Quantas gerações cresceram com a obra de Maurício de Sousa? Só na minha casa há gibis em cruzado, cruzeiro e real. Uma coleção onde estão almanacões de férias, especiais do parque da Mônica e edições que perderam a capa de tanto que foram lidas. A verdade é que a turminha do Limoeiro faz parte da minha história, assim como da maioria dos brasileiros. Maurício é uma jóia nacional, e o mesmo pode ser afirmado sobre o diretor de Turma da Mônica – Laços, Daniel Rezende.
Autor do ótimo Bingo, ele foi também editor de Cidade de Deus e A árvore da vida. Um raro talento que demonstra como é possível criar filmes nacionais bem realizados nos aspectos técnicos e estéticos. É nesta adaptação da graphic novel homônima que ele comprova de vez a sua habilidade. O diretor movimenta a câmera de forma bastante dinâmica e elabora composições de uma beleza plástica digna de pintura.
Os trabalhos de fotografia e direção de arte são igualmente primorosos. O primeiro, cheio de contraluz e tons dourados, em uma eterna tarde de diversão que poderia fazer parte da infância de qualquer brasileiro. Já o segundo, aposta nas cores primárias a fim de traduzir para o real o lúdico colorido dos quadrinhos. Além disto, a caracterização de mundo e personagens é a adaptação mais perfeita dos gibis que poderia ser alcançada.
É claro que nada disto funcionaria se o elenco não fosse muito bem escolhido. As crianças encarnam impecavelmente os personagens clássicos, seja visualmente ou nas particularidades que cada um possui. O filme conta ainda com easter eggs para fã nenhum botar defeito e uma participação absolutamente icônica de Rodrigo Santoro como o Louco.
Todos estes elogios significam que Turma da Mônica – Laços é perfeito? Claro que não. É verdade que Daniel Rezende não fez a edição do filme, mas por ironia, é este um dos seus pontos fracos. Na primeira metade a montagem é bastante apressada. A partir do ato que se inicia na cena da encruzilhada, no entanto, as cenas ficam mais longas do que precisavam. Este receio de cortar acabou prejudicando o ritmo do filme.
Já o roteiro, embora apresente atos bem delineados, é pouco consistente. Provavelmente o efeito de Rezende não ter dado às crianças o material para ler. O excesso de improviso impede que os diálogos sirvam para desenvolver melhor os personagens e avançar a trama de modo coeso. A trilha sonora de Fabio Góes é outro ponto fraco.
Ainda que bem mixada e com arranjos bonitos, ela acaba soando mais óbvia do que deveria, telegrafando demais os acontecimentos da narrativa. São fatores que prejudicam o filme a ponto de diminuir a sua qualidade? Apenas para o monstrinho da crítica que habita em alguns de nós. Há suficientes acertos na obra para que relevemos estes pequenos problemas.
Afinal, o resultado é visualmente belo, tecnicamente caprichado e notadamente esforçado. A proximidade visual com a graphic novel Laços, aliás, é muito grande. Daniel Rezende e toda a equipe fizeram um belo trabalho e criaram uma pequena gema preciosa do cinema nacional.
Mais do que isto: é um frescor de ingenuidade e pureza em um mundo cada vez mais cínico dentro e fora das telas. Não há nada mais a dizer além de “palabéns” aos envolvidos em Turma da Mônica – Laços.
De tempos em tempos algum picaretão desponta no cinema. Graças a uma estratégia de marketing esperta, e um ou outro filme mediano, o sujeito ganha a idolatria do público. É o que aconteceu com Lars Von Trier, e agora se repete com Luca Guadagnino. Anteriormente o irrelevante e misógino “100 escovadas antes de dormir” era seu único filme conhecido. Portanto, há 3 anos o siciliano era ninguém.
Com Me Chame Pelo Seu Nome o diretor finalmente acertou a mão e criou algo digno de elogio. Ainda que o resultado tenha sido um longa honesto, porém mediano. O problema aqui começa na fidelização que o italiano conseguiu do famigerado pink money. Assim como certos “artistas” brasileiros duvidosos, ele não demorou para se aproveitar da situação.
Primeiro, com as sequências desnecessárias que planeja para o seu único filme de sucesso. Agora, com este remake. Resumidamente: o Suspiria de Gudagnino é uma barafunda pretensa com pouquíssimos momentos de inspiração. Uma pincelada de imagens-pulsão que não fazem mais do que retomar fetiches do diretor. É uma obra feita sobre medida para quem tem preguiça de filmes com mais de 5 anos de idade. E também cai como uma luva para aqueles que querem manter a imagem de Cult no café da manhã.
A contextualização histórica e tentativa de aprofundamento dos temas abordados na narrativa é risível e absurdamente superficial. Não passa de um aceno ao ego do diretor. E a coisa fica pior. Ao contrário do que a maioria acredita, este filme dá indícios consistentes de ser uma fábula antifeminista. O longa quase não fala verdadeiramente sobre arte ou competição pelo sucesso. O argumento implícito é muito mais sobre como grupos de mulheres que buscam autoridade são hipócritas e autodestrutivos.
Tecnicamente a única coisa digna de elogio é a maravilhosa trilha sonora de Tom Yorke. A montagem do filme acerta quando ocorre em uníssono com a música. Sem este recurso, no entanto, soa deslocada em muitas sequências. Como a abertura que se passa no consultório do psiquiatra. Esteticamente o filme é pobre, até mesmo preguiçoso, e não lembra em nada a vibrância do original.
Na fotografia o uso de película em lugar do digital não é valorizado pela cinematografia monótona. E mesmo empregando ISO 1000 em algumas sequências, aqui e ali encontramos cenas que parecem filmadas com a sensibilidade errada. Ou seja, há muita sombra e mescla de tons acinzentados, o que leva à perda de definição nos detalhes. Tampouco os zooms repentinos - clichê do cinema setentista que se tenta reproduzir - combinam com a sobriedade exacerbada com que se conta a história. No mais, o uso de dioptros poderia ser mais bem explorado.
Já nas cenas onde a taxa de frames é alterada para algo diferente dos tradicionais 24 quadros por segundo, parece que assistimos a um dos capítulos da franquia Sharknado. E pensando bem, ainda que um pouco disfarçados, os efeitos especiais também são equivalentes aos filmes-pérola da SyFy.
Difícil de entender já que o trabalho de efeitos práticos exibia qualidade razoável em outros momentos. O final é paradoxalmente o melhor e o pior do filme. Por um lado, é a única parte original e expressiva, por outro, é executado de forma tosca, quase cômica.
O veredito é simples: como bom picareta que é, Guadagnino vai sugar até a última gota seminal do que restar nesta autofelação que ele chama de cinema. Uma sequência para este desastre que ele ousou chamar de Suspiria? Entrando dinheiro no caixa, é claro que sim. Me chame pelo seu nome 7 –Elio renascido do inferno? Por que não?
Os limites não existem enquanto houver quem endosse o vigarista. Em termos de marketing é genial – um mercado estabelecido e pronto para consumir mercadorias-fetiche de baixa qualidade. Supreme está fazendo escola no cinema. Até quando vai ser assim? Quem sabe uma intoxicação fatal alerte a defesa sanitária, ou o público incauto, quanto ao perigo destes produtos e mude a situação. Ou talvez Luca decida fazer outro filme honesto e se desfazer da picaretice.
Apesar do cabeça-de-teia ser um dos meus heróis favoritos da infância, confesso que não dava nada por este filme. O trailer de "Homem Aranha: no Aranhaverso" parecia apresentar uma animação visualmente bonita, original e divertida, mas nada especial. Hoje, depois de assistir, posso dizer: como é bom estar errado! O longa é uma bonita homenagem ao herói e aos quadrinhos que lhe dão origem.
A abertura com retículas de impressão no título já dá o tom do carinho visual com que a animação será trabalhada. Os pontinhos permanecem durante todo o longa e são acompanhados de tracejados que lembram a arte-final em nanquim. Há inserção de caixas de pensamento e até planos de detalhe em quadros isolados, como os de um quadrinho. Em alguns momentos vemos até mesmo onomatopeias.
Outro recurso emprestado da arte sequencial são as divisões de tela em duas ou mais partes. As inspirações contam ainda com os games atuais do Aranha, assim como títulos que empregam a técnica do Cel Shading. Praticamente não há limites para a estilização e dinamismo da animação. O que percebemos nos movimentos de câmera e distorções de perspectiva. O resultado é uma obra altamente imersiva e pop.
Referências para os mais aficionados em quadrinhos não faltam: há menção aos filmes de Sam Raimi; um homem aranha loiro que lembra Ben Reilly, o clone de Parker; temos o Rei do crime gigantesco e estilizado como na arte de Bill Sienkiewicz em “Demolidor: Amor & Ódio”; Uma ponta do Aranha 2099 e até mesmo a memística série (des)animada dos anos 60.
Narrativamente é uma história de origem redonda e que faz tudo certo. A diferença é que ela sai um pouco da curva com que o público se acostumou neste tipo de conto. Há também uma variação da jornada do herói. Aqui será um Parker cansado, meio fora de forma e mais velho, que servirá como mentor do protagonista. E este é ninguém menos que Miles Morales, fazendo uma bela estreia cinematográfica e acentuando a importância da representatividade.
O que o filme regata em seu argumento ao lembrar que, afinal, “qualquer um pode vestir a máscara”. Palavras ditas por Stan Lee em um belo Cameo. E nesta participação acaba por soltar outra frase muito simbólica: “ele vai fazer falta”.
Uma referência ao Parker que havia morrido naquela realidade, mas que transcende o seu objetivo imediato na trama: é do próprio Lee que sentiremos saudade.
Destaque mais uma vez para a nossa dublagem brasileira. Além de mostrar por que é uma das melhores do mundo, o estúdio fez uma bela localização do original. Neste tocante encontramos mais uma porção de pequenas referências, como Manolo Rey nos fazendo lembrar do herói interpretado por Tobey Maguire.
Igualmente maravilhosas são trilha sonora e canção original, injustiçadas por não terem ganhado indicações ao Oscar. Poderiam ocupar facilmente o lugar de Mary Poppins e Beale Street. Até Ilha de Cachorros deveria abrir espaço. Alexandre Desplat é sempre competente, e seus arranjos para a música do longa de Wes Anderson são originais. O resultado, contudo, é relativamente blasé. Em termos de canção original era fácil deixar Buster Scrugs de lado.
Seja como for, Homem Aranha no Aranhaverso é uma verdadeira obra de arte visual. Um trabalho apaixonante que mescla linguagens de diferentes mídias com perfeição. É não só a melhor animação a concorrer ao Oscar deste ano, como também o melhor filme já realizado do Aranha.
A Star is Born é uma história amada por Hollywood e importada diretamente da Broadway. O musical tem na versão de 54, estrelada por Judy Garland, a sua encarnação mais bem-sucedida.
Comparativamente, a repaginação de 2018 é muito mais próxima da versão lançada nos anos 70. Gaga tem até alguma semelhança com a jovem Barbra Streisand. Outra similaridade entre os dois longas é a dose sobeja de cafonice que trazem – ainda que dê para ignorar um pouco este fato.
O maior risco que se corria tendo Germanotta como protagonista era que de Nasce Uma Estrela ficasse só o nome. E por muito pouco não poderiam lançar a obra simplesmente como “Lady Gaga – O filme”. Pelo menos disfarçaria um pouco as limitações da popstar enquanto atriz. Outro risco para os produtores era que o lançamento fosse confundido com uma sequência de Hannah Montana (2009). Só que desta vez, sem Miley Cyrus.
Brincadeiras à parte, o filme não é nem de longe ruim. Bradley Cooper soube imprimir uma direção que transita entre o dinâmico e o intimista. O uso de lentes anamórficas foi uma boa escolha para a cinematografia. Embora com um ou outro atropelo narrativo, o filme conta sua história de forma bem coesa.
É importante falar aqui da preferência por não exibir a cena de suicídio de Jackson. Uma decisão bastante acertada de direção e roteiro. Afinal, este é um assunto delicado e que não deve ser retratado de forma gráfica e (ou) glamourizada.
Já na atuação, Cooper está muito bem em seu papel, sendo a versão menos tóxica do personagem até hoje. É possível sentir que há um problema real por trás de suas atitudes. Sam Elliot também arrasa, dizendo muito apenas com o olhar. E quanto à interprete de Ally? Não se pode negar a capacidade de Lady Gaga enquanto cantora, mas no quesito atriz ela se mostra apenas funcional.
Ou seja, não prejudica o filme, mas também não o eleva. Aliás, mesmo como cantora é preciso registrar um parêntese. Em diversas músicas do longa ela parece buscar apenas uma oportunidade para mostrar sua potência vocal e tessitura. Que são, de fato, invejáveis, mas configuram-se como atributos técnicos apenas. Justamente por isso as cenas com o Bradley Cooper nos vocais acabaram me parecendo muito mais interessantes.
E isso porque Gaga executa as suas peças como um assassino profissional. Muito competente, mas emocionalmente distante daquilo que faz. Não é preciso ser especialista para notar o controle meticuloso que ela mantém em cada cena onde solta a voz. Basta comparar com a entrega total de Judy Garland na versão mais famosa para entender o que faltou. É até mesmo difícil ter empatia com a protagonista desta atualização.
Por estes detalhes é de mau tom a indicação de Gaga ao Oscar de melhor atriz. Ainda que exista justiça na nomeação de Cooper e da canção Shallow. Mesmo que esta última, embora boa, seja feita sob medida para abocanhar o prêmio.
Grande crítica à indústria fonográfica, o fato é que esta versão de Nasce Uma Estrela não é um filme memorável. Provavelmente servirá para colocar um Oscar de canção nas mãos de Lady Gaga e ouriçar ainda mais os Little Monsters. Para a história maior do cinema, não fará diferença.
Com Infiltrado na Klan Spike Lee recupera aquilo que transformou Faça a Coisa Certa (1989) em um clássico instantâneo. Administrando seu humor subversivo ele conquista o espectador ao mesmo tempo em que escancara os absurdos da questão racial norte-americana. O início farsesco com o panfleto do Dr. Kennebrew Beauregard (Alec Baldwin) sendo gravado dá o tom do longa que vai se seguir.
Estarrecedor é notar como o discurso revisionista e preconceituoso da introdução é real. No Brasil encontramos excelentes paralelos se mudarmos apenas alguns termos. Em ambos os casos ficam patentes as artimanhas repetitivas presentes na retórica da extrema-direita. Grupo este que tem no comunismo argumento teleológico favorito na hora de justificar todos os seus excessos.
A narrativa de BlacKkKlansman, que trata de uma história inacreditável, mas verídica, é muito bem conduzida pelo diretor. O próprio investimento no humor serve de reconhecimento do absurdo que envolve o caso. Lee sabe aliar como ninguém o potencial de entretenimento de um filme ao seu valor crítico.
Assim alimenta esta que é a grande força do cinema: divertir e fazer pensar ao mesmo tempo, desarmando os espectadores. Trabalho que também pode ser feito para o mal, como atesta O Nascimento de Uma Nação (1915). Nada menos do que a obra que ajudou a ressuscitar a KKK.
Basta nos lembrarmos do relato de linchamento, tortura e assassinato de Jesse Washington para entendermos o poder desta influência. Com toda a sua inimaginável brutalidade é um caso 100% verídico. O fato estarrecedor: a obra de D.W. Griffith havia estourado nos cinemas americanos apenas um ano antes.
Inclusive, na sequência em que se menciona o caso o uso da montagem paralela é recurso que surge para potencializar as mensagens do filme. Pois ao mesmo tempo em que conhecemos os detalhes mórbidos do trágico destino de Washington ocorre a cerimônia da Klan.
Daquele aparente encontro de “cavalheiros” brancos exercendo a sua liberdade de reunião nasce a semente do ódio. O mesmo que culmina no linchamento e castração do negro. Vistos superficialmente, os supremacistas podem até ser um grupo cômico de néscios preconceituosos. Mas reunidos em grande número, e com a propagação de suas ideias, qualquer graça dá lugar à barbárie. É por isso que devemos tratá-los como o risco que realmente são.
Na direção Spike Lee mostra o domínio que tem do ofício, mantendo seu estilo dinâmico e pop. Notamos o seu talento na forma como não banaliza recursos como a câmera na mão – empregada apenas em sequências de verdadeira tensão e correria. O mesmo ocorre nos ângulos escolhidos. Como o zenital que enquadra o telefone de Ron Stallworth na delegacia em um momento particular da trama.
É quando ele recebe a primeira ligação da célula local da Klan. Uma surpresa desorientadora – reforçada cinematograficamente pela escolha do ângulo alto. O mesmo é válido para movimentos de câmera e outros recursos expressivos do longa. O diretor em diversos momentos deixa que as imagens falem por si mesmas. Exemplo disso é a sequência em que Stallworth vai investigar um terreno utilizado pelos supremacistas para a prática de tiro.
Por um bom tempo não vemos o contra-plano, ou seja, aquilo em que o grupo atirava. Enquanto acompanhamos o policial sua expressão e a música de fundo ajudam a criar expectativa pelo que virá.
A junção do trabalho de Lee e do compositor Terence Blachard culmina com a revelação dos alvos: silhuetas de crianças negras.
O plano geral com as formas alvejadas perdura como um golpe reverberando no espectador.
Outro exemplo de domínio narrativo: os personagens que deslizam por um corredor ao final da película. A sequência pode simbolizar um sonho ou um trato mais conceitual do assunto do longa. Na segunda hipótese Lee apontaria para uma das mensagens principais de seu filme: o racismo assassino não é coisa do passado. Ele ainda segue intenso e perigoso nos dias de hoje.
A ideia é reforçada pela inserção de cenas reais de protestos e confrontos. É onde se opera também a grande ironia da realidade.
Pois enquanto os supremacistas dizem que “vidas brancas também importam” o carro que passa por cima de manifestantes acaba por vitimar uma mulher branca
. Um cruel acaso.
É importante não deixar passar a lição: o ódio é seletivo. Não obstante, os seus efeitos perniciosos adoecem e vitimam toda a sociedade. Ao escolher encerrar seu filme com o silêncio, Spike Lee nos convida a pensar e sentir o assunto profundamente. Compele-nos igualmente a lamentar a forma covarde como vidas são ceifadas pelos motivos mais injustificáveis.
Se a bandeira americana surge invertida ao final, é porque os valores de igualdade e liberdade não são respeitados. Se ela perde as cores, é porque também o sonho que deveria representar morre com a inversão. O luto que surge é pelo sangue negro derramado, e também pela humanidade perdida e afogada neste contínuo mar de ódio.
*Nota: Por esta contundente experiência, Infiltrado na Klan deve ser lembrado no próximo Oscar por direção, roteiro adaptado, montagem e trilha sonora. Além de disputar a categoria de melhor filme. Tem a minha torcida.
Não comparar “Mogli – Entre dois mundos” com seu recente antecessor é difícil – mas vale o esforço de boa-vontade do espectador. É verdade que a computação gráfica aqui fica atrás daquela vista no filme de John Favreau. O que não é demérito. A obra da Disney, com 177 milhões de orçamento – quase o dobro desta versão –, possui um trabalho excepcional de CGI.
Para muitos críticos o longa estabeleceu “um novo padrão” a seguir. Nada mais natural quando levamos em conta o supervisor por trás deste trabalho: Adam Valdez. Duplamente agraciado no Oscar pelo segundo e terceiro capítulos da saga O Senhor dos Anéis – outro marco dos efeitos especiais.
Pesando estes fatores, não é difícil relevar o que vemos aqui em nome da história. Ainda assim é importante registrar que a antropomorfização facial dos animais foi uma escolha pouco feliz da produção. Onde encontramos um bom trabalho é no desenvolvimento do conto.
Narrativamente há maior peso dramático na forma como a história é apresentada. Vemos como a lei da selva pode ser brutal, mas nunca tão cruel quanto a ação humana. O que é exemplificado em algumas cenas-chave. Este rumo menos otimista adotado pela história é mais próximo da obra original de Rudyard Kipling.
Inclusive o urso Baloo, que incomodou muitos espectadores nesta versão, nunca foi o bonachão vida mansa da Disney. No original tratava-se de um personagem rude, mal-humorado e um tanto cruel na tutoria de Mogli. Já o trabalho de vozes aqui é tão bom quanto no longa anterior, algo esperado uma vez que o elenco tem o mesmo calibre.
O problema maior está na imersão e carga emocional do filme. Não há dúvida de que o método Disney de contar histórias foi lapidado por muitas gerações. Fator que dificulta a vida desta versão. Além disso, o peso da nostalgia e a ligação afetiva que o outro longa estabelece com a animação de 1967 desarma o público. Não obstante, são duas versões válidas e exitosas na forma de representar esta obra clássica.
Com toda desvantagem aparente, o Mogli de Andy Serkis é um filme bastante razoável. Se perde em algo para o antecessor mais hypeado, não é por insuficiência própria. É por isso que acredito sinceramente que moderando um pouco as comparações podemos apreciá-lo melhor. Siga o conselho e dê uma chance ao longa. Você vai notar que a história do menino-lobo continua bem representada.
A esta altura Joe Wright já se provou um diretor competente na condução de dramas históricos. Com a adaptação de Orgulho & Preconceito, uma das melhores adaptações literárias de todos os tempos, e o ótimo Desejo & Reparação no currículo, a temática de época parece ser um dos pontos fortes do britânico.
E percebemos mais uma vez o talento de Wright para o ofício nos inventivos planos adotados pelo diretor neste seu mais novo trabalho. A forma como somos introduzidos ao parlamento britânico é não só imersiva, mas evoca representações da casa dos comuns na pintura. De Henry Barraud a George Hayter, há um senso pictórico evocativo da tradição britânica em quadros.
É ainda mais interessante como o trabalho do cinematografista Bruno Delbonnel se embebe em sombras, apresentando a versão cinematográfica do que seria um Rembrant dessaturado, por vezes lembrando também fotografias de época. O uso naturalista de contraluz enriquece as sombras da composição e se torna uma confirmação visual da mensagem contida no título original do filme – darkest hour ou a hora mais escura.
Delbonnel, que é mais conhecido por seu trabalho colorido em Amelie Poulain, parece ter dominado o estilo denso e carregado que começou a desenvolver em Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Já que aqui, em minha opinião, os efeitos da fotografia são muito mais satisfatórios e narrativamente eficazes.
Sobre a interpretação de Gary Oldman muito já foi dito, e só cabe confirmar o apurado trabalho de caracterização vocal e gestual do ator veterano. Auxiliado pelo excelente trabalho de prótese e maquiagem, aqui e acolá quase somos enganados de que aquele é de fato Winston Churchill.
Mas aqui começamos as ressalvas, já que o filme não apresenta uma visão suficientemente crítica sobre a figura histórica. É inegável sua importância na sobrevivência britânica durante a segunda guerra mundial, mas faltaram críticas onde sobraram elogios, mesmo que subentendidos. A sequência que se passa entre Churchill e o “povo” no metrô, é além de populista, emocional e ideologicamente manipulativa a um nível canhestro.
Churchill era o típico canalha carismático, o que não pode nos fazer esquecer que era também figura conservadora, venenosa e defensor de uma política agressiva. É um erro não apenas do filme, mas histórico, já que pouco se fala, por exemplo, do sucessor de Churchil, Clement Attlee, figura conciliadora e que criou o estado de bem-estar social britânico – posteriormente destruído por Margaret Thatcher.
No plano propriamente narrativo, não dá para negar que o resultado do filme é excessivamente morno, sem passar ao espectador a urgência e o peso do momento histórico retratado. A sensação densa e claustrofóbica criada por direção e fotografia não se reflete na história apresentada. Talvez a exceção a isto seja a cena visualmente ressonante do discurso de Churchill ao rádio.
Não é o trabalho mais inspirado de Joe Wright, nem o melhor drama político ou histórico que já foi produzido para o cinema. A verdade, é que embora O Destino de uma nação não seja um filme propriamente ruim, o provável é que seja lembrado pela posteridade como o filme que finalmente deu o Oscar a Gary Oldman. E mais nada.
Que a literatura, assim como a filmografia de monstros é um grande ensaio sobre preconceito e imperfeição, todos sabemos bem. Além disto, com frequência estes filmes nos mostram como o temor pela diferença e pelo desconhecido sempre move a sociedade em direção à covardia e à barbárie. Por estas razões, a habilidade que Guillermo Del Toro tem para nos trazer um filme do gênero com as liberdades e técnicas do cinema moderno, é algo que merece ser elogiado e ressaltado.
A Forma da Água apresenta o clássico paradigma da criatura incompreendida, pronta para ser dissecada e explorada em nome da soberania nacional. O filme poderia praticamente ser classificado como uma continuação do clássico da Universal de 1954, O monstro da lagoa negra. Ambos apresentam uma criatura anfíbia vinda da América do sul, e que deve ter sua biologia estudada como forma de obter vantagens na corrida espacial da guerra fria. Também aqui, como lá, a criatura se apaixona pela mocinha do filme.
Mas é neste aspecto onde terminam as semelhanças. A começar pela escalação de Sally Hawkins, que não é exatamente uma “beldade” como o era Julie Adams nos anos 50 – o que nos dias de hoje não deixaria de ser inclusive -. É preciso também enfatizar: As mocinhas nos clássicos de monstro são anódinas, sexualmente reprimidas ou claramente assexuadas, existindo para despertar o desejo no espectador, nos homens da trama, assim como nas criaturas fílmicas e mais nada.
Aqui Del Toro restitui à sua protagonista o direito de possuir libido e sexualidade própria, subvertendo não apenas o clássico amor platônico entre musa e monstro, como o levando às últimas consequências imagináveis.
