Ao assistir a Bingo - O Rei das Manhãs, eu observei que, acompanhando um personagem irreverente, malicioso e cheio de energia, o filme conseguiu construir uma narrativa com esses mesmos atributos, estabelecendo uma coerência entre a história a ser contada e a maneira como conta essa história.
Vendo Fútil e Inútil eu me lembrei disso, mas por contraste. O roteiro é de boa qualidade, logrando atravessar alguns anos enquanto apresenta uma infinidade de personagens que vivenciam diversos acontecimentos, conflitos, percalços, êxitos, sem inchar quase nada (duração de pouco mais de uma hora e meia). A direção e a montagem são competentes, com bela manipulação de câmera, uso de recursos narrativos variados (montagem não-linear, quebra da quarta parede, narração de cenas por meio de quadrinhos e aí por diante), conseguindo, principalmente a partir da metade, manter um dinamismo que segura o interesse na trama.
O problema, a meu ver, é que, supostamente enfocando pessoas tremendamente engraçadas, Fútil e Inútil não é um filme muito engraçado. Há uma cisão entre o que o roteiro nos conta (que a revista faz muito sucesso, migra de forma triunfante e meteórica para outras mídias, tudo o que eles fazem é hilário, eles são gênios criativos, inovaram o humor, tudo muito superlativo) e o que conseguimos ver com nossos próprios olhos. As piadas são quase todas fracas, os redatores coadjuvantes aparecem mais pelos estilos exóticos do que por exibirem talento, as cenas em que discutem pautas para a revista, salvo algumas exceções, não dão um vislumbre de que ela fosse de fato tão brilhante. O próprio protagonista está o tempo todo persuadindo pessoas, seduzindo e quebrando o gelo com sua suposta verve e personalidade magnética, mas na verdade é um indivíduo aborrecido, cheio de falas batidas, até as cantadas dele são bastante ruins.
Essa disparidade impede que tamanha graça, que o filme jura estar lá, transborde narrativa afora, vaze, seja contagiante. Guardadas as devidas proporções (até por serem filmes diferentes), vale uma comparação, por exemplo, com Boogie Nights, que também tem um viés panorâmico, mas se sai bem melhor em dar vida às suas pessoas e situações (o que o beneficia tanto nos momentos mais luminosos como no aspecto dramático).
Sopesando os méritos e as fraquezas, o resultado final não é nada desprezível, pelo contrário, dentre as originais Netflix que não são superproduções, é uma das obras mais polidas e bem realizadas. Pena que faltou um tempero (eu chamo de bons diálogos).
"Você já havia se ferrado bem antes de Barry White"
The Gentleman é um desses filmes que começam pelo meio ou pelo fim: Mickey Pearson entra no bar, pede uma cerveja e um ovo cozido, atende ao telefone, um sicário armado se aproxima sorrateiramente, ouvimos o tiro e somos atirados para o passado. Para qual momento dele? Para aquele em que Guy Ritchie era expectativa de bom filme.
Ritchie é um roteirista e diretor limitado, suas incursões em outros gêneros nem sempre são bem-sucedidas, mas para filmes de gângster ele tem a fórmula mágica. Assim como em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, Snatch e Rock'rolla, a trama, apesar de violenta, não chega a ser visceral, pois não busca o realismo e sim o icônico: os personagens têm nomes ou apelidos extravagantes, vestem roupas caras, vivem disparando respostas afiadas, são estrategistas, multiespecialistas, sabem na mesma medida atirar com armas de fogo e transitar no mercado financeiro. Limitado, mas com estilo.
Retomando outras características habituais do diretor nesse filão, a trama é também intrincada, com reviravoltas, duplas intenções, fatos que se sobrepõem quebrando a ordem, tudo anabolizado por uma excelente trilha sonora e direção segura, que recorre, sem exagero, a algumas boas piadas metalinguísticas sobre a narrativa cinematográfica, quando o o personagem Fletcher (Hugh Grant) começa sua chantagem. Aliás, Grant, que tem se mostrado um bom ator, surpreende como um mafioso aliciante e traiçoeiro, cheio de maneirismos de bandido velho e malandro em busca da aposentadoria no Caribe.
Um criador costuma ser criticado quando não consegue ser eclético. Mas, algumas vezes, é simplesmente como ficar perto de casa. Se é verdade, como diz Mickey Pearson, que o jeito de ser o rei da selva é se mostrar como tal, Guy Ritchie mostra que em filmes de gangsters britânicos ele ainda é o rei.
Algumas semanas atrás eu comecei a ver Missão Impossível: Nação Secreta e logo me enfarei daquela chatice que nada tem do vigor e um tom levemente auto-paródico do MI - Protocolo Fantasma. Sem sair do dueto espionagem/ação, por que não buscar isso em O Agente da U.N.C.L.E? No mínimo será agitado e sagaz, o diretor é Guy Ritchie, um artífice dessa diversão pop em que homens e mulheres elegantes trocam porradas ao som de boas músicas e dizendo coisas bem sacadas. Estupidez gostosa de acompanhar.
O Guy Ritchie daqui é menos ele mesmo do que na maioria dos seus filmes de ação, contudo. A narrativa quadrada, onde de tempos e tempos sobressai um momento mais autoral (a cena do sanduíche e vinho no caminhão é a cara do homem que a dirigiu), não chega a captar o interesse. Como filme de espião, não se trata de um roteiro inteligente, especialmente elaborado ou mesmo intrigante. Como paródia de filme de espião, não é muito engraçado nem volta um olhar perspicaz aos clichês dos filmes parodiados.
No mais, é competente. Não cabe cobrar fidelidade na reconstituição da década de 60 se nunca houve essa pretensão de retratá-la tal como era, e sim de levantá-la estilizada, filtrada sob o olhar de quem a observa cinquenta anos depois. Trilha boa (a música do Tom Zé parece ter sido feita para o filme).
Sem maiores ambições (nem mesmo a ambição de ser ótimo em sua própria proposta - comédia de ação), Agente da U.N.C.L.E não fede nem cheira; a continuação que se anuncia no final nunca foi produzida e ninguém, nem mesmo o mais ardoroso fã do filme, morreu por causa disso.
Gosto muito de filmes e documentários que abordam questões científicas de forma humanizada e artística.
Sem entrar em explicações sobre a trama (pois ao final tudo fica claro; além do mais há bons textos sobre isso na internet), o que me surpreendeu mais é Villeneuve adotar o estilo oposto ao de, para citar um exemplo, Christopher Nolan, que em seus sci-fis busca sempre ressaltar que está lidando com matéria científica, complexa, "mindfuck" etc. Em A Chegada, os elementos mais densos (Linguística, complicações temporais) estão presentes, porém o roteiro os funcionaliza para que sirvam à trama principal, que é essencialmente um drama (cada espectador eleja o estilo que lhe agrade mais ou que fique com os dois...). Villeneuve vai bem, já é um dos grandes.
É um dos filmes de guerra mais brutais do mainstream hollywoodiano. Combates gráficos e claustrofóbicos, principalmente nas cenas envolvendo explosivos ou aquelas em que os japoneses camuflados se levantam formando uma linha de tiros de fuzil e metralhadora que destroçam os homens que vão à frente os pelotões inimigos. Não percebo essa violência chocante como elemento desnecessário, creio que obras do gênero devam mesmo retratar a guerra tal como é, em toda sua sordidez e tristeza. Ademais, a premissa do soldado que não mata é tão absurda que, se os combates não fossem pintados como um inferno caótico espalhando vísceras e membros, o conjunto seria uma coisa bonitinha, filme de guerra para edificar crianças.
É realmente impressionante e admirável o que fez o Desmond Doss. Em acréscimo, o roteiro faz um bom trabalho em não convertê-lo num pregador inverossimil, ele faz o que faz por sua fé e convicções, que não busca impor aos outros soldados, o que no contexto acabaria por matá-los (soldados não são culpados por guerras, são vítimas). Bom trabalho do Andrew Garfield. Dirija mais filmes, Mel Gibson.
Há vários anos eu e um amigo comentávamos sobre como Hollywood perdia tempo em não fazer filmes de ação à maneira asiática, com apuro técnico, deixando de lado a pasteurização e preguiça que tornaram o gênero uma mesmice no decorrer da década de 2000 (a maioria dos filmes de tiro-e-porrada lançados nessa época sofre das mesmas limitações, deixando de impressionar nas cenas de combate e tiroteio, ou seja, justamente nas que são sua razão de ser).
John Wick mostrou que os estúdios estavam perdendo tempo mesmo. Barato e vigoroso, gerou uma lucrativa franquia que, quanto mais aprimora sua ação, mais público angaria. Obviamente isso o tornaria influente e então surgiu Resgate, vendido como um "John Wick da Netflix".
Até que funciona, a vitalidade está lá, os planos-sequência, as explosões que que cobrem os personagens de uma poeira misturada a suor e sangue que parecem sujar a tela da TV ou computador. Um protagonista que apanha como gente grande enquanto dizima um exército inimigo. Nada mal. Mas faltou algo, acho que carisma, não se trata de um universo envolvente, não há coadjuvantes de apelo, que sustentem o fio narrativo. Parece que a continuação será um prequel. Gostaria que abordasse alguma missão anterior com o personagem Gaspar. Talvez haja ali o que faltou nesse primeiro.
Há uma cena de Esquadrão Suicida que se parece com seu diretor. É quando o Esquadrão chega na cidade sob ataque e se movimenta pelas ruas, em formação de combate, antes de descobrir a verdadeira natureza dos combatentes inimigos. A cena exala uma tensão e militarismo que em tudo remontam ao estilo do diretor David Ayer, roteirista e diretor de vários bons (e alguns nem tanto) filmes policiais e um de guerra.
Se essa cena fosse a descrição do filme, se se tratasse de um assault-movie, provavelmente nos divertiríamos. Mas a DC resolveu imitar o parque de diversões da concorrência e pariu essa anomalia, um filme desconjuntado, obviamente montado de forma contrastante com o material filmado, cheio de humor duvidoso e cuja pretensão (novamente uma ameaça global, novamente salvar o mundo) o torna ordinário e pretensioso num sentido bastante patético em vez de grandioso.
É constrangedor perceber como, na versão que veio ao mundo, a montagem faz o possível para se livrar do Coringa, mas nada há a se lamentar nesse sentido, tendo em vista tratar-se da pior atuação do Jared Leto, que investe em tiques amadores e numa composição gangsta que ridiculariza o personagem.
Corporações multibilionárias podem ser incrivelmente amadoras. Como é possivel permitirem que um projeto seja idealizado, concebido, roteirizado e filmado dentro de uma concepção, para depois a lançarem fora tentando extrair do material até então produzido um outro filme, colorido e engraçadinho, que nada tem a ver com o primeiro, no qual os envolvidos estavam trabalhando há meses ou anos, como se fosse possível construir uma casa de tijolos usando madeira? É muita confiança na estupidez do público. Confiança recompensada por uma estupidez que não decepciona. Esquadrão Suicida foi aos cinemas e arrecadou mundos de dinheiro.
A direção de arte, fotografia, iluminação e outros aspectos visuais deste filme são surpreendentes, há vários excelentes enquadramentos e outras cenas em que a câmera passeia elegantemente pelos elaborados cenários, com certeza um dos slashers mais bem tratados tecnicamente da década de 80.
Mas o filme é ruim; em sua esterilidade criativa, apela para uma decepcionante reciclagem de situações e ainda lança mão de momentos ridículos como o Freddy imitando um tubarão. A parte 3 é bem mais inventiva (roteiro do Frank Darabont).
É uma pena que necessitando apenas de um fiapo de história para preencher o bom visual, o que bastaria para que se o filme se tornasse um dos melhores da franquia, nem esse fiapo tenham conseguido produzir.
O primeiro é um filme mais redondo e perfeito, este tem arestas, o excesso de lutinhas também torna o resultado final um pouco enfadonho. Embora muito bem realizada, não embarquei na perseguição da rodovia (empalidece perante a invasão do prédio, no original).
Mas continua intrigante, a mitologia é ampliada, alguns pressupostos do primeiro são jogados pela janela (como a natureza ce Zion) e ainda há bons diálogos.
Achei besta a interação do Neo com a Persephone, que lhe pediu um beijo, mas tudo pareceu fazer sentido mais à frente, no diálogo com o Arquiteto.
Em cada profecia há uma mulher que se apaixona pelo Escolhido; Persephone diz que o marido dela, o "Francês", não era tão arrogante num passado que ela não elucida; o Arquiteto diz ao Neo que ele tem um diferencial de amar. Provavelmente o "Francês" é um dos seis Escolhidos anteriores.
Gosto dessas pequenas pistas internas e reflexões que são espalhadas pela narrativa, fora algumas digressões, como o fato de eventos sobrenaturais serem falhas da Matrix.
