"- Sempre que menciono seu nome há alguém perguntando: 'Renzo Nervi? Pensei que ele estivesse morto.'
- Talvez estejam certos.
- Você vai fazer esse quadro. Repita comigo: 'mesmo que eu seja um artista ressentido e um velho idiota, essa obra eu vou fazer.'"
***
"Quem faz arte precisa ser ambicioso e egoísta. Quem faz arte é porque não sabe fazer outra coisa. É uma espécie de deficiência."
É muito enriquecedor quando uma comédia inicialmente despretensiosa nos surpreende rumando para a sátira ferina, para a reflexividade, para o drama bem medido e, melhor de tudo, quando os atos dos personagens têm consequências (concretas ou morais) que nos fazem reavaliar nossa opinião sobre eles. Apesar do potencial agitador inerente às comédias, mesmo as que se apresentam como mais arrojadas são frequentemente inócuas, povoadas por personagens unidimensionais; Minha Obra-Prima passa longe disso e mais não direi sobre isso para não revelar muito.
Fiel ao que geralmente se passa no cinema argentino, os personagens são muito bem compostos, vívidos, e isso valoriza suas falas não somente por serem inteligentes, espirituosas e cheias de humor sagaz, mas também por serem bastante coerentes com suas personalidades, e isso confere às interlocuções uma naturalidade incrível, parecem mesmo indivíduos reais (e perspicazes) conversando cada qual impregnado de suas experiências, convicções, seus objetivos imediatos, etc.
Felizmente, o que já era bom no papel ganha vida por meio das atuações extraordinárias da dupla principal. Luis Brandoni ostenta um timing cômico imbatível, gerando risos pela simples maneira descarada como às vezes seu personagem fala (a maneira como ele profere diminutivos tentando ser simpático para fingir interesse nas atividades de seus interlocutores e tentar extrair algo deles é hilária), frequentemente conferindo alguma comicidade à sua rabugice incurável; além disso, consegue mostrar força nas exibições de integridade artística de Renzo Nervi e, quando o roteiro assim o exige, ainda domina os momentos dramáticos. Atuação completa.
Já Guillermo Francella (curiosamente o mais experiente em comédias), encarregado de um papel com menos momentos de expansão, não deixa por menos e converte seu empresário da arte numa figura profundamente verossímil e cheia de texturas - ao mesmo tempo em que nos convence de seu afeto e fidelidade por Nervi, não deixamos de notar as vantagens que ele ainda espera retirar dessa relação. O Arturo que tão bem encarna é valorizado ainda por instantes simples, mas de grande eficácia, como aquele que revela seu hábito de se sentar numa praça e observar os transeuntes, tentando imaginar suas profissões e personalidades.
A cena do envenenamento é primorosa, tensão insuportável. Primeiro, que o filme abandona ali a certa leveza de até então, trata-se do momento em que Nervi e Arturo vão cruzar uma linha perigosa. Depois, o diálogo travado dá a impressão de que Alex vai lhes dizer que desistiu de desmascará-los, o que os colocaria num impasse: revelar o propósito homicida ou matar alguém inutilmente. A expectativa angustiando para a ingestão do café, o desmaio, a volta à consciência (nesse ponto reside meu único "senão" ao filme: depois dessa cena pesada, ele retorna à leveza anterior, como se fossem abandonadas as consequências desse momento hitchcockiano; Arturo até diz: "sou um assassino, quis matar um inocente e levei a cabo", mas isso soa apenas como uma frase para aplacar o espectador que desaprovasse o fato de a tentativa de assassinato ficar por isso mesmo.
Mas que a cena é hitchcockiana, é, e para isso contribui demais a interpretação de Brandoni e Francella. O primeiro numa expressão congelada de choque, expressando ao mesmo tempo desejo de que Alex morra e repúdio pelo seu próprio desejo; o segundo com seu olhar vítreo, arregalado, deixando escapar um leve suspiro de alívio quando Alex emborca a xícara. Sem palavras, ambos projetam ansiedade e incômodo.
Se não fosse por todas as outras qualidades, esse filme mereceria ser visto simplesmente por esse banho de atuações. E pensar que eu comecei a vê-lo por acaso, confundindo-o com outro: literalmente um achado.
"Sou um péssimo criador de ovelhas. Uma delas até fugiu para o puteiro. Quando fui buscá-la, ela tinha arranjado 20 dólares."
Charlize Theron é demais, trabalha bem em cima de qualquer personagem, que mulher.
O filme é fraco. Como tantas outras comédias alicerçadas em bases ambiciosas ou pelo menos criativas (a ideia de ambientar um besteirol no faroeste é muito boa), em algum momento fica com medo de abraçar de vez o próprio universo, o próprio absurdo, e se escora no lugar-comum e no romance bobo. Há um ou outro instante de inspiração (a cena na tribo indígena é muito engraçada), mas logo se retorna ao humor de banheiro e à falta de inventividade; aí o filme se perde, desperdiça seu potencial e seu ótimo elenco.
mesmo porque, no manual do romance clássico, os personagens só não ficam juntos quando alguma força maior (geralmente a morte) os impede, jamais porque um deles, achando que a responsabilidade era demais, resolve brincar de skate (?) em vez de fugir com a amada, frustrando o êxodo romântico ao cair e ser levado de ambulância (??), desfecho que mostra, de forma impiedosa, como o casal principal sempre foi movido por necessidade de aventura, algo que obviamente não é matéria de filmes que buscam justificar traições sob a alegação de que tudo vale a pena pelo amor, etc - aliás, os respectivos cônjuges sequer são apresentados como pessoas ruins, o que corrobora ainda mais essa percepção.
Quanto ao Ronnie, pedófilo genialmente interpretado pelo Jackie Earle Haley, pior ainda: o filme simplesmente dedica vários minutos a apresentar os traumas de uma mulher para depois o personagem do JEH tripudiar desprezivelmente sobre eles e depois ameaçá-la de morte - e, ainda, a cena da masturbação acontece ao lado do parque em que ele se exibiu para uma criança, motivando sua prisão. Se esse roteiro alivia para o Ronnie, imagine se decidisse martelar que é um sujeito problemático...
Aliás, algo que notei e creio não ser por acaso é que, antes de o Ronnie entrar em cena, aos 45 minutos de projeção, a infidelidade entre os personagens da Kate Winslet e do Patrick Wilson ainda não se consumou, os respectivos casamentos vão mal, mas não desmoronaram, tudo vai andando numa relativa, apesar de incômoda, normalidade - só que basta ele entrar na trama e todos os demais sucumbem - é como se seu crime fosse tão tremendamente estigmatizante que sua presença no filme - não física, nesse momento o Ronnie não interage com ninguém do casal principal, mas narrativa - deflagrasse o desvario e a torrente de mentiras por parte de todo mundo.
Na realidade, acredito que o filme procura simplesmente acompanhar aquelas pessoas, buscando mostrá-las em todos os seus aspectos visíveis e extrair complexidade de suas contradições e de sua incapacidade de conter os próprios impulsos e carências (temática que o marido da personagem da Kate Winslet enuncia já no começo, ao refletir que "queremos o que queremos e não há muito o que fazer em relação a isso").
De alguma forma, todos os personagens desejam um pouco de elã, coisas corriqueiras da vida: receber elogios, terem suas habilidades, ainda que escassas (ex: jogar futebol) valorizadas, atrair desejo sexual de seus maridos e esposas, ter alguém para trocar confidências, para quem ser vulnerável e de quem receber vulnerabilidade etc
.
Tanto o roteiro como a direção são bastante parcimoniosos, caracterizando as características psicológicas das pessoas e os conflitos entre elas a partir de sugestões discretas e ótimos diálogos
Acho primorosa a cena em que a mãe do Ronnie busca convencê-lo a arranjar uma namorada. Ela começa externando sua preocupação em morrer deixando-o desamparado, carente de uma figura feminina que possa norteá-lo - ser sua nova mãe -, e diz que ele devia procurar "uma namorada de sua idade", recebendo a resposta brutal: "mãe, eu não quero uma namorada da minha idade, quem me dera querer".
Depois, ela faz uma ponderação (de uma discursividade natural, que não soa deslocada ou acadêmica na boca de uma velhinha simples) sobre a transitoriedade das coisas que amamos e se coloca a escrever um anúncio sobre ele para o jornal, descrevendo algumas de suas qualidades - aí sim o Ronnie se interessa na conversa e pede para que ela descreva tudo o que ele tem de bom, mas nem ela consegue encontrar muita coisa. É muita informação sobre os envolvidos, suas nuances (por exemplo: Ronnie revela o incômodo não estar reabilitado, o que atrai alguma solidariedade, mas também paradoxalmente, indica o perigo que ainda representa), seus piores medos, as consequências do comportamento delitivo sobre as pessoas que estimam o criminoso, tudo numa cena de curta duração. A cena no clube de leitura sobre Madame Bovary exerce a mesma função a respeito da Winslet.
Direção e montagem, na mesma linha, produzem momentos bastante significativos, como
mostrar uma criança relatando um momento traumático, até a câmera se afastar um pouco e percebermos que se trata de uma cena de documentário produzido pela esposa do Patrick Wilson - sua emoção ao assistir a este momento, em contraste com a frieza de seu colega de produção, lhe confere uma humanidade que ilustra o que apontei acima sobre os cônjuges do casal principal não serem indicados como más pessoas e, por consequência, não haver romantização nas traições.
representar graficamente a "rivalidade" criada pela Winslet entre ela e a esposa do Wilson fazendo cortes da primeira dormindo virada para um lado para a outra, em sua própria cama, virada para o outro.
mostrar os momentos que antecedem o início de um jogo de futebol com um tom épico, com a câmera passeando pelos rostos dos "combatentes", num movimento comum em filmes de ação, para cortar abruptamente para o pouco glamuroso fim do jogo, devolvendo à situação sua real dimensão de evento banal.
alternar o debate sobre Madame Bovary e as relações sexuais do casal principal, o que, além de criativo, ainda antecipa o fim do filme (num dos fragmentos, a vizinha da protagonista diz que Bovary foi ingênua ao acreditar que o amante fugiria com ela. A alusão é ao fim do relacionamento retratado no livro do Flaubert, mas não da personagem, pois não se repete em Pecados Íntimos e seria até destoante de sua trama, que busca justamente demonstrar como seus protagonistas são incapazes de atos de coragem.
ilustrar a condição de pessoas confusas dos protagonistas mostrando insejos voejando sobre a luz de um poste.
Trata-se, portanto, de uma obra extremamente coesa, em que os aspectos técnicos condizem com o tema de fundo, que por sua vez é abordado com a complexidade apropriada, gerando possibilidade de bons debates e, provavelmente, revisões proveitosas - talvez seja até um dos melhores filmes de sua década.
"Nenhuma época é satisfatória porque a vida é insatisfatória."
Junto com o protagonista somos conduzidos em uma viagem apaixonante por uma época e lugar cheios de gente brilhante e, humanos que são, problemática - quase todos interpretados numa vertente menos realista e mais icônica, o que condiz com o tom fantasioso da narrativa (em dado momento, o próprio personagem do Owen Wilson percebe que o livro no qual trabalha peca por excesso de realismo e pouca imaginação, um apontamento que comenta os objetivos do diretor sobre o próprio tom do filme).
A consistência do elenco escalado para interpretar as célebres figuras históricas não impede que Kathy Bates e Adrien Brody (a primeira, mais sutil, o segundo, mais caricato) se destaquem, fazendo muito com o pouco tempo que têm de tela. Já Marion Cottillard, que sempre teve mesmo um charme vintage, parece mesmo talhada para esse papel (cujo fascínio pela Belle Époque é responsável por uma virada que enriquece a trama).
Prestando um tributo ao passado (ou a dois passados) sem se afogar numa nostalgia que afogue as potencialidades do presente (algo que faria o roteiro incorrer no mesmo equívoco de seu protagonista), Meia-Noite em Paris é um dos melhores esforços do Woody Allen; em sua inchada filmografia (que durante décadas contou com quase um filme por ano, alguns dos quais apressados e mal desenvolvidos) representa o desejo de sair da zona de conforto e, mesmo sem fugir da costumeira simplicidade com que estrutura suas obras, fazer algo diferente e melhor.
Coringa parte dos princípios corretos: a ideia de situá-lo numa Nova York de Martin Scorsese é ótima, contrataram o melhor elenco possível e se propuseram a encarar o personagem por um de seus ângulos mais interessantes: o violento deflagrador da anarquia, a loucura selvagem que surge como resposta à loucura da malha social excludente pelo mau funcionamento de suas estruturas burocráticas e pela frieza dos seres humanos que coexistem nessa ciranda.
Minha tese sobre não ter gostado tanto é que o filme faz um jogo de cartas marcadas. Todos conhecem o personagem como um possível catalisador de convulsão social, e é isso que o roteiro faz: desenrola na nossa frente possibilidades que já estavam contidas na ideia geral que todos temos sobre o Coringa. Não senti o impacto de nenhuma das reviravoltas do filme, pois sabia que elas desembocariam nos fatos que compõem o terceiro ato. Isso neutraliza qualquer elemento surpresa e o choque de, em algum momento, achar que a coisa realmente desandou na mente do personagem, ou seja: o filme vergou sob o peso de ser a história de origem (ou uma das possíveis histórias de origem) de um vilão icônico. Que tipo de acontecimentos deveriam inserir na trama, então, para causar esse impacto? Não sei, é desafiador mesmo, ainda mais depois de Batman - O Cavaleiro das Trevas, cujo Coringa se beneficia imensamente de sua qualidade de homem de lugar nenhum, quase uma alegoria.
Como o Arthur é um personagem intelectualmente limitado (sendo que isso desempenha uma função no roteiro) e nenhum coadjuvante faz as vezes de observador agudo de sua jornada anti-heroica, senti também que se perdeu o sentimento do fascínio, da sagacidade que os grandes filmes, independentemente do gênero, geralmente possuem. Não há aqui uma única troca inteligente de frases, todos os personagens (fora o do De Niro, que não é alguém do convívio do protagonista) são quadrados, a cena do interrogatório em TDK é mais substancial do que as duas horas do Coringa - embora não pareça, eu realmente não queria comparar os dois filmes, como se este devesse ser medido segundo as propostas e características do filme do Nolan: poderia ter citado qualquer outro ótimo filme com vilão ou anti-herói memorável.
Sem nada mais a acrescentar a essa altura em que tudo já foi dito sobre a complexa composição do Joaquin Phoenix, seu olhar desolado e sua risada pigarreada, dolorosa, limito-me a observar como o De Niro, que tantou enxovalhou sua filmografia nas últimas décadas, continua ótimo ator e parece mesmo um apresentador de talk show.
Por uma sincronicidade (e por causa da programação da HBO), vi dois filmes de palhaço em seguida: este, em que alguém decai mentalmente até virar um palhaço, e Bingo - O Rei das Manhãs, em que um palhaço louco decai mentalmente até virar gente de novo. O do Bingo é melhor tanto na ida como na volta.
Bingo - O Rei das Manhãs é um caso de coerência entre alguém e o filme que narra a trajetória desse alguém. O protagonista é cheio de energia, a obra é cheia de energia. O palhaço dizia que faltava ginga ao roteiro do programa, o roteiro do filme é cheio de ginga: casamento perfeito.
Graças a toda essa vitalidade, as duas horas passam voando e poderia até ter uns minutos a mais, se desejassem esticar um pouco o terceiro ato - apesar de eu considerar que realmente não há necessidade de gastar muita película ilustrando uma decadência que pode ser demonstrada em menos tempo, com cenas categóricas como a que mostra
a criança bebendo uísque durante o desmaio do pai.
Gosto especialmente de como o filme retrata habilmente como o Bingo vai surgindo aos poucos, se alimentando da malícia de seu intérprete, até dominá-lo por completo e em seguida ser parcialmente controlado por ele. O ardor, a ambição do Augusto Mendes vazam na tela e contaminam positivamente toda a narrativa, já que tudo ao seu redor se movimenta no ritmo de sua voracidade por tudo (e mesmo nos momentos mais doces, é o que o filme diz: o que ele gosta é atuar, ter palco, não por acaso faz isso na passagem mais tocante, envolvendo um diálogo em italiano).
