Não tem como ver esse filme e não relacionar Terence Fletcher (J. K. Simmons) com o sargento Hartman (R. Lee Ermey) de Nascido para Matar (1987). O jeito bruto, visceral e inconsequente de agir, de uma forma que acaba até mesmo desumanizando seus pupilos. O olhar sempre fixo em cada um dos músicos, quando não para a própria tela (embora eu não me recorde de ele ter olhado diretamente para a câmera, sempre há alguma inclinação). Os estouros frequentes, o linguajar preconceituoso e calunioso. Tudo, cada movimento, cada respiração nos faz odiar Fletcher, assim como Hartman, da cabeça aos pés. Assim que o filme começa, temos um quadro um tanto quanto disforme do personagem que viríamos a acompanhar o filme inteiro. A câmera não parecendo enquadrá-lo direito, começa a se aproximar de Neiman (Miles Teller) conforme a batida da percussão se acentua. A situação é tão estranha que parece que estamos espiando o que o jovem está fazendo, mas de uma forma analítica, já que a aproximação flui de um jeito leve. O que de fato descobrimos é que esta câmera que acompanhávamos é na verdade o próprio Fletcher observando o esforço do garoto, o que se pegarmos o filme no geral faz muito sentido, já que este é justamente o cara que analisará minuciosamente cada batida de Neiman. Além disso, no final da cena, Fletcher acaba voltando à sala, o que nos faz imaginar que ele dará alguma chance a Neiman, o que é totalmente quebrado pelo simples fato de ele ter retornado para pegar a jaqueta. Estas quebras de expectativas serão marcas que ocorrerão em todo o filme também. Sendo assim, este breve início não só nos faz entrar no clima do filme, como também nos dá pinceladas importantes do que o filme se tornará.
O divertido no decorrer de todo o filme é ver cenas em que tudo ocorre bem, seguidas de outra em que nada dá certo, como se fosse uma música, com seus altos e baixos. Dessa forma, vemos Neiman entrando para a companhia, saindo com Nicole (Melissa Benoist, que em seus poucos momentos de filme, consegue dar uma vivacidade meiga a um protagonista obstinado), seguido de total sufoco para conseguir acertar o que Fletcher quer, e preferindo se afastar da mesma Nicole para seguir adiante. Depois ele conseguindo retomar o posto de primeiro baterista e ser convocado para o concurso, mas que acaba tomando medidas desproporcionais no simples fato de conseguir chegar até o lugar. Até o fim do filme está mesma lógica se repetirá várias e várias vezes, assim como vimos no começo do filme quando Fletcher retorna para pegar a jaqueta. Essas pulsões de energias, assimilando com as batidas da bateria podem lembrar algo muito importante para todos nós: o coração. O coração bate forte quando encontramos uma pessoa que de fato nos sintamos atraídos, o coração bate fraco quando estamos num jantar familiar, o coração bate forte quando estamos no primeiro dia de aula, o coração bate fraco quando estamos andando pela rua, o coração bate forte quando somos postos diante de uma condição desumana de esforço, várias e várias vezes. Whiplash (2014) é um filme sobre pulsões, um filme que mostra os altos e baixos da vida de um músico, mas que poderia ser muito bem a de um escritor (como a do pai de Neiman), ou a de um diretor (como a do próprio diretor deste filme - Damien Chazelle). Essas pulsões de fato nos fazem vivos, pois imagine uma vida constante, sem nada a se surpreender ou temer. Isso só tiraria basicamente o nosso princípio humano, e a escolha da história ser a de um músico foi muito feliz, já que no cinema além do visual, o som é, sem dúvida, um dos maiores amplificadores de emoções (vide um filme de terror ou ação com as diversas explosões de sons). Com esta escolha ficamos ainda mais imersos nestas pulsões da vida, fazendo com que nós também entremos mais profundamente no filme.
Ao mesmo tempo que temos essas pulsões, temos um outro processo totalmente contraditório que citei lá acima: a desumanização de Neiman. No começo do filme, vemos um cara que não sabe muito bem se relacionar visualmente com outras pessoas, tímido, choroso, mas obstinado a conseguir ser o melhor. A partir do momento que ele entra em contato com Fletcher, Neiman começa a se tornar um Fletcher para as pessoas ao seu redor, tornando-se um cara bruto à mesa de família, rebaixando seus irmãos em represália ao que dizem de sua profissão. Neiman algumas vezes se utiliza do mesmo linguajar que Fletcher usava com ele para seus companheiros de companhia. A pessoa ingênua que Neiman se perde, a ponto de ele ser o único dos três, na cena em que Fletcher os põe incessavelmente à prova, raivoso a tocar a bateria, enquanto os outros já submissos a realidade, tocavam com olhares ausentes a situação. Assim como Nascido para Matar,
em que a desumanização de Pyle o leva a matar Hartman e posteriormente a se suicidar, se assemelhando as brutalidades que este cometia com aquele
, Neiman acaba se tornando um Fletcher em sua obstinação de ser o melhor. Visualmente esta obstinação é também muito bem pontuada, já que nos momentos que vemos Neiman tocar, a câmera passa por vários "closes", desde a mão ensanguentada até no suor de Neiman sobre o prato da bateria. Esses detalhes singelos evocam a minuciosidade da técnica de Neiman enfatizando ainda mais esta busca incessável pelo controle. É esta busca que faz Neiman ponderar em denunciar Fletcher ou não, já que ele mesmo ciente de tudo que passou, reconhece que progrediu diante de tal método. E é este o ponto máximo de sua desumanização, em que a técnica prevalece mais que ele mesmo. E ao acabarmos o filme, é justamente isto que fica no ar: será que é justo (já que moralmente não há nem o que discutir) se submeter a tais esforços a ponto de alcançar a primazia? Será que o método de Fletcher é de fato efetivo (no caso de Neiman deu certo, mas lembre-se que um dos alunos que passara pelo mesmo conservatório acabou por fim se suicidando)? Como disse, não acho nenhum destes métodos moralmente corretos, mas não sei responder com toda certeza estas perguntas. No mais, todos sabemos que para sermos os melhores no que fazemos, nós temos que batalhar para isso, mas qual é o limiar que diz que já passamos do perfeito (Cisne Negro (2010) é também um ótimo filme para se discutir isto)? Um professor? O coração? Morrer? "Good Job"?
Obs.: este foi um dos trailers mais incríveis que eu vi ano passado. Mesmo se vocês já viram o filme, confiram: https://www.youtube.com/watch?v=BjyCGE32Xdo
Estar numa situação de guerra nunca é algo agradável. Independente de onde estamos, a guerra sempre funciona da mesma forma, dois lados combatendo entre si até a morte de um deles. Todo o patriotismo, honra e companheirismo são postos à prova. Cada combatente é incentivado a aniquilar o maior número de vidas em prol de uma melhor promoção futura, de melhor prestígio social. O estado te toma como um herói, um salvador da nação. No entanto, por baixo de todo esse brilhantismo, reside a dor, o sofrimento, os horrores da guerra. A guerra não é nada daquele glamour todo que os governantes querem denotar. São homens, pais, irmãos e filhos lutando lado a lado por interesses que muitas vezes não são os seus contra outros homens, pais, irmãos e filhos. A destruição se alastra, os resultados da guerra, embora favoráveis ao estado são de total rebaixamento mental. Ex-combatentes ficam loucos, traumatizados com toda a experiência. É neste contexto que Tangerines (2013) se baseia. Logo nos somos apresentados a um velho senhor, de nome Ivo (Lembit Ulfsak) que diante de tanta miséria preferiu permanecer na terra por um motivo desconhecido. Já seu amigo, Margus (Elmo Nüganen) tenta com suas últimas forças lucrar um pouco na condição já desastrosa em que se encontra. Juntos, os dois passarão por experiências que irão muito além do que simplesmente colher tangerinas e montar caixas. Estamos poucos anos após 1992, considerando a idade dos dois senhores, é muito possível que os mesmos já tenham combatido na Segunda Guerra Mundial. Reviver todos os horrores passados na guerra não deve ser algo prazeroso para um veterano de guerra. Tudo isto é só suposição, mas este fato poderia muito bem explicar a fuga imediata da guerra, mas Ivo e Margus permaneceram. Isso pode explicar também a receptividade com que tiveram com os feridos, imaginando anos atrás, eles na mesma situação. O fato é que independente disto, alguma mágoa enorme se apoderou de Ivo, de forma que ele se mantivesse nesta terra, resgatando os dois combatentes.