Guillermo acerta, portanto, em número e grau com sua protagonista, que não é o que se consideraria comumente entre o público como uma formosura. Personagem que é, além disto, muda e faxineira. Suas relações são igualmente desprestigiosas, afinal seus amigos são a companheira de trabalho negra e um ilustrador gay de meia idade que não encontra mais espaço na publicidade para a sua arte.
O diretor é muito coerente na escolha de seu núcleo de protagonistas. Não há aquele falso sentido de não pertencimento que contamina filmes que querem falar sobre excluídos, mas se recusam a representá-los por atores que não correspondam ao padrão hollywoodiano e midiático de beleza.
Sally Hawkings está ótima no papel de Elisa, marcado pela fisicalidade e pela comunicação feita primordialmente por gestos. Octavia Spencer, como sempre, abrilhanta o filme pelo simples fato de estar presente. Além de excelente atriz, a mulher é o carisma em pessoa. Doug Jones é provavelmente junto de Andy Serkis o ator mais competente que há para dar vida a criaturas.
Apesar de toda a qualidade deste elenco, é no antagonismo de Michael Shannon que se encontra o ponto nevrálgico deste longa. Por mais que muitos tenham considerado o vilão caricato – ironia, quando olho por aí e vejo pessoas e atitudes que não estão muito atrás -, não dá para negar a ótima atuação de Shannon. É patente em cada gesto do ator o quanto Strickland é fanático, preconceituoso e perturbado.
Michael Stuhlbarg está no seu segundo papel rouba-cena de 2016 aqui, e assim como em Call me by your name, sua presença em cena é marcada por sensibilidade e uma enorme capacidade de comunicar as intenções de seu personagem através do olhar.
A narrativa é bem básica, é verdade, mas não há em nenhum momento a intenção de criar uma trama complexa e elaborada por parte de Del Toro. Além disto, o tom fabulesco estabelecido desde o princípio alerta que este não é um filme onde se deva procurar cada correspondência lógica com a realidade. Importa mais ao autor desenvolver as mensagens que subjazem nas situações e relações travadas entre os personagens.
A forma da água é, acima de tudo, sobre o ódio à diferença, que pode se manifestar pelos motivos mais simples, como a cor da pele ou a orientação sexual, até chegarmos ao completamente incompreensível, a criatura, representante arquetípica do medo ao desconhecido per se, combustível de muitas das atrocidades que a humanidade perpetua contra si mesma.
Para além disto, a posição de Guillermo em termos de política é inequívoca: comunistas ou americanos, pouco importa, ambos estão dispostos a todo tipo de abusos se isto for militarmente favorável. A intelligentsia militar, por razões óbvias, é cega e faz ouvidos moucos ao sofrimento humano, aconteça este onde for. Consequentemente, se visto com atenção este filme definitivamente não é maniqueísta. Simplista talvez, maniqueísta jamais.
Em uma produção de Guillermo Del Toro já é de se esperar que a direção de arte seja um dos pontos altos. Assim como acontece com Wes Anderson, o design de produção é parte fundamental na criação da marcante identidade visual do diretor mexicano. Há uma estética aqui que conversa deveras com as histórias em quadrinhos, algo que se poderia imaginar facilmente desenhado por Mike Mignola, criador de Hellboy, ou pelo artista Dean Ormston da série Black Hammer da Dark Horse Comics.
A paleta de cores escolhida para A Forma da Água traz cores complementares, principalmente o verde azulado e tons alaranjados, mas há também variações do esquema com tríades e cores análogas. Todos os significados correntes destas cores estão presentes, e há analogias cromáticas entre as roupas de Elisa e a cor da criatura, ou entre seu estado de humor e sua vestimenta, que vai ganhando progressivos elementos em vermelho na medida em que desabrocha seu amor.
A direção, que apresenta o mundo através de travellings e outros movimentos de câmera, cria um mundo de movimento regular, como o fluxo e o refluxo das marés. É o subtema condutor do longa, a água, traduzido na forma como o diretor conduz seus planos. Não é para qualquer um, e foi esta habilidade que levou Guillermo ao devido reconhecimento pelo Globo de Ouro.
Há homenagens pontuais ao cinema antigo e um momento musical inspirado pela era de ouro do gênero, que é pura magia. Destaque também para os excertos na trilha sonora, que trazem até mesmo o sucesso Chica Chica Boom Chic de Carmen Miranda. Já a trilha original de Alexandre Desplat sabe evocar um senso de conto de fadas, a tal ponto, que seu tema introdutório me remeteu ao trabalho de John Williams em Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Em uma sociedade de normatividade, onde mesmo para ser estranho é necessária a validação do pertencimento aos estereótipos de um determinado grupo, Guillermo celebra o valor da real diferença com A Forma da Água. Embora no fundo, naquilo que é mais essencial e a despeito de todas nossas estranhezas, não sejamos tão diferentes assim uns dos outros.
Conhecido por seu trabalho um tanto discutível em Sete Psicopatas e um Shih Tzu, Martin McDonagh era considerado a aposta mais fraca do globo de ouro e ninguém imaginaria que seu filme azarão arrecadaria tantos prêmios, se tornando não só uma surpresa da noite, como despontando também como um possível candidato de peso para o Oscar.
O novo trabalho de McDonagh funciona, sobretudo, por unir direção sólida a um roteiro dramaticamente coeso, que por sua vez é sustentado por atuações multifacetadas e de peso. Há no filme, por exemplo, um plano-sequência envolvendo um personagem sendo arremessado por uma janela, que é maravilhosamente bem executado. E embora em dois momentos a escolha de ângulos variados aliada à montagem possa ter resultado em uma edição de continuidade confusa, não há demérito técnico que diminua o filme.
De certa forma, Três Anúncios é como um trabalho dos irmãos Cohen, desde que subtraída a acentuada tendência da dupla ao cinismo niilista. Não que aqui as doses de humor negro estejam ausentes, muito pelo contrário. Mas o grande mérito de McDonagh é que seu longa consegue ser politicamente incorreto sem abdicar de um forte senso crítico, que se mostra ao mesmo tempo atual, necessário e afiado.
Exemplo disto é o diálogo entre os personagens de Sam Rockwell e Frances McDormand, em que se inicia uma discussão sobre ela ter usado a palavra crioulos, enquanto o policial preconceituoso sustenta que agora ela deveria dizer “pessoas de cor”. A terminologia aqui é absolutamente irrelevante: é o fato de estas pessoas serem torturadas gratuita e covardemente pelo policial que realmente importa.
Há inúmeros exemplos que ilustram as críticas do longa ao conservadorismo interiorano americano, que termina por ser a face potencializada de muitos defeitos compartilhados pelo país. Não que Três Anúncios se renda aos estereótipos fáceis. Nossa primeira acolhida dos personagens pode parecer caminhar por este território, mas a aparente obviedade daquelas pessoas vai sendo paulatinamente expandida para uma quadro mais complexo ao longo do filme.
Mildred Hayes, interpretada pela vencedora do Globo de ouro Frances McDormand, é um personagem complexo, cuja autoridade deriva não somente de sua enorme perda, mas igualmente do remorso que carregava pelos últimos momentos partilhados com sua filha assassinada.
Na sequência em questão, a discussão entre mãe e filha termina com ambas pronunciando o impronunciável, que evidentemente, nenhuma das duas teria o poder de prever que viria a se concretizar. O que importa, e é levantado aqui pelo filme, é quão terrível seria se as últimas memórias que guardamos de pessoas queridas fossem marcadas pelo conflito e por dizermos aquilo que jamais deveria ser dito. É um filme que fala sobre como esta culpa nos modificaria e consumiria posteriormente.
Em uma espécie de contraponto a isto está o suicídio do xerife Willoughby, que embora tomando uma atitude extrema para poupar a família de presenciar a deterioração de sua saúde até o irremediável fim, faz de tudo para garantir que os derradeiros momentos passados entre seus entes queridos possam render uma última lembrança de alegria e descontração.
É claro que o personagem de Woody Harrelson, que se estabelece como um sujeito de bom coração e devotado a família, é por outro lado um policial incompetente, e excessivamente complacente com os desvios de conduta cometidos pelo oficial Jason Dixon, personagem de Sam Rockwell. Este último é por sua vez exposto como o pior exemplo possível de um pensamento odioso que se traduz em ações ainda mais odiosas, em uma clara alusão à violência policial americana, tema cada dia mais relevante no país.
Com este tabuleiro armado, é de se pensar que McDonagh elabore um filme com vilões claros e soluções fáceis, mas aqui acontece justamente o contrário, todos os personagens são complexos e de alguma forma condenáveis. O que não impede que cada um destes possa protagonizar também um gesto de decência para com o próximo.
Como faz o xerife, ao pagar pelo anúncio de Mildred. Ou o personagem de Peter Dinklage ao criar um álibi para Mildred, impedindo que esta fosse acusada de incendiar a delegacia, mesmo em face do fato de que esta, correta em muita de suas colocações, se equivoca ao não ver o anão como o ser humano que este é, mas apenas como uma piada.
Nestas desconstruções de persona, o desenvolvimento do policial Jason Dixon é o mais surpreendente, pois a mensagem subjacente é também a mais tocante: Por vezes o que nos impede de sermos pessoas melhores é a ausência de palavras de incentivo bem colocadas, e no momento certo de nossas vidas.
São estas palavras de incentivo, que surgem da carta póstuma do Xerife Willoughby, que fazem com que o personagem reveja por completo sua conduta, uma vez que as palavras do policial morto clamam para que Dixon abandone seu ódio, e aceite que com empatia e amor, advém também calma e compreensão. Características que deveriam ser mais comuns nos agentes que cumprem a lei.
O que nos leva por fim ao que seria a grande mensagem do filme: Devemos buscar pela justiça, mas não devemos nos deixar tomar por uma cólera ressentida. Temos diante de nós o livre arbítrio para agir mais amavelmente uns para com os outros, ou de continuar alimentando o interminável ciclo de ódio e auto-importância que desde o início dos tempos contamina o mundo e só faz gerar maior desentendimento.
Assim, nos pequenos detalhes vemos a capacidade dos personagens para a empatia. Mildred, por exemplo, no início do filme desvira um besouro para que este possa continuar seu percurso. Em outra cena, a mulher principia um excelente diálogo com um cervo que surge próximo aos seus anúncios. São pequenos gestos que fazem lembrar a máxima do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, que afirmava que a compaixão pelos animais estava intimamente ligada a bondade de caráter. Em outras palavras, quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.
Também na relação de Dixon com sua mãe, ao seu modo bastante torto e incorreto, não se pode negar que há um verdadeiro afeto. E são justamente Dixon e Mildred que estão juntos ao final do filme, trazendo um encerramento relativamente aberto para a narrativa, que convida o espectador a uma reflexão.
Entre tantas barbaridades que presenciamos, podemos ser levados a acreditar que não há Deus, que o mundo todo está vazio e que não importa o que façamos uns com os outros, como expõe Mildred ao cervo. No entanto, Três anúncios para um crime, assim como sua protagonista, espera que isto não seja verdade.
Assim, em uma época de discursos extremos e polarizados, onde cada discussão da vazão à hidrofobia de um eterno fla-flu e é prelúdio para violência física e verbal, a mensagem que Três Anúncios nos trás deve ser levada em consideração. Sejamos críticos e busquemos justiça, mas não nos deixemos alimentar pelo rancor em nossa busca. Pois como diria um sábio ditado, olho por olho, dente por dente, e terminamos todos cegos e banguelas.
Ps: É provável que Frances McDormand faça uma dobradinha com o Globo de Ouro e leve também o Oscar de melhor atriz este ano. Sua atuação neste filme é irretocável. Fica registrada a torcida.
Quando em 2016 foi anunciado que pintores profissionais haviam sido convocados para reproduzir os trabalhos a óleo de Vincent Van Gogh em 56.800 imagens diferentes, que resultariam em uma nova cinebiografia sobre o pintor holandês, foi compreensível e justificado todo furor resultante deste trabalho incomum.
É palpável já nos primeiros segundos de exibição de Loving Vincent o carinho que os realizadores investiram na realização deste filme. Uma obra que acarinha aos olhos, mas que também fez o dever de casa ao se preocupar em vasculhar o confuso manancial de relatos e escritos que formam o retalho biográfico dos últimos dias da vida de Vincent Van Gogh.
A solução adotada pelo roteiro, de transformar este percurso nas inquirições de um personagem que termina por juntar as peças junto ao público, é muito boa. Além de ser o mesmo caminho que os primeiros biógrafos do pintor tiveram de percorrer.
No entanto, o que é feliz em conceito e imagem, não permanece desta forma em termos de execução. O início do longa é apressado, incongruente com a imersão visual necessária a história contada. Há também neste primeiro ato alguns problemas de montagem, muito embora seja compreensível a dificuldade técnica em aliar narrativa, edição e montagem ao trabalho manual de pintura a óleo de cada frame – vale destacar também os flashbacks feitos à lápis e carvão, muito similares aos inúmeros esboços e estudos feitos por Vincent -.
O filme só encontra seu ritmo e tom ao final do primeiro ato. E embora a narrativa simples seja uma forma eficaz para atrair uma faixa de público mais heterogênea, acaba sendo também fator responsável por tornar o filme um tanto quanto superficial em sua abordagem.
Focar no período post-mortem e nos últimos dias de Van Gogh tem seus prós e contras, mas a maior falha reside no nível mais fundamental: Faltou vermos mais Vincent em tela. Por mais que cada cena seja pontuada por um quadro do pintor, sua persona e sua voz estão muito diluídas e distantes no ponto de vista narrativo adotado aqui.
E com isso perdemos também momentos interessantes da biografia de Vincent, como seu período como missionário no Borinage, região carvoeira da Bélgica. Um lugarejo pobre e miserável, descrito na época como “carcomido por uma enorme chaga”. É também este um dos primeiros momentos em que Vincent entrou em um quadro depressivo grave. Muito embora, em 1879 após uma explosão de gás metano em uma mina, acidente que levou uma coluna de fogo aos céus que era visível a vários quilômetros de distância, Vincent tenha se empenhado em ajudar aos feridos e seus familiares.
Também fica de fora outro período dramático de sua existência, quando novamente em uma de suas espirais depressivas – o pintor era provavelmente bipolar – ele se descuidou tanto que perdeu todos os dentes da boca.
A verdade é que não faltam exemplos dos infortúnios e tragédias que assolaram a vida de Van Gogh. Mas há problemas biográficos maiores aqui, como a romantização de certos personagens. Adeline Ravoux era lamentavelmente uma pessoa ciosa de atenção, que cada vez que era procurada para uma entrevista mudava seu relato sobre os dias fatídicos de Vincent em Auveurs.
Doutor Gachet aparece um pouco mais vilanizado do que deveria, já que o sujeito muito provavelmente era uma figura mais inócua do que o filme supõe. O filme parece sugerir também que o médico poderia ter salvo Van Gogh de seu ferimento, mas Gachet era um oftalmologista e não tinha competência cirúrgica para remover a bala do holandês sem causar risco de morte.
Outro mito corroborado levianamente pelo filme é a famosa orelha cortada. Pois não, Vincent não cortou toda a sua orelha, mas tão somente um pedaço desta e durante um surto psicótico. E não, ele não presenteou aleatoriamente uma prostituta com o embrulho sangrento. Na verdade o pintor saiu nas ruas de Arles em busca de Gauguin.
Sabendo que o Bordel era um dos lugares mais frequentados pelo pintor francês, Vincent tentou ir até o local para confrontá-lo. Contudo foi barrado na entrada do recinto por um vigia que ficou alarmado pelo estado frenético e ensanguentado do holandês. Em um gesto desesperado então, Vincent pediu ao vigia que entregasse o embrulho com um pedaço de sua orelha à prostituta favorita de Gauguin. Com isto Vincent esperava não apenas surpreender o amigo-da-onça, mas ilustrar o estrago emocional que este lhe causara. Todavia o francês falastrão não se encontrava no bordel e a confusão em torno do gesto de Vincent já estava feita.
Mais do que ausências ou alterações, no entanto, me incomoda no filme a falta de coragem para desmentir o mito do suicídio perpetrado pelo pintor. Já que Vincent amava a vida, fato que está palpável em alguns relatos e momentos do longa. O que não foi dito, é que o pintor condenou em diversas ocasiões o suicídio em sua correspondência, e de forma veemente. Além disto, é perceptível que se havia alguma imagem que sondava sua mente em termos de auto-dissipação, esta diria respeito ao afogamento.
Vincent, aliás, não só nunca tocou em uma arma de fogo, como nutria certo desprezo pelo aparato. E aí vem a segunda e maior covardia do longa: Não afirmar categoricamente e em todos as letras que o disparo que matou Van Gogh partiu de René Secretan. Todos os relatos da época levam a crer que o sujeito se tratava não só de um playboy arruaceiro, mas provavelmente de um sociopata. Não surpreende que tenha terminado como banqueiro, “pai de família e homem respeitável” ao final da vida.
Vincent também não era exatamente amigo de René como faz acreditar a narrativa, e sim de seu irmão Gaston. Verdadeiro avesso do outro Secretain, este era um rapaz introvertido e com gosto pela arte, que posteriormente veio a trabalhar no cinema mudo – mas que lamentavelmente nunca foi entrevistado a respeito de Vincent -. É possível que ao preferir que ninguém levasse a culpa pelo ocorrido, ele protegesse muito mais à Gaston do que ao irmão René.
Quanto à falta de confissão na derradeira entrevista que René deu a Marc Traubault, um dos biógrafos de Van Gogh, é ou sintoma de sua ausência de remorso, ou na melhor das hipóteses, a confirmação de um infeliz acidente pelo qual ele se recusava a se sentir culpado.
Loving Vincent faz com o caso um gesto de Pilatos e fica a cargo do espectador escolher aquela versão que mais lhe apraz, se o suicídio, ou a morte nas mãos de um adolescente abastado e inconsequente. Mas a verdade é que não vale falarmos do fim de Van Gogh, quando o pintor preferiria muito mais que olhássemos para sua vida e sua obra. Vincent não procurou a morte, mas uma vez que esta se apresentou, também não a recusou. Assim ele não seria mais um fardo para o irmão ou qualquer outra pessoa, como o filme expôs.
Neste espírito, os momentos finais de Loving Vincent não são apenas muito belos, mas também muito inspirados. Quando a voz epistolar do pintor nos diz: “Quem sou eu aos olhos da maioria das pessoas? Um ninguém. Uma não-entidade, uma pessoa desagradável. Alguém que não tem e jamais terá qualquer posição na sociedade. Em suma, o mais baixo do baixo. Muito bem... mesmo que isso seja absolutamente verdade, então um dia gostaria de mostrar, através da minha obra, o que este ninguém, esta não-entidade, tem em seu coração.”
Uma das obras referenciadas na cena em que acontece este discurso é “O semeador”, versão de um quadro de Jean-François Millet, pintor francês realista e grande “muso” de Van Gogh. Para além da influência temática, o semeador era uma figura que acompanhava Vincent desde a infância. Nos sermões do pai, Dorus Van Gogh, a figura do semeador trazia não apenas o sentido da parábola de Paulo, ou seja, “tudo o que o homem semear, também colherá”. Dada a região arenosa, prenhe em pântanos, e difícil de cultivar em que viviam, o semeador representava também um modelo da perseverança diante da adversidade, afirmando o poder da persistência em vencer todos os obstáculos, em triunfar de todos os reveses.
É por isto que Vincent com seu trabalho de Sísifo, intenso e breve, teria se alegrado ao ver uma de suas imagens favoritas ligada ao discurso mais puro de seu coração que tanto e tão dolorosamente sentia. Loving Vincent, embora com tantos defeitos, é ainda uma realização que encanta e emociona. Pois é inegável que a obra do pintor o alçou para além da “estupidez vazia e da tortura sem sentido da vida”.
Afinal, “as ilusões podem desaparecer, mas o sublime permanece”.
No ano de 2015 J.J. Abrams recebeu a tarefa hercúlea e quase ingrata de dirigir e roteirizar o filme que iniciaria a nova franquia de Star Wars no cinema, dando continuidade a saga 30 anos depois do fim apresentado em Episódio VI – O Retorno de Jedi.
Abrams, que já havia sido relativamente feliz em seu reboot de outra franquia espacial, Star Trek, conseguiu ser bem sucedido em seu teste de fogo, entregando um longa deferente ao material de origem, mas com suficientes elementos novos para fazer com que se criassem expectativas pelo oitavo capítulo da saga.
Mesmo que para isso, a bem da verdade, J.J. tenha trazido em Force Awakens uma volta ao mundo de Star Wars, seguida por uma introdução aos novos personagens, e uma breve apresentação da premissa que moveria a trama. Relegando assim às sequências o material verdadeiramente novo que os fans tanto aguardavam. Uma escolha que de certo decepcionou a alguns espectadores, que viram no episódio VII nada mais do que um pastiche da trilogia original. Gostos e opiniões à parte, este era um caminho narrativamente necessário para não apressar demasiadamente a história.
Tudo isto dito, é também importante lembrar que a qualidade do trabalho técnico em Force Awakens é indiscutível, deixando para o sucessor de J.J. na direção, Rian Johnson, uma tarefa ainda mais ingrata do que a sua havia sido, já que Rian precisaria não só se equiparar tecnicamente ao diretor anterior como superá-lo narrativamente.
Passados dois anos, cá estamos nós com Os Últimos Jedi, oitavo filme da série e que começa precisamente de onde parou seu antecessor. De fato Johnson não decepcionou na direção, ouso até dizer que conseguiu ser ainda melhor do que J.J. Abrams, não só na condução do filme, mas sobretudo, em termos de narrativa, por se manter fiel ao original, mas através de uma distância respeitosa, assumindo os riscos necessários para que a saga vivesse algo realmente novo. Coisa que havia faltado ao episódio anterior.
Na direção, Johnson usa e abusa das tomadas em perspectiva, onde faz o público sentir a imensidão das naves no espaço, algo muito parecido com o que já havia feito Gareth Edwards em Rogue One, um filme onde a diferença de escala entre os objetos é muito bem trabalhada e evidenciada. A diferença, é que aqui o diretor alia uma perspectiva típica de lentes grande-angulares, distorcidas, com o a tecnologia 3D, criando naves que literalmente saltam da tela, mais do que em qualquer outro dos filmes da saga. Uma evolução natural e bem sucedida dos expedientes visuais utilizados por George Lucas no original de 77.
Johnson e o diretor de fotografia Steve Yedlin – que já havia trabalhado com o diretor em Looper, A Ponta de um crime e Vigaristas – aproveitam ao máximo as belas locações reais ou artificiais para dar vazão a texturas, luzes e cores diversas, apresentando, junto ao excelente trabalho da direção de arte, o que é provavelmente um dos filmes mais visualmente ricos e vistosos da saga.
Quanto ao roteiro, este brinca com as expectativas de quem assiste ao filme, subvertendo muito do que esperamos narrativamente, ou mesmo quebrando teorias e hipóteses levantadas pelos fans nestes anos de espera pela sequência.
O retorno de Luke Skywalker, por exemplo, é muito diferente do esperado, mas o filme é bem sucedido em justificar as mudanças no personagem, e lhe permite uma despedida visual e narrativamente bela: Vendo pela última vez um pôr-do-sol binário, Luke está se ligando ao momento do início de sua jornada em Tatooine, quando observou o mesmo fenômeno depois do desaparecimento de R2D2. Em resumo, é um ciclo que se fecha de forma redentora e harmônica para o personagem, assim como para a saga.
O senso de perigo e urgência neste filme é algo que eu não via em muito tempo no cinemão de grande bilheteria, já que por diversas vezes o espectador se vê assistindo ao pior acontecer, e em outros momentos até espera pelo pior, embora este não aconteça.
Johnson brincou com nossos sentimentos de todas as formas possíveis. Esperamos Luke como um novo Obi-Wan, mas isto não acontece, assim como Rey também não é uma nova Skywalker. Ou mesmo o líder Snoke – maravilhosamente interpretado por Andy Serkis - que não será um novo imperador. Este é um filme que investe muito em quebras de expectativa narrativa e cria um dos capítulos mais sombrios da história de Star Wars. É também, aliás, uma história que demole por completo a tendência maniqueísta que sempre ameaçou Guerra nas Estrelas.
Entre as queixas que o filme suscitou, há uma a respeito de certa cena em particular que não tem o menor fundamento.
A sequência em questão é quando Leia usa a força para sobreviver a um curto período no espaço e flutuar de volta a sua nave. A contestação é uma grande besteira, pois na saga original foi expresso que sendo ela também uma Skywalker, Leia poderia e iria desenvolver o uso da força, coisa que o universo expandido não se negou em mostrar, e que foi negligenciado no episódio VII – aliás, este filme trás uma bela atuação da saudosa Carrie Fisher, assim como a interpretação mais poderosa de Mark Hamill no papel de Skywalker -. Ademais, a atual saga faz crer desde o episódio anterior que momentos de tensão ou risco de vida podem fazer aflorar a força – pensem nos momentos em que Rey encontra-se cativa de Kylo Ren em Despertar da Força.
Os subtextos apresentados pelos diálogos deste filme são um êxito à parte. Desde a autocrítica que Luke faz a empáfia farisaica da antiga ordem Jedi, às analogias feitas aos próprios fans da saga, quando o personagem diz que a força não pertence a ninguém, ou que é tempo de deixar que certas coisas morram no passado. A força neste filme, assim com os Jedi, são tirados de seu pedestal, podendo a primeira reascender ao seu posto místico e transcendente original, enquanto os outros finalmente podem ver-se como falhos e disto tirar seu maior aprendizado.