As cenas do programa são muito engraçadas, Vladimir Brichta como Bingo se mostra um ótimo comediante, mas sem perder a essência daquilo que o personagem é fora das câmeras: um cara cômico, porém de forma meio destrutiva, alguém que peita os desafios fazendo troça deles, algo como ridicularize os problemas para olhá-los de cima para baixo e vencê-los (por outro lado, embora auto-confiante num nível que beira a arrogância, o personagem é pé no chão quando se vê na maré baixa e tem a humildade de recorrer a um palhaço experiente para ensiná-lo a se comportar no palco, num reconhecimento das próprias deficiências que Brichta também representa muito bem).
Montador experiente (responsável por Cidade de Deus, os dois Tropa de Elite, A Árvore da Vida e muitos outros), o agora diretor Daniel Rezende já estreia no cinema experiente e mostrando que entende do riscado. Após finalizar sua incursão no universo infanto-juvenil das histórias da Turma da Mônica certamente cravará no cinema nacional outras pérolas como Bingo.
"Não muito bem. Passei a noite vomitando comprimidos. É que tenho medo de tomar o suficiente pra me matar."
Ricky Gervais estava cheio de moral, conseguiu captar para este filme de baixo orçamento participações de Louie C.K, Jason Bateman, Jeffrey Tambor, Jonah Hill, Philip Seyour Hoffman, Tina Fey e Edward Norton - na única cena envolvendo este último vemos o estilo do Gervais tal como ele é: "estou aliviado por vocês não serem negros" (trata-se de um policial parando dois homens em um carro), "haveria uma probabilidade maior de eu ficar nervoso, atirar em vocês sem provocação e perder a minha arma." "Isso te excita sexualmente?", alguém pergunta. "Sim.". Mordacidade, humor cortante.
Há ainda alguns bons conceitos. Gosto de o cinema deste mundo sem mentiras consistir em um ator de aparência professoral lendo textos dissertativos sobre períodos históricos, divididos segundo uma periodização acadêmica, reforçando a ideia sempre instigante de que a arte como a conhecemos, ainda que possua alguma preocupação com a veracidade, é uma espécie de farsa, de ilusão ou mentira - está no terreno do imaginário.
Infelizmente, após estabelecer as premissas da história, Gervais desiste de se divertir com a exploração de suas possibilidades, preferindo o caminho fácil das convenções mais desgastadas da comédia romântica (no que não se sai muito bem, pois filmes desse gênero só funcionam se os dois do casal tiverem algum magnetismo, o que não se passa aqui, pois a personagem da Jennifer Garner é a mala das malas e isso não tem relação com incapacidade de mentir), desperdiçando o bom inicio e tornando o filme até um pouco maçante, apesar da curta duração. Faltou aproveitar um pouco mais o potencial cômico do mundo absolutamente sincero, soltar mais a criatividade, faltou mentir mais.
O Johnny Depp neste filme está a cara do Wellington Ceará quando ele imitava o Silvio Santos.
Lembro-me de tê-lo assistido no Tela Quente com a minha irmã, quando criança. É um dos filmes que mais me aterrorizou na vida, marcou-me como fiquei aliviado na cena final, em que finalmente aparece o sol e um cenário urbano, tudo numa fotografia mais iluminada.
Revendo agora, notei como a ambientação e direção de arte góticas, com vilarejos, cores escuras e fumaça nas madrugadas densas, além evidentemente do enredo misterioso e cenas de morte, tudo isso camufla o tom farsesco com pinceladas cômicas, bem mesmo ao estilo do Tim Burton - o Depp escondido na cama após seu primeiro encontro com o vilão é hilário. Seguindo sua tradição, o diretor não perde a chance de homenagear atores clássicos, atribuindo aqui uma participação ao Christopher Lee.
Ao fim, é um dos tantos filmes do Burton que impressionam bastante pela execução e muito pouco pela história, mas ele realizou pouca coisa melhor desde então.
É praxe: filmes de guerra pontuam em algum índice oculto se fazem alguma referência ao inesquecível Sargento Hartman (interpretado por R. Lee Ermey, ele próprio militar) de Nascidos Para Matar - já em sua primeira cena, Soldado Anônimo rende esse tributo. No penúltimo filme do gênero a que assisti, Até o Último Homem, lá estava Vince Vaughn tentando desempenhar a mesma tarefa inglória, pois Ermey é insuperável.
Como não poderia ser diferente num projeto que procura mostrar o que acontece se soldados são treinados extensamente e encaminhados para uma missão militar na qual ficarão na expectativa de combates que jamais serão travados, pois o desnível de poderio bélico entre as nações envolvidas permite que o inimigo seja abatido por baterias aéreas e outros meios mais avançados do que o corpo-a-corpo das guerras anteriores, Soldado Anônimo é um filme de guerra com pouca guerra, ou melhor, pouca ação, visto que a guerra em si não é banalizada e, após uma primeira metade mais leve, focada na preparação dos soldados, passa a colocá-los diante dos acontecimentos atrozes que aconteceram no contexto da Guerra do Golfo (como ao mostrá-los se deparando com o resultado de um bombardeio que carbonizou as vítimas).
Sam Mendes, como de costume, indica com sutileza emoções ou ressalta subtextos em planos ou imagens simples, como aquela em que é noticiado um bombardeio enquanto um objeto cai do céu, mas em menos de um segundo percebemos que se trata de uma bola de futebol americano, ou outra passagem em que, de forma bastante significativa, Sam Mendes enquadra Anthony Swofford (personagem do Jake Gyllenhaal) atrás de um vidro, permitindo que simultaneamente contemplemos pelo reflexo aviões americanos explodindo o reduto em que um oficial inimigo se encontra e o semblante de Swofford, visto de frente, mostrando decepção por desejar ele próprio ter cometido o assassinato. Roger Deakins, diretor de fotografia, um mestre em seu ofício, concebe cenas visualmente apuradas como aquela em que os personagens cavam no deserto enquanto torres de petróleo são incendiadas, inundando com a cor laranja o céu noturno.
Adotando apenas raramente uma abordagem mais política mais explícita (por exemplo, como quando um dos fuzileiros reclama de censura, após ser orientado a não fazer objeções à operação quando for entrevistado por jornalistas que visitam o acampamento, ou quando alguém aponta que o conflito armado ali travado se baseia em interesse pelo petróleo da região), Soldado Anônimo se encerra com mais uma mensagem frequentemente veiculada por filmes do gênero: a verdadeira guerra começa quando os combatentes voltam para casa.
"Quando você morrer, vai dizer a si mesmo que foi por amor. Na verdade você passou a vida toda esperando que alguém o punisse. Aqui estou eu."
Até A Lei da Noite, Ben Affleck estava invicto como diretor, com três longas de boa qualidade no currículo, e daí seria de se esperar uma evolução ainda maior quando anunciou que adaptaria um romance de máfia de Dennis Lehane, expoente do gênero.
Não é que tenha dado tudo errado: a ambientação e figurino são bons, a direção, correta, eventualmente pipocam frases que traem a origem da história na mente de um bom escritor ("sua filha não está em Hollywood, ela só chegou até Los Angeles"). Infelizmente, o projeto é sabotado pelo roteiro um tanto convencional, que chega a apelar, no clímax (momento em que um filme deve crescer) para besteiras como
um acordo improvável entre Maso Pescatore, chefe do Affleck, e o arqui-inimigo de ambos, Albert White (Pescatore subitamente resolve se livrar do "herói", seu lucrativo comandado na condução dos negócios ilícitos. Como se não fosse suficiente, logo em seguida vem a cena lamentável em que o protagonista consegue ganhar tempo antes de ser assassinado dizendo ao White que a ex-amante comum (uma pessoa vivida sem nenhum charme ou magnetismo pela Siena Miller, e que naquele ponto tinha sido dada como morta há muitos anos), estava viva. Comparem essa pieguice com os momentos mais importantes de qualquer ótimo filme de máfia que se possa trazer a memória e avaliem o que resta de A Lei da Noite.
Aliás, analisando por essa vertente, é curioso como Argo, embora muito bom, já não tinha um clímax muito vigoroso, algo que os dois filmes em questão tentam construir, mas não conseguem.
A Lei da Noite é tão superficial que, no fim, quando o protagonista se reencontra com a Emma Gould, esse acontecimento produz efeito dramático nulo - ao longo da projeção são salpicadas algumas falas para fixar que o protagonista nunca superou essa perda, que sua relação com a citada personagem era muito forte, etc, mas em nenhum momento o filme efetivamente nos mostra isso. Qual a razão do reencontro, no final? Mostrar que quando duas pessoas retomam contato, anos depois, nenhuma delas é a mesma de antes, pois passaram por fatos que as transformaram? Dizer que o protagonista jogou parte da vida fora sofrendo por alguém que jamais retribuiu verdadeiramente os sentimentos que ele lhe devotou? Se é isso, caiu no vazio, pois em nenhum momento das duas horas anteriores o personagem do Affleck pareceu realmente padecer a dor de uma perda muito grande.
Ou talvez a ideia tenha sido preparar o terreno para que o espectador sofresse mais a morte da personagem da Zoe Saldana. Isto é: o roteiro apresenta dois interesses afetivos, lança o protagonista nos braços do segundo após demonizar o primeiro e depois mata esse segundo, causando lágrimas na audiência. Que rasteiro, a morte de alguém só produz comoção se o próprio falecido e sua relação com quem suportar a perda forem bem desenvolvidos, isso não funciona por via reflexa - é apelativo.
Achei impertinente a opção pela narração em off, que é absolutamente inútil: não traz dinamismo ao enredo, não o explica (pois não é elaborada a ponto de tornar necessário um esforço didático) e sequer é bela - o narrador não é irônico, lírico, explicativo, nada do que ele diz agrega nenhuma percepção, aparentemente esse recurso só é utilizado porque o filme é adaptado de um livro escrito na primeira pessoa.
Também é verdade que o filme empalidece na comparação com outras obras que são muito melhores e se passam no mesmo momento histórico com abordagem parecida. Por exemplo, explorando a diversidade étnica nos confrontos entre diversas facções mafiosas - americanos, italianos, cubanos - temos a excepcional série Boardwalk Empire, na qual, aliás, Lehane trabalhou como produtor.
Ben Affleck e Siena Miller são atores comuns. Zoe Saldana aparece muito promissora, mas infelizmente é desperdiçada num papel que a cada minuto lhe dá menos o que fazer (entra em cena como uma personagem forte, independente, e vai se transformando na esposa do protagonista). No núcleo central, o único ator que recebe um bom material é o Chris Cooper - e ele aproveita plenamente bem a oportunidade de se destacar, defendendo com sutileza e humanidade seu personagem.
Ben Affleck não deixa de ser um bom diretor por esse primeiro deslize, que nem é um deslize tão grande assim, mas espero que nos próximos filmes ele dê ainda mais sinais de amadurecimento e produza algo que seja consequência natural de alguém que, em seus primeiros trabalhos, enfileirou Medo da Verdade, Atração Perigosa e Argo.
Missão Impossível 2 rompeu tão violentamente com o estilo mais contido do original que anistiou os seguintes pra serem o que quisessem, por mais frenéticos que fossem os caminhos que desejassem trilhar.
Missão Impossível 3 tira proveito dessa liberdade e é movimentado, cheio de ação, dando a J.J. Abrams a chance de se mostrar um bom engenheiro do caos, o que faz, por exemplo, na cena de perseguição de helicópteros, em que a equipe do protagonista precisa transitar pelo meio de uma usina eólica desviando de misseis dentro da noite enquanto uma personagem se pendura em um dos veículos e o protagonista tenta desativar a bomba implantada na cabeça de outra. Claro que, apesar da boa construção da cena, valorizando a confusão e a multiplicidade de perigos,
a essa altura já temos uma franquia de ação consolidada, que não teria peito para logo no início matar a equipe inteira de agentes, como fez o primeiro.
Há, ainda, outros bons momentos de ação, como quando o Tom Cruise (não vou nem chamar o personagem pelo nome, tão notória a maluquice do ator em fazer essas cenas sem dublês) desliza pelas janelas para atingir o interior de um prédio em Xangai, numa invasão que, como descreve o agente interpretado pelo Vingh Rhames, é ainda mais desafiadora do que a do Forte Langley, no primeiro filme.
Mas MI3 não vive apenas desses bons momentos de ação. A trama é dinâmica e misteriosa, a busca pelo "pé-de-coelho", MacGuffin (objeto que os personagens de um filme perseguem e em torno do qual gira uma história, segundo definição de Alfred Hitchcock) da vez rende boas passagens e o elenco de apoio é eficiente. Para surpresa de ninguém, Philip Seymour Hoffman, ator poderoso, torna marcante um vilão que, no roteiro, provavelmente era bem unidimensional.
Eu não gostei de MI3 quando o assisti pela primeira vez, quando saiu, mas na revisão minha opinião ficou bem mais favorável. Todos os filmes da até então trilogia, díspares entre si, se viraram bem com suas respectivas propostas e, num sinal de que essa imunidade ao comodismo é saudável, o quarto seria ainda melhor. Falta-me ver os demais.
"Foi inevitável. Com o fim da Guerra Fria, não precisa mais guardar segredos. Operações pelas quais só você é responsável. E, um dia, você acorda e o presidente está governando o país sem pedir sua permissão. Como ousa, o filho-da-puta?"
A partir do segundo virou uma franquia de ação desvairada, encontrando nesse segmento bons momentos (gosto bastante do quarto filme), mas é no mínimo instigante conferir como seria um filme de James Bond dirigido pelo Brian de Palma. Não é estranho como parece: De Palma é um mestre do suspense, do engano, e também da elegância. Suas melhores características jogam a favor do gênero espionagem, que precisa desses atributos.
Se um filme de espionagem precisa de alguém que saiba fazê-lo, e de Palma sabe, por que não deu plenamente certo? Missão Impossível é cheio de momentos exemplares: uma cena no início, que apresenta uma equipe de espiões para em seguida nos espantar com o que fará deles; o momento em que Tom Cruise brinca de mágico ludibriando astuciosamente outro personagem para que lhe entregue um objeto que todos querem, e obviamente aquela maravilhosa invasão da base em Langley, na qual o diretor pinta e borda usando todos os recursos de tensão que o exiguo espaço em que se passa a ação admite - exceto a trilha sonora, inteligentemente anulada -, entrando com todas as justiças no rol de cenas que definem o Cinema. Contudo, ao ver essa estreia de Ethan Hunt senti que faltou uma argamassa que tornasse a trama, um tanto rala (e, a partir de certo ponto, previsível), tão intrigante, tensa e surpreendente como o são seus melhores momentos, e não me surpreendi ao ler depois que o projeto foi rodado com o roteiro inacabado, com ajustes sendo feitos enquanto as filmagens avançavam.
Acho irônico que o embate que mais destoa do conjunto - falo do helicóptero dentro do túnel - tenha sido o que logrou fazer escola nos capítulos seguintes, mas mais inesperado seria se um filme tão comedido durante a maior parte do tempo tivesse se transformado em uma franquia tão longeva sem perder suas características iniciais.
Beneficiado por uma daquelas trilhas sonoras que simplesmente traduzem a essência de um filme, Missão Impossível, apesar de alguns tropeços, é um bicho raro: apenas de tempos em tempos somos presenteados com uma boa história de espião. Eu queria mais.
Assistir a esses filmes que investem no mesmo filão que já fez a fama de outras obras de inegável superioridade (como o Tropa de Elite 2) envolve concessões mútuas: o filme nos diz que nós o assistimos porque queremos, obrigados não somos. Por outro lado, quem faz um filme desses deve suportar as comparações, caso contrário deveria se ocupar de algum estilo diferente, e assim ficamos quites.