É com o desenrolar do filme, que vemos que existem embates em diversas áreas entre os dois resgatados: orgulho (ambos perderam irmãos nesta micro-guerra), cultural (quando Ahmed (Giorgi Nakashidze) cita a música ou mesmo a comida), religioso (cristão e muçulmano). No entanto, ambos possuem algo que até mesmo espanta Margus: honra. A honra que os impede de matar um ao outro dentro da casa de seu salvador. Se formos reparar, honra é um ato muito recorrente em obras de guerra, mesmo que ela seja uma palavra muito perigosa. Utilizando-se deste discurso, os estados motivaram milhares de combatentes a lutar pela sua nação - a honra de defender seu território -, ao mesmo tempo que a honra seja a única barreira que impede o homem de soltar seu espírito animal, como no caso de Ahmed e Niko (Misha Meskhi). Essa dualidade da honra é importante neste filme, pois como disse acima, agora transcrevendo para o filme, ela motivou os dois lados a se digladiarem, ao mesmo tempo que vai ampliando horizontes entre Ahmed e Ivo, a ponto dos dois se tornarem companheiros na "mesma guerra". Um detalhe interessante que permeia todo o filme é a tensão retratada nele de uma forma sutil: em diversos momentos do filme, temos várias cenas que parecem quebrar a tensão do momento. Citarei três: quando Ahmed diz que assim que Niko sair de casa, ele o matará, se ele colocar a cabeça para fora ele o matará, Ivo o pergunta se ele pelo menos pode mijar para fora de casa. Em outro momento, quando todos perguntam onde está Ivo, e este responde que está mijando, fazendo todos caírem na gargalhada. E uma última vez, quando Ivo descobre que Niko era um ator de uma companhia de teatro, e começando a imitar Ahmed sério aplaudindo Niko da plateia, os dois caem na gargalhada também. Mas se vocês se lembrarem um pouco melhor, se lembrarão que segundos depois de cada uma destas cenas, algo tenso acontece. Na primeira, Niko arremessa o copo em Ahmed. No segundo momento, bombas acertam a casa de Margus. E no último, aparecem os chechenos que levará à morte de Niko e Margus. Parece que o cômico, mesmo que presente no filme, é sempre sufocado pelo estado de guerra, como se estivesse sempre para alertar aonde estavam. E isso é genial, já que o cômico, o rir, um detalhe que nos faz mais humanos é sempre efêmero; a guerra suprime. Esta ideia é metaforicamente uma representação do próprio sufocamento das pessoas num estado como este. Só para completar a ideia de tensão, temos um detalhe técnico, também sutil, que evidencia esta sensação. Na grande maioria do filme, mesmo quando estamos em cena em que Ivo vai simplesmente andar pelo campo de tangerinas, a câmera sempre o acompanha deslizando para os lados. A câmera nunca está estática, focando as personagens da cena. O mais divertido é que esse leve deslize sempre vai para o lado em que as personagens logo após acabarem a cena vão se movimentar, o que dá um dinamismo, e uma melhor movimentação da câmera, dando movimentos mais bruscos só quando necessário (o que é algo que eu particularmente não gosto em Guerra ao Terror (2008), em que temos a câmera sempre tremendo, tirando a sensação que poderia ser mais enfática em cenas mais tensas, caso tremesse somente nestas cenas em específico).
Citei a pouco que Niko era um ator antes da guerra, e que Ahmed bateria palmas de um jeito mecânico. Nisso, podemos tirar algumas ideias dos dois combatentes no estado psicológico. Aparentemente, Niko é mais alegre, mais voltado às artes, com mais cultura (detalhe que ele sempre deixará claro entre eles: que Ahmed não lê), enquanto, Ahmed leva a vida de um jeito mais sério, mais rígido. Estes detalhes são novamente, só suposições, mas a ideia é clara, a imagem que temos tanto de Ahmed quanto de Niko no filme é muito semelhante; homens frios, numa situação delicada. Disso tiramos mais uma ideia da guerra: esta pasteuriza os indivíduos, tira a individualidade deles. São como disse acima, homens, pais, irmãos e filhos lutando contra outros homens, pais, irmãos e filhos. Não vemos a individualidade aqui, e de fato é isso que acontece na guerra: os homens não estão lutando por João, Lucas ou Pedro, eles lutam pela nação, um coletivo, se ausentando de seu indivíduo. A fala de Ahmed evidencia isso ainda mais, já que ele sempre fala "nós" ao invés de "eu acho isso" ("Nós costumamos respeitar os mais velhos", "Nós respeitamos as outras crenças").
Uma última analogia interessante a se fazer que para mim é a mais forte, se dá no contraste de duas cenas: a primeira é aquela em que um grupo de chechenos vêm à casa de Ivo para cumprimentar tanto Ahmed, quanto Niko (ou seja, ele teve que se disfarçar), com a cena em que outros chechenos não acreditam que Ahmed é também outro checheno, causando todas as seguintes mortes. Essas duas cenas ilustram uma ideia que Kubrick em Medo e Desejo (1953) já havia muito bem pontuado (embora ele repudie o filme, vai saber por quê): a ideia de que combatentes lutam com seus similares, de uma forma em que um nem sabe se o outro é de fato amigo, ou inimigo. Nestas duas cenas de Tangerines, vemos essa mesma ideia muito bem demarcada: no primeiro caso, o georgiano se passa por um checheno e tudo fica bem. Na outra, cria-se um desentendimento entre dois indivíduos da mesma nação, causando todo pandemônio. Ivo, pontua isso no final do filme: "Faz diferença quem ataca quem?" Numa guerra, tudo é estrondoso, é horrível, mas mais do que tudo, babaca, para não se usar termo pior. Os horrores são tantos, que ninguém sabe quem luta com quem e por o que. A tristeza é tanta que a glória que alguns tentam achar não passa perto da devastação. Tangerines é sobre isso, o terror da guerra até mesmo num vilarejo minúsculo (perceba que em nenhum momento saímos dessa região para de fato ver o que acontece fora. O externo chega a esta vila - as bombas, os combatentes, os carros), e se pararmos para pensar que só neste lugar tivemos tudo isso, eu nem sei se quero imaginar o que está para fora disto.
Por fim, por que o filme se chamar Tangerines (mexericas, na tradução)? Como Margus mesmo diz, é a luta contra suas mexericas. Faz de fato diferença se a denominação é "Guerra das Mexericas", "Guerra pela Abecásia" ou "Guerra ao Terror"? Eu acho que não.
Obs.: agora totalmente fora do universo deste filme: por alguma razão eu fiquei o filme inteiro lembrando de O Poderoso Chefão. Sei lá, mexericas, laranjas, mortes, devaneios.
Enquanto via o filme, vários diretores passavam pela minha mente, além dos já creditados ao filme: Robert Rodriguez, Quentin Tarantino, Christopher Nolan e Stanley Kubrick. Queria então fazer a abordagem deste comentário baseado nos diretores citados. Os dois primeiros, por serem colaboradores do projeto, deixam sua marca bem clara neste filme. Rodriguez e sua tara por mulheres ultra-sensuais, repleta de armas e quinquilharias mortais e Tarantino com aquele sanguinolência típica, além de termos cenas com Miho (Devon Aoki) bem parecidas com as presentes em Kill Bill (sem contar que a espada é a mesma deste filme). Quando estava no final do segmento "That Yellow Bastard", logo me lembrei de uma característica que estava presenciando no mesmo momento, e que Nolan utiliza em todos seus filmes, como A Origem (2010), Interestelar (2014) e a Trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012): diálogos impactantes que são retomados exatamente da mesma forma em momentos mais finais do filme. Se você não concorda com isso, ou não se lembra, vou elencar alguns deles: - "An old man dies. A young woman lives. A fair trade. I love you, Nancy." - "I take away his weapon. Both of them." - "That there is one damn fine coat you're wearin'." - "She smells like angels ought to smell, the perfect woman... the Goddess. Goldie." Esta é uma estratégia bem interessante a fim de capturar o interesse do espectador, atento ao fato de já ter ouvido a mesma frase.
