, o que significa que foi durante a sua produção. Laís Bodanzky produziu-o numa época em que o manicômio ainda era uma alternativa legal no Brasil, prevista por lei e respaldada por toda uma cultura normativa, e que a tornou o grande recurso no que tange a postura do Estado perante a Loucura. Falar mais é chover no molhado – assista. Assista sem receios.
“Interno Jornalista: É preciso fingir. Quem é que não finge nesse mundo, quem? É preciso dizer que tá bem-disposto, é preciso dizer que não tá com fome, que não tá com dor de dente, que não tá com medo. Senão não dá, não dá. Nenhum médico jamais me disse que a fome e a pobreza podem levar a um distúrbio mental, mas quem não come fica nervoso, quem não come e vê seus parentes sem comer pode chegar à loucura. Um desgosto pode levar à loucura, uma morte na família, o abandono do grande amor. A gente até precisa fingir que é louco sendo louco. Fingir que é poeta, sendo poeta. Vai até ali e leia...”
HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO, longa de estreia de Daniel Ribeiro, conta a história de Leonardo, um estudante de uma escola particular que passa pelas descobertas de sua adolescência. O filme, resultado de uma experiência em curta-metragem do diretor, busca retratar o cotidiano de uma pessoa com cegueira que se apaixona por um colega novo da escola, embora muito do que vejamos seja, na verdade, todas as coisas que não sejam isso. Há, neste filme, inúmeras decisões que denotam uma dificuldade em explicitar que este é, sim, um romance LGBT+. A impressão é a de que o filme tem “medo” de se assumir gay, então acaba desviando o foco de seu objetivo, e o que vemos é um compilado de cenas que não são interessantes para a trama central. Para além de gay, aliás, trata-se de um dos primeiros romances em que temos uma pessoa com deficiência e uma pessoa sem, e que infelizmente fica morno demais, perdendo o fôlego cedo e retratando uma realidade muito específica (e por isso mesmo "pouco brasileira”, se dá para falar assim). Problemática comum a vários longas de temática inclusiva/LGBT+: não há profundidade, não há filosofia ou uma real reflexão sobre a relação, a maneira como ela se dá, ou como as pessoas vão para frente com ela. Neste caso, as atuações são fracas e falta ao protagonista um carisma que ele não parece ter a consciência de precisar. No fim das contas, uma das principais características sobre Leonardo é desimportante para a trama, e o enredo quase não leva a lugar nenhum. Além de retratar uma juventude norte-americana clichê (e irreal aqui), o longa não prende em nenhum momento, e só segue morno do início ao fim. Não indico.
“Leonardo: Imagina que legal você ir pra um lugar onde ninguém te conhece? Ninguém sabe quem você é, sabe? Você pode inventar uma personalidade nova se quiser.”
O polêmico diretor de cinema alternativo Harmony Korine, underground dos anos 90, retorna às telonas após o estrondoso sucesso de “Spring Breakers”. THE BEACH BUM, sua sexta instalação em longa-metragem, toca em temas recorrentes na sua obra, hoje ‘tolerada’ pela crítica e ‘quase ignorada’ pelo grande público. Do desgaste humano em “Gummo” até o desmantelamento do Sonho Americano em “Trash Humpers”, Korine apresenta um trabalho com menos fôlego que seus antecessores, e que vem para tecer comentários que ele mesmo já fez (melhor) em outras ocasiões. THE BEACH BUM conta a história de um poeta boêmio e errante (Hemingway? Bukowski? Vinicius de Moraes?) que vê sua vida virar do avesso após perder um importante elo financeiro. A partir de sua queda monumental até seu (incerto) retorno ao topo, somos presenteados com largos comentários sobre o protagonismo de um personagem egoísta, improdutivo e narcisista na sociedade norte-americana. A ironia, como se vai percebendo, é que todos à sua volta amam seus poemas e querem vê-lo de volta ao topo – e poucos questionam, por exemplo, seus preconceitos e sua vida “regrada e voltada para si”. Quando Korine escreve sobre um homem cujo trabalho é amado apesar de ser ele, em essência, o próprio lixo, dá para pensar em muita gente, e em especial no presidente Donald Trump. Não poucas vezes o artista abordou a branquitude americana (em “Gummo” e “Spring Breakers” por exemplo) idolatrando o lixo – chegando inclusive a fornicar com ele. Diz muito sobre uma cultura misógina, racista e retrógrada que o “white trash” seja de tanto agrado, mesmo em sua plena decadência. Aliás, decadência esta que é uma chave para seus filmes, permitindo perceber de que maneira o estadunidense médio aplaude ao show de horrores que é a existência de um ser mesquinho como Moondog, e todo o absurdo que ele de fato representa. Entretanto, este longa não vai muito mais longe que isso. Sendo o filme menos suportável de Korine, tanto em como se arrasta quanto em como é montado, THE BEACH BUM figura entre os menos importantes discursos que o diretor fez, pelo menos nesta década. Entre este e seu antecessor, prefira “Spring Breakers” - não vai se arrepender. Este aqui não rolou.
“Moondog: ‘Na noite passada / Quando fui dormir em Havana / Estava pensando em você / Estava pensando em você. / E acordei às 4 horas / Tive que dar uma mijada / E como os caras fazem / Olhei para o meu pinto / E senti tanta afeição / No coração quando o fiz, / Saber que ele estivera dentro de você / Duas vezes hoje / Me fez sentir lindo’.”
Um monumental documentário sobre a importância da identidade. “Matangi / Maya / M.I.A.”, longa de estreia de Steve Loveridge, abre as portas para que conheçamos a polêmica porém misteriosa M.I.A., artista que mobilizou, nas últimas duas décadas, debates importantíssimos sobre o Sri Lanka e a sua cultura. Tendo sido chamada muitas vezes de “apologista ao terrorismo” e reduzida a adjetivos esdrúxulos na televisão norte-americana, a cantora tem, aqui, um retrato muito mais fiel de sua identidade como ativista, musicista e mulher nascida no Sri Lanka da guerra civil. Embora a própria Maya não tenha gostado deste filme, alegando sua pessoalidade exacerbada, é inegável que o longa de Loveridge, amigo com quem ela estudou em Londres, oferta muitas respostas a seu respeito. Da drum machine em que ela criou os beats do seminal “Arular” a suas primeiras apresentações ao vivo, do processo de gravação à consequente turnê mundial do álbum “Kala”, são vários os pontos altos que o doc apresenta, indo além da sua expressão artística e buscando, através da montagem de cenas íntimas com sua família, talvez a pintura mais humana que se poderia obter de uma celebridade como ela. As críticas à Madonna, à indústria do entretenimento e ao governo estadunidense são cerejas no bolo político-social que Maya representa. Sua lucidez flui com naturalidade, como qualquer pessoa que tenha pelo menos uma vez repensado seus ídolos e objetivos de vida. A cantora, hoje muito mais madura, vê-se a um espelho de si, de quem foi nos últimos vinte anos, e diante do que virá a seguir. Serão novos desafios, novas fronteiras, novos (e antigos) preconceitos – que, quem sabe, possam ser mais uma vez alertados através de sua música, sempre viva, de uma verve sempre atualizadora do panorama da Era da Informação. Vale muito a pena!
“MAYA: Sabe, há muitas pessoas que podem empatizar com o que é ter um pai que virou um banqueiro, um advogado, um juiz, qualquer merda. E isso é o que aconteceu com uma criança cujo pai virou um terrorista. Isso é sobre como isso fodeu a família. Sobre como isso fodeu as pessoas. Sobre como isso fodeu o país.”
Apaixonante! O drama de sucesso (e hoje um clássico) “Tomates Verdes Fritos” é uma viagem linda. Assinado por Jon Avnet, o longa conta a história da improvável amizade entre Evelyn, uma dona de casa reprimida e profundamente triste, e Ninny, uma senhora de 83 anos que vive num hospital, sem visitas, mas que ama contar histórias... A trama segue os encontros e reencontros das duas, e fala sobre como uma amizade pode efetivamente causar uma mudança na vida de alguém. Evelyn, vivida pela fantástica Kathy Bates, nos ensina, à medida que o filme passa, da importância de estar aberto à novidade, mesmo que ela venha numa forma que “pareça” antiga – porque a juventude é um estado de espírito, nunca de idade. Falar mais sobre essa lindeza é estragar o seu potencial apaixonante. Assista sem receio, mas sabendo que é um filme de quase 30 anos e que, por isso mesmo, não tem a mesma dinâmica que os mais recentes possuem... Lindo demais...
“Ninny Threadgoode: Todas essas pessoas vão viver desde que você se lembre delas.”
E outra vez, a parceria Disney-Pixar mostra por quê é a maior referência nas animações em 3D... INSIDE OUT marca o retorno de Pete Docter como diretor, tendo ele produzido nesta função os grandes sucessos “Monstros S.A.” e “Up! Altas Aventuras”. "Divertida Mente", desta vez, explora as emoções num contexto cerebral super interessante, e conta a história de Riley, uma menina que muda drasticamente de perspectiva depois que sua família se muda do meio-oeste estadunidense para São Francisco. Em sua cabeça, a Alegria, o Medo, o Raiva, a Nojinho e a Tristeza se revezam no comando central de uma fase difícil na vida dela, que agora passará por seus primeiros grandes desafios... Como um divertimento, agrada a todas as pessoas, mas este vencedor do Oscar vai um pouco mais longe que isso: INSIDE OUT consegue sintetizar, nessa hora e meia, a importância de não evitarmos nossas emoções, mesmo que negativas; e de que os seres humanos são feitos de combinações desses afetos, que discutem dentro de nós todos os dias, mas que têm a Felicidade como objetivo comum. Todos somos um pouco de tudo isso, porque é tudo isso humano como nós também somos. “Divertida Mente” é outra das grandes animações que a parceria Disney-Pixar fez desembocar. Um must-see para qualquer pessoa que curta este tipo de cinema. Lindo demais!
“Alegria: Ah não! Esses Fatos e Opiniões são tão parecidos! Bing Bong: Não se preocupe. Isso acontece o tempo todo.”