Dito isso, Operações Especiais fracassa onde outros filmes se saíram melhor. O roteiro é um tanto atabalhoado, enfileirando uma série de situações bem pouco desenvolvidas e inclusive forçando algumas apenas para abandoná-las abruptamente (ameaça, por exemplo, algo que nem dá pra chamar de "subtrama" envolvendo a mãe da Francis, mas a participação desta não serve pra nada além de transmitir a impressão de que filmaram mais coisas, não gostaram e resolveram abandonar a personagem na sala de montagem, se esquecendo de fazê-lo por completo); insuficiente, também, o vilão do Antonio Tabet, que não passa de uma caricatura pobre. Contudo, esses defeitos são um pouco amenizados pelo fato de ser um filme de apenas 01h38min, portanto com pouco espaço para barrigas (ainda assim, lá pelo meio se torna um pouco repetitivo, com cenas excessivas para destacar a inexperiência da protagonista e suas constantes falhas em operações).
O emprego da música da Pitty - que comenta a ação dos únicos personagens honestos num cenário de desoladora crise ética e institucional - é de uma inadequação atroz.
Nem tudo são falhas, porém. O cinema nacional tem escassa tradição em cenas de ação, e aqui elas são satisfatoriamente bem filmadas e intensas. A Cléo Pires, em mais um papel porradeiro, e o Fabrício Boliveira exibem boas performances. Mas, se tive a percepção correta em achar que Operações Especiais daria uma série promissora (a realidade infelizmente oferece material sem fim), quem eu gostaria mesmo de acompanhar é Paulo Froes, o íntegro delegado encarnado pelo igualmente competente Marcos Caruso.
O amigo que o personagem do Jamie Foxx cita lá pela metade do filme pode até ter morrido, mas era um sujeito de muito bom-senso. Assaltar lugares ouvindo End Of The Road ou Hotel Califórnia, francamente, não dá. Até o próprio Bats, embora babaca, tem seus momentos de sabedoria debochando corretamente do Baby por planejar um assalto ouvindo Queen.
O Edgar Wright está cada vez mais refinado em ignorar com extrema habilidade que som e imagem são coisas diferentes e novamente faz com que um elemento trabalhe em função do outro como se cada som não pudesse ter sido concebido senão para aquela imagem e vice-versa. Sérgio Leone aprovaria. Há algumas tiradas espirituosas ("ele é retardado?", "retardado significa lento, ele pareceu lento pra você?") e o elenco estelar bem à vontade (Jon Hamm parece estar se divertindo à beça e protagoniza uma ótima cena embalada por Never Gonna Give You Up, do Barry White).
Pena que Baby Driver não seja mais que isso. Edgar Wright alcança o memorável quando entra mais fundo no gênero parodiado/homenageado ou quando surta mais na confecção do roteiro (Todo Mundo Quase Morto e Chumbo Grosso, respectivamente). Quando não é assim, apenas produz uma embalagem elaboradíssima para que os clichês desfilem em grande estilo.
Eu gosto bastante mesmo desses filmes besteirois bem bobos. O humor físico não apenas remete à origem das comédias cinematográficas (e em algum nível, às origens do próprio cinema) como pode ser bem desafiador (os melhores do gênero lançam mão de recursos cômicos bastante criativos), de modo que não cabe tratá-lo como um subgênero menor. A coisa desanda quando o estúdio começa a achar que a licença que esse tipo de filme tem para ser ridículo é suficiente para fazer e vender qualquer coisa, como se cretino fosse o espectador, não o divertimento que ele procura.
Todo Mundo em Pânico 2 é uma comédia bem malacabada, cujos criadores, obviamente assaltados por uma desesperadora falta de ideias, se escondem atrás da escatalogia fácil, não pontualmente mas a todo e todo momento, demonstrando que simplesmente não sabiam o que escrever e filmar. Embora sigam a cartilha anárquica do subgênero (esse tipo de comédia não tem compromisso com qualquer espécie de lógica ou estrutura, o desafio é simplesmente bombardear o espectador com três, quatro esquetes por minuto, fazendo rir por exaustão, o que é legitimo e interessante), as piadas, repetidas ad nauseam, são ruins a ponto de momentos nada originais (não marcarei spoiler pra isso) se sobressaírem como respiros de criatividade ("você está fugindo de um esqueleto: você correria da Carlista Foxheart?"; duas gags envolvendo o Marlon Wayans, uma envolvendo seu personagem ser fumado por um monstro de maconha, outro envolvendo uma referência a Hannibal com o BetleeJuice dentro do cérebro do personagem). Aliás, nada pode ser mais forçado e menos engraçado do que o Marlon Wayans.
Vendo o filme bastante tempo depois do lançamento, é curioso notar como seu humor é parasitário e não existe por si: as piadas, já fracas, ficam ainda piores depois que passou o hype dos filmes parodiados. Isso porque o filme não constrói o momento, ele apenas aponta "estão vendo? agora eu estou fazendo uma referência às Panteras, podem rir!".
Ranzinza criticar um filme tão despretensioso, que faz um acordo claro de provocar uns risos e nada mais? Bem, basta colocar ao lado de Top Gang, Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, pra verificar que o filme não dá conta nem da própria proposta.
Inferior ao primeiro e ao terceiro (se o tempo decorrido desde que os vi não me engana), esse aqui tem pelo menos uma coisa que se salva (além da Anna Faris se esforçando inutilmente para o filme não afundar num mar de falta de graça): a música que toca nos créditos finais é bem legal.
"Você nunca vai fazer algo mais difícil do que sentar com alguém olhando nos olhos e dizer a verdade"
O Ano Mais Violento não é um filme violento, embora o sugira não apenas o título (que faz referência histórica a 1981) mas o material promocional (vide pôsteres) e sua própria estética, que alude a histórias de mafiosos (Oscar Isaac aqui tem os trejeitos do Michael Corleone, o modo de falar do Michael Corleone, se veste como o Michael Corleone e enfrenta alguns dos dilemas morais do Michael Corleone - a inspiração óbvia a ponto de salientar a semelhança física do ator com o Al Pacino jovem, algo que até então eu jamais havia percebido).
Trata-se, porém de um Michael Corleone que, resistindo mais do que o original a se agarrar à brutalidade, deseja adotar desde já a postura que o "original" assumiu em O Poderoso Chefão III: dominar o mercado e amealhar patrimônio usando de uma corrupção sem violência física deliberada, embora, nesse caso, não desprovida de riscos para seus subalternos: "que bom que você se sente vulnerável, porque você está" (há um plano específico que representa sutilmente, mas com grande eficácia, essa dualidade ao mostrar sangue e óleo escorrendo lado a lado em uma parede). Esse comedimento afastará ou desagradará aqueles que desejam algo mais movimentado - no meu caso, creio que teria gostado bem mais do filme se, embora morosa, a trama fosse permeada por alguma ideia ou mensagem mais contundente.
Obtendo sucesso em criar personagens que embora apareçam pouco na tela despertam algum tipo de interesse (gostaria de acompanhar algo mais dos concorrentes do protagonista, bem como de algumas figuras que aparecem ao longo da projeção, como o empresário/agiota que prefere submeter seu negócio à administração da neta do que dos filhos) e ilustram o ambiente concorrencial predatório em que se passa a história, o filme poderia se chamar O Ano Mais Ambicioso ou O Ano Mais Desleal, se não fossem todos os anos o mais ambicioso e o mais desleal.
Noah Baumbach quis fazer seu filme setentista do Woody Allen e fez. Provavelmente o filme terá mais chance de dialogar intensamente com jovens adultos que estejam naquela fase sem perspectivas, de insegurança por não saber direito o que fazer com a vida.
Aparentemente rodado com orçamento mínimo (evitando algumas características comuns de filmes indie, como a direção de arte e fotografia elaboradas, lidando com cores supertrabalhadas) e mesmo sem a presença de uma trilha sonora que pontue toda a trama, o filme se ampara inicialmente em diálogos engraçadinhos ("eu e Sophie nos conhecemos na faculdade e somos a mesma pessoa"; "não se importem comigo, estou apenas tentando chamar atenção"), mantendo, segundo penso, algum distanciamento irônico das pessoas que retrata (em diversos momentos a câmera corta para a Frances já no meio de uma frase, geralmente um fragmento de uma piadinha qualquer, como a sugerir que esse o jeito de ela se comunicar o tempo todo). Aliás, a personagem-título me irritou um pouco, é uma boba, mas compreendo que essa personalidade seja instrumental para a mensagem do filme, algo no sentido de que é preciso manter alguma ingenuidade no meio da tempestade, etc.
Infelizmente, à medida que a história vai avançando e albergando novos elementos (a protagonista precisa lidar com o abandono afetivo de sua melhor amiga, com as responsabilidades da vida adulta, é colocada frente a frente com a realidade de não ser tão boa no que almeja profissionalmente, mas descobre outras qualidades que lhe permitem ganhar a vida, e por aí vai) não sai nada de interessante da boca dos personagens. A fala mais substanciosa é uma pieguice desgastada sobre um relacionamento bom ser aquele em que trocamos olhares com a(o) amada(o) no meio de uma festa e sorrimos sabendo que é a pessoa da nossa vida, coisa e tal. Os dilemas da Frances nesse filme são bem reais, ela e os coadjuvantes deveriam ter coisa melhor pra falar. Apesar disso, a protagonista percorre um arco, sua dinâmica com os demais personagens é bem explorada por meio de acontecimentos concretos, enfim, o roteiro é redondinho.
Finalizando com uma mensagem sempre válida (a felicidade de cada um pertence a si, não devendo ser depositada em terceiros), esse filme sobre jovens debochados vivendo suas neuroses em Nova York, tecnicamente simples porém correto, me agradou, mas de forma moderada. É que eu não gosto tanto assim do Woody Allen.
"Para a polícia só há um assassinato, o de Laura Vidal. Mas para nós e para os pais de Daniel Garrido há outro outro corpo e outra morte."
***
"Meu trabalho é te livrar da cadeia, e não de quem você é".
Tudo vai muito bem durante a maior parte de Um Contratempo, segundo esforço de Oriol Paulo, que já havia estreado bem com o instigante O Corpo. Trata-se, a princípio, de uma versão cinematográfica daquele estilo de romance policial puramente cerebral que existia antes de Dashiell Hammett e Raymond Chandler mostrarem que, além da morte física que inicia cada livro, deflagrando uma investigação detetivesca, há também a morte da alma e a morte social dos outros envolvidos (policiais, testemunhas, criminosos) - afinal, se está a falar de um mundo onde matam-se pessoas.
Naquele período, a trama policial não se passava em um "mundo aberto". Ocorria o crime, eram apresentados os suspeitos e Sherlock Holmes, Hercule Poitrot, Miss Marple e outros punham-se à procura de pistas e evidências, todas compartilhadas com o público, a quem era oportunizado interpretá-las e juntar as peças que revelariam o assassino - tratava-se, antes de qualquer coisa, de um jogo de montar, jogado em uma estufa (às vezes até literal, com os personagens confinados em um espaço físico reduzido). Esses livros costumavam ser tímidos na construção dos personagens ou de relações mais complexas entre eles; não discutiam temas mais amplos com profundidade (embora haja algumas exceções e, em outros casos, essas abordagens pudessem ocorrer de forma mais sutil), pois o que importava mesmo era a investigação. Diante dessa necessidade de lançar indícios - verdadeiros ou falsos -, hipóteses, desviar ou focar a atenção do leitor para pontos específicos, envolvê-lo no jogo e ainda assim surpreendê-lo (se possível, chocá-lo) no final, esses livros se valiam de liberdades narrativas bastante amplas: coincidências, personagens com atitudes inverossímeis e por aí vai. Tudo bem, esse desprendimento do naturalismo (que o filme referencia no monólogo sobre "pensamento lateral", o do enforcamento com o cubo de gelo) é um atributo do estilo e, às vezes, até mesmo indispensável para aumentar o suspense.
O melhor de O Contratempo, para mim, está no terço do meio, quando o roteiro, que já vinha bem na elaboração da trama policial investigativa (nesse ponto a máquina de criar dúvidas já está funcionando a pleno vapor, temos um fio narrativo estabelecido, mas envolto de pistas que não sabemos se levarão a algum lugar, versões ambíguas dos fatos - enfim, estamos jogando o jogo), consegue ainda soprar vida nos personagens que vão surgindo. Essa disposição de mostrá-los como humanos e não peças de uma trama meramente racional tem seu ápice em uma cena específica e bastante angustiante que envolve um diálogo da personagem Laura com um casal, antes da metade do filme, quando surgem uma informação perturbadora - a partir daí, José Garrido passa a encarnar um homem que, inicialmente gentil e bom, torna-se trágico, capaz de atrair imediatamente nossa solidariedade pois já o sabemos condenado à dor. Aliás, colocando esse filme em perspectiva com O Corpo
é enriquecedor notar como uma figura paterna já era importante para as motivações desse primeiro filme.
A estrutura do roteiro poderia resultar em passagens terrivelmente anticlimáticas, pois envolve constantes retornos à sala em que o protagonista conversa com sua advogada. Contudo, além de essas cenas frequentemente iniciarem bons diálogos e favorecerem o conceito do narrador não-confiável, também servem para distribuir melhor os outros acontecimentos do roteiro - em várias ocasiões, parecem estar sendo narrados pequenos contos dentro da narrativa maior, algo benéfico em um filme que precisa nos manter interessados em visualizar com clareza essas passagens e confrontá-las umas com as outras.
Oriol Paulo não é bom só de roteiro. Sua direção é fina, traduzindo visualmente os pontos mais sensíveis da trama e contando com alguns achados, como o momento em que um isqueiro jogado na água se transforma no carro afundando no pântano (imagem que sozinha já seria dolorosa, mas ganha ainda mais impacto porque encerra um forte diálogo sobre perda). Aliás, vários minutos antes, na primeira cena em que o carro afunda, Oriol faz uma referência a Psicose (veículo que parece resistir por alguns segundos, como se fosse a vitima que contém, antes de ser definitivamente tragado pelas águas). A fotografia de cortes mortiças supre a finalidade para a qual é usualmente empregada em filmes policiais, exprimindo tensão, tristeza mas também algum charme.
A minutos do fim eu estava plenamente satisfeito com o filme, não exigindo um desfecho brilhante - se viesse para coroá-lo, melhor ainda. Infelizmente, não consegui gostar do plot twist.
Eu já havia percebido que a advogada estava ali para comprometer o personagem principal - isso ecoa um determinado episódio de Black Mirror e vai ficando mais evidente à medida em que o criminoso vai soltando mais informações, principalmente a de que o Daniel Garrido foi afundado vivo. Agora, que a advogada seja o mãe do defunto é forçar a mão. Eu só consigo gostar dessas viradas rocambolescas quando as peças se fecham e o autor mostra que a verdade estava na minha frente o tempo todo e eu não vi. Máscara de látex? Interpretar durante horas uma experientíssima profissional, versada num assunto complexo, com base na frase "eu a conheci no grupo de teatro", lançada lá atrás? Ana Waeger exala competência, mas francamente. Mais uma coisa: o filme não deve fidelidade a esse pormenor, mas a confissão obtida naquelas circunstâncias é nula.
A realidade é que Oriol está se estabelecendo com um M. Night Shyamalan do filme policial, obrigado a entregar sempre uma reviravolta perturbadora nos segundos finais. Ocorre que os 105 minutos anteriores de Um Contratempo são válidos por si, não foram construídos apenas para justificar um desfecho como esse, que inclusive destoa do clima até então estabelecido. Aliás, se alguém ficou com essa dúvida
A versão verdadeira é a última: o próprio Adrian Dória matou a Laura Vidal, pois ela queria que ambos se entregassem à polícia. Nisso o filme foi bem: nós só conhecíamos a amante morta através das palavras de seu assassino, que apesar de procurar se eximir da responsabilidade, em nenhum momento consegue esconder que é um ambicioso egoísta - se isso não ativou o desconfiômetro de muitos espectadores, parte do mérito cabe à atriz Bárbara Lennie, uma ótima femme-fatale (como diz a "advogada") fictícia - mais pro fim ela vai bem de novo como a pessoa que sua Laura Vidal realmente era: arrependida, mortificada.