Matrix Reloaded não é uma experiência muito prazerosa, mas é gratificante.
"Quando você achar seu filho, leva ele pra casa. Não fala nada. Só leva pra casa."
De todas as críticas que se costuma fazer ao cinema nacional para negar o fato óbvio de sua qualidade, só concordo com uma: a captação de som pode ser sofrível. Nada se entende na primeira cena de A Busca. Se os personagens disseram algo de útil, perdeu-se.
Felizmente o som melhora e, com ele, o filme. Trata-se (em um recurso recorrente no nosso cinema) de um "explorador de brasilidades", que busca atuar no limite entre o drama (bela cena a travessia no rio, enquanto o protagonista compara sua relação com o filho - "e ele não sabe o que o cavalo come?" - com a do barqueiro e o filho dele) e a comédia ("achei que você fosse da Prefeitura") investindo em personagens facilmente identificáveis no cotidiano nacional. Gosto de notar como essa dualidade pai x filho está presente sutilmente ao longo de outros momentos da narrativa e geralmente é revelada em uma frase (como aquela que abre esse comentário ou "seu pai sabe que você está aqui?"). Só não vale cavucar as inverossimilhanças da trama (ex: as dificuldades de empreender tamanha viagem a cavalo), o filme necessita que o espectador embarque no jogo do lúdico.
Wagner Moura como de hábito rouba a cena; Lima Duarte faz uma participação mais do que especial. O elenco adolescente é sofrível, não atrapalha porque não aparece muito.
Se fosse meu filho, levava uma surra. Como filme, funciona.
Um dos personagens de Senilidade, do Ítalo Svevo, observa num outro contexto que "metade das pessoas vivem para que a outra metade possa viver". No contexto das relações econômicas de trabalho, é muito maior o percentual dos que vivem para que os outros possam viver. Este "Radiografia de um Crime" é um conto simples sobre como as desigualdades sociais profundas roubam das pessoas o futuro, as oportunidades, as mercantilizam à mercê de explorações e opressões diversas, sempre havendo quem deseje e possa, com conivência do Estado, se servir do ser humano como uma simples máquina de gerar dinheiro. pela conduta do advogado, também apresenta uma mensagem singela de que sempre devemos nos lembrar: na vida, é importante que façamos o nosso melhor a cada situação, que nos interessemos verdadeiramente pelas situações que precisamos lidar, pois ali, no concreto, também se faz justiça.
Joaquín Furriel é o dono do filme, numa atuação complexa que expressa por gestos e olhares todo o servilismo, simplicidade e esmagamento de seu personagem.
É bom lembrar que há poucos anos o Ministério do Trabalho, na esteira das diversas reformas (Previdência, Trabalhista e outras...) que o Governo Federal tem promovido tirando muito do povo e nada da aristocracia financeira e bancária, chegou a aprovar uma Portaria que permitia a prestação de trabalho rural em troca de abrigo e alimento. É dura a realidade do Hermógenes, enriquecendo o patrão enquanto dorme nos fundos do açougue com a mulher grávida, sendo humilhado por ele, sem ter para onde ir? Nossos últimos governos discordam.
Apesar de este mockumentary enfatizar os EUA, os acontecimentos nele abordados são de relevância pública mundial - coronavirus, black lives matter, eleições presidenciais - e foram exaustivamente explorados pela imprensa internacional, não havendo risco de qualquer pessoa razoavelmente informada perder as piadas por falta de familiaridade com os temas.
Posto isso, as interpretações são muito boas e os personagens, significativos. Alguns deles, como o historiador autoritário, a porta-voz do governo (uma cabotina da mesma laia de uma Bia Kicis ou Carla Zambelli, inclusive nas limitações cognitivas e verbais) e a dona-de-casa racista são dolorosamente reais; pela comédia esse especial documenta uma realidade muito dura, que remete a tantas figuras verídicas que transitam por aí e nos fazem questionar como foi que nos metemos nessa fossa global de incivilidade e fabricação de barbáries. Bem, de alguma forma sabemos a origem de parte do problema e o bilionário do ramo da tecnologia, dentro do próprio filme, responde: se seis meses de imersão nas redes sociais são suficientes para radicalizar uma pessoa normal, a meta é descobrir como fazer isso em cinco minutos.
Acho que no Brasil já descobriram a fórmula.
O mockumentary é um gênero que exige grande concentração de piadas por minuto; o roteiro se desincumbe desse desafio alternando as gags de cunho político-social com outras mais pueris, mantendo o filme ágil. Não senti o tempo passar e, como os assuntos são complexos (além de os personagens serem variados), acho que a duração poderia ser até um pouco mais dilatada sem causar fastio.
As imagens de arquivo, principalmente as que veiculam discursos do Trump, dão uma prévia da imensa vergonha que se abaterá um dia sobre a humanidade por ter permitido que um sujeito tão estúpido e tão abaixo de uma inteligência normal, para não falar no mau-caratismo, possa ter sido eleito presidente da maior potência econômica do planeta. Mas as alfinetadas que o Biden leva também são justas e durante seu mandato ele provavelmente dará motivo para que batam ainda mais nele. Espero que os próximos especiais façam isso, mas espero também que, se existirem, sejam menos trágicos.
Montes de palavrões e situações picarescas, humor malicioso, é engraçado. Carece de melhor organização, o roteiro trabalha em tom de farsa sobre uma estrutura épica, de herói vencendo desafios, mas falta uma costura entre as diversas etapas da escalada mitológica. O acúmulo de situações pode deixar um filme dinâmico ou arrastado conforme o apelo e a força individuais de cada segmento, aqui tudo soa meio banal, quase um videogame em que se vão passando as fases sem construir uma noção de conjunto.
Ainda assim, funciona razoavelmente bem, é leve, a incontinência verbal dos personagens deve dialogar com um lado nosso infantil, pois é difícil não rir dela, a trama crescentemente absurda vai segurando a atenção. Com produção mais cuidada e um roteirista de verve, acho até que daria uma boa minissérie.
Volta e meia, se um filme me interessa, o assisto sem ler sinopses. Decisão acertada em se tratando desse Tarde para la Ira, pois embora tenha ficado um pouco perdido no primeiro terço, essa economia de informações tornou a experiência mais gratificante quando tudo começou a fazer sentido.
Definitivamente gosto desse estilo seco, enxuto, contemplativo, uma lentidão cheia de não-ditos e subentendidos que o cinema "hablado em español" pratica tão bem em vários gêneros (vide o uruguaio Whisky e tantos outros). Temos aqui uma história de vingança nada hollywoodiana, precisa e cheia de consequências. Surpreendeu-me (mas, pensando bem, não deveria causar espanto) ter sido dirigido pelo Raúl Arévalo, ator frequente no cinema espanhol, incluindo o excelente policial La Isla Mínima. Sua acuidade na condução da trama, sem transbordar onde o roteiro exigia constrição, e a habilidade que mostrou em nos fazer enxergar a melancolia crua que os personagens também estão vendo (o próprio último plano, mostrando o carro partindo na estrada, é um bom exemplo disso), o tornam muito promissor. A ver.
"Estamos juntando peças. Recolhendo provas, fotos e amostras... escrevendo tudo. Anotando as horas em que as coisas ocorreram. Arrumando e arquivando tudo direitinho, para o caso improvável de precisamos no Tribunal. Garimpando diamantes numa ilha deserta, para o caso de sermos resgatados."
A certa altura de Seven, policiais estão analisando uma cena de crime quando o telefone começa a tocar em algum lugar. Há movimentação, o desespero toma conta de todos, o personagem do Brad Pitt corre pelos cômodos para encontrar o aparelho.
Este é o universo de David Fincher, diretor para o qual não há cena simples ou desimportante a ponto de não poder banhá-la com tensão e desconforto, compondo cada imagem, cada fotograma, com detalhismo obsessivo. É possível assistir diversas vezes a Seven a fim de observar a maneira como é trabalhado cada elemento da linguagem cinematográfica. A manipulação da câmera produz significados, os enquadramentos - todos eles, o tempo todo - expressam relações de hierarquia, autoridade e dominância. Percebam, sempre, quem está sendo filmado de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou no canto da tela, ou de costas, ou sentado diante de alguém que está em pé, e ponderem sobre como essas e tantas outras possibilidades visuais indicam de maneira simbólica e econômica qual a posição do personagens na trama e, eventualmente, para onde estão caminhando.
Também é perceptível o cuidado no som, pois o tempo todo escutamos brigas ao longe, o barulho da chuva, derrapagens de automóveis, a passagem do trem e outros barulhos diegéticos que reforçam o incômodo.
Algo que aprecio bastante no filme é que, apesar do esforço para retratar um universo de desesperança e opressão (para o que contribuem bastante os elementos visuais e sonoros, como exemplifiquei acima), sua construção nos diálogos é até comedida, diferentemente do que se passa na maioria dos filmes noir, em que os personagens estão constantemente analisando o mundo à sua volta e qualificando-o verbalmente, de forma muito direta, como podre, sujo, cruel, amoral, etc. Em Seven, apesar de esse tipo de verbalização aparecer esporadicamente, há até algumas tentativas de otimismo; se a decadência prevalece e dá o tom é porque ela vaza de um tecido de alusões pessimistas a respeito de detalhes mais periféricos da narrativa - referências a crimes passados, literatura com passagens terrificantes, lembrança de momentos deprimentes da vida dos personagens, como no diálogo entre Somerset e Tracy na lanchonete, pequenos comentários de coadjuvantes ("falar alguma coisa? Se o cérebro dele não tivesse pifado e ele morresse se acendêssemos uma lanterna na frente dos seus olhos, ele não conseguiria dizer nada porque mastigou a língua faz tempo. Francamente nunca vi alguém sofrer tanto e por tanto tempo. E ele ainda tem o inferno inteiro pela frente") e pequenos lances reflexivos em passagens quase irrelevantes (acho muito significativo, por exemplo, que no interrogatório do imigrante proprietário da boate em que praticado o crime relacionado à Luxúria, o roteiro faça o personagem do Brad Pitt lhe perguntar com raiva: "Você gosta de ganhar a vida assim?", recebendo de volta um "Não, não gosto, mas a vida é assim, não é?" - simples e brilhante).
Todos esses pormenores fazem Seven se passar um mundo orgânico, pulsante, cheio de pequenas janelas para meditações mais profundas, e essas janelas ficam mais visíveis a cada revisão, quando já conhecemos o desfecho da história e podemos apreciar melhor o percurso (falando nisso, me intriga que, em certo momento, o personagem do Pitt relate uma abordagem policial que terminou com um colega ferido e não consiga se lembrar do nome dele).
Outro aspecto positivo é que o filme não pesa a mão no "detetivismo", ou seja, a trama policial flui com naturalidade, sem necessidade de simular grandes brilhantismos ou deduções sherlokianas da dupla protagonista - eles avançam na investigação coletando evidências com uma acurácia verossímil e, inclusive, o vilão tira uma onda com isso dizendo algo como "vocês só me pegaram porque eu bati na porta da delegacia". Apesar disso, o filme extrai bons momentos da experiência, razoabilidade e cultura do policial mais velho (batizado de Willian Somerset em homenagem ao excelente escritor W.S Maugham, que merece muito ser lido), efetivamente caracterizando essas qualidades como úteis no trabalho policial (além de ele servir como uma espécie de farol de racionalidade naquele mundo cruel que fabrica violência, sordidezas diversas e assassinos em série).
A chuva, tão frequente em filmes e séries de suspense (e também de outros gêneros) para simbolizar opressão, mudança, solidão ou catarse, assume aqui um papel bastante forte não apenas ao reforçar a tristeza daqueles dias, mas ao simbolizar a entrada em cena do assassino
como se de fato ele aparecesse para promover uma purgação.
O diálogo entre o trio principal (nesse momento, virou mesmo um trio principal) no carro, antes do fim, é uma das melhores cenas do Cinema, altamente elucidativa sobre o tema do filme, cheia de nuances (volta e meia um dos personagens consegue render outro, mas depois os papéis se invertem) e com frases inspiradas ("você acha que as pessoas vão te estudar? Você é só o filme da semana. É uma camiseta"). E depois tem a cena final, cruel ao máximo, com um combo de significados - como disse alguém, só Seven para nos fazer torcer
o vilão é incoerente por matar uma pessoa inocente, visto que se trata de um psicopata moralista. Na realidade, não existe o furo. No carro, ele explica acreditar que está limpando o mundo ao assassinar as vítimas anteriores. Assim, apenas matando uma inocente ele se coloca no papel de pecador (inveja), fazendo jus a morrer também no ato final.