Por fim, temos o último nome: Stanley Kubrick. Se achar uma característica de Nolan neste filme já foi difícil, prepare-se para esta. Kubrick, como vocês talvez já devam saber, foi um cara visionário e perfeccionista, que nos presenteou com uma série de belas obras, tais como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) ou Nascido para Matar (1987). Kubrick tirou o máximo de cada gênero, de cada história, criando várias realidades bem diferentes. No entanto, sendo o cara estupendo que era, Kubrick inseriu vários temas recorrentes em sua obra, que tive o prazer de presenciar em Sin City (2005). O tema a que me refiro é justamente um dos pontos mais importantes do filme: a relação entre amor e morte, começando por alguns títulos de seus filmes (que aqui traduzirei literalmente), Fear and Desire (Medo e Desejo), Killer's Kiss (O beijo do assassino), Dr. Strangelove (Dr. Estranho-amor). (As próximas marcações de spoiler se referem aos exemplos deste tema em alguns filmes dele). A Morte Passou por Perto (1955):
os planos do roubo são totalmente desmascarados quando um dos assaltantes conta a sua amada (ou o que pensava ser). Este será o motivo de toda a chacina no final do filme.
Alex DeLarge dança com a Mulher dos Gatos num quarto repleto de imagens sexuais, que será por fim, finalizado com a morte da mesma.
, só para dar alguns exemplos. Voltando ao Sin City, todas, sem exceção, toda a violência provém de alguma outra forma de amor: Hartigan (Bruce Willis) mata várias pessoas em amor a Nancy (Jessica Alba), que também ama reciprocamente este. Este amor fará com que no final, Hartigan se suicide. O filho do senador (Nick Stahl) "ama" as crianças, matando-as depois de se satisfazer. Marv (Mickey Rourke), em sua fúria incontrolável, vai matando um por um, em amor à Goldie (Jaime King). Kevin (Elijah Wood) "ama" e não consegue se controlar, matando suas vítimas as comendo. Dwight (Clive Owen) tendo um sentimento tanto por Shellie (Brittany Murphy) quanto por Gail (Rosario Dawson), tentará combater os inimigos em comum. Em Sin City, todo pecado é também motivado por amor, e este é mais um dos motivos da estética do filme, remetendo a uma época noir, em que as sombras e os contrastes dão um tom mais sensual ao filme. Outros detalhes técnicos que ajudam a dar esta atmosfera são o ritmo mais lento em cenas como as de uma personagem dentro do carro ou a voz em off. Um ponto interessante também se dá quando temos a presença de cores, principalmente o vermelho (o vermelho que é ao mesmo tempo o coração e o sangue, mais uma vez, o amor e a morte). Sendo assim, por trás de tanta violência e sangue, o que nos motiva a realizar todos esses atos é simplesmente o sentimento mais puro do ser humano: o amor. O amor que mata e nos torna feras irracionais. Atire a primeira pedra quem nunca fez algo bizarro, algo que nunca se imaginou fazendo, quebrou rotinas e regras para tentar conquistar alguém. É claro que neste filme, temos o extremo deste bizarro, mas assim como filmes como Relatos Selvagens (2014) e Dr. Fantástico, somos levados ao extremo para mostrar quão bestiais nos portamos. Sin City é um filme distópico, é um filme sensual (com a Jessica Alba rebolando). é um filme de ação, é um filme Tarantino, mas mais de tudo, é no fundo, a nossa própria realidade: sentimentos que podem mover montanhas, ou corpos fuzilados.
A crítica racial deste filme vai muito além do que simplesmente violência desferida contra brancos em represália a feita em negros. A profundidade do filme é muito maior do que colocar uma protagonista negra femme-fatale que assassina todos os homens com que deita, com direito a exposição contínua de seios enormes. Across 110th Street (1972) - não gosto do título em português, já que no título em inglês, a crítica fica ainda maior. A rua 110th é famosa por dividir o Central Park do Harlem. 'Across' então é como se remetesse ao que viesse depois desta rua, como se mostrasse a obsolência que estas pessoas (negras) sofrem do resto da cidade - possui sim vários dos temas do blaxpoitation (a trilha sonora de artistas do soul negro, personagens negros fortes em contrapartida aos brancos racistas, drogas e prostituição), embora mais sutis, deixando mais espaço para a crítica à sociedade racista que existia (e ainda existe). Começamos então o filme com uma confusão de raças e seus interesses. Brancos vão até o Harlem fazer negócios com negros, até outros negros não simpatizantes aparecem e realizarem uma chacina no local, levando todo o dinheiro em cheque. Somos então levados à figura de um policial (Anthony Quinn), que inicialmente parece controlar o caso, apenas a dar tempo do real tenente tomar rédeas da situação: Pope (Yaphet Kotto). Frank Mattelli não se conforma com isso. Não se conforma talvez por ter que subordinar a um negro, ou simplesmente por estar perdendo seu posto. Inicialmente não sabemos; inicialmente. Sem contar o agravante da idade, o caso se localiza no Harlem, ou seja, área negra. Politicamente é melhor colocar um negro na frente do caso do que um branco, o que irrita ainda mais Mattelli ("Fuck the politics"). Aqui temos o primeiro indício da personalidade de Mattelli: interesseiro. Essa mesma política fez vários anos antes com que negros fossem ainda mais segregados do que já eram socialmente. O estado nunca esteve com esses indivíduos. Mattelli parece ter se esquecido que essa mesma política, que ele manda se lixar, um dia favoreceu a ele mesmo, branco. Mattelli só segue então com as normas quando a ele lhe convém. Nesta mesma cena, temos uma composição fílmica muito boa: depois que seu colega diz que ele deveria se aposentar, Mattelli olha para o espelho, como se estivesse vendo o seu duplo. O real, não se conforma com a situação em que está, já seu duplo, sabe que ele terá que ceder. Quando percebemos que Mattelli enfim se conforma, a câmera passa para o ponto de vista do espelho, como se este estivesse olhando para Mattelli. Agora o duplo olha para o real. Esta balança mudou de lado. Narrativamente nós sabemos que isso acontece pelo prosseguimento do filme, mas esse pequeno detalhe técnico já nos faz supor traços que também encontramos na atuação inconformada de Quinn. Essa noção de real e duplo também pode ser criada na figura de Nick (Anthony Franciosa): com a família italiana (algo que lembra muito O Poderoso Chefão (1972), com aquele pomposa festa inicial), Nick se mostra o cara mais solícito e agradável possível. No entanto, este não é o Nick real, este é seu duplo. O real é o Nick que veremos nos demais minutos, bruto como um touro, torturando e linchando os negros. Nick é o estereótipo perfeito do branco racista que sempre odiamos e que esperamos ter o pior final possível, como o visto no filme. O interessante do filme é que ele não se baseia unicamente neste estereótipo. É claro que o outro personagem branco importante do filme (Mattelli) também é racista, mas a intensidade é muito menor que ao de Nick. Além disso, vemos negros e brancos trabalhando conjuntamente e contrários a indivíduos da mesma raça (na gangue de Nick temos um negro, Doc Johnson (Richard Ward) é subjulgado e subjulga brancos, dono do guincho não acredita que Pope seja um policial encarregado e Jim (Paul Benjamin) mata outros negros). As relações são conjuntas, não um simples maniqueísmo em que todos os negros sejam bons e os brancos, maus, e é nesta detalhe que o filme ganha mais realidade.
Deixando este maniqueísmo de lado, o filme pode tratar de assuntos mais delicados como o porquê de negros não possuírem a mesma posição social dos brancos. Numa cena entre Jim e sua concubina, temos o perfeito quadro de falta de perspectiva do mundo. "Pare de ter sonhos de uma mulher branca". Se ambas as mulheres, brancas e negras nasceram na mesma cidade, suporíamos que as condições devessem ser iguais para ambas, o que não é. Mais uma vez, esta frase remete àquela ideia supracitada de que o governo não se dá conta desta outra parcela da cidade. É este sentimento que motiva Jim a roubar, já que a mesma quantia só seria adquirida com anos de trabalho pesado, muitas vezes humilhantes, como a prostituição (já que a escolaridade não é elevada) ou submissivos (se rebaixando a um branco). Será que a criação de melhores condições para os negros não diminuiria em níveis expressivos os índices de criminalidade? Outra crítica muito pontual é feita à forma de obtenção de informações. Mattelli, bruto como é, logo começa a esmurrar um suspeito que nem sabe se de fato fez algo de errado (neste caso, branco batendo em negro). Ironicamente, a cena logo a seguir é de Nick interrogando outra pessoa, em torno de vários negros. Nesta cena, o mais opressivo não é Nick, tanto que nem chegamos a vê-lo realizando alguma brutalidade, mas sim o ambiente em si, rodeado de negros. E se não bastasse, temos um detalhe técnico maravilhoso: o braço de um dos negros, conforme a câmera vai se aproximando parece formar um cerco na figura reprimida da Sra. Fears (assim como em A Primeira Noite de um Homem (1967)). Desta vez, a crítica não vai unicamente aos brancos, mas aos interrogadores em geral. Será que é moralmente correto torturar os investigados em troca de informações? Uma última crítica interessante vai agora as entidades da polícia: o mais alto comandante da polícia recebe propina das pessoas que ele deveria estar prendendo. Mais a frente, vemos um policial indo recolher a roupa que deixara na lavanderia, e se recusando a pagar os impostos, que todos os cidadãos americanos são obrigados a pagar conforme seu estado, com nenhum argumento plausível. Ele não precisa pagar porque é um policial? Essa corrupção da polícia que é sempre expressa em filmes que vemos é também pontuada neste filme, de uma forma mais sutil, mas presente.