Embora não tenha conseguido evitar que a última cena prejudicasse um pouco minha percepção global do filme, este é mais uma demonstração da engenhosidade narrativa e capacidade técnica de seu diretor, que está ameaçando fazer uma obra-prima do suspense e não devemos nos surpreender se logo nos aparecer mesmo com alguma debaixo do braço, com final genial e tudo.
Ah, forçar a mão por forçar a mão, muito antes um Contratempo do que Gone Girl, com que às vezes é comparado.
"- Chefe, qual a diferença entre a guerra e caçadores de recompensas?
- Nas guerras quem ganha dinheiro são os vilões; os caçadores de recompensas são apenas idiotas"
***
"Prefiro ser um porco do que um fascista."
***
"Um porco que não voa é apenas mais um porco."
Animação menos conhecida do Studio Ghibli, Porco Rosso investe numa história simples, mas carregada de sentimento. Apesar de não ter o apelo que se costuma esperar das obras da produtora, ainda assim cria ocasionalmente momentos marcantes, como aquele no início em que, durante uma apresentação da personagem Gina, há um corte repentino para o avião do personagem principal focalizado contra o crepúsculo, enquanto continuamos a ouvir a voz da cantora, ou a lindíssima cena acima das nuvens, quando Porco Rosso contempla cheio de dor a ascensão dos pilotos mortos. O silêncio sobre a origem da maldição que o transformou numa figura porcina é eloquente e acertadamente o enredo deixa de explorá-la, pois não se está a falar de uma história Disney das mais batidas e sim de um filme que sabe jogar com as lacunas e os subtextos, algo mais do que adequado nessa história que fala de remorso e estigma (e aqui sim eu gostaria que o filme entrasse um pouco mais no advento das forças fascistas, embora compreenda que esse é um pano de fundo, não o motor da trama).
Apreciei que, partindo de uma dicotomia usual no Cinema - um personagem mais velho, calejado e machista lidando com uma mulher jovem, talentosa e cheia de ímpeto, o filme não tenha desperdiçado sua curta duração criando conflitos artificiais entre eles, visto que suas diferenças não demoram a se neutralizar, os personagens estabelecem uma relação de carinho e a história avança sem muletas narrativas previsíveis. A personagem Fio é um acerto completo, ela é porreta e obstinada porém muito simpática, gente fina mesmo, evitando aquela insuportabilidade com que muitos roteiristas (e pessoas da convivência cotidiana) confundem personalidade forte.
Desenhado com traços suaves que ajudam a construir o próprio tom já esboçado pelo roteiro, Porco Rosso é uma pequena pedra preciosa e não um diamante de dez quilates, mas nele se constatam em estado embrionário as virtudes que posteriormente fizeram a glória do Estudio Ghibli.
No final, quando Fio sobrevoa o hotel, vemos um avião vermelho na água ao lado dele, provavelmente diante da porta da Gina. Gosto de pensar que esse detalhe acena para que final teve Porco/Marco.
"Eu não sei ser irônico, não sei manipular as pessoas. Só sei ler números."
***
"Isso é como se dois mais dois fossem... peixe."
***
"Eu tenho a sensação de que, dentro de alguns anos, as pessoas vão fazer o que sempre fizeram quando a economia desaba. Vão culpar os imigrantes e os pobres."
Perfeito para uma sessão tripla com O Lobo de Wall Street e o documentário Trabalho Interno, A Grande Aposta procura driblar o grande problema que é traduzir para o grande público de forma acessível, sem perder a qualidade de entretenimento, um tema árido - cheio de manobras engenhosas costumeiramente explicadas por meio de vocabulário truncado - lançando mão de tudo quanto possa manter o espectador atento, desde trucagens na montagem, câmera neurótica, personagens excêntricos, quebra da quarta parede até "participações especiais" para esclarecer pontos mais complexos.
Admiro especialmente a maneira como o roteiro distribui a ação entre os vários personagens, que compõem diferentes núcleos, sem transmitir a sensação de que se dispersou ou que alguns deles estão subaproveitados. O elenco está glorioso, tanto as estrelas como os nomes mais conhecidos. Steve Carrell, numa performance impressionante, miniaturiza em seu personagem aquilo que o filme é: raivoso, debochado, com energia infinita para imprecar contra o lodaçal moral do neoliberalismo predatório e assassino (obra e personagem são identificados até pelo fato de ambos se beneficiarem das regras do sistema contra o qual investem).
Vertiginoso (o filme simplesmente não se detém durante um minuto, lançando a cada quadro mais acontecimentos, viradas e novas informações), A Grande Aposta é um bom exemplo de como um tema importante pode levantar de patamar um cineasta, até então sem grande brilhantismo, em estado de fúria para contar uma história. Bom para o Cinema, mas péssimo para a realidade que um filme desses deva existir: assisti-lo e entendê-lo nos situa a ajuda a compreender melhor realidade e Cinema.
"- Sua mulher disse que não vai pagar o resgate e podemos te matar.
- Que bom que você falou com ela. Bem-vindo ao meu mundo."
Special Correspondents é uma comédia simples, sem grandes lances de história , mas moderadamente eficiente. Não contém o DNA do Ricky Gervais, aquele niilismo derrisório só se deixa entrever em pouquíssimos momentos (geralmente nas gags envolvendo o desolador casamento do Finch) e seu característico humor incômodo, que faz rir de constrangimento, só dá as caras em uma única una e sozinha cena, envolvendo a personagem da Vera Farmiga (que ostenta excelente timming cômico, encarnando num tom levemente histriônico, mas não acima do tom, sua egoísta Eleanor).
Eric Bana não é um comediante nato, mas como não é muito exigido defende bem seu papel. Ricky Gervais, intérprete sempre do mesmo personagem, como de hábito funciona no contexto. A dupla de apoio (donos do restaurante interpretados por America Ferrera e Raúl Castillo) é responsável pela maioria das boas tiradas que não partem da Eleanor. Já os aspectos técnicos, embora dignos de produção televisiva, não tornam o filme pior, pois o enredo realmente não demanda grande elaboração nesses quesitos.
Previsível do início ao fim, sem provocar gargalhas em outras cenas além da supracitada, esse filme ao menos não cai na falta de graça nem se estende além do compatível com suas ambições modestas.
Confesso que no final, quando os jornalistas são levados para o acampamento dos sequestradores, achei que eles se encontrariam com Emilio Santiago Alvarez. Seria um toque interessante de surrealismo.
"Você não vê que eu não sou o espírito de nenhum tempo? Eu sou contra tudo."
Um dos defeitos que mais evidenciam descuido na elaboração de roteiros em filmes de vampiro é construí-los como personagens que falam, pensam e agem como se tivessem a idade de seus intérpretes, mesmo quando são apresentados como serem que já "vivem" há séculos. Entrevista com o Vampiro não apenas evita esse erro como faz das interações entre as criaturas da noite o seu ponto forte. Todos esmagados por alguma falta (solidão, inadequação ao mundo ou à própria natureza assassina, privação de amadurecimento sexual, conforme o caso) os personagens expressam seus conflitos e sua existência de horrores (buscados deliberadamente ou não) em sofisticados diálogos, que me fizeram desejar ler o livro original, do qual sempre desdenhei um pouco.
Embora eu tenha me decepcionado ao ver que, cobrindo cerca de 200 anos, os personagens não se misturam aos fatos históricos que aconteceram nesse lapso de tempo (algo que enriqueceria bastante a trama), compreendo que o tom da história é dado pelo intimismo, pelas relações entre os vampiros.
Depois de ver o Tom Cruise se transformar em uma espécie de Sociedade Anônima, de uma Entidade do Entretenimento Competente Mas Previsível, é até estranho vê-lo atuar de verdade, com entrega, num papel do qual depende, em grande parte, o equilíbrio dramático do filme, pois seu irônico e falastrão Lestat faz um contrapeso aos outros chupadores de sangue, todos enfocados em primeiro lugar como indivíduos que sofrem.
Ao longo das duas décadas seguintes, Brad Pitt e Antônio Banderas se tornaram atores melhores do que eram aqui. O primeiro soa um pouco cru e por alguns metros não esvazia seu Louis Le Blanc, um vampiro atormentado pela imortalidade, pelas dúvidas quanto à sua nova condição e pelo desejo de não se converter em uma besta-fera. Já o Antônio Banderas, numa canastrice que salta da tela, infelizmente compromete um tanto o resultado final. Kirsten Dunst é um destaque, tira de letra a transformação de Claudia de criança-vampira para adulta assolada pelo destino de ficar eternamente presa no corpo juvenil.
Ressalvado o que apontei sobre o filme abdicar de ser mais panorâmico abordando os acontecimentos do mundo dentre os séculos XVIII e XX, o roteiro é bem preciso do início até o retorno à Europa, depois senti falta de um aprofundamento nos personagens que surgem. Os asseclas do Armand, por exemplo, não passam de caricaturas, perdeu-se a possibilidade de explorar a mitologia, o funcionamento e pensamento coletivo daquele submundo. Mesmo assim, a história não desanda até seu satisfatório final, no qual
se mostra que lições não são aprendidas nem pelas pessoas, nem pelos mortos-vivos (o jornalista, depois de tudo que ouviu, quer se transformar em vampiro; Lestat, depois de tudo que viveu, o transformará em um vampiro).
Neil Jordan, naquele que talvez seja seu melhor filme, constrói imagens que mesmo sem violência evocam o puro horror (como os vários caixões saindo de uma mesma casa) e sem dramalhão constroem lirismo, como a do nascer-do-sol no cinema (com o complemento do belo texto: "primeiro era prata, depois surgiram tons de escarlate..." - memorável).
Exemplar ainda no figurino e direção de arte, Entrevista com o Vampiro mereceu não ser engolido pelos excelentes filmes lançados em 1994 (Forrest Gump, Um Sonho de Liberdade, Pulp Fiction, O Profissional, Os Imperdoáveis, Ed Wood, Assassinos Por Natureza - são realmente muitos cânones no mesmo ano e ainda outros tantos bons filmes), se firmando como um clássico que ainda vale a pena ver.
Ganha pontos pela simpática e inteligente protagonista (ausências recorrentes no gênero, que nos fazem torcer para que morram logo, pondo fim ao tormento de assistir gente estúpida sendo injustamente premiada pela sorte de não levar logo a facada, créditos finais, fim).
Embora eu esperasse um uso mais engenhoso da surdez para criar tensão, ela é explorada até que bastante bem, criando um ou outro momento de destaque, principalmente no início, quando o assassino entra despercebido na casa.
No mais, trata-se de uma historinha simples, no já surrado sub-gênero home-invasion, amparando-se em boas atuações e nos esforços até bem-sucedidos do diretor/roteirista para preencher os curtos 81 minutos - gosto, por exemplo, de como, longe do clichê da protagonista que se transforma em super-heroína invulnerável, a de Hush fica fragilizada pelas porradas que leva a ponto de a debilitação física se transformar num elemento a ser considerado quando resolve traçar estratégias para reagir.
Por outro lado, apesar de ser interessante a rima temática do início (quando Maddie não consegue escrever o final do livro) com um momento bem mais adiante (quando ela começa a pensar sobre as hipóteses de fuga, concluindo que quase todas acabariam na sua morte e a levando a escolher o "final" adequado para a situação, atraindo o assassino para uma emboscada), detesto quando filmes fingem matar personagens por meio de alucinações, sonhos, imaginação, etc - desonestidade narrativa para produzir um choque que se dissipa rapidamente.
Costuma não ser muito difícil em filmes de suspense e terror descobrir de plano quais detalhes são apresentados nos primeiros dez, quinze minutos, para serem retomados mais adiante. Isso ocorre aqui com o alarme.
Inicialmente pensei que o tal do Craig, o ex-namorado, acabaria dando as caras também, o que não aconteceu. Talvez as menções a ele no começo sejam apenas falsos gatilhos, para manter a possibilidade de seu surgimento em aberto na mente do espectador ainda que isso jamais vá acontecer, mas o meu palpite é que haja aí uma mensagem mais concreta: Maddie se vira sozinha e não precisa que venha um ex para salvá-la.
Destinado por sua despretensão a ser um trabalho menor do diretor Mark Flanagan, Hush se estabelece como um início (é seu segundo filme) promissor de sua carreira que vem se consolidando e frutificando obras mais ambiciosas.
No começo achei que a direção enérgica do Poyart (eficaz em 2 Coelhos) ia lançar o filme no exagero e no ridículo, mas depois ele suaviza a mão o suficiente para que não vire um bumba-meu-boi, apesar de aqui e ali ainda passar da conta - o contrato que ele assinou provavelmente previa a obrigação de usar slow motion em todas as lutas. Aliás, justamente nelas, que dão oportunidade para que o diretor use de de todos os recursos possíveis para torná-las memoráveis, o diretor resolve ficar burocrático. Não que sejam mal-feitas - já começam com uma boa ambientação, clima de espetáculo beneficiado pela iluminação bem saturada, cuidado nas coreografias - mas falta aquela inventividade na hora de filmá-las que as valorize (ao contrário do que ocorre com Touro Indomável, para citar um caso ilustre). Não fiquei com vontade de rever nenhuma das lutas, elas não têm valor próprio nem funcionam independentemente do resto do filme.
O humor também não funciona muito bem, o que é raro no cinema nacional, que costuma oferecer momentos bem eficazes na comicidade mesmo em filmes densos. Aliás, a maior comédia do filme, possivelmente involuntária, é o Rafinha Bastos lutador, com aquelas luzes no cabelo. O José Loreto eu achei que ostentaria uma canastrice de fazer o Schwarzenegger maldizer a decadência das artes cênicas e querer lhe ensinar meia dúzia de expressões, porém ele segura muito o José Aldo torturado, mutilado, selvagem, travadão, vocabulário mínimo, movido a mágoa e ressentimento, meio estúpido e dono de uma energia interna intensa que o filme apresenta (o da vida real eu desconheço). Jackson Antunes e Milhem Cortaz, como de hábito, mostram que contratá-los é como colocar boas atuações no carrinho de compras e ter que se preocupar, no máximo, com o resto do elenco.
A relação entre pai e filho foi bem trabalhada. Não se alivia para nenhum dos lados, ambos são o que são - e como os defeitos de personalidade deles não são maquiados, as qualidades e momentos de doçura podem sem mostradas sem risco de resvalar no sentimentalismo.
Sem jamais pecar por flacidez dramática - as duas horas avançam rápido - o filme se beneficiaria caso mostrasse um pouco mais das transformações que as primeiras grandes conquistas provocaram no protagonista. Suas origens humildes foram bem contadas, mas eu queria conhecer o José Aldo campeão do mundo.
Apesar desses reparos, é filme competente, profissional, que não diminui o personagem-título.
Por algum motivo me incomoda fazer essa observação, mas me causou um certo estranhamento que, no final, depois de revelar que o José Aldo ficou uma década invicto, surja uma legenda informando que o pai dele morreu pouco antes de sua conquista do cinturão e que é considerado pelo filho como "seu maior incentivador". Usar legendas e imagens de arquivo para contar um pouco mais sobre o destino dos personagens é corriqueiro em cinebiografias, mas nunca vi um diretor ter necessidade de comunicar por escrito algo que a gente acabou de assistir. Será que foi um pedido especial do biografado?
Minha Obra-Prima
3.8 67 Assista Agora"- Sempre que menciono seu nome há alguém perguntando: 'Renzo Nervi? Pensei que ele estivesse morto.'
- Talvez estejam certos.
- Você vai fazer esse quadro. Repita comigo: 'mesmo que eu seja um artista ressentido e um velho idiota, essa obra eu vou fazer.'"
***
"Quem faz arte precisa ser ambicioso e egoísta. Quem faz arte é porque não sabe fazer outra coisa. É uma espécie de deficiência."