Por mais que nem todos tenham se contentado com o segmento de Finn e Rose Tico na cidade cassino de Canto Bight, é dali que vêm um dos diálogos mais afiados do filme, e minha menção favorita até o momento. Rose analisa, com muita razão, que uma cidade como aquela, luxuosa, voltada para a pompa e o divertimento dos ricos e poderosos, não se cria puramente com boa vontade e desejo por diversão. Com frequência é o sofrimento que financia todo este luxo. Algo que pode se relacionar tanto à Hollywood cercada de escândalos escabrosos em sua história, até exemplos históricos como a Bélgica, país bem desenvolvido e rico do primeiro mundo, cuja riqueza se fundamentou basicamente no espólio da África, chegando a causar o que é conhecido – lamentavelmente por poucos – como o holocausto do Congo, já que mais de 10 milhões de pessoas foram mortas na colonização do país.
O filme também é direto ao apontar uma verdade incomoda e largamente ignorada: São os fabricantes de armas os únicos a realmente lucrar com a guerra. Seus armamentos vão para ambos os lados, sem discriminar ideologias e causas, afinal, são todos clientes em potencial uma vez que queiram se matar uns aos outros.
Passando agora dos acertos aos erros, há ao menos uma solução apressada no roteiro, que faz com que o filme pareça ter um furo narrativo, embora seja possível juntar os pontos prestando-se atenção aos acontecimentos apresentados. Não se trata, portanto, de algo que prejudique irremediavelmente o longa.
Assim, depois de duas horas e meia, fica claro que The Last Jedi se mostra como um filme que injeta folego novo ao cânone de Star Wars por ser audacioso na medida certa. É além disto, um competente trabalho da parte de Rian Johson, que virando o jogo, deixou uma tarefa difícil nas mãos de J.J. Abrams para o encerramento da saga.
Apesar de tudo isto, não é um filme perfeito. Emocionante e impactante? Sim! Mas ainda perde para a completude de O Império Contra-Ataca, o melhor filme da saga, cinematográfica e narrativamente. Não que The Last Jedi faça feio, porque este é seguramente um filme memorável e que repousará com dignidade junto a seus irmãos mais velhos numa galáxia muito, muito distante.
Não seria exagerado afirmar que nunca antes os zumbis estiveram tão em alta quanto estão agora, encontrando representação nas mais variadas mídias, como filmes, séries, jogos e quadrinhos. Infelizmente com a popularidade também advém certa saturação do gênero – ou subgênero – que vem sendo mais mal explorado a cada nova produção. Levando em conta este panorama não surpreende então que seja um filme sul-coreano a trazer um pouco de respiro a um tipo de filme, que em mãos ocidentais, estava se tornando perigosamente parecido com seus personagens mais famosos: um ser morto-vivo em franco e acelerado estado de putrefação.
Note-se que o feito de reviver o gênero é realizado, por exemplo, quando o filme na mesma proporção em que apresenta elementos clássicos da vertente zumbi, também os subverte em alguma medida. Pensemos primeiro, no fato de que ao contrário do que acontece nos filmes americanos – frutos de um país sabidamente belicoso – aqui não há armas de fogo nas mãos de todo e qualquer personagem. Quem nunca se pegou pensando no que aconteceria durante uma epidemia zumbi vista pelo lado mais numeroso da sociedade, ou seja, civis desarmados? O simples conceito seria por si mesmo aterrador, mas com criaturas tão frenéticas quanto as deste filme, o terror de fato foi elevado a outro nível – algo só equiparável, talvez, ao filme “Extermínio” de Danny Boyle.
O diretor Yeun Sang-Ho soube usar o espaço claustrofóbico do trem, e a sensação de confinamento, para renovar o sentimento de isolamento e paranoia comumente visto nos apocalipses zumbis. Já nos panoramas, o sul-coreano trabalha de forma a mostrar o grau de deterioração da sociedade atingida pela epidemia, assim como para ressaltar a voracidade e a quantidade de zumbis que perseguem os personagens da história.
Invasão Zumbi também inova na escolha de seu protagonista. Visto que em lugar de se valer de um personagem com que o público possa se identificar facilmente, ou em lugar de exibir o clássico héroi/anti-héroi virtuoso, o que temos é um indivíduo elitista e superficial, que passa por um arco completo de amadurecimento durante as quase duas horas do filme. Aliás, as críticas apresentadas ao pensamento elitista são bem interessantes, a maior parte perceptível nas cenas que envolvem o sem-teto interpretado pelo ator Choi Gwi Hwa. E como não poderia deixar de ser, o verdadeiro antagonista deste filme não é o vírus, e tampouco os zumbis, e sim, como Romero já nos havia demonstrado antes, o egoísmo e a estupidez humana, representada aqui tão bem, que é difícil não passar um pouco de raiva nesta viagem para Busan.
Pode-se argumentar contra o filme que um ou outro uso de efeitos especiais tenha sido mal sucedido e exagerado, mas não há nisso o suficiente para prejudicar o longa. Talvez se possa em vez disso apontar também que os índices do roteiro tendem a parecer um pouco óbvios, já que para além de destacarem elementos narrativos importantes, terminam por deixar algumas pistas fáceis de qual o próximo personagem a morrer. O que não é tão grave a ponto de se tornar um demérito, até mesmo porque a estrutura narrativa do filme é coesa e redonda dentro de sua proposta.
Tudo isto exposto, ouso dizer que este filme é o herdeiro legítimo do recém-falecido George Romero, já que consegue unir entretenimento, valor crítico e zumbis, em uma única mistura homogênea e de qualidade. O final do filme, aliás, é similar em estrutura e intenção ao final apresentado em “A noite dos mortos vivos”, de 68.
Se no filme de Romero, o último sobrevivente é um negro, que termina sendo executado pelas forças armadas, ou seja, um indivíduo indesejável e descartável numa sociedade no auge do racismo e do segregacionismo, no filme de Sang-Ho os dois últimos sobreviventes são uma mulher e uma menina, grupos que ainda são em muitas sociedades considerados menos relevantes do que suas contrapartes masculinas.
Busanhaeng apresenta um final muito mais otimista do que o clássico de Romero, no entanto, apostando justamente que nestes personagens reside o nosso futuro. Assim, se o soldado não dispara no momento final executando a ambas, o que o diretor nos diz é que naquele mundo ainda não se abriu mão da humanidade em nome de um pensamento que resolve seus temores através de uma suposta “prevenção armada”, que não passa de covardia e desumanidade.
Também é significativo que a menina seja reconhecida como uma sobrevivente não infectada por cantar a musica Aloha Oe – adeus a ti - enquanto caminha pelo túnel escuro. Sequência esta que representa não apenas a humanidade a ser reconhecida e partilhada com os soldados, mas também o adeus final ao pai da menina que havia se sacrificado para que ela e a outra sobrevivente pudessem chegar até ali. A canção tanto pode simbolizar a “presença” do pai no túnel de uma forma subjetiva e espiritual, como uma segunda e indireta forma como ele pode ter ajudado a salvar a filha. O fato é que cantando para ele - e para nós -, tanto Soo-an quanto a mulher grávida são salvas, dando ao longa um final otimista e fechando com chave de ouro um filme divertido, crítico e muito bem executado.
É bem verdade que as pretensões moralizantes do filme hoje em dia podem soar descabidas – mesmo que sejam arrazoados alguns dos conselhos apresentados -. Todavia, interessa mais que o divertimento proporcionado pelo filme, seja este voluntário ou não, me pegou em cheio. Exposto como na época junto à pregação deve ter sido um fenômeno do entretenimento – quem é Edir Macedo na fila desse pão? -.
Não obstante o dito acima, a forma crua como certas cenas são retratadas também chama a atenção. E aqui me refiro à sequências como aquelas que envolvem violência/assassinato ou cenas chocantes como a menina que fuma imitando a mãe. Isso se dá de uma tal forma que este longa consegue ser nestes aspectos mais natural e gráfico do que o material que viria a ser apresentado pelo emergente drama de gangsteres do cinema americano – o gênero mais gráfico e violento até então -.
Que muitos rejeitem o filme por suas admoestações e que prefiram um catecismo mais ao estilo Carlos Zéfiro, é até compreensível. Mas não consigo desgostar por completo do filme, até por que, o diabo aqui fica tão feliz que é contagiante, e difícil mesmo fica não torcer pelas iniqüidades humanas que façam nosso diabinho pular um pouco mais.
Nesse trem para o inferno, para nossa alegria, que regozije o capeta.
Okja é o tipo de filme que vale a pena analisar em termos de conteúdo e mensagem passada, a despeito de suas qualidades na execução.
Particularmente, e para além de discutir méritos e deméritos do veganismo, me parece que o discurso adotado pelo longa é muito mais efetivo e muito mais interessante do que teria sido se tivesse atendido a demanda em questão. A superporca Okja, mais do que um animal, simboliza a natureza como um todo. Embora narrativamente a criatura tenha sido criada em laboratório, e seja portanto, artificial em alguma medida, no plano simbólico seu papel assume outro tom. No primeiro arco do filme há uma cena bastante esclarecedora neste sentido: Quando Okja salta sobre um lago espalhando os peixes para que Mikha os colete, há um pequeno peixe que a menina devolve ao lago. O que o diretor Bong Joon-ho quer nos dizer com isto e com todo o resto de seu filme, é que ao invés de predarmos e explorarmos a natureza, podemos agir em conjunto com ela para mútuo benefício. Mensagem esta que é reafirmada pela proximidade que a menina Mikha mantém com a porca geneticamente modificada.
Muito mais do que refletir sobre o consumo de carne, o objetivo deste filme é criticar a indústria capitalista de alimentos, e sua desenfreada exploração dos recursos naturais. É possível afinal comer carne, ou extrair algo da natureza, dentro de um sistema mais humano e responsável do que aquele em que vivemos. Lembremos que a indústria alimentícia como um todo – incluindo-se aí a agricultura industrializada – causa danos ao meio ambiente e à saúde de seus consumidores. Não é difícil ver o paralelo entre a inescrupulosa Mirando e a companhia Monsanto, conhecida por seus produtos transgênicos sabidamente nocivos.
Apesar deste discurso, e ao contrário do que acha muita gente, Bong Jooh-ho não constrói um filme reducionista, visto que não opõe capitalistas sanguinários a “guerreiros verdes da liberdade”. Mesmo os defensores dos animais são representados aqui como falhos, e nem sempre suas motivações e suas ações são as mais altruístas ou defensáveis. Se quisermos um exemplo real, basta pensar em organizações como o Peta, que parecem mais interessadas em ganhar mídia pelo choque barato, do que em realmente contribuir para a proteção animal.
Em alguma medida é compreensível a decepção de quem esperava Okja se apresentando como um panegírico veganista, embora eu não saiba se a expectativa neste sentido foi alimentada por uma campanha de marketing equivocada, ou talvez pouco objetiva, ou se é o caso de as pessoas simplesmente exigirem que o filme se encaixe em suas crenças a despeito de tudo. Seja qual for a razão do descontentamento, este pormenor não diz respeito à qualidade do filme, que constrói no seu primeiro terço cenas que fazem lembrar as animações do Studio Ghibli – também conhecido por suas histórias em defesa da natureza -. O que não é pouco mérito.
A oposição que vai se criando com o tempo entre as verdejantes florestas sul-coreanas e as cidades, ou os complexos industriais cinzentos, entre a relação afetiva de Mikha e Okja em comparação ao sistema cruel de produção pecuária, é a oposição entre uma vida simbiótica com a natureza e a esterilidade do capital que com nada se importa exceto o lucro. Uma mensagem que, volto a dizer, termina por ser muito mais acessível e relevante para o momento em que vivemos.
Depois de ler o original de Jane Austen, e tendo assistido a este filme atentamente, e pela enésima vez, fica flagrante a competência de Joe Wright para adaptações literárias. Ao contrário da maioria dos empreendimentos cinematográficos que pretendem traduzir livros, aqui o diretor não partiu de uma leitura superficial da obra, e atentou-se não apenas ao espírito do livro, que se faz presente em cada minuto do longa, como também teve especial atenção aos detalhes que tornam Orgulho & Preconceito um clássico.
A ironia mordaz, tão característica de Jane Austen, não faltou ao filme, que mostra de inúmeras formas o ridículo de uma sociedade preocupada meramente com as aparências. E em cujo seio as mulheres eram preteridas não apenas como herdeiras, mas também como indivíduos, que não tinham direito a voz e muito menos a possuir opiniões de fato.
Na direção, Wright faz bom uso dos planos sequência para estabelecer os locais, personagens e relações da história, tecendo pequenos panoramas que traduzem com perfeição as descrições cáusticas da autora inglesa. No início, por exemplo, é acompanhando Elizabeth ao chegar de uma caminhada, que conhecemos Longbourn e temos o primeiro vislumbre de seus habitantes da família Bennet. Mais tarde, durante o baile em Netherfield, a longa tomada nos faz passear pela festa, evidenciando as relações entre os personagens, e mesmo suas idiossincrasias. Basta notar como a Senhora Bennet e suas filhas mais novas transitam efusivas pela festa, ou como o tragicômico Mr. Collins encontra-se sozinho e pensativo com uma flor na mão, gesto índice da proposta de casamento que em breve fará à Liz Bennet. Esta que por fim encontra-se afastada da festa, refletindo seus dissabores com Mr. Darcy.
Há também uma atenção invejável aos detalhes, sobretudo no que diz respeito aos olhares, risos e gestos, de cada personagem. Ao espectador atento, ou ao leitor da obra de origem, há muito significado em cada olhar trocado. As miradas mais óbvias, claro, seriam as da protagonista, Elizabeth, mas Wright não tem menos cuidado com os personagens secundários. Basta observar como Mary, a filha mais nova dos Bennet, pedante e de um moralismo vazio, parece deferente e até simpática ao pomposo Mr. Collins – assim como acontece no livro -.
Em dois momentos chave da narrativa o diretor decide pela câmera na mão, e aquele leve tremor da imagem, em um filme com tamanha precisão em todas as suas cenas, coincide com as emoções exacerbadas da protagonista. São estes momentos a declaração de Darcy e a visita acintosa que Lady DeBourgh faz a Elizabeth.
Quanto à cena em que Darcy se declara pela primeira vez, tanto MacFadyen quanto Knightley dão um show de interpretação, deixando transparecer não só o desprezo mútuo que cresce na superfície da relação entre os personagens, mas também o que há de menos evidente - basta reparar a linguagem corporal e os olhares que trocam depois das farpas.
O diretor de fotografia Roman Osin faz também um trabalho admirável, transformando o filme em um misto de pintura neoclássica e realista que acarinha aos olhos. A luz no filme é deveras expressiva, já que no princípio é quente e dourada, ressaltando o espírito alegre dos personagens, mas no momento em que Elizabeth Bennet se sente infeliz, há o uso de uma luz ambiente mais fria, com o predomínio de penumbras nos espaços internos, que simbolizam a melancolia do estado afetivo e mental da personagem. Não é a toa que no primeiro momento em que Darcy se declara, o faz sob forte chuva. O que difere do livro, mas acrescenta em dramaticidade ao filme, e se coaduna com os sentimentos revoltosos e confusos da protagonista. De igual forma acontece quando ao final do filme Darcy se declara mais uma vez: Primeiro vemos Lizzie caminhar na madrugada lúgubre, encimada por um céu violeta triste e cercada por sombras e névoa, depois Darcy caminhando ao longe, trazendo junto consigo a alvorada – a medida que o plano se aproxima, o dourado do sol mesmo passa a predominar na tela – e quando tudo está resolvido vemos brilhar com máxima intensidade o astro entre os dois amantes, o prelúdio dos bons augúrios que o futuro os trará.
A direção de arte é tão atenciosa quanto todo o resto. Basta notar como a casa de Lady DeBourgh é algo rococó, excessivamente floreado e de acordo com sua pretensa dona, em oposição ao neoclassicismo bem equilibrado de Pemberley. Há de se reparar também, que na visita de Elizabeth à propriedade de Darcy, sua admiração das esculturas é símbolo de seu desejo que aflora – eros e psique encontrando-se na observação das formas em mármore – e como as discrepâncias entre esta propriedade e aquela da tia de Darcy acentuam dois comentários da autora no livro: O de que um fazia bom uso do espaço e possuía bom gosto, enquanto a outra, a despeito de toda pompa, não possuía senso de estética ou arte, e era de franco mal gosto. Sendo estes detalhes reflexos de suas personalidades.
O que dizer do elenco então, que não só apresenta um trabalho competente, mas encarna com perfeição os personagens do livro. Keira Knightley possui toda a espirituosidade e impetuosidade da mordaz Elizabeth. Sua família é igualmente fiel ao livro, da introspectiva Jane, às histriônicas irmãs Kitty e Lydia e mesmo sua disparatada e dramática mãe. Donald Sutherland como Senhor Bennet é não só excelente, mas de um carisma admirável, e faz uma atuação comovente quando, lágrimas nos olhos, percebe que Darcy era uma pessoa diferente do que imaginava e que sua filha de fato o amava.
Quanto a Matthew MacFadyen, embora tenha feito um bom trabalho, há um porém. Tendo assistido também a produção da BBC, cheguei a conclusão de que na primeira metade do livro Mr. Darcy corresponde muito mais a atuação de Collin Firth. A saber: abertamente arrogante, de modos bruscos, quase grosseiros. Em compensação, na segunda metade da obra falta ao ator veterano a sutileza de sentimentos que Matthew apresentou tão bem. Em suma, a primeira metade da obra teria Collin Firth como Sr. Darcy, enquanto a segunda, Matthew MacFadyen. Também me parece que Mr. Collins estava mais próximo de sua versão televisiva, mais obviamente cômica. Embora o Sr. Collins de Tom Hollander seja igualmente plausível. Judi Dench está aterradora como Lady DeBourgh, com toda sua empáfia e crueldade, mostrando a grande atriz que é – aliás, um pequeno parêntese sobre a direção de fotografia: O modo como ela é iluminada de baixo para cima, fazendo parecer uma bruxa má de conto de fadas, no momento em que confronta Elizabeth ao final do filme, é um belo toque de sarcasmo.
Além disto tudo, Wright soube condensar bem os acontecimentos do filme em poucas cenas, dando um ritmo prazeroso ao longa, cujas duas horas passam num piscar de olhos. Há também criativas elipses de tempo, como quando vemos o rosto de Elizabeth e as mudanças de luz ao seu redor denunciando as horas do dia que se passam, ou quando ela gira em um balanço e pelo seu ponto de vista vemos os dias transcorrerem.
Assim sendo e por tudo isto posto, parece arrazoado arrematar dizendo que Orgulho & Preconceito é definitivamente uma das dez melhores adaptações literárias para o cinema de todos os tempos.
Dos filmes que causaram furor nos últimos anos La La Land é provavelmente um dos que mais justifica os comentários elogiosos. A habilidade com que Damian Chazelle conduz sua história fica evidente já desde o elaborado plano sequência que abre o filme com toques de Grease, transformando um engarrafamento, a situação prosaica por excelência, em um clássico e animado convite ao musical que se inicia.
Visualmente, Chazelle reproduz em cenários reais de encher os olhos o que Hollywood nos tempos áureos só conseguia fazer em estúdio. O uso da famosa “hora mágica” neste filme rende algumas das imagens mais marcantes a ser reproduzidas no cinema nestes últimos anos. Afinal, quem não guardará na memória aquele por do sol róseo que serve de moldura ao início da relação entre Mia e Sebastian?
E este longa não é só uma grande homenagem aos musicais da era dourada de Hollywood, - Sobretudo as obras realizadas por Stanley Donen, como o icônico Cantando na Chuva, além de suas parcerias com Audrey Hepburn -, mas é também uma grande homenagem ao sonho que move o cinema, a música e a arte de uma forma geral.
Assim, o filme não é feito só de vibrantes – e significativas – cores, mas é também um grande exercício de tradução visual da subjetividade dos seus protagonistas. Arrisco mesmo dizer que em nenhum outro filme a realidade subjetiva dos personagens foi tão bem ilustrada por números de música e dança. É fácil perceber em cada melodia, em cada passo dançado, os sentimentos que não vem à superfície, ou aquelas palavras triviais de uma conversa, que importam menos por seu significado, do que pelo contexto emocional de que se carregam. Todos estes elementos sutis da relação afetiva entre duas pessoas estão ilustrados com primor, seja em música, ou nos números de dança.
Damien Chazelle já desde Whiplash mostra que entende profundamente do casamento entre música e imagem, o que resulta em uma direção afiada, com montagem bem ritmada e característica, o que faz com que La La Land, assim como sua grande referência, Cantando na chuva, se apresente ao espectador como uma experiência transcendente, que pulsa com vida e prazer pela arte cinematográfica.
É claro que a música é tratada com especial carinho neste filme, pois representa em mais de um momento a expressão máxima de alma e sentimento de seus protagonistas. Não é por acaso que é tocando sua própria composição que Sebastian desperta o amor de Mia pela primeira vez. Também não é por acaso que a interpretação de “Fools Who Dream” – momento em que Emma Stone brilha com maior intensidade – é a audição que finalmente permite a realização do sonho da personagem de ser atriz. Afinal, este não é um momento em que ela simplesmente atua, e sim o instante em que faz o seu sentimento, a sua alma, transbordar, tocando aos seus avaliadores e a platéia de forma igual.
A trilha sonora não se mantém aquém da qualidade técnica excepcional do filme, e digo isso não apenas por parte de suas canções originais, mas também pelo uso de músicas “exteriores” ao filme, como Take On Me, ou mesmos os inúmeros jazz que permeiam o filme, embora nem de longe o jazz seja aqui um protagonista – como era em Whiplash -.
Aliás, há quem preferisse que os atores apresentassem uma execução mais técnica das canções, coisa de que eu como músico discordo veementemente. Acho ótimo que os atores não sejam músicos tecnicamente perfeitos – embora Ryan Gosling tenha feito bonito ao piano e a interpretação de Fools Who Dream de Emma Stone seja irretocável -. As pequenas imperfeições e hesitações colorem o filme, trazem humanidade às interpretações, exacerbam a emoção e aproximam os personagens do público. Uma execução perfeita, de cair queixo de jurado de programa de calouros, teria rendido um filme rococó e sem alma. Novamente, como músico, não me iludo com técnica pura e simples, já que muitos músicos habilidosos possuem interpretações viciadas e (ou) assépticas, o que os torna emocionalmente irrelevantes.
Quanto aos outros aspectos do filme, de uma forma geral a cor é um dos grandes recursos de enriquecimento cinematográfico, e aqui é usada não só para encher os olhos, mas também para aprofundar as ideias apresentadas. Afinal, o bom uso da cor afeta nossa percepção fílmica.
Há em La La Land desde os vermelhos como símbolo de romance, sensualidade, poder e desafio, aos amarelos de alerta, exuberância e mesmo tédio, passando pelos azuis melancólicos, passivos, frios, indo até à ambivalência dos verdes, representantes tanto de vitalidade e esperança, quanto de decadência e corrupção. Não são esquecidos também os roxos, ilusórios, fantásticos, subjetivos e etéreos. Enfim, toda a gama de cores e todas as suas plurais significações foram lindamente trabalhadas neste filme.
Um exemplo da complexidade com que Chazelle trabalha as cores é a cena em que Mia e Sebastian sentados ao piano fazem seu dueto de “City Of Stars”. Bem no início da sequência, quando ouvimos a melodia ao piano e Mia entra em casa, a cor predominante é o amarelo, representando a ideia de que todo o sonho de Sebastian com relação ao jazz se transformou em um exercício tedioso, pois ele não gosta daquilo que faz. Mia usa rosa, ela ainda é o amor e a afeição que podem atenuar o sofrimento de Sebastian, que quando finalmente aparece em cena está com o rosto carregado de sombras, mas cercado de verde. Aqui o jogo de cores diz: Há esperança enquanto ainda houver amor. O que é confirmado pela letra da canção “É amor. Sim, tudo que procuramos é o amor de outra pessoa”. Mas o amarelo ainda se intromete em cena, como um aviso. Quando se sentam lado a lado, o amarelo que banha seus rostos é quente, convidativo, mas o verde que os cerca é frio. Há “calor” no afeto dos dois, mas nossos protagonistas já estão cercados pela possibilidade de que aquele amor se envenene de alguma forma. A montagem seguinte de cenas faz um uso variado de cores, mas o mais importante, é que entre as cenas finais há uma predominância de azul, a cor da melancolia, o aviso de que apesar de tudo a tristeza vai se abater sobre Mia e Sebastian.
Seria possível fazer uma extensa análise do uso da cor como recurso expressivo em La La Land, pois do início ao fim, não há cena em que esta se apresente de forma gratuita.
Em sua estrutura o filme é dividido entre as estações do ano, que marcam não só o desenvolvimento da narrativa, com sua apresentação, desenrolar e conflitos, mas também explicitam diferentes fases da vida dos personagens. Da inocência presente nos sonhos almejados em sua intensidade máxima, antes que sejam tocados pelas decepções da realidade, ao verão, um período luminoso de nossas vidas, quando nossas aspirações parecem em vias de se realizar. Quando chega ao Outono o filme se distancia do molde Hollywoodiano de onde se alimentou nos dois primeiros atos, e nos mostra que em nossas vidas há muitas decepções que nos aguardam, e o que parecia um eterno e luminoso verão decai em uma estação no qual nossas relações e sonhos são como as árvores que vão perdendo a folhagem. No inverno é atingida a maturidade, os sonhos são alcançados, mas nem tudo sai como gostaríamos que tivesse sido, se temos algumas coisas que desejávamos, não temos tudo que gostaríamos. Mas isto é algo que faz parte da vida e não quer dizer que não possamos ser felizes porque a nossa vida não foi tão idílica quanto teria sido a ficção.