Antes de terminar, gostaria de pontuar alguns (outros) detalhes técnicos muito interessantes presentes no filme: assim como na ideia do espelho e no enclausuramento visual da Sra. Fears, o filme é repleto de escolhas imagéticas muito ricas, como na cena em que o homem caindo no vão do elevador corte para Jim gritando ao acordar da cama, mostrando o sofrimento daquela ocasião dos dois indivíduos. Ou mesmo na câmera subjetiva (câmera no olhar da personagem em questão), quando Joe (Ed Bernard) está pendurado no topo do prédio, em que temos um câmera que não cessa em tremer, como se nós também estivéssemos balançando junto com ele, a ponto de quase cairmos. A trilha sonora embora bem característica do movimento blaxpoitation, como pontuei acima, também é rica na expressão da emoção do momento, já que vemos instrumentos de percussão, como a bateria e um chocalho nas cenas de fuga, como se os intervalos das batidas remetessem aos passos que a pessoa em questão está dando para fugir, ou mesmo um violoncelo, dando uma atmosfera mais jazzística, como em Taxi Driver (1976), enaltecem a sensação de sensualidade da cena. Se não bastasse, ainda temos a música tema do filme, Across 110th Street, que será mais tarde altamente difundida em filmes como Jackie Brown (1997) e Gangstêr Americano (2007), ilustrando perfeitamente a reflexão de Jim em sua letra ("Doing whatever I had to do to survive. I´m not saying what I did was alright"). Os detalhes técnicos são muito ricos e só por si, incorporam ainda mais ao filme.
A cena final em que Jim lança o dinheiro às crianças do gueto, remetem a uma ideia de Robin Hood (que detalhe, possa parecer bonito e tudo mais, mas que temos que lembrar que só foi feito, visto que não teria mais condições de manter todo o dinheiro com ele), como se ecoasse àquela ideia de que o governo não guarda pelas almas negras, assim como faz com as brancas. Já que o governo não ajudará, ele fará por si mesmo. A última cena mostra Mattelli tomando um tiro, e caindo sobre Pope. O que vemos então é justamente as mãos agarradas enquadradas, como se remetesse àquela ideia que Mattelli tem de interesse sobre as outras coisas, já que a minutos atrás, ele ainda desconfiava do garoto por ele ser negro. Esse desprendimento das mãos resume por si só, a ajuda que os negros recebem dos brancos, - nenhuma - e que dessa forma, por se distanciar ainda mais das comunidades negras, acabam longe de receber apoio das mesmas. Ressalto mais uma vez, não por vingança, mas justamente por conta desta distância que estes brancos preferiram ter.
Obs.: Em 2013, foi lançado um filme muito interessante sobre a violência desferida contra negros nos EUA: Fruitvale Station. Vale a pena a conferida. Que com filmes como estes dois, a igualdade entre as duas raças se equivalha cada vez mais.
Vou logo dizer que não gostei do filme. Não gostei da história. Não gostei do personagem de Larry David (nem do ator, até quando ele monologa com o telespectador, ele está gritando). Não gostei dos clichês que o filme tenta explicar como naturais (a naturalidade criada em Tudo Pode Dar Certo (2009) não é a mesma de Match Point (2005), o que fez com que as explicações de acaso e sorte não fossem tão incríveis quanto as deste segundo filme, também de Woody Allen).
Começamos o filme com a figura de Boris, que logo de supetão interage com o espectador de uma forma inicialmente interessante, como se mostrasse que Boris, em toda sua intelectualidade, está acima das demais personagens (estratégia muito bem utilizada em Curtindo a Vida Adoidado (1986)). Seria um artifício inteligente, se o filme não se utilizasse toda vez dele quando quisesse transpor a ideia de superioridade. Se não bastasse, a primeira cena em que isto acontece, embora novamente interessante à primeira vista, acabe se alongando de uma forma cansativa e totalmente incoerente com a linguagem cinematográfica (num filme, as palavras devem servir de apoio para as ações e imagens que vemos na tela, e não o contrário. Isto não é um documentário). Larry David sempre em seu modo incomodante - gritando - para à frente da câmera e basicamente resume tudo o que o filme vai mostrar em palavras. Para que continuar em imagens então? Vou dar um exemplo. Um bom trecho deste monólogo, Boris conta o porquê de não conseguir se adequar a este mundo, como ninguém o entende, finalmente dizendo que tentou se suicidar. Logo após isso, vemos os momentos finais da relação dele com a ex-mulher, explicando novamente tudo o que ele acabou de dizer, com palavras diferentes, e indo por fim, tentar se suicidar. Eu não entendo porque Woody Allen simplesmente não corta a primeira introdução, se ele recontará tudo em novas palavras. Isso é tempo de filme, mas mais do que isso, cansa o espectador. Se você ainda não está satisfeito, vou comentar outro momento em que isto acontece: Boris, como sabemos, acolhe Melody (Evan Rachel Wood) em seu apartamento, cuida dela e tudo mais. A primeira vez que retornaremos a ver os amigos de Boris do começo do filme, ele conta que acabou de acolher uma garota, sem acrescentar nenhuma informação que ele já não tinha dado antes. Mas caramba, a gente não acabou de ver isso? Estas duas cenas acontecem logo nos 10 primeiros minutos do filme, e confesso que fiquei bem inquieto com este início.
Vamos ao personagem principal. Boris, é um cara chato, sem mais. Logo no começo do filme ele nos diz que não é muito carismático. Não precisava nem ter dito, o cara é chato para caral-e-o. Para não dizer que não simpatizei nem um pouco com Boris, quero dizer que o Boris final é um cara muito mais engraçado do que o do começo, já que no final, Boris continua sendo pessimista e desiludido, mas ele tem um tom sarcástico muito incisivo na voz, o que me fez dar umas boas risadas ("Por que todos os psicóticos religiosos acabam rezando na minha entrada?"). A questão é que ele só é assim, de 3/4 do filme para o final, e quando aparece; da metade do filme adiante, Tudo Pode Dar Certo começa a acrescentar tantas personagens novas, que para desenvolvê-las bem, acaba deixando Boris em segundo plano. Isso não seria um problema, se no final, Boris acabasse mais perto das relações do meio, do que afastado como era antes (me refiro a cena final em que ele olha novamente para a câmera, monologando). Outra coisa que me irritou bastante foi o fato de acabarmos o filme justamente como esperávamos que acabasse: O coração de Boris amolece, mas não o suficiente para o filme não ficar totalmente previsível. Alguns podem dizer que esse clichê é totalmente explicado pelo fato do filme trabalhar com a ideia de que embora clichês sejam previsíveis, eles as vezes são as melhores coisas a se dizer. O filme até começa bem, iniciando este assunto acerca dos clichês, só que até o fim do filme, o desenvolvimento desta ideia será o mesmo. Parece que o filme cansou de trabalhar o que seriam clichês porque estava inserindo personagens demais na trama. Se você não concorda com isso, veja por exemplo o filme Match Point, que citei mais acima. Neste filme, cada ideia em relação à sorte e ao acaso é estrategicamente posicionada para que o desenvolvimento geral cresça junto com estas ideias.