O lendário diretor franco-suíço Jean-Luc Godard dirige, em 1962, um de seus longas mais importantes. Sedimentando parte da estética do que se tornaria a Nouvelle Vague – nas tomadas excêntricas, no ocultamento dos rostos e na divisão do roteiro em partes nomeadas por detalhes – VIVRE SA VIE é um ensaio do movimento pelo qual o diretor se tornaria mais conhecido, e uma referência estética para o cinema que surgiria daí. Embora não seja uma história não-linear ou complexa nesse sentido, “Viver a Vida” é um conto sensível e humanizador sobre Nana, uma aspirante a atriz que acaba se tornando prostituta na França, retrato de uma vida feminina rodeada de incertezas e abusos. Conversando vagamente com feminismo de segunda onda que ocorre no país, Godard aborda temas que interessam muito, num contexto em que as mulheres casadas ainda não tinham o direito de trabalhar sem a permissão dos maridos (o que só seria possível três anos depois deste filme ser lançado). Trata-se de um longa marcado por diálogos incríveis, a exemplo da conversa sobre a linguagem e o amor, mais pro fim da história. Há cenas que são verdadeiras experiências cinematográficas radicais, como a abertura, em que não vemos os rostos dos personagens por quase dez minutos ininterruptos. A verdade é que Godard estava fazendo escola, e este filme representa uns dez passos à frente em relação ao seu primeiro longa, “Acossado”. Em “Viver a Vida”, o artista encontrou o equilíbrio entre a narrativa, a política, a filosofia e a acessibilidade, criando um de seus filmes “mais fáceis” mas não por isso “menos bons”. Este é um clássico com toda a força de um. Assista!
“Nana: O amor não deveria ser a única verdade? Filósofo: Para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é assim. Quando você tem vinte anos, não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só à sua experiência. Você diz ‘eu amo isso’, e é sempre uma mistura. Para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade, e isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro.”
Um filme-diálogo muito bonito entre um “paraíba” e um “galego”... CINEMAS, ASPIRINAS E URUBUS, o longa de estreia de Marcelo Gomes, se apresenta como uma experiência formidável. Com longas tomadas em contra-luz, na vibrante iluminação do sol no sertão nordestino, este filme "pé-na-estrada" conta a história do tio-avô do diretor, que conheceu um alemão na época da segunda guerra que viajava pelo Brasil fazendo propaganda para a Aspirina, um remédio que surgia então. O filme trata deste encontro, da amizade que se desenvolveu entre eles, das diferenças culturais e das diversas formas de ser, pensar e sentir quando se compartilha uma experiência em comum com o outro. A química entre os protagonistas Johann e Ranulpho mantém o longa interessante em todo o tempo. A edição é ágil, e os figurinos afinados com a década em que a história se passa. Regionalismos, diversidade e bons momentos de comédia fazem este filme ter de tudo um pouco, e não é por menos: em 2015, ele entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da ABRACCINE. No mais, é uma brincadeira com empatia e respeito pelas culturas e vivências de cada um. Em tempos em que pessoas não se sentem mais envergonhadas em ser preconceituosas, cabe demais um filme como esse, para fazer uma visita à sabedoria que jaz na compreensão do outro em sua plenitude e piedade... Para ser visto com muito, muito carinho...
“Ranulpho: O país tá cheio de filho da puta. Bota uma farda e pronto: sai gritando com todo mundo. Isso é jeito de tratar gente? Somente porque é flagelado. Johann: Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho. Ranulpho: Eu fiz o que fizeram comigo; agora eu mudei. Posso não, é? Johann: Pode.”
Um filme robusto, com edição fina e boníssimas atuações. COMO NOSSOS PAIS é o mais recente longa de Laís Bodanzky, que anos atrás dirigiu o notável “Bicho de Sete Cabeças”. Representa uma análise precisa da situação dos gêneros, e sua divisão (social) de trabalho no nosso país. Trata da maternidade, da sobrecarga da mulher no ambiente doméstico e do desequilíbrio existente (quase que naturalmente) numa relação heteronormativa, em que filhos são uma responsabilidade e o trabalho é uma realidade com a qual sempre se deve lidar. Um estudo muito bem-editado sobre as relações humanas, neste caso entre mãe e filha, esposa e esposo, e mãe e filhas. A busca incessante por uma representação paterna, o desnorteamento das emoções e o desmantelamento das relações são alguns dos temas adjacentes, possíveis de ser lidos também. O filme de Bodanzky é, sobretudo, um drama humano, no que se percebe por sua direção expressiva e seu argumento aparentemente simples, mas talhado de maneira profunda e comovente. Um dos nossos muito bons dramas. Assista!
“Rosa: Pra eu ter tesão em você de noite, você tem que ter sido legal o dia inteiro comigo. Ter me ajudado nas tarefas do dia-a-dia. Eu não consigo simplesmente ter tesão em você de noite, abstrair de tudo isso e gozar.”
“E, havendo [o Cordeiro] aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vá, e veja.” Apocalipse 6:7. IDI I SMOTRI, derradeiro filme de Elem Klimov, considerado por muitos sua obra prima, é o ápice dos filmes anti-guerra feitos até então. Oferecendo uma visão distinta da estadunidense ‘tradicional’, o longa narra a trajetória de Florya, um menino aspirante da guerra que se une à guerrilha soviética contra as tropas nazistas. Entretanto, ao contrário do que ele espera, a segunda guerra mundial não se apresenta a brincadeira de criança que ele pensava ser, e o horror e o absurdo vão encontrá-lo muito mais rápido, muito mais alto e muito mais perto do que ele imagina... “Vá e Veja” é uma referência no cinema internacional; seja pela estonteante fotografia, pelos efeitos pirotécnicos ou pela profundidade de seus simbolismos, o longa tem um roteiro escrito com precisão, e que toma tempo para digerir. Ele evidencia a total estupidez da guerra, onde nunca há amor, somente ódio, e o massivo investimento de energia para a aniquilação do outro, quase que simplesmente por sua diferença em relação a nós. Falamos da cultura da morte, dos aniquilamentos em massa e, principalmente, do etnocentrismo, que foi a mola mestra que catapultou, em todos os séculos, o que mais tarde se chamaria de 'imperialismo'. Sendo assim, “Vá e Veja” é um gigantesco manifesto anti-guerra e anti-fascismo. Humanizando este “outro”, e apresentando lados da guerra de maneira justa, IDI I SMOTRI faz-nos participar da filosofia da resistência soviética, num sentido amplo e muito bonito, que é toda a força de vida que ainda está por vir. Lembrando sempre, é claro, que a violência reativa de um grupo/nação oprimida nunca está em pé de igualdade com a violência de quem exerce o poder sobre ela. Uma reação a uma violência não sobrepõe-se à violência primeira, que é o próprio caos em si, e o desgaste humano em sua essência. Definitivamente um dos filmes obrigatórios para quem gosta de cinema.
“Oficial Alemão: Sim, eu disse isso: ‘Saiam e deixem as crianças’. Eu disse isso porque com as crianças começaria tudo de novo. Você não tem direito de existir. Nem todas as raças têm o direito de existir. Escutem! Escutem todos! As raças inferiores propagam o contágio do comunismo. Você não tem direito de existir. E nossa missão será cumprida. Se não hoje, amanhã.”
Oh hi Mark! Segundo o próprio Tommy Wiseau, em THE DISASTER ARTIST, James Franco conseguiu captar 99.9% da essência do que foi a produção do (dito) pior filme da história estadunidense. THE ROOM, que teve direção, roteiro, produção e protagonismo de Wiseau, estreou em 2003 sem alcançar grandes públicos e encerrou sua temporada como um grande fracasso de crítica e audiência. Trucidado por anos, o filme ganhou status cult e, em 2017, uma espécie de refilmagem/paródia/biografia estranha, mas mesmo assim muito especial. De fato, James Franco (e seu companheiro de sempre, Seth Rogen) embarcam numa jornada que demonstra empatia e compreensão, sobretudo da parte de Franco – que, diga-se de passagem, também dirigiu, produziu e protagonizou este filme. Nos moldes do THE ROOM original, Franco conduz a narrativa escrita pelo melhor amigo de Wiseau, Greg Sestero, contando a história de como nasceu a amizade que eles têm até hoje, e os bastidores do que foi um longa que teve quatro equipes técnicas diferentes e foi filmado em dois formatos. Embora vejamos pouco da protagonista Juliette Danielle aqui, e detalhes importantes sobre Tommy sejam simplesmente insondáveis (até por ele próprio), THE DISASTER ARTIST conta sua história com críticas pertinentes e momentos de comédia genuinamente bons – como a cena do terraço com a garrafa e o diálogo entre Greg e Tommy sobre violência contra a mulher. A atuação de Franco como Wiseau é incrível – e denota bem como tudo pareceu, àquela época, como uma desajeitada tentativa de pertencer à sociedade norte-americana, por parte de um imigrante que não sabia falar inglês direito mas tinha o sonho de fazer um longa em Hollywood. Quem assiste para rir se diverte, e quem procura informações até psicológicas, também encontra aqui. É um filme significativamente melhor do que o filme sobre o qual ele fala, mas é também uma verdadeira declaração de carinho por um cineasta iniciante, que nunca foi esquecido – mesmo que pelos motivos errados. Assistam! Vale a pena.
“Sandy Schklair: Tomada 67, ação! Tommy Wiseau: Eu bati nela! Sandy Schklair: Não! Você quer mudar a fala? Greg Sestero: Você tá ótimo, cara. Vamos chegar lá!”
Um longa interessante sobre uma situação nada absurda. Quase como que uma continuação involuntária de “Juno”, TALLULAH nos apresenta questões muito importantes sobre maternidade, e também maternidade compulsória. Ellen Page está, como sempre, trabalhando com excelência, e o restante do elenco faz a sua parte tranquilamente. O roteiro, também assinado pela diretora Sian Heder, tem boas reviravoltas e segue interessante por todo o curso a história – sua direção, aliás, é atenta e detida, como todo bom drama apresenta. Embora seja um filme “raso”, no sentido que as questões psicológicas/sociais que envolvem o sequestro não sejam profundamente abordadas, TALLULAH é um bom entretenimento – em especial, pela bela construção dos arcos das 'antagonistas' Tallulah e Carolyn. Se você assiste sem saber o enredo, o susto é ainda maior... Um bom filme.
“Tallulah: Seu plano dependia de outras pessoas. Outras pessoas são uma merda, e vão te desapontar todas as vezes.”