La La Land termina por ser ao mesmo tempo o filme mais real e mais escapista já produzido por Hollywood. O terceiro ato, quando os personagens se desentendem e terminam por se distanciar, traz um desenvolvimento dolorosamente real e possível de acontecer fora da ficção. A verdade, é que a vida pode ser cruel, nos aproximando de alguns objetivos, enquanto nos afasta de outras coisas, ou pessoas, que nos eram caras. Assim, o filme se apresenta não só como uma abordagem contemporânea do paradigma clássico dos musicais Hollywoodianos, mas é também uma espécie de abordagem madura do tema dos “artistas sonhadores”, uma abordagem que superou a fase do mero devaneio escapista.
O que não quer dizer que aqui o escapismo não esteja presente, ou não tenha importância, pelo contrário. A sequência final do filme é uma importante reflexão e conclusão sobre o tema. Quando somos transportados através da música de Sebastian para aquela colorida realidade onde toda a história dele com Mia dá certo, temos uma mensagem inequívoca: Através da música, do cinema, da arte de uma forma geral, podemos não apenas reviver nossas melhores memórias, mas ter os momentos perfeitos que a vida não nos permitiu viver. Podemos assim, na curta duração de um filme, ou na execução de uma música, viver uma felicidade plena. Ainda que depois a vida retome o seu curso e tudo volte a normalidade, aqueles breves momentos de fantasia não serão menos vívidos, nem nossa satisfação menos verdadeira.
Como já havia sintetizado muito bem Audrey Hepburn, o cinema “cria beleza e desperta nossa consciência, estimula a compaixão e talvez, o mais importante, dá a milhões de pessoas um descanso de nosso mundo tão violento.” . Ou talvez, possamos nos ater a interpretação mais simples do final, onde vale a máxima já consagrada, de que posso ter tudo o que desejo profissional e financeiramente, “mas sem amor, eu nada seria.”
Seja qual for a interpretação de sua preferência, uma coisa permanece: La La Land é o cinema em sua melhor forma. Amém.
Este filme é basicamente o efeito Kuleshov utilizado com maestria para falar sobre o respeito à vida animal, sobretudo a silvestre, que em pleno século XI ainda é muito ameaçada pela estupidez da caça, que hoje chega mesmo ao opróbrio de se auto-intitular como RECREATIVA.
Aliás, entender como a montagem pode transmitir mensagens mesmo sem o suporte de um texto falado, é algo que deveria ser melhor compreendido pelo público de uma forma geral, já que a própria mídia usa do efeito para fazer explicitar ou exacerbar aquilo que não diz abertamente.
Voltando ao filme, é claro que é preciso reconhecer: Nem tudo são truques de montagem, já que houve também um trabalho de treino e interação com os animais, e no fim das contas, os ursos Bart e Youk atuaram melhor que muito bípede “rolliudiano” e “global”.
Ah, o bom e velho chauvinismo americano... Criando novas mitologias, reforçando oposições binárias inexistentes no mundo real, se valendo de justificativas dignas de um Juan Ginés de Sepúlveda, e tudo isto envolto em uma direção gélida, embora competente, que tenta convencer de sua impossível imparcialidade. Que importa se o filme não é muito mais que um reforço do imperialismo americano, não é mesmo? A verdade é que se trata de uma receita pronta e infalível para agradar a academia e os críticos. Kathryn Bigelow é tudo menos boba.
E imaginar que este filme parnasiano foi premiado no Oscar ao invés de filmes bem conduzidos como A Cor Púrpura, O Beijo da Mulher Aranha, A Testemunha e mesmo Ran de Akira Kurosawa.
Claro que diretores estrangeiros, ou obras que lidem com assuntos espinhosos como racismo e violência contra a mulher, seriam preteridos por uma academia conservadora, muito mais inclinada para um relato sem alma que mistifica a cultura e as terras Africanas, retratando à reboque um colonialismo “benéfico” que é difícil de engolir.
Não que o filme não tente afetar certo tom crítico, mas o tapa em luva de pelica não convence e torna a crítica tão suave que daria no mesmo fosse um filme sinceramente acrítico. Há menções quase subliminares aos problemas da colonização, pontos estes em que o roteiro não se aprofunda. Aliás, tem-se que admitir: Out Of Africa não se baseia nos resultados reais da colonização européia do continente africano. Por isto Pollack não desconstrói e expõe o colonialismo como o problema que foi, mas alimenta o mito do “bom colonizador”, aquele que trás “progresso” àquele “fim de mundo”, que imaginem, sequer existia antes da interminável benevolência européia encontrá-lo.
E se isto não fosse bastante para diminuir a qualidade do filme, também há alguns males técnicos. A montagem tem momentos falhos, com elipses evidentemente ruins, que a maioria dos espectadores não percebe pelo simples fato de que se trata de um filme desnecessariamente longo, cujo efeito soporífero adormece a percepção aos detalhes da narrativa cinematográfica.
Além disto há duas inserções de chroma-key injustificáveis e muito mal feitas para a época de realização deste filme. Pessoalmente também acho que não haver a mais remota problematização da caça comercial de animais silvestres - promovida pelos europeus -, também é de sofrer. No fim das contas nem Meryl Streep salva este filme.
A direção insossa, insípida e prosaica de Pollack ganhar de nomes como Akira Kurosawa, Hector Babenco e Peter Weir, é uma piada de mau gosto. A trilha sonora aguada e clichê tampouco merecia ser premiada onde quer que fosse.
Assim as estatuetas que este filme esquecível angariou são um lembrete do que há de errado desde muito com a academia e mostram o quanto as mudanças são necessárias para que a premiação possa ser levada a sério como algo em que realmente se reconhece o valor artístico e técnico de uma obra cinematográfica.
No entanto, se o Oscar erra e feio, o tempo faz das suas justiças, pois muito embora Out Of Africa seja recheado de prêmios da academia, é A Cor Púrpura, O Beijo da Mulher Aranha, A Testemunha e Ran, que são sempre lembrados em estudos sobre cinema e não este filme datado e feito sobre medida para agradar uma academia de pulhas conservadores que pouco se interessam em qualidade cinematográfica.
Mas gente, taí um roteiro sofridinho de tão esburacado e fraco – não faz jus a criatividade dos anos 80 -. A gente até que se esforça pra gostar do filme, mas falta também carisma e atuação que justifique essa insistência. Além de tudo aqueles demoninhos dificultam bastante a amizade. Até o Gizmo – veja bem, o Gizmo não os Gremlins – parecia mais perigoso. Verdade que é delicioso ver todo o trabalho em stop motion e maquiagem, mas não colou como algo ameaçador.
Também é verdade que até dá pra assistir o filme, mas não sem uma careta aqui e umas risadas involuntárias acolá. Claro, não dá pra negar que há bons momentos da direção, além de toda aquela nostalgia inerente à década de sua realização. O grande problema é que o resultado é muito aquém do que poderia ter sido. Por vezes o roteiro soa didático demais, ou é absolutamente obscuro e falho e à todo momento parece indeciso entre ser uma espécie de terror infantil ou um simples filme trash, terminando por não ser nada de forma competente. Talvez o melhor desse filme seja o fato de que foi uma das possíveis influências para a maravilhosa Stranger Things.
No fim das contas aqui acontece o mesmo que na culinária: A esmagadora maioria dos ingredientes cru é algo intragável ou muito inferior à sua versão cozida. Assim, Stranger Things é um belo prato que muito provavelmente usou O Portão como um dos seus ingredientes. Pena que este por si só não apenas desagrade o paladar, como resulte em algo beirando o indigesto – ainda que em toda sua singela tosquice permaneça superior a certas produções atuais.
Peca, e muito, ao vilanizar os jogos eletrônicos, assumindo uma retórica do senso comum que se justifica por análises conservadoras da mídia em questão, coisa que me parece contraditória ao objetivo do documentário de esclarecer. É interessante, por exemplo, quando mostram o modelo arquetípico do herói de jogos de ação. Ainda que esqueçam de dizer que o modelo deriva de elementos do militarismo e da cultura esportiva, ambos muito mais danosos em sua doutrinação hipermasculinizante e tóxica do que os games. A questão destes é infinitamente mais complexa e menos problemática do que a descontextualização e desinformação comum sugerem.
No mais, e em todo o resto, The Mask I Live In se trata de um documentário ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO. Não é difícil entender que masculinidade e feminilidade são construções arquetípicas muito mais do que dados imanentes e factuais da espécie humana. Ou seja, gênero e todo o comportamento correspondente que se espera, é algo social e psicologicamente construído, não sendo a mesma coisa que o sexo biológico, tampouco uma inamovível realidade. Uma análise honesta da questão nos revela que muito do que se toma por caracteristicamente masculino ou feminino são elementos subjetivos que podem estar presentes em qualquer gênero possível, não sendo algo atrelado e exclusivo de uma única identidade.
O que não podemos negar é que o modelo de masculinidade vigente possui um caráter absolutamente destrutivo que deve ser discutido, combatido e abandonado, se quisermos homens psicológica e emocionalmente saudáveis em nossa sociedade.
Resenhar este filme tentando discorrer sobre os aspectos técnicos é algo interessante, embora traga pouca informação nova. É inegável que os irmãos Russo equilibram muito bem a narrativa – tanto em termos de roteiro, como de condução -. Sabem a hora de usar uma câmera na mão para colocar o espectador dentro da ação, editam e dirigem muito bem as cenas de perseguição fazendo uma sequência que só encontra rival em Dark Knight. E é claro, têm o mérito de ter filmado a cena mais quadrinhesca já vista no cinema: A sequência do Aeroporto – não só um clássico atual, mas uma verdadeira transcrição das páginas de quadrinhos -. Sequência esta onde não há CGI gratuito, pois o recurso é usado em favor dos acontecimentos e da narrativa, sem excessos. Claro, que há seus pontos negativos, afinal a Marvel continua não superando Loki, e termina por apresentar mais um vilão fraco, ainda que este possua motivações plausíveis. Também pode-se objetar que o final é mais conciliador do que o necessário.
Mas o fato é que embora estes fatores constituam um bom filme, um bom entretenimento, o que realmente me motiva a escrever é que este é um filme da Marvel interessante de se analisar sobre o ponto de vista das motivações ideológicas que direcionam os personagens. O estúdio vem delineando nos protagonistas de seus filmes dois sistemas opostos de valores que vão ter seu embate literal e físico neste longa. Verdade seja dita, que em um plano bem evidente e superficial, desde o primeiro encontro Homem de Ferro e Capitão América não se entenderam muito bem. Sempre houve alguma animosidade mais ou menos explícita nesta relação. Por traz disso foram sendo construídos os valores que motivam cada um, e em Guerra Civil o que é explicitado é a oposição entre o UTILITARISMO de Tony Stark e a DEONTOLOGIA do Capitão América.
Já desde Era de Ultron o Homem de Ferro deixa claro sua visão de mundo: Para ele um pequeno mal que traga benefício ao maior número possível de pessoas, é algo desejável. Comportamento que fez com que criasse o vilão do filme em questão. Esta forma utilitarista de pensar se resume em uma máxima muito bem conhecida: Os fins justificam os meios. Assim, em Guerra Civil, não importa que deixemos nossa “segurança” em mãos de instituições de intenções discutíveis, desde que o resultado final seja positivo. Os problemas desta abordagem são fáceis de imaginar.
Por outro lado, e em oposição a este ponto de vista, a Deontologia do Cap. põe o dever moral, os imperativos éticos do indivíduo como norte de suas decisões. Não importa que os fins sejam bons se os meios são escusos. Partindo deste ponto de vista, de um mal só poderá resultar outro mal. E se este mal é institucionalizado, então é dever moral de cada um de nós ir contra esta corrente, pois o certo possui uma única face e não podemos barganhar em nome da promessa de um bem maior. Este é um ponto de vista reforçado pela menção à Peggy Carter, a quem se atribui a seguinte citação: “Mesmo se todos estiverem te dizendo que algo errado é certo. Mesmo se todo o mundo estiver dizendo para que você se mova, é seu dever fincar raízes como uma árvore, olhá-los nos olhos, e dizer: Não. Mova-se VOCÊ.”
(Um parêntese: Peggy Carter é um personagem que por si mesmo exemplifica bem a questão. Vejamos a série e está lá alguém que se colocava contra o machismo e a tacanhice institucionalizada em nome do que é certo.)
Para além da dicotomia moral Capitão-América-Homem de Ferro, os irmãos Russo vêm construindo um consistente e interessante argumento em seus filmes. Um discurso, que embora sutil, questiona o direito institucional ao controle e vigilância indiscriminado da população. No primeiro filme do herói dirigido pelos irmãos é clara a crítica à política de vigilância americana, que mantém na contramão dos direitos civis, uma larga rede de monitoramento de dados, tanto em território nacional, como internacional. O Projeto Insight mostrado no filme enquanto simboliza isto também faz referência ao uso irresponsável de Drones, que muito mais frequentemente matam inocentes do que pessoas suspeitas – aliás, é também discutível se é moral e legalmente correto matar um suspeito, já que o próprio termo supõe que não se tenha certeza sobre um crime efetuado.
Em Guerra Civil, o que se questiona é se o controle institucional é realmente algo benéfico, já que nem tudo que parte da legalidade é legítimo. Com frequência o que se faz é 95% política e 5% lei, algo que sempre vai funcionar em detrimento do povo. E isto nos remete ao momento, em Soldado Invernal, no qual Nick Fury mostra ao Capitão o projeto Insight. Steve Rogers define a iniciativa da seguinte maneira: “Apontam uma arma para todo o planeta e chamam de proteção. Eu chamo isto de medo.”
E o medo é nosso grande companheiro da vida moderna, afinal. Somos reféns de um sistema que não está muito distante de um sistema prisional. Pois vejam, há grades, câmeras, blindados, cercos, portões, em suma, vigilância por todo o lado. Somos todos suspeitos, e suspeitamos de todos, vivemos em um estado social no qual cada esquina virada é um salto do coração. Paradoxalmente, se nossas portas possuem cada vez mais fechaduras, não sentimos menos medo, não nos sentimos mais seguros de fato, porque o sistema em voga não tem o poder de gerar nada além de uma quantidade ainda maior de medo.
Os únicos beneficiados por nossas apreensões são a classe política, e o resultado prático e final de tanta intervenção, é que abrimos mão de nossa privacidade voluntariamente. E aí está nossa grande quimera, pois se somos observados, e se os fins para tanto são mormente políticos, no momento em que nossa conduta não agradar a estes representantes seremos silenciados. O que o controle completo, o que a falta de privacidade cria, é uma supressão legal do direito à manifestação de ideias contrárias. Toda ditadura começa pela coleta de dados de seus cidadãos para descobrir dentre estes quais aqueles menos dóceis, quais aqueles que devem ser eliminados do corpo social.
Winter Soldier e Civil War são filmes de heróis a ser vistos com uma atenção extra ao subtexto. É um mérito e tanto, levando-se em conta que mesmo sendo a crítica sutil, está presente em dois blockbusters vindos justamente do país que comanda a NSA, a agência de segurança que devido ao pretexto do terrorismo, vem coletando sistematicamente metadados de cidadãos ao redor do mundo desde o 11 de Setembro. Que um personagem criado como propaganda em favor do alistamento se coloque contra decisões governamentais e institucionais é uma mensagem e tanto para quem se der ao trabalho de analisar.
É difícil eleger um ponto específico para começar a analisar este excelente filme. Mas é claro, que falar de Pleasantville sem esmiuçar antes sua metáfora das cores, é uma impossibilidade. Em um primeiro plano, tudo é muito simples, aquele mundo asséptico e descolorido é um mundo sem sentimento, um mundo sem individualidade, em essência, um mundo sem alma, onde cada indivíduo é um dócil e voluntário prisioneiro. O que a cor traz, é primeiro, o toque de individualidade, a idiossincrasia que não pode existir em um mundo em tons de cinza. Por isso, é natural que primeiro a cor surja entre os mais jovens. Aos adultos, mais conformados em seus papéis limitantes, é reservada obviamente maior resistência à esta mudança – trata-se até de algo a ser escondido -.
Percebemos aos poucos que dentro deste paraíso conservador toda diferença causa desconforto, por mais inofensiva que seja. Este mundo estável só pode ser perfeito na medida em que exclui a diferença. A família nuclear, as autoridades, a rotina, estão lá para garantir a estabilidade desta sociedade de horizontes limitados. Dentro da família nuclear tradicional – marido, esposa e filhos (preferencialmente um casal) – é claro que não há qualquer espaço para a sexualidade, muito embora isso não afete a taxa de natalidade.
Abro um breve parêntese: Pais que dormem em camas separadas e banheiros que não possuem privadas, são exemplos REAIS da censura puritana feita pela mídia americana até meados da década de 50. No primeiro ponto, os primeiros casais sexuados da TV americana foram os Munsters e os Addams, que vistos pela ótica do senso comum não passavam de “aberrações”. Herman e Lilly Munster, foram inclusive o primeiro casal da TV a dormir na mesma cama. Os conservadores, por imaginar que se tratava de personagens um tanto quanto cartunescos, acreditaram piamente que não faria nenhuma diferença se dormissem juntos – embora, ao contrário do previsto, tenha feito-. Já as privadas foram vetadas do cinema e da TV americanos até a década de 60 aproximadamente.
Também não podemos nos esquecer que a sanitização da ficção americana não se restringiu a estas proibições puristas, extirpando da ficção toda representação de diversidade, fosse étnica, cultural, ideológica ou sexual. É por esta razão, e não por acaso, que Pleasantville se apresenta como uma idílica província branca, heteronormativa e patriarcal. O verdadeiro sonho americano encarnado, enfim. E se este paraíso é ameaçado pela mudança de costumes, sua única forma de resposta é a repressão, as proibições, a segregação. A resposta vem organizada pelas cabeças conservadoras da “câmara de comércio”, espécie de conselho e prefeitura municipal, onde maridos insatisfeitos se queixam do comportamento impudico de suas mulheres e de seus jovens filhos.
Para o dinossauro conservador, vejam vocês!, o maior inconveniente é não ter o jantar pronto à mesa. Ou então é uma camisa queimada à ferro pela esposa que se distraiu pelo maior dos crimes que poderia ser cometido por uma mulher: Estar pensando!
O preconceito e a mente pequena destas pessoas é exemplificado em diversas passagens do filme, seja nas censuras que fazem ao pintor Bill, ou na proibição de visitas à biblioteca, o que termina por incitar a queima de livros. Também se deve notar que uma vez que a submissão e o “recato” feminino são abalados, uma vez que a preponderância masculina nesta sociedade patriarcal é relativizada, surge a misoginia, e a violência dos homens “sem cor” se torna cada vez mais variada e sempre em razão de um sentimento retrogrado de ofensa pela diferença e pela individualidade que não possuem – ou que se esforçam por reprimir -.
É devido a esta misoginia que David – ou Bud –, finalmente encontra sua cor. Se a primeira vista pode-se pensar que tudo que o protagonista necessitava era um romance, a trama nos prova que não. Enquanto o mundo se colore ao seu redor, o rapaz permanece em preto e branco. É quando enfrenta o grupo de rapazes que assediavam sua mãe ficcional que David encontra o que lhe faltava: A coragem de se posicionar de forma contundente em nome daquilo que acredita. A partir daí a metáfora das cores exacerba sua interpretação emocional, pois as cores são de fato emoção, e assim, um mundo sem cor só pode ser um mundo pobre de sentimentos, um mundo em constante repressão. Este aspecto é lindamente desenvolvido na cena do julgamento de David e Bill no tribunal.
Não que a metáfora pare por aí, já que a cena do tribunal dá novo significado às cores. Não é só de sentimento que se fala quando o personagem de Tobey instiga o presidente da câmara a assumir seus preconceitos em voz alta. Ali vemos exposto o perigo de representantes retrógrados. Afinal, são pessoas cujas “verdadeiras cores” são tão repulsivas, que uma vez expostas, deveriam causar a mais profunda vergonha – por isto é simbólico que o presidente fuja pela porta dos fundos quando enfim se colore -. Nem devemos esquecer que estas pessoas farão de tudo ao seu alcance para manter o mundo em conformidade com suas crenças retrógradas.
Ponto interessante também é a mudança na personagem de Reese Witherspoon. A princípio, é Mary-Sue/Jennifer quem traz agitação a Pleasantville por seus hábitos sexuais, mas ainda assim não ganha cor por mais que se engaje na atividade. Um de seus últimos diálogos, no entanto, quando diz ao irmão que seu comportamento ficou “velho”, nos dá o melhor entendimento da crítica. O momento de chocar e balançar a sociedade com sexo passou junto com a contracultura dos anos 60 e 70. Convenhamos que sexo é lugar comum de nosso tempo e seu poder de subversão sempre foi limitado. Por outro lado, a mídia/sociedade atual não demora em converter aquilo que soa alternativo, ou rebelde, em algo mainstream, em um produto a ser monetizado e produzido em larga escala – ou ainda, quem sabe, gourmetizado para um público “seleto” -.
Se toda diferença e subversão surge como tentativa de escapar às estruturas dominantes, este sistema está suficientemente consciente do fato para incorporar estas mudanças em seu savoir-faire, esvaziando todo poder de iconoclastia que nasce da diferença. Assim nada escapa ao sistema, e aquilo que eventualmente o destruiria é resignificado para tornar-se vazio, banal. É por isto, que o sexo por si mesmo não poderia libertar Mary-Sue. A significância de sua vida residiria em outro lugar, sua cor viria da introspecção e não do choque vão de costumes.
Pleasantville é pontuado aqui e ali por referências tanto à arte como à literatura. Há, por exemplo, momentos que recordam Farenheit 451, de Ray Bradbury. E mesmo o argumento do filme possui certo parentesco com o famoso mito da caverna elaborado por Platão. Uma das referências mais interessantes, no entanto, acontece na cena do tribunal, em que se homenageia To Kill a Mockinbird de Harper Lee. Na cena em questão as pessoas de cor encontram-se na bancada superior, separadas do resto da cidade, assim como acontece com os negros no livro e filme supracitados. Aliás, a questão da cor traz associações sutis à questão racial americana, já que dá ao público uma amostra do que é ser segregado por sua aparência, independente do seu valor enquanto indivíduo. Afinal, não se escolhe a cor que se tem, e esta característica não pode ser demérito ou razão de vergonha.
Tudo isto dito, ainda resta salientar que Pleasantville é não só um roteiro rico em significados, mas também a prova de que boas mensagens não necessitam de uma embalagem pretensiosa e que o cinema muito pode se beneficiar da leveza narrativa.
“- Você está tentando novamente enganar as pessoas com propaganda! - Você não entende. Em 1933 as pessoas não foram iludidas pela propaganda. Um Führer foi eleito democraticamente e esboçou seus planos com clareza. O povo alemão me elegeu. [...] - Você é um monstro! - Jura? Então você também deveria condenar aqueles que elegeram este monstro. Eles são todos monstros? Eles são pessoas comuns. [...] E então, o que você faz? Proíbe as eleições?”
Fantástico como este diálogo faz pensar na maior ilusão da política ocidental: A democracia representativa.
Não é por acaso que se questiona hoje em geopolítica a importância da representação, entendida por alguns, não como veículo da democracia, mas como obstáculo a plena realização desta. Afinal, abdicamos de nosso poder para que o eleito o exerça em nosso lugar e há poucas garantias de que este fulano realmente fará bom uso do cargo. Ao mesmo tempo, é difícil para as pessoas pensarem em alternativas, já que a ausência de eleições convencionais parece sinônimo de caos ou totalitarismo. O cidadão moderno vive uma apatia política tão aguda que não pode enxergar uma existência em que não abdique de seu protagonismo.
E mesmo quando a massa parece se sublevar, o gesto toma feições de falsa rebeldia, visto que só pode existir dentro da “ordem estabelecida”, dentro do desejo paternalista que o impele às ruas, caso contrário será calado e violentamente reprimido. Não podemos negar que o povo sempre estará em busca de um messias que acolha suas insatisfações, mesmo que falsamente, mesmo que em nome da manipulação de seus desejos não realizados. Daí que as campanhas políticas tenham se convertido em um show com traços de besteirol, não surpreende.
A consequência de tudo isto é que nosso sistema político, mais antigo e desgastado do que as mentiras eleitorais que sustentam a corrupção, permanece inabalado, e em detrimento da sociedade, continua a atender aos interesses mais escusos.
Há muito que se pode falar sobre os paralelos deste filme com a política e o circo midiático contemporâneo, e é isso que o torna altamente recomendável.
Turma da Mônica: Laços
3.6 605 Assista AgoraQuantas gerações cresceram com a obra de Maurício de Sousa? Só na minha casa há gibis em cruzado, cruzeiro e real. Uma coleção onde estão almanacões de férias, especiais do parque da Mônica e edições que perderam a capa de tanto que foram lidas. A verdade é que a turminha do Limoeiro faz parte da minha história, assim como da maioria dos brasileiros. Maurício é uma jóia nacional, e o mesmo pode ser afirmado sobre o diretor de Turma da Mônica – Laços, Daniel Rezende.