Apesar de bastante relevante como costumam ser os filmes que abordam com qualidade o tema extremismo, não o apreciei muito quando ao vê-lo pela primeira vez, há mais de uma década. Na revisão é que percebi suas texturas e desde então o revisitei algumas vezes. Tem valido a pena.
* P.S: Zodíaco, também do Fincher, também saltou da condição de filme parado para obra-prima marcante, no meu conceito, quando o revi. Considero ambos do mesmo nível e, talvez, Zodíaco até um pouco acima. Os Homens que não Amavam... e Gone Girl não pegam beira.
(Diálogo entre um coach e seu sogro, matemático diagnosticado com Alzheimer):
"- Hoje existem estudos muito bons dizendo que isso não é incurável... que se você pensar na cura com todas as forças..."
- A soma de todas as forças é igual a zero."
Uma das virtudes do cinema espanhol é não desprezar o conceito de "filme de uma hora e pouco". Na 01h40min de Viver Duas Vezes, o roteiro só anda pra frente, desenvolvendo diversas situações cheias de nostalgia, paixão e diálogos certeiros ("- por que você quer ir atrás dela agora? " - porque vou esquecê-la"). Apesar de a a trama central (consistente basicamente em "velho acertando pendências antes de morrer", como ironicamente diz sua neta) ser muito aliciante, os personagens secundários também têm força e razão de ser, passando longe da condição de meros suportes (Inma Cuesta confere grande carisma ao seu papel de filha, mãe e esposa que está sempre fazendo das fraquezas forças para segurar a coesão da família - a atriz e a personagem atingem o ápice num doloroso diálogo sobre a vida conjugal desta, que tem com sua filha).
Se incorporei o discurso da mimada Blanca para dizer que o filme é sobre um velho acertando pendências antes de morrer não é por antipatia pelo personagem, mas porque outro acerto do roteiro é dosar a autoironia, gerando piadas ácidas, mas sem aviltamento da enfermidade ("- Você tem um problema com a passivo-agressividade" "- Achei que meu problema fosse Alzheimer"), impedindo que se transforme num dramalhão, apesar da pungência sempre latente esperando brechas para vir à tona.
E aqui chegamos ao centro da obra: Oscar Martínez. Interpretando um personagem muito semelhante ao que encarna em O Cidadão Ilustre (dois homens eruditos e de personalidade forte que sentindo a decadência se aproximar partem em busca do passado), o talentoso ator consegue modular sua performance às necessidades de Emilio, exibindo uma vulnerabilidade comovente e sutis trejeitos de demência que praticamente nos obrigam a empatizar com o personagem. Simplesmente comovente.
Revitalizando os clichês que usa pela perfeição estrutural do roteiro (as situações não se prologam mais do que o necessário; os alívios cômicos são precisos e as pessoas que surgem pelo caminho, mesmo que só apareçam por poucos minutos, conseguem capturar nossa simpatia e atenção nesse curto lapso de tempo - como a embriagadíssima noiva, um certo adolescente que aparece em dado momento e ainda a idosa que reside na casa em que morava a Margarita, entre outros), o filme segue firme até o poético final, em que justifica de maneira simbólica seu título. Se eu vivesse duas vezes, também quereria assistir a este filme na vida seguinte.
Aqueles que ficam são constantemente acossados pela memória dos que partiram; quando alguém é bem-sucedido em converter o luto em arte, tristeza e criatividade se fundem num tributo sensível e doloroso, incômodo mas gratificante de ver.
Elena é uma exploração afetiva de uma vida perdida. Apesar de o tom documental ser favorecido pelas diversas filmagens e gravações da personagem-título sozinha ou com sua família, numa época de acesso mais restrito a recursos tecnológicos, não se trata de uma cinebiografia tradicional, que busca retratar feitos ou apresentar a cronologia de uma vida; a pedra de toque é o amor familiar, o desejo de compreender, resgatar e viver um pouco mais com quem se foi, prolongar sua vida através da memória - a busca por continuar se lembrando, por não deixar que a ausente se desbote, que morra de novo.
O trabalho de câmera, a fotografia e direção de arte das cenas atuais são mescladas de forma impressionante com o material antigo, há um trabalho de imagens que, lançando mão de alguma influência expressionista, evoca de maneira bastante eficiente o lirismo e o intimismo que dão o tom do documentário; a narração em OFF, que projeta doçura, recita uma prosa poética distante do melhor que o Cinema já produziu nessa proposta, mas ainda assim bastante eficaz, evitando que surja um vácuo entre esse aspecto do filme e aqueles mais visuais, que efetivamente atingem a excelência.
E é irônico pensar em como, no pós-morte e por força do ímpeto de sua irmã em mantê-la perto de si e talvez até mesmo realizá-la, Elena Costa obteve o que sonhava: protagonizou um filme memorável.
Toc Toc consiste em juntar no mesmo ambiente seis personagem com transtornos de comportamento e brincar com as interações possíveis de maneira caricata, mas até bem engenhosa, beneficiada pela boa montagem, principalmente
Ficou um pouco na cara que o personagem do Oscar Martínez, sempre ditando diagnósticos, seria o psiquiatra - até seu figurino aponta para isso. O filme ainda tenta despistar dando indícios de que a secretária ou até mesmo o homem que o taxista prende no táxi, antes de entrar no consultório, poderiam ser o psiquiatra.
Em alguns momentos eu fiquei incomodado com os tiques dos personagens, principalmente com a mulher que repete frases, mas isso é mérito. Há umas passagens interessantes nesse sentido, em que a câmera enfoca diversos personagens interagindo e sendo acometidos simultaneamente por suas "particularidades". Angustiante, mas de forma leve, como o próprio filme.
Ótimo elenco, personagens têm carisma. Comédia despretensiosa sem ser ou chamar o espectador de burro.
O filme é surpreendente, principia com um humor muito sutil, quase imperceptível, e à medida em que os acontecimentos vão se dramatizando - nos fazendo esperar que o cômico fique ainda mais rarefeito -, inesperadamente chegam umas pinceladas de comédia pastelona, às vezes física, tudo de mistura com o humor mais seco e com os conflitos que vão se estabelecendo e com as reflexões culturais - que são bem pertinentes, não soam como alguém imaginando que opinião teria um Nobel sobre as questões abordadas, mérito do roteirista.
Dado o sucesso em instaurar uma atmosfera de grande estranhamento - parece que o Daniel Mantovani vai se enfiando aos poucos num mundo secreto, numa espécie de interior fora do tempo - é bastante difícil se antecipar ao filme, cujo estoque de possibilidades é alimentado ainda pela diversidade de personagens que orbitam ao redor do protagonista - alguns manifestamente hostis, outros ambíguos e, ainda, aqueles donos do um afeto tão ostensivo que parece sempre à beira de degenerar em seu reverso.
É o segundo filme a que assisto desses diretores (Minha Obra-Prima é ainda melhor) e ambos compartilham muitas qualidades - verossimilhança dos personagens, apuro nos diálogos, uso eficaz de reviravoltas (sem forçar a mão nem fazer a história toda depender de alguma delas). A acompanhar.
A ideia do final é suscitar discussões, mas não consigo deixar de ver o filme como uma ficção dentro da ficção. Mesmo sem revê-lo, me parece que as pistas são muitas: Mantovani aparecendo sem barba apenas no começo e no fim; sua personalidade sempre avessa a retornar a Salas, mas obcecada por ambientar suas histórias nela, como martelado o tempo todo durante a projeção; o pouco altruísmo do personagem, que tornaria inverossímil que lá retornasse para receber um título honorífico municipal, ele que até o Nobel despreza; a própria atmosfera de absurdo que citei acima, quanto mais pessoas Mantovani conhece e quanto mais situações vivencia em Salas, mais a história vai adquirindo um aspecto fantasioso, como se o imaginário fosse se expandindo.
Aliás, os antagonistas do filme frequentemente acusam Mantovani de ser um engravatado ingrato, "apátrida", alguém que embalou seu desprezo pela cidade natal em livros e vendeu caro, e o protagonista não faz muito esforço em contraditá-los, seu meio de defesa não é apontar a inverdade dessas ofensas e sim argumentar que maus sentimentos fazem parte da literatura. "O Cidadão Ilustre" (o livro que ele apresenta no final, não o filme) parece ser uma purgação, um ajuste de contas que o protagonista, já no fim da carreira (frequentemente ele diz que um escritor laureado morre, torna-se estéril, inclusive ele não escreve nada há vários anos) procura levar a termo para refletir sobre a relação entre ele próprio, obra e cidade.
Por fim, é relevante notar que Mantovani não volta a Salas para se redimir ou algo do gênero - se seu ressentimento contra o provincianismo do lugar é justo ou se ele é uma raposa culta e soberba, isso fica a nosso critério, conforme nossa própria bagagem. Não nos privar dessa análise é mais um grande acerto.
"Cada decisão de um sujeito no pôquer é definida pelo que ele é. Toda a sua relação com o jogo até então."
*** "Toda vida é uma vida."
Que absurdo o desembaraço dos irmãos Coen nas cenas de ação, todas violentas, enérgicas, transmitindo urgência sem câmera trêmula e aqueles cortes dementes que se usa agora para camuflar imperfeições da coreografia e filmagem. Poderiam dirigir um John Wick sem constrangimento. O virtuosismo técnico se estende em tudo o mais: fotografia, figurino, direção de arte, tudo muito esmerado, mas aí já não é mais surpresa em se tratando de um filme desses diretores.
"The Ballad Of Buster Scruggs": Divertido pra cacete. Apesar de ser um conto sem maior conteúdo, eu queria mais desse personagem que o Tim Blake Nelson encarna de forma hilariamente cartunesca em sua sua prepotência polida, sua crueldade irreverente.
tenta cometer um crime e, inicialmente premiado pela sorte, acaba ficando de cara com o acaso, ironicamente sendo executado por um delito pelo qual não foi responsável. Esse tipo de brincadeira com as ações dos personagens, que acabam se cruzando com consequências trágicas para alguém, é bem estilo dos Coen.
Muito pungente. Faz um comentário sobre como as pessoas também têm valor de uso e, ainda, como a cultura, algo que dignifica o ser humano, nada vale se não for acolhida pelo meio (qualquer semelhança não é mera coincidência). Li um comentário mais abaixo no qual a autora disse ter ficado com a impressão de que o contador de histórias tivera seus membros decepados por ter se envolvido com alguém da família do Liam Neeson. Faz sentido. A prostituta que o LN contrata pergunta "você não quer pagar uma noitada pro seu amigo? Ele nunca fez isso?", então ele fecha a cara e responde "uma vez..."
“All Gold Canyon”: Belo local. O enredo, pouco original, não cativa muito nem tem muita substância para além do óbvio (é preciso empenho, paciência e astúcia para as coisas darem certo). Ratifica que o Tom Waits, que volta e meia também bate ponto nuns filmes do Jim Jarmusch, é um ótimo ator.
“The Gal Who Got Rattled”: A Ruby Spark está rejuvenescendo com o tempo e orna bem com o sósia do Christian Bale. Achei que esse conto seria tedioso, mas ao fim é um dos melhores, fortalecido ainda pelo desfecho marcante.
Não vejo tanto enigma a respeito do tema do conto. O que há na morte?
.
Trata-se de uma boa antologia, analisada no conjunto não chega ao brilhantismo, mas eu veria um segundo volume. O Velho Oeste continua sendo celeiro de boas histórias.
- Você me enganou. É um procurado por crimes de guerra!
- Ah, isso nunca dá em nada."
*** " - Imagina se o país virar uma democracia. Mulheres no volante, dirigindo, direitos civis para a população.
- 'Direitos Civis...?'
- Depois te explico. É hilário."
Oscila bastante entre o humor politizado (estão aqui as melhores tiradas) e o mais tradicional, de situações constrangedoras - quando, com a ressalva de uma ou outra passagem mais engraçada (a do parto é uma das melhorzinhas) assemelha-se bastante às esquetes do Casseta & Planeta* (a cena do helicóptero parece saída do Cafofo do Osama), contando obviamente com o indefectível romance inócuo que ajuda o filme a se encaminhar para a banalidade.
Gosto da zombaria contida no discurso final da ONU - em que são enumeradas diversas práticas tipicamente autoritárias que também são largamente empregadas nas "democracias" pelo mundo -, porém gostaria de ver essa crítica mais bem desenvolvida, evidentemente a serviço da graça, durante o filme todo. A cena em questão amarra de maneira eficaz as subtramas todas (a conspiração envolvendo o tio, o romance com a personagem da Anna Faris, a democratização da República de Wadiya), mas me passou a impressão incômoda de já ter visto milhares de vezes essa convenção narrativa das comédias americanas (o personagem percebe, durante um momento público, o que realmente importa para ele). Gostaria de algo mais anárquico.
