O cineasta Émerson Maranhão costuma dizer que faz cinema para entender aos outros. “Para me aproximar de universos e situações que me sejam desconhecidos. Eu acho que o cinema, tanto para quem realiza quanto para quem consome, traz em si uma oportunidade empática única, uma chance raríssima de se colocar no lugar do outro”. E seu primeiro longa, TRANSVERSAIS, essa chance se expande. O filme, que faz sua estreia mundial na 45a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma celebração da diferença, num país cada vez mais marcado pela exclusão.
O longa, que parte de dois projetos anteriores do diretor, uma websérie e um curta, acompanha a vida de cinco pessoas, que vivem a experiência da transexualidade de diversas maneiras. A funcionária pública Samilla Marques e a professora Erikah Alcântara nasceram em corpos masculinos. O enfermeiro Caio José e o acadêmico Kaio Lemos, em corpos femininos.
Os quatro passaram por um delicado processo de auto-aceitação até compreenderem a sua natureza. Hoje, submetem-se a tratamentos hormonais que lhe asseguram uma aparência condizente com a maneira como se veem, mas ainda sofrem com a incompreensão, o estranhamento e o preconceito. Já a jornalista Mara Beatriz, mulher cisgênero e heterossexual, enfrentou a transfobia de perto e refez sua vida ao tomar conhecimento que era mãe de uma adolescente transgênero. Hoje, é uma das mais ativas militantes do grupo Mães pela Diversidade no Ceará.
A ideia do longa, de certa forma, começou em 2015, quando Maranhão conheceu Samilla, uma mulher trans, nascida e criada em um lar evangélico e que, à época, frequentava a igreja com os pais. A partir dela, o diretor conheceu outras mulheres na mesma situação e realizouuma websérie sobre elas. Ao longo dos anos, o documentarista conheceu, nas situações mais diversas, os demais entrevistados do longa. “Em nenhum momento eu tive dúvidas que essas cinco personagens não só dialogavam entre si, trazendo diferentes questões para a narrativa fílmica, como davam uma força e uma vida únicas ao documentário. Foi uma grande felicidade encontrá-los.”
Radicado no Ceará, há 23 anos, Maranhão conta que ao lançar seu curta, em 2018, percebeu haver muito poucas as produções audiovisuais que lançassem um olhar sem estereótipos para pessoas trans, uma abordagem humanizada e não a do estranhamento, a do exótico, a do não-pertencimento. “A partir daí, decidi que queria imprimir justamente essa perspectiva num documentário ao contar essas histórias. Ou seja, TRANSVERSAIS nasce do desejo de trazer essas histórias incríveis para o centro da discussão. Ao mesmo tempo em que são histórias sensacionais são essencialmente histórias de gente comum, como eu e você, e apresentá-las assim, no que tinham de mais habitual, de mais corriqueiro, foi o que me moveu a fazer o filme.”
O longa foi filmado em fevereiro de 2021, enquanto a 2a onda da Covid-19 avançava no país, o que obrigou ao diretor e sua equipe readequar a produção do filme. “Foram dias muito tensos e intensos. Um desafio enorme. A sensação é que estávamos correndo contra o relógio o tempo todo. Mas deu certo! Para você ter uma ideia, na semana seguinte ao término das filmagens, o governador decretou isolamento social rígido, com confinamento domiciliar e suspensão das atividades comerciais.”
Allan Deberton, que além de produzir também distribui o filme, é parceiro artístico de Maranhão desde o curta, e vê no longa uma grande responsabilidade. “A série de TV, inscrita em edital de TVs públicas, finalista na chamada, mas censurada pelo presidente Jair Bolsonaro, tendo sido esta censura amplamente notificada na imprensa, fez-me sentir na pele a tristeza do silenciamento. A minha atuação, com o Émerson, foi a de fazer o projeto existir, por pura necessidade – ninguém impedirá a liberdade de expressão. Fazer este filme tornou-se ato civilizatório.”
O diretor também vê em TRANSVERSAIS um potencial transformador. “Eu acho que é justamente nesse Brasil preconceituoso e extremista que esse filme se faz necessário. Porque é um filme afirmativo, é um filme que celebra a existência e a resistência, é um filme que defende que a convivência com as diferenças é possível. Ou seja, o oposto do que temos hoje no País, onde o diferente torna-se automaticamente um inimigo de ferro e fogo.”
E Deberton complementa: “O projeto documentário já carregava em si questões sociais e políticas, inerentes ao tema, mas depois da censura, entendemos que tinha algo a mais que nos motivava: falar de amor, contra todo este discurso de ódio que cancelou a nossa série. Transformamos em filme. Torço para que o filme emocione e seja um sopro de esperança.”
TRANSVERSAIS é distribuído pela Deberton Filmes.
Imagem: Deberton Filmes/Divulgação