A trilha sonora é bem manipulativa e de vez em quando perde o tom para tentar modular a emoção do público. Mesmo assim, a mensagem é bonita e muito válida. Imagine só não poder ver, nem escutar nada! Detalhe: o ator que interpreta Artie é de fato cego e surdo - o primeiro com as duas condições na história do cinema.
Neste último domingo tive o prazer inenarrável e único de assistir a este filme em uma sala de cinema e verdade seja dita: A tela grande torna patente a magia de que Méliès era capaz. Seria covardia comparar esta experiência às vezes em que o curta foi assistido na tela de um computador ou mesmo em uma televisão. Todos os detalhes saltam aos olhos, que de fato, e sinceramente, brilham com o resultado. A pintura feita à mão, por exemplo, dá ideia não só do carinho do realizador por esta arte, mas faz ressaltar como nunca o imagético fantástico e onírico que marcava os filmes do diretor.
A trilha sonora composta pela banda AIR em 2012 faz com que a magia de Méliès seja renovada, como se o filme esperasse por uma trilha sonora tão arrojada quanto suas imagens. Tendo visto outras versões do filme me pareceu bem evidente que as músicas do duo – eletrônicas ainda que retrôs e ricas em sintetizadores - em sua forma e estilo casam-se muito melhor com a contemporaneidade absoluta do diretor francês do que qualquer música de época. É redundante, mas impossível, não atestar o quão moderno Méliès era. Outro aspecto incrível trazido pelo AIR é como parte de sua composição adota o papel de sonoplastia para os acontecimentos que se desenrolam na tela.
Embora eu não possa menosprezar a importância que tiveram os irmãos Lumière - e mesmo Thomas Edison - no desenvolvimento da aparelhagem cinematográfica, creio que estas figuras tenham inventado muito mais à filmagem e toda sua mecânica do que o cinema tal qual o conhecemos. Pois muito embora os Lumière inaugurassem o modo de apresentação cinematográfico, coletivo e em tela grande, é apenas com Méliès que o objeto de exibição pode inegavelmente ser chamado de cinema, visto que fugimos ao prosaico e banal nas pequenas histórias que assistimos. O que este cineasta pioneiro criava não eram simples imagens em movimento, não eram a novidade tecnológica por si mesma para arrebatar o público pelo ineditismo, mas muito mais que isso, um processo delicado de dramatização, rico em cenários, figurinos, edições, efeitos especiais, enfim, rico em fantasia.
Assim, não é irrelevante que o homem fosse um ilusionista, afinal, o que Méliès fazia era cinema de primeira, justamente por sua mágica, por seu poder de encantamento. Por mais que o cinema também deva servir de crítica à realidade, a pretensão de um cinema enquanto espelho desta realidade é irrealizável: Toda representação trai a si mesma quanto pretende ser o próprio objeto representado. No mais, a esterilidade da vida nos faz desejar algo além, seja uma viagem à lua, uma pantomima ou mágica qualquer, que possa, por 16 minutos ao menos, fazer-nos esquecer do mundo cruel e desordenado que há do lado de fora da sala escura. E lá estava Méliès realizando o grande truque do cinema: Permitir-nos, por alguns instantes, sonhar acordados.
“Oh, admirável mundo novo... Que encerra criaturas tais!”
Trabalho fascinante se considerando que deveria ser "apenas" a amostra de potência do hardware de um console. Com atenção suficiente, é fácil perceber que a “brincadeira” vai muito além de Asimov. Ou melhor, partindo de Asimov, chega mais longe do que se poderia esperar.
A mercadoria-objeto que é apresentada e que não deveria pensar, que não deveria sentir, existe de fato em nossa sociedade, sufocada ideológica e socialmente, disfarçada de mulher. A priori a metáfora é facilmente aplicável à condição feminina, com seus inúmeros estragos causados pela longa dominação masculina, ainda que uma interpretação mais ampla, nas entrelinhas, possa fazer o espectador imaginar o que mais um mundo desses pode objetificar e vender, o que mais pode ser coisificado e reduzido. A resposta é simples e estarrecedora: Quase tudo.