Ponderando prós e contras (e pensando que um filme deve ser avaliado pelo que é e não pelo que se esperava dele), trata-se de uma comédia razoável, onde vislumbram aqui e ali alguns vestígios de inspiração. Mas que poderia ser melhor com menos apego ao modelão das comédias yankees, poderia. Filmes que pretendem fazer troça da política internacional e suas figuras controversas têm potencial para mais. Assim não pode, assim não dá!*
P.S: A trilha sonora tem umas versões muito boas de músicas conhecidas interpretadas em árabe.
Hesitei um pouco em assistir a este filme devido à manjada premissa: dono de fábrica deseja fingir que é casado para enganar seu irmão (residente no Brasil) que irá visitá-lo e pede a funcionária com quem tem relações meramente profissionais que simule ser sua esposa, o que obviamente gera consequências para os envolvidos. É uma sinopse de Globo Filmes. Mas uma abordagem diferenciada sempre pode desmoralizar nossos preconceitos.
Importante: não é uma comédia, e sim um drama leve com uma ou outra cena feita para arrancar um sorrisinho. Os rumos da sinopse acima não conduzem a peripécias engraçadas, mas a reflexões sobre incomunicabilidade. O silêncio sempre foi matéria útil para bons diretores, mas raramente o vi tão bem empregado: graças a ele pesa sobre todo o filme uma aura de afogamento existencial, um tabu de viver. Mesmo quando sons quebram este silêncio é para ressaltar a desconexão, como quando certo personagem faz uma pergunta e o ônibus que passa abafa a resposta, que jamais será repetida, pois quem questionou parece ter esgotado na pergunta sua capacidade de contatar, de interagir. Eventualmente se usa o silêncio, ainda, como fonte de humor, a exemplo da cena
em que a Marta aparece toda cheia de si ao lado do patrão no carro, que começa a travar e após um corte rápido ela surge empurrando o veículo.
Tamanha aridez no tema, associada à constrição verbal, parece apontar para um filme maçante, mas longe disso. Todos os elementos diegéticos - os objetos da oficina, a música que toca no rádio, o figurino, os cenários - instauram um realismo envolvente, vívido. As excelentes interpretações nos sugam para a história, que parece capaz de caminhar para qualquer lugar dentro daquela dinâmica estabelecida entre o trio. Fiquei absolutamente capturado pelo filme, interessado pelo destino dos personagens.
Além disso, o filme nos estimula visualmente a todo tempo, às vezes por meio de planos que se repetem em momentos distintos para salientar a rigidez da rotina, às vezes por enquadramentos que encaixotam os personagens em espaços confinados (ex: cabeças apertadas na janelinha do elevador), metáforas imagéticas que exprimem a sensação de aprisionamento dos personagens (mas aprisionamento ao quê, exatamente? É sobre isso o filme, pensar sobre isso é o que ele pede de nós, acho) e inclusive figuram nos belos cartazes do filme. Para não fazer uma enumeração cansativa dessa sensibilidade tão grande em colocar a sutileza da imagem a favor da história, destaco ainda como os personagens estão sempre abrindo e fechando portas, ligando e desligando luzes, em diversos momentos objetos mergulham ou saem das sombras, o que parece ter algum significado: exploração de memórias?
Gosto ainda de uma cena em que os dois irmãos travam um diálogo importante enquanto assistem a uma criança cantando bizarramente mal num karaokê: essa passagem era uma oportunidade para que eles se abrissem e o incômodo da conversa pega carona no incômodo da situação.
aparentemente Jacobo descobre que algo se passou entre Marta e Herman e dá à primeira dinheiro, sabendo que usará para fugir ao Brasil - talvez seja esse o sentido do bilhete que os amantes (?) trocam entre si antes da partida de Herman. Ou talvez seja uma outra coisa. O filme termina com Jacobo fazendo seu próprio chá (em três cenas diferentes Marta o prepara e leva). A máquina da fábrica rotaciona, é a volta à vida de sempre.
Em certo momento do filme, Marta comenta com o "cunhado" que as novelas brasileiras parecem ser muito boas. Eu trocaria essas novelas por um punhado de filmes latino-americanos. Na verdade, apenas a humanidade de que revestem seus personagens, os pequenos detalhes que os tornam seres vivos e não criaturas de papel, já fariam a troca válida: odnil !emlif
ZG: - Você tem uma baita cicatriz de um acidente de moto, não é mesmo?
KR: - Tenho sim. É aqui no peito.
ZG: - Tenho uma parecida na perna.
KR: - Por quê?
ZG: - Saí no meio de A Casa do Lago e bati a perna na poltrona da frente.
KR: - ... (silêncio contrangido)
ZG: - Em uma escala de 0 a 100, quantas palavras você conhece?
KR: - Escala... de 0 a 100?
ZG: - Sim. Quantas você conhece? 50? 75? 18?
KR: - ...
ZG: - É frustrante as pessoas te acharem um otário quando você é apenas um sujeito de inteligência abaixo da média?
KR: - ...
ZG: - Pode bater a perna no chão uma vez pra "sim" e duas pra "não".
KR: - ...
ZG: - Você estuda seus papéis?
KR: - Sim.
ZG: - Já pensou em estudar um personagem que esteja fazendo aulas de teatro?
Between Two Ferns é um talk-show exibido no site Funny or Die onde Zach Galifianakis convida estrelas do primeiro escalão de Hollywood para uma entrevista na qual faz perguntas satíricas sobre suas carreiras e, obviamente, às vezes também é insultado de volta pelos atores (que precisam de um baita espírito esportivo para participar do programa, parecendo ser exatamente o caso de vários, pois aparecem se divertindo nos erros de gravação mostrados nos créditos finais). Definitivamente é um tipo de humor de que eu gosto, bastante provocativo como se percebe pela "amostra" que coloquei em spoiler.
Para adaptar o talk-show em filme, criou-se um enredo de fundo no qual Zach e sua equipe fictícia dirigem até Los Angeles (onde encontrarão o Will Ferrel, um dos donos do Funny or Die, a fim de obter dele um programa televisionado) entrevistando celebridades pelo caminho e, como road-movie de comédia, passando por uma série de incidentes cômicos. Esses segmentos são fraquinhos, o filme vale mesmo pelas ácidas entrevistas com Matthew McConaughey, Brie Larson, John Hamm, Paul Rudd (são as melhores, esse último parece estar achando o máximo participar do filme), John Legend, Benedict Cumberbatch, Peter Dinklage e outros.
Pouco inchado - duração de 01h22min -, esse projeto até tinha algum potencial, mas o resultado é dispensável por não agregar nada ao produto original. Melhor ficar só com as entrevistas (caso a informação interesse a alguém, há várias legendadas em português no Youtube).
Maldita Sorte é um filme severamente bipolar: apesar da censura alta atribuída em razão do elevado conteúdo sexual, todo o seu humor é baseado em piadinhas bobas, trocadilhos infantis e acontecimentos que matam de tédio qualquer um que já viveu o suficiente pra ver mais de 5 filmes na vida (faria, portando, a alegria da garotada).
Apresentando a maldição do protagonista (toda mulher com quem ele transa conhece "o homem de sua vida" imediatamente em seguida) com um introdução de péssimo gosto, que envolve crianças envolvidas em piadas de erotismo chulo, o filme começa a seguir o manual da comédia romântica: homem que nunca se apaixonou cai de amores por bela mulher, inicialmente é repelido por ela, etc. Essas cenas de aproximação do casal são permeadas de diálogos deploráveis, aparentemente retirados daqueles tutoriais de sedução que volta e meia ganham os comerciais do Youtube, fazendo pensar que o roteirista é ávido consumidor desse tipo de material e usou seus "conhecimentos" para escrever o filme.
Não que melhore muito após vencidas as primeiras resistências da moça: como bom Don Juan, ele sabe que às vezes é necessário lançar mão de uma dose adicional de romantismo e, para garantir a conquista, sei sai com um: "sinto que você deve beijar bem". Como se trata de um sujeito cheio de carisma, também faz observações bastante descoladas e originais como "você sabia que ninguém consegue lamber o próprio cotovelo?" - ou seja: aparentemente o aspecto romance dessa comédia romântica foi elaborado por alguém que nunca conversou na vida e jogou no papel aquilo que ele acha que as conversas devem ser.
Mas é mesmo no humor que o filme fracassa de vez. Apelando para piadas sem a mínima elaboração, que provavelmente já estavam na primeira versão do roteiro e ninguém pensou em nada melhor para substituí-las, Maldita Sorte tem um cirurgião plástico que diz se masturbar com as fotos dos seios das pacientes e acha graça em diálogos como: (diz o protagonista, sabendo que sua namorada é responsável por cuidar de pinguins de um parque aquático) - "Me sinto como um gentoo... um pinguim monogâmico"; (responde o cirurgião em questão): - "ridicularizado pelos outros por ser gay".
Clap, clap. Muito engraçado.
O interessante é que Dan Fogler até interpreta bem esse coadjuvante tarado. Cheio de energia e projetando imenso cinismo, ele parece o único ator profissional da produção, porém seu trabalho é sabotado pela falta de boas tiradas. O que se pode fazer com falas do tipo: "se você fosse um hambúrguer do Mcdonalds, eu te chamaria de McPeitosMaravilhosos?".
Na realidade, valeria muito a pena inventariar as pérolas que o diretor deste projeto teve coragem de filmar e os editores não tiveram coragem de cortar:
Jessica Alba dá uma bronca no irmão drogado. Depois escorrega no gelo, um pinguim a derruba na água e ele solta um "depois sou eu o chapado".
***
- Por que você escolheu trabalhar com pinguins? Sério. Por que pinguins?
- Eles me fazem sorrir...
- É. Eles já vêm com um fraque acoplado.
***
- Não acredito que você ficou dependente químico dela.
***
- Eu sou um cirurgião e você é um dentista. É como comparar o General Patton com o Doutor Mostarda.
E se não transcrevo mais é porque esses maravilhas são em quantidade que desafia a memorização. Mas incrivelmente piora ainda mais quando o filme abandona um pouco o humor verbal e resolve explorar o físico, aí chegamos à estupefação com
E aliás, qual o propósito do "azar" da personagem da Jessica Alba, senão servir de muleta permitindo que, quando o diretor percebe que a falta de graça está demais, a faça tropeçar em alguma coisa?
Isso tudo pra não falar que o "herói" é um sujeito sufocador, infantil e obcecado,
praticamente obrigando seu par romântico a fugir dele, atitude sensata que estranhamente o irmão da moça contesta ao lembrar que (em uma piada visual boba) o quarto dela tem várias estampas e pelúcidas de pinguim, argumentando que "quando amamos algo, querendo estar cercados dele".
Jessica Alba é uma atriz inexpressiva, mas parece até ser boa em contraposição com o desprovido de graça Dane Cook. De resto, fora o já citado cirurgião do Fogler, o filme não tem personagens, apenas figuras que aparecem para repetir do quinto ou sexto minuto até o último deles (literalmente) a mesma piada de "você não aquele cara que é um amuleto?" ou para serem objeto de troça por serem obesas e peidorrentas (nesse ponto, lembra muito os filmes do Eddie Murphy/Martin Lawrence da década de 2000, beirando o plágio mesmo).
Daria pra ser menos criativo? Sim. Seria ainda menos criativo se, no fim
(Edit: é preciso ser justo. Há uma tirada engraçada nesse filme. É na cena introdutória, quando a menina-bruxa amaldiçoa a versão mirim do Dane Cook dizendo coisas como "o amor cairá com a chuva", então alguém pergunta: "o que é isso? É do Phil Collins?" - com menos de três minutos de filme o roteirista gastou todos os seus trunfos.)
Fútil e Inútil
3.1 51 Assista AgoraAo assistir a Bingo - O Rei das Manhãs, eu observei que, acompanhando um personagem irreverente, malicioso e cheio de energia, o filme conseguiu construir uma narrativa com esses mesmos atributos, estabelecendo uma coerência entre a história a ser contada e a maneira como conta essa história.
Vendo Fútil e Inútil eu me lembrei disso, mas por contraste. O roteiro é de boa qualidade, logrando atravessar alguns anos enquanto apresenta uma infinidade de personagens que vivenciam diversos acontecimentos, conflitos, percalços, êxitos, sem inchar quase nada (duração de pouco mais de uma hora e meia). A direção e a montagem são competentes, com bela manipulação de câmera, uso de recursos narrativos variados (montagem não-linear, quebra da quarta parede, narração de cenas por meio de quadrinhos e aí por diante), conseguindo, principalmente a partir da metade, manter um dinamismo que segura o interesse na trama.