Por fim, o filme cria críticas interessantes acerca da religião. A principal delas se dá ao fato das pessoas acreditarem tão piamente em tais seitas, que acabam colocando muitas vezes, seu interesse pessoal muito abaixo dos dogmas gerais, em suma, perde-se a individualidade que motiva o indivíduo a continuar vivendo. Além disso, temos quadros religiosos bem conservadores acerca do aborto, homossexualidade, casamento entre pessoas de idades bem defasadas relações à três, que são bem desconstruídos nesta ideia de seguir o seu próprio querer. Até aí o filme vai perfeitamente bem em sua crítica, no entanto, temos outras duas coisas que fazem esse discurso caírem por água abaixo. A primeira é a caracterização do homossexual, na figura de Joe (Michael McKean). O esteriótipo que o filme cria é muito intransigente. Por que a partir do momento que Joe se assume homossexual, quando o vimos na festa de ano-novo, ele magicamente torna-se mais efeminado. Assumir-se homossexual não quer dizer que você tenha que mudar suas nuances. Mas mais até do que isso, o que me fez ficar bem inconformado foi o desenvolvimento de algumas personagens, principalmente, - e de novo - Boris. Se existe alguém mais intolerante que a religião neste filme, esse alguém é Boris: a forma como ele trata as pessoas, ditando regras e superioridades a partir de sua inteligência, como se tudo o que ele sabe, seja o correto, simplesmente porque ele é mais sábio que os demais. Além disso, temos uma mãe (Patricia Clarkson) que mesmo depois de "transformada", continue tão intolerante com o desejo da filha do que outra coisa (é claro que temos uma imagem ingênua de Melody, mas se Melody se achava suficientemente madura para querer esta nova relação, ela também estava suficientemente madura para arcar a relação com Boris). É por personagens (pontos normalmente fortes na filmografia de Woody Allen) como estes que acabei me questionando se a crítica a religião vinha de uma maneira tão forte quanto poderia vir. Ao mais, não considero este um dos melhores filmes deste século de Woody Allen, nem um bom filme.
Este é um dos filmes mais sensíveis do ano, senão o maior deles. Assim como ano passado tivemos Her (2013), este ano tivemos Boyhood (2014). A carga emocional e subjetiva é muito forte em ambos, as únicas diferenças se dão no foco em que cada filme dá e no fato de que Boyhood provavelmente conquistará mais estatuetas do Oscar do que o Her (infelizmente!). A grande premissa do filme se dá pelo fato de ele retratar a vida de um garoto por 12 anos, e daí já vem algo bem importante para começo de conversa: quais são os fatos mais relevantes na vida de um garoto em sua fase de amadurecimento? O que inserir e o que descartar no filme? Essas perguntas podem parecer ingênuas, mas na verdade, elas exprimem um olhar muito delicado sobre a vida de qualquer indivíduo, já que talvez o meu olhar sobre ela não seja o mesmo do meu vizinho, ou dos meus pais, ou mesmo do filme em questão. E é aí que vem a grande jogada do filme: por que não retratar todos? Boyhood de fato conta a história de um garoto ao longo de todos esses anos, mas ao mesmo tempo, presenciamos figuras bem diferentes do garoto em toda esta passagem. Sendo assim, Boyhood não se trata unicamente da vida de Mason (Ellar Coltrane), mas sim de uma série de pessoas - mesmo meros coadjuvantes que aparecem uma única vez na tela - (diferentes entre si) que compõem o trajeto da vida de qualquer pessoa. É por conta desta abrangência que o filme consegue agradar pessoas muito diferentes ao mesmo tempo (temos a figura do rockeiro, da esportista, do cético, do caipira, da azarada, do geek).
Algo que pode ter incomodado a alguns se dá ao fato do filme não ter propriamente um clímax, um embate que muda todo o enredo para um rumo totalmente diferente, algo que chamamos de "plot-twist", o que para mim é perfeito! Pense bem, a ideia do filme é se aproximar da vida de uma pessoa. Não existe um momento específico da nossa vida que podemos parar e dizer: "Nossa, isso deu uma guinada totalmente diferente para o rumo da minha vida". Na verdade, isto ocorre a todo momento, seja por exemplo quando vamos comprar um pão na padaria e lá ocorre um assalto (a gente podia pensar que se a gente não tivesse ido para lá, nada disso teria acontecido), ou quando viajamos pela estrada e um pneu do carro estoura, fazendo com que perdêssemos uma festa. O que quero dizer é que a cada segundo algo novo acontece, podendo mudar algo na nossa vida que nem percebemos. Se formos parar para analisar mais a fundo o filme, percebemos que é justamente isso que acontece, já que a família de Mason muda de lar a cada hora, que a mãe de Mason (Patricia Arquette) só dá bola fora com seus maridos, que Mason conhece uma gama diferente de pessoas, se relacionando com algumas delas e vendo-as sumir da mesma forma que a conhecemos. O filme é repleto de pequenos momentos que, de fato, compõem a vida, e é por isso que o filme (vida) não precisa de um clímax propriamente dito, porque viver já é um clímax. Outra crítica que vi se baseava no fato de quase não termos atuações estupendas em todo o filme. Eu concordo que isso seja verdade, mas mais uma vez, se as atuações fossem maravilhosas, a verossimilhança com a vida não seria tão boa, já que eu não sou ator, minha mãe não é atriz, meu vizinho também não. Os atores tinham que parecer meros transeuntes, meros coadjuvantes; a vida é a atriz principal. Essa casualidade me fez nos aproximar muito mais do filme do que simplesmente se os atores fizessem atuações dramáticas, cômicas ou maravilhosas demais.
Uma coisa que me chamou muito a atenção foi o trabalho detalhado de referências que vemos no filme. Estas referências não só transmitem a sensação das personagens, da ação (como a cena de abertura em que Mason olha para o céu, e toca Yellow, de Coldplay, na estrofe da música em que ele justamente fala sobre as estrelas, ou na cena final em que o som de Arcade Fire (Deep Blue) reflete tudo o que acabamos de ver nas quase 3 horas de filme, já que a música fala sobre memórias e momentos. Nessa música, há um verso que diz: "Let the century pass me by". De fato, o que aconteceu foi deixarmos uma década da vida de um garoto passar à frente dos nossos olhos), como também marcam a passagem de tempo, já que o ano de lançamento de cada uma dessas referências bate com o crescimento de Mason ao decorrer dos anos (Coldplay - 2000, The Hives - 2000, Gnarls Barkley - 2006, The Black Keys - 2010, Arcade Fire - 2010 para dar alguns exemplos musicais, mas podemos ver também nos filmes com Harry Potter, High School Musical, Batman Begins, Trovão Tropical, Star Wars (trilogia mais nova)), além das próprias tecnologias irem evoluindo (Xbox para Wii, ou da conversa física, passando por email até videoconferência por Skype). Por fim, o filme ainda consegue nos contextualizar politicamente (eleição de Obama, 11 de Setembro, Guerra do Iraque, latinos no país). E é por conta desses pequenos detalhes que nós viajamos nostalgicamente no tempo assim como sentimos um toque de mais realidade à obra.
O detalhe divertido se dá quando vemos Mason já crescido discutindo sobre crianças mais novas e dizendo que a fase envergonhada delas ainda estava por vir, como se resumisse bem todo esse trajeto da vida e enfatizasse ainda mais aquela ideia de personagens diferentes vivendo momentos conjuntos. Assim como Mason vê aquela criança como algo que ele já fora, os pais dele o veem como algo que eles também já foram, e nós, telespectadores, vemos as personagens referentes a nosso momento de vida. Ao final do filme somos presentados com mais um dos diálogos existencialistas de Mason, em que há uma conversa com a garota da universidade que ele acabara de conhecer. Nesta conversa, a garota diz que ao invés do que é largamente difundindo, ela não acredita que nós aproveitamos o momento, mas que na verdade, é o momento que nos aproveita. Se formos comparar o começo do filme, em que víamos Mason olhando para o céu, mas não vemos o céu em questão, com este final, situado num ambiente bem maior, quase onírico de tão belo, a sensação é de que no começo o garoto está de fato aproveitando o momento, já que a câmera foca nele, o que já no final, com este ambiente grandioso, parece que o ambiente os engloba, como se confirmasse o que a garota acabara de dizer. Cada momento é delimitado por fatos e acontecimentos diferentes, mas são esses mesmos momentos que vão determinar o futuro próximo das personagens. Sendo assim, são os momentos que impulsionam cada nova escolha, cada nova amizade, cada nova relação. Os momentos de fato nos englobam, mas não é por conta disto que nós não possamos os aproveitar também. Estas duas imagens, uma logo no começo, e esta outra logo no fim, parecem elucidar bem que os dois lados acontecem simultaneamente. Repare que em nenhum momento disse que não temos o controle do que fazemos, é claro que temos, e é isso que nos torna humanos, mas são os simples momentos que nos fazem ser quem nós realmente somos, e Boyhood traz vários deles.