Autor do ótimo Bingo, ele foi também editor de Cidade de Deus e A árvore da vida. Um raro talento que demonstra como é possível criar filmes nacionais bem realizados nos aspectos técnicos e estéticos. É nesta adaptação da graphic novel homônima que ele comprova de vez a sua habilidade. O diretor movimenta a câmera de forma bastante dinâmica e elabora composições de uma beleza plástica digna de pintura.
Os trabalhos de fotografia e direção de arte são igualmente primorosos. O primeiro, cheio de contraluz e tons dourados, em uma eterna tarde de diversão que poderia fazer parte da infância de qualquer brasileiro. Já o segundo, aposta nas cores primárias a fim de traduzir para o real o lúdico colorido dos quadrinhos. Além disto, a caracterização de mundo e personagens é a adaptação mais perfeita dos gibis que poderia ser alcançada.
É claro que nada disto funcionaria se o elenco não fosse muito bem escolhido. As crianças encarnam impecavelmente os personagens clássicos, seja visualmente ou nas particularidades que cada um possui. O filme conta ainda com easter eggs para fã nenhum botar defeito e uma participação absolutamente icônica de Rodrigo Santoro como o Louco.
Todos estes elogios significam que Turma da Mônica – Laços é perfeito? Claro que não. É verdade que Daniel Rezende não fez a edição do filme, mas por ironia, é este um dos seus pontos fracos. Na primeira metade a montagem é bastante apressada. A partir do ato que se inicia na cena da encruzilhada, no entanto, as cenas ficam mais longas do que precisavam. Este receio de cortar acabou prejudicando o ritmo do filme.
Já o roteiro, embora apresente atos bem delineados, é pouco consistente. Provavelmente o efeito de Rezende não ter dado às crianças o material para ler. O excesso de improviso impede que os diálogos sirvam para desenvolver melhor os personagens e avançar a trama de modo coeso. A trilha sonora de Fabio Góes é outro ponto fraco.
Ainda que bem mixada e com arranjos bonitos, ela acaba soando mais óbvia do que deveria, telegrafando demais os acontecimentos da narrativa. São fatores que prejudicam o filme a ponto de diminuir a sua qualidade? Apenas para o monstrinho da crítica que habita em alguns de nós. Há suficientes acertos na obra para que relevemos estes pequenos problemas.
Afinal, o resultado é visualmente belo, tecnicamente caprichado e notadamente esforçado. A proximidade visual com a graphic novel Laços, aliás, é muito grande. Daniel Rezende e toda a equipe fizeram um belo trabalho e criaram uma pequena gema preciosa do cinema nacional.
Mais do que isto: é um frescor de ingenuidade e pureza em um mundo cada vez mais cínico dentro e fora das telas. Não há nada mais a dizer além de “palabéns” aos envolvidos em Turma da Mônica – Laços.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraDe tempos em tempos algum picaretão desponta no cinema. Graças a uma estratégia de marketing esperta, e um ou outro filme mediano, o sujeito ganha a idolatria do público. É o que aconteceu com Lars Von Trier, e agora se repete com Luca Guadagnino. Anteriormente o irrelevante e misógino “100 escovadas antes de dormir” era seu único filme conhecido. Portanto, há 3 anos o siciliano era ninguém.
Com Me Chame Pelo Seu Nome o diretor finalmente acertou a mão e criou algo digno de elogio. Ainda que o resultado tenha sido um longa honesto, porém mediano. O problema aqui começa na fidelização que o italiano conseguiu do famigerado pink money. Assim como certos “artistas” brasileiros duvidosos, ele não demorou para se aproveitar da situação.
Primeiro, com as sequências desnecessárias que planeja para o seu único filme de sucesso. Agora, com este remake. Resumidamente: o Suspiria de Gudagnino é uma barafunda pretensa com pouquíssimos momentos de inspiração. Uma pincelada de imagens-pulsão que não fazem mais do que retomar fetiches do diretor. É uma obra feita sobre medida para quem tem preguiça de filmes com mais de 5 anos de idade. E também cai como uma luva para aqueles que querem manter a imagem de Cult no café da manhã.
A contextualização histórica e tentativa de aprofundamento dos temas abordados na narrativa é risível e absurdamente superficial. Não passa de um aceno ao ego do diretor. E a coisa fica pior. Ao contrário do que a maioria acredita, este filme dá indícios consistentes de ser uma fábula antifeminista. O longa quase não fala verdadeiramente sobre arte ou competição pelo sucesso. O argumento implícito é muito mais sobre como grupos de mulheres que buscam autoridade são hipócritas e autodestrutivos.
Tecnicamente a única coisa digna de elogio é a maravilhosa trilha sonora de Tom Yorke. A montagem do filme acerta quando ocorre em uníssono com a música. Sem este recurso, no entanto, soa deslocada em muitas sequências. Como a abertura que se passa no consultório do psiquiatra. Esteticamente o filme é pobre, até mesmo preguiçoso, e não lembra em nada a vibrância do original.
Na fotografia o uso de película em lugar do digital não é valorizado pela cinematografia monótona. E mesmo empregando ISO 1000 em algumas sequências, aqui e ali encontramos cenas que parecem filmadas com a sensibilidade errada. Ou seja, há muita sombra e mescla de tons acinzentados, o que leva à perda de definição nos detalhes. Tampouco os zooms repentinos - clichê do cinema setentista que se tenta reproduzir - combinam com a sobriedade exacerbada com que se conta a história. No mais, o uso de dioptros poderia ser mais bem explorado.
Já nas cenas onde a taxa de frames é alterada para algo diferente dos tradicionais 24 quadros por segundo, parece que assistimos a um dos capítulos da franquia Sharknado. E pensando bem, ainda que um pouco disfarçados, os efeitos especiais também são equivalentes aos filmes-pérola da SyFy.
Difícil de entender já que o trabalho de efeitos práticos exibia qualidade razoável em outros momentos. O final é paradoxalmente o melhor e o pior do filme. Por um lado, é a única parte original e expressiva, por outro, é executado de forma tosca, quase cômica.
O veredito é simples: como bom picareta que é, Guadagnino vai sugar até a última gota seminal do que restar nesta autofelação que ele chama de cinema. Uma sequência para este desastre que ele ousou chamar de Suspiria? Entrando dinheiro no caixa, é claro que sim. Me chame pelo seu nome 7 –Elio renascido do inferno? Por que não?
Os limites não existem enquanto houver quem endosse o vigarista. Em termos de marketing é genial – um mercado estabelecido e pronto para consumir mercadorias-fetiche de baixa qualidade. Supreme está fazendo escola no cinema. Até quando vai ser assim? Quem sabe uma intoxicação fatal alerte a defesa sanitária, ou o público incauto, quanto ao perigo destes produtos e mude a situação. Ou talvez Luca decida fazer outro filme honesto e se desfazer da picaretice.
Eu não esperaria sentado.
Homem-Aranha: No Aranhaverso
4.4 1,5K Assista AgoraApesar do cabeça-de-teia ser um dos meus heróis favoritos da infância, confesso que não dava nada por este filme. O trailer de "Homem Aranha: no Aranhaverso" parecia apresentar uma animação visualmente bonita, original e divertida, mas nada especial. Hoje, depois de assistir, posso dizer: como é bom estar errado! O longa é uma bonita homenagem ao herói e aos quadrinhos que lhe dão origem.
A abertura com retículas de impressão no título já dá o tom do carinho visual com que a animação será trabalhada. Os pontinhos permanecem durante todo o longa e são acompanhados de tracejados que lembram a arte-final em nanquim. Há inserção de caixas de pensamento e até planos de detalhe em quadros isolados, como os de um quadrinho. Em alguns momentos vemos até mesmo onomatopeias.
Outro recurso emprestado da arte sequencial são as divisões de tela em duas ou mais partes. As inspirações contam ainda com os games atuais do Aranha, assim como títulos que empregam a técnica do Cel Shading. Praticamente não há limites para a estilização e dinamismo da animação. O que percebemos nos movimentos de câmera e distorções de perspectiva. O resultado é uma obra altamente imersiva e pop.
Referências para os mais aficionados em quadrinhos não faltam: há menção aos filmes de Sam Raimi; um homem aranha loiro que lembra Ben Reilly, o clone de Parker; temos o Rei do crime gigantesco e estilizado como na arte de Bill Sienkiewicz em “Demolidor: Amor & Ódio”; Uma ponta do Aranha 2099 e até mesmo a memística série (des)animada dos anos 60.
Narrativamente é uma história de origem redonda e que faz tudo certo. A diferença é que ela sai um pouco da curva com que o público se acostumou neste tipo de conto. Há também uma variação da jornada do herói. Aqui será um Parker cansado, meio fora de forma e mais velho, que servirá como mentor do protagonista. E este é ninguém menos que Miles Morales, fazendo uma bela estreia cinematográfica e acentuando a importância da representatividade.
O que o filme regata em seu argumento ao lembrar que, afinal, “qualquer um pode vestir a máscara”. Palavras ditas por Stan Lee em um belo Cameo. E nesta participação acaba por soltar outra frase muito simbólica: “ele vai fazer falta”.
Uma referência ao Parker que havia morrido naquela realidade, mas que transcende o seu objetivo imediato na trama: é do próprio Lee que sentiremos saudade.
Destaque mais uma vez para a nossa dublagem brasileira. Além de mostrar por que é uma das melhores do mundo, o estúdio fez uma bela localização do original. Neste tocante encontramos mais uma porção de pequenas referências, como Manolo Rey nos fazendo lembrar do herói interpretado por Tobey Maguire.
Igualmente maravilhosas são trilha sonora e canção original, injustiçadas por não terem ganhado indicações ao Oscar. Poderiam ocupar facilmente o lugar de Mary Poppins e Beale Street. Até Ilha de Cachorros deveria abrir espaço. Alexandre Desplat é sempre competente, e seus arranjos para a música do longa de Wes Anderson são originais. O resultado, contudo, é relativamente blasé. Em termos de canção original era fácil deixar Buster Scrugs de lado.
Seja como for, Homem Aranha no Aranhaverso é uma verdadeira obra de arte visual. Um trabalho apaixonante que mescla linguagens de diferentes mídias com perfeição. É não só a melhor animação a concorrer ao Oscar deste ano, como também o melhor filme já realizado do Aranha.
E isso é tudo, pessoal.
Nasce Uma Estrela
4.0 2,4K Assista AgoraA Star is Born é uma história amada por Hollywood e importada diretamente da Broadway. O musical tem na versão de 54, estrelada por Judy Garland, a sua encarnação mais bem-sucedida.
Comparativamente, a repaginação de 2018 é muito mais próxima da versão lançada nos anos 70. Gaga tem até alguma semelhança com a jovem Barbra Streisand. Outra similaridade entre os dois longas é a dose sobeja de cafonice que trazem – ainda que dê para ignorar um pouco este fato.
O maior risco que se corria tendo Germanotta como protagonista era que de Nasce Uma Estrela ficasse só o nome. E por muito pouco não poderiam lançar a obra simplesmente como “Lady Gaga – O filme”. Pelo menos disfarçaria um pouco as limitações da popstar enquanto atriz. Outro risco para os produtores era que o lançamento fosse confundido com uma sequência de Hannah Montana (2009). Só que desta vez, sem Miley Cyrus.
Brincadeiras à parte, o filme não é nem de longe ruim. Bradley Cooper soube imprimir uma direção que transita entre o dinâmico e o intimista. O uso de lentes anamórficas foi uma boa escolha para a cinematografia. Embora com um ou outro atropelo narrativo, o filme conta sua história de forma bem coesa.
É importante falar aqui da preferência por não exibir a cena de suicídio de Jackson. Uma decisão bastante acertada de direção e roteiro. Afinal, este é um assunto delicado e que não deve ser retratado de forma gráfica e (ou) glamourizada.
Já na atuação, Cooper está muito bem em seu papel, sendo a versão menos tóxica do personagem até hoje. É possível sentir que há um problema real por trás de suas atitudes. Sam Elliot também arrasa, dizendo muito apenas com o olhar. E quanto à interprete de Ally? Não se pode negar a capacidade de Lady Gaga enquanto cantora, mas no quesito atriz ela se mostra apenas funcional.
Ou seja, não prejudica o filme, mas também não o eleva. Aliás, mesmo como cantora é preciso registrar um parêntese. Em diversas músicas do longa ela parece buscar apenas uma oportunidade para mostrar sua potência vocal e tessitura. Que são, de fato, invejáveis, mas configuram-se como atributos técnicos apenas. Justamente por isso as cenas com o Bradley Cooper nos vocais acabaram me parecendo muito mais interessantes.
E isso porque Gaga executa as suas peças como um assassino profissional. Muito competente, mas emocionalmente distante daquilo que faz. Não é preciso ser especialista para notar o controle meticuloso que ela mantém em cada cena onde solta a voz. Basta comparar com a entrega total de Judy Garland na versão mais famosa para entender o que faltou. É até mesmo difícil ter empatia com a protagonista desta atualização.
Por estes detalhes é de mau tom a indicação de Gaga ao Oscar de melhor atriz. Ainda que exista justiça na nomeação de Cooper e da canção Shallow. Mesmo que esta última, embora boa, seja feita sob medida para abocanhar o prêmio.
Grande crítica à indústria fonográfica, o fato é que esta versão de Nasce Uma Estrela não é um filme memorável. Provavelmente servirá para colocar um Oscar de canção nas mãos de Lady Gaga e ouriçar ainda mais os Little Monsters. Para a história maior do cinema, não fará diferença.
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraCom Infiltrado na Klan Spike Lee recupera aquilo que transformou Faça a Coisa Certa (1989) em um clássico instantâneo. Administrando seu humor subversivo ele conquista o espectador ao mesmo tempo em que escancara os absurdos da questão racial norte-americana. O início farsesco com o panfleto do Dr. Kennebrew Beauregard (Alec Baldwin) sendo gravado dá o tom do longa que vai se seguir.
Estarrecedor é notar como o discurso revisionista e preconceituoso da introdução é real. No Brasil encontramos excelentes paralelos se mudarmos apenas alguns termos. Em ambos os casos ficam patentes as artimanhas repetitivas presentes na retórica da extrema-direita. Grupo este que tem no comunismo argumento teleológico favorito na hora de justificar todos os seus excessos.
A narrativa de BlacKkKlansman, que trata de uma história inacreditável, mas verídica, é muito bem conduzida pelo diretor. O próprio investimento no humor serve de reconhecimento do absurdo que envolve o caso. Lee sabe aliar como ninguém o potencial de entretenimento de um filme ao seu valor crítico.
Assim alimenta esta que é a grande força do cinema: divertir e fazer pensar ao mesmo tempo, desarmando os espectadores. Trabalho que também pode ser feito para o mal, como atesta O Nascimento de Uma Nação (1915). Nada menos do que a obra que ajudou a ressuscitar a KKK.
Basta nos lembrarmos do relato de linchamento, tortura e assassinato de Jesse Washington para entendermos o poder desta influência. Com toda a sua inimaginável brutalidade é um caso 100% verídico. O fato estarrecedor: a obra de D.W. Griffith havia estourado nos cinemas americanos apenas um ano antes.
Inclusive, na sequência em que se menciona o caso o uso da montagem paralela é recurso que surge para potencializar as mensagens do filme. Pois ao mesmo tempo em que conhecemos os detalhes mórbidos do trágico destino de Washington ocorre a cerimônia da Klan.
Daquele aparente encontro de “cavalheiros” brancos exercendo a sua liberdade de reunião nasce a semente do ódio. O mesmo que culmina no linchamento e castração do negro. Vistos superficialmente, os supremacistas podem até ser um grupo cômico de néscios preconceituosos. Mas reunidos em grande número, e com a propagação de suas ideias, qualquer graça dá lugar à barbárie. É por isso que devemos tratá-los como o risco que realmente são.
Na direção Spike Lee mostra o domínio que tem do ofício, mantendo seu estilo dinâmico e pop. Notamos o seu talento na forma como não banaliza recursos como a câmera na mão – empregada apenas em sequências de verdadeira tensão e correria. O mesmo ocorre nos ângulos escolhidos. Como o zenital que enquadra o telefone de Ron Stallworth na delegacia em um momento particular da trama.
É quando ele recebe a primeira ligação da célula local da Klan. Uma surpresa desorientadora – reforçada cinematograficamente pela escolha do ângulo alto. O mesmo é válido para movimentos de câmera e outros recursos expressivos do longa. O diretor em diversos momentos deixa que as imagens falem por si mesmas. Exemplo disso é a sequência em que Stallworth vai investigar um terreno utilizado pelos supremacistas para a prática de tiro.
Por um bom tempo não vemos o contra-plano, ou seja, aquilo em que o grupo atirava. Enquanto acompanhamos o policial sua expressão e a música de fundo ajudam a criar expectativa pelo que virá.
A junção do trabalho de Lee e do compositor Terence Blachard culmina com a revelação dos alvos: silhuetas de crianças negras.
Outro exemplo de domínio narrativo: os personagens que deslizam por um corredor ao final da película. A sequência pode simbolizar um sonho ou um trato mais conceitual do assunto do longa. Na segunda hipótese Lee apontaria para uma das mensagens principais de seu filme: o racismo assassino não é coisa do passado. Ele ainda segue intenso e perigoso nos dias de hoje.
A ideia é reforçada pela inserção de cenas reais de protestos e confrontos. É onde se opera também a grande ironia da realidade.
Pois enquanto os supremacistas dizem que “vidas brancas também importam” o carro que passa por cima de manifestantes acaba por vitimar uma mulher branca
É importante não deixar passar a lição: o ódio é seletivo. Não obstante, os seus efeitos perniciosos adoecem e vitimam toda a sociedade. Ao escolher encerrar seu filme com o silêncio, Spike Lee nos convida a pensar e sentir o assunto profundamente. Compele-nos igualmente a lamentar a forma covarde como vidas são ceifadas pelos motivos mais injustificáveis.
Se a bandeira americana surge invertida ao final, é porque os valores de igualdade e liberdade não são respeitados. Se ela perde as cores, é porque também o sonho que deveria representar morre com a inversão. O luto que surge é pelo sangue negro derramado, e também pela humanidade perdida e afogada neste contínuo mar de ódio.
*Nota: Por esta contundente experiência, Infiltrado na Klan deve ser lembrado no próximo Oscar por direção, roteiro adaptado, montagem e trilha sonora. Além de disputar a categoria de melhor filme. Tem a minha torcida.
Mogli: Entre Dois Mundos
3.4 389 Assista AgoraNão comparar “Mogli – Entre dois mundos” com seu recente antecessor é difícil – mas vale o esforço de boa-vontade do espectador. É verdade que a computação gráfica aqui fica atrás daquela vista no filme de John Favreau. O que não é demérito. A obra da Disney, com 177 milhões de orçamento – quase o dobro desta versão –, possui um trabalho excepcional de CGI.
Para muitos críticos o longa estabeleceu “um novo padrão” a seguir. Nada mais natural quando levamos em conta o supervisor por trás deste trabalho: Adam Valdez. Duplamente agraciado no Oscar pelo segundo e terceiro capítulos da saga O Senhor dos Anéis – outro marco dos efeitos especiais.
Pesando estes fatores, não é difícil relevar o que vemos aqui em nome da história. Ainda assim é importante registrar que a antropomorfização facial dos animais foi uma escolha pouco feliz da produção. Onde encontramos um bom trabalho é no desenvolvimento do conto.
Narrativamente há maior peso dramático na forma como a história é apresentada. Vemos como a lei da selva pode ser brutal, mas nunca tão cruel quanto a ação humana. O que é exemplificado em algumas cenas-chave. Este rumo menos otimista adotado pela história é mais próximo da obra original de Rudyard Kipling.
Inclusive o urso Baloo, que incomodou muitos espectadores nesta versão, nunca foi o bonachão vida mansa da Disney. No original tratava-se de um personagem rude, mal-humorado e um tanto cruel na tutoria de Mogli. Já o trabalho de vozes aqui é tão bom quanto no longa anterior, algo esperado uma vez que o elenco tem o mesmo calibre.
O problema maior está na imersão e carga emocional do filme. Não há dúvida de que o método Disney de contar histórias foi lapidado por muitas gerações. Fator que dificulta a vida desta versão. Além disso, o peso da nostalgia e a ligação afetiva que o outro longa estabelece com a animação de 1967 desarma o público. Não obstante, são duas versões válidas e exitosas na forma de representar esta obra clássica.
Com toda desvantagem aparente, o Mogli de Andy Serkis é um filme bastante razoável. Se perde em algo para o antecessor mais hypeado, não é por insuficiência própria. É por isso que acredito sinceramente que moderando um pouco as comparações podemos apreciá-lo melhor. Siga o conselho e dê uma chance ao longa. Você vai notar que a história do menino-lobo continua bem representada.
O Destino de Uma Nação
3.7 723 Assista AgoraA esta altura Joe Wright já se provou um diretor competente na condução de dramas históricos. Com a adaptação de Orgulho & Preconceito, uma das melhores adaptações literárias de todos os tempos, e o ótimo Desejo & Reparação no currículo, a temática de época parece ser um dos pontos fortes do britânico.
E percebemos mais uma vez o talento de Wright para o ofício nos inventivos planos adotados pelo diretor neste seu mais novo trabalho. A forma como somos introduzidos ao parlamento britânico é não só imersiva, mas evoca representações da casa dos comuns na pintura. De Henry Barraud a George Hayter, há um senso pictórico evocativo da tradição britânica em quadros.
É ainda mais interessante como o trabalho do cinematografista Bruno Delbonnel se embebe em sombras, apresentando a versão cinematográfica do que seria um Rembrant dessaturado, por vezes lembrando também fotografias de época. O uso naturalista de contraluz enriquece as sombras da composição e se torna uma confirmação visual da mensagem contida no título original do filme – darkest hour ou a hora mais escura.
Delbonnel, que é mais conhecido por seu trabalho colorido em Amelie Poulain, parece ter dominado o estilo denso e carregado que começou a desenvolver em Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Já que aqui, em minha opinião, os efeitos da fotografia são muito mais satisfatórios e narrativamente eficazes.
Sobre a interpretação de Gary Oldman muito já foi dito, e só cabe confirmar o apurado trabalho de caracterização vocal e gestual do ator veterano. Auxiliado pelo excelente trabalho de prótese e maquiagem, aqui e acolá quase somos enganados de que aquele é de fato Winston Churchill.
Mas aqui começamos as ressalvas, já que o filme não apresenta uma visão suficientemente crítica sobre a figura histórica. É inegável sua importância na sobrevivência britânica durante a segunda guerra mundial, mas faltaram críticas onde sobraram elogios, mesmo que subentendidos. A sequência que se passa entre Churchill e o “povo” no metrô, é além de populista, emocional e ideologicamente manipulativa a um nível canhestro.
Churchill era o típico canalha carismático, o que não pode nos fazer esquecer que era também figura conservadora, venenosa e defensor de uma política agressiva. É um erro não apenas do filme, mas histórico, já que pouco se fala, por exemplo, do sucessor de Churchil, Clement Attlee, figura conciliadora e que criou o estado de bem-estar social britânico – posteriormente destruído por Margaret Thatcher.
No plano propriamente narrativo, não dá para negar que o resultado do filme é excessivamente morno, sem passar ao espectador a urgência e o peso do momento histórico retratado. A sensação densa e claustrofóbica criada por direção e fotografia não se reflete na história apresentada. Talvez a exceção a isto seja a cena visualmente ressonante do discurso de Churchill ao rádio.
Não é o trabalho mais inspirado de Joe Wright, nem o melhor drama político ou histórico que já foi produzido para o cinema. A verdade, é que embora O Destino de uma nação não seja um filme propriamente ruim, o provável é que seja lembrado pela posteridade como o filme que finalmente deu o Oscar a Gary Oldman.
E mais nada.
A Forma da Água
3.9 2,7KQue a literatura, assim como a filmografia de monstros é um grande ensaio sobre preconceito e imperfeição, todos sabemos bem. Além disto, com frequência estes filmes nos mostram como o temor pela diferença e pelo desconhecido sempre move a sociedade em direção à covardia e à barbárie. Por estas razões, a habilidade que Guillermo Del Toro tem para nos trazer um filme do gênero com as liberdades e técnicas do cinema moderno, é algo que merece ser elogiado e ressaltado.
A Forma da Água apresenta o clássico paradigma da criatura incompreendida, pronta para ser dissecada e explorada em nome da soberania nacional. O filme poderia praticamente ser classificado como uma continuação do clássico da Universal de 1954, O monstro da lagoa negra. Ambos apresentam uma criatura anfíbia vinda da América do sul, e que deve ter sua biologia estudada como forma de obter vantagens na corrida espacial da guerra fria. Também aqui, como lá, a criatura se apaixona pela mocinha do filme.
Mas é neste aspecto onde terminam as semelhanças. A começar pela escalação de Sally Hawkins, que não é exatamente uma “beldade” como o era Julie Adams nos anos 50 – o que nos dias de hoje não deixaria de ser inclusive -. É preciso também enfatizar: As mocinhas nos clássicos de monstro são anódinas, sexualmente reprimidas ou claramente assexuadas, existindo para despertar o desejo no espectador, nos homens da trama, assim como nas criaturas fílmicas e mais nada.
Aqui Del Toro restitui à sua protagonista o direito de possuir libido e sexualidade própria, subvertendo não apenas o clássico amor platônico entre musa e monstro, como o levando às últimas consequências imagináveis.
Guillermo acerta, portanto, em número e grau com sua protagonista, que não é o que se consideraria comumente entre o público como uma formosura. Personagem que é, além disto, muda e faxineira. Suas relações são igualmente desprestigiosas, afinal seus amigos são a companheira de trabalho negra e um ilustrador gay de meia idade que não encontra mais espaço na publicidade para a sua arte.