O problema, a meu ver, é que, supostamente enfocando pessoas tremendamente engraçadas, Fútil e Inútil não é um filme muito engraçado. Há uma cisão entre o que o roteiro nos conta (que a revista faz muito sucesso, migra de forma triunfante e meteórica para outras mídias, tudo o que eles fazem é hilário, eles são gênios criativos, inovaram o humor, tudo muito superlativo) e o que conseguimos ver com nossos próprios olhos. As piadas são quase todas fracas, os redatores coadjuvantes aparecem mais pelos estilos exóticos do que por exibirem talento, as cenas em que discutem pautas para a revista, salvo algumas exceções, não dão um vislumbre de que ela fosse de fato tão brilhante. O próprio protagonista está o tempo todo persuadindo pessoas, seduzindo e quebrando o gelo com sua suposta verve e personalidade magnética, mas na verdade é um indivíduo aborrecido, cheio de falas batidas, até as cantadas dele são bastante ruins.
Essa disparidade impede que tamanha graça, que o filme jura estar lá, transborde narrativa afora, vaze, seja contagiante. Guardadas as devidas proporções (até por serem filmes diferentes), vale uma comparação, por exemplo, com Boogie Nights, que também tem um viés panorâmico, mas se sai bem melhor em dar vida às suas pessoas e situações (o que o beneficia tanto nos momentos mais luminosos como no aspecto dramático).
Sopesando os méritos e as fraquezas, o resultado final não é nada desprezível, pelo contrário, dentre as originais Netflix que não são superproduções, é uma das obras mais polidas e bem realizadas. Pena que faltou um tempero (eu chamo de bons diálogos).
Magnatas do Crime
3.8 300 Assista Agora"Você já havia se ferrado bem antes de Barry White"
The Gentleman é um desses filmes que começam pelo meio ou pelo fim: Mickey Pearson entra no bar, pede uma cerveja e um ovo cozido, atende ao telefone, um sicário armado se aproxima sorrateiramente, ouvimos o tiro e somos atirados para o passado. Para qual momento dele? Para aquele em que Guy Ritchie era expectativa de bom filme.
Ritchie é um roteirista e diretor limitado, suas incursões em outros gêneros nem sempre são bem-sucedidas, mas para filmes de gângster ele tem a fórmula mágica. Assim como em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, Snatch e Rock'rolla, a trama, apesar de violenta, não chega a ser visceral, pois não busca o realismo e sim o icônico: os personagens têm nomes ou apelidos extravagantes, vestem roupas caras, vivem disparando respostas afiadas, são estrategistas, multiespecialistas, sabem na mesma medida atirar com armas de fogo e transitar no mercado financeiro. Limitado, mas com estilo.
Retomando outras características habituais do diretor nesse filão, a trama é também intrincada, com reviravoltas, duplas intenções, fatos que se sobrepõem quebrando a ordem, tudo anabolizado por uma excelente trilha sonora e direção segura, que recorre, sem exagero, a algumas boas piadas metalinguísticas sobre a narrativa cinematográfica, quando o o personagem Fletcher (Hugh Grant) começa sua chantagem. Aliás, Grant, que tem se mostrado um bom ator, surpreende como um mafioso aliciante e traiçoeiro, cheio de maneirismos de bandido velho e malandro em busca da aposentadoria no Caribe.
Um criador costuma ser criticado quando não consegue ser eclético. Mas, algumas vezes, é simplesmente como ficar perto de casa. Se é verdade, como diz Mickey Pearson, que o jeito de ser o rei da selva é se mostrar como tal, Guy Ritchie mostra que em filmes de gangsters britânicos ele ainda é o rei.
O Agente da U.N.C.L.E.
3.6 538 Assista AgoraAlgumas semanas atrás eu comecei a ver Missão Impossível: Nação Secreta e logo me enfarei daquela chatice que nada tem do vigor e um tom levemente auto-paródico do MI - Protocolo Fantasma. Sem sair do dueto espionagem/ação, por que não buscar isso em O Agente da U.N.C.L.E? No mínimo será agitado e sagaz, o diretor é Guy Ritchie, um artífice dessa diversão pop em que homens e mulheres elegantes trocam porradas ao som de boas músicas e dizendo coisas bem sacadas. Estupidez gostosa de acompanhar.
O Guy Ritchie daqui é menos ele mesmo do que na maioria dos seus filmes de ação, contudo. A narrativa quadrada, onde de tempos e tempos sobressai um momento mais autoral (a cena do sanduíche e vinho no caminhão é a cara do homem que a dirigiu), não chega a captar o interesse. Como filme de espião, não se trata de um roteiro inteligente, especialmente elaborado ou mesmo intrigante. Como paródia de filme de espião, não é muito engraçado nem volta um olhar perspicaz aos clichês dos filmes parodiados.
No mais, é competente. Não cabe cobrar fidelidade na reconstituição da década de 60 se nunca houve essa pretensão de retratá-la tal como era, e sim de levantá-la estilizada, filtrada sob o olhar de quem a observa cinquenta anos depois. Trilha boa (a música do Tom Zé parece ter sido feita para o filme).
Sem maiores ambições (nem mesmo a ambição de ser ótimo em sua própria proposta - comédia de ação), Agente da U.N.C.L.E não fede nem cheira; a continuação que se anuncia no final nunca foi produzida e ninguém, nem mesmo o mais ardoroso fã do filme, morreu por causa disso.
A Chegada
4.2 3,4K Assista AgoraGosto muito de filmes e documentários que abordam questões científicas de forma humanizada e artística.
Sem entrar em explicações sobre a trama (pois ao final tudo fica claro; além do mais há bons textos sobre isso na internet), o que me surpreendeu mais é Villeneuve adotar o estilo oposto ao de, para citar um exemplo, Christopher Nolan, que em seus sci-fis busca sempre ressaltar que está lidando com matéria científica, complexa, "mindfuck" etc. Em A Chegada, os elementos mais densos (Linguística, complicações temporais) estão presentes, porém o roteiro os funcionaliza para que sirvam à trama principal, que é essencialmente um drama (cada espectador eleja o estilo que lhe agrade mais ou que fique com os dois...). Villeneuve vai bem, já é um dos grandes.
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraÉ um dos filmes de guerra mais brutais do mainstream hollywoodiano. Combates gráficos e claustrofóbicos, principalmente nas cenas envolvendo explosivos ou aquelas em que os japoneses camuflados se levantam formando uma linha de tiros de fuzil e metralhadora que destroçam os homens que vão à frente os pelotões inimigos. Não percebo essa violência chocante como elemento desnecessário, creio que obras do gênero devam mesmo retratar a guerra tal como é, em toda sua sordidez e tristeza. Ademais, a premissa do soldado que não mata é tão absurda que, se os combates não fossem pintados como um inferno caótico espalhando vísceras e membros, o conjunto seria uma coisa bonitinha, filme de guerra para edificar crianças.
É realmente impressionante e admirável o que fez o Desmond Doss. Em acréscimo, o roteiro faz um bom trabalho em não convertê-lo num pregador inverossimil, ele faz o que faz por sua fé e convicções, que não busca impor aos outros soldados, o que no contexto acabaria por matá-los (soldados não são culpados por guerras, são vítimas). Bom trabalho do Andrew Garfield. Dirija mais filmes, Mel Gibson.
Resgate
3.5 802Há vários anos eu e um amigo comentávamos sobre como Hollywood perdia tempo em não fazer filmes de ação à maneira asiática, com apuro técnico, deixando de lado a pasteurização e preguiça que tornaram o gênero uma mesmice no decorrer da década de 2000 (a maioria dos filmes de tiro-e-porrada lançados nessa época sofre das mesmas limitações, deixando de impressionar nas cenas de combate e tiroteio, ou seja, justamente nas que são sua razão de ser).
John Wick mostrou que os estúdios estavam perdendo tempo mesmo. Barato e vigoroso, gerou uma lucrativa franquia que, quanto mais aprimora sua ação, mais público angaria. Obviamente isso o tornaria influente e então surgiu Resgate, vendido como um "John Wick da Netflix".
Até que funciona, a vitalidade está lá, os planos-sequência, as explosões que que cobrem os personagens de uma poeira misturada a suor e sangue que parecem sujar a tela da TV ou computador. Um protagonista que apanha como gente grande enquanto dizima um exército inimigo. Nada mal. Mas faltou algo, acho que carisma, não se trata de um universo envolvente, não há coadjuvantes de apelo, que sustentem o fio narrativo. Parece que a continuação será um prequel. Gostaria que abordasse alguma missão anterior com o personagem Gaspar. Talvez haja ali o que faltou nesse primeiro.
Esquadrão Suicida
2.8 4,0K Assista AgoraHá uma cena de Esquadrão Suicida que se parece com seu diretor. É quando o Esquadrão chega na cidade sob ataque e se movimenta pelas ruas, em formação de combate, antes de descobrir a verdadeira natureza dos combatentes inimigos. A cena exala uma tensão e militarismo que em tudo remontam ao estilo do diretor David Ayer, roteirista e diretor de vários bons (e alguns nem tanto) filmes policiais e um de guerra.
Se essa cena fosse a descrição do filme, se se tratasse de um assault-movie, provavelmente nos divertiríamos. Mas a DC resolveu imitar o parque de diversões da concorrência e pariu essa anomalia, um filme desconjuntado, obviamente montado de forma contrastante com o material filmado, cheio de humor duvidoso e cuja pretensão (novamente uma ameaça global, novamente salvar o mundo) o torna ordinário e pretensioso num sentido bastante patético em vez de grandioso.
É constrangedor perceber como, na versão que veio ao mundo, a montagem faz o possível para se livrar do Coringa, mas nada há a se lamentar nesse sentido, tendo em vista tratar-se da pior atuação do Jared Leto, que investe em tiques amadores e numa composição gangsta que ridiculariza o personagem.
Corporações multibilionárias podem ser incrivelmente amadoras. Como é possivel permitirem que um projeto seja idealizado, concebido, roteirizado e filmado dentro de uma concepção, para depois a lançarem fora tentando extrair do material até então produzido um outro filme, colorido e engraçadinho, que nada tem a ver com o primeiro, no qual os envolvidos estavam trabalhando há meses ou anos, como se fosse possível construir uma casa de tijolos usando madeira? É muita confiança na estupidez do público. Confiança recompensada por uma estupidez que não decepciona. Esquadrão Suicida foi aos cinemas e arrecadou mundos de dinheiro.
A Hora do Pesadelo 4: O Mestre dos Sonhos
3.1 337 Assista AgoraA direção de arte, fotografia, iluminação e outros aspectos visuais deste filme são surpreendentes, há vários excelentes enquadramentos e outras cenas em que a câmera passeia elegantemente pelos elaborados cenários, com certeza um dos slashers mais bem tratados tecnicamente da década de 80.
Mas o filme é ruim; em sua esterilidade criativa, apela para uma decepcionante reciclagem de situações e ainda lança mão de momentos ridículos como o Freddy imitando um tubarão. A parte 3 é bem mais inventiva (roteiro do Frank Darabont).
É uma pena que necessitando apenas de um fiapo de história para preencher o bom visual, o que bastaria para que se o filme se tornasse um dos melhores da franquia, nem esse fiapo tenham conseguido produzir.
Matrix Reloaded
3.7 849 Assista AgoraO primeiro é um filme mais redondo e perfeito, este tem arestas, o excesso de lutinhas também torna o resultado final um pouco enfadonho. Embora muito bem realizada, não embarquei na perseguição da rodovia (empalidece perante a invasão do prédio, no original).
Mas continua intrigante, a mitologia é ampliada, alguns pressupostos do primeiro são jogados pela janela (como a natureza ce Zion) e ainda há bons diálogos.
Achei besta a interação do Neo com a Persephone, que lhe pediu um beijo, mas tudo pareceu fazer sentido mais à frente, no diálogo com o Arquiteto.
Em cada profecia há uma mulher que se apaixona pelo Escolhido; Persephone diz que o marido dela, o "Francês", não era tão arrogante num passado que ela não elucida; o Arquiteto diz ao Neo que ele tem um diferencial de amar. Provavelmente o "Francês" é um dos seis Escolhidos anteriores.
Gosto dessas pequenas pistas internas e reflexões que são espalhadas pela narrativa, fora algumas digressões, como o fato de eventos sobrenaturais serem falhas da Matrix.
Matrix Reloaded não é uma experiência muito prazerosa, mas é gratificante.
A Busca
3.4 714 Assista Agora"Quando você achar seu filho, leva ele pra casa. Não fala nada. Só leva pra casa."
De todas as críticas que se costuma fazer ao cinema nacional para negar o fato óbvio de sua qualidade, só concordo com uma: a captação de som pode ser sofrível. Nada se entende na primeira cena de A Busca. Se os personagens disseram algo de útil, perdeu-se.
