Entre todos os temas, abordagens e assuntos tratados na mais recente temporada de Black Mirror, existe uma palavra que percorre cada um dos seis episódios: Fuga. Não é de hoje que a criação de Charlie Brooker fala disso, é verdade, desde o principio, na elaboração da identidade da obra, se notou a criação de um universo rico em tecnologias que serviam sutilmente a um propósito, o de fugir. Fugir do esquecimento, das imperfeições e sensações humanas, das coisas que supostamente fazem mal, mas que na verdade constroem o que somos: seres em fuga.
Lacie está em fuga. Ela foge do ostracismo social. Quer ser reconhecida, notada e com isso ascender em popularidade. O que no seu contexto tem efeitos práticos, como o direito de alugar um carro melhor ou de ganhar um belo desconto na hipoteca. Para isso ela foge. Foge de qualquer autenticidade, da sua própria personalidade. Suas reações são ensaiadas, mecânicas e totalmente vazias. O ato de cumprimentar alguém, elogiar, puxar uma conversa, tudo tem uma segunda intenção muito clara, ganhar uma boa avaliação. Fazendo isso ela foge. Foge de uma característica humana natural e universal, a imperfeição. Não há espaço para imperfeições na vida de Lacie, tudo tem que ser perfeito, bonito e feliz.
Seu irmão Ryan também foge. Foge dessa vida mecanizada, de aparências. Ou aparenta fugir das aparências, pois se preocupa em conferir o que o seu desapego ao sistema vai gerar de aprovação. Naomie foge. Foge de Lacie, inclusive. Ao perceber que sua companhia já não lhe trará benefícios, ela foge daqueles que não tem “nada” a oferecer. Em fuga Lacie descobre que não tem pra onde fugir. Quando é alcançada por todas as sensações das quais vinha fugindo, Lacie se liberta, em um momento catártico, onde é rejeitada por aqueles que ainda fogem e acaba encarcerada, sendo que paradoxalmente, nunca se sentiu mais livre.
Livre como Cooper. O aventureiro que está em sua última parada no mochilão ao redor do mundo. Cooper está literalmente em fuga. De um passado recente de dor e perda. De encarar suas responsabilidades práticas e emocionais, como adulto e como filho. Ele foge de conexões emocionais e do ônus que elas trazem, no caso, mais dor e perda. Cooper foge por que tem medo. O medo de aceitar os momentos ruins da vida, os momentos de tristeza. E é seu medo que será testado em sua nova escolha de emprego temporário.
A ironia do destino aqui é que a fuga literal de Cooper se encontra com um belo mecanismo moderno de fuga da realidade, os games, e acaba levando Cooper pra dentro de si mesmo. Quase que literalmente. E esse deve ser o mais assustador dos lugares para aqueles que vivem fugindo. Dentro de si mesmo você é obrigado a encarar seus medos. Dentro de si mesmo você não tem para onde fugir. E se quando chegar a hora você não tiver força para vencer seus medos, a tendência é o colapso.
Kenny talvez seja o que mais foge. Internamente ele parece fugir de quem ele é, como a maioria dos adolescentes. E quando pessoas misteriosas ameaçam divulgar um vídeo que mostrará ao mundo o que ele faz, ele foge. Foge do confronto, cedendo a chantagens e fazendo coisas perigosas para fugir da responsabilidade por suas ações. Kenny está dominado. A crescente de conflitos e situações culmina na colisão. Ninguém ali consegue fugir, nem mesmo o espectador. A ironia fina de Black Mirror nesse episódio é fazer quem assiste querer fugir, de uma responsabilidade por ter torcido pelos personagens, fugir do fato de que fizemos um juízo de caráter antes da hora. Fugir do fato de que sempre fazemos isso.
San Junipero fala de outras fugas, com certa leveza e um pouco mais de otimismo, pelo menos na superfície. Yorkie é uma jovem tímida que foge de um estilo de vida que foi imposto a ela. Ela quer se encontrar, descobrir quem realmente é. E o faz em um lugar (ou não lugar), que por si só é um ponto de encontro de pessoas em fuga. Kelly também foge. Foge de compromissos, mas principalmente foge de envolvimentos emocionais, que como já dissemos aqui, tendem causar dor e perda em um momento ou outro. Com objetivos opostos elas se encontram, desencontram e acabam se completando.