O diretor é muito coerente na escolha de seu núcleo de protagonistas. Não há aquele falso sentido de não pertencimento que contamina filmes que querem falar sobre excluídos, mas se recusam a representá-los por atores que não correspondam ao padrão hollywoodiano e midiático de beleza.
Sally Hawkings está ótima no papel de Elisa, marcado pela fisicalidade e pela comunicação feita primordialmente por gestos. Octavia Spencer, como sempre, abrilhanta o filme pelo simples fato de estar presente. Além de excelente atriz, a mulher é o carisma em pessoa. Doug Jones é provavelmente junto de Andy Serkis o ator mais competente que há para dar vida a criaturas.
Apesar de toda a qualidade deste elenco, é no antagonismo de Michael Shannon que se encontra o ponto nevrálgico deste longa. Por mais que muitos tenham considerado o vilão caricato – ironia, quando olho por aí e vejo pessoas e atitudes que não estão muito atrás -, não dá para negar a ótima atuação de Shannon. É patente em cada gesto do ator o quanto Strickland é fanático, preconceituoso e perturbado.
Michael Stuhlbarg está no seu segundo papel rouba-cena de 2016 aqui, e assim como em Call me by your name, sua presença em cena é marcada por sensibilidade e uma enorme capacidade de comunicar as intenções de seu personagem através do olhar.
A narrativa é bem básica, é verdade, mas não há em nenhum momento a intenção de criar uma trama complexa e elaborada por parte de Del Toro. Além disto, o tom fabulesco estabelecido desde o princípio alerta que este não é um filme onde se deva procurar cada correspondência lógica com a realidade. Importa mais ao autor desenvolver as mensagens que subjazem nas situações e relações travadas entre os personagens.
A forma da água é, acima de tudo, sobre o ódio à diferença, que pode se manifestar pelos motivos mais simples, como a cor da pele ou a orientação sexual, até chegarmos ao completamente incompreensível, a criatura, representante arquetípica do medo ao desconhecido per se, combustível de muitas das atrocidades que a humanidade perpetua contra si mesma.
Para além disto, a posição de Guillermo em termos de política é inequívoca: comunistas ou americanos, pouco importa, ambos estão dispostos a todo tipo de abusos se isto for militarmente favorável. A intelligentsia militar, por razões óbvias, é cega e faz ouvidos moucos ao sofrimento humano, aconteça este onde for. Consequentemente, se visto com atenção este filme definitivamente não é maniqueísta. Simplista talvez, maniqueísta jamais.
Em uma produção de Guillermo Del Toro já é de se esperar que a direção de arte seja um dos pontos altos. Assim como acontece com Wes Anderson, o design de produção é parte fundamental na criação da marcante identidade visual do diretor mexicano. Há uma estética aqui que conversa deveras com as histórias em quadrinhos, algo que se poderia imaginar facilmente desenhado por Mike Mignola, criador de Hellboy, ou pelo artista Dean Ormston da série Black Hammer da Dark Horse Comics.
A paleta de cores escolhida para A Forma da Água traz cores complementares, principalmente o verde azulado e tons alaranjados, mas há também variações do esquema com tríades e cores análogas. Todos os significados correntes destas cores estão presentes, e há analogias cromáticas entre as roupas de Elisa e a cor da criatura, ou entre seu estado de humor e sua vestimenta, que vai ganhando progressivos elementos em vermelho na medida em que desabrocha seu amor.
A direção, que apresenta o mundo através de travellings e outros movimentos de câmera, cria um mundo de movimento regular, como o fluxo e o refluxo das marés. É o subtema condutor do longa, a água, traduzido na forma como o diretor conduz seus planos. Não é para qualquer um, e foi esta habilidade que levou Guillermo ao devido reconhecimento pelo Globo de Ouro.
Há homenagens pontuais ao cinema antigo e um momento musical inspirado pela era de ouro do gênero, que é pura magia. Destaque também para os excertos na trilha sonora, que trazem até mesmo o sucesso Chica Chica Boom Chic de Carmen Miranda. Já a trilha original de Alexandre Desplat sabe evocar um senso de conto de fadas, a tal ponto, que seu tema introdutório me remeteu ao trabalho de John Williams em Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Em uma sociedade de normatividade, onde mesmo para ser estranho é necessária a validação do pertencimento aos estereótipos de um determinado grupo, Guillermo celebra o valor da real diferença com A Forma da Água. Embora no fundo, naquilo que é mais essencial e a despeito de todas nossas estranhezas, não sejamos tão diferentes assim uns dos outros.
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista AgoraConhecido por seu trabalho um tanto discutível em Sete Psicopatas e um Shih Tzu, Martin McDonagh era considerado a aposta mais fraca do globo de ouro e ninguém imaginaria que seu filme azarão arrecadaria tantos prêmios, se tornando não só uma surpresa da noite, como despontando também como um possível candidato de peso para o Oscar.
O novo trabalho de McDonagh funciona, sobretudo, por unir direção sólida a um roteiro dramaticamente coeso, que por sua vez é sustentado por atuações multifacetadas e de peso. Há no filme, por exemplo, um plano-sequência envolvendo um personagem sendo arremessado por uma janela, que é maravilhosamente bem executado. E embora em dois momentos a escolha de ângulos variados aliada à montagem possa ter resultado em uma edição de continuidade confusa, não há demérito técnico que diminua o filme.
De certa forma, Três Anúncios é como um trabalho dos irmãos Cohen, desde que subtraída a acentuada tendência da dupla ao cinismo niilista. Não que aqui as doses de humor negro estejam ausentes, muito pelo contrário. Mas o grande mérito de McDonagh é que seu longa consegue ser politicamente incorreto sem abdicar de um forte senso crítico, que se mostra ao mesmo tempo atual, necessário e afiado.
Exemplo disto é o diálogo entre os personagens de Sam Rockwell e Frances McDormand, em que se inicia uma discussão sobre ela ter usado a palavra crioulos, enquanto o policial preconceituoso sustenta que agora ela deveria dizer “pessoas de cor”. A terminologia aqui é absolutamente irrelevante: é o fato de estas pessoas serem torturadas gratuita e covardemente pelo policial que realmente importa.
Há inúmeros exemplos que ilustram as críticas do longa ao conservadorismo interiorano americano, que termina por ser a face potencializada de muitos defeitos compartilhados pelo país. Não que Três Anúncios se renda aos estereótipos fáceis. Nossa primeira acolhida dos personagens pode parecer caminhar por este território, mas a aparente obviedade daquelas pessoas vai sendo paulatinamente expandida para uma quadro mais complexo ao longo do filme.
Mildred Hayes, interpretada pela vencedora do Globo de ouro Frances McDormand, é um personagem complexo, cuja autoridade deriva não somente de sua enorme perda, mas igualmente do remorso que carregava pelos últimos momentos partilhados com sua filha assassinada.
Na sequência em questão, a discussão entre mãe e filha termina com ambas pronunciando o impronunciável, que evidentemente, nenhuma das duas teria o poder de prever que viria a se concretizar. O que importa, e é levantado aqui pelo filme, é quão terrível seria se as últimas memórias que guardamos de pessoas queridas fossem marcadas pelo conflito e por dizermos aquilo que jamais deveria ser dito. É um filme que fala sobre como esta culpa nos modificaria e consumiria posteriormente.
Em uma espécie de contraponto a isto está o suicídio do xerife Willoughby, que embora tomando uma atitude extrema para poupar a família de presenciar a deterioração de sua saúde até o irremediável fim, faz de tudo para garantir que os derradeiros momentos passados entre seus entes queridos possam render uma última lembrança de alegria e descontração.
É claro que o personagem de Woody Harrelson, que se estabelece como um sujeito de bom coração e devotado a família, é por outro lado um policial incompetente, e excessivamente complacente com os desvios de conduta cometidos pelo oficial Jason Dixon, personagem de Sam Rockwell. Este último é por sua vez exposto como o pior exemplo possível de um pensamento odioso que se traduz em ações ainda mais odiosas, em uma clara alusão à violência policial americana, tema cada dia mais relevante no país.
Com este tabuleiro armado, é de se pensar que McDonagh elabore um filme com vilões claros e soluções fáceis, mas aqui acontece justamente o contrário, todos os personagens são complexos e de alguma forma condenáveis. O que não impede que cada um destes possa protagonizar também um gesto de decência para com o próximo.
Como faz o xerife, ao pagar pelo anúncio de Mildred. Ou o personagem de Peter Dinklage ao criar um álibi para Mildred, impedindo que esta fosse acusada de incendiar a delegacia, mesmo em face do fato de que esta, correta em muita de suas colocações, se equivoca ao não ver o anão como o ser humano que este é, mas apenas como uma piada.
Nestas desconstruções de persona, o desenvolvimento do policial Jason Dixon é o mais surpreendente, pois a mensagem subjacente é também a mais tocante: Por vezes o que nos impede de sermos pessoas melhores é a ausência de palavras de incentivo bem colocadas, e no momento certo de nossas vidas.
São estas palavras de incentivo, que surgem da carta póstuma do Xerife Willoughby, que fazem com que o personagem reveja por completo sua conduta, uma vez que as palavras do policial morto clamam para que Dixon abandone seu ódio, e aceite que com empatia e amor, advém também calma e compreensão. Características que deveriam ser mais comuns nos agentes que cumprem a lei.
O que nos leva por fim ao que seria a grande mensagem do filme: Devemos buscar pela justiça, mas não devemos nos deixar tomar por uma cólera ressentida. Temos diante de nós o livre arbítrio para agir mais amavelmente uns para com os outros, ou de continuar alimentando o interminável ciclo de ódio e auto-importância que desde o início dos tempos contamina o mundo e só faz gerar maior desentendimento.
Assim, nos pequenos detalhes vemos a capacidade dos personagens para a empatia. Mildred, por exemplo, no início do filme desvira um besouro para que este possa continuar seu percurso. Em outra cena, a mulher principia um excelente diálogo com um cervo que surge próximo aos seus anúncios. São pequenos gestos que fazem lembrar a máxima do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, que afirmava que a compaixão pelos animais estava intimamente ligada a bondade de caráter. Em outras palavras, quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.
Também na relação de Dixon com sua mãe, ao seu modo bastante torto e incorreto, não se pode negar que há um verdadeiro afeto. E são justamente Dixon e Mildred que estão juntos ao final do filme, trazendo um encerramento relativamente aberto para a narrativa, que convida o espectador a uma reflexão.
Entre tantas barbaridades que presenciamos, podemos ser levados a acreditar que não há Deus, que o mundo todo está vazio e que não importa o que façamos uns com os outros, como expõe Mildred ao cervo. No entanto, Três anúncios para um crime, assim como sua protagonista, espera que isto não seja verdade.
Assim, em uma época de discursos extremos e polarizados, onde cada discussão da vazão à hidrofobia de um eterno fla-flu e é prelúdio para violência física e verbal, a mensagem que Três Anúncios nos trás deve ser levada em consideração. Sejamos críticos e busquemos justiça, mas não nos deixemos alimentar pelo rancor em nossa busca. Pois como diria um sábio ditado, olho por olho, dente por dente, e terminamos todos cegos e banguelas.
Ps: É provável que Frances McDormand faça uma dobradinha com o Globo de Ouro e leve também o Oscar de melhor atriz este ano. Sua atuação neste filme é irretocável.
Fica registrada a torcida.
Com Amor, Van Gogh
4.3 1,0K Assista AgoraQuando em 2016 foi anunciado que pintores profissionais haviam sido convocados para reproduzir os trabalhos a óleo de Vincent Van Gogh em 56.800 imagens diferentes, que resultariam em uma nova cinebiografia sobre o pintor holandês, foi compreensível e justificado todo furor resultante deste trabalho incomum.
É palpável já nos primeiros segundos de exibição de Loving Vincent o carinho que os realizadores investiram na realização deste filme. Uma obra que acarinha aos olhos, mas que também fez o dever de casa ao se preocupar em vasculhar o confuso manancial de relatos e escritos que formam o retalho biográfico dos últimos dias da vida de Vincent Van Gogh.
A solução adotada pelo roteiro, de transformar este percurso nas inquirições de um personagem que termina por juntar as peças junto ao público, é muito boa. Além de ser o mesmo caminho que os primeiros biógrafos do pintor tiveram de percorrer.
No entanto, o que é feliz em conceito e imagem, não permanece desta forma em termos de execução. O início do longa é apressado, incongruente com a imersão visual necessária a história contada. Há também neste primeiro ato alguns problemas de montagem, muito embora seja compreensível a dificuldade técnica em aliar narrativa, edição e montagem ao trabalho manual de pintura a óleo de cada frame – vale destacar também os flashbacks feitos à lápis e carvão, muito similares aos inúmeros esboços e estudos feitos por Vincent -.
O filme só encontra seu ritmo e tom ao final do primeiro ato. E embora a narrativa simples seja uma forma eficaz para atrair uma faixa de público mais heterogênea, acaba sendo também fator responsável por tornar o filme um tanto quanto superficial em sua abordagem.
Focar no período post-mortem e nos últimos dias de Van Gogh tem seus prós e contras, mas a maior falha reside no nível mais fundamental: Faltou vermos mais Vincent em tela. Por mais que cada cena seja pontuada por um quadro do pintor, sua persona e sua voz estão muito diluídas e distantes no ponto de vista narrativo adotado aqui.
E com isso perdemos também momentos interessantes da biografia de Vincent, como seu período como missionário no Borinage, região carvoeira da Bélgica. Um lugarejo pobre e miserável, descrito na época como “carcomido por uma enorme chaga”. É também este um dos primeiros momentos em que Vincent entrou em um quadro depressivo grave.
Muito embora, em 1879 após uma explosão de gás metano em uma mina, acidente que levou uma coluna de fogo aos céus que era visível a vários quilômetros de distância, Vincent tenha se empenhado em ajudar aos feridos e seus familiares.
Também fica de fora outro período dramático de sua existência, quando novamente em uma de suas espirais depressivas – o pintor era provavelmente bipolar – ele se descuidou tanto que perdeu todos os dentes da boca.
A verdade é que não faltam exemplos dos infortúnios e tragédias que assolaram a vida de Van Gogh. Mas há problemas biográficos maiores aqui, como a romantização de certos personagens. Adeline Ravoux era lamentavelmente uma pessoa ciosa de atenção, que cada vez que era procurada para uma entrevista mudava seu relato sobre os dias fatídicos de Vincent em Auveurs.
Doutor Gachet aparece um pouco mais vilanizado do que deveria, já que o sujeito muito provavelmente era uma figura mais inócua do que o filme supõe. O filme parece sugerir também que o médico poderia ter salvo Van Gogh de seu ferimento, mas Gachet era um oftalmologista e não tinha competência cirúrgica para remover a bala do holandês sem causar risco de morte.
Outro mito corroborado levianamente pelo filme é a famosa orelha cortada. Pois não, Vincent não cortou toda a sua orelha, mas tão somente um pedaço desta e durante um surto psicótico. E não, ele não presenteou aleatoriamente uma prostituta com o embrulho sangrento. Na verdade o pintor saiu nas ruas de Arles em busca de Gauguin.
Sabendo que o Bordel era um dos lugares mais frequentados pelo pintor francês, Vincent tentou ir até o local para confrontá-lo. Contudo foi barrado na entrada do recinto por um vigia que ficou alarmado pelo estado frenético e ensanguentado do holandês. Em um gesto desesperado então, Vincent pediu ao vigia que entregasse o embrulho com um pedaço de sua orelha à prostituta favorita de Gauguin. Com isto Vincent esperava não apenas surpreender o amigo-da-onça, mas ilustrar o estrago emocional que este lhe causara. Todavia o francês falastrão não se encontrava no bordel e a confusão em torno do gesto de Vincent já estava feita.
Mais do que ausências ou alterações, no entanto, me incomoda no filme a falta de coragem para desmentir o mito do suicídio perpetrado pelo pintor. Já que Vincent amava a vida, fato que está palpável em alguns relatos e momentos do longa. O que não foi dito, é que o pintor condenou em diversas ocasiões o suicídio em sua correspondência, e de forma veemente. Além disto, é perceptível que se havia alguma imagem que sondava sua mente em termos de auto-dissipação, esta diria respeito ao afogamento.
Vincent, aliás, não só nunca tocou em uma arma de fogo, como nutria certo desprezo pelo aparato. E aí vem a segunda e maior covardia do longa: Não afirmar categoricamente e em todos as letras que o disparo que matou Van Gogh partiu de René Secretan. Todos os relatos da época levam a crer que o sujeito se tratava não só de um playboy arruaceiro, mas provavelmente de um sociopata. Não surpreende que tenha terminado como banqueiro, “pai de família e homem respeitável” ao final da vida.
Vincent também não era exatamente amigo de René como faz acreditar a narrativa, e sim de seu irmão Gaston. Verdadeiro avesso do outro Secretain, este era um rapaz introvertido e com gosto pela arte, que posteriormente veio a trabalhar no cinema mudo – mas que lamentavelmente nunca foi entrevistado a respeito de Vincent -. É possível que ao preferir que ninguém levasse a culpa pelo ocorrido, ele protegesse muito mais à Gaston do que ao irmão René.
Quanto à falta de confissão na derradeira entrevista que René deu a Marc Traubault, um dos biógrafos de Van Gogh, é ou sintoma de sua ausência de remorso, ou na melhor das hipóteses, a confirmação de um infeliz acidente pelo qual ele se recusava a se sentir culpado.
Loving Vincent faz com o caso um gesto de Pilatos e fica a cargo do espectador escolher aquela versão que mais lhe apraz, se o suicídio, ou a morte nas mãos de um adolescente abastado e inconsequente. Mas a verdade é que não vale falarmos do fim de Van Gogh, quando o pintor preferiria muito mais que olhássemos para sua vida e sua obra. Vincent não procurou a morte, mas uma vez que esta se apresentou, também não a recusou. Assim ele não seria mais um fardo para o irmão ou qualquer outra pessoa, como o filme expôs.
Neste espírito, os momentos finais de Loving Vincent não são apenas muito belos, mas também muito inspirados. Quando a voz epistolar do pintor nos diz:
“Quem sou eu aos olhos da maioria das pessoas? Um ninguém. Uma não-entidade, uma pessoa desagradável. Alguém que não tem e jamais terá qualquer posição na sociedade. Em suma, o mais baixo do baixo. Muito bem... mesmo que isso seja absolutamente verdade, então um dia gostaria de mostrar, através da minha obra, o que este ninguém, esta não-entidade, tem em seu coração.”
Uma das obras referenciadas na cena em que acontece este discurso é “O semeador”, versão de um quadro de Jean-François Millet, pintor francês realista e grande “muso” de Van Gogh. Para além da influência temática, o semeador era uma figura que acompanhava Vincent desde a infância. Nos sermões do pai, Dorus Van Gogh, a figura do semeador trazia não apenas o sentido da parábola de Paulo, ou seja, “tudo o que o homem semear, também colherá”. Dada a região arenosa, prenhe em pântanos, e difícil de cultivar em que viviam, o semeador representava também um modelo da perseverança diante da adversidade, afirmando o poder da persistência em vencer todos os obstáculos, em triunfar de todos os reveses.
É por isto que Vincent com seu trabalho de Sísifo, intenso e breve, teria se alegrado ao ver uma de suas imagens favoritas ligada ao discurso mais puro de seu coração que tanto e tão dolorosamente sentia. Loving Vincent, embora com tantos defeitos, é ainda uma realização que encanta e emociona. Pois é inegável que a obra do pintor o alçou para além da “estupidez vazia e da tortura sem sentido da vida”.
Afinal, “as ilusões podem desaparecer, mas o sublime permanece”.
Star Wars, Episódio VIII: Os Últimos Jedi
4.1 1,6K Assista AgoraNo ano de 2015 J.J. Abrams recebeu a tarefa hercúlea e quase ingrata de dirigir e roteirizar o filme que iniciaria a nova franquia de Star Wars no cinema, dando continuidade a saga 30 anos depois do fim apresentado em Episódio VI – O Retorno de Jedi.
Abrams, que já havia sido relativamente feliz em seu reboot de outra franquia espacial, Star Trek, conseguiu ser bem sucedido em seu teste de fogo, entregando um longa deferente ao material de origem, mas com suficientes elementos novos para fazer com que se criassem expectativas pelo oitavo capítulo da saga.
Mesmo que para isso, a bem da verdade, J.J. tenha trazido em Force Awakens uma volta ao mundo de Star Wars, seguida por uma introdução aos novos personagens, e uma breve apresentação da premissa que moveria a trama. Relegando assim às sequências o material verdadeiramente novo que os fans tanto aguardavam. Uma escolha que de certo decepcionou a alguns espectadores, que viram no episódio VII nada mais do que um pastiche da trilogia original. Gostos e opiniões à parte, este era um caminho narrativamente necessário para não apressar demasiadamente a história.
Tudo isto dito, é também importante lembrar que a qualidade do trabalho técnico em Force Awakens é indiscutível, deixando para o sucessor de J.J. na direção, Rian Johnson, uma tarefa ainda mais ingrata do que a sua havia sido, já que Rian precisaria não só se equiparar tecnicamente ao diretor anterior como superá-lo narrativamente.
Passados dois anos, cá estamos nós com Os Últimos Jedi, oitavo filme da série e que começa precisamente de onde parou seu antecessor. De fato Johnson não decepcionou na direção, ouso até dizer que conseguiu ser ainda melhor do que J.J. Abrams, não só na condução do filme, mas sobretudo, em termos de narrativa, por se manter fiel ao original, mas através de uma distância respeitosa, assumindo os riscos necessários para que a saga vivesse algo realmente novo. Coisa que havia faltado ao episódio anterior.
Na direção, Johnson usa e abusa das tomadas em perspectiva, onde faz o público sentir a imensidão das naves no espaço, algo muito parecido com o que já havia feito Gareth Edwards em Rogue One, um filme onde a diferença de escala entre os objetos é muito bem trabalhada e evidenciada. A diferença, é que aqui o diretor alia uma perspectiva típica de lentes grande-angulares, distorcidas, com o a tecnologia 3D, criando naves que literalmente saltam da tela, mais do que em qualquer outro dos filmes da saga. Uma evolução natural e bem sucedida dos expedientes visuais utilizados por George Lucas no original de 77.
Johnson e o diretor de fotografia Steve Yedlin – que já havia trabalhado com o diretor em Looper, A Ponta de um crime e Vigaristas – aproveitam ao máximo as belas locações reais ou artificiais para dar vazão a texturas, luzes e cores diversas, apresentando, junto ao excelente trabalho da direção de arte, o que é provavelmente um dos filmes mais visualmente ricos e vistosos da saga.
Quanto ao roteiro, este brinca com as expectativas de quem assiste ao filme, subvertendo muito do que esperamos narrativamente, ou mesmo quebrando teorias e hipóteses levantadas pelos fans nestes anos de espera pela sequência.
O retorno de Luke Skywalker, por exemplo, é muito diferente do esperado, mas o filme é bem sucedido em justificar as mudanças no personagem, e lhe permite uma despedida visual e narrativamente bela: Vendo pela última vez um pôr-do-sol binário, Luke está se ligando ao momento do início de sua jornada em Tatooine, quando observou o mesmo fenômeno depois do desaparecimento de R2D2. Em resumo, é um ciclo que se fecha de forma redentora e harmônica para o personagem, assim como para a saga.
O senso de perigo e urgência neste filme é algo que eu não via em muito tempo no cinemão de grande bilheteria, já que por diversas vezes o espectador se vê assistindo ao pior acontecer, e em outros momentos até espera pelo pior, embora este não aconteça.
Johnson brincou com nossos sentimentos de todas as formas possíveis. Esperamos Luke como um novo Obi-Wan, mas isto não acontece, assim como Rey também não é uma nova Skywalker. Ou mesmo o líder Snoke – maravilhosamente interpretado por Andy Serkis - que não será um novo imperador. Este é um filme que investe muito em quebras de expectativa narrativa e cria um dos capítulos mais sombrios da história de Star Wars. É também, aliás, uma história que demole por completo a tendência maniqueísta que sempre ameaçou Guerra nas Estrelas.
Entre as queixas que o filme suscitou, há uma a respeito de certa cena em particular que não tem o menor fundamento.
A sequência em questão é quando Leia usa a força para sobreviver a um curto período no espaço e flutuar de volta a sua nave. A contestação é uma grande besteira, pois na saga original foi expresso que sendo ela também uma Skywalker, Leia poderia e iria desenvolver o uso da força, coisa que o universo expandido não se negou em mostrar, e que foi negligenciado no episódio VII – aliás, este filme trás uma bela atuação da saudosa Carrie Fisher, assim como a interpretação mais poderosa de Mark Hamill no papel de Skywalker -. Ademais, a atual saga faz crer desde o episódio anterior que momentos de tensão ou risco de vida podem fazer aflorar a força – pensem nos momentos em que Rey encontra-se cativa de Kylo Ren em Despertar da Força.
Os subtextos apresentados pelos diálogos deste filme são um êxito à parte. Desde a autocrítica que Luke faz a empáfia farisaica da antiga ordem Jedi, às analogias feitas aos próprios fans da saga, quando o personagem diz que a força não pertence a ninguém, ou que é tempo de deixar que certas coisas morram no passado. A força neste filme, assim com os Jedi, são tirados de seu pedestal, podendo a primeira reascender ao seu posto místico e transcendente original, enquanto os outros finalmente podem ver-se como falhos e disto tirar seu maior aprendizado.