É muito enriquecedor quando uma comédia inicialmente despretensiosa nos surpreende rumando para a sátira ferina, para a reflexividade, para o drama bem medido e, melhor de tudo, quando os atos dos personagens têm consequências (concretas ou morais) que nos fazem reavaliar nossa opinião sobre eles. Apesar do potencial agitador inerente às comédias, mesmo as que se apresentam como mais arrojadas são frequentemente inócuas, povoadas por personagens unidimensionais; Minha Obra-Prima passa longe disso e mais não direi sobre isso para não revelar muito.
Fiel ao que geralmente se passa no cinema argentino, os personagens são muito bem compostos, vívidos, e isso valoriza suas falas não somente por serem inteligentes, espirituosas e cheias de humor sagaz, mas também por serem bastante coerentes com suas personalidades, e isso confere às interlocuções uma naturalidade incrível, parecem mesmo indivíduos reais (e perspicazes) conversando cada qual impregnado de suas experiências, convicções, seus objetivos imediatos, etc.
Felizmente, o que já era bom no papel ganha vida por meio das atuações extraordinárias da dupla principal. Luis Brandoni ostenta um timing cômico imbatível, gerando risos pela simples maneira descarada como às vezes seu personagem fala (a maneira como ele profere diminutivos tentando ser simpático para fingir interesse nas atividades de seus interlocutores e tentar extrair algo deles é hilária), frequentemente conferindo alguma comicidade à sua rabugice incurável; além disso, consegue mostrar força nas exibições de integridade artística de Renzo Nervi e, quando o roteiro assim o exige, ainda domina os momentos dramáticos. Atuação completa.
Já Guillermo Francella (curiosamente o mais experiente em comédias), encarregado de um papel com menos momentos de expansão, não deixa por menos e converte seu empresário da arte numa figura profundamente verossímil e cheia de texturas - ao mesmo tempo em que nos convence de seu afeto e fidelidade por Nervi, não deixamos de notar as vantagens que ele ainda espera retirar dessa relação. O Arturo que tão bem encarna é valorizado ainda por instantes simples, mas de grande eficácia, como aquele que revela seu hábito de se sentar numa praça e observar os transeuntes, tentando imaginar suas profissões e personalidades.
A cena do envenenamento é primorosa, tensão insuportável. Primeiro, que o filme abandona ali a certa leveza de até então, trata-se do momento em que Nervi e Arturo vão cruzar uma linha perigosa. Depois, o diálogo travado dá a impressão de que Alex vai lhes dizer que desistiu de desmascará-los, o que os colocaria num impasse: revelar o propósito homicida ou matar alguém inutilmente. A expectativa angustiando para a ingestão do café, o desmaio, a volta à consciência (nesse ponto reside meu único "senão" ao filme: depois dessa cena pesada, ele retorna à leveza anterior, como se fossem abandonadas as consequências desse momento hitchcockiano; Arturo até diz: "sou um assassino, quis matar um inocente e levei a cabo", mas isso soa apenas como uma frase para aplacar o espectador que desaprovasse o fato de a tentativa de assassinato ficar por isso mesmo.
Mas que a cena é hitchcockiana, é, e para isso contribui demais a interpretação de Brandoni e Francella. O primeiro numa expressão congelada de choque, expressando ao mesmo tempo desejo de que Alex morra e repúdio pelo seu próprio desejo; o segundo com seu olhar vítreo, arregalado, deixando escapar um leve suspiro de alívio quando Alex emborca a xícara. Sem palavras, ambos projetam ansiedade e incômodo.
Se não fosse por todas as outras qualidades, esse filme mereceria ser visto simplesmente por esse banho de atuações. E pensar que eu comecei a vê-lo por acaso, confundindo-o com outro: literalmente um achado.
Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola
3.1 548 Assista Agora"Sou um péssimo criador de ovelhas. Uma delas até fugiu para o puteiro. Quando fui buscá-la, ela tinha arranjado 20 dólares."
Charlize Theron é demais, trabalha bem em cima de qualquer personagem, que mulher.
O filme é fraco. Como tantas outras comédias alicerçadas em bases ambiciosas ou pelo menos criativas (a ideia de ambientar um besteirol no faroeste é muito boa), em algum momento fica com medo de abraçar de vez o próprio universo, o próprio absurdo, e se escora no lugar-comum e no romance bobo. Há um ou outro instante de inspiração (a cena na tribo indígena é muito engraçada), mas logo se retorna ao humor de banheiro e à falta de inventividade; aí o filme se perde, desperdiça seu potencial e seu ótimo elenco.
Pecados Íntimos
3.8 569 Assista Agora"Sarah ficou chocada pela confissão de Brad, sem nenhum embaraço por seu fracasso."
Pra começo de conversa, não acho que o filme romantize ou busque contemporizar nenhuma mancada, sacanagem ou crime de nenhum de seus personagens,
mesmo porque, no manual do romance clássico, os personagens só não ficam juntos quando alguma força maior (geralmente a morte) os impede, jamais porque um deles, achando que a responsabilidade era demais, resolve brincar de skate (?) em vez de fugir com a amada, frustrando o êxodo romântico ao cair e ser levado de ambulância (??), desfecho que mostra, de forma impiedosa, como o casal principal sempre foi movido por necessidade de aventura, algo que obviamente não é matéria de filmes que buscam justificar traições sob a alegação de que tudo vale a pena pelo amor, etc - aliás, os respectivos cônjuges sequer são apresentados como pessoas ruins, o que corrobora ainda mais essa percepção.
Quanto ao Ronnie, pedófilo genialmente interpretado pelo Jackie Earle Haley, pior ainda: o filme simplesmente dedica vários minutos a apresentar os traumas de uma mulher para depois o personagem do JEH tripudiar desprezivelmente sobre eles e depois ameaçá-la de morte - e, ainda, a cena da masturbação acontece ao lado do parque em que ele se exibiu para uma criança, motivando sua prisão. Se esse roteiro alivia para o Ronnie, imagine se decidisse martelar que é um sujeito problemático...
Aliás, algo que notei e creio não ser por acaso é que, antes de o Ronnie entrar em cena, aos 45 minutos de projeção, a infidelidade entre os personagens da Kate Winslet e do Patrick Wilson ainda não se consumou, os respectivos casamentos vão mal, mas não desmoronaram, tudo vai andando numa relativa, apesar de incômoda, normalidade - só que basta ele entrar na trama e todos os demais sucumbem - é como se seu crime fosse tão tremendamente estigmatizante que sua presença no filme - não física, nesse momento o Ronnie não interage com ninguém do casal principal, mas narrativa - deflagrasse o desvario e a torrente de mentiras por parte de todo mundo.
Na realidade, acredito que o filme procura simplesmente acompanhar aquelas pessoas, buscando mostrá-las em todos os seus aspectos visíveis e extrair complexidade de suas contradições e de sua incapacidade de conter os próprios impulsos e carências (temática que o marido da personagem da Kate Winslet enuncia já no começo, ao refletir que "queremos o que queremos e não há muito o que fazer em relação a isso").
De alguma forma, todos os personagens desejam um pouco de elã, coisas corriqueiras da vida: receber elogios, terem suas habilidades, ainda que escassas (ex: jogar futebol) valorizadas, atrair desejo sexual de seus maridos e esposas, ter alguém para trocar confidências, para quem ser vulnerável e de quem receber vulnerabilidade etc
Tanto o roteiro como a direção são bastante parcimoniosos, caracterizando as características psicológicas das pessoas e os conflitos entre elas a partir de sugestões discretas e ótimos diálogos
Acho primorosa a cena em que a mãe do Ronnie busca convencê-lo a arranjar uma namorada. Ela começa externando sua preocupação em morrer deixando-o desamparado, carente de uma figura feminina que possa norteá-lo - ser sua nova mãe -, e diz que ele devia procurar "uma namorada de sua idade", recebendo a resposta brutal: "mãe, eu não quero uma namorada da minha idade, quem me dera querer".
Depois, ela faz uma ponderação (de uma discursividade natural, que não soa deslocada ou acadêmica na boca de uma velhinha simples) sobre a transitoriedade das coisas que amamos e se coloca a escrever um anúncio sobre ele para o jornal, descrevendo algumas de suas qualidades - aí sim o Ronnie se interessa na conversa e pede para que ela descreva tudo o que ele tem de bom, mas nem ela consegue encontrar muita coisa. É muita informação sobre os envolvidos, suas nuances (por exemplo: Ronnie revela o incômodo não estar reabilitado, o que atrai alguma solidariedade, mas também paradoxalmente, indica o perigo que ainda representa), seus piores medos, as consequências do comportamento delitivo sobre as pessoas que estimam o criminoso, tudo numa cena de curta duração. A cena no clube de leitura sobre Madame Bovary exerce a mesma função a respeito da Winslet.
Direção e montagem, na mesma linha, produzem momentos bastante significativos, como
mostrar uma criança relatando um momento traumático, até a câmera se afastar um pouco e percebermos que se trata de uma cena de documentário produzido pela esposa do Patrick Wilson - sua emoção ao assistir a este momento, em contraste com a frieza de seu colega de produção, lhe confere uma humanidade que ilustra o que apontei acima sobre os cônjuges do casal principal não serem indicados como más pessoas e, por consequência, não haver romantização nas traições.
representar graficamente a "rivalidade" criada pela Winslet entre ela e a esposa do Wilson fazendo cortes da primeira dormindo virada para um lado para a outra, em sua própria cama, virada para o outro.
mostrar os momentos que antecedem o início de um jogo de futebol com um tom épico, com a câmera passeando pelos rostos dos "combatentes", num movimento comum em filmes de ação, para cortar abruptamente para o pouco glamuroso fim do jogo, devolvendo à situação sua real dimensão de evento banal.
alternar o debate sobre Madame Bovary e as relações sexuais do casal principal, o que, além de criativo, ainda antecipa o fim do filme (num dos fragmentos, a vizinha da protagonista diz que Bovary foi ingênua ao acreditar que o amante fugiria com ela. A alusão é ao fim do relacionamento retratado no livro do Flaubert, mas não da personagem, pois não se repete em Pecados Íntimos e seria até destoante de sua trama, que busca justamente demonstrar como seus protagonistas são incapazes de atos de coragem.
ilustrar a condição de pessoas confusas dos protagonistas mostrando insejos voejando sobre a luz de um poste.
Trata-se, portanto, de uma obra extremamente coesa, em que os aspectos técnicos condizem com o tema de fundo, que por sua vez é abordado com a complexidade apropriada, gerando possibilidade de bons debates e, provavelmente, revisões proveitosas - talvez seja até um dos melhores filmes de sua década.
Meia-Noite em Paris
4.0 3,8K Assista Agora"O amor é um escudo contra o medo."
"Nenhuma época é satisfatória porque a vida é insatisfatória."
Junto com o protagonista somos conduzidos em uma viagem apaixonante por uma época e lugar cheios de gente brilhante e, humanos que são, problemática - quase todos interpretados numa vertente menos realista e mais icônica, o que condiz com o tom fantasioso da narrativa (em dado momento, o próprio personagem do Owen Wilson percebe que o livro no qual trabalha peca por excesso de realismo e pouca imaginação, um apontamento que comenta os objetivos do diretor sobre o próprio tom do filme).
A consistência do elenco escalado para interpretar as célebres figuras históricas não impede que Kathy Bates e Adrien Brody (a primeira, mais sutil, o segundo, mais caricato) se destaquem, fazendo muito com o pouco tempo que têm de tela. Já Marion Cottillard, que sempre teve mesmo um charme vintage, parece mesmo talhada para esse papel (cujo fascínio pela Belle Époque é responsável por uma virada que enriquece a trama).
Prestando um tributo ao passado (ou a dois passados) sem se afogar numa nostalgia que afogue as potencialidades do presente (algo que faria o roteiro incorrer no mesmo equívoco de seu protagonista), Meia-Noite em Paris é um dos melhores esforços do Woody Allen; em sua inchada filmografia (que durante décadas contou com quase um filme por ano, alguns dos quais apressados e mal desenvolvidos) representa o desejo de sair da zona de conforto e, mesmo sem fugir da costumeira simplicidade com que estrutura suas obras, fazer algo diferente e melhor.
Coringa
4.4 4,1K Assista AgoraCoringa parte dos princípios corretos: a ideia de situá-lo numa Nova York de Martin Scorsese é ótima, contrataram o melhor elenco possível e se propuseram a encarar o personagem por um de seus ângulos mais interessantes: o violento deflagrador da anarquia, a loucura selvagem que surge como resposta à loucura da malha social excludente pelo mau funcionamento de suas estruturas burocráticas e pela frieza dos seres humanos que coexistem nessa ciranda.
Minha tese sobre não ter gostado tanto é que o filme faz um jogo de cartas marcadas. Todos conhecem o personagem como um possível catalisador de convulsão social, e é isso que o roteiro faz: desenrola na nossa frente possibilidades que já estavam contidas na ideia geral que todos temos sobre o Coringa. Não senti o impacto de nenhuma das reviravoltas do filme, pois sabia que elas desembocariam nos fatos que compõem o terceiro ato. Isso neutraliza qualquer elemento surpresa e o choque de, em algum momento, achar que a coisa realmente desandou na mente do personagem, ou seja: o filme vergou sob o peso de ser a história de origem (ou uma das possíveis histórias de origem) de um vilão icônico. Que tipo de acontecimentos deveriam inserir na trama, então, para causar esse impacto? Não sei, é desafiador mesmo, ainda mais depois de Batman - O Cavaleiro das Trevas, cujo Coringa se beneficia imensamente de sua qualidade de homem de lugar nenhum, quase uma alegoria.
Como o Arthur é um personagem intelectualmente limitado (sendo que isso desempenha uma função no roteiro) e nenhum coadjuvante faz as vezes de observador agudo de sua jornada anti-heroica, senti também que se perdeu o sentimento do fascínio, da sagacidade que os grandes filmes, independentemente do gênero, geralmente possuem. Não há aqui uma única troca inteligente de frases, todos os personagens (fora o do De Niro, que não é alguém do convívio do protagonista) são quadrados, a cena do interrogatório em TDK é mais substancial do que as duas horas do Coringa - embora não pareça, eu realmente não queria comparar os dois filmes, como se este devesse ser medido segundo as propostas e características do filme do Nolan: poderia ter citado qualquer outro ótimo filme com vilão ou anti-herói memorável.
Sem nada mais a acrescentar a essa altura em que tudo já foi dito sobre a complexa composição do Joaquin Phoenix, seu olhar desolado e sua risada pigarreada, dolorosa, limito-me a observar como o De Niro, que tantou enxovalhou sua filmografia nas últimas décadas, continua ótimo ator e parece mesmo um apresentador de talk show.
Por uma sincronicidade (e por causa da programação da HBO), vi dois filmes de palhaço em seguida: este, em que alguém decai mentalmente até virar um palhaço, e Bingo - O Rei das Manhãs, em que um palhaço louco decai mentalmente até virar gente de novo. O do Bingo é melhor tanto na ida como na volta.
Bingo - O Rei das Manhãs
4.1 1,1K Assista AgoraBingo - O Rei das Manhãs é um caso de coerência entre alguém e o filme que narra a trajetória desse alguém. O protagonista é cheio de energia, a obra é cheia de energia. O palhaço dizia que faltava ginga ao roteiro do programa, o roteiro do filme é cheio de ginga: casamento perfeito.
Graças a toda essa vitalidade, as duas horas passam voando e poderia até ter uns minutos a mais, se desejassem esticar um pouco o terceiro ato - apesar de eu considerar que realmente não há necessidade de gastar muita película ilustrando uma decadência que pode ser demonstrada em menos tempo, com cenas categóricas como a que mostra
a criança bebendo uísque durante o desmaio do pai.
As cenas do programa são muito engraçadas, Vladimir Brichta como Bingo se mostra um ótimo comediante, mas sem perder a essência daquilo que o personagem é fora das câmeras: um cara cômico, porém de forma meio destrutiva, alguém que peita os desafios fazendo troça deles, algo como ridicularize os problemas para olhá-los de cima para baixo e vencê-los (por outro lado, embora auto-confiante num nível que beira a arrogância, o personagem é pé no chão quando se vê na maré baixa e tem a humildade de recorrer a um palhaço experiente para ensiná-lo a se comportar no palco, num reconhecimento das próprias deficiências que Brichta também representa muito bem).
