Apesar de ser um desfaçatoso instrumento de propaganda político-ideológica, cheio de estereótipos e caricaturas do que seria o comunismo (até a famosa "esquerda-caviar" entra em cena para reforçar o argumento), Ninotchka merece aplausos pela obra de arte que é: uma comédia elegante e espirituosa.
Gosto da estética do absurdo e do humor negro nesse filme tão bizarro. Além de nos convidar a pensar, é muito divertido. Pelo menos pra quem tem um senso de humor estranho como o meu (as pessoas que assistiram comigo não viram tanta graça).
"- Joãozinho? Tenho um soneto que 'és muy simpatico'. Porque pertenço a um grupo de seres malditos... - Não, isso não precisa."
É doloroso testemunhar um diálogo assim. Por isso muitos se indignam frente ao mau tratamento do diretor em relação à pessoa do mordomo. Mas João Moreira Salles não tem ao menos o mérito de humildemente se expor a esses julgamentos? Ele podia ter ocultado essas atitudes suas e ter se passado por um sujeito mais benevolente. Mas ele conscientemente escolhe não fazer isso, o que revela honestidade. Acusam o diretor de ser "pretensioso", mas ele reconhece, já numa fase mais madura da sua carreira, o certo esnobismo que ele tinha (como pesssoa e como artista) e trata dessa faceta sua com distância irônica e auto-consciência (o que não deve ser confundido com auto-complacência). Eu vejo o filme, na verdade, como um belo (ainda que tardio) pedido de desculpas. Uma busca genuína com e pela empatia, por parte de um ser humano que, como todo ser humano, erra e pode mudar, Olhando por esse lado, será que nossos juízos moralistas cabem aqui?
Estamos em plena década de 1950, antes mesmo, portanto, da Revolução Sexual, e o filme já trata da emancipação feminina. Apenas por tematizar essa questão o filme já mereceria uma estrela. Mas ele vai além. Nesse obra neorealista, as relações de poder classistas e raciais são, além da questão de gênero, os eixos centrais da sua trama. Eu me pergunto como esse filme, em plena Guerra Fria, sobreviveu aos rigores do macartismo vigente então. O fato é que além da sua abordagem crítica de problemas sociais, ele constitui uma obra bem acabada, com um roteiro marcante e uma ótima direção. Lindo filme.
Um primor cinematográfico. A fotografia, que das paisagens da anatólia e da reconstituição daquele Velho Mundo revela todo o seu charme nostálgico e sua aviltante brutalidade, e que, com seus jogos de sombra e luz, conferem profundidade à alma dos personagens; a montagem que empresta um dinamismo febril à longa narrativa, análogo em seus cortes abruptos, às reviravoltas nada suaves das inesperadas vicissitudes da vida; a sonoplastia, por vezes inventiva, que alarga a espessura dramática de certas sequências tão cativantes do filme; sua trilha sonora evocativa; tudo aqui me encanta, me instiga e me comove. E o que dizer das formidáveis interpretações que os atores fazem dessas simpáticas, complexas e tão humanas figuras que preenchem com sua grandeza distinta a tela? A partir de um roteiro repleto de pérolas memoráveis, elas tomam seus respectivos lugares nessa odisseia de um Ulisses que elege a América como sua nova Ítaca. As peripécias dessa sua viagem não consistem apenas numa epopeia que exalta a atemporal aventura humana. Ela é também uma aula de História, pontuada por críticas sociais contundentes em torno de questões étnicas, de classe e de gênero, de modo que o filme nada deixa escapar. O meu único desapontamento é com o seu desfecho. E aqui vai um spoiler.
O protagonista finalmente chega ao Novo Mundo e, como que por milagre, todos os seus problemas se resolvem. Não consigo deixar de me embaraçar com o tom levemente triunfalista, que celebra o self-made man e acaba por contribuir para edificar o mito da terra das oportunidades, que seria os Estados Unidos da América. Feita essa ressalva, devo destacar que em inúmeras sequências o realizador faz prevalecer o viés crítico da obra, tratando de nos atar ao mastro da sua navegação audiovisual, para que não nos lancemos ao mar na direção desse “canto das sereias”.