Pesado, absolutamente triste e – talvez – além do suportável como cinema... Nos últimos tempos, venho me perguntando a necessidade da exposição de certas formas de violência nos filmes. Por vezes gratuitas, há cenas que, de tanto serem repetidas, parecem ganhar mais força, com o objetivo de chocar e fazer o espectador revirar o estômago. Deixando qualquer filme de terror no chinelo, filmes com tal grau de “realismo” e “consciência” chocam, mas também fazem questionar o sentido da superexposição dessa “violência gratuita”, como mais tarde criticaria o austríaco Michael Haneke. Assim ocorre em “Para Sempre Lilya”, terceiro filme de Lukas Moodysson, que mais tarde produziria o também elogiado “Container”, de 2006. Aqui, Lilya vive o caso real de Danguole Rasalaite, uma lituana órfã enviada para a Suécia nas mesmas condições que a personagem, e que encontrou no país uma realidade ainda mais severa que aquela que vivera antes. O caso chocou o mundo, reacendendo o debate sobre tráfico humano e resultando neste roteiro, também assinado por Moodysson. Como em seus filmes anteriores, o protagonismo é dos adolescentes que, neste caso, são os órfãos do império soviético, a Rússia pós-dissolução. Crianças e jovens encaram a crise russa no desalento silencioso de uma realidade cinzenta, fria e distante. Não há qualquer tipo de assistencialismo – e o Estado, como em tantos casos, não dá conta da demanda social, sobretudo a das “meninas-mulheres”. De qualquer forma, fica o questionamento: qual a necessidade de fazer um filme nesses moldes, com tanta porrada que acaba “desconvidando” o espectador a acompanhá-lo? É claro que se trata de uma realidade duríssima, e que deve ser contada e debatida, mas há muitas escolhas artísticas aqui que tornaram este filme raso, e violento de maneira até desequilibrada. Em tempos como os de hoje, fica difícil acompanhar ativamente uma experiência tão dolorosa, e que às vezes soa gratuitamente dolorosa. Ninguém precisa submeter o olhar a tanta violência por tanto tempo simplesmente “porque é violência”. E nem precisa ver tudo, exatamente como acontece, todas as vezes. Para isso existe a metáfora – para que possamos acessar as sensações sem necessariamente termos que materialmente entrar em contato com a experiência. Às vezes, pode ser melhor ler sobre o caso e acompanhar o debate do que necessariamente assistir ao filme. E talvez este seja o caso.
“Professora: Um futuro brilhante te espera... É brincadeira.”
O cinema poético e documental de Petra Costa encontra o de Lea Glob numa produção diferente, em que o real parece “dirigido”, e o teatral parece “ainda mais real”. OLMO E A GAIVOTA aborda um ano na vida de Olivia Corsini e Serge Nicolai, um casal de atores que passa pela gestação de seu primeiro filho – explorando os acontecimentos e suas nuances nas vidas dos dois. Com a direção cuidadosa de Petra, e suas ocasionais intervenções, o documentário não tem tanta cara de “doc”, parecendo que Olivia e Serge estão constantemente “atuando” sobre suas próprias vidas. Esta brincadeira entre o real e o teatral (imaginário e ilusório) ocorre algumas vezes, e sempre em boa hora. Contudo, mesmo que seja um longa com sua dose de beleza e poesia, senti que, dentre os da Petra, é o menos cativante, e o que mais parece ter sido “descoberto à medida que ia sendo filmado”. Muito do que se vê aqui é o dia-a-dia, a rotina e o cansaço pelo qual passa Olivia, seguindo a verdadeira essência do cinema que vai em direção ao feminino; Petra e Lea, afinal de contas, conseguem chegar a um retrato bonito da vida de uma mulher artista, embora não saibamos se este retrato é confiável ou não: uma das belíssimas e possíveis traições do verbo... É bem bonito, mesmo que não seja um favorito.
O terror, como um gênero cinematográfico, tem precisado de renovação há tempos. Os filmes da A24, por exemplo, têm sido uma boa caminhada nesse sentido (“A Bruxa”, “Hereditário”, “Clímax”...) e EL HOYO parece querer entrar para a lista – mas não consegue fazê-lo... O longa, dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, narra a história de um homem que acorda numa espécie de cyber-prisão, em que duplas convivem por um mês juntas, numa sala cúbica, por cujo buraco central passa a comida, de cubo em cubo, indefinidamente. A arquitetura da produção lembra muito aquele clássico “O Cubo” (1997), só que com a adição de uma metáfora poderosa sobre a luta de classes: o acesso à comida como forma vertical da manutenção do poder. Pessoas egoístas, invejosas e doentes, partilham da mesma ceia, comendo o quanto quiserem, sem se importar com o cubo debaixo, onde outras pessoas esperam pela mesma comida... Não se esgota a discussão social que “O Poço” promove, mas é importante ressaltar que, como um filme de terror/ficção científica, ele tem furos demais para funcionar plenamente. Além disso, as escolhas narrativas para o final são só frustrantes e desestimulantes – parece que uma pessoa escreveu metade do filme, e outra fez o resto, tão diferentes que são as duas metades desta produção. O que começa com uma pegada alternativa e experimental acaba virando mais um slasher gratuito, jogando fora a metáfora de que se valeu para ficar em pé. É outro dos filmes que, apesar da boa intenção, acaba sendo só mais um título mal-acabado da Netflix – que, até então, produziu muito boas séries, mas cinematograficamente tem ficado para trás... À exceção de um filme ou outro, geralmente o que a empresa produz no formato longa costuma ser bem abaixo do padrão de qualidade que eles têm para o formato série. EL HOYO, infelizmente, não é exceção para isso. Não indico!
“Goreng: Há três tipos de pessoas; as que estão em cima, as que estão abaixo, e as que caem.”
Um dos queridinhos do cinema alternativo/underground, COHERENCE é uma experiência mista – um pouco boa, um pouco ruim – que aborda conceitos da física quântica aplicando-os na prática, durante a passagem de um misterioso cometa pela superfície terrestre... O longa, do estreante James Ward Byrkit (que foi roteirista da animação “Rango”, de 2011) apresenta um grupo de oito amigos que se reúnem e recebem, misteriosamente, uma caixa contendo a foto de cada um, com um número atrás, e uma raquete de tênis de mesa. Intrigado, o grupo passa a discutir a metafísica que deriva disso num dos filmes de baixo orçamento mais “assistíveis” dos últimos anos. Dá para compará-lo com os também alternativos “Cubo 2: Hipercubo” e “Quem Somos Nós?”, que discutem as mesmas questões, só que com abordagens diferentes. Filmes simples, munidos de ideias poderosas e desafiadoras, sempre valerão a pena ser conferidos. Não é diferente com “Coerência”, pelo bom suspense que conduz e pelo conceito que apresenta, esmiuçado e explicadinho, dos efeitos coerentes na teoria do Gato de Schrödinger. Embora por vezes mostre sinais de amadorismo (muita escuridão, problemas graves de foco e algumas atuações bem furrecas) o filme passa como um exercício mental divertido e elegante, divergindo do cinema como é produzido ainda hoje. Sigo crendo que uma boa ideia sobrepõe-se a orçamentos enormes e efeitos de ponta. É raro ver filmes de circuito fechado abordando questões tão experimentais, portanto vale a pena assisti-lo pelo menos uma vez, para conhecer este tipo de cinema, feito com o mínimo, mas com bastante poder em sua mensagem... Dê uma olhada!
“Amir: Esta foto foi tirada hoje. Em: O quê? Como sabe disso? Amir: Eu comprei este suéter hoje, então ela é de hoje.”
Para longe dos filmes “B” ou “inassistíveis” de sua época, THE ROOM impressiona não pela sua (já sabida) péssima qualidade, mas pela experiência verdadeiramente hipnótica que proporciona aos seus espectadores (há quase 20 anos)... A verdade é a seguinte: filmes realmente ruins a gente não assiste até o final. Quando são péssimos, cheios de furos e tudo mais, não vemos até o fim – mas THE ROOM é diferente disso. Seguindo à risca o conceito do “paracinema”, Tommy Wiseau dirigiu, produziu, escreveu e protagonizou uma produção que não tem nenhum atributo positivo, mas que por isso mesmo chama a atenção dos cinéfilos até hoje. Quase como uma qualidade irônica, o filme é uma comédia involuntária em todas as suas decisões artísticas: o uso desnecessário da grua, os péssimos enquadramentos, as cenas que se estendem sem necessidade, as falas mal-escritas (em atuações terríveis) e o cenário dolorosamente anti-natural em que a ação se dá... Tudo é, por algum misterioso motivo, feito da maneira errada, e isso, inexplicavelmente, funciona a ponto de ficarmos até o final, para ver aonde ele quer chegar. Fato é que não houve, na história do cinema estadunidense, outra produção do tipo, tão esculachada pela mídia e ignorada pelo grande público, que resistiu ao tempo e tem marcado gerações, tendo sido cultuada até hoje em alguns cinemas alternativos de São Francisco. Ninguém discute que, cinematograficamente, o filme é um manual do que “não-fazer”; mas que é uma experiência diferente de todas as outras, isso ninguém pode tirar. Assistindo como um drama sério, é o pior que já existiu; mas como uma comédia, ele funciona até que bastante bem. Eu diria para você dar uma chance. Talvez também se impressione...
“Johnny: Eu não bati nela. Não é verdade. É mentira! Eu não bati nela! Não bati! Oh, olá, Mark.”
Este aqui simplesmente não rolou. AMARELO MANGA, o longa de estreia de Cláudio Assis, com sua verve “suja” e “pouco poética”, conseguiu adquirir (quem diria?) um status ‘cult’ com a virada da década. O enredo é multi-facetado, sendo vivido pelos habitantes do Recife Antigo, numa estética “crua”, quase sem efeitos especiais e com produção de baixíssimo orçamento (mesmo para a época). Infelizmente, abordar só a estética e o enredo não é falar tanto. Este drama se estende por tempo demais, tornando-se monótono na primeira meia-hora, e não justifica sua existência mesmo quando resolve os arcos que apresenta. Há nudez feminina desnecessária para a trama, e o abate de um animal que é igualmente desnecessário. Há cenas, também, parece que “feitas para chocar”, o “soco pelo soco” – num Gaspar Noé brasileiro e sem a megalomania deste. As trajetórias dos protagonistas não cativam, algumas atuações (sobretudo as de Kanibal e Dayse) são ruins e o resultado só sai... Chato, cansativo e insatisfatório. Compreendo que tenha seus apoiadores, mas penso que filmes deste nicho específico, com doses de “crueza”, “violência” e “a vida como ela é”, na verdade são só uma maneira de capitalizar a cultura da morte – a cultura do abate, do tiro na cara e do assédio sexual. São maneiras que o consumo encontrou para erotizar a violência – e este filme faz isso muito bem, a começar pelo seu pôster, da vagina “amarelo manga” perseguida no longa. Respeito quem curta esta abordagem, mas para mim não fala tanto mais. E o Brasil tá longe de ser só todo esse pessimismo e essa violência desenfreada... Eu não indico.