Mas o encontro não é tão simples assim. Com histórias de vida e visões de mundo diferentes, suas fugas acabam entrando em conflito. A iminência da morte traz a tona essa cisão. Enquanto uma vê o “mal inevitável” como forma de fugir das lembranças de uma vida que teve seus bons momentos, mas também teve momentos ruins, a outra enxerga uma oportunidade de fugir do fim, transformando-o em um novo começo, onde poderá levar a vida que não pode levar em vida. Não é a primeira vez que a série conta uma história de amor, mas dentro de seu contexto, trazendo reflexões sobre a morte e a tentativa de fugir dela, é a primeira a ter um desfecho relativamente feliz.
Em Engenharia Reversa vemos a mais perigosa das fugas. A fuga de uma das características naturais que nos torna diferente e é fundamental na perpetuação do humano como espécie: a empatia, que é anulada numa versão tecnológica de um mecanismo já muito comum hoje em dia, a desumanização do outro. Não ver o outro como igual é uma forma de fugir da responsabilidade por seus atos contra ele. Fugir do remorso. Do peso na consciência. É a pedra basilar dos discursos de ódio e das propagandas de guerra. O título do episódio em português faz muito sentido nesse contexto, pois o ser humano é desmontado, para ter retirado de si parte de sua essência. Para fazer o que os assassinos fazem é preciso fugir da humanidade.
O desfecho da temporada não poderia ser mais simbólico. E a fuga aqui não é de nenhum personagem em especial, mas sim da sociedade como um todo. Usando como pano de fundo uma campanha de ódio na internet que pode estar vitimando pessoas na vida real, vemos a facilidade com que as pessoas se apegam aos erros alheios para fugir da responsabilidade pelos seus próprios. Exaltam os defeitos dos outros para não ter que encarar os seus. É a base para julgamentos e acusações, que aqui vem em forma de social media shaming. Essas pessoas ainda contam com o anonimato, para fugir do flagrante e das consequências.
Mas é impossível fugir, é o recado que a última cena desse episódio nos deixa. Acredite você em karma, destino, punição divina ou em nada disso, é impossível fugir. Black Mirror nos convida a olhar para nossa própria vida e encarar aquilo que temos que encarar. Façamos isso voluntariamente, ou soframos intensamente quando acontecer. Por que mais cedo ou mais tarde, todos seremos pegos.
A série segue o modelo mockumentary, ao estilo The Office, com depoimentos dos personagens em meio à ação, e mostra como funciona aquele microuniverso do pátio. Os grupinhos, as regras de convivência, a economia e tudo o mais. O que é curioso nessa premissa, aparentemente simples, é a quantidade de análises que ela abre e o número de instâncias em que ela funciona. Os episódios são engraçados, tem um ritmo agradável e momentos muito fofinhos, mas essa é só a primeira camada do show.
A segunda camada traz á tona um pensamento bem comum e que você já deve ter parado pra analisar, que é a semelhança entre a dinâmica de um colégio e a dinâmica de um presidio, especialmente no que diz respeito às relações entre as pessoas. As “facções” que se formam, as disputas por controle, busca por respeito e status, regras e formas de quebra-las, o fato de você não poder esfaquear seu colega do lado, entre outras coisas. Uma correlação interessante e feita de forma bem estruturada.
Na terceira camada é que a série realmente brilha, The Yard usa o universo infantil para tratar de temas relevantes e até polêmicos, temas como politica, que vão de intervencionismo estatal até liberalismo econômico, inflação, livre-mercado e concorrência entre moedas. Tráfico, proibição do consumo de drogas e criminalidade também são abordados. Ainda se fala sobre relacionamentos, equidade entre os sexos, disputas territoriais mundo afora, pobreza, crises migratória e muito mais. Tudo adaptado de forma precisa para a realidade infantil, preservando a inocência de seu ponto de vista e um teor didático sobre os temas, mas adicionando uma camada crítica, com um humor que varia entre o adorável e o ácido.
É uma escolha inteligente tratar de temas assim de forma didática e num universo agradável, pois dribla a resistência que o público médio apresenta para com esses assuntos. É a mais perfeita combinação entre educação e entretenimento que eu vi em muito tempo e vale quase como uma daquelas palestras de “como funciona a sociedade”. Tem um elenco carismático, histórias bem amarradas, personagens críveis e um ambiente familiar pra quase cem por cento dos espectadores. Uma obra incrível que traz o selo HBO de qualidade e merece ser conhecida por muito mais gente.