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Ninotchka
4.1 113 Assista AgoraApesar de ser um desfaçatoso instrumento de propaganda político-ideológica, cheio de estereótipos e caricaturas do que seria o comunismo (até a famosa "esquerda-caviar" entra em cena para reforçar o argumento), Ninotchka merece aplausos pela obra de arte que é: uma comédia elegante e espirituosa.
O Lagosta
3.8 1,4K Assista AgoraGosto da estética do absurdo e do humor negro nesse filme tão bizarro. Além de nos convidar a pensar, é muito divertido. Pelo menos pra quem tem um senso de humor estranho como o meu (as pessoas que assistiram comigo não viram tanta graça).
Santiago
4.1 134"- Joãozinho? Tenho um soneto que 'és muy simpatico'. Porque pertenço a um grupo de seres malditos...
- Não, isso não precisa."
É doloroso testemunhar um diálogo assim. Por isso muitos se indignam frente ao mau tratamento do diretor em relação à pessoa do mordomo. Mas João Moreira Salles não tem ao menos o mérito de humildemente se expor a esses julgamentos? Ele podia ter ocultado essas atitudes suas e ter se passado por um sujeito mais benevolente. Mas ele conscientemente escolhe não fazer isso, o que revela honestidade.
Acusam o diretor de ser "pretensioso", mas ele reconhece, já numa fase mais madura da sua carreira, o certo esnobismo que ele tinha (como pesssoa e como artista) e trata dessa faceta sua com distância irônica e auto-consciência (o que não deve ser confundido com auto-complacência).
Eu vejo o filme, na verdade, como um belo (ainda que tardio) pedido de desculpas. Uma busca genuína com e pela empatia, por parte de um ser humano que, como todo ser humano, erra e pode mudar, Olhando por esse lado, será que nossos juízos moralistas cabem aqui?
O Sal da Terra
4.2 21 Assista AgoraEstamos em plena década de 1950, antes mesmo, portanto, da Revolução Sexual, e o filme já trata da emancipação feminina. Apenas por tematizar essa questão o filme já mereceria uma estrela. Mas ele vai além. Nesse obra neorealista, as relações de poder classistas e raciais são, além da questão de gênero, os eixos centrais da sua trama.
Eu me pergunto como esse filme, em plena Guerra Fria, sobreviveu aos rigores do macartismo vigente então. O fato é que além da sua abordagem crítica de problemas sociais, ele constitui uma obra bem acabada, com um roteiro marcante e uma ótima direção. Lindo filme.
Terra de um Sonho Distante
4.0 11Um primor cinematográfico. A fotografia, que das paisagens da anatólia e da reconstituição daquele Velho Mundo revela todo o seu charme nostálgico e sua aviltante brutalidade, e que, com seus jogos de sombra e luz, conferem profundidade à alma dos personagens; a montagem que empresta um dinamismo febril à longa narrativa, análogo em seus cortes abruptos, às reviravoltas nada suaves das inesperadas vicissitudes da vida; a sonoplastia, por vezes inventiva, que alarga a espessura dramática de certas sequências tão cativantes do filme; sua trilha sonora evocativa; tudo aqui me encanta, me instiga e me comove.
E o que dizer das formidáveis interpretações que os atores fazem dessas simpáticas, complexas e tão humanas figuras que preenchem com sua grandeza distinta a tela? A partir de um roteiro repleto de pérolas memoráveis, elas tomam seus respectivos lugares nessa odisseia de um Ulisses que elege a América como sua nova Ítaca. As peripécias dessa sua viagem não consistem apenas numa epopeia que exalta a atemporal aventura humana. Ela é também uma aula de História, pontuada por críticas sociais contundentes em torno de questões étnicas, de classe e de gênero, de modo que o filme nada deixa escapar.
O meu único desapontamento é com o seu desfecho. E aqui vai um spoiler.
O protagonista finalmente chega ao Novo Mundo e, como que por milagre, todos os seus problemas se resolvem. Não consigo deixar de me embaraçar com o tom levemente triunfalista, que celebra o self-made man e acaba por contribuir para edificar o mito da terra das oportunidades, que seria os Estados Unidos da América. Feita essa ressalva, devo destacar que em inúmeras sequências o realizador faz prevalecer o viés crítico da obra, tratando de nos atar ao mastro da sua navegação audiovisual, para que não nos lancemos ao mar na direção desse “canto das sereias”.