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Estudante de Cinema, PUC-RIO.

"Eu não sei. É difícil entender tudo isso. Se tivesse uma vida diante de mim, talvez a passaria contando essa história, sem nunca parar, mil vezes, até que, um dia, eu a compreenderia. Mas à frente só tenho um homem que espera a minha faca. E depois mar, mar, mar.
A única pessoa que realmente me ensinou alguma coisa, um velho que se chamava Darrell, dizia sempre que há três tipos de homens: os que vivem diante do mar, os que se lançam ao mar, e os que do mar conseguem voltar, vivos. E dizia: você verá que surpresa quando descobrir quais são os mais felizes. Eu era um garoto então. No inverno olhava os navios em seca, sustentados por enormas muletas de madeira, com o casaco no ar e a quilha de balanço cortando a areia como uma lâmina inútil. E pensava: eu não vou parar aqui. É dentro do mar que eu quero chegar. Pois se há algo verdadeiro, neste mundo, está lá, ao longe. Agora estou lá, ao longe, no mais profundo, ventre do mar. Ainda estou vivo porque matei sem piedade, porque como esta carne despregada dos cadáveres dos meus companheiros, porque bebi o seu sangue. Vi uma infinidade de coisas que da beira do mar são invisíveis. Vi o que é realmente o desejo, e o que é o medo. Vi homens se desmanchando e se transformando em crianças. E depois mudar novamente e se tornarem feras selvagens. Vi sonhar sonhos maravilhosos, e ouvi as histórias mais bonitas da minha vida, contadas por homens quaisquer, um instante antes de se jogarem no mar e desaparecerem para sempre. Li no céu sinais que não conhecia e fitei o horizonte com olhos que não acreditava ter. O que é o ódio, realmente, eu compreendi nestas tábuas ensanguentadas com água do mar por cima, apodrecendo as feridas. E o que é a piedade, não sabia antes de ter visto nossas mãos de assassinos acariciando horas a fios cabelos de um companheiro que não conseguia morrer. Vi a ferócia, nos moribundos chutados para fora da jangada, vi a doçura nos olhos de Gilbert que beijava o seu pequeno Léon, vi a inteligência nos gestos com que Savigny bordava o seu massacre, e vi a loucura, naqueles dois homens que certa manhã escancararam as asas e voaram embora, no céu. Se eu vivesse mais mil anos, amor seria o nome do peso leve de Thérèse entre os meus braços, antes de deslizar entre as ondas. E destino seria o nome deste oceano mar, infinito e belo. Não estava errado, lá na orla, naqueles invernos, ao pensar que aqui era a verdade. Levei anos para descer até o fundo do ventre do mar: mas o que eu procurava, encontrei. As coisas verdadeiras. Até mesmo aquela, de todas, mais atroz e insuportavelmente verdadeira. É um espelho, este mar. Aqui, em seu ventre, vi a mim mesmo. Vi realmente.
Eu não sei. Se tivesse uma vida diante de mim - eu que estou para morrer - talvez a passaria contando essa história, sem nunca parar, mil vezes, para entender o que significa qua a verdade se concede somente ao horror, e que para alcançá-la tivemos de passar por este inferno, para vê-la tivemos de nos destruir uns aos outros, para tê-la tivemos de nos tornar feras selvagens, para desentocá-la tivemos de morrer. Por quê? Por que as coisas só se tornam verdadeiras no aperto do desespero? Quem revirou o mundo deste modo, que a verdade tem de ficar do lado obscuro, e o inconfessável pântano de uma humanidade enjeitada é a única terra nojenta em que só cresce o que não pe mentira? E afinal: que verdade é esta, que fede a cadáver, e cresce no sangue, e alimenta-se de dor, e vive onde o homem se humilha, e triunfa onde o homem apodrece? É a verdade "de quem"? É uma verdade "para nós"? Ali, na orla, naqueles invernos, eu imaginava uma verdade que era calmaria, era regaço, era alívio, e clemência e doçura. Era uma verdade feita para nós. Que estava à nossa espera, e sobre nós se dobraria, como uma mãe reencontrada. Mas aqui, no ventre do mar, vi a verdade fazendo o seu ninho, meticulosa e perfeita: e o que eu vi é uma ave de rapina, magnífica em vôo, e feroz. Eu não sei. Não era isso que eu sonhava, no inverno, quando eu sonhava com isso.
Darrell, ele era um dos que haviam voltado. Vira o ventre do mar, estivere aqui, mas voltara. Era um homem caro ao céu, diziam as pessoas. Sobrevivera a dois naufrágios e, diziam, da segunda vez andara mais de três mil milhas num barco de nada, para reencontrar a terra. Dias e mais dias no ventre do mar. E depois voltara. Por isso as pessoas diziam: Darrell é sábio, Darrell viu, Darrell sabe. Eu passava meus dias ouvindo-o falar: mas do ventre do mar ele nunca me disse nada. Não tinha vontade de falar sobre isso. Tampouco gostava que as pessoas o quisessem sábio e sensato. Acima de tudo não suportava que alguém pudesse dizer dele que "tinha se salvado". Não podia ouvir aquela palavra: "salvado". Baixava a cabeça, e entreabria os olhos, de um jeito que era impossível esquecer. Olhava-o, naqueles momentos, e não conseguia dar um nome ao que eu lia em seu rosto, e que, sabia, era o seu segredo. Mil vezes, renteei aquele nome. Aqui, nesta jangada, no ventre do mar, eu o encontrei. E agora sei que Darrell era um homem sábio e sensato. Um homem que vira. Mas, antes de mais nada, e na profundidade de cada instante seu, ele era um homem - Inconsolável. Isto, ensinou-me o ventre do mar. Que quem viu a verdade permanecerá para sempre Inconsolável. E Salvo realmente só é aquele que nunca correu perigo. Poderia até chegar um navio, agora, ao horizonte, e correr até aqui sobre as ondas, e chegar um instante antes da morte e nos levar embora, e nos fazer voltar, vivos, vivos; mas não seria isso que, realmente poderia nos salvar. Mesmo que algum dia reencontrássemos uma terra qualquer, nós nunca mais seremos salvos. E o que vimos permanecerá em nossos olhos, o que fizemos permanecerá em nossas mãos, o que sentimos permanecerá em nossas almas. E para sempre nós, que conhecemos as coisas verdadeiras, para sempre nós, filhos do horror, para sempre, nós supérstites do ventre do mar, para sempre, nós sábios e sensatos, para sempre seremos inconsoláveis.
Inconsoláveis.
Inconsoláveis."