Montador experiente (responsável por Cidade de Deus, os dois Tropa de Elite, A Árvore da Vida e muitos outros), o agora diretor Daniel Rezende já estreia no cinema experiente e mostrando que entende do riscado. Após finalizar sua incursão no universo infanto-juvenil das histórias da Turma da Mônica certamente cravará no cinema nacional outras pérolas como Bingo.
O Primeiro Mentiroso
3.4 809 Assista Agora"Como você está?"
"Não muito bem. Passei a noite vomitando comprimidos. É que tenho medo de tomar o suficiente pra me matar."
Ricky Gervais estava cheio de moral, conseguiu captar para este filme de baixo orçamento participações de Louie C.K, Jason Bateman, Jeffrey Tambor, Jonah Hill, Philip Seyour Hoffman, Tina Fey e Edward Norton - na única cena envolvendo este último vemos o estilo do Gervais tal como ele é: "estou aliviado por vocês não serem negros" (trata-se de um policial parando dois homens em um carro), "haveria uma probabilidade maior de eu ficar nervoso, atirar em vocês sem provocação e perder a minha arma." "Isso te excita sexualmente?", alguém pergunta. "Sim.". Mordacidade, humor cortante.
Há ainda alguns bons conceitos. Gosto de o cinema deste mundo sem mentiras consistir em um ator de aparência professoral lendo textos dissertativos sobre períodos históricos, divididos segundo uma periodização acadêmica, reforçando a ideia sempre instigante de que a arte como a conhecemos, ainda que possua alguma preocupação com a veracidade, é uma espécie de farsa, de ilusão ou mentira - está no terreno do imaginário.
Infelizmente, após estabelecer as premissas da história, Gervais desiste de se divertir com a exploração de suas possibilidades, preferindo o caminho fácil das convenções mais desgastadas da comédia romântica (no que não se sai muito bem, pois filmes desse gênero só funcionam se os dois do casal tiverem algum magnetismo, o que não se passa aqui, pois a personagem da Jennifer Garner é a mala das malas e isso não tem relação com incapacidade de mentir), desperdiçando o bom inicio e tornando o filme até um pouco maçante, apesar da curta duração. Faltou aproveitar um pouco mais o potencial cômico do mundo absolutamente sincero, soltar mais a criatividade, faltou mentir mais.
A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça
3.8 1,3K Assista AgoraO Johnny Depp neste filme está a cara do Wellington Ceará quando ele imitava o Silvio Santos.
Lembro-me de tê-lo assistido no Tela Quente com a minha irmã, quando criança. É um dos filmes que mais me aterrorizou na vida, marcou-me como fiquei aliviado na cena final, em que finalmente aparece o sol e um cenário urbano, tudo numa fotografia mais iluminada.
Revendo agora, notei como a ambientação e direção de arte góticas, com vilarejos, cores escuras e fumaça nas madrugadas densas, além evidentemente do enredo misterioso e cenas de morte, tudo isso camufla o tom farsesco com pinceladas cômicas, bem mesmo ao estilo do Tim Burton - o Depp escondido na cama após seu primeiro encontro com o vilão é hilário. Seguindo sua tradição, o diretor não perde a chance de homenagear atores clássicos, atribuindo aqui uma participação ao Christopher Lee.
Ao fim, é um dos tantos filmes do Burton que impressionam bastante pela execução e muito pouco pela história, mas ele realizou pouca coisa melhor desde então.
Soldado Anônimo
3.6 262 Assista Agora"Patrulhamos o deserto vazio."
***
"Ainda estamos no deserto."
É praxe: filmes de guerra pontuam em algum índice oculto se fazem alguma referência ao inesquecível Sargento Hartman (interpretado por R. Lee Ermey, ele próprio militar) de Nascidos Para Matar - já em sua primeira cena, Soldado Anônimo rende esse tributo. No penúltimo filme do gênero a que assisti, Até o Último Homem, lá estava Vince Vaughn tentando desempenhar a mesma tarefa inglória, pois Ermey é insuperável.
Como não poderia ser diferente num projeto que procura mostrar o que acontece se soldados são treinados extensamente e encaminhados para uma missão militar na qual ficarão na expectativa de combates que jamais serão travados, pois o desnível de poderio bélico entre as nações envolvidas permite que o inimigo seja abatido por baterias aéreas e outros meios mais avançados do que o corpo-a-corpo das guerras anteriores, Soldado Anônimo é um filme de guerra com pouca guerra, ou melhor, pouca ação, visto que a guerra em si não é banalizada e, após uma primeira metade mais leve, focada na preparação dos soldados, passa a colocá-los diante dos acontecimentos atrozes que aconteceram no contexto da Guerra do Golfo (como ao mostrá-los se deparando com o resultado de um bombardeio que carbonizou as vítimas).
Sam Mendes, como de costume, indica com sutileza emoções ou ressalta subtextos em planos ou imagens simples, como aquela em que é noticiado um bombardeio enquanto um objeto cai do céu, mas em menos de um segundo percebemos que se trata de uma bola de futebol americano, ou outra passagem em que, de forma bastante significativa, Sam Mendes enquadra Anthony Swofford (personagem do Jake Gyllenhaal) atrás de um vidro, permitindo que simultaneamente contemplemos pelo reflexo aviões americanos explodindo o reduto em que um oficial inimigo se encontra e o semblante de Swofford, visto de frente, mostrando decepção por desejar ele próprio ter cometido o assassinato.
Roger Deakins, diretor de fotografia, um mestre em seu ofício, concebe cenas visualmente apuradas como aquela em que os personagens cavam no deserto enquanto torres de petróleo são incendiadas, inundando com a cor laranja o céu noturno.
Adotando apenas raramente uma abordagem mais política mais explícita (por exemplo, como quando um dos fuzileiros reclama de censura, após ser orientado a não fazer objeções à operação quando for entrevistado por jornalistas que visitam o acampamento, ou quando alguém aponta que o conflito armado ali travado se baseia em interesse pelo petróleo da região), Soldado Anônimo se encerra com mais uma mensagem frequentemente veiculada por filmes do gênero: a verdadeira guerra começa quando os combatentes voltam para casa.
A Lei da Noite
3.2 208 Assista Agora"Quando você morrer, vai dizer a si mesmo que foi por amor. Na verdade você passou a vida toda esperando que alguém o punisse. Aqui estou eu."
Até A Lei da Noite, Ben Affleck estava invicto como diretor, com três longas de boa qualidade no currículo, e daí seria de se esperar uma evolução ainda maior quando anunciou que adaptaria um romance de máfia de Dennis Lehane, expoente do gênero.
Não é que tenha dado tudo errado: a ambientação e figurino são bons, a direção, correta, eventualmente pipocam frases que traem a origem da história na mente de um bom escritor ("sua filha não está em Hollywood, ela só chegou até Los Angeles"). Infelizmente, o projeto é sabotado pelo roteiro um tanto convencional, que chega a apelar, no clímax (momento em que um filme deve crescer) para besteiras como
um acordo improvável entre Maso Pescatore, chefe do Affleck, e o arqui-inimigo de ambos, Albert White (Pescatore subitamente resolve se livrar do "herói", seu lucrativo comandado na condução dos negócios ilícitos. Como se não fosse suficiente, logo em seguida vem a cena lamentável em que o protagonista consegue ganhar tempo antes de ser assassinado dizendo ao White que a ex-amante comum (uma pessoa vivida sem nenhum charme ou magnetismo pela Siena Miller, e que naquele ponto tinha sido dada como morta há muitos anos), estava viva. Comparem essa pieguice com os momentos mais importantes de qualquer ótimo filme de máfia que se possa trazer a memória e avaliem o que resta de A Lei da Noite.
Aliás, analisando por essa vertente, é curioso como Argo, embora muito bom, já não tinha um clímax muito vigoroso, algo que os dois filmes em questão tentam construir, mas não conseguem.
A Lei da Noite é tão superficial que, no fim, quando o protagonista se reencontra com a Emma Gould, esse acontecimento produz efeito dramático nulo - ao longo da projeção são salpicadas algumas falas para fixar que o protagonista nunca superou essa perda, que sua relação com a citada personagem era muito forte, etc, mas em nenhum momento o filme efetivamente nos mostra isso. Qual a razão do reencontro, no final? Mostrar que quando duas pessoas retomam contato, anos depois, nenhuma delas é a mesma de antes, pois passaram por fatos que as transformaram? Dizer que o protagonista jogou parte da vida fora sofrendo por alguém que jamais retribuiu verdadeiramente os sentimentos que ele lhe devotou? Se é isso, caiu no vazio, pois em nenhum momento das duas horas anteriores o personagem do Affleck pareceu realmente padecer a dor de uma perda muito grande.
Ou talvez a ideia tenha sido preparar o terreno para que o espectador sofresse mais a morte da personagem da Zoe Saldana. Isto é: o roteiro apresenta dois interesses afetivos, lança o protagonista nos braços do segundo após demonizar o primeiro e depois mata esse segundo, causando lágrimas na audiência. Que rasteiro, a morte de alguém só produz comoção se o próprio falecido e sua relação com quem suportar a perda forem bem desenvolvidos, isso não funciona por via reflexa - é apelativo.
Achei impertinente a opção pela narração em off, que é absolutamente inútil: não traz dinamismo ao enredo, não o explica (pois não é elaborada a ponto de tornar necessário um esforço didático) e sequer é bela - o narrador não é irônico, lírico, explicativo, nada do que ele diz agrega nenhuma percepção, aparentemente esse recurso só é utilizado porque o filme é adaptado de um livro escrito na primeira pessoa.
Também é verdade que o filme empalidece na comparação com outras obras que são muito melhores e se passam no mesmo momento histórico com abordagem parecida. Por exemplo, explorando a diversidade étnica nos confrontos entre diversas facções mafiosas - americanos, italianos, cubanos - temos a excepcional série Boardwalk Empire, na qual, aliás, Lehane trabalhou como produtor.
Ben Affleck e Siena Miller são atores comuns. Zoe Saldana aparece muito promissora, mas infelizmente é desperdiçada num papel que a cada minuto lhe dá menos o que fazer (entra em cena como uma personagem forte, independente, e vai se transformando na esposa do protagonista). No núcleo central, o único ator que recebe um bom material é o Chris Cooper - e ele aproveita plenamente bem a oportunidade de se destacar, defendendo com sutileza e humanidade seu personagem.
Ben Affleck não deixa de ser um bom diretor por esse primeiro deslize, que nem é um deslize tão grande assim, mas espero que nos próximos filmes ele dê ainda mais sinais de amadurecimento e produza algo que seja consequência natural de alguém que, em seus primeiros trabalhos, enfileirou Medo da Verdade, Atração Perigosa e Argo.
Missão: Impossível 3
3.4 513 Assista AgoraMissão Impossível 2 rompeu tão violentamente com o estilo mais contido do original que anistiou os seguintes pra serem o que quisessem, por mais frenéticos que fossem os caminhos que desejassem trilhar.
Missão Impossível 3 tira proveito dessa liberdade e é movimentado, cheio de ação, dando a J.J. Abrams a chance de se mostrar um bom engenheiro do caos, o que faz, por exemplo, na cena de perseguição de helicópteros, em que a equipe do protagonista precisa transitar pelo meio de uma usina eólica desviando de misseis dentro da noite enquanto uma personagem se pendura em um dos veículos e o protagonista tenta desativar a bomba implantada na cabeça de outra. Claro que, apesar da boa construção da cena, valorizando a confusão e a multiplicidade de perigos,
a essa altura já temos uma franquia de ação consolidada, que não teria peito para logo no início matar a equipe inteira de agentes, como fez o primeiro.
Há, ainda, outros bons momentos de ação, como quando o Tom Cruise (não vou nem chamar o personagem pelo nome, tão notória a maluquice do ator em fazer essas cenas sem dublês) desliza pelas janelas para atingir o interior de um prédio em Xangai, numa invasão que, como descreve o agente interpretado pelo Vingh Rhames, é ainda mais desafiadora do que a do Forte Langley, no primeiro filme.
Mas MI3 não vive apenas desses bons momentos de ação. A trama é dinâmica e misteriosa, a busca pelo "pé-de-coelho", MacGuffin (objeto que os personagens de um filme perseguem e em torno do qual gira uma história, segundo definição de Alfred Hitchcock) da vez rende boas passagens e o elenco de apoio é eficiente. Para surpresa de ninguém, Philip Seymour Hoffman, ator poderoso, torna marcante um vilão que, no roteiro, provavelmente era bem unidimensional.
Eu não gostei de MI3 quando o assisti pela primeira vez, quando saiu, mas na revisão minha opinião ficou bem mais favorável. Todos os filmes da até então trilogia, díspares entre si, se viraram bem com suas respectivas propostas e, num sinal de que essa imunidade ao comodismo é saudável, o quarto seria ainda melhor. Falta-me ver os demais.
Missão: Impossível
3.5 516 Assista Agora"Foi inevitável. Com o fim da Guerra Fria, não precisa mais guardar segredos. Operações pelas quais só você é responsável. E, um dia, você acorda e o presidente está governando o país sem pedir sua permissão. Como ousa, o filho-da-puta?"
A partir do segundo virou uma franquia de ação desvairada, encontrando nesse segmento bons momentos (gosto bastante do quarto filme), mas é no mínimo instigante conferir como seria um filme de James Bond dirigido pelo Brian de Palma. Não é estranho como parece: De Palma é um mestre do suspense, do engano, e também da elegância. Suas melhores características jogam a favor do gênero espionagem, que precisa desses atributos.
Se um filme de espionagem precisa de alguém que saiba fazê-lo, e de Palma sabe, por que não deu plenamente certo? Missão Impossível é cheio de momentos exemplares: uma cena no início, que apresenta uma equipe de espiões para em seguida nos espantar com o que fará deles; o momento em que Tom Cruise brinca de mágico ludibriando astuciosamente outro personagem para que lhe entregue um objeto que todos querem, e obviamente aquela maravilhosa invasão da base em Langley, na qual o diretor pinta e borda usando todos os recursos de tensão que o exiguo espaço em que se passa a ação admite - exceto a trilha sonora, inteligentemente anulada -, entrando com todas as justiças no rol de cenas que definem o Cinema. Contudo, ao ver essa estreia de Ethan Hunt senti que faltou uma argamassa que tornasse a trama, um tanto rala (e, a partir de certo ponto, previsível), tão intrigante, tensa e surpreendente como o são seus melhores momentos, e não me surpreendi ao ler depois que o projeto foi rodado com o roteiro inacabado, com ajustes sendo feitos enquanto as filmagens avançavam.
Acho irônico que o embate que mais destoa do conjunto - falo do helicóptero dentro do túnel - tenha sido o que logrou fazer escola nos capítulos seguintes, mas mais inesperado seria se um filme tão comedido durante a maior parte do tempo tivesse se transformado em uma franquia tão longeva sem perder suas características iniciais.
Beneficiado por uma daquelas trilhas sonoras que simplesmente traduzem a essência de um filme, Missão Impossível, apesar de alguns tropeços, é um bicho raro: apenas de tempos em tempos somos presenteados com uma boa história de espião. Eu queria mais.
Operações Especiais
3.3 349 Assista AgoraAssistir a esses filmes que investem no mesmo filão que já fez a fama de outras obras de inegável superioridade (como o Tropa de Elite 2) envolve concessões mútuas: o filme nos diz que nós o assistimos porque queremos, obrigados não somos. Por outro lado, quem faz um filme desses deve suportar as comparações, caso contrário deveria se ocupar de algum estilo diferente, e assim ficamos quites.