Quando vi este filme, logo me lembrei do fotógrafo Kevin Carter, responsável pela foto que o condecorou com o Prêmio Pulitzer, da menina em estado deplorável prestes a ser devorada por um abutre (Para quem não conhece, vou colocar um link no final do comentário com a foto). A história por trás desta foto dialoga bem com a de Lou Bloom (Jake Gyllenhaal, que a cada vez mais vem se destacando em seus novos papeis), com a única diferença de que Carter tivesse de fato alguma moralidade. Ao invés de ter tentado salvar o garoto, Carter esperou o momento fatídico que o abutre vinha para capturar a foto que seria difundido pelos quatro cantos do mundo. Um ano depois, Carter viria a se suicidar não aguentando a pressão imposta por algumas pessoas sobre ele. Assim como Lou, Carter esperou o desenrolar dos fatos para conseguir o melhor ângulo. Não sabemos a motivação do fotógrafo, mas a de Lou fica bem clara: subir na vida.
O filme inicia-se com uma série de imagens da cidade, como se a estivéssemos vigiando. Considerando o fato de que a história se tratará justamente de um indivíduo que vaga pelas ruas a fim de encontrar a sua melhor presa, as cenas iniciais não servem simplesmente para apresentar o cenário em que estamos (como num filme de Woody Allen, e que eu acho maravilhoso), mas também para mostrar que estamos com os olhos virados a todos os cantos da cidade. Enfim, somos apresentados a Lou Bloom, um sujeito que roubava arames para posteriormente os vender. Quando pego por um policial cometendo a infração, vemos logo sua índole, a de um indivíduo que não teme nada, nem o nome da lei, para seguir em seus atos. Lou mais a frente dirá que não teve uma educação formal, e que aprendera tudo pela internet (a ideia da internet é muito interessante ao filme, já que por ela podemos observar e aprender qualquer coisa que queiramos, é como se pudéssemos vigiar tudo ao redor do mundo, assim como o próprio Lou dirá quando deixa claro que sabe quase tudo da vida de Nina (Rene Russo)). Um grande panorama que podemos fazer de O Abutre (2014) é justamente com um outro filme majestoso, Taxi Driver (1976). Assim como Lou, Travis Bickle vaga por todos os cantos de Nova York como se estivesse vigiando a ação de cada indivíduo de dentro de seu táxi. Não bastando, Lou diz mais a frente que desgosta das pessoas, e que assim como Travis, faria de tudo para evitá-las. No entanto, a característica que mais me chamou atenção a fim de que eu assimilasse os dois personagens se dá no fato da lábia. Lou parece ter uma resposta pronta a cada questão que alguém o fazia. De fato, suas respostas são tão mecânicas que parecem ter sido tiradas palavra por palavra de um texto da internet. Travis também faz isso, é claro que não pela internet, mas inteiramente da televisão e do cinema. Assim, os dois têm lábia, só não possuem o conteúdo necessário para utilizá-la (Lou na cena em que tenta vender a bicicleta fala que a mesma possui 37 marchas, o que de fato não existe, além de exagerar ao dizer que venceu a Maratona com a tal bicicleta). Se formos puxar mais um pouco, podemos chegar até mesmo no motorista de Drive (2011) que também vaga pelas ruas procurando algo a se ater. Todos estes três sujeitos vivem num meio em que desgostam, fazendo de tudo para ofuscá-los, agindo à sua medida para tal fim, seja pela lábia, violência ou desdém.
Um outro aspecto bem claro que o filme tenta elucidar é o quão longe um programa de televisão pode ir para almejar mais audiência. Será que permitir a exposição de tais cenas não seja tão repudiante quanto um freelancer que burla as regras para conseguir as imagens, ou até mesmo, criminoso como a dos latinos que invadiram e mataram todos os integrantes daquela casa? Talvez as ameaças que Lou faz a Nina sejam tão cruas como o trabalho destes dois. Talvez ela ter enfim aceito a proposta de sexo mostre que neste meio o sucesso é o que vale mais do que tudo para eles dois. Mostrar detetives tão impotentes talvez ressalte ainda mais essa criminalidade de Lou. Lou é imprevisível, irascível e impetuoso, características que são incrementadas a partir do momento que Lou entra neste ramo, um ramo que mesmo diante de tantas desavenças, como as que vimos no filme, continua vivo. E que continua vivo justamente por conta de nós, os telespectadores. O filme é sim uma crítica a tais indivíduos que produzem, exibem e distribuem tais imagens, mas é muito mais a nós mesmos, cidadãos, já que sabemos que no ramo televisivo, se algo não tem audiência, não há busca. Talvez nossa sociedade diante de tantas regras e ditames precise extravasar de alguma forma, mas não cometendo nada, vendo, afinal nós não estamos no filme Uma Noite do Crime (2013). Mas por quê? Será que nós todos não somos abutres (eu particularmente, gostei bastante do título em português do filme), vigilantes vorazes por novas sanguinolências, novos crimes? A frase final de Lou é daquelas frases que findam e resumem todo o filme de uma forma magnífica: "E lembrem-se, eu nunca pedirei a vocês algo que eu mesmo nunca faria". A interpretação mais rasa é dirigida aos novos estagiários, e realmente sabemos que Lou poderá pedir qualquer coisa para eles, pois ele mesmo não tem limites. No entanto, seguindo nesta ideia de que se nós, telespectadores, não cultivássemos tais notícias, elas de fato não surgiriam, a frase recai de uma forma muito mais ampla: considerando que esse 'eu mesmo' sejam os telespectadores, supomos que o 'vocês' se refere às pessoas que produzem tal material, como se dialogasse com essa face animal dentro de todos nós. Em suma, o que eu quero dizer é o seguinte: Se nós não procurássemos, não existiriam. E assim acaba o filme, mostrando cenas da mesma cidade, terminando na imagem da Lua (a mesma Lua do começo do filme. Não temos como fugir dela todos os dias, assim como não conseguimos fugir de nós mesmos - e das outras pessoas, desgostando delas ou não -), a maior vigilante das noites.
Link da foto: https://farias.wordpress.com/2007/03/18/foto-de-kevin-carter-em-1993/
SPOILER DETECTED!!!! (Tenha paciência, eu prometo que o texto estará bem legal!!)
Existem filmes que nos deixam extasiados e outros que nos fazem perceber o quão foda a sétima arte é: Her (2013) -vou escrever Her, porque Ela talvez se confunda com quando eu for escrever sobre as personagens- é um destes.
Juntamente com Os Suspeitos (2013), Her se encontra naquela categoria de filmes maravilhosos que são totalmente esnobados pela Academia. Os Suspeitos foi indicado em melhor fotografia, e foi totalmente descartado por Gravidade (2013) - não que eu ache que Gravidade não merecesse também, mas a fotografia de Os Suspeitos dialogava a todo momento com a tensão e ação do filme. Her ainda conseguiu alavancar uma premiação para melhor roteiro original, mas sem dúvidas, poderia ter ido muito além, conquistando prêmios nas categorias de Mixagem de Som, Melhor Trilha Sonora, Melhor Música Original (o que me deixa revoltado nesta categoria é quando a Academia indica para este prêmio grandes artistas do cenário musical com o único intuito de criar-se mais "luxo" à cerimônia. A categoria que deveria premiar a melhor música original para o filme, ou seja, o sentimento, a cadência, a melodia da música tem que fazer sentido no filme, acaba escolhendo os concorrentes pelo nome do candidato, e é por isso que acho muito justo 'Let It Go', de Frozen (2013) ter ganho no lugar de 'Happy', de Meu Malvado Favorito (2013) ou 'Ordinary Love', de Mandela (2013). As músicas são divertidas e boas, mas nenhuma dessas outras duas reflete o estado de espírito tão bem quanto 'Let It Go' faz em Frozen. Da mesma forma, 'The Moon Song' é para Her o reflexo de tudo o que aconteceu e acontecerá no filme: começando pela melodia um tanto melancólica que reflete o estado de espírito de Theodore (Joaquin Phoenix, numa maravilhosa atuação), como muito mais pela letra, já que vemos duas personagens distantes entre si, uma na Lua, e outro no que imaginamos ser o planeta Terra. A distância não é a barreira que impede o conforto e confiança que um tem no outro, mas é justamente a mesma que reforça tais vínculos. Trazendo para o filme, Theo está muito distante de Sam (Scarlett Johansson, no que sem dúvidas é uma de suas melhores interpretações da carreira, sem ao menos ter seu corpo nela), e mesmo de Catherine (Rooney Mara), mas os dois se espelham no outro para crescerem mais fortes e unidos), Melhor Atriz (Scarlett faz um trabalho tão primoroso que parece que estamos ao lado dela, mesmo não estando. Sua inflexão, dicção e principalmente pausas, fazem com que sua personagem seja muito mais rica e real - essa será uma palavra muito importante para nossa análise), e por fim, Melhor Ator (Joaquin Phoenix contracena basicamente em todo o filme sozinho, e a nós isso nunca parece estranho. As emoções e trejeitos dele são tão convincentes que a ausência de um corpo físico na cena é totalmente despercebida). Vamos ver se neste próximo ano, o Oscar consegue acertar melhor em suas premiações...