Mas devo reiterar, o argumento é ainda mais poderoso para descrever a situação das mulheres. Nas funções da androide os paralelos são óbvios. A mulher é ativa em casa – ainda há muita recusa masculina em lidar com o serviço doméstico -, ao mesmo tempo em que é ativa nas funções que desempenha no mundo do trabalho, e é também ao fim do dia, um sujeito sexual. Tudo facilmente esvaziado de valor. A função em casa recebe menosprezo e ainda é tomada por obrigação de seu gênero. O mundo do trabalho abre espaço, mas nega respeito e verdadeira igualdade – os avanços de décadas na área ainda se mostram insuficientes, ainda encontram resistência -. A sexualidade com frequência não é sua: É realização do outro. É ferramenta de quem sempre deu as regras.
Talvez seja ao reconhecer sua situação ainda pouco privilegiada que advém o desespero. “Talvez se eu agir como querem, eu sobreviva”. Funciona por um tempo. Talvez funcione dentro de casa. O paliativo funcionará do lado de fora? Se sim, por quanto tempo?
E assim, até certo ponto, vivemos todos. Mal nascemos e somos impostos ao meio, à família, às convenções, e todos estes aspectos preestabelecidos no qual emergimos vão nos influenciar por toda a vida; para o bem ou para o mal. E é assim que podemos ser mortos simbolicamente, mesmo tendo acabado de nascer – a família desestruturada, a classe social sem perspectivas, sabemos bem: São as mortes mais comuns -. Podemos igualmente ser “poupados” para o mundo cruel que nos vê como números, como entidades uniformes destituídas de valor subjetivo.
A verdade é que esse “admirável mundo novo” que já foi ficção científica é tão nosso e já há tanto tempo, que é velho... E assusta.
Incrível como um filme de mais de cem anos atrás pode ser melhor e mais fiel do que qualquer outra adaptação que eu tenha visto de Alice - Sobretudo quando se pensa que o cinema mal tendo sido parturejado iniciava os anos de “engatinhamento”. Não posso deixar de observar que a utilização de um simples gato para representar o famoso Gato de Chesire funciona mil vezes melhor do que a artificialidade insuportável do gato nada carismático da versão de Burton ou o exagero psicótico em cores fantasia do desenho da Disgay. Em alguns momentos, como na Tea-party, é possível ver as ilustrações de John Tenniel ganhar vida, mérito que com mais recursos à disposição e em um cinema mais desenvolvido, outros não tiveram.
Feeling Through
3.8 55 Assista AgoraA trilha sonora é bem manipulativa e de vez em quando perde o tom para tentar modular a emoção do público. Mesmo assim, a mensagem é bonita e muito válida. Imagine só não poder ver, nem escutar nada! Detalhe: o ator que interpreta Artie é de fato cego e surdo - o primeiro com as duas condições na história do cinema.
Viagem à Lua
4.4 858 Assista AgoraNeste último domingo tive o prazer inenarrável e único de assistir a este filme em uma sala de cinema e verdade seja dita: A tela grande torna patente a magia de que Méliès era capaz. Seria covardia comparar esta experiência às vezes em que o curta foi assistido na tela de um computador ou mesmo em uma televisão. Todos os detalhes saltam aos olhos, que de fato, e sinceramente, brilham com o resultado. A pintura feita à mão, por exemplo, dá ideia não só do carinho do realizador por esta arte, mas faz ressaltar como nunca o imagético fantástico e onírico que marcava os filmes do diretor.
A trilha sonora composta pela banda AIR em 2012 faz com que a magia de Méliès seja renovada, como se o filme esperasse por uma trilha sonora tão arrojada quanto suas imagens. Tendo visto outras versões do filme me pareceu bem evidente que as músicas do duo – eletrônicas ainda que retrôs e ricas em sintetizadores - em sua forma e estilo casam-se muito melhor com a contemporaneidade absoluta do diretor francês do que qualquer música de época. É redundante, mas impossível, não atestar o quão moderno Méliès era.
Outro aspecto incrível trazido pelo AIR é como parte de sua composição adota o papel de sonoplastia para os acontecimentos que se desenrolam na tela.
Embora eu não possa menosprezar a importância que tiveram os irmãos Lumière - e mesmo Thomas Edison - no desenvolvimento da aparelhagem cinematográfica, creio que estas figuras tenham inventado muito mais à filmagem e toda sua mecânica do que o cinema tal qual o conhecemos. Pois muito embora os Lumière inaugurassem o modo de apresentação cinematográfico, coletivo e em tela grande, é apenas com Méliès que o objeto de exibição pode inegavelmente ser chamado de cinema, visto que fugimos ao prosaico e banal nas pequenas histórias que assistimos. O que este cineasta pioneiro criava não eram simples imagens em movimento, não eram a novidade tecnológica por si mesma para arrebatar o público pelo ineditismo, mas muito mais que isso, um processo delicado de dramatização, rico em cenários, figurinos, edições, efeitos especiais, enfim, rico em fantasia.
