"As divas fazem parte do meu mundo e eu do delas. Elas nunca foram estranhas para mim." , ouvimos logo no início do filme na voz de Leandra Leal. A afirmação não é banal, ao longo da trajetória somos expostos ao olhar sensível de quem, genuinamente, partilhava o mundo com as divas e foi capaz de captar as nuances que marcavam cada uma delas.
O longa conta a história da primeira geração de artistas travestis do teatro de variedades carioca, que emerge na cena cultural na década de 1960, em meio as duras restrições impostas pela ditadura militar. As memórias das artistas nos defrontam com inúmeras questões inerentes ao sistema de violência de gênero, à censura da ditadura militar, ao uso higienista dos sanatórios e manicômios e ao uso político da loucura como marca de exclusão para àqueles que destoavam das normas sociais e a negação das suas existências enquanto sujeitos, seja com a interdição a andarem nas ruas ou a viverem seus amores livremente.
No país que mais mata transexuais e onde a maioria dessa população não chega a terceira idade, o filme é um símbolo de resistência e um raro momento onde podemos ouvir as histórias desses sujeitos em primeira pessoa!
Concordo com os comentários abaixo que a montagem poderia ter sido melhor realizada e que a direção dos atores no fundo preto deixou a desejar, não atingindo o efeito pretendido de aprofundar a natureza dramática da trama. Ainda assim, é um trabalho corajoso, aborda uma questão de vital importância para nossa perpetuação enquanto espécie e consegue congregar um bom número de opiniões de diversos atores.
A ordem dos espaços nas primeiras cenas, as belezas naturais do hotel-prisão que não suscitam afetos positivos de algum modo anunciam o que se desenrolará – as relações interpessoais que ali serão desenvolvidas também não provocaram qualquer sorte de sentimentos e serão permeadas por falsidades e utilitarismos – o outro é apenas mais um dos objetos cotidianos. As relações são constituídas diante do silenciamento das dissonâncias – silenciamento que se dá também no investimento afetivo das falas, que são continuamente monótonas e vazias - “se vocês encontrarem qualquer problema ou discussão que não consigam resolver sozinhos, nós te daremos crianças”. Arruma-se atribuições contínuas que possam desviar a atenção das possíveis contendas. Nessas relações calcadas em vínculos de falsas semelhanças, o ponto alto talvez seja o tapa que marca a diferença de destino entre as duas na cena das melhores amigas. Fico pensando nos paralelos possíveis dentro dos dois grupos, que se estruturam diante de regras aparentemente antagônicas, e, suscita-me uma sensação de que os dois estão estruturados na radical impossibilidade de reconhecer o outro, enquanto um sujeito diferente de si e com outra formação e anseio. Ainda estamos presos na onipotência do narcisismo primário que é incapaz da alteridade e vê no outro a extensão da realização dos desejos alucinados. A situação dos solteiros na floresta talvez possa ser usada como paralelo a sociedade estabelecida a partir de vínculos digitais – nunca estivemos tão próximos e tão distantes, na proximidade fajuta criada pelo silenciamento das diferenças.
Tenho um carinho especial por este filme. Encanta-me a forma como Godard usa todos os detalhes, por mínimos e por mais triviais que pareçam, em um exuberante exercício de desconstrução dramática, para ressaltar o quão insana é a lógica belicosa que nos põe a supostamente resolver as questões mediante conflito armado. Nesse contexto, a construção dos personagens, desvirtuando-os, o chefe nada heroico, a câmera que evita os close-ups e impede que nos identifiquemos com os personagens, a labilidade da retórica que justifica os posicionamentos e enfrentamentos, a exposição satírica da nossa crueldade, tudo parece o acúmulo de gestos infames, desonrosos que não permite que sintamos nada além de asco pelas guerras.
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Divinas Divas
4.3 133 Assista Agora"As divas fazem parte do meu mundo e eu do delas. Elas nunca foram estranhas para mim." , ouvimos logo no início do filme na voz de Leandra Leal. A afirmação não é banal, ao longo da trajetória somos expostos ao olhar sensível de quem, genuinamente, partilhava o mundo com as divas e foi capaz de captar as nuances que marcavam cada uma delas.
O longa conta a história da primeira geração de artistas travestis do teatro de variedades carioca, que emerge na cena cultural na década de 1960, em meio as duras restrições impostas pela ditadura militar. As memórias das artistas nos defrontam com inúmeras questões inerentes ao sistema de violência de gênero, à censura da ditadura militar, ao uso higienista dos sanatórios e manicômios e ao uso político da loucura como marca de exclusão para àqueles que destoavam das normas sociais e a negação das suas existências enquanto sujeitos, seja com a interdição a andarem nas ruas ou a viverem seus amores livremente.
No país que mais mata transexuais e onde a maioria dessa população não chega a terceira idade, o filme é um símbolo de resistência e um raro momento onde podemos ouvir as histórias desses sujeitos em primeira pessoa!
Ser Tão Velho Cerrado
4.3 36Concordo com os comentários abaixo que a montagem poderia ter sido melhor realizada e que a direção dos atores no fundo preto deixou a desejar, não atingindo o efeito pretendido de aprofundar a natureza dramática da trama. Ainda assim, é um trabalho corajoso, aborda uma questão de vital importância para nossa perpetuação enquanto espécie e consegue congregar um bom número de opiniões de diversos atores.
O Lagosta
3.8 1,4K Assista AgoraA ordem dos espaços nas primeiras cenas, as belezas naturais do hotel-prisão que não suscitam afetos positivos de algum modo anunciam o que se desenrolará – as relações interpessoais que ali serão desenvolvidas também não provocaram qualquer sorte de sentimentos e serão permeadas por falsidades e utilitarismos – o outro é apenas mais um dos objetos cotidianos.
As relações são constituídas diante do silenciamento das dissonâncias – silenciamento que se dá também no investimento afetivo das falas, que são continuamente monótonas e vazias - “se vocês encontrarem qualquer problema ou discussão que não consigam resolver sozinhos, nós te daremos crianças”. Arruma-se atribuições contínuas que possam desviar a atenção das possíveis contendas. Nessas relações calcadas em vínculos de falsas semelhanças, o ponto alto talvez seja o tapa que marca a diferença de destino entre as duas na cena das melhores amigas.
Fico pensando nos paralelos possíveis dentro dos dois grupos, que se estruturam diante de regras aparentemente antagônicas, e, suscita-me uma sensação de que os dois estão estruturados na radical impossibilidade de reconhecer o outro, enquanto um sujeito diferente de si e com outra formação e anseio. Ainda estamos presos na onipotência do narcisismo primário que é incapaz da alteridade e vê no outro a extensão da realização dos desejos alucinados.
A situação dos solteiros na floresta talvez possa ser usada como paralelo a sociedade estabelecida a partir de vínculos digitais – nunca estivemos tão próximos e tão distantes, na proximidade fajuta criada pelo silenciamento das diferenças.
Tempo de Guerra
3.8 34Tenho um carinho especial por este filme. Encanta-me a forma como Godard usa todos os detalhes, por mínimos e por mais triviais que pareçam, em um exuberante exercício de desconstrução dramática, para ressaltar o quão insana é a lógica belicosa que nos põe a supostamente resolver as questões mediante conflito armado. Nesse contexto, a construção dos personagens, desvirtuando-os, o chefe nada heroico, a câmera que evita os close-ups e impede que nos identifiquemos com os personagens, a labilidade da retórica que justifica os posicionamentos e enfrentamentos, a exposição satírica da nossa crueldade, tudo parece o acúmulo de gestos infames, desonrosos que não permite que sintamos nada além de asco pelas guerras.