Oceano Mar - Alessandro Baricco

Últimas opiniões enviadas

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  • Bernardo d'Ávila

    Filmaço!

    Uma coisa que me deixou confuso:

    Comentário contando partes do filme. Mostrar.

    Pelo que eu lembro, ele não nega o ocorrido em nenhuma hora do filme. Ele pergunta se as pessoas acreditam nele. Se eles acham que ele seria capaz de abusar da menina. Mas negar, explicitamente, ele não nega. Isso me deixou com bastante dúvidas sobre o que de fato aconteceu. Pareceu que Lucas tinha medo do amigo perceber a mentira (como ele diz no início que sempre percebe quando Lucas mente) se ele falasse diretamente que não abusou da filha dele.

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  • Filmow
    Filmow

    O Oscar 2017 está logo aí e teremos o nosso tradicional BOLÃO DO OSCAR FILMOW!

    Serão 3 vencedores no Bolão com prêmios da loja Chico Rei para os três participantes que mais acertarem nas categorias da premiação. (O 1º lugar vai ganhar um kit da Chico Rei com 01 camiseta + 01 caneca + 01 almofada; o 2º lugar 01 camiseta da Chico Rei; e o 3º lugar 01 almofada da Chico Rei.)

    Vem participar da brincadeira com a gente, acesse https://filmow.com/bolao-do-oscar/ para votar.
    Boa sorte! :)

    * Lembrando que faremos uma transmissão ao vivo via Facebook e Youtube da Casa Filmow na noite da cerimônia, dia 26 de fevereiro. Confirme presença no evento https://www.facebook.com/events/250416102068445/

  • Ricardo
    Ricardo

    opa muito muito obrigado nobre amigo!

  • Ricardo
    Ricardo

    ola você tem um perfil do Facebook de Hernani Heffner, sabe como posso conversar entrar em contato com ele através da internet? agradeço qualquer ajuda... vi seu documentário hehehehe muito bom!

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