Por mais que nem todos tenham se contentado com o segmento de Finn e Rose Tico na cidade cassino de Canto Bight, é dali que vêm um dos diálogos mais afiados do filme, e minha menção favorita até o momento. Rose analisa, com muita razão, que uma cidade como aquela, luxuosa, voltada para a pompa e o divertimento dos ricos e poderosos, não se cria puramente com boa vontade e desejo por diversão. Com frequência é o sofrimento que financia todo este luxo. Algo que pode se relacionar tanto à Hollywood cercada de escândalos escabrosos em sua história, até exemplos históricos como a Bélgica, país bem desenvolvido e rico do primeiro mundo, cuja riqueza se fundamentou basicamente no espólio da África, chegando a causar o que é conhecido – lamentavelmente por poucos – como o holocausto do Congo, já que mais de 10 milhões de pessoas foram mortas na colonização do país.
O filme também é direto ao apontar uma verdade incomoda e largamente ignorada: São os fabricantes de armas os únicos a realmente lucrar com a guerra. Seus armamentos vão para ambos os lados, sem discriminar ideologias e causas, afinal, são todos clientes em potencial uma vez que queiram se matar uns aos outros.
Passando agora dos acertos aos erros, há ao menos uma solução apressada no roteiro, que faz com que o filme pareça ter um furo narrativo, embora seja possível juntar os pontos prestando-se atenção aos acontecimentos apresentados. Não se trata, portanto, de algo que prejudique irremediavelmente o longa.
Assim, depois de duas horas e meia, fica claro que The Last Jedi se mostra como um filme que injeta folego novo ao cânone de Star Wars por ser audacioso na medida certa. É além disto, um competente trabalho da parte de Rian Johson, que virando o jogo, deixou uma tarefa difícil nas mãos de J.J. Abrams para o encerramento da saga.
Apesar de tudo isto, não é um filme perfeito. Emocionante e impactante? Sim! Mas ainda perde para a completude de O Império Contra-Ataca, o melhor filme da saga, cinematográfica e narrativamente. Não que The Last Jedi faça feio, porque este é seguramente um filme memorável e que repousará com dignidade junto a seus irmãos mais velhos numa galáxia muito, muito distante.
Invasão Zumbi
4.0 2,0K Assista AgoraNão seria exagerado afirmar que nunca antes os zumbis estiveram tão em alta quanto estão agora, encontrando representação nas mais variadas mídias, como filmes, séries, jogos e quadrinhos. Infelizmente com a popularidade também advém certa saturação do gênero – ou subgênero – que vem sendo mais mal explorado a cada nova produção. Levando em conta este panorama não surpreende então que seja um filme sul-coreano a trazer um pouco de respiro a um tipo de filme, que em mãos ocidentais, estava se tornando perigosamente parecido com seus personagens mais famosos: um ser morto-vivo em franco e acelerado estado de putrefação.
Note-se que o feito de reviver o gênero é realizado, por exemplo, quando o filme na mesma proporção em que apresenta elementos clássicos da vertente zumbi, também os subverte em alguma medida. Pensemos primeiro, no fato de que ao contrário do que acontece nos filmes americanos – frutos de um país sabidamente belicoso – aqui não há armas de fogo nas mãos de todo e qualquer personagem. Quem nunca se pegou pensando no que aconteceria durante uma epidemia zumbi vista pelo lado mais numeroso da sociedade, ou seja, civis desarmados? O simples conceito seria por si mesmo aterrador, mas com criaturas tão frenéticas quanto as deste filme, o terror de fato foi elevado a outro nível – algo só equiparável, talvez, ao filme “Extermínio” de Danny Boyle.
O diretor Yeun Sang-Ho soube usar o espaço claustrofóbico do trem, e a sensação de confinamento, para renovar o sentimento de isolamento e paranoia comumente visto nos apocalipses zumbis. Já nos panoramas, o sul-coreano trabalha de forma a mostrar o grau de deterioração da sociedade atingida pela epidemia, assim como para ressaltar a voracidade e a quantidade de zumbis que perseguem os personagens da história.
Invasão Zumbi também inova na escolha de seu protagonista. Visto que em lugar de se valer de um personagem com que o público possa se identificar facilmente, ou em lugar de exibir o clássico héroi/anti-héroi virtuoso, o que temos é um indivíduo elitista e superficial, que passa por um arco completo de amadurecimento durante as quase duas horas do filme. Aliás, as críticas apresentadas ao pensamento elitista são bem interessantes, a maior parte perceptível nas cenas que envolvem o sem-teto interpretado pelo ator Choi Gwi Hwa. E como não poderia deixar de ser, o verdadeiro antagonista deste filme não é o vírus, e tampouco os zumbis, e sim, como Romero já nos havia demonstrado antes, o egoísmo e a estupidez humana, representada aqui tão bem, que é difícil não passar um pouco de raiva nesta viagem para Busan.
Pode-se argumentar contra o filme que um ou outro uso de efeitos especiais tenha sido mal sucedido e exagerado, mas não há nisso o suficiente para prejudicar o longa. Talvez se possa em vez disso apontar também que os índices do roteiro tendem a parecer um pouco óbvios, já que para além de destacarem elementos narrativos importantes, terminam por deixar algumas pistas fáceis de qual o próximo personagem a morrer. O que não é tão grave a ponto de se tornar um demérito, até mesmo porque a estrutura narrativa do filme é coesa e redonda dentro de sua proposta.
Tudo isto exposto, ouso dizer que este filme é o herdeiro legítimo do recém-falecido George Romero, já que consegue unir entretenimento, valor crítico e zumbis, em uma única mistura homogênea e de qualidade. O final do filme, aliás, é similar em estrutura e intenção ao final apresentado em “A noite dos mortos vivos”, de 68.
Se no filme de Romero, o último sobrevivente é um negro, que termina sendo executado pelas forças armadas, ou seja, um indivíduo indesejável e descartável numa sociedade no auge do racismo e do segregacionismo, no filme de Sang-Ho os dois últimos sobreviventes são uma mulher e uma menina, grupos que ainda são em muitas sociedades considerados menos relevantes do que suas contrapartes masculinas.
Busanhaeng apresenta um final muito mais otimista do que o clássico de Romero, no entanto, apostando justamente que nestes personagens reside o nosso futuro. Assim, se o soldado não dispara no momento final executando a ambas, o que o diretor nos diz é que naquele mundo ainda não se abriu mão da humanidade em nome de um pensamento que resolve seus temores através de uma suposta “prevenção armada”, que não passa de covardia e desumanidade.
Também é significativo que a menina seja reconhecida como uma sobrevivente não infectada por cantar a musica Aloha Oe – adeus a ti - enquanto caminha pelo túnel escuro. Sequência esta que representa não apenas a humanidade a ser reconhecida e partilhada com os soldados, mas também o adeus final ao pai da menina que havia se sacrificado para que ela e a outra sobrevivente pudessem chegar até ali. A canção tanto pode simbolizar a “presença” do pai no túnel de uma forma subjetiva e espiritual, como uma segunda e indireta forma como ele pode ter ajudado a salvar a filha. O fato é que cantando para ele - e para nós -, tanto Soo-an quanto a mulher grávida são salvas, dando ao longa um final otimista e fechando com chave de ouro um filme divertido, crítico e muito bem executado.
Trem para o Inferno
2.9 9É bem verdade que as pretensões moralizantes do filme hoje em dia podem soar descabidas – mesmo que sejam arrazoados alguns dos conselhos apresentados -. Todavia, interessa mais que o divertimento proporcionado pelo filme, seja este voluntário ou não, me pegou em cheio. Exposto como na época junto à pregação deve ter sido um fenômeno do entretenimento – quem é Edir Macedo na fila desse pão? -.
Não obstante o dito acima, a forma crua como certas cenas são retratadas também chama a atenção. E aqui me refiro à sequências como aquelas que envolvem violência/assassinato ou cenas chocantes como a menina que fuma imitando a mãe. Isso se dá de uma tal forma que este longa consegue ser nestes aspectos mais natural e gráfico do que o material que viria a ser apresentado pelo emergente drama de gangsteres do cinema americano – o gênero mais gráfico e violento até então -.
Que muitos rejeitem o filme por suas admoestações e que prefiram um catecismo mais ao estilo Carlos Zéfiro, é até compreensível. Mas não consigo desgostar por completo do filme, até por que, o diabo aqui fica tão feliz que é contagiante, e difícil mesmo fica não torcer pelas iniqüidades humanas que façam nosso diabinho pular um pouco mais.
Nesse trem para o inferno, para nossa alegria, que regozije o capeta.
Okja
4.0 1,3K Assista AgoraOkja é o tipo de filme que vale a pena analisar em termos de conteúdo e mensagem passada, a despeito de suas qualidades na execução.
Particularmente, e para além de discutir méritos e deméritos do veganismo, me parece que o discurso adotado pelo longa é muito mais efetivo e muito mais interessante do que teria sido se tivesse atendido a demanda em questão. A superporca Okja, mais do que um animal, simboliza a natureza como um todo. Embora narrativamente a criatura tenha sido criada em laboratório, e seja portanto, artificial em alguma medida, no plano simbólico seu papel assume outro tom. No primeiro arco do filme há uma cena bastante esclarecedora neste sentido: Quando Okja salta sobre um lago espalhando os peixes para que Mikha os colete, há um pequeno peixe que a menina devolve ao lago. O que o diretor Bong Joon-ho quer nos dizer com isto e com todo o resto de seu filme, é que ao invés de predarmos e explorarmos a natureza, podemos agir em conjunto com ela para mútuo benefício. Mensagem esta que é reafirmada pela proximidade que a menina Mikha mantém com a porca geneticamente modificada.
Muito mais do que refletir sobre o consumo de carne, o objetivo deste filme é criticar a indústria capitalista de alimentos, e sua desenfreada exploração dos recursos naturais. É possível afinal comer carne, ou extrair algo da natureza, dentro de um sistema mais humano e responsável do que aquele em que vivemos. Lembremos que a indústria alimentícia como um todo – incluindo-se aí a agricultura industrializada – causa danos ao meio ambiente e à saúde de seus consumidores. Não é difícil ver o paralelo entre a inescrupulosa Mirando e a companhia Monsanto, conhecida por seus produtos transgênicos sabidamente nocivos.
Apesar deste discurso, e ao contrário do que acha muita gente, Bong Jooh-ho não constrói um filme reducionista, visto que não opõe capitalistas sanguinários a “guerreiros verdes da liberdade”. Mesmo os defensores dos animais são representados aqui como falhos, e nem sempre suas motivações e suas ações são as mais altruístas ou defensáveis. Se quisermos um exemplo real, basta pensar em organizações como o Peta, que parecem mais interessadas em ganhar mídia pelo choque barato, do que em realmente contribuir para a proteção animal.
Em alguma medida é compreensível a decepção de quem esperava Okja se apresentando como um panegírico veganista, embora eu não saiba se a expectativa neste sentido foi alimentada por uma campanha de marketing equivocada, ou talvez pouco objetiva, ou se é o caso de as pessoas simplesmente exigirem que o filme se encaixe em suas crenças a despeito de tudo. Seja qual for a razão do descontentamento, este pormenor não diz respeito à qualidade do filme, que constrói no seu primeiro terço cenas que fazem lembrar as animações do Studio Ghibli – também conhecido por suas histórias em defesa da natureza -. O que não é pouco mérito.
A oposição que vai se criando com o tempo entre as verdejantes florestas sul-coreanas e as cidades, ou os complexos industriais cinzentos, entre a relação afetiva de Mikha e Okja em comparação ao sistema cruel de produção pecuária, é a oposição entre uma vida simbiótica com a natureza e a esterilidade do capital que com nada se importa exceto o lucro. Uma mensagem que, volto a dizer, termina por ser muito mais acessível e relevante para o momento em que vivemos.
Orgulho e Preconceito
4.2 2,8K Assista AgoraDepois de ler o original de Jane Austen, e tendo assistido a este filme atentamente, e pela enésima vez, fica flagrante a competência de Joe Wright para adaptações literárias. Ao contrário da maioria dos empreendimentos cinematográficos que pretendem traduzir livros, aqui o diretor não partiu de uma leitura superficial da obra, e atentou-se não apenas ao espírito do livro, que se faz presente em cada minuto do longa, como também teve especial atenção aos detalhes que tornam Orgulho & Preconceito um clássico.
A ironia mordaz, tão característica de Jane Austen, não faltou ao filme, que mostra de inúmeras formas o ridículo de uma sociedade preocupada meramente com as aparências. E em cujo seio as mulheres eram preteridas não apenas como herdeiras, mas também como indivíduos, que não tinham direito a voz e muito menos a possuir opiniões de fato.
Na direção, Wright faz bom uso dos planos sequência para estabelecer os locais, personagens e relações da história, tecendo pequenos panoramas que traduzem com perfeição as descrições cáusticas da autora inglesa. No início, por exemplo, é acompanhando Elizabeth ao chegar de uma caminhada, que conhecemos Longbourn e temos o primeiro vislumbre de seus habitantes da família Bennet. Mais tarde, durante o baile em Netherfield, a longa tomada nos faz passear pela festa, evidenciando as relações entre os personagens, e mesmo suas idiossincrasias. Basta notar como a Senhora Bennet e suas filhas mais novas transitam efusivas pela festa, ou como o tragicômico Mr. Collins encontra-se sozinho e pensativo com uma flor na mão, gesto índice da proposta de casamento que em breve fará à Liz Bennet. Esta que por fim encontra-se afastada da festa, refletindo seus dissabores com Mr. Darcy.
Há também uma atenção invejável aos detalhes, sobretudo no que diz respeito aos olhares, risos e gestos, de cada personagem. Ao espectador atento, ou ao leitor da obra de origem, há muito significado em cada olhar trocado. As miradas mais óbvias, claro, seriam as da protagonista, Elizabeth, mas Wright não tem menos cuidado com os personagens secundários. Basta observar como Mary, a filha mais nova dos Bennet, pedante e de um moralismo vazio, parece deferente e até simpática ao pomposo Mr. Collins – assim como acontece no livro -.
Em dois momentos chave da narrativa o diretor decide pela câmera na mão, e aquele leve tremor da imagem, em um filme com tamanha precisão em todas as suas cenas, coincide com as emoções exacerbadas da protagonista. São estes momentos a declaração de Darcy e a visita acintosa que Lady DeBourgh faz a Elizabeth.
Quanto à cena em que Darcy se declara pela primeira vez, tanto MacFadyen quanto Knightley dão um show de interpretação, deixando transparecer não só o desprezo mútuo que cresce na superfície da relação entre os personagens, mas também o que há de menos evidente - basta reparar a linguagem corporal e os olhares que trocam depois das farpas.
O diretor de fotografia Roman Osin faz também um trabalho admirável, transformando o filme em um misto de pintura neoclássica e realista que acarinha aos olhos.
A luz no filme é deveras expressiva, já que no princípio é quente e dourada, ressaltando o espírito alegre dos personagens, mas no momento em que Elizabeth Bennet se sente infeliz, há o uso de uma luz ambiente mais fria, com o predomínio de penumbras nos espaços internos, que simbolizam a melancolia do estado afetivo e mental da personagem.
Não é a toa que no primeiro momento em que Darcy se declara, o faz sob forte chuva. O que difere do livro, mas acrescenta em dramaticidade ao filme, e se coaduna com os sentimentos revoltosos e confusos da protagonista. De igual forma acontece quando ao final do filme Darcy se declara mais uma vez: Primeiro vemos Lizzie caminhar na madrugada lúgubre, encimada por um céu violeta triste e cercada por sombras e névoa, depois Darcy caminhando ao longe, trazendo junto consigo a alvorada – a medida que o plano se aproxima, o dourado do sol mesmo passa a predominar na tela – e quando tudo está resolvido vemos brilhar com máxima intensidade o astro entre os dois amantes, o prelúdio dos bons augúrios que o futuro os trará.
A direção de arte é tão atenciosa quanto todo o resto. Basta notar como a casa de Lady DeBourgh é algo rococó, excessivamente floreado e de acordo com sua pretensa dona, em oposição ao neoclassicismo bem equilibrado de Pemberley. Há de se reparar também, que na visita de Elizabeth à propriedade de Darcy, sua admiração das esculturas é símbolo de seu desejo que aflora – eros e psique encontrando-se na observação das formas em mármore – e como as discrepâncias entre esta propriedade e aquela da tia de Darcy acentuam dois comentários da autora no livro: O de que um fazia bom uso do espaço e possuía bom gosto, enquanto a outra, a despeito de toda pompa, não possuía senso de estética ou arte, e era de franco mal gosto. Sendo estes detalhes reflexos de suas personalidades.
O que dizer do elenco então, que não só apresenta um trabalho competente, mas encarna com perfeição os personagens do livro. Keira Knightley possui toda a espirituosidade e impetuosidade da mordaz Elizabeth. Sua família é igualmente fiel ao livro, da introspectiva Jane, às histriônicas irmãs Kitty e Lydia e mesmo sua disparatada e dramática mãe. Donald Sutherland como Senhor Bennet é não só excelente, mas de um carisma admirável, e faz uma atuação comovente quando, lágrimas nos olhos, percebe que Darcy era uma pessoa diferente do que imaginava e que sua filha de fato o amava.
Quanto a Matthew MacFadyen, embora tenha feito um bom trabalho, há um porém. Tendo assistido também a produção da BBC, cheguei a conclusão de que na primeira metade do livro Mr. Darcy corresponde muito mais a atuação de Collin Firth. A saber: abertamente arrogante, de modos bruscos, quase grosseiros. Em compensação, na segunda metade da obra falta ao ator veterano a sutileza de sentimentos que Matthew apresentou tão bem. Em suma, a primeira metade da obra teria Collin Firth como Sr. Darcy, enquanto a segunda, Matthew MacFadyen. Também me parece que Mr. Collins estava mais próximo de sua versão televisiva, mais obviamente cômica. Embora o Sr. Collins de Tom Hollander seja igualmente plausível. Judi Dench está aterradora como Lady DeBourgh, com toda sua empáfia e crueldade, mostrando a grande atriz que é – aliás, um pequeno parêntese sobre a direção de fotografia: O modo como ela é iluminada de baixo para cima, fazendo parecer uma bruxa má de conto de fadas, no momento em que confronta Elizabeth ao final do filme, é um belo toque de sarcasmo.
Além disto tudo, Wright soube condensar bem os acontecimentos do filme em poucas cenas, dando um ritmo prazeroso ao longa, cujas duas horas passam num piscar de olhos. Há também criativas elipses de tempo, como quando vemos o rosto de Elizabeth e as mudanças de luz ao seu redor denunciando as horas do dia que se passam, ou quando ela gira em um balanço e pelo seu ponto de vista vemos os dias transcorrerem.
Assim sendo e por tudo isto posto, parece arrazoado arrematar dizendo que Orgulho & Preconceito é definitivamente uma das dez melhores adaptações literárias para o cinema de todos os tempos.
La La Land: Cantando Estações
4.1 3,6K Assista AgoraCONTÉM SPOILERS!
Dos filmes que causaram furor nos últimos anos La La Land é provavelmente um dos que mais justifica os comentários elogiosos. A habilidade com que Damian Chazelle conduz sua história fica evidente já desde o elaborado plano sequência que abre o filme com toques de Grease, transformando um engarrafamento, a situação prosaica por excelência, em um clássico e animado convite ao musical que se inicia.
Visualmente, Chazelle reproduz em cenários reais de encher os olhos o que Hollywood nos tempos áureos só conseguia fazer em estúdio. O uso da famosa “hora mágica” neste filme rende algumas das imagens mais marcantes a ser reproduzidas no cinema nestes últimos anos. Afinal, quem não guardará na memória aquele por do sol róseo que serve de moldura ao início da relação entre Mia e Sebastian?
E este longa não é só uma grande homenagem aos musicais da era dourada de Hollywood, - Sobretudo as obras realizadas por Stanley Donen, como o icônico Cantando na Chuva, além de suas parcerias com Audrey Hepburn -, mas é também uma grande homenagem ao sonho que move o cinema, a música e a arte de uma forma geral.
Assim, o filme não é feito só de vibrantes – e significativas – cores, mas é também um grande exercício de tradução visual da subjetividade dos seus protagonistas. Arrisco mesmo dizer que em nenhum outro filme a realidade subjetiva dos personagens foi tão bem ilustrada por números de música e dança. É fácil perceber em cada melodia, em cada passo dançado, os sentimentos que não vem à superfície, ou aquelas palavras triviais de uma conversa, que importam menos por seu significado, do que pelo contexto emocional de que se carregam. Todos estes elementos sutis da relação afetiva entre duas pessoas estão ilustrados com primor, seja em música, ou nos números de dança.
Damien Chazelle já desde Whiplash mostra que entende profundamente do casamento entre música e imagem, o que resulta em uma direção afiada, com montagem bem ritmada e característica, o que faz com que La La Land, assim como sua grande referência, Cantando na chuva, se apresente ao espectador como uma experiência transcendente, que pulsa com vida e prazer pela arte cinematográfica.
É claro que a música é tratada com especial carinho neste filme, pois representa em mais de um momento a expressão máxima de alma e sentimento de seus protagonistas. Não é por acaso que é tocando sua própria composição que Sebastian desperta o amor de Mia pela primeira vez. Também não é por acaso que a interpretação de “Fools Who Dream” – momento em que Emma Stone brilha com maior intensidade – é a audição que finalmente permite a realização do sonho da personagem de ser atriz. Afinal, este não é um momento em que ela simplesmente atua, e sim o instante em que faz o seu sentimento, a sua alma, transbordar, tocando aos seus avaliadores e a platéia de forma igual.
A trilha sonora não se mantém aquém da qualidade técnica excepcional do filme, e digo isso não apenas por parte de suas canções originais, mas também pelo uso de músicas “exteriores” ao filme, como Take On Me, ou mesmos os inúmeros jazz que permeiam o filme, embora nem de longe o jazz seja aqui um protagonista – como era em Whiplash -.
Aliás, há quem preferisse que os atores apresentassem uma execução mais técnica das canções, coisa de que eu como músico discordo veementemente. Acho ótimo que os atores não sejam músicos tecnicamente perfeitos – embora Ryan Gosling tenha feito bonito ao piano e a interpretação de Fools Who Dream de Emma Stone seja irretocável -. As pequenas imperfeições e hesitações colorem o filme, trazem humanidade às interpretações, exacerbam a emoção e aproximam os personagens do público. Uma execução perfeita, de cair queixo de jurado de programa de calouros, teria rendido um filme rococó e sem alma. Novamente, como músico, não me iludo com técnica pura e simples, já que muitos músicos habilidosos possuem interpretações viciadas e (ou) assépticas, o que os torna emocionalmente irrelevantes.
Quanto aos outros aspectos do filme, de uma forma geral a cor é um dos grandes recursos de enriquecimento cinematográfico, e aqui é usada não só para encher os olhos, mas também para aprofundar as ideias apresentadas. Afinal, o bom uso da cor afeta nossa percepção fílmica.
Há em La La Land desde os vermelhos como símbolo de romance, sensualidade, poder e desafio, aos amarelos de alerta, exuberância e mesmo tédio, passando pelos azuis melancólicos, passivos, frios, indo até à ambivalência dos verdes, representantes tanto de vitalidade e esperança, quanto de decadência e corrupção. Não são esquecidos também os roxos, ilusórios, fantásticos, subjetivos e etéreos. Enfim, toda a gama de cores e todas as suas plurais significações foram lindamente trabalhadas neste filme.
Um exemplo da complexidade com que Chazelle trabalha as cores é a cena em que Mia e Sebastian sentados ao piano fazem seu dueto de “City Of Stars”. Bem no início da sequência, quando ouvimos a melodia ao piano e Mia entra em casa, a cor predominante é o amarelo, representando a ideia de que todo o sonho de Sebastian com relação ao jazz se transformou em um exercício tedioso, pois ele não gosta daquilo que faz. Mia usa rosa, ela ainda é o amor e a afeição que podem atenuar o sofrimento de Sebastian, que quando finalmente aparece em cena está com o rosto carregado de sombras, mas cercado de verde. Aqui o jogo de cores diz: Há esperança enquanto ainda houver amor. O que é confirmado pela letra da canção “É amor. Sim, tudo que procuramos é o amor de outra pessoa”. Mas o amarelo ainda se intromete em cena, como um aviso. Quando se sentam lado a lado, o amarelo que banha seus rostos é quente, convidativo, mas o verde que os cerca é frio. Há “calor” no afeto dos dois, mas nossos protagonistas já estão cercados pela possibilidade de que aquele amor se envenene de alguma forma. A montagem seguinte de cenas faz um uso variado de cores, mas o mais importante, é que entre as cenas finais há uma predominância de azul, a cor da melancolia, o aviso de que apesar de tudo a tristeza vai se abater sobre Mia e Sebastian.
Seria possível fazer uma extensa análise do uso da cor como recurso expressivo em La La Land, pois do início ao fim, não há cena em que esta se apresente de forma gratuita.