Black Mirror (3ª Temporada)
4.5 1,3K Assista AgoraEntre todos os temas, abordagens e assuntos tratados na mais recente temporada de Black Mirror, existe uma palavra que percorre cada um dos seis episódios: Fuga. Não é de hoje que a criação de Charlie Brooker fala disso, é verdade, desde o principio, na elaboração da identidade da obra, se notou a criação de um universo rico em tecnologias que serviam sutilmente a um propósito, o de fugir. Fugir do esquecimento, das imperfeições e sensações humanas, das coisas que supostamente fazem mal, mas que na verdade constroem o que somos: seres em fuga.
Lacie está em fuga. Ela foge do ostracismo social. Quer ser reconhecida, notada e com isso ascender em popularidade. O que no seu contexto tem efeitos práticos, como o direito de alugar um carro melhor ou de ganhar um belo desconto na hipoteca. Para isso ela foge. Foge de qualquer autenticidade, da sua própria personalidade. Suas reações são ensaiadas, mecânicas e totalmente vazias. O ato de cumprimentar alguém, elogiar, puxar uma conversa, tudo tem uma segunda intenção muito clara, ganhar uma boa avaliação. Fazendo isso ela foge. Foge de uma característica humana natural e universal, a imperfeição. Não há espaço para imperfeições na vida de Lacie, tudo tem que ser perfeito, bonito e feliz.
Seu irmão Ryan também foge. Foge dessa vida mecanizada, de aparências. Ou aparenta fugir das aparências, pois se preocupa em conferir o que o seu desapego ao sistema vai gerar de aprovação. Naomie foge. Foge de Lacie, inclusive. Ao perceber que sua companhia já não lhe trará benefícios, ela foge daqueles que não tem “nada” a oferecer. Em fuga Lacie descobre que não tem pra onde fugir. Quando é alcançada por todas as sensações das quais vinha fugindo, Lacie se liberta, em um momento catártico, onde é rejeitada por aqueles que ainda fogem e acaba encarcerada, sendo que paradoxalmente, nunca se sentiu mais livre.
Livre como Cooper. O aventureiro que está em sua última parada no mochilão ao redor do mundo. Cooper está literalmente em fuga. De um passado recente de dor e perda. De encarar suas responsabilidades práticas e emocionais, como adulto e como filho. Ele foge de conexões emocionais e do ônus que elas trazem, no caso, mais dor e perda. Cooper foge por que tem medo. O medo de aceitar os momentos ruins da vida, os momentos de tristeza. E é seu medo que será testado em sua nova escolha de emprego temporário.
A ironia do destino aqui é que a fuga literal de Cooper se encontra com um belo mecanismo moderno de fuga da realidade, os games, e acaba levando Cooper pra dentro de si mesmo. Quase que literalmente. E esse deve ser o mais assustador dos lugares para aqueles que vivem fugindo. Dentro de si mesmo você é obrigado a encarar seus medos. Dentro de si mesmo você não tem para onde fugir. E se quando chegar a hora você não tiver força para vencer seus medos, a tendência é o colapso.
Kenny talvez seja o que mais foge. Internamente ele parece fugir de quem ele é, como a maioria dos adolescentes. E quando pessoas misteriosas ameaçam divulgar um vídeo que mostrará ao mundo o que ele faz, ele foge. Foge do confronto, cedendo a chantagens e fazendo coisas perigosas para fugir da responsabilidade por suas ações. Kenny está dominado. A crescente de conflitos e situações culmina na colisão. Ninguém ali consegue fugir, nem mesmo o espectador. A ironia fina de Black Mirror nesse episódio é fazer quem assiste querer fugir, de uma responsabilidade por ter torcido pelos personagens, fugir do fato de que fizemos um juízo de caráter antes da hora. Fugir do fato de que sempre fazemos isso.
San Junipero fala de outras fugas, com certa leveza e um pouco mais de otimismo, pelo menos na superfície. Yorkie é uma jovem tímida que foge de um estilo de vida que foi imposto a ela. Ela quer se encontrar, descobrir quem realmente é. E o faz em um lugar (ou não lugar), que por si só é um ponto de encontro de pessoas em fuga. Kelly também foge. Foge de compromissos, mas principalmente foge de envolvimentos emocionais, que como já dissemos aqui, tendem causar dor e perda em um momento ou outro. Com objetivos opostos elas se encontram, desencontram e acabam se completando.