“Padre: O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação: terá obrigatoriamente que ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver. Por isso meus olhos estão cegos: para não enxergar a gosma desses pecadores. Meus ouvidos escutam uma voz que diz ‘padre! Morrer não dói! Morrer não dói! Estamos todos condenados! Eternamente condenados... Condenados a ser livres’.”
O horror, o horror, meu deus... Seguindo a pós-retomada do cinema brasileiro, O LOBO ATRÁS DA PORTA é um suspense terrível, e por isso mesmo excelente. Recheado de diálogos intensos, e construindo uma trama a cada minuto mais pesada, o longa de Fernando Coimbra chega a um clímax chocante e bastante traumático (apesar de previsível, se soubermos sobre quem é esta história). Além de absolutamente brasileiro – nas gírias, nos cenários e nas locações do Rio – este aqui é um baita filme policial: cobrindo um caso ocorrido na Penha em 1960, O LOBO... se apresenta no mesmo nível dos suspenses estadunidenses sobre casos chocantes, como “Um Crime Americano” e “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal”. Se você não sabe qual é o caso sobre o qual este filme fala, assista a ele primeiro: o choque será muito maior. Para além disso, resta dizer que o respeito à nossa cultura, ao nosso cinema e à nossa língua é a ferramenta necessária para a verdadeira construção da identidade brasileira. Para que o vira-latismo brasileiro pereça, será preciso que mais brasileiros assistam aos fantásticos longas que produzimos aqui, no país que criou a Tropicália, mas também gerou uma fera na Penha, de cujo horror você não se esquecerá... Vale muito a pena! Suspense dos bons.
“Delegado: Eu pedi pro senhor voltar aqui porque eu tô precisando de mais alguns detalhes sobre o seu envolvimento com a Rosa. Quero entender isso, como é... Bernardo: Ah, caso de rotina, doutor, essas coisas que acontecem... Sexo sem envolvimento emocional, essas coisas. Rotina. Coisa de homem, inevitável. Essas coisas que acontecem com a gente, o senhor sabe bem como é, não é? Delegado: Não, não sei não, senhor Bernardo.”
“Eu não quero casar com essa bunda. Eu quero comprar ela pra mim.” O CHEIRO DO RALO é incrível. Heitor Dhalia numa direção impecavelmente afiada, e Selton Mello colaborando com a excelência que ele sempre teve, numa atuação complexa, profunda e difícil de esquecer. Complexo, aliás, é pouco para o personagem de Lourenço, barbaramente esmiuçado pelo autor Lourenço Mutarelli e transposto para o cinema pelo próprio diretor. É um longa muito bem feito, recheado de bons diálogos e simbologias interessantes. Dá para analisá-lo por vieses psicológicos, sociológicos, antropológicos e até filosóficos – não se esgotando nem na primeira nem na décima revisita. Dhalia produziu um dos grandes filmes do cinema pós-retomada do Brasil, criando analogias e metáforas fortes numa produção que mistura abuso de poder com comédia, e seriedade com bizarrice psicanalítica. Como na sinopse do livro, ‘entre a bunda e o ralo, não lhe resta saída que não seja ir para o buraco’; assim ocorre no longa de maneira excepcional, calando a tudo e todos. É pesado e diferente de um jeito muito bom – para ser visto, sentido e degustado como só o cheiro da merda de Lourenço poderia ser. Assista! Não vai se arrepender!
“Lourenço: ‘O cheiro do ralo’. Sinto um prazer estranho quando eu digo isso. É como se eu me reencontrasse. Talvez o cheiro seja meu. Foi o cheiro que me trouxe à bunda. É um presente do inferno.”
Um filme morno (apesar de bem-editado) e infelizmente xenofóbico... Sofia Coppola produziu em 2003 um dos seus mais importantes longas; LOST IN TRANSLATION, cujo título tem traduções diferentes para cada país em que foi lançado. Com a intricada arquitetura de Tóquio como uma metáfora para o romance pseudo-profundo que Coppola tentou escrever, “Encontros e Desencontros” tenta ser o que não é, e de morno acaba virando enfadonho nos primeiros minutos – e xenofóbico nos restantes... O esvaziamento de sentido causado pelo acúmulo de riqueza material encontra em LOST IN TRANSLATION o tédio, seja no casamento mal-vivido de Charlotte, ou na insatisfação profissional de Bob depois de anos de carreira. Ambos, aliás, não passam de burgueses da classe alta que perderam seus objetivos e desejos para criar movimento em suas próprias vidas. É desse esvaziamento que se fala quando se aborda uma vida regrada de regalias, na qual faltam emoções, imperfeições e (re)descobertas. Ademais, a forma como este filme coloca o povo japonês no lugar do “exótico”, “excêntrico” e “cômico” não é só feia, mas também xenofóbica e até racista. Os exageros para com o povo amarelo falam por si só: tudo é caricato, engraçado, motivo para rir das diferenças culturais entre os estadunidenses “intelectuais e civilizados” e o “povo que adora comer dedo podre”. O olhar blasé de Bob para toda pessoa não-branca no filme entrega como este é um baita desrespeito com a cultura japonesa – maior até do que fazer Tom Cruise ser “O Último Samurai” do Japão, filme que saiu no mesmo ano inclusive. Para além disso, “Encontros e Desencontros” é só um longa chato, que não sabe aonde quer chegar e nem tem ideia de como caminhar até lá – uma outra metáfora para a confusão de seus personagens, que se estende também para a diretora/roteirista disso aqui. Coppola conduz com o mesmo desinteresse, quase um tédio melancólico que contagia o espectador, bastante real e por isso mesmo pouco vivo e muito morno. Pode ter sido o filme que originou o mumblecore dos millenials, mas isso não o torna mais assistível ou mesmo tão importante assim. Este tipo de cinema já deu.
O Escândalo
3.6 459 Assista AgoraO ESCÂNDALO, novo filme de Jay Roach, aborda o processo pelo qual passou o ex-presidente e chefe executivo da FOX News, Roger Ailes, quando denunciado por assédio sexual pelas suas funcionárias. Tendo vencido o Oscar de melhor maquiagem e penteados, o filme é dinâmico e conta uma das principais histórias contemporâneas sobre práticas abusivas por um homem com poder – trata-se, também, de um dos casos que reavivou o movimento #MeToo nos Estados Unidos, e que mais tarde culminaria na prisão de outro magnata abusador, de nome Harvey Weinstein...
O longa, em si, parece ter pouco fôlego e a necessidade de correr com todos os detalhes incomoda bastante. São personagens demais, há pouco tempo para processá-los e acaba se saindo muito rápido para o peso de seu tema, que precisa de uma delicadeza na abordagem que é posta de lado em favor de uma edição mais ágil e frenética, quase saltando capítulos sem dar espaço para respirar. Para além disso, o trio “bombshell blonde” formado por Kidman, Theron e Robbie não representa a atuação de peso que as três individualmente já apresentaram – como se o grupo não tivesse química junto, ou a direção das atrizes tenha sido pouco proveitosa.
No mais, é aquele tipo de filme que você vê uma vez só. É relevante por contar um momento importante na história do feminismo contemporâneo, mesmo que às vezes pareça mal debatido aqui.
Na média, ainda que seja intenso.
“Megyn Kelly: Se eu aprendi alguma coisa este ano, foi não se estender numa briga com alguém que tem uma razão melhor que você para fazê-lo.”
Megamente
3.8 1,9K Assista AgoraUm filme anti-herói que acaba se saindo melhor que muitos filmes de heróis por aí...
MEGAMENTE, produção da DreamWorks dirigida por Tom McGrath (o mesmo responsável pela trilogia “Madagascar”), é outro dos exemplos pelos quais o estúdio de animação é o melhor de seu ramo em termos de comédia. O filme, que no original tem seus protagonistas dublados por Will Ferrell e Brad Pitt, se distancia de uma narrativa “comum” da dualidade super-herói/super-vilão e entra numa reflexão mais profunda, nunca antes vista, sobre a importância de escolher quem a gente é.
Metro Man e MegaMente são os lados opostos de uma histórica batalha – a batalha do bem contra o mal. Porém, o filme sobre o seu adversário não é comum, uma vez que aborda explicitamente esta tomada de decisão: quem eu sou, afinal? MegaMente, depois de ser confrontado com uma situação atípica para os super-vilões, passa a precisar de uma companhia para se relacionar – o “eu” se constituindo em relação ao “outro”, como tantas vezes disse Lacan...
É nisso que MEGAMENTE atinge seus maiores êxitos; ao fazer o vilão rever suas atitudes, e com isso repensar quem ele foi e quem deseja ser, o longa dá a ele uma chance de se reinventar, começar do zero, ser alguma outra coisa que não o “antagonista” de seu clássico combate. Com o desequilíbrio narrativo que esta decisão provoca, o filme não será mais o mesmo, e da metade para o final, o que regerá será a mudança, e para um lugar inesperado, mas muito, muito bonito...
É uma grata surpresa. Vale a pipoca.
Assista!
“Megamente: Interessante. Acho que o destino não é o caminho escolhido para nós, mas o caminho que nós escolhemos para nós mesmos.”
Curtindo a Vida Adoidado
4.2 2,3K Assista AgoraA coisa mais graciosa sobre este filme é como o tempo, que passou, tornou algumas “rebeldias” educadas, e algumas obediências bastante “rebeldes”.
CURTINDO A VIDA ADOIDADO é um clássico da comédia estadunidense, estrelado pelo ironicamente desconhecido Matthew Broderick, e que tem sido um sucesso com todas as gerações que o assistiram. O filme, pertencente à trilogia da juventude americana de John Hughes, aborda um dia na vida de Ferris Bueller, um rapaz tido como vagabundo pelo colégio, mas santo pelos pais. O longa acompanha o dia de folga que Bueller decide tirar por estar “de saco cheio da escola”, e o seu resultado é maravilhoso pra dizer o mínimo...