Assim, não é irrelevante que o homem fosse um ilusionista, afinal, o que Méliès fazia era cinema de primeira, justamente por sua mágica, por seu poder de encantamento. Por mais que o cinema também deva servir de crítica à realidade, a pretensão de um cinema enquanto espelho desta realidade é irrealizável: Toda representação trai a si mesma quanto pretende ser o próprio objeto representado. No mais, a esterilidade da vida nos faz desejar algo além, seja uma viagem à lua, uma pantomima ou mágica qualquer, que possa, por 16 minutos ao menos, fazer-nos esquecer do mundo cruel e desordenado que há do lado de fora da sala escura. E lá estava Méliès realizando o grande truque do cinema: Permitir-nos, por alguns instantes, sonhar acordados.
Kara
4.3 83“Oh, admirável mundo novo... Que encerra criaturas tais!”
Trabalho fascinante se considerando que deveria ser "apenas" a amostra de potência do hardware de um console. Com atenção suficiente, é fácil perceber que a “brincadeira” vai muito além de Asimov. Ou melhor, partindo de Asimov, chega mais longe do que se poderia esperar.
A mercadoria-objeto que é apresentada e que não deveria pensar, que não deveria sentir, existe de fato em nossa sociedade, sufocada ideológica e socialmente, disfarçada de mulher. A priori a metáfora é facilmente aplicável à condição feminina, com seus inúmeros estragos causados pela longa dominação masculina, ainda que uma interpretação mais ampla, nas entrelinhas, possa fazer o espectador imaginar o que mais um mundo desses pode objetificar e vender, o que mais pode ser coisificado e reduzido.
A resposta é simples e estarrecedora: Quase tudo.
Mas devo reiterar, o argumento é ainda mais poderoso para descrever a situação das mulheres. Nas funções da androide os paralelos são óbvios. A mulher é ativa em casa – ainda há muita recusa masculina em lidar com o serviço doméstico -, ao mesmo tempo em que é ativa nas funções que desempenha no mundo do trabalho, e é também ao fim do dia, um sujeito sexual.
Tudo facilmente esvaziado de valor. A função em casa recebe menosprezo e ainda é tomada por obrigação de seu gênero. O mundo do trabalho abre espaço, mas nega respeito e verdadeira igualdade – os avanços de décadas na área ainda se mostram insuficientes, ainda encontram resistência -. A sexualidade com frequência não é sua: É realização do outro. É ferramenta de quem sempre deu as regras.
Talvez seja ao reconhecer sua situação ainda pouco privilegiada que advém o desespero. “Talvez se eu agir como querem, eu sobreviva”. Funciona por um tempo. Talvez funcione dentro de casa. O paliativo funcionará do lado de fora? Se sim, por quanto tempo?
E assim, até certo ponto, vivemos todos. Mal nascemos e somos impostos ao meio, à família, às convenções, e todos estes aspectos preestabelecidos no qual emergimos vão nos influenciar por toda a vida; para o bem ou para o mal. E é assim que podemos ser mortos simbolicamente, mesmo tendo acabado de nascer – a família desestruturada, a classe social sem perspectivas, sabemos bem: São as mortes mais comuns -. Podemos igualmente ser “poupados” para o mundo cruel que nos vê como números, como entidades uniformes destituídas de valor subjetivo.
A verdade é que esse “admirável mundo novo” que já foi ficção científica é tão nosso e já há tanto tempo, que é velho... E assusta.
Alice no País das Maravilhas
3.8 112Incrível como um filme de mais de cem anos atrás pode ser melhor e mais fiel do que qualquer outra adaptação que eu tenha visto de Alice - Sobretudo quando se pensa que o cinema mal tendo sido parturejado iniciava os anos de “engatinhamento”. Não posso deixar de observar que a utilização de um simples gato para representar o famoso Gato de Chesire funciona mil vezes melhor do que a artificialidade insuportável do gato nada carismático da versão de Burton ou o exagero psicótico em cores fantasia do desenho da Disgay. Em alguns momentos, como na Tea-party, é possível ver as ilustrações de John Tenniel ganhar vida, mérito que com mais recursos à disposição e em um cinema mais desenvolvido, outros não tiveram.