Felizmente o som melhora e, com ele, o filme. Trata-se (em um recurso recorrente no nosso cinema) de um "explorador de brasilidades", que busca atuar no limite entre o drama (bela cena a travessia no rio, enquanto o protagonista compara sua relação com o filho - "e ele não sabe o que o cavalo come?" - com a do barqueiro e o filho dele) e a comédia ("achei que você fosse da Prefeitura") investindo em personagens facilmente identificáveis no cotidiano nacional. Gosto de notar como essa dualidade pai x filho está presente sutilmente ao longo de outros momentos da narrativa e geralmente é revelada em uma frase (como aquela que abre esse comentário ou "seu pai sabe que você está aqui?"). Só não vale cavucar as inverossimilhanças da trama (ex: as dificuldades de empreender tamanha viagem a cavalo), o filme necessita que o espectador embarque no jogo do lúdico.
Wagner Moura como de hábito rouba a cena; Lima Duarte faz uma participação mais do que especial. O elenco adolescente é sofrível, não atrapalha porque não aparece muito.
Se fosse meu filho, levava uma surra. Como filme, funciona.
O Patrão: Radiografia de um Crime
3.9 56 Assista Agora"A Vida é uma sina que temos de cumprir."
***
"Era era como um escravo de confiança."
***
"- Você viu como ele falou com você?
- Não.
- Como se você fosse o novo patrão."
Um dos personagens de Senilidade, do Ítalo Svevo, observa num outro contexto que "metade das pessoas vivem para que a outra metade possa viver". No contexto das relações econômicas de trabalho, é muito maior o percentual dos que vivem para que os outros possam viver. Este "Radiografia de um Crime" é um conto simples sobre como as desigualdades sociais profundas roubam das pessoas o futuro, as oportunidades, as mercantilizam à mercê de explorações e opressões diversas, sempre havendo quem deseje e possa, com conivência do Estado, se servir do ser humano como uma simples máquina de gerar dinheiro. pela conduta do advogado, também apresenta uma mensagem singela de que sempre devemos nos lembrar: na vida, é importante que façamos o nosso melhor a cada situação, que nos interessemos verdadeiramente pelas situações que precisamos lidar, pois ali, no concreto, também se faz justiça.
Joaquín Furriel é o dono do filme, numa atuação complexa que expressa por gestos e olhares todo o servilismo, simplicidade e esmagamento de seu personagem.
É bom lembrar que há poucos anos o Ministério do Trabalho, na esteira das diversas reformas (Previdência, Trabalhista e outras...) que o Governo Federal tem promovido tirando muito do povo e nada da aristocracia financeira e bancária, chegou a aprovar uma Portaria que permitia a prestação de trabalho rural em troca de abrigo e alimento. É dura a realidade do Hermógenes, enriquecendo o patrão enquanto dorme nos fundos do açougue com a mulher grávida, sendo humilhado por ele, sem ter para onde ir? Nossos últimos governos discordam.
2020 Nunca Mais
3.4 89Apesar de este mockumentary enfatizar os EUA, os acontecimentos nele abordados são de relevância pública mundial - coronavirus, black lives matter, eleições presidenciais - e foram exaustivamente explorados pela imprensa internacional, não havendo risco de qualquer pessoa razoavelmente informada perder as piadas por falta de familiaridade com os temas.
Posto isso, as interpretações são muito boas e os personagens, significativos. Alguns deles, como o historiador autoritário, a porta-voz do governo (uma cabotina da mesma laia de uma Bia Kicis ou Carla Zambelli, inclusive nas limitações cognitivas e verbais) e a dona-de-casa racista são dolorosamente reais; pela comédia esse especial documenta uma realidade muito dura, que remete a tantas figuras verídicas que transitam por aí e nos fazem questionar como foi que nos metemos nessa fossa global de incivilidade e fabricação de barbáries. Bem, de alguma forma sabemos a origem de parte do problema e o bilionário do ramo da tecnologia, dentro do próprio filme, responde: se seis meses de imersão nas redes sociais são suficientes para radicalizar uma pessoa normal, a meta é descobrir como fazer isso em cinco minutos.
Acho que no Brasil já descobriram a fórmula.
O mockumentary é um gênero que exige grande concentração de piadas por minuto; o roteiro se desincumbe desse desafio alternando as gags de cunho político-social com outras mais pueris, mantendo o filme ágil. Não senti o tempo passar e, como os assuntos são complexos (além de os personagens serem variados), acho que a duração poderia ser até um pouco mais dilatada sem causar fastio.
As imagens de arquivo, principalmente as que veiculam discursos do Trump, dão uma prévia da imensa vergonha que se abaterá um dia sobre a humanidade por ter permitido que um sujeito tão estúpido e tão abaixo de uma inteligência normal, para não falar no mau-caratismo, possa ter sido eleito presidente da maior potência econômica do planeta. Mas as alfinetadas que o Biden leva também são justas e durante seu mandato ele provavelmente dará motivo para que batam ainda mais nele. Espero que os próximos especiais façam isso, mas espero também que, se existirem, sejam menos trágicos.
O Homem que Desafiou o Diabo
3.1 440 Assista AgoraMontes de palavrões e situações picarescas, humor malicioso, é engraçado. Carece de melhor organização, o roteiro trabalha em tom de farsa sobre uma estrutura épica, de herói vencendo desafios, mas falta uma costura entre as diversas etapas da escalada mitológica. O acúmulo de situações pode deixar um filme dinâmico ou arrastado conforme o apelo e a força individuais de cada segmento, aqui tudo soa meio banal, quase um videogame em que se vão passando as fases sem construir uma noção de conjunto.
Ainda assim, funciona razoavelmente bem, é leve, a incontinência verbal dos personagens deve dialogar com um lado nosso infantil, pois é difícil não rir dela, a trama crescentemente absurda vai segurando a atenção. Com produção mais cuidada e um roteirista de verve, acho até que daria uma boa minissérie.
Tarde para la Ira
3.4 59Volta e meia, se um filme me interessa, o assisto sem ler sinopses. Decisão acertada em se tratando desse Tarde para la Ira, pois embora tenha ficado um pouco perdido no primeiro terço, essa economia de informações tornou a experiência mais gratificante quando tudo começou a fazer sentido.
Definitivamente gosto desse estilo seco, enxuto, contemplativo, uma lentidão cheia de não-ditos e subentendidos que o cinema "hablado em español" pratica tão bem em vários gêneros (vide o uruguaio Whisky e tantos outros). Temos aqui uma história de vingança nada hollywoodiana, precisa e cheia de consequências. Surpreendeu-me (mas, pensando bem, não deveria causar espanto) ter sido dirigido pelo Raúl Arévalo, ator frequente no cinema espanhol, incluindo o excelente policial La Isla Mínima. Sua acuidade na condução da trama, sem transbordar onde o roteiro exigia constrição, e a habilidade que mostrou em nos fazer enxergar a melancolia crua que os personagens também estão vendo (o próprio último plano, mostrando o carro partindo na estrada, é um bom exemplo disso), o tornam muito promissor. A ver.
Seven: Os Sete Crimes Capitais
4.3 2,7K Assista Agora"Estamos juntando peças. Recolhendo provas, fotos e amostras... escrevendo tudo. Anotando as horas em que as coisas ocorreram. Arrumando e arquivando tudo direitinho, para o caso improvável de precisamos no Tribunal. Garimpando diamantes numa ilha deserta, para o caso de sermos resgatados."
A certa altura de Seven, policiais estão analisando uma cena de crime quando o telefone começa a tocar em algum lugar. Há movimentação, o desespero toma conta de todos, o personagem do Brad Pitt corre pelos cômodos para encontrar o aparelho.
Este é o universo de David Fincher, diretor para o qual não há cena simples ou desimportante a ponto de não poder banhá-la com tensão e desconforto, compondo cada imagem, cada fotograma, com detalhismo obsessivo. É possível assistir diversas vezes a Seven a fim de observar a maneira como é trabalhado cada elemento da linguagem cinematográfica. A manipulação da câmera produz significados, os enquadramentos - todos eles, o tempo todo - expressam relações de hierarquia, autoridade e dominância. Percebam, sempre, quem está sendo filmado de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou no canto da tela, ou de costas, ou sentado diante de alguém que está em pé, e ponderem sobre como essas e tantas outras possibilidades visuais indicam de maneira simbólica e econômica qual a posição do personagens na trama e, eventualmente, para onde estão caminhando.
Também é perceptível o cuidado no som, pois o tempo todo escutamos brigas ao longe, o barulho da chuva, derrapagens de automóveis, a passagem do trem e outros barulhos diegéticos que reforçam o incômodo.
Algo que aprecio bastante no filme é que, apesar do esforço para retratar um universo de desesperança e opressão (para o que contribuem bastante os elementos visuais e sonoros, como exemplifiquei acima), sua construção nos diálogos é até comedida, diferentemente do que se passa na maioria dos filmes noir, em que os personagens estão constantemente analisando o mundo à sua volta e qualificando-o verbalmente, de forma muito direta, como podre, sujo, cruel, amoral, etc. Em Seven, apesar de esse tipo de verbalização aparecer esporadicamente, há até algumas tentativas de otimismo; se a decadência prevalece e dá o tom é porque ela vaza de um tecido de alusões pessimistas a respeito de detalhes mais periféricos da narrativa - referências a crimes passados, literatura com passagens terrificantes, lembrança de momentos deprimentes da vida dos personagens, como no diálogo entre Somerset e Tracy na lanchonete, pequenos comentários de coadjuvantes ("falar alguma coisa? Se o cérebro dele não tivesse pifado e ele morresse se acendêssemos uma lanterna na frente dos seus olhos, ele não conseguiria dizer nada porque mastigou a língua faz tempo. Francamente nunca vi alguém sofrer tanto e por tanto tempo. E ele ainda tem o inferno inteiro pela frente") e pequenos lances reflexivos em passagens quase irrelevantes (acho muito significativo, por exemplo, que no interrogatório do imigrante proprietário da boate em que praticado o crime relacionado à Luxúria, o roteiro faça o personagem do Brad Pitt lhe perguntar com raiva: "Você gosta de ganhar a vida assim?", recebendo de volta um "Não, não gosto, mas a vida é assim, não é?" - simples e brilhante).
Todos esses pormenores fazem Seven se passar um mundo orgânico, pulsante, cheio de pequenas janelas para meditações mais profundas, e essas janelas ficam mais visíveis a cada revisão, quando já conhecemos o desfecho da história e podemos apreciar melhor o percurso (falando nisso, me intriga que, em certo momento, o personagem do Pitt relate uma abordagem policial que terminou com um colega ferido e não consiga se lembrar do nome dele).
Outro aspecto positivo é que o filme não pesa a mão no "detetivismo", ou seja, a trama policial flui com naturalidade, sem necessidade de simular grandes brilhantismos ou deduções sherlokianas da dupla protagonista - eles avançam na investigação coletando evidências com uma acurácia verossímil e, inclusive, o vilão tira uma onda com isso dizendo algo como "vocês só me pegaram porque eu bati na porta da delegacia". Apesar disso, o filme extrai bons momentos da experiência, razoabilidade e cultura do policial mais velho (batizado de Willian Somerset em homenagem ao excelente escritor W.S Maugham, que merece muito ser lido), efetivamente caracterizando essas qualidades como úteis no trabalho policial (além de ele servir como uma espécie de farol de racionalidade naquele mundo cruel que fabrica violência, sordidezas diversas e assassinos em série).
A chuva, tão frequente em filmes e séries de suspense (e também de outros gêneros) para simbolizar opressão, mudança, solidão ou catarse, assume aqui um papel bastante forte não apenas ao reforçar a tristeza daqueles dias, mas ao simbolizar a entrada em cena do assassino
como se de fato ele aparecesse para promover uma purgação.
O diálogo entre o trio principal (nesse momento, virou mesmo um trio principal) no carro, antes do fim, é uma das melhores cenas do Cinema, altamente elucidativa sobre o tema do filme, cheia de nuances (volta e meia um dos personagens consegue render outro, mas depois os papéis se invertem) e com frases inspiradas ("você acha que as pessoas vão te estudar? Você é só o filme da semana. É uma camiseta"). E depois tem a cena final, cruel ao máximo, com um combo de significados - como disse alguém, só Seven para nos fazer torcer
para que o herói não mate o vilão.
Aliás, muitos apontam um furo do filme, dizendo que
o vilão é incoerente por matar uma pessoa inocente, visto que se trata de um psicopata moralista. Na realidade, não existe o furo. No carro, ele explica acreditar que está limpando o mundo ao assassinar as vítimas anteriores. Assim, apenas matando uma inocente ele se coloca no papel de pecador (inveja), fazendo jus a morrer também no ato final.