Quem lê o título hoje, ao encontrar esse adjetivo “adoidado”, pode pensar que o filme aborda toda uma relação com as drogas, sinestesias ou coisas do tipo, mas a “rebeldia” de Bueller passa longe disso: ele reivindica uma diversão quase “antiga”, associada à velhice: ir a um museu, assistir a um desfile e passear de carro por Chicago. Junto de seu melhor amigo Cameron e sua namorada Sloane, Bueller se diverte como o jovem que ele é e quer se manter sendo, porque “se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perder de vista a vida”.
Os elogios são pouco para o que este filme faz com o nosso coração. Mesmo que por vezes soe datado, e precisemos abstrair algumas falas aqui e ali, o longa ainda hoje se sai muito bem, seja como comédia ou o como um retrato da juventude que cresceu e ganhou os anos 80, e que hoje assiste a ele com sua família – ou solitariamente, da maneira que a gente quiser.
É uma graça – assista sem pensar duas vezes!
“Cameron: Eu não sei o que vou fazer.
Sloane: Faculdade.
Cameron: Sim, mas fazer o quê?
Sloane: Você tem interesse em quê?
Cameron: Nada.
Sloane: Eu também não!”
Bicho de Sete Cabeças
4.0 1,1K Assista AgoraÉ, definitivamente, um dos nossos marcos culturais.
A notável diretora brasileira Laís Bodanzky inicia sua carreira em longa com um filme poético, visceral e disruptivo no melhor sentido possível: BICHO DE SETE CABEÇAS, estrelado por um já experiente Rodrigo Santoro, marca um momento no cinema novo do Brasil e segue vivo, atual e principalmente atuante na questão da luta antimanicomial que ocorria então – e ocorre até hoje.
Recheado de preciosidades poético-musicais de Arnaldo Antunes, e contando com desempenhos fora da curva de Santoro e restante do elenco, o filme de Bodanzky elege o lado humano e nele firma suas mais fortes bases. Denunciando os abusos denunciados no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, BICHO... ainda questiona, por exemplo, quem é que decide “quem é louco e quem não é”. O fato é que o encarceramento e o punitivismo, presentes nas práticas manicomiais, foram e ainda são uma realidade em alguns lugares do país, a despeito da aprovação da Lei Antimanicomial de 2001. O depoimento de Austregésilo, por isso mesmo, se apresenta até hoje como uma voz contrária à desumanização, que por tanto tempo vitimou os ditos “loucos” do nosso país.
É ainda importante ressaltar a importância que este filme tem para o tema que ele aborda; a Lei da Reforma Psiquiátrica só seria aprovada em abril de 2001, o que significa que foi durante a sua produção. Laís Bodanzky produziu-o numa época em que o manicômio ainda era uma alternativa legal no Brasil, prevista por lei e respaldada por toda uma cultura normativa, e que a tornou o grande recurso no que tange a postura do Estado perante a Loucura.
Falar mais é chover no molhado – assista.
Assista sem receios.
“Interno Jornalista: É preciso fingir. Quem é que não finge nesse mundo, quem? É preciso dizer que tá bem-disposto, é preciso dizer que não tá com fome, que não tá com dor de dente, que não tá com medo. Senão não dá, não dá. Nenhum médico jamais me disse que a fome e a pobreza podem levar a um distúrbio mental, mas quem não come fica nervoso, quem não come e vê seus parentes sem comer pode chegar à loucura. Um desgosto pode levar à loucura, uma morte na família, o abandono do grande amor. A gente até precisa fingir que é louco sendo louco. Fingir que é poeta, sendo poeta. Vai até ali e leia...”
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho
4.1 3,2K Assista AgoraHOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO, longa de estreia de Daniel Ribeiro, conta a história de Leonardo, um estudante de uma escola particular que passa pelas descobertas de sua adolescência. O filme, resultado de uma experiência em curta-metragem do diretor, busca retratar o cotidiano de uma pessoa com cegueira que se apaixona por um colega novo da escola, embora muito do que vejamos seja, na verdade, todas as coisas que não sejam isso.
Há, neste filme, inúmeras decisões que denotam uma dificuldade em explicitar que este é, sim, um romance LGBT+. A impressão é a de que o filme tem “medo” de se assumir gay, então acaba desviando o foco de seu objetivo, e o que vemos é um compilado de cenas que não são interessantes para a trama central. Para além de gay, aliás, trata-se de um dos primeiros romances em que temos uma pessoa com deficiência e uma pessoa sem, e que infelizmente fica morno demais, perdendo o fôlego cedo e retratando uma realidade muito específica (e por isso mesmo "pouco brasileira”, se dá para falar assim).
Problemática comum a vários longas de temática inclusiva/LGBT+: não há profundidade, não há filosofia ou uma real reflexão sobre a relação, a maneira como ela se dá, ou como as pessoas vão para frente com ela. Neste caso, as atuações são fracas e falta ao protagonista um carisma que ele não parece ter a consciência de precisar.
No fim das contas, uma das principais características sobre Leonardo é desimportante para a trama, e o enredo quase não leva a lugar nenhum. Além de retratar uma juventude norte-americana clichê (e irreal aqui), o longa não prende em nenhum momento, e só segue morno do início ao fim.
Não indico.
“Leonardo: Imagina que legal você ir pra um lugar onde ninguém te conhece? Ninguém sabe quem você é, sabe? Você pode inventar uma personalidade nova se quiser.”
The Beach Bum: Levando a Vida Numa Boa
2.9 47O polêmico diretor de cinema alternativo Harmony Korine, underground dos anos 90, retorna às telonas após o estrondoso sucesso de “Spring Breakers”. THE BEACH BUM, sua sexta instalação em longa-metragem, toca em temas recorrentes na sua obra, hoje ‘tolerada’ pela crítica e ‘quase ignorada’ pelo grande público. Do desgaste humano em “Gummo” até o desmantelamento do Sonho Americano em “Trash Humpers”, Korine apresenta um trabalho com menos fôlego que seus antecessores, e que vem para tecer comentários que ele mesmo já fez (melhor) em outras ocasiões.
THE BEACH BUM conta a história de um poeta boêmio e errante (Hemingway? Bukowski? Vinicius de Moraes?) que vê sua vida virar do avesso após perder um importante elo financeiro. A partir de sua queda monumental até seu (incerto) retorno ao topo, somos presenteados com largos comentários sobre o protagonismo de um personagem egoísta, improdutivo e narcisista na sociedade norte-americana. A ironia, como se vai percebendo, é que todos à sua volta amam seus poemas e querem vê-lo de volta ao topo – e poucos questionam, por exemplo, seus preconceitos e sua vida “regrada e voltada para si”.
Quando Korine escreve sobre um homem cujo trabalho é amado apesar de ser ele, em essência, o próprio lixo, dá para pensar em muita gente, e em especial no presidente Donald Trump. Não poucas vezes o artista abordou a branquitude americana (em “Gummo” e “Spring Breakers” por exemplo) idolatrando o lixo – chegando inclusive a fornicar com ele. Diz muito sobre uma cultura misógina, racista e retrógrada que o “white trash” seja de tanto agrado, mesmo em sua plena decadência. Aliás, decadência esta que é uma chave para seus filmes, permitindo perceber de que maneira o estadunidense médio aplaude ao show de horrores que é a existência de um ser mesquinho como Moondog, e todo o absurdo que ele de fato representa.
Entretanto, este longa não vai muito mais longe que isso. Sendo o filme menos suportável de Korine, tanto em como se arrasta quanto em como é montado, THE BEACH BUM figura entre os menos importantes discursos que o diretor fez, pelo menos nesta década. Entre este e seu antecessor, prefira “Spring Breakers” - não vai se arrepender.
Este aqui não rolou.
“Moondog: ‘Na noite passada / Quando fui dormir em Havana / Estava pensando em você / Estava pensando em você. / E acordei às 4 horas / Tive que dar uma mijada / E como os caras fazem / Olhei para o meu pinto / E senti tanta afeição / No coração quando o fiz, / Saber que ele estivera dentro de você / Duas vezes hoje / Me fez sentir lindo’.”
Matangi / Maya / M.I.A.
4.6 77 Assista AgoraUm monumental documentário sobre a importância da identidade.
“Matangi / Maya / M.I.A.”, longa de estreia de Steve Loveridge, abre as portas para que conheçamos a polêmica porém misteriosa M.I.A., artista que mobilizou, nas últimas duas décadas, debates importantíssimos sobre o Sri Lanka e a sua cultura. Tendo sido chamada muitas vezes de “apologista ao terrorismo” e reduzida a adjetivos esdrúxulos na televisão norte-americana, a cantora tem, aqui, um retrato muito mais fiel de sua identidade como ativista, musicista e mulher nascida no Sri Lanka da guerra civil.
Embora a própria Maya não tenha gostado deste filme, alegando sua pessoalidade exacerbada, é inegável que o longa de Loveridge, amigo com quem ela estudou em Londres, oferta muitas respostas a seu respeito. Da drum machine em que ela criou os beats do seminal “Arular” a suas primeiras apresentações ao vivo, do processo de gravação à consequente turnê mundial do álbum “Kala”, são vários os pontos altos que o doc apresenta, indo além da sua expressão artística e buscando, através da montagem de cenas íntimas com sua família, talvez a pintura mais humana que se poderia obter de uma celebridade como ela.
As críticas à Madonna, à indústria do entretenimento e ao governo estadunidense são cerejas no bolo político-social que Maya representa. Sua lucidez flui com naturalidade, como qualquer pessoa que tenha pelo menos uma vez repensado seus ídolos e objetivos de vida. A cantora, hoje muito mais madura, vê-se a um espelho de si, de quem foi nos últimos vinte anos, e diante do que virá a seguir. Serão novos desafios, novas fronteiras, novos (e antigos) preconceitos – que, quem sabe, possam ser mais uma vez alertados através de sua música, sempre viva, de uma verve sempre atualizadora do panorama da Era da Informação.
Vale muito a pena!
“MAYA: Sabe, há muitas pessoas que podem empatizar com o que é ter um pai que virou um banqueiro, um advogado, um juiz, qualquer merda. E isso é o que aconteceu com uma criança cujo pai virou um terrorista. Isso é sobre como isso fodeu a família. Sobre como isso fodeu as pessoas. Sobre como isso fodeu o país.”