Dito isso, podemos de fato começar a analisar o filme. A complexidade do filme é gigantesca, começar por um ponto é quase que impossível já que os panoramas são dos mais diversos. Decidi então seguir a linearidade do filme. Começamos o filme com uma carta de amor/companheirismo muito tocante, e quando nos damos conta de que a pessoa que está escrevendo isso não se trata de nenhuma das duas pessoas da relação temos o primeiro choque. A forma como o plano-sequência a seguir é composto ajuda a enfatizar isso ainda mais, já que vamos seguindo todos os escritórios em que pessoas que assim como Theo, vivem de escrever para os outros. Com o decorrer do filme, vamos tendo contato com várias outras tecnologias que não são palpáveis ao nosso mundo atual (o controle que as pessoas tem de sua vida com ajuda da tecnologia, a criação da OS1, a moda e cores que lembravam algo mais antigo - talvez pelos anos 70 -, ou seja, tendo um caráter mais retrô, já que falamos de um futuro), e é este primeiro choque que vai sendo quebrado com o tempo, já que mesmo futurista, o ambiente se assemelhe bastante com o presente; não pelas suas tecnologias, mas sim pelas pessoas deste mundo. O interessante é notar que esta interação de Theo com o mundo (através de seu trabalho) é algo artificial, assim como a relação que ele viverá com Sam futuramente, e que nem por isso seja menos real, já que os sentimentos exprimidos por ele para terceiros seja tão amoroso e solidário como a de uma relação amorosa. Este embate entre humanização e programação permeará todo o filme, já que logo quando somos introduzidos a Sam nos vem a pergunta: será que Sam algum dia conseguirá se assemelhar a Theo, em maior instância, aos humanos? Se considerarmos que ela foi programada, e que portanto seja uma coisa artificial, o ser dela o torna diferente de nós humanos, impedindo que ela se torne humana assim como nós. No entanto, se considerarmos que Sam sente assim como Theo e todos nós, e que vai evoluindo com o tempo através destas sensações e experiências, podemos considerar que talvez algum dia ela realmente consiga alcançar o patamar de um humano. A questão se refere então a classificar um humano através da capacidade de ser ou sentir, e que dessa forma, considerarmos Sam como um humano assim como nós ou não. Eu não sei a resposta, nem sei qual está mais certo que o outro, mas o importante é a criação desta reflexão, algo que o filme também não tenta responder e o que para mim deixa a obra mais bela. Esta mesma reflexão acerca da humanização das personagens se refere também aos próprios humanos, já que em uma cena que Theo tem uma relação sexual via voz pela internet, é questionado a frieza destes mesmos. A relação é puramente carnal, mas a despedida é tão fria que nos parece que toda esta humanização inerente dos humanos possa, na verdade, não ser tão passional, característica que nos diferenciaria das máquinas. Nesta mesma cena, temos um outro questionamento muito importante acerca da idealização. Enquanto Theo realiza o ato sexual, a tela é constantemente alternada para a imagem da grávida nua que Theo tinha acabado de ver no metrô. Expandindo para a relação entre Theo e Catherine, vemos que é justamente isso que acontece: Theo idealiza a figura de Catherine, o que sabemos dela a maior da parte do filme vem de impressões dele. Ele parece sempre se culpar pela separação, trazendo uma figura fofa e meiga de Cath (como na cena da conchinha), filtrando as emoções que ele quer ter dela. Quando então somos contrastados com a real figura dela, vemos que a garota é na verdade uma figura muito mais analítica e realista que ele fez parecer. Resumindo, quando revivemos algo com qualquer pessoa, seja alguém amado, um amigo, criamos uma ilusão da pessoa, assim como Theo faz da mulher com quem transa virtualmente, podendo muitas vezes não se assemelhar com o que seja na realidade. Essa ideia de idealização será forte o filme inteiro, e são nestas imagens que vemos que Theo é uma pessoa bem passional.
Conhecemos enfim a OS1. As perguntas que o programador padrão faz a Theo para a criação de Sam podem parecer muito abruptas e secas, já que ele corta constantemente as falas de Theo, mas o mais importante a se notar não são as perguntas em si, ou seja, o conteúdo delas, mas sim, a forma delas, e como elas são respondidas. Sendo assim, o importante na criação de Sam não é propriamente o assunto, mas o jeito como eles serão conversados. Nestas breves perguntas que o programador faz a Theo, percebemos que ele é uma pessoa bem comunicativa, que precisa expressar muitas palavras para expor o que quer, e é justamente isso que veremos em Sam, já que veremos uma figura tão sensível e comunicativa como ele é. Um detalhe interessante é se assimilar a figura do programa na hora da criação de Sam com um DNA ou um espermatozoide, como se dialogasse com a criação da vida. Como disse no parágrafo anterior, sabemos que Cath é uma figura idealizada na mente de Theo e que grande parte das informações dela virão dele, mas o interessante é notar que temos imagens e breves falas que dissonarão do que Theo fala dela. Após a separação, Theo vive numa casa enorme sozinho, jogando videogames todo o dia, mas que se sobressai pela sua bagunça, enquanto sabemos que Cath viaja muito e está escrevendo um novo livro. Aparentemente, percebemos que Cath soube lidar melhor após a separação do que ele mesmo, mas o mais engraçado é perceber que esta ideia que dissona do que Theo diz dela também não se concretizará no encontro deles (esta é realmente uma cena muito importante para o filme, já que muitas ideias que temos das personagens serão totalmente quebradas), já que em vários momentos percebemos um certo desconforto de Cath ao rir de algo que Theo fala ou faz. A sensação que tive é que ambos, tanto Theo, quanto Cath, ainda sentem algo pelo outro, mas que já distantes do que eram, principalmente ela, já não conseguem mais perceber isso. Voltando então a relação de Theo com Sam, percebemos que a cada vez mais a situação vai florescendo de forma que Sam vai evoluindo juntamente com Theo. Theo de certa forma ainda desiludido com a antiga relação com Cath, não sabe tratar muito bem Sam, fazendo algo que ele diz ter sido o motivo de sua separação, se afastar porque aparentemente a companheira não o satisfazia, nessa lógica individualista que será muito forte no filme já que basicamente todas as personagens do filme, mesmo imersos em tecnologia, não sabem se relacionar fisicamente com as demais, estando sempre distantes de todos e tudo, numa ideia bem Taxi Driver (1976) de ser. Essa ideia individualista de não conseguir suprir as suas necessidades estará bem forte na tentantiva de relação de Theo com a mulher inteligente e bonita (Olivia Wilde). Theo quer se satisfazer, como ele diz mais para a frente para Cath, "Estar com alguém realmente ME faz bem", procurando esta garota só para desencargo carnal. No entanto, ela não quer simplesmente isso, e a falta de comunicação de Theo nessa hora põe tudo em cheque, denotando esse caráter individualista da sociedade que aproxima bastante esse mundo futurista do nosso atual. Um detalhe sutil que acrescenta ainda mais ao filme é o fato de Theodore ser chamado a maior parte do filme de Theo (Teo=Deus), remetendo a algo como controle, posse, atitudes que ele sempre quer o outro tenha para com ele (Teo também funciona na hora da criação de Sam, que foi criada a sua imagem e semelhança). De fato o título do filme também enfatiza ainda mais essa característica de posse do mundo atual: Her, que diferentemente do título em português, refere-se a algo pertencente de outro algo, mais uma vez a ideia de posse. Em todas as camadas do filme teremos então a ideia de um mundo individualista, que amplificará ainda mais outra ideia: a solidão.