Dito isso, Operações Especiais fracassa onde outros filmes se saíram melhor. O roteiro é um tanto atabalhoado, enfileirando uma série de situações bem pouco desenvolvidas e inclusive forçando algumas apenas para abandoná-las abruptamente (ameaça, por exemplo, algo que nem dá pra chamar de "subtrama" envolvendo a mãe da Francis, mas a participação desta não serve pra nada além de transmitir a impressão de que filmaram mais coisas, não gostaram e resolveram abandonar a personagem na sala de montagem, se esquecendo de fazê-lo por completo); insuficiente, também, o vilão do Antonio Tabet, que não passa de uma caricatura pobre. Contudo, esses defeitos são um pouco amenizados pelo fato de ser um filme de apenas 01h38min, portanto com pouco espaço para barrigas (ainda assim, lá pelo meio se torna um pouco repetitivo, com cenas excessivas para destacar a inexperiência da protagonista e suas constantes falhas em operações).
O emprego da música da Pitty - que comenta a ação dos únicos personagens honestos num cenário de desoladora crise ética e institucional - é de uma inadequação atroz.
Nem tudo são falhas, porém. O cinema nacional tem escassa tradição em cenas de ação, e aqui elas são satisfatoriamente bem filmadas e intensas. A Cléo Pires, em mais um papel porradeiro, e o Fabrício Boliveira exibem boas performances. Mas, se tive a percepção correta em achar que Operações Especiais daria uma série promissora (a realidade infelizmente oferece material sem fim), quem eu gostaria mesmo de acompanhar é Paulo Froes, o íntegro delegado encarnado pelo igualmente competente Marcos Caruso.
Em Ritmo de Fuga
4.0 1,9K Assista AgoraO amigo que o personagem do Jamie Foxx cita lá pela metade do filme pode até ter morrido, mas era um sujeito de muito bom-senso. Assaltar lugares ouvindo End Of The Road ou Hotel Califórnia, francamente, não dá. Até o próprio Bats, embora babaca, tem seus momentos de sabedoria debochando corretamente do Baby por planejar um assalto ouvindo Queen.
O Edgar Wright está cada vez mais refinado em ignorar com extrema habilidade que som e imagem são coisas diferentes e novamente faz com que um elemento trabalhe em função do outro como se cada som não pudesse ter sido concebido senão para aquela imagem e vice-versa. Sérgio Leone aprovaria. Há algumas tiradas espirituosas ("ele é retardado?", "retardado significa lento, ele pareceu lento pra você?") e o elenco estelar bem à vontade (Jon Hamm parece estar se divertindo à beça e protagoniza uma ótima cena embalada por Never Gonna Give You Up, do Barry White).
Pena que Baby Driver não seja mais que isso. Edgar Wright alcança o memorável quando entra mais fundo no gênero parodiado/homenageado ou quando surta mais na confecção do roteiro (Todo Mundo Quase Morto e Chumbo Grosso, respectivamente). Quando não é assim, apenas produz uma embalagem elaboradíssima para que os clichês desfilem em grande estilo.
Todo Mundo em Pânico 2
3.0 740 Assista AgoraEu gosto bastante mesmo desses filmes besteirois bem bobos. O humor físico não apenas remete à origem das comédias cinematográficas (e em algum nível, às origens do próprio cinema) como pode ser bem desafiador (os melhores do gênero lançam mão de recursos cômicos bastante criativos), de modo que não cabe tratá-lo como um subgênero menor. A coisa desanda quando o estúdio começa a achar que a licença que esse tipo de filme tem para ser ridículo é suficiente para fazer e vender qualquer coisa, como se cretino fosse o espectador, não o divertimento que ele procura.
Todo Mundo em Pânico 2 é uma comédia bem malacabada, cujos criadores, obviamente assaltados por uma desesperadora falta de ideias, se escondem atrás da escatalogia fácil, não pontualmente mas a todo e todo momento, demonstrando que simplesmente não sabiam o que escrever e filmar. Embora sigam a cartilha anárquica do subgênero (esse tipo de comédia não tem compromisso com qualquer espécie de lógica ou estrutura, o desafio é simplesmente bombardear o espectador com três, quatro esquetes por minuto, fazendo rir por exaustão, o que é legitimo e interessante), as piadas, repetidas ad nauseam, são ruins a ponto de momentos nada originais (não marcarei spoiler pra isso) se sobressaírem como respiros de criatividade ("você está fugindo de um esqueleto: você correria da Carlista Foxheart?"; duas gags envolvendo o Marlon Wayans, uma envolvendo seu personagem ser fumado por um monstro de maconha, outro envolvendo uma referência a Hannibal com o BetleeJuice dentro do cérebro do personagem). Aliás, nada pode ser mais forçado e menos engraçado do que o Marlon Wayans.
Vendo o filme bastante tempo depois do lançamento, é curioso notar como seu humor é parasitário e não existe por si: as piadas, já fracas, ficam ainda piores depois que passou o hype dos filmes parodiados. Isso porque o filme não constrói o momento, ele apenas aponta "estão vendo? agora eu estou fazendo uma referência às Panteras, podem rir!".
Ranzinza criticar um filme tão despretensioso, que faz um acordo claro de provocar uns risos e nada mais? Bem, basta colocar ao lado de Top Gang, Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, pra verificar que o filme não dá conta nem da própria proposta.
Inferior ao primeiro e ao terceiro (se o tempo decorrido desde que os vi não me engana), esse aqui tem pelo menos uma coisa que se salva (além da Anna Faris se esforçando inutilmente para o filme não afundar num mar de falta de graça): a música que toca nos créditos finais é bem legal.
O Ano Mais Violento
3.5 285"Você nunca vai fazer algo mais difícil do que sentar com alguém olhando nos olhos e dizer a verdade"
O Ano Mais Violento não é um filme violento, embora o sugira não apenas o título (que faz referência histórica a 1981) mas o material promocional (vide pôsteres) e sua própria estética, que alude a histórias de mafiosos (Oscar Isaac aqui tem os trejeitos do Michael Corleone, o modo de falar do Michael Corleone, se veste como o Michael Corleone e enfrenta alguns dos dilemas morais do Michael Corleone - a inspiração óbvia a ponto de salientar a semelhança física do ator com o Al Pacino jovem, algo que até então eu jamais havia percebido).
Trata-se, porém de um Michael Corleone que, resistindo mais do que o original a se agarrar à brutalidade, deseja adotar desde já a postura que o "original" assumiu em O Poderoso Chefão III: dominar o mercado e amealhar patrimônio usando de uma corrupção sem violência física deliberada, embora, nesse caso, não desprovida de riscos para seus subalternos: "que bom que você se sente vulnerável, porque você está" (há um plano específico que representa sutilmente, mas com grande eficácia, essa dualidade ao mostrar sangue e óleo escorrendo lado a lado em uma parede). Esse comedimento afastará ou desagradará aqueles que desejam algo mais movimentado - no meu caso, creio que teria gostado bem mais do filme se, embora morosa, a trama fosse permeada por alguma ideia ou mensagem mais contundente.
Obtendo sucesso em criar personagens que embora apareçam pouco na tela despertam algum tipo de interesse (gostaria de acompanhar algo mais dos concorrentes do protagonista, bem como de algumas figuras que aparecem ao longo da projeção, como o empresário/agiota que prefere submeter seu negócio à administração da neta do que dos filhos) e ilustram o ambiente concorrencial predatório em que se passa a história, o filme poderia se chamar O Ano Mais Ambicioso ou O Ano Mais Desleal, se não fossem todos os anos o mais ambicioso e o mais desleal.
Frances Ha
4.1 1,5K Assista AgoraNoah Baumbach quis fazer seu filme setentista do Woody Allen e fez. Provavelmente o filme terá mais chance de dialogar intensamente com jovens adultos que estejam naquela fase sem perspectivas, de insegurança por não saber direito o que fazer com a vida.
Aparentemente rodado com orçamento mínimo (evitando algumas características comuns de filmes indie, como a direção de arte e fotografia elaboradas, lidando com cores supertrabalhadas) e mesmo sem a presença de uma trilha sonora que pontue toda a trama, o filme se ampara inicialmente em diálogos engraçadinhos ("eu e Sophie nos conhecemos na faculdade e somos a mesma pessoa"; "não se importem comigo, estou apenas tentando chamar atenção"), mantendo, segundo penso, algum distanciamento irônico das pessoas que retrata (em diversos momentos a câmera corta para a Frances já no meio de uma frase, geralmente um fragmento de uma piadinha qualquer, como a sugerir que esse o jeito de ela se comunicar o tempo todo). Aliás, a personagem-título me irritou um pouco, é uma boba, mas compreendo que essa personalidade seja instrumental para a mensagem do filme, algo no sentido de que é preciso manter alguma ingenuidade no meio da tempestade, etc.
Infelizmente, à medida que a história vai avançando e albergando novos elementos (a protagonista precisa lidar com o abandono afetivo de sua melhor amiga, com as responsabilidades da vida adulta, é colocada frente a frente com a realidade de não ser tão boa no que almeja profissionalmente, mas descobre outras qualidades que lhe permitem ganhar a vida, e por aí vai) não sai nada de interessante da boca dos personagens. A fala mais substanciosa é uma pieguice desgastada sobre um relacionamento bom ser aquele em que trocamos olhares com a(o) amada(o) no meio de uma festa e sorrimos sabendo que é a pessoa da nossa vida, coisa e tal. Os dilemas da Frances nesse filme são bem reais, ela e os coadjuvantes deveriam ter coisa melhor pra falar. Apesar disso, a protagonista percorre um arco, sua dinâmica com os demais personagens é bem explorada por meio de acontecimentos concretos, enfim, o roteiro é redondinho.
Finalizando com uma mensagem sempre válida (a felicidade de cada um pertence a si, não devendo ser depositada em terceiros), esse filme sobre jovens debochados vivendo suas neuroses em Nova York, tecnicamente simples porém correto, me agradou, mas de forma moderada. É que eu não gosto tanto assim do Woody Allen.
Um Contratempo
4.2 2,0K"Para a polícia só há um assassinato, o de Laura Vidal. Mas para nós e para os pais de Daniel Garrido há outro outro corpo e outra morte."
***
"Meu trabalho é te livrar da cadeia, e não de quem você é".
Tudo vai muito bem durante a maior parte de Um Contratempo, segundo esforço de Oriol Paulo, que já havia estreado bem com o instigante O Corpo. Trata-se, a princípio, de uma versão cinematográfica daquele estilo de romance policial puramente cerebral que existia antes de Dashiell Hammett e Raymond Chandler mostrarem que, além da morte física que inicia cada livro, deflagrando uma investigação detetivesca, há também a morte da alma e a morte social dos outros envolvidos (policiais, testemunhas, criminosos) - afinal, se está a falar de um mundo onde matam-se pessoas.
Naquele período, a trama policial não se passava em um "mundo aberto". Ocorria o crime, eram apresentados os suspeitos e Sherlock Holmes, Hercule Poitrot, Miss Marple e outros punham-se à procura de pistas e evidências, todas compartilhadas com o público, a quem era oportunizado interpretá-las e juntar as peças que revelariam o assassino - tratava-se, antes de qualquer coisa, de um jogo de montar, jogado em uma estufa (às vezes até literal, com os personagens confinados em um espaço físico reduzido). Esses livros costumavam ser tímidos na construção dos personagens ou de relações mais complexas entre eles; não discutiam temas mais amplos com profundidade (embora haja algumas exceções e, em outros casos, essas abordagens pudessem ocorrer de forma mais sutil), pois o que importava mesmo era a investigação. Diante dessa necessidade de lançar indícios - verdadeiros ou falsos -, hipóteses, desviar ou focar a atenção do leitor para pontos específicos, envolvê-lo no jogo e ainda assim surpreendê-lo (se possível, chocá-lo) no final, esses livros se valiam de liberdades narrativas bastante amplas: coincidências, personagens com atitudes inverossímeis e por aí vai. Tudo bem, esse desprendimento do naturalismo (que o filme referencia no monólogo sobre "pensamento lateral", o do enforcamento com o cubo de gelo) é um atributo do estilo e, às vezes, até mesmo indispensável para aumentar o suspense.
O melhor de O Contratempo, para mim, está no terço do meio, quando o roteiro, que já vinha bem na elaboração da trama policial investigativa (nesse ponto a máquina de criar dúvidas já está funcionando a pleno vapor, temos um fio narrativo estabelecido, mas envolto de pistas que não sabemos se levarão a algum lugar, versões ambíguas dos fatos - enfim, estamos jogando o jogo), consegue ainda soprar vida nos personagens que vão surgindo. Essa disposição de mostrá-los como humanos e não peças de uma trama meramente racional tem seu ápice em uma cena específica e bastante angustiante que envolve um diálogo da personagem Laura com um casal, antes da metade do filme, quando surgem uma informação perturbadora - a partir daí, José Garrido passa a encarnar um homem que, inicialmente gentil e bom, torna-se trágico, capaz de atrair imediatamente nossa solidariedade pois já o sabemos condenado à dor. Aliás, colocando esse filme em perspectiva com O Corpo
é enriquecedor notar como uma figura paterna já era importante para as motivações desse primeiro filme.
A estrutura do roteiro poderia resultar em passagens terrivelmente anticlimáticas, pois envolve constantes retornos à sala em que o protagonista conversa com sua advogada. Contudo, além de essas cenas frequentemente iniciarem bons diálogos e favorecerem o conceito do narrador não-confiável, também servem para distribuir melhor os outros acontecimentos do roteiro - em várias ocasiões, parecem estar sendo narrados pequenos contos dentro da narrativa maior, algo benéfico em um filme que precisa nos manter interessados em visualizar com clareza essas passagens e confrontá-las umas com as outras.
Oriol Paulo não é bom só de roteiro. Sua direção é fina, traduzindo visualmente os pontos mais sensíveis da trama e contando com alguns achados, como o momento em que um isqueiro jogado na água se transforma no carro afundando no pântano (imagem que sozinha já seria dolorosa, mas ganha ainda mais impacto porque encerra um forte diálogo sobre perda). Aliás, vários minutos antes, na primeira cena em que o carro afunda, Oriol faz uma referência a Psicose (veículo que parece resistir por alguns segundos, como se fosse a vitima que contém, antes de ser definitivamente tragado pelas águas). A fotografia de cortes mortiças supre a finalidade para a qual é usualmente empregada em filmes policiais, exprimindo tensão, tristeza mas também algum charme.
A minutos do fim eu estava plenamente satisfeito com o filme, não exigindo um desfecho brilhante - se viesse para coroá-lo, melhor ainda. Infelizmente, não consegui gostar do plot twist.
Eu já havia percebido que a advogada estava ali para comprometer o personagem principal - isso ecoa um determinado episódio de Black Mirror e vai ficando mais evidente à medida em que o criminoso vai soltando mais informações, principalmente a de que o Daniel Garrido foi afundado vivo. Agora, que a advogada seja o mãe do defunto é forçar a mão. Eu só consigo gostar dessas viradas rocambolescas quando as peças se fecham e o autor mostra que a verdade estava na minha frente o tempo todo e eu não vi. Máscara de látex? Interpretar durante horas uma experientíssima profissional, versada num assunto complexo, com base na frase "eu a conheci no grupo de teatro", lançada lá atrás? Ana Waeger exala competência, mas francamente. Mais uma coisa: o filme não deve fidelidade a esse pormenor, mas a confissão obtida naquelas circunstâncias é nula.
A realidade é que Oriol está se estabelecendo com um M. Night Shyamalan do filme policial, obrigado a entregar sempre uma reviravolta perturbadora nos segundos finais. Ocorre que os 105 minutos anteriores de Um Contratempo são válidos por si, não foram construídos apenas para justificar um desfecho como esse, que inclusive destoa do clima até então estabelecido. Aliás, se alguém ficou com essa dúvida
A versão verdadeira é a última: o próprio Adrian Dória matou a Laura Vidal, pois ela queria que ambos se entregassem à polícia. Nisso o filme foi bem: nós só conhecíamos a amante morta através das palavras de seu assassino, que apesar de procurar se eximir da responsabilidade, em nenhum momento consegue esconder que é um ambicioso egoísta - se isso não ativou o desconfiômetro de muitos espectadores, parte do mérito cabe à atriz Bárbara Lennie, uma ótima femme-fatale (como diz a "advogada") fictícia - mais pro fim ela vai bem de novo como a pessoa que sua Laura Vidal realmente era: arrependida, mortificada.