Tomates Verdes Fritos
4.2 1,3K Assista AgoraApaixonante!
O drama de sucesso (e hoje um clássico) “Tomates Verdes Fritos” é uma viagem linda. Assinado por Jon Avnet, o longa conta a história da improvável amizade entre Evelyn, uma dona de casa reprimida e profundamente triste, e Ninny, uma senhora de 83 anos que vive num hospital, sem visitas, mas que ama contar histórias...
A trama segue os encontros e reencontros das duas, e fala sobre como uma amizade pode efetivamente causar uma mudança na vida de alguém. Evelyn, vivida pela fantástica Kathy Bates, nos ensina, à medida que o filme passa, da importância de estar aberto à novidade, mesmo que ela venha numa forma que “pareça” antiga – porque a juventude é um estado de espírito, nunca de idade.
Falar mais sobre essa lindeza é estragar o seu potencial apaixonante. Assista sem receio, mas sabendo que é um filme de quase 30 anos e que, por isso mesmo, não tem a mesma dinâmica que os mais recentes possuem...
Lindo demais...
“Ninny Threadgoode: Todas essas pessoas vão viver desde que você se lembre delas.”
Divertida Mente
4.3 3,2K Assista AgoraE outra vez, a parceria Disney-Pixar mostra por quê é a maior referência nas animações em 3D...
INSIDE OUT marca o retorno de Pete Docter como diretor, tendo ele produzido nesta função os grandes sucessos “Monstros S.A.” e “Up! Altas Aventuras”. "Divertida Mente", desta vez, explora as emoções num contexto cerebral super interessante, e conta a história de Riley, uma menina que muda drasticamente de perspectiva depois que sua família se muda do meio-oeste estadunidense para São Francisco. Em sua cabeça, a Alegria, o Medo, o Raiva, a Nojinho e a Tristeza se revezam no comando central de uma fase difícil na vida dela, que agora passará por seus primeiros grandes desafios...
Como um divertimento, agrada a todas as pessoas, mas este vencedor do Oscar vai um pouco mais longe que isso: INSIDE OUT consegue sintetizar, nessa hora e meia, a importância de não evitarmos nossas emoções, mesmo que negativas; e de que os seres humanos são feitos de combinações desses afetos, que discutem dentro de nós todos os dias, mas que têm a Felicidade como objetivo comum.
Todos somos um pouco de tudo isso, porque é tudo isso humano como nós também somos. “Divertida Mente” é outra das grandes animações que a parceria Disney-Pixar fez desembocar. Um must-see para qualquer pessoa que curta este tipo de cinema.
Lindo demais!
“Alegria: Ah não! Esses Fatos e Opiniões são tão parecidos!
Bing Bong: Não se preocupe. Isso acontece o tempo todo.”
Viver a Vida
4.2 391O lendário diretor franco-suíço Jean-Luc Godard dirige, em 1962, um de seus longas mais importantes. Sedimentando parte da estética do que se tornaria a Nouvelle Vague – nas tomadas excêntricas, no ocultamento dos rostos e na divisão do roteiro em partes nomeadas por detalhes – VIVRE SA VIE é um ensaio do movimento pelo qual o diretor se tornaria mais conhecido, e uma referência estética para o cinema que surgiria daí.
Embora não seja uma história não-linear ou complexa nesse sentido, “Viver a Vida” é um conto sensível e humanizador sobre Nana, uma aspirante a atriz que acaba se tornando prostituta na França, retrato de uma vida feminina rodeada de incertezas e abusos. Conversando vagamente com feminismo de segunda onda que ocorre no país, Godard aborda temas que interessam muito, num contexto em que as mulheres casadas ainda não tinham o direito de trabalhar sem a permissão dos maridos (o que só seria possível três anos depois deste filme ser lançado).
Trata-se de um longa marcado por diálogos incríveis, a exemplo da conversa sobre a linguagem e o amor, mais pro fim da história. Há cenas que são verdadeiras experiências cinematográficas radicais, como a abertura, em que não vemos os rostos dos personagens por quase dez minutos ininterruptos. A verdade é que Godard estava fazendo escola, e este filme representa uns dez passos à frente em relação ao seu primeiro longa, “Acossado”. Em “Viver a Vida”, o artista encontrou o equilíbrio entre a narrativa, a política, a filosofia e a acessibilidade, criando um de seus filmes “mais fáceis” mas não por isso “menos bons”.
Este é um clássico com toda a força de um. Assista!
“Nana: O amor não deveria ser a única verdade?
Filósofo: Para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é assim. Quando você tem vinte anos, não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só à sua experiência. Você diz ‘eu amo isso’, e é sempre uma mistura. Para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade, e isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro.”
Cinema, Aspirinas e Urubus
3.9 364 Assista AgoraUm filme-diálogo muito bonito entre um “paraíba” e um “galego”...
CINEMAS, ASPIRINAS E URUBUS, o longa de estreia de Marcelo Gomes, se apresenta como uma experiência formidável. Com longas tomadas em contra-luz, na vibrante iluminação do sol no sertão nordestino, este filme "pé-na-estrada" conta a história do tio-avô do diretor, que conheceu um alemão na época da segunda guerra que viajava pelo Brasil fazendo propaganda para a Aspirina, um remédio que surgia então. O filme trata deste encontro, da amizade que se desenvolveu entre eles, das diferenças culturais e das diversas formas de ser, pensar e sentir quando se compartilha uma experiência em comum com o outro.
A química entre os protagonistas Johann e Ranulpho mantém o longa interessante em todo o tempo. A edição é ágil, e os figurinos afinados com a década em que a história se passa. Regionalismos, diversidade e bons momentos de comédia fazem este filme ter de tudo um pouco, e não é por menos: em 2015, ele entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da ABRACCINE.
No mais, é uma brincadeira com empatia e respeito pelas culturas e vivências de cada um. Em tempos em que pessoas não se sentem mais envergonhadas em ser preconceituosas, cabe demais um filme como esse, para fazer uma visita à sabedoria que jaz na compreensão do outro em sua plenitude e piedade...
Para ser visto com muito, muito carinho...
“Ranulpho: O país tá cheio de filho da puta. Bota uma farda e pronto: sai gritando com todo mundo. Isso é jeito de tratar gente? Somente porque é flagelado.
Johann: Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho.
Ranulpho: Eu fiz o que fizeram comigo; agora eu mudei. Posso não, é?
Johann: Pode.”
Como Nossos Pais
3.8 444Um filme robusto, com edição fina e boníssimas atuações.
COMO NOSSOS PAIS é o mais recente longa de Laís Bodanzky, que anos atrás dirigiu o notável “Bicho de Sete Cabeças”. Representa uma análise precisa da situação dos gêneros, e sua divisão (social) de trabalho no nosso país. Trata da maternidade, da sobrecarga da mulher no ambiente doméstico e do desequilíbrio existente (quase que naturalmente) numa relação heteronormativa, em que filhos são uma responsabilidade e o trabalho é uma realidade com a qual sempre se deve lidar.
Um estudo muito bem-editado sobre as relações humanas, neste caso entre mãe e filha, esposa e esposo, e mãe e filhas. A busca incessante por uma representação paterna, o desnorteamento das emoções e o desmantelamento das relações são alguns dos temas adjacentes, possíveis de ser lidos também. O filme de Bodanzky é, sobretudo, um drama humano, no que se percebe por sua direção expressiva e seu argumento aparentemente simples, mas talhado de maneira profunda e comovente.
Um dos nossos muito bons dramas. Assista!
“Rosa: Pra eu ter tesão em você de noite, você tem que ter sido legal o dia inteiro comigo. Ter me ajudado nas tarefas do dia-a-dia. Eu não consigo simplesmente ter tesão em você de noite, abstrair de tudo isso e gozar.”
Vá e Veja
4.5 756 Assista Agora“E, havendo [o Cordeiro] aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vá, e veja.” Apocalipse 6:7.
IDI I SMOTRI, derradeiro filme de Elem Klimov, considerado por muitos sua obra prima, é o ápice dos filmes anti-guerra feitos até então. Oferecendo uma visão distinta da estadunidense ‘tradicional’, o longa narra a trajetória de Florya, um menino aspirante da guerra que se une à guerrilha soviética contra as tropas nazistas. Entretanto, ao contrário do que ele espera, a segunda guerra mundial não se apresenta a brincadeira de criança que ele pensava ser, e o horror e o absurdo vão encontrá-lo muito mais rápido, muito mais alto e muito mais perto do que ele imagina...
“Vá e Veja” é uma referência no cinema internacional; seja pela estonteante fotografia, pelos efeitos pirotécnicos ou pela profundidade de seus simbolismos, o longa tem um roteiro escrito com precisão, e que toma tempo para digerir. Ele evidencia a total estupidez da guerra, onde nunca há amor, somente ódio, e o massivo investimento de energia para a aniquilação do outro, quase que simplesmente por sua diferença em relação a nós. Falamos da cultura da morte, dos aniquilamentos em massa e, principalmente, do etnocentrismo, que foi a mola mestra que catapultou, em todos os séculos, o que mais tarde se chamaria de 'imperialismo'.
Sendo assim, “Vá e Veja” é um gigantesco manifesto anti-guerra e anti-fascismo. Humanizando este “outro”, e apresentando lados da guerra de maneira justa, IDI I SMOTRI faz-nos participar da filosofia da resistência soviética, num sentido amplo e muito bonito, que é toda a força de vida que ainda está por vir. Lembrando sempre, é claro, que a violência reativa de um grupo/nação oprimida nunca está em pé de igualdade com a violência de quem exerce o poder sobre ela. Uma reação a uma violência não sobrepõe-se à violência primeira, que é o próprio caos em si, e o desgaste humano em sua essência.
Definitivamente um dos filmes obrigatórios para quem gosta de cinema.
“Oficial Alemão: Sim, eu disse isso: ‘Saiam e deixem as crianças’. Eu disse isso porque com as crianças começaria tudo de novo. Você não tem direito de existir. Nem todas as raças têm o direito de existir. Escutem! Escutem todos! As raças inferiores propagam o contágio do comunismo. Você não tem direito de existir. E nossa missão será cumprida. Se não hoje, amanhã.”
Artista do Desastre
3.8 555 Assista AgoraOh hi Mark!