Mas o encontro não é tão simples assim. Com histórias de vida e visões de mundo diferentes, suas fugas acabam entrando em conflito. A iminência da morte traz a tona essa cisão. Enquanto uma vê o “mal inevitável” como forma de fugir das lembranças de uma vida que teve seus bons momentos, mas também teve momentos ruins, a outra enxerga uma oportunidade de fugir do fim, transformando-o em um novo começo, onde poderá levar a vida que não pode levar em vida. Não é a primeira vez que a série conta uma história de amor, mas dentro de seu contexto, trazendo reflexões sobre a morte e a tentativa de fugir dela, é a primeira a ter um desfecho relativamente feliz.
Em Engenharia Reversa vemos a mais perigosa das fugas. A fuga de uma das características naturais que nos torna diferente e é fundamental na perpetuação do humano como espécie: a empatia, que é anulada numa versão tecnológica de um mecanismo já muito comum hoje em dia, a desumanização do outro. Não ver o outro como igual é uma forma de fugir da responsabilidade por seus atos contra ele. Fugir do remorso. Do peso na consciência. É a pedra basilar dos discursos de ódio e das propagandas de guerra. O título do episódio em português faz muito sentido nesse contexto, pois o ser humano é desmontado, para ter retirado de si parte de sua essência. Para fazer o que os assassinos fazem é preciso fugir da humanidade.
O desfecho da temporada não poderia ser mais simbólico. E a fuga aqui não é de nenhum personagem em especial, mas sim da sociedade como um todo. Usando como pano de fundo uma campanha de ódio na internet que pode estar vitimando pessoas na vida real, vemos a facilidade com que as pessoas se apegam aos erros alheios para fugir da responsabilidade pelos seus próprios. Exaltam os defeitos dos outros para não ter que encarar os seus. É a base para julgamentos e acusações, que aqui vem em forma de social media shaming. Essas pessoas ainda contam com o anonimato, para fugir do flagrante e das consequências.
Mas é impossível fugir, é o recado que a última cena desse episódio nos deixa. Acredite você em karma, destino, punição divina ou em nada disso, é impossível fugir. Black Mirror nos convida a olhar para nossa própria vida e encarar aquilo que temos que encarar. Façamos isso voluntariamente, ou soframos intensamente quando acontecer. Por que mais cedo ou mais tarde, todos seremos pegos.
The Yard
4.7 13A série segue o modelo mockumentary, ao estilo The Office, com depoimentos dos personagens em meio à ação, e mostra como funciona aquele microuniverso do pátio. Os grupinhos, as regras de convivência, a economia e tudo o mais. O que é curioso nessa premissa, aparentemente simples, é a quantidade de análises que ela abre e o número de instâncias em que ela funciona. Os episódios são engraçados, tem um ritmo agradável e momentos muito fofinhos, mas essa é só a primeira camada do show.
A segunda camada traz á tona um pensamento bem comum e que você já deve ter parado pra analisar, que é a semelhança entre a dinâmica de um colégio e a dinâmica de um presidio, especialmente no que diz respeito às relações entre as pessoas. As “facções” que se formam, as disputas por controle, busca por respeito e status, regras e formas de quebra-las, o fato de você não poder esfaquear seu colega do lado, entre outras coisas. Uma correlação interessante e feita de forma bem estruturada.
Na terceira camada é que a série realmente brilha, The Yard usa o universo infantil para tratar de temas relevantes e até polêmicos, temas como politica, que vão de intervencionismo estatal até liberalismo econômico, inflação, livre-mercado e concorrência entre moedas. Tráfico, proibição do consumo de drogas e criminalidade também são abordados. Ainda se fala sobre relacionamentos, equidade entre os sexos, disputas territoriais mundo afora, pobreza, crises migratória e muito mais. Tudo adaptado de forma precisa para a realidade infantil, preservando a inocência de seu ponto de vista e um teor didático sobre os temas, mas adicionando uma camada crítica, com um humor que varia entre o adorável e o ácido.
É uma escolha inteligente tratar de temas assim de forma didática e num universo agradável, pois dribla a resistência que o público médio apresenta para com esses assuntos. É a mais perfeita combinação entre educação e entretenimento que eu vi em muito tempo e vale quase como uma daquelas palestras de “como funciona a sociedade”. Tem um elenco carismático, histórias bem amarradas, personagens críveis e um ambiente familiar pra quase cem por cento dos espectadores. Uma obra incrível que traz o selo HBO de qualidade e merece ser conhecida por muito mais gente.