Embora não tenha conseguido evitar que a última cena prejudicasse um pouco minha percepção global do filme, este é mais uma demonstração da engenhosidade narrativa e capacidade técnica de seu diretor, que está ameaçando fazer uma obra-prima do suspense e não devemos nos surpreender se logo nos aparecer mesmo com alguma debaixo do braço, com final genial e tudo.
Ah, forçar a mão por forçar a mão, muito antes um Contratempo do que Gone Girl, com que às vezes é comparado.
Porco Rosso: O Último Herói Romântico
3.9 285 Assista Agora"- Chefe, qual a diferença entre a guerra e caçadores de recompensas?
- Nas guerras quem ganha dinheiro são os vilões; os caçadores de recompensas são apenas idiotas"
***
"Prefiro ser um porco do que um fascista."
***
"Um porco que não voa é apenas mais um porco."
Animação menos conhecida do Studio Ghibli, Porco Rosso investe numa história simples, mas carregada de sentimento. Apesar de não ter o apelo que se costuma esperar das obras da produtora, ainda assim cria ocasionalmente momentos marcantes, como aquele no início em que, durante uma apresentação da personagem Gina, há um corte repentino para o avião do personagem principal focalizado contra o crepúsculo, enquanto continuamos a ouvir a voz da cantora, ou a lindíssima cena acima das nuvens, quando Porco Rosso contempla cheio de dor a ascensão dos pilotos mortos. O silêncio sobre a origem da maldição que o transformou numa figura porcina é eloquente e acertadamente o enredo deixa de explorá-la, pois não se está a falar de uma história Disney das mais batidas e sim de um filme que sabe jogar com as lacunas e os subtextos, algo mais do que adequado nessa história que fala de remorso e estigma (e aqui sim eu gostaria que o filme entrasse um pouco mais no advento das forças fascistas, embora compreenda que esse é um pano de fundo, não o motor da trama).
Apreciei que, partindo de uma dicotomia usual no Cinema - um personagem mais velho, calejado e machista lidando com uma mulher jovem, talentosa e cheia de ímpeto, o filme não tenha desperdiçado sua curta duração criando conflitos artificiais entre eles, visto que suas diferenças não demoram a se neutralizar, os personagens estabelecem uma relação de carinho e a história avança sem muletas narrativas previsíveis. A personagem Fio é um acerto completo, ela é porreta e obstinada porém muito simpática, gente fina mesmo, evitando aquela insuportabilidade com que muitos roteiristas (e pessoas da convivência cotidiana) confundem personalidade forte.
Desenhado com traços suaves que ajudam a construir o próprio tom já esboçado pelo roteiro, Porco Rosso é uma pequena pedra preciosa e não um diamante de dez quilates, mas nele se constatam em estado embrionário as virtudes que posteriormente fizeram a glória do Estudio Ghibli.
No final, quando Fio sobrevoa o hotel, vemos um avião vermelho na água ao lado dele, provavelmente diante da porta da Gina. Gosto de pensar que esse detalhe acena para que final teve Porco/Marco.
A Grande Aposta
3.7 1,3K"Eu não sei ser irônico, não sei manipular as pessoas. Só sei ler números."
***
"Isso é como se dois mais dois fossem... peixe."
***
"Eu tenho a sensação de que, dentro de alguns anos, as pessoas vão fazer o que sempre fizeram quando a economia desaba. Vão culpar os imigrantes e os pobres."
Perfeito para uma sessão tripla com O Lobo de Wall Street e o documentário Trabalho Interno, A Grande Aposta procura driblar o grande problema que é traduzir para o grande público de forma acessível, sem perder a qualidade de entretenimento, um tema árido - cheio de manobras engenhosas costumeiramente explicadas por meio de vocabulário truncado - lançando mão de tudo quanto possa manter o espectador atento, desde trucagens na montagem, câmera neurótica, personagens excêntricos, quebra da quarta parede até "participações especiais" para esclarecer pontos mais complexos.
Admiro especialmente a maneira como o roteiro distribui a ação entre os vários personagens, que compõem diferentes núcleos, sem transmitir a sensação de que se dispersou ou que alguns deles estão subaproveitados. O elenco está glorioso, tanto as estrelas como os nomes mais conhecidos. Steve Carrell, numa performance impressionante, miniaturiza em seu personagem aquilo que o filme é: raivoso, debochado, com energia infinita para imprecar contra o lodaçal moral do neoliberalismo predatório e assassino (obra e personagem são identificados até pelo fato de ambos se beneficiarem das regras do sistema contra o qual investem).
Vertiginoso (o filme simplesmente não se detém durante um minuto, lançando a cada quadro mais acontecimentos, viradas e novas informações), A Grande Aposta é um bom exemplo de como um tema importante pode levantar de patamar um cineasta, até então sem grande brilhantismo, em estado de fúria para contar uma história. Bom para o Cinema, mas péssimo para a realidade que um filme desses deva existir: assisti-lo e entendê-lo nos situa a ajuda a compreender melhor realidade e Cinema.
Special Correspondents
3.1 86 Assista Agora"Minha mulher me abandonou. Você é bom com palavras, pode ler a carta que escrevi pra ela?
- Claro... ... não é assim que se escreve "suicidio"."
***
"- Você é burro, estúpido, incompetente, sabia disso?
- Sim."
"- Sua mulher disse que não vai pagar o resgate e podemos te matar.
- Que bom que você falou com ela. Bem-vindo ao meu mundo."
Special Correspondents é uma comédia simples, sem grandes lances de história , mas moderadamente eficiente. Não contém o DNA do Ricky Gervais, aquele niilismo derrisório só se deixa entrever em pouquíssimos momentos (geralmente nas gags envolvendo o desolador casamento do Finch) e seu característico humor incômodo, que faz rir de constrangimento, só dá as caras em uma única una e sozinha cena, envolvendo a personagem da Vera Farmiga (que ostenta excelente timming cômico, encarnando num tom levemente histriônico, mas não acima do tom, sua egoísta Eleanor).
Eric Bana não é um comediante nato, mas como não é muito exigido defende bem seu papel. Ricky Gervais, intérprete sempre do mesmo personagem, como de hábito funciona no contexto. A dupla de apoio (donos do restaurante interpretados por America Ferrera e Raúl Castillo) é responsável pela maioria das boas tiradas que não partem da Eleanor. Já os aspectos técnicos, embora dignos de produção televisiva, não tornam o filme pior, pois o enredo realmente não demanda grande elaboração nesses quesitos.
Previsível do início ao fim, sem provocar gargalhas em outras cenas além da supracitada, esse filme ao menos não cai na falta de graça nem se estende além do compatível com suas ambições modestas.
Confesso que no final, quando os jornalistas são levados para o acampamento dos sequestradores, achei que eles se encontrariam com Emilio Santiago Alvarez. Seria um toque interessante de surrealismo.
Entrevista Com o Vampiro
4.1 2,2K Assista Agora"Você não vê que eu não sou o espírito de nenhum tempo? Eu sou contra tudo."
Um dos defeitos que mais evidenciam descuido na elaboração de roteiros em filmes de vampiro é construí-los como personagens que falam, pensam e agem como se tivessem a idade de seus intérpretes, mesmo quando são apresentados como serem que já "vivem" há séculos. Entrevista com o Vampiro não apenas evita esse erro como faz das interações entre as criaturas da noite o seu ponto forte. Todos esmagados por alguma falta (solidão, inadequação ao mundo ou à própria natureza assassina, privação de amadurecimento sexual, conforme o caso) os personagens expressam seus conflitos e sua existência de horrores (buscados deliberadamente ou não) em sofisticados diálogos, que me fizeram desejar ler o livro original, do qual sempre desdenhei um pouco.
Embora eu tenha me decepcionado ao ver que, cobrindo cerca de 200 anos, os personagens não se misturam aos fatos históricos que aconteceram nesse lapso de tempo (algo que enriqueceria bastante a trama), compreendo que o tom da história é dado pelo intimismo, pelas relações entre os vampiros.
Depois de ver o Tom Cruise se transformar em uma espécie de Sociedade Anônima, de uma Entidade do Entretenimento Competente Mas Previsível, é até estranho vê-lo atuar de verdade, com entrega, num papel do qual depende, em grande parte, o equilíbrio dramático do filme, pois seu irônico e falastrão Lestat faz um contrapeso aos outros chupadores de sangue, todos enfocados em primeiro lugar como indivíduos que sofrem.
Ao longo das duas décadas seguintes, Brad Pitt e Antônio Banderas se tornaram atores melhores do que eram aqui. O primeiro soa um pouco cru e por alguns metros não esvazia seu Louis Le Blanc, um vampiro atormentado pela imortalidade, pelas dúvidas quanto à sua nova condição e pelo desejo de não se converter em uma besta-fera. Já o Antônio Banderas, numa canastrice que salta da tela, infelizmente compromete um tanto o resultado final.
Kirsten Dunst é um destaque, tira de letra a transformação de Claudia de criança-vampira para adulta assolada pelo destino de ficar eternamente presa no corpo juvenil.
Ressalvado o que apontei sobre o filme abdicar de ser mais panorâmico abordando os acontecimentos do mundo dentre os séculos XVIII e XX, o roteiro é bem preciso do início até o retorno à Europa, depois senti falta de um aprofundamento nos personagens que surgem. Os asseclas do Armand, por exemplo, não passam de caricaturas, perdeu-se a possibilidade de explorar a mitologia, o funcionamento e pensamento coletivo daquele submundo. Mesmo assim, a história não desanda até seu satisfatório final, no qual
se mostra que lições não são aprendidas nem pelas pessoas, nem pelos mortos-vivos (o jornalista, depois de tudo que ouviu, quer se transformar em vampiro; Lestat, depois de tudo que viveu, o transformará em um vampiro).
Neil Jordan, naquele que talvez seja seu melhor filme, constrói imagens que mesmo sem violência evocam o puro horror (como os vários caixões saindo de uma mesma casa) e sem dramalhão constroem lirismo, como a do nascer-do-sol no cinema (com o complemento do belo texto: "primeiro era prata, depois surgiram tons de escarlate..." - memorável).
Exemplar ainda no figurino e direção de arte, Entrevista com o Vampiro mereceu não ser engolido pelos excelentes filmes lançados em 1994 (Forrest Gump, Um Sonho de Liberdade, Pulp Fiction, O Profissional, Os Imperdoáveis, Ed Wood, Assassinos Por Natureza - são realmente muitos cânones no mesmo ano e ainda outros tantos bons filmes), se firmando como um clássico que ainda vale a pena ver.
Hush: A Morte Ouve
3.5 1,5K"Vários finais e todos iguais"
Ganha pontos pela simpática e inteligente protagonista (ausências recorrentes no gênero, que nos fazem torcer para que morram logo, pondo fim ao tormento de assistir gente estúpida sendo injustamente premiada pela sorte de não levar logo a facada, créditos finais, fim).
Embora eu esperasse um uso mais engenhoso da surdez para criar tensão, ela é explorada até que bastante bem, criando um ou outro momento de destaque, principalmente no início, quando o assassino entra despercebido na casa.
No mais, trata-se de uma historinha simples, no já surrado sub-gênero home-invasion, amparando-se em boas atuações e nos esforços até bem-sucedidos do diretor/roteirista para preencher os curtos 81 minutos - gosto, por exemplo, de como, longe do clichê da protagonista que se transforma em super-heroína invulnerável, a de Hush fica fragilizada pelas porradas que leva a ponto de a debilitação física se transformar num elemento a ser considerado quando resolve traçar estratégias para reagir.
Por outro lado, apesar de ser interessante a rima temática do início (quando Maddie não consegue escrever o final do livro) com um momento bem mais adiante (quando ela começa a pensar sobre as hipóteses de fuga, concluindo que quase todas acabariam na sua morte e a levando a escolher o "final" adequado para a situação, atraindo o assassino para uma emboscada), detesto quando filmes fingem matar personagens por meio de alucinações, sonhos, imaginação, etc - desonestidade narrativa para produzir um choque que se dissipa rapidamente.
Costuma não ser muito difícil em filmes de suspense e terror descobrir de plano quais detalhes são apresentados nos primeiros dez, quinze minutos, para serem retomados mais adiante. Isso ocorre aqui com o alarme.
Inicialmente pensei que o tal do Craig, o ex-namorado, acabaria dando as caras também, o que não aconteceu. Talvez as menções a ele no começo sejam apenas falsos gatilhos, para manter a possibilidade de seu surgimento em aberto na mente do espectador ainda que isso jamais vá acontecer, mas o meu palpite é que haja aí uma mensagem mais concreta: Maddie se vira sozinha e não precisa que venha um ex para salvá-la.
Destinado por sua despretensão a ser um trabalho menor do diretor Mark Flanagan, Hush se estabelece como um início (é seu segundo filme) promissor de sua carreira que vem se consolidando e frutificando obras mais ambiciosas.
Mais Forte Que o Mundo: A História de José Aldo
3.6 267No começo achei que a direção enérgica do Poyart (eficaz em 2 Coelhos) ia lançar o filme no exagero e no ridículo, mas depois ele suaviza a mão o suficiente para que não vire um bumba-meu-boi, apesar de aqui e ali ainda passar da conta - o contrato que ele assinou provavelmente previa a obrigação de usar slow motion em todas as lutas. Aliás, justamente nelas, que dão oportunidade para que o diretor use de de todos os recursos possíveis para torná-las memoráveis, o diretor resolve ficar burocrático. Não que sejam mal-feitas - já começam com uma boa ambientação, clima de espetáculo beneficiado pela iluminação bem saturada, cuidado nas coreografias - mas falta aquela inventividade na hora de filmá-las que as valorize (ao contrário do que ocorre com Touro Indomável, para citar um caso ilustre). Não fiquei com vontade de rever nenhuma das lutas, elas não têm valor próprio nem funcionam independentemente do resto do filme.
O humor também não funciona muito bem, o que é raro no cinema nacional, que costuma oferecer momentos bem eficazes na comicidade mesmo em filmes densos. Aliás, a maior comédia do filme, possivelmente involuntária, é o Rafinha Bastos lutador, com aquelas luzes no cabelo. O José Loreto eu achei que ostentaria uma canastrice de fazer o Schwarzenegger maldizer a decadência das artes cênicas e querer lhe ensinar meia dúzia de expressões, porém ele segura muito o José Aldo torturado, mutilado, selvagem, travadão, vocabulário mínimo, movido a mágoa e ressentimento, meio estúpido e dono de uma energia interna intensa que o filme apresenta (o da vida real eu desconheço). Jackson Antunes e Milhem Cortaz, como de hábito, mostram que contratá-los é como colocar boas atuações no carrinho de compras e ter que se preocupar, no máximo, com o resto do elenco.
A relação entre pai e filho foi bem trabalhada. Não se alivia para nenhum dos lados, ambos são o que são - e como os defeitos de personalidade deles não são maquiados, as qualidades e momentos de doçura podem sem mostradas sem risco de resvalar no sentimentalismo.
Sem jamais pecar por flacidez dramática - as duas horas avançam rápido - o filme se beneficiaria caso mostrasse um pouco mais das transformações que as primeiras grandes conquistas provocaram no protagonista. Suas origens humildes foram bem contadas, mas eu queria conhecer o José Aldo campeão do mundo.
Apesar desses reparos, é filme competente, profissional, que não diminui o personagem-título.
Por algum motivo me incomoda fazer essa observação, mas me causou um certo estranhamento que, no final, depois de revelar que o José Aldo ficou uma década invicto, surja uma legenda informando que o pai dele morreu pouco antes de sua conquista do cinturão e que é considerado pelo filho como "seu maior incentivador". Usar legendas e imagens de arquivo para contar um pouco mais sobre o destino dos personagens é corriqueiro em cinebiografias, mas nunca vi um diretor ter necessidade de comunicar por escrito algo que a gente acabou de assistir. Será que foi um pedido especial do biografado?