Segundo o próprio Tommy Wiseau, em THE DISASTER ARTIST, James Franco conseguiu captar 99.9% da essência do que foi a produção do (dito) pior filme da história estadunidense. THE ROOM, que teve direção, roteiro, produção e protagonismo de Wiseau, estreou em 2003 sem alcançar grandes públicos e encerrou sua temporada como um grande fracasso de crítica e audiência. Trucidado por anos, o filme ganhou status cult e, em 2017, uma espécie de refilmagem/paródia/biografia estranha, mas mesmo assim muito especial.
De fato, James Franco (e seu companheiro de sempre, Seth Rogen) embarcam numa jornada que demonstra empatia e compreensão, sobretudo da parte de Franco – que, diga-se de passagem, também dirigiu, produziu e protagonizou este filme. Nos moldes do THE ROOM original, Franco conduz a narrativa escrita pelo melhor amigo de Wiseau, Greg Sestero, contando a história de como nasceu a amizade que eles têm até hoje, e os bastidores do que foi um longa que teve quatro equipes técnicas diferentes e foi filmado em dois formatos.
Embora vejamos pouco da protagonista Juliette Danielle aqui, e detalhes importantes sobre Tommy sejam simplesmente insondáveis (até por ele próprio), THE DISASTER ARTIST conta sua história com críticas pertinentes e momentos de comédia genuinamente bons – como a cena do terraço com a garrafa e o diálogo entre Greg e Tommy sobre violência contra a mulher. A atuação de Franco como Wiseau é incrível – e denota bem como tudo pareceu, àquela época, como uma desajeitada tentativa de pertencer à sociedade norte-americana, por parte de um imigrante que não sabia falar inglês direito mas tinha o sonho de fazer um longa em Hollywood.
Quem assiste para rir se diverte, e quem procura informações até psicológicas, também encontra aqui. É um filme significativamente melhor do que o filme sobre o qual ele fala, mas é também uma verdadeira declaração de carinho por um cineasta iniciante, que nunca foi esquecido – mesmo que pelos motivos errados.
Assistam! Vale a pena.
“Sandy Schklair: Tomada 67, ação!
Tommy Wiseau: Eu bati nela!
Sandy Schklair: Não! Você quer mudar a fala?
Greg Sestero: Você tá ótimo, cara. Vamos chegar lá!”
Tallulah
3.6 234 Assista AgoraUm longa interessante sobre uma situação nada absurda.
Quase como que uma continuação involuntária de “Juno”, TALLULAH nos apresenta questões muito importantes sobre maternidade, e também maternidade compulsória. Ellen Page está, como sempre, trabalhando com excelência, e o restante do elenco faz a sua parte tranquilamente. O roteiro, também assinado pela diretora Sian Heder, tem boas reviravoltas e segue interessante por todo o curso a história – sua direção, aliás, é atenta e detida, como todo bom drama apresenta.
Embora seja um filme “raso”, no sentido que as questões psicológicas/sociais que envolvem o sequestro não sejam profundamente abordadas, TALLULAH é um bom entretenimento – em especial, pela bela construção dos arcos das 'antagonistas' Tallulah e Carolyn. Se você assiste sem saber o enredo, o susto é ainda maior...
Um bom filme.
“Tallulah: Seu plano dependia de outras pessoas. Outras pessoas são uma merda, e vão te desapontar todas as vezes.”
Para Sempre Lilya
4.2 869Pesado, absolutamente triste e – talvez – além do suportável como cinema...
Nos últimos tempos, venho me perguntando a necessidade da exposição de certas formas de violência nos filmes. Por vezes gratuitas, há cenas que, de tanto serem repetidas, parecem ganhar mais força, com o objetivo de chocar e fazer o espectador revirar o estômago. Deixando qualquer filme de terror no chinelo, filmes com tal grau de “realismo” e “consciência” chocam, mas também fazem questionar o sentido da superexposição dessa “violência gratuita”, como mais tarde criticaria o austríaco Michael Haneke.
Assim ocorre em “Para Sempre Lilya”, terceiro filme de Lukas Moodysson, que mais tarde produziria o também elogiado “Container”, de 2006. Aqui, Lilya vive o caso real de Danguole Rasalaite, uma lituana órfã enviada para a Suécia nas mesmas condições que a personagem, e que encontrou no país uma realidade ainda mais severa que aquela que vivera antes. O caso chocou o mundo, reacendendo o debate sobre tráfico humano e resultando neste roteiro, também assinado por Moodysson.
Como em seus filmes anteriores, o protagonismo é dos adolescentes que, neste caso, são os órfãos do império soviético, a Rússia pós-dissolução. Crianças e jovens encaram a crise russa no desalento silencioso de uma realidade cinzenta, fria e distante. Não há qualquer tipo de assistencialismo – e o Estado, como em tantos casos, não dá conta da demanda social, sobretudo a das “meninas-mulheres”.
De qualquer forma, fica o questionamento: qual a necessidade de fazer um filme nesses moldes, com tanta porrada que acaba “desconvidando” o espectador a acompanhá-lo? É claro que se trata de uma realidade duríssima, e que deve ser contada e debatida, mas há muitas escolhas artísticas aqui que tornaram este filme raso, e violento de maneira até desequilibrada. Em tempos como os de hoje, fica difícil acompanhar ativamente uma experiência tão dolorosa, e que às vezes soa gratuitamente dolorosa.
Ninguém precisa submeter o olhar a tanta violência por tanto tempo simplesmente “porque é violência”. E nem precisa ver tudo, exatamente como acontece, todas as vezes. Para isso existe a metáfora – para que possamos acessar as sensações sem necessariamente termos que materialmente entrar em contato com a experiência.
Às vezes, pode ser melhor ler sobre o caso e acompanhar o debate do que necessariamente assistir ao filme. E talvez este seja o caso.
“Professora: Um futuro brilhante te espera... É brincadeira.”
Olmo e a Gaivota
3.9 149O cinema poético e documental de Petra Costa encontra o de Lea Glob numa produção diferente, em que o real parece “dirigido”, e o teatral parece “ainda mais real”.
OLMO E A GAIVOTA aborda um ano na vida de Olivia Corsini e Serge Nicolai, um casal de atores que passa pela gestação de seu primeiro filho – explorando os acontecimentos e suas nuances nas vidas dos dois. Com a direção cuidadosa de Petra, e suas ocasionais intervenções, o documentário não tem tanta cara de “doc”, parecendo que Olivia e Serge estão constantemente “atuando” sobre suas próprias vidas. Esta brincadeira entre o real e o teatral (imaginário e ilusório) ocorre algumas vezes, e sempre em boa hora. Contudo, mesmo que seja um longa com sua dose de beleza e poesia, senti que, dentre os da Petra, é o menos cativante, e o que mais parece ter sido “descoberto à medida que ia sendo filmado”.
Muito do que se vê aqui é o dia-a-dia, a rotina e o cansaço pelo qual passa Olivia, seguindo a verdadeira essência do cinema que vai em direção ao feminino; Petra e Lea, afinal de contas, conseguem chegar a um retrato bonito da vida de uma mulher artista, embora não saibamos se este retrato é confiável ou não: uma das belíssimas e possíveis traições do verbo...
É bem bonito, mesmo que não seja um favorito.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraO terror, como um gênero cinematográfico, tem precisado de renovação há tempos. Os filmes da A24, por exemplo, têm sido uma boa caminhada nesse sentido (“A Bruxa”, “Hereditário”, “Clímax”...) e EL HOYO parece querer entrar para a lista – mas não consegue fazê-lo...
O longa, dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, narra a história de um homem que acorda numa espécie de cyber-prisão, em que duplas convivem por um mês juntas, numa sala cúbica, por cujo buraco central passa a comida, de cubo em cubo, indefinidamente. A arquitetura da produção lembra muito aquele clássico “O Cubo” (1997), só que com a adição de uma metáfora poderosa sobre a luta de classes: o acesso à comida como forma vertical da manutenção do poder. Pessoas egoístas, invejosas e doentes, partilham da mesma ceia, comendo o quanto quiserem, sem se importar com o cubo debaixo, onde outras pessoas esperam pela mesma comida...
Não se esgota a discussão social que “O Poço” promove, mas é importante ressaltar que, como um filme de terror/ficção científica, ele tem furos demais para funcionar plenamente. Além disso, as escolhas narrativas para o final são só frustrantes e desestimulantes – parece que uma pessoa escreveu metade do filme, e outra fez o resto, tão diferentes que são as duas metades desta produção. O que começa com uma pegada alternativa e experimental acaba virando mais um slasher gratuito, jogando fora a metáfora de que se valeu para ficar em pé.
É outro dos filmes que, apesar da boa intenção, acaba sendo só mais um título mal-acabado da Netflix – que, até então, produziu muito boas séries, mas cinematograficamente tem ficado para trás... À exceção de um filme ou outro, geralmente o que a empresa produz no formato longa costuma ser bem abaixo do padrão de qualidade que eles têm para o formato série.
EL HOYO, infelizmente, não é exceção para isso.
Não indico!
“Goreng: Há três tipos de pessoas; as que estão em cima, as que estão abaixo, e as que caem.”
Coerência
4.0 1,3K Assista AgoraUm dos queridinhos do cinema alternativo/underground, COHERENCE é uma experiência mista – um pouco boa, um pouco ruim – que aborda conceitos da física quântica aplicando-os na prática, durante a passagem de um misterioso cometa pela superfície terrestre...
O longa, do estreante James Ward Byrkit (que foi roteirista da animação “Rango”, de 2011) apresenta um grupo de oito amigos que se reúnem e recebem, misteriosamente, uma caixa contendo a foto de cada um, com um número atrás, e uma raquete de tênis de mesa. Intrigado, o grupo passa a discutir a metafísica que deriva disso num dos filmes de baixo orçamento mais “assistíveis” dos últimos anos. Dá para compará-lo com os também alternativos “Cubo 2: Hipercubo” e “Quem Somos Nós?”, que discutem as mesmas questões, só que com abordagens diferentes.
Filmes simples, munidos de ideias poderosas e desafiadoras, sempre valerão a pena ser conferidos. Não é diferente com “Coerência”, pelo bom suspense que conduz e pelo conceito que apresenta, esmiuçado e explicadinho, dos efeitos coerentes na teoria do Gato de Schrödinger. Embora por vezes mostre sinais de amadorismo (muita escuridão, problemas graves de foco e algumas atuações bem furrecas) o filme passa como um exercício mental divertido e elegante, divergindo do cinema como é produzido ainda hoje.