Apesar de bastante relevante como costumam ser os filmes que abordam com qualidade o tema extremismo, não o apreciei muito quando ao vê-lo pela primeira vez, há mais de uma década. Na revisão é que percebi suas texturas e desde então o revisitei algumas vezes. Tem valido a pena.
* P.S: Zodíaco, também do Fincher, também saltou da condição de filme parado para obra-prima marcante, no meu conceito, quando o revi. Considero ambos do mesmo nível e, talvez, Zodíaco até um pouco acima. Os Homens que não Amavam... e Gone
Girl não pegam beira.
Viver Duas Vezes
3.9 192 Assista Agora(Diálogo entre um coach e seu sogro, matemático diagnosticado com Alzheimer):
"- Hoje existem estudos muito bons dizendo que isso não é incurável... que se você pensar na cura com todas as forças..."
- A soma de todas as forças é igual a zero."
Uma das virtudes do cinema espanhol é não desprezar o conceito de "filme de uma hora e pouco". Na 01h40min de Viver Duas Vezes, o roteiro só anda pra frente, desenvolvendo diversas situações cheias de nostalgia, paixão e diálogos certeiros ("- por que você quer ir atrás dela agora? " - porque vou esquecê-la"). Apesar de a a trama central (consistente basicamente em "velho acertando pendências antes de morrer", como ironicamente diz sua neta) ser muito aliciante, os personagens secundários também têm força e razão de ser, passando longe da condição de meros suportes (Inma Cuesta confere grande carisma ao seu papel de filha, mãe e esposa que está sempre fazendo das fraquezas forças para segurar a coesão da família - a atriz e a personagem atingem o ápice num doloroso diálogo sobre a vida conjugal desta, que tem com sua filha).
Se incorporei o discurso da mimada Blanca para dizer que o filme é sobre um velho acertando pendências antes de morrer não é por antipatia pelo personagem, mas porque outro acerto do roteiro é dosar a autoironia, gerando piadas ácidas, mas sem aviltamento da enfermidade ("- Você tem um problema com a passivo-agressividade" "- Achei que meu problema fosse Alzheimer"), impedindo que se transforme num dramalhão, apesar da pungência sempre latente esperando brechas para vir à tona.
E aqui chegamos ao centro da obra: Oscar Martínez. Interpretando um personagem muito semelhante ao que encarna em O Cidadão Ilustre (dois homens eruditos e de personalidade forte que sentindo a decadência se aproximar partem em busca do passado), o talentoso ator consegue modular sua performance às necessidades de Emilio, exibindo uma vulnerabilidade comovente e sutis trejeitos de demência que praticamente nos obrigam a empatizar com o personagem. Simplesmente comovente.
Revitalizando os clichês que usa pela perfeição estrutural do roteiro (as situações não se prologam mais do que o necessário; os alívios cômicos são precisos e as pessoas que surgem pelo caminho, mesmo que só apareçam por poucos minutos, conseguem capturar nossa simpatia e atenção nesse curto lapso de tempo - como a embriagadíssima noiva, um certo adolescente que aparece em dado momento e ainda a idosa que reside na casa em que morava a Margarita, entre outros), o filme segue firme até o poético final, em que justifica de maneira simbólica seu título. Se eu vivesse duas vezes, também quereria assistir a este filme na vida seguinte.
Elena
4.2 1,3K Assista AgoraAqueles que ficam são constantemente acossados pela memória dos que partiram; quando alguém é bem-sucedido em converter o luto em arte, tristeza e criatividade se fundem num tributo sensível e doloroso, incômodo mas gratificante de ver.
Elena é uma exploração afetiva de uma vida perdida. Apesar de o tom documental ser favorecido pelas diversas filmagens e gravações da personagem-título sozinha ou com sua família, numa época de acesso mais restrito a recursos tecnológicos, não se trata de uma cinebiografia tradicional, que busca retratar feitos ou apresentar a cronologia de uma vida; a pedra de toque é o amor familiar, o desejo de compreender, resgatar e viver um pouco mais com quem se foi, prolongar sua vida através da memória - a busca por continuar se lembrando, por não deixar que a ausente se desbote, que morra de novo.
O trabalho de câmera, a fotografia e direção de arte das cenas atuais são mescladas de forma impressionante com o material antigo, há um trabalho de imagens que, lançando mão de alguma influência expressionista, evoca de maneira bastante eficiente o lirismo e o intimismo que dão o tom do documentário; a narração em OFF, que projeta doçura, recita uma prosa poética distante do melhor que o Cinema já produziu nessa proposta, mas ainda assim bastante eficaz, evitando que surja um vácuo entre esse aspecto do filme e aqueles mais visuais, que efetivamente atingem a excelência.
E é irônico pensar em como, no pós-morte e por força do ímpeto de sua irmã em mantê-la perto de si e talvez até mesmo realizá-la, Elena Costa obteve o que sonhava: protagonizou um filme memorável.
Toc Toc
3.7 597Toc Toc consiste em juntar no mesmo ambiente seis personagem com transtornos de comportamento e brincar com as interações possíveis de maneira caricata, mas até bem engenhosa, beneficiada pela boa montagem, principalmente
quando os personagens começam a analisar uns o comportamento dos outros, apontando em quais instantes conseguiram abandonar as respectivas compulsões.
O final não é tão surpreendente assim, mas funciona
Ficou um pouco na cara que o personagem do Oscar Martínez, sempre ditando diagnósticos, seria o psiquiatra - até seu figurino aponta para isso. O filme ainda tenta despistar dando indícios de que a secretária ou até mesmo o homem que o taxista prende no táxi, antes de entrar no consultório, poderiam ser o psiquiatra.
Em alguns momentos eu fiquei incomodado com os tiques dos personagens, principalmente com a mulher que repete frases, mas isso é mérito. Há umas passagens interessantes nesse sentido, em que a câmera enfoca diversos personagens interagindo e sendo acometidos simultaneamente por suas "particularidades". Angustiante, mas de forma leve, como o próprio filme.
Ótimo elenco, personagens têm carisma. Comédia despretensiosa sem ser ou chamar o espectador de burro.
O Cidadão Ilustre
4.0 198 Assista AgoraO filme é surpreendente, principia com um humor muito sutil, quase imperceptível, e à medida em que os acontecimentos vão se dramatizando - nos fazendo esperar que o cômico fique ainda mais rarefeito -, inesperadamente chegam umas pinceladas de comédia pastelona, às vezes física, tudo de mistura com o humor mais seco e com os conflitos que vão se estabelecendo e com as reflexões culturais - que são bem pertinentes, não soam como alguém imaginando que opinião teria um Nobel sobre as questões abordadas, mérito do roteirista.
Dado o sucesso em instaurar uma atmosfera de grande estranhamento - parece que o Daniel Mantovani vai se enfiando aos poucos num mundo secreto, numa espécie de interior fora do tempo - é bastante difícil se antecipar ao filme, cujo estoque de possibilidades é alimentado ainda pela diversidade de personagens que orbitam ao redor do protagonista - alguns manifestamente hostis, outros ambíguos e, ainda, aqueles donos do um afeto tão ostensivo que parece sempre à beira de degenerar em seu reverso.
É o segundo filme a que assisto desses diretores (Minha Obra-Prima é ainda melhor) e ambos compartilham muitas qualidades - verossimilhança dos personagens, apuro nos diálogos, uso eficaz de reviravoltas (sem forçar a mão nem fazer a história toda depender de alguma delas). A acompanhar.
A ideia do final é suscitar discussões, mas não consigo deixar de ver o filme como uma ficção dentro da ficção. Mesmo sem revê-lo, me parece que as pistas são muitas: Mantovani aparecendo sem barba apenas no começo e no fim; sua personalidade sempre avessa a retornar a Salas, mas obcecada por ambientar suas histórias nela, como martelado o tempo todo durante a projeção; o pouco altruísmo do personagem, que tornaria inverossímil que lá retornasse para receber um título honorífico municipal, ele que até o Nobel despreza; a própria atmosfera de absurdo que citei acima, quanto mais pessoas Mantovani conhece e quanto mais situações vivencia em Salas, mais a história vai adquirindo um aspecto fantasioso, como se o imaginário fosse se expandindo.
Aliás, os antagonistas do filme frequentemente acusam Mantovani de ser um engravatado ingrato, "apátrida", alguém que embalou seu desprezo pela cidade natal em livros e vendeu caro, e o protagonista não faz muito esforço em contraditá-los, seu meio de defesa não é apontar a inverdade dessas ofensas e sim argumentar que maus sentimentos fazem parte da literatura. "O Cidadão Ilustre" (o livro que ele apresenta no final, não o filme) parece ser uma purgação, um ajuste de contas que o protagonista, já no fim da carreira (frequentemente ele diz que um escritor laureado morre, torna-se estéril, inclusive ele não escreve nada há vários anos) procura levar a termo para refletir sobre a relação entre ele próprio, obra e cidade.
Por fim, é relevante notar que Mantovani não volta a Salas para se redimir ou algo do gênero - se seu ressentimento contra o provincianismo do lugar é justo ou se ele é uma raposa culta e soberba, isso fica a nosso critério, conforme nossa própria bagagem. Não nos privar dessa análise é mais um grande acerto.
A Balada de Buster Scruggs
3.7 534 Assista Agora"Cada decisão de um sujeito no pôquer é definida pelo que ele é. Toda a sua relação com o jogo até então."
***
"Toda vida é uma vida."
Que absurdo o desembaraço dos irmãos Coen nas cenas de ação, todas violentas, enérgicas, transmitindo urgência sem câmera trêmula e aqueles cortes dementes que se usa agora para camuflar imperfeições da coreografia e filmagem. Poderiam dirigir um John Wick sem constrangimento. O virtuosismo técnico se estende em tudo o mais: fotografia, figurino, direção de arte, tudo muito esmerado, mas aí já não é mais surpresa em se tratando de um filme desses diretores.
"The Ballad Of Buster Scruggs": Divertido pra cacete. Apesar de ser um conto sem maior conteúdo, eu queria mais desse personagem que o Tim Blake Nelson encarna de forma hilariamente cartunesca em sua sua prepotência polida, sua crueldade irreverente.
“Near Algodones”: Personagem de índole duvidosa
tenta cometer um crime e, inicialmente premiado pela sorte, acaba ficando de cara com o acaso, ironicamente sendo executado por um delito pelo qual não foi responsável. Esse tipo de brincadeira com as ações dos personagens, que acabam se cruzando com consequências trágicas para alguém, é bem estilo dos Coen.
“The Meal Ticket”:
Muito pungente. Faz um comentário sobre como as pessoas também têm valor de uso e, ainda, como a cultura, algo que dignifica o ser humano, nada vale se não for acolhida pelo meio (qualquer semelhança não é mera coincidência).
Li um comentário mais abaixo no qual a autora disse ter ficado com a impressão de que o contador de histórias tivera seus membros decepados por ter se envolvido com alguém da família do Liam Neeson. Faz sentido. A prostituta que o LN contrata pergunta "você não quer pagar uma noitada pro seu amigo? Ele nunca fez isso?", então ele fecha a cara e responde "uma vez..."
“All Gold Canyon”: Belo local. O enredo, pouco original, não cativa muito nem tem muita substância para além do óbvio (é preciso empenho, paciência e astúcia para as coisas darem certo). Ratifica que o Tom Waits, que volta e meia também bate ponto nuns filmes do Jim Jarmusch, é um ótimo ator.
“The Gal Who Got Rattled”: A Ruby Spark está rejuvenescendo com o tempo e orna bem com o sósia do Christian Bale. Achei que esse conto seria tedioso, mas ao fim é um dos melhores, fortalecido ainda pelo desfecho marcante.
O pistoleiro idoso é a essência do western: poucas palavras, não opina nem se queixa, mas quando necessário abre a caixa de habilidades.
“The Mortal Remains”: Diálogos extraordinários.
Não vejo tanto enigma a respeito do tema do conto. O que há na morte?
Trata-se de uma boa antologia, analisada no conjunto não chega ao brilhantismo, mas eu veria um segundo volume. O Velho Oeste continua sendo celeiro de boas histórias.
O Ditador
3.2 1,8K Assista Agora"- A polícia é fascista!
- Sim. E no mau sentido."
***
"- Eu gosto mesmo de você.
- Você me enganou. É um procurado por crimes de guerra!
- Ah, isso nunca dá em nada."
***
" - Imagina se o país virar uma democracia. Mulheres no volante, dirigindo, direitos civis para a população.
- 'Direitos Civis...?'
- Depois te explico. É hilário."