Em sua estrutura o filme é dividido entre as estações do ano, que marcam não só o desenvolvimento da narrativa, com sua apresentação, desenrolar e conflitos, mas também explicitam diferentes fases da vida dos personagens. Da inocência presente nos sonhos almejados em sua intensidade máxima, antes que sejam tocados pelas decepções da realidade, ao verão, um período luminoso de nossas vidas, quando nossas aspirações parecem em vias de se realizar. Quando chega ao Outono o filme se distancia do molde Hollywoodiano de onde se alimentou nos dois primeiros atos, e nos mostra que em nossas vidas há muitas decepções que nos aguardam, e o que parecia um eterno e luminoso verão decai em uma estação no qual nossas relações e sonhos são como as árvores que vão perdendo a folhagem. No inverno é atingida a maturidade, os sonhos são alcançados, mas nem tudo sai como gostaríamos que tivesse sido, se temos algumas coisas que desejávamos, não temos tudo que gostaríamos. Mas isto é algo que faz parte da vida e não quer dizer que não possamos ser felizes porque a nossa vida não foi tão idílica quanto teria sido a ficção.
La La Land termina por ser ao mesmo tempo o filme mais real e mais escapista já produzido por Hollywood. O terceiro ato, quando os personagens se desentendem e terminam por se distanciar, traz um desenvolvimento dolorosamente real e possível de acontecer fora da ficção. A verdade, é que a vida pode ser cruel, nos aproximando de alguns objetivos, enquanto nos afasta de outras coisas, ou pessoas, que nos eram caras. Assim, o filme se apresenta não só como uma abordagem contemporânea do paradigma clássico dos musicais Hollywoodianos, mas é também uma espécie de abordagem madura do tema dos “artistas sonhadores”, uma abordagem que superou a fase do mero devaneio escapista.
O que não quer dizer que aqui o escapismo não esteja presente, ou não tenha importância, pelo contrário. A sequência final do filme é uma importante reflexão e conclusão sobre o tema. Quando somos transportados através da música de Sebastian para aquela colorida realidade onde toda a história dele com Mia dá certo, temos uma mensagem inequívoca: Através da música, do cinema, da arte de uma forma geral, podemos não apenas reviver nossas melhores memórias, mas ter os momentos perfeitos que a vida não nos permitiu viver. Podemos assim, na curta duração de um filme, ou na execução de uma música, viver uma felicidade plena. Ainda que depois a vida retome o seu curso e tudo volte a normalidade, aqueles breves momentos de fantasia não serão menos vívidos, nem nossa satisfação menos verdadeira.
Como já havia sintetizado muito bem Audrey Hepburn, o cinema “cria beleza e desperta nossa consciência, estimula a compaixão e talvez, o mais importante, dá a milhões de pessoas um descanso de nosso mundo tão violento.” .
Ou talvez, possamos nos ater a interpretação mais simples do final, onde vale a máxima já consagrada, de que posso ter tudo o que desejo profissional e financeiramente, “mas sem amor, eu nada seria.”
Seja qual for a interpretação de sua preferência, uma coisa permanece: La La Land é o cinema em sua melhor forma. Amém.
O Urso
4.0 37 Assista AgoraEste filme é basicamente o efeito Kuleshov utilizado com maestria para falar sobre o respeito à vida animal, sobretudo a silvestre, que em pleno século XI ainda é muito ameaçada pela estupidez da caça, que hoje chega mesmo ao opróbrio de se auto-intitular como RECREATIVA.
Aliás, entender como a montagem pode transmitir mensagens mesmo sem o suporte de um texto falado, é algo que deveria ser melhor compreendido pelo público de uma forma geral, já que a própria mídia usa do efeito para fazer explicitar ou exacerbar aquilo que não diz abertamente.
Voltando ao filme, é claro que é preciso reconhecer: Nem tudo são truques de montagem, já que houve também um trabalho de treino e interação com os animais, e no fim das contas, os ursos Bart e Youk atuaram melhor que muito bípede “rolliudiano” e “global”.
A Hora Mais Escura
3.6 1,1K Assista AgoraAh, o bom e velho chauvinismo americano... Criando novas mitologias, reforçando oposições binárias inexistentes no mundo real, se valendo de justificativas dignas de um Juan Ginés de Sepúlveda, e tudo isto envolto em uma direção gélida, embora competente, que tenta convencer de sua impossível imparcialidade. Que importa se o filme não é muito mais que um reforço do imperialismo americano, não é mesmo?
A verdade é que se trata de uma receita pronta e infalível para agradar a academia e os críticos. Kathryn Bigelow é tudo menos boba.
Entre Dois Amores
3.7 237 Assista AgoraE imaginar que este filme parnasiano foi premiado no Oscar ao invés de filmes bem conduzidos como A Cor Púrpura, O Beijo da Mulher Aranha, A Testemunha e mesmo Ran de Akira Kurosawa.
Claro que diretores estrangeiros, ou obras que lidem com assuntos espinhosos como racismo e violência contra a mulher, seriam preteridos por uma academia conservadora, muito mais inclinada para um relato sem alma que mistifica a cultura e as terras Africanas, retratando à reboque um colonialismo “benéfico” que é difícil de engolir.
Não que o filme não tente afetar certo tom crítico, mas o tapa em luva de pelica não convence e torna a crítica tão suave que daria no mesmo fosse um filme sinceramente acrítico. Há menções quase subliminares aos problemas da colonização, pontos estes em que o roteiro não se aprofunda. Aliás, tem-se que admitir: Out Of Africa não se baseia nos resultados reais da colonização européia do continente africano. Por isto Pollack não desconstrói e expõe o colonialismo como o problema que foi, mas alimenta o mito do “bom colonizador”, aquele que trás “progresso” àquele “fim de mundo”, que imaginem, sequer existia antes da interminável benevolência européia encontrá-lo.
E se isto não fosse bastante para diminuir a qualidade do filme, também há alguns males técnicos. A montagem tem momentos falhos, com elipses evidentemente ruins, que a maioria dos espectadores não percebe pelo simples fato de que se trata de um filme desnecessariamente longo, cujo efeito soporífero adormece a percepção aos detalhes da narrativa cinematográfica.
Além disto há duas inserções de chroma-key injustificáveis e muito mal feitas para a época de realização deste filme. Pessoalmente também acho que não haver a mais remota problematização da caça comercial de animais silvestres - promovida pelos europeus -, também é de sofrer. No fim das contas nem Meryl Streep salva este filme.
A direção insossa, insípida e prosaica de Pollack ganhar de nomes como Akira Kurosawa, Hector Babenco e Peter Weir, é uma piada de mau gosto. A trilha sonora aguada e clichê tampouco merecia ser premiada onde quer que fosse.
Assim as estatuetas que este filme esquecível angariou são um lembrete do que há de errado desde muito com a academia e mostram o quanto as mudanças são necessárias para que a premiação possa ser levada a sério como algo em que realmente se reconhece o valor artístico e técnico de uma obra cinematográfica.
No entanto, se o Oscar erra e feio, o tempo faz das suas justiças, pois muito embora Out Of Africa seja recheado de prêmios da academia, é A Cor Púrpura, O Beijo da Mulher Aranha, A Testemunha e Ran, que são sempre lembrados em estudos sobre cinema e não este filme datado e feito sobre medida para agradar uma academia de pulhas conservadores que pouco se interessam em qualidade cinematográfica.
O Portão
3.1 149Mas gente, taí um roteiro sofridinho de tão esburacado e fraco – não faz jus a criatividade dos anos 80 -. A gente até que se esforça pra gostar do filme, mas falta também carisma e atuação que justifique essa insistência. Além de tudo aqueles demoninhos dificultam bastante a amizade. Até o Gizmo – veja bem, o Gizmo não os Gremlins – parecia mais perigoso. Verdade que é delicioso ver todo o trabalho em stop motion e maquiagem, mas não colou como algo ameaçador.
Também é verdade que até dá pra assistir o filme, mas não sem uma careta aqui e umas risadas involuntárias acolá. Claro, não dá pra negar que há bons momentos da direção, além de toda aquela nostalgia inerente à década de sua realização. O grande problema é que o resultado é muito aquém do que poderia ter sido. Por vezes o roteiro soa didático demais, ou é absolutamente obscuro e falho e à todo momento parece indeciso entre ser uma espécie de terror infantil ou um simples filme trash, terminando por não ser nada de forma competente. Talvez o melhor desse filme seja o fato de que foi uma das possíveis influências para a maravilhosa Stranger Things.
No fim das contas aqui acontece o mesmo que na culinária: A esmagadora maioria dos ingredientes cru é algo intragável ou muito inferior à sua versão cozida. Assim, Stranger Things é um belo prato que muito provavelmente usou O Portão como um dos seus ingredientes. Pena que este por si só não apenas desagrade o paladar, como resulte em algo beirando o indigesto – ainda que em toda sua singela tosquice permaneça superior a certas produções atuais.
A Máscara em que Você Vive
4.5 201Peca, e muito, ao vilanizar os jogos eletrônicos, assumindo uma retórica do senso comum que se justifica por análises conservadoras da mídia em questão, coisa que me parece contraditória ao objetivo do documentário de esclarecer. É interessante, por exemplo, quando mostram o modelo arquetípico do herói de jogos de ação. Ainda que esqueçam de dizer que o modelo deriva de elementos do militarismo e da cultura esportiva, ambos muito mais danosos em sua doutrinação hipermasculinizante e tóxica do que os games. A questão destes é infinitamente mais complexa e menos problemática do que a descontextualização e desinformação comum sugerem.
No mais, e em todo o resto, The Mask I Live In se trata de um documentário ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO. Não é difícil entender que masculinidade e feminilidade são construções arquetípicas muito mais do que dados imanentes e factuais da espécie humana. Ou seja, gênero e todo o comportamento correspondente que se espera, é algo social e psicologicamente construído, não sendo a mesma coisa que o sexo biológico, tampouco uma inamovível realidade. Uma análise honesta da questão nos revela que muito do que se toma por caracteristicamente masculino ou feminino são elementos subjetivos que podem estar presentes em qualquer gênero possível, não sendo algo atrelado e exclusivo de uma única identidade.
O que não podemos negar é que o modelo de masculinidade vigente possui um caráter absolutamente destrutivo que deve ser discutido, combatido e abandonado, se quisermos homens psicológica e emocionalmente saudáveis em nossa sociedade.
Capitão América: Guerra Civil
3.9 2,4K Assista AgoraResenhar este filme tentando discorrer sobre os aspectos técnicos é algo interessante, embora traga pouca informação nova. É inegável que os irmãos Russo equilibram muito bem a narrativa – tanto em termos de roteiro, como de condução -. Sabem a hora de usar uma câmera na mão para colocar o espectador dentro da ação, editam e dirigem muito bem as cenas de perseguição fazendo uma sequência que só encontra rival em Dark Knight. E é claro, têm o mérito de ter filmado a cena mais quadrinhesca já vista no cinema: A sequência do Aeroporto – não só um clássico atual, mas uma verdadeira transcrição das páginas de quadrinhos -. Sequência esta onde não há CGI gratuito, pois o recurso é usado em favor dos acontecimentos e da narrativa, sem excessos. Claro, que há seus pontos negativos, afinal a Marvel continua não superando Loki, e termina por apresentar mais um vilão fraco, ainda que este possua motivações plausíveis. Também pode-se objetar que o final é mais conciliador do que o necessário.
Mas o fato é que embora estes fatores constituam um bom filme, um bom entretenimento, o que realmente me motiva a escrever é que este é um filme da Marvel interessante de se analisar sobre o ponto de vista das motivações ideológicas que direcionam os personagens. O estúdio vem delineando nos protagonistas de seus filmes dois sistemas opostos de valores que vão ter seu embate literal e físico neste longa. Verdade seja dita, que em um plano bem evidente e superficial, desde o primeiro encontro Homem de Ferro e Capitão América não se entenderam muito bem. Sempre houve alguma animosidade mais ou menos explícita nesta relação. Por traz disso foram sendo construídos os valores que motivam cada um, e em Guerra Civil o que é explicitado é a oposição entre o UTILITARISMO de Tony Stark e a DEONTOLOGIA do Capitão América.
Já desde Era de Ultron o Homem de Ferro deixa claro sua visão de mundo: Para ele um pequeno mal que traga benefício ao maior número possível de pessoas, é algo desejável. Comportamento que fez com que criasse o vilão do filme em questão. Esta forma utilitarista de pensar se resume em uma máxima muito bem conhecida: Os fins justificam os meios. Assim, em Guerra Civil, não importa que deixemos nossa “segurança” em mãos de instituições de intenções discutíveis, desde que o resultado final seja positivo. Os problemas desta abordagem são fáceis de imaginar.
Por outro lado, e em oposição a este ponto de vista, a Deontologia do Cap. põe o dever moral, os imperativos éticos do indivíduo como norte de suas decisões. Não importa que os fins sejam bons se os meios são escusos. Partindo deste ponto de vista, de um mal só poderá resultar outro mal. E se este mal é institucionalizado, então é dever moral de cada um de nós ir contra esta corrente, pois o certo possui uma única face e não podemos barganhar em nome da promessa de um bem maior. Este é um ponto de vista reforçado pela menção à Peggy Carter, a quem se atribui a seguinte citação:
“Mesmo se todos estiverem te dizendo que algo errado é certo. Mesmo se todo o mundo estiver dizendo para que você se mova, é seu dever fincar raízes como uma árvore, olhá-los nos olhos, e dizer: Não. Mova-se VOCÊ.”
(Um parêntese: Peggy Carter é um personagem que por si mesmo exemplifica bem a questão. Vejamos a série e está lá alguém que se colocava contra o machismo e a tacanhice institucionalizada em nome do que é certo.)
Para além da dicotomia moral Capitão-América-Homem de Ferro, os irmãos Russo vêm construindo um consistente e interessante argumento em seus filmes. Um discurso, que embora sutil, questiona o direito institucional ao controle e vigilância indiscriminado da população. No primeiro filme do herói dirigido pelos irmãos é clara a crítica à política de vigilância americana, que mantém na contramão dos direitos civis, uma larga rede de monitoramento de dados, tanto em território nacional, como internacional. O Projeto Insight mostrado no filme enquanto simboliza isto também faz referência ao uso irresponsável de Drones, que muito mais frequentemente matam inocentes do que pessoas suspeitas – aliás, é também discutível se é moral e legalmente correto matar um suspeito, já que o próprio termo supõe que não se tenha certeza sobre um crime efetuado.
Em Guerra Civil, o que se questiona é se o controle institucional é realmente algo benéfico, já que nem tudo que parte da legalidade é legítimo. Com frequência o que se faz é 95% política e 5% lei, algo que sempre vai funcionar em detrimento do povo. E isto nos remete ao momento, em Soldado Invernal, no qual Nick Fury mostra ao Capitão o projeto Insight. Steve Rogers define a iniciativa da seguinte maneira: “Apontam uma arma para todo o planeta e chamam de proteção. Eu chamo isto de medo.”
E o medo é nosso grande companheiro da vida moderna, afinal. Somos reféns de um sistema que não está muito distante de um sistema prisional. Pois vejam, há grades, câmeras, blindados, cercos, portões, em suma, vigilância por todo o lado. Somos todos suspeitos, e suspeitamos de todos, vivemos em um estado social no qual cada esquina virada é um salto do coração. Paradoxalmente, se nossas portas possuem cada vez mais fechaduras, não sentimos menos medo, não nos sentimos mais seguros de fato, porque o sistema em voga não tem o poder de gerar nada além de uma quantidade ainda maior de medo.
Os únicos beneficiados por nossas apreensões são a classe política, e o resultado prático e final de tanta intervenção, é que abrimos mão de nossa privacidade voluntariamente. E aí está nossa grande quimera, pois se somos observados, e se os fins para tanto são mormente políticos, no momento em que nossa conduta não agradar a estes representantes seremos silenciados. O que o controle completo, o que a falta de privacidade cria, é uma supressão legal do direito à manifestação de ideias contrárias. Toda ditadura começa pela coleta de dados de seus cidadãos para descobrir dentre estes quais aqueles menos dóceis, quais aqueles que devem ser eliminados do corpo social.
Winter Soldier e Civil War são filmes de heróis a ser vistos com uma atenção extra ao subtexto. É um mérito e tanto, levando-se em conta que mesmo sendo a crítica sutil, está presente em dois blockbusters vindos justamente do país que comanda a NSA, a agência de segurança que devido ao pretexto do terrorismo, vem coletando sistematicamente metadados de cidadãos ao redor do mundo desde o 11 de Setembro.
Que um personagem criado como propaganda em favor do alistamento se coloque contra decisões governamentais e institucionais é uma mensagem e tanto para quem se der ao trabalho de analisar.
Pleasantville: A Vida em Preto e Branco
4.1 382 Assista AgoraCONTÉM SPOILERS!
É difícil eleger um ponto específico para começar a analisar este excelente filme. Mas é claro, que falar de Pleasantville sem esmiuçar antes sua metáfora das cores, é uma impossibilidade. Em um primeiro plano, tudo é muito simples, aquele mundo asséptico e descolorido é um mundo sem sentimento, um mundo sem individualidade, em essência, um mundo sem alma, onde cada indivíduo é um dócil e voluntário prisioneiro. O que a cor traz, é primeiro, o toque de individualidade, a idiossincrasia que não pode existir em um mundo em tons de cinza. Por isso, é natural que primeiro a cor surja entre os mais jovens. Aos adultos, mais conformados em seus papéis limitantes, é reservada obviamente maior resistência à esta mudança – trata-se até de algo a ser escondido -.
Percebemos aos poucos que dentro deste paraíso conservador toda diferença causa desconforto, por mais inofensiva que seja. Este mundo estável só pode ser perfeito na medida em que exclui a diferença. A família nuclear, as autoridades, a rotina, estão lá para garantir a estabilidade desta sociedade de horizontes limitados.
Dentro da família nuclear tradicional – marido, esposa e filhos (preferencialmente um casal) – é claro que não há qualquer espaço para a sexualidade, muito embora isso não afete a taxa de natalidade.
Abro um breve parêntese: Pais que dormem em camas separadas e banheiros que não possuem privadas, são exemplos REAIS da censura puritana feita pela mídia americana até meados da década de 50. No primeiro ponto, os primeiros casais sexuados da TV americana foram os Munsters e os Addams, que vistos pela ótica do senso comum não passavam de “aberrações”. Herman e Lilly Munster, foram inclusive o primeiro casal da TV a dormir na mesma cama. Os conservadores, por imaginar que se tratava de personagens um tanto quanto cartunescos, acreditaram piamente que não faria nenhuma diferença se dormissem juntos – embora, ao contrário do previsto, tenha feito-. Já as privadas foram vetadas do cinema e da TV americanos até a década de 60 aproximadamente.
Também não podemos nos esquecer que a sanitização da ficção americana não se restringiu a estas proibições puristas, extirpando da ficção toda representação de diversidade, fosse étnica, cultural, ideológica ou sexual. É por esta razão, e não por acaso, que Pleasantville se apresenta como uma idílica província branca, heteronormativa e patriarcal. O verdadeiro sonho americano encarnado, enfim.
E se este paraíso é ameaçado pela mudança de costumes, sua única forma de resposta é a repressão, as proibições, a segregação. A resposta vem organizada pelas cabeças conservadoras da “câmara de comércio”, espécie de conselho e prefeitura municipal, onde maridos insatisfeitos se queixam do comportamento impudico de suas mulheres e de seus jovens filhos.
Para o dinossauro conservador, vejam vocês!, o maior inconveniente é não ter o jantar pronto à mesa. Ou então é uma camisa queimada à ferro pela esposa que se distraiu pelo maior dos crimes que poderia ser cometido por uma mulher: Estar pensando!
O preconceito e a mente pequena destas pessoas é exemplificado em diversas passagens do filme, seja nas censuras que fazem ao pintor Bill, ou na proibição de visitas à biblioteca, o que termina por incitar a queima de livros. Também se deve notar que uma vez que a submissão e o “recato” feminino são abalados, uma vez que a preponderância masculina nesta sociedade patriarcal é relativizada, surge a misoginia, e a violência dos homens “sem cor” se torna cada vez mais variada e sempre em razão de um sentimento retrogrado de ofensa pela diferença e pela individualidade que não possuem – ou que se esforçam por reprimir -.
É devido a esta misoginia que David – ou Bud –, finalmente encontra sua cor. Se a primeira vista pode-se pensar que tudo que o protagonista necessitava era um romance, a trama nos prova que não. Enquanto o mundo se colore ao seu redor, o rapaz permanece em preto e branco. É quando enfrenta o grupo de rapazes que assediavam sua mãe ficcional que David encontra o que lhe faltava: A coragem de se posicionar de forma contundente em nome daquilo que acredita. A partir daí a metáfora das cores exacerba sua interpretação emocional, pois as cores são de fato emoção, e assim, um mundo sem cor só pode ser um mundo pobre de sentimentos, um mundo em constante repressão. Este aspecto é lindamente desenvolvido na cena do julgamento de David e Bill no tribunal.
Não que a metáfora pare por aí, já que a cena do tribunal dá novo significado às cores. Não é só de sentimento que se fala quando o personagem de Tobey instiga o presidente da câmara a assumir seus preconceitos em voz alta. Ali vemos exposto o perigo de representantes retrógrados. Afinal, são pessoas cujas “verdadeiras cores” são tão repulsivas, que uma vez expostas, deveriam causar a mais profunda vergonha – por isto é simbólico que o presidente fuja pela porta dos fundos quando enfim se colore -. Nem devemos esquecer que estas pessoas farão de tudo ao seu alcance para manter o mundo em conformidade com suas crenças retrógradas.
Ponto interessante também é a mudança na personagem de Reese Witherspoon. A princípio, é Mary-Sue/Jennifer quem traz agitação a Pleasantville por seus hábitos sexuais, mas ainda assim não ganha cor por mais que se engaje na atividade. Um de seus últimos diálogos, no entanto, quando diz ao irmão que seu comportamento ficou “velho”, nos dá o melhor entendimento da crítica. O momento de chocar e balançar a sociedade com sexo passou junto com a contracultura dos anos 60 e 70. Convenhamos que sexo é lugar comum de nosso tempo e seu poder de subversão sempre foi limitado. Por outro lado, a mídia/sociedade atual não demora em converter aquilo que soa alternativo, ou rebelde, em algo mainstream, em um produto a ser monetizado e produzido em larga escala – ou ainda, quem sabe, gourmetizado para um público “seleto” -.
Se toda diferença e subversão surge como tentativa de escapar às estruturas dominantes, este sistema está suficientemente consciente do fato para incorporar estas mudanças em seu savoir-faire, esvaziando todo poder de iconoclastia que nasce da diferença. Assim nada escapa ao sistema, e aquilo que eventualmente o destruiria é resignificado para tornar-se vazio, banal. É por isto, que o sexo por si mesmo não poderia libertar Mary-Sue. A significância de sua vida residiria em outro lugar, sua cor viria da introspecção e não do choque vão de costumes.
Pleasantville é pontuado aqui e ali por referências tanto à arte como à literatura. Há, por exemplo, momentos que recordam Farenheit 451, de Ray Bradbury. E mesmo o argumento do filme possui certo parentesco com o famoso mito da caverna elaborado por Platão. Uma das referências mais interessantes, no entanto, acontece na cena do tribunal, em que se homenageia To Kill a Mockinbird de Harper Lee. Na cena em questão as pessoas de cor encontram-se na bancada superior, separadas do resto da cidade, assim como acontece com os negros no livro e filme supracitados. Aliás, a questão da cor traz associações sutis à questão racial americana, já que dá ao público uma amostra do que é ser segregado por sua aparência, independente do seu valor enquanto indivíduo. Afinal, não se escolhe a cor que se tem, e esta característica não pode ser demérito ou razão de vergonha.
Tudo isto dito, ainda resta salientar que Pleasantville é não só um roteiro rico em significados, mas também a prova de que boas mensagens não necessitam de uma embalagem pretensiosa e que o cinema muito pode se beneficiar da leveza narrativa.
Ele Está de Volta
3.8 680“- Você está tentando novamente enganar as pessoas com propaganda!
- Você não entende. Em 1933 as pessoas não foram iludidas pela propaganda. Um Führer foi eleito democraticamente e esboçou seus planos com clareza. O povo alemão me elegeu.
[...]
- Você é um monstro!
- Jura? Então você também deveria condenar aqueles que elegeram este monstro. Eles são todos monstros? Eles são pessoas comuns. [...] E então, o que você faz? Proíbe as eleições?”
Fantástico como este diálogo faz pensar na maior ilusão da política ocidental: A democracia representativa.
Não é por acaso que se questiona hoje em geopolítica a importância da representação, entendida por alguns, não como veículo da democracia, mas como obstáculo a plena realização desta. Afinal, abdicamos de nosso poder para que o eleito o exerça em nosso lugar e há poucas garantias de que este fulano realmente fará bom uso do cargo. Ao mesmo tempo, é difícil para as pessoas pensarem em alternativas, já que a ausência de eleições convencionais parece sinônimo de caos ou totalitarismo. O cidadão moderno vive uma apatia política tão aguda que não pode enxergar uma existência em que não abdique de seu protagonismo.
E mesmo quando a massa parece se sublevar, o gesto toma feições de falsa rebeldia, visto que só pode existir dentro da “ordem estabelecida”, dentro do desejo paternalista que o impele às ruas, caso contrário será calado e violentamente reprimido. Não podemos negar que o povo sempre estará em busca de um messias que acolha suas insatisfações, mesmo que falsamente, mesmo que em nome da manipulação de seus desejos não realizados. Daí que as campanhas políticas tenham se convertido em um show com traços de besteirol, não surpreende.
A consequência de tudo isto é que nosso sistema político, mais antigo e desgastado do que as mentiras eleitorais que sustentam a corrupção, permanece inabalado, e em detrimento da sociedade, continua a atender aos interesses mais escusos.
Há muito que se pode falar sobre os paralelos deste filme com a política e o circo midiático contemporâneo, e é isso que o torna altamente recomendável.