Sigo crendo que uma boa ideia sobrepõe-se a orçamentos enormes e efeitos de ponta. É raro ver filmes de circuito fechado abordando questões tão experimentais, portanto vale a pena assisti-lo pelo menos uma vez, para conhecer este tipo de cinema, feito com o mínimo, mas com bastante poder em sua mensagem...
Dê uma olhada!
“Amir: Esta foto foi tirada hoje.
Em: O quê? Como sabe disso?
Amir: Eu comprei este suéter hoje, então ela é de hoje.”
The Room
2.3 492Para longe dos filmes “B” ou “inassistíveis” de sua época, THE ROOM impressiona não pela sua (já sabida) péssima qualidade, mas pela experiência verdadeiramente hipnótica que proporciona aos seus espectadores (há quase 20 anos)...
A verdade é a seguinte: filmes realmente ruins a gente não assiste até o final. Quando são péssimos, cheios de furos e tudo mais, não vemos até o fim – mas THE ROOM é diferente disso. Seguindo à risca o conceito do “paracinema”, Tommy Wiseau dirigiu, produziu, escreveu e protagonizou uma produção que não tem nenhum atributo positivo, mas que por isso mesmo chama a atenção dos cinéfilos até hoje.
Quase como uma qualidade irônica, o filme é uma comédia involuntária em todas as suas decisões artísticas: o uso desnecessário da grua, os péssimos enquadramentos, as cenas que se estendem sem necessidade, as falas mal-escritas (em atuações terríveis) e o cenário dolorosamente anti-natural em que a ação se dá... Tudo é, por algum misterioso motivo, feito da maneira errada, e isso, inexplicavelmente, funciona a ponto de ficarmos até o final, para ver aonde ele quer chegar.
Fato é que não houve, na história do cinema estadunidense, outra produção do tipo, tão esculachada pela mídia e ignorada pelo grande público, que resistiu ao tempo e tem marcado gerações, tendo sido cultuada até hoje em alguns cinemas alternativos de São Francisco. Ninguém discute que, cinematograficamente, o filme é um manual do que “não-fazer”; mas que é uma experiência diferente de todas as outras, isso ninguém pode tirar.
Assistindo como um drama sério, é o pior que já existiu; mas como uma comédia, ele funciona até que bastante bem.
Eu diria para você dar uma chance. Talvez também se impressione...
“Johnny: Eu não bati nela. Não é verdade. É mentira! Eu não bati nela! Não bati! Oh, olá, Mark.”
Amarelo Manga
3.8 543 Assista AgoraEste aqui simplesmente não rolou.
AMARELO MANGA, o longa de estreia de Cláudio Assis, com sua verve “suja” e “pouco poética”, conseguiu adquirir (quem diria?) um status ‘cult’ com a virada da década. O enredo é multi-facetado, sendo vivido pelos habitantes do Recife Antigo, numa estética “crua”, quase sem efeitos especiais e com produção de baixíssimo orçamento (mesmo para a época).
Infelizmente, abordar só a estética e o enredo não é falar tanto. Este drama se estende por tempo demais, tornando-se monótono na primeira meia-hora, e não justifica sua existência mesmo quando resolve os arcos que apresenta. Há nudez feminina desnecessária para a trama, e o abate de um animal que é igualmente desnecessário. Há cenas, também, parece que “feitas para chocar”, o “soco pelo soco” – num Gaspar Noé brasileiro e sem a megalomania deste. As trajetórias dos protagonistas não cativam, algumas atuações (sobretudo as de Kanibal e Dayse) são ruins e o resultado só sai... Chato, cansativo e insatisfatório.
Compreendo que tenha seus apoiadores, mas penso que filmes deste nicho específico, com doses de “crueza”, “violência” e “a vida como ela é”, na verdade são só uma maneira de capitalizar a cultura da morte – a cultura do abate, do tiro na cara e do assédio sexual. São maneiras que o consumo encontrou para erotizar a violência – e este filme faz isso muito bem, a começar pelo seu pôster, da vagina “amarelo manga” perseguida no longa.
Respeito quem curta esta abordagem, mas para mim não fala tanto mais. E o Brasil tá longe de ser só todo esse pessimismo e essa violência desenfreada...
Eu não indico.
“Padre: O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação: terá obrigatoriamente que ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver. Por isso meus olhos estão cegos: para não enxergar a gosma desses pecadores. Meus ouvidos escutam uma voz que diz ‘padre! Morrer não dói! Morrer não dói! Estamos todos condenados! Eternamente condenados... Condenados a ser livres’.”
O Lobo Atrás da Porta
4.0 1,3K Assista AgoraO horror, o horror, meu deus...
Seguindo a pós-retomada do cinema brasileiro, O LOBO ATRÁS DA PORTA é um suspense terrível, e por isso mesmo excelente. Recheado de diálogos intensos, e construindo uma trama a cada minuto mais pesada, o longa de Fernando Coimbra chega a um clímax chocante e bastante traumático (apesar de previsível, se soubermos sobre quem é esta história).
Além de absolutamente brasileiro – nas gírias, nos cenários e nas locações do Rio – este aqui é um baita filme policial: cobrindo um caso ocorrido na Penha em 1960, O LOBO... se apresenta no mesmo nível dos suspenses estadunidenses sobre casos chocantes, como “Um Crime Americano” e “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal”. Se você não sabe qual é o caso sobre o qual este filme fala, assista a ele primeiro: o choque será muito maior.
Para além disso, resta dizer que o respeito à nossa cultura, ao nosso cinema e à nossa língua é a ferramenta necessária para a verdadeira construção da identidade brasileira. Para que o vira-latismo brasileiro pereça, será preciso que mais brasileiros assistam aos fantásticos longas que produzimos aqui, no país que criou a Tropicália, mas também gerou uma fera na Penha, de cujo horror você não se esquecerá...
Vale muito a pena! Suspense dos bons.
“Delegado: Eu pedi pro senhor voltar aqui porque eu tô precisando de mais alguns detalhes sobre o seu envolvimento com a Rosa. Quero entender isso, como é...
Bernardo: Ah, caso de rotina, doutor, essas coisas que acontecem... Sexo sem envolvimento emocional, essas coisas. Rotina. Coisa de homem, inevitável. Essas coisas que acontecem com a gente, o senhor sabe bem como é, não é?
Delegado: Não, não sei não, senhor Bernardo.”
O Cheiro do Ralo
3.7 1,1K Assista Agora“Eu não quero casar com essa bunda. Eu quero comprar ela pra mim.”
O CHEIRO DO RALO é incrível. Heitor Dhalia numa direção impecavelmente afiada, e Selton Mello colaborando com a excelência que ele sempre teve, numa atuação complexa, profunda e difícil de esquecer. Complexo, aliás, é pouco para o personagem de Lourenço, barbaramente esmiuçado pelo autor Lourenço Mutarelli e transposto para o cinema pelo próprio diretor.
É um longa muito bem feito, recheado de bons diálogos e simbologias interessantes. Dá para analisá-lo por vieses psicológicos, sociológicos, antropológicos e até filosóficos – não se esgotando nem na primeira nem na décima revisita. Dhalia produziu um dos grandes filmes do cinema pós-retomada do Brasil, criando analogias e metáforas fortes numa produção que mistura abuso de poder com comédia, e seriedade com bizarrice psicanalítica.
Como na sinopse do livro, ‘entre a bunda e o ralo, não lhe resta saída que não seja ir para o buraco’; assim ocorre no longa de maneira excepcional, calando a tudo e todos. É pesado e diferente de um jeito muito bom – para ser visto, sentido e degustado como só o cheiro da merda de Lourenço poderia ser.
Assista! Não vai se arrepender!
“Lourenço: ‘O cheiro do ralo’. Sinto um prazer estranho quando eu digo isso. É como se eu me reencontrasse. Talvez o cheiro seja meu. Foi o cheiro que me trouxe à bunda. É um presente do inferno.”
Encontros e Desencontros
3.8 1,7K Assista AgoraUm filme morno (apesar de bem-editado) e infelizmente xenofóbico...
Sofia Coppola produziu em 2003 um dos seus mais importantes longas; LOST IN TRANSLATION, cujo título tem traduções diferentes para cada país em que foi lançado. Com a intricada arquitetura de Tóquio como uma metáfora para o romance pseudo-profundo que Coppola tentou escrever, “Encontros e Desencontros” tenta ser o que não é, e de morno acaba virando enfadonho nos primeiros minutos – e xenofóbico nos restantes...
O esvaziamento de sentido causado pelo acúmulo de riqueza material encontra em LOST IN TRANSLATION o tédio, seja no casamento mal-vivido de Charlotte, ou na insatisfação profissional de Bob depois de anos de carreira. Ambos, aliás, não passam de burgueses da classe alta que perderam seus objetivos e desejos para criar movimento em suas próprias vidas. É desse esvaziamento que se fala quando se aborda uma vida regrada de regalias, na qual faltam emoções, imperfeições e (re)descobertas.
Ademais, a forma como este filme coloca o povo japonês no lugar do “exótico”, “excêntrico” e “cômico” não é só feia, mas também xenofóbica e até racista. Os exageros para com o povo amarelo falam por si só: tudo é caricato, engraçado, motivo para rir das diferenças culturais entre os estadunidenses “intelectuais e civilizados” e o “povo que adora comer dedo podre”. O olhar blasé de Bob para toda pessoa não-branca no filme entrega como este é um baita desrespeito com a cultura japonesa – maior até do que fazer Tom Cruise ser “O Último Samurai” do Japão, filme que saiu no mesmo ano inclusive.
Para além disso, “Encontros e Desencontros” é só um longa chato, que não sabe aonde quer chegar e nem tem ideia de como caminhar até lá – uma outra metáfora para a confusão de seus personagens, que se estende também para a diretora/roteirista disso aqui. Coppola conduz com o mesmo desinteresse, quase um tédio melancólico que contagia o espectador, bastante real e por isso mesmo pouco vivo e muito morno.
Pode ter sido o filme que originou o mumblecore dos millenials, mas isso não o torna mais assistível ou mesmo tão importante assim.
Este tipo de cinema já deu.
“Bob: For relaxing times, make it Suntory time.”