Oscila bastante entre o humor politizado (estão aqui as melhores tiradas) e o mais tradicional, de situações constrangedoras - quando, com a ressalva de uma ou outra passagem mais engraçada (a do parto é uma das melhorzinhas) assemelha-se bastante às esquetes do Casseta & Planeta* (a cena do helicóptero parece saída do Cafofo do Osama), contando obviamente com o indefectível romance inócuo que ajuda o filme a se encaminhar para a banalidade.
Gosto da zombaria contida no discurso final da ONU - em que são enumeradas diversas práticas tipicamente autoritárias que também são largamente empregadas nas "democracias" pelo mundo -, porém gostaria de ver essa crítica mais bem desenvolvida, evidentemente a serviço da graça, durante o filme todo. A cena em questão amarra de maneira eficaz as subtramas todas (a conspiração envolvendo o tio, o romance com a personagem da Anna Faris, a democratização da República de Wadiya), mas me passou a impressão incômoda de já ter visto milhares de vezes essa convenção narrativa das comédias americanas (o personagem percebe, durante um momento público, o que realmente importa para ele). Gostaria de algo mais anárquico.
Ponderando prós e contras (e pensando que um filme deve ser avaliado pelo que é e não pelo que se esperava dele), trata-se de uma comédia razoável, onde vislumbram aqui e ali alguns vestígios de inspiração. Mas que poderia ser melhor com menos apego ao modelão das comédias yankees, poderia. Filmes que pretendem fazer troça da política internacional e suas figuras controversas têm potencial para mais. Assim não pode, assim não dá!*
P.S: A trilha sonora tem umas versões muito boas de músicas conhecidas interpretadas em árabe.
Whisky
3.8 111Hesitei um pouco em assistir a este filme devido à manjada premissa: dono de fábrica deseja fingir que é casado para enganar seu irmão (residente no Brasil) que irá visitá-lo e pede a funcionária com quem tem relações meramente profissionais que simule ser sua esposa, o que obviamente gera consequências para os envolvidos. É uma sinopse de Globo Filmes. Mas uma abordagem diferenciada sempre pode desmoralizar nossos preconceitos.
Importante: não é uma comédia, e sim um drama leve com uma ou outra cena feita para arrancar um sorrisinho. Os rumos da sinopse acima não conduzem a peripécias engraçadas, mas a reflexões sobre incomunicabilidade. O silêncio sempre foi matéria útil para bons diretores, mas raramente o vi tão bem empregado: graças a ele pesa sobre todo o filme uma aura de afogamento existencial, um tabu de viver. Mesmo quando sons quebram este silêncio é para ressaltar a desconexão, como quando certo personagem faz uma pergunta e o ônibus que passa abafa a resposta, que jamais será repetida, pois quem questionou parece ter esgotado na pergunta sua capacidade de contatar, de interagir. Eventualmente se usa o silêncio, ainda, como fonte de humor, a exemplo da cena
em que a Marta aparece toda cheia de si ao lado do patrão no carro, que começa a travar e após um corte rápido ela surge empurrando o veículo.
Tamanha aridez no tema, associada à constrição verbal, parece apontar para um filme maçante, mas longe disso. Todos os elementos diegéticos - os objetos da oficina, a música que toca no rádio, o figurino, os cenários - instauram um realismo envolvente, vívido. As excelentes interpretações nos sugam para a história, que parece capaz de caminhar para qualquer lugar dentro daquela dinâmica estabelecida entre o trio. Fiquei absolutamente capturado pelo filme, interessado pelo destino dos personagens.
Além disso, o filme nos estimula visualmente a todo tempo, às vezes por meio de planos que se repetem em momentos distintos para salientar a rigidez da rotina, às vezes por enquadramentos que encaixotam os personagens em espaços confinados (ex: cabeças apertadas na janelinha do elevador), metáforas imagéticas que exprimem a sensação de aprisionamento dos personagens (mas aprisionamento ao quê, exatamente? É sobre isso o filme, pensar sobre isso é o que ele pede de nós, acho) e inclusive figuram nos belos cartazes do filme. Para não fazer uma enumeração cansativa dessa sensibilidade tão grande em colocar a sutileza da imagem a favor da história, destaco ainda como os personagens estão sempre abrindo e fechando portas, ligando e desligando luzes, em diversos momentos objetos mergulham ou saem das sombras, o que parece ter algum significado: exploração de memórias?
Gosto ainda de uma cena em que os dois irmãos travam um diálogo importante enquanto assistem a uma criança cantando bizarramente mal num karaokê: essa passagem era uma oportunidade para que eles se abrissem e o incômodo da conversa pega carona no incômodo da situação.
No final,
aparentemente Jacobo descobre que algo se passou entre Marta e Herman e dá à primeira dinheiro, sabendo que usará para fugir ao Brasil - talvez seja esse o sentido do bilhete que os amantes (?) trocam entre si antes da partida de Herman. Ou talvez seja uma outra coisa. O filme termina com Jacobo fazendo seu próprio chá (em três cenas diferentes Marta o prepara e leva). A máquina da fábrica rotaciona, é a volta à vida de sempre.
Em certo momento do filme, Marta comenta com o "cunhado" que as novelas brasileiras parecem ser muito boas. Eu trocaria essas novelas por um punhado de filmes latino-americanos. Na verdade, apenas a humanidade de que revestem seus personagens, os pequenos detalhes que os tornam seres vivos e não criaturas de papel, já fariam a troca válida: odnil !emlif
Between Two Ferns: O Filme
3.1 74Zach Galifianakis: - Nosso convidado de hoje é Keanu Reeves:
ZG: - Você tem uma baita cicatriz de um acidente de moto, não é mesmo?
KR: - Tenho sim. É aqui no peito.
ZG: - Tenho uma parecida na perna.
KR: - Por quê?
ZG: - Saí no meio de A Casa do Lago e bati a perna na poltrona da frente.
KR: - ... (silêncio contrangido)
ZG: - Em uma escala de 0 a 100, quantas palavras você conhece?
KR: - Escala... de 0 a 100?
ZG: - Sim. Quantas você conhece? 50? 75? 18?
KR: - ...
ZG: - É frustrante as pessoas te acharem um otário quando você é apenas um sujeito de inteligência abaixo da média?
KR: - ...
ZG: - Pode bater a perna no chão uma vez pra "sim" e duas pra "não".
KR: - ...
ZG: - Você estuda seus papéis?
KR: - Sim.
ZG: - Já pensou em estudar um personagem que esteja fazendo aulas de teatro?
Between Two Ferns é um talk-show exibido no site Funny or Die onde Zach Galifianakis convida estrelas do primeiro escalão de Hollywood para uma entrevista na qual faz perguntas satíricas sobre suas carreiras e, obviamente, às vezes também é insultado de volta pelos atores (que precisam de um baita espírito esportivo para participar do programa, parecendo ser exatamente o caso de vários, pois aparecem se divertindo nos erros de gravação mostrados nos créditos finais). Definitivamente é um tipo de humor de que eu gosto, bastante provocativo como se percebe pela "amostra" que coloquei em spoiler.
Para adaptar o talk-show em filme, criou-se um enredo de fundo no qual Zach e sua equipe fictícia dirigem até Los Angeles (onde encontrarão o Will Ferrel, um dos donos do Funny or Die, a fim de obter dele um programa televisionado) entrevistando celebridades pelo caminho e, como road-movie de comédia, passando por uma série de incidentes cômicos. Esses segmentos são fraquinhos, o filme vale mesmo pelas ácidas entrevistas com Matthew McConaughey, Brie Larson, John Hamm, Paul Rudd (são as melhores, esse último parece estar achando o máximo participar do filme), John Legend, Benedict Cumberbatch, Peter Dinklage e outros.
Pouco inchado - duração de 01h22min -, esse projeto até tinha algum potencial, mas o resultado é dispensável por não agregar nada ao produto original. Melhor ficar só com as entrevistas (caso a informação interesse a alguém, há várias legendadas em português no Youtube).
Maldita Sorte
3.0 737 Assista AgoraMaldita Sorte é um filme severamente bipolar: apesar da censura alta atribuída em razão do elevado conteúdo sexual, todo o seu humor é baseado em piadinhas bobas, trocadilhos infantis e acontecimentos que matam de tédio qualquer um que já viveu o suficiente pra ver mais de 5 filmes na vida (faria, portando, a alegria da garotada).
Apresentando a maldição do protagonista (toda mulher com quem ele transa conhece "o homem de sua vida" imediatamente em seguida) com um introdução de péssimo gosto, que envolve crianças envolvidas em piadas de erotismo chulo, o filme começa a seguir o manual da comédia romântica: homem que nunca se apaixonou cai de amores por bela mulher, inicialmente é repelido por ela, etc. Essas cenas de aproximação do casal são permeadas de diálogos deploráveis, aparentemente retirados daqueles tutoriais de sedução que volta e meia ganham os comerciais do Youtube, fazendo pensar que o roteirista é ávido consumidor desse tipo de material e usou seus "conhecimentos" para escrever o filme.
Não que melhore muito após vencidas as primeiras resistências da moça: como bom Don Juan, ele sabe que às vezes é necessário lançar mão de uma dose adicional de romantismo e, para garantir a conquista, sei sai com um: "sinto que você deve beijar bem". Como se trata de um sujeito cheio de carisma, também faz observações bastante descoladas e originais como "você sabia que ninguém consegue lamber o próprio cotovelo?" - ou seja: aparentemente o aspecto romance dessa comédia romântica foi elaborado por alguém que nunca conversou na vida e jogou no papel aquilo que ele acha que as conversas devem ser.
Mas é mesmo no humor que o filme fracassa de vez. Apelando para piadas sem a mínima elaboração, que provavelmente já estavam na primeira versão do roteiro e ninguém pensou em nada melhor para substituí-las, Maldita Sorte tem um cirurgião plástico que diz se masturbar com as fotos dos seios das pacientes e acha graça em diálogos como: (diz o protagonista, sabendo que sua namorada é responsável por cuidar de pinguins de um parque aquático) - "Me sinto como um gentoo... um pinguim monogâmico"; (responde o cirurgião em questão): - "ridicularizado pelos outros por ser gay".
Clap, clap. Muito engraçado.
O interessante é que Dan Fogler até interpreta bem esse coadjuvante tarado. Cheio de energia e projetando imenso cinismo, ele parece o único ator profissional da produção, porém seu trabalho é sabotado pela falta de boas tiradas. O que se pode fazer com falas do tipo: "se você fosse um hambúrguer do Mcdonalds, eu te chamaria de McPeitosMaravilhosos?".
Na realidade, valeria muito a pena inventariar as pérolas que o diretor deste projeto teve coragem de filmar e os editores não tiveram coragem de cortar:
Jessica Alba dá uma bronca no irmão drogado. Depois escorrega no gelo, um pinguim a derruba na água e ele solta um "depois sou eu o chapado".
***
- Por que você escolheu trabalhar com pinguins? Sério. Por que pinguins?
- Eles me fazem sorrir...
- É. Eles já vêm com um fraque acoplado.
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- Não acredito que você ficou dependente químico dela.
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- Eu sou um cirurgião e você é um dentista. É como comparar o General Patton com o Doutor Mostarda.
E se não transcrevo mais é porque esses maravilhas são em quantidade que desafia a memorização. Mas incrivelmente piora ainda mais quando o filme abandona um pouco o humor verbal e resolve explorar o físico, aí chegamos à estupefação com
Dane Cook vestido de pinguim.
Isso tudo pra não falar que o "herói" é um sujeito sufocador, infantil e obcecado,
praticamente obrigando seu par romântico a fugir dele, atitude sensata que estranhamente o irmão da moça contesta ao lembrar que (em uma piada visual boba) o quarto dela tem várias estampas e pelúcidas de pinguim, argumentando que "quando amamos algo, querendo estar cercados dele".
Jessica Alba é uma atriz inexpressiva, mas parece até ser boa em contraposição com o desprovido de graça Dane Cook. De resto, fora o já citado cirurgião do Fogler, o filme não tem personagens, apenas figuras que aparecem para repetir do quinto ou sexto minuto até o último deles (literalmente) a mesma piada de "você não aquele cara que é um amuleto?" ou para serem objeto de troça por serem obesas e peidorrentas (nesse ponto, lembra muito os filmes do Eddie Murphy/Martin Lawrence da década de 2000, beirando o plágio mesmo).
Daria pra ser menos criativo? Sim. Seria ainda menos criativo se, no fim
o mocinho fosse atrás da mocinha no aeroporto
Ah...
(Edit: é preciso ser justo. Há uma tirada engraçada nesse filme. É na cena introdutória, quando a menina-bruxa amaldiçoa a versão mirim do Dane Cook dizendo coisas como "o amor cairá com a chuva", então alguém pergunta: "o que é isso? É do Phil Collins?" - com menos de três minutos de filme o roteirista gastou todos os seus trunfos.)