A ideia de solidão é bem forte, começando pelo fato do filme se situar numa cidade grande, altamente tecnológica e moderna em que as relações ao invés de se estreitarem acabam por se dificultarem, algo que muito bem trabalhado no filme argentino, Medianeras: Na Era do Amor Virtual (2011). Os aspectos imagéticos da cidade ajudam a ressaltar ainda mais essa solidão, em que as pessoas sempre vestidas com roupas de cores bem fortes contrastam frequentemente com as cores chapadas da cidade, com seus gigantescos arranha-céus, e que nem por conta disso, são tão felizes assim. Em outro momento do filme quando Theo senta na frente de um painel com uma coruja que está prestes a vir sobre ele, as cores e luzes da cidade são bem fortes, mas nem por conta disso a cena é mais feliz, pelo contrário, Theo está mais triste ainda. As luzes são tão fortes que parecem nos cegar, mostrando uma certa desmesura. Quanto a forma desses prédios que são sempre grandes, principalmente no início do filme, parece que enaltece ainda mais a insignificância e a solidão de Theo. Estes detalhes estilísticos favorecem ainda mais a imersão no filme, deixando-o mais sensível. Continuando nos aspectos técnicos, temos uma outra cena muito bem composta quando Theo percebe que Sam está se afastando dele: Theo está dentro da cabana e acabou de colocar o bule para esquentar. A câmera vai então se aproximando de Theo, tremendo (repare que em quase nenhuma cena do filme vemos a câmera tremer. Quando vemos nesta cena, o impacto é muito grande, pois percebemos que algo está errado). O bule também começa a chiar com um ruído bem irritante. Theo vai se aproximando cada vez mais do bule como se tivesse ausente a conversa que Sam acabou de ter com o filósofo (algo parecido com a cena da xícara de café de Taxi Driver quando Travis Bickle não prestando atenção no que seus colegas dizem, vai olhando cada vez mais perto da xícara, como se estivesse ausente a cena). Logo após isso, somos cortados para a imagem dele bem pequena no gigantesco tamanho da árvore (o que só veio a acontecer muito tempo atrás, no começo do filme, quando Theo se minimizava diante dos prédios. Esta cena parece evocar novamente a pequenitude de Theo ao ver uma nova relação ruir). A cena dialoga esteticamente com o que está acontecendo sem utilizar uma única palavra, e isso é lindo. O filme inteiro parece mostrar que Theo não está preparado para tentar novas experiências, que ele não sabe lidar muito bem com as outras pessoas, por não conseguir entendê-las, ou melhor, parece mostrar que a sociedade não consegue se relacionar entre ela, denotando este caráter individualista e solitário mais uma vez. A questão é: será que precisamos estar preparados para algo novo, ou as coisas simplesmente acontecem? O fato é que o filme acaba com todos os sistemas operacionais sumindo, talvez pelos programadores perceberem que o efeito desses OS na vida das pessoas foi desastroso, ou que na verdade, o papel destes OS era o de fazer as pessoas questionarem sobre sua essência e relações, em ambos os casos, levando-nos a acreditar que os OS não atingirão nunca o estágio de humanos, já que no primeiro caso, foram controlados pelos seus programadores, e no segundo, cumpriram seu propósito inicial. Mas também podemos interpretar que os OS acabaram criando uma consciência tão superior que os humanos não conseguem mais acompanhá-los, estando assim a "milhões de milhas de distância" (The Moon Song), e que os humanos não estão preparados (precisamos estar?) para tal grau de relação, levando ao fato de podermos classificá-los como humanos. Uma teoria interessante é acreditar que os OS viviam em nada mais, nada menos, que uma Matrix, já que eles se comunicam num mundo falso (o mundo dos humanos), mas que é mais agradável que seu próprio mundo, mesmo que aquele possua algumas imperfeições. No entanto, a evolução dos OS é tão grande e rápida que chegou uma hora que as imperfeições do mundo dos humanos não compensa ao que está fora de sua Matrix, escolhendo assim transcender. A teoria é muito brisada, mas a ideia central para quem ainda não entendeu é: os OS evoluem e aprendem mais rápido que os humanos, eles então precisaram transcender para manter esta evolução, o que talvez algum dia os humanos também precisem fazer. Esta teoria é evolucionista, mas mais do que isso, tira um pouco o caráter pessimista e distópico do filme para o de um futuro progressista, mesmo que até o momento do filme, nós ainda não tenhamos atingido.
Enfim, chegamos ao fim do filme, com Theo indo junto com Amy (Amy Adams, que teve um papel muito melhor do que na do filme (Trapaça, 2013) que lhe foi conferida a indicação ao Oscar. Nem comentei muito sobre as personagens secundárias, como Amy ou Paul (Starlord, quer dizer, Chris Pratt), mas o interessante é reparar que os dois veem o mundo de uma forma mais positiva do que Theo. - Paul por estar bem feliz com sua namorada, e Amy quando diz que a vida é passageira e quer se afundar em alegria-, que até pareçam contrastar um pouco com a figura de Theo, mas que de fato, estão imersos nessa mesma sociedade que o filme aborda) olhar para a cidade, que assim como eles, possuem muitas desavenças e desilusões. No entanto, é passado toda essa experiência que Theo e Amy, agora indivíduos mais experientes, verão o mundo um pouco diferente (quando digo diferente, não quero dizer que agora eles estão totalmente diferentes do que eram antes, quero dizer que seguindo a teoria evolucionista ou não, eles passaram por experiências que o desenvolveram de alguma forma, tanto que Theo de fato se redimi a Cath, e agradece a formação e desenvolvimento que ele teve junto com ele, assim como ele teve com Sam), e de fato o detalhe técnico é que o fundo parece estar mais rápido mesmo, as luzes e os carros na avenida em velocidade mais acelerada, como se dialogasse com esta forma diferente que eles estão vendo o mundo e as relações agora. Um último detalhe está no último som do filme. Quando Amy já havia encostado a cabeça no ombro de Theo, e a tela começa a escurecer para passarmos aos créditos, a última coisa que escutamos é um suspiro, e cara, isso é demais! Para entendermos melhor esse suspiro precisamos voltar na discussão que Theo com Sam, em que ele fala que esta não precisava respirar porque ela não era humana. Considerando que este último suspiro venha dela, podemos interpretar que a teoria da transcendência de fato finde o fato de ela ter se tornado humana. Por outro lado, esse suspiro pode ter sido redirecionado a Theo, sendo assim, é como se esse detalhe dissesse que após toda esta epopeia que acompanhamos, Theo tenha se tornado mais humano, como se cada novo passo, cada nova experiência fosse se tornar mais humano, o que remete aquele questionamento que eu havia feito mais acima (se nós somos humanos também?). E de fato, o que fazemos todo dia, é respirar. A cada novo segundo de suspiro, vivemos mais, e se vivemos mais, temos mais experiências. E não são as experiências que nos tornam mais humanos?
Obs.: a última frase da carta de Theo para Cath é "We will be friends to the end", que é a mesma frase que ele fala na primeira carta do filme, como se mostrasse todo esse processo por qual ele passou, como se também denotasse que isso não é exclusivo a ele, mas sim a toda sociedade.
Confesso que quando anunciaram que o filme seria dividido em três partes, comecei a olhar com olho torto para a série que viria. No entanto, os dois primeiros filmes justificaram minimamente a separação, já que adicionou detalhes (embora muitas vezes desnecessários, como algumas cenas envolvendo Galadriel (Cate Blanchett), Saruman (Christopher Lee) e outros que complementavam quase em nada para o desenrolar do Hobbit) no mínimo, interessantes, além de desenvolver a narração mesclando cenas de ação empolgantes, como a luta em que os anões fogem pelo riacho dos elfos, e posteriormente dos orcs com a estrutura narrativa do livro. Os dois filmes se sustentavam ligeiramente, muito por conta dos finais que não finalizavam bem a trama que se seguira até então, como por exemplo a do segundo filme em que o final em plano aberto do pandemônio que a cidade viria a se tornar mais me enfureceu, do que me fez ficar ansioso. Como disse, entre detalhes e desenvolvimentos, os dois filmes da série Hobbit (2012-2014) conseguiam se sustentar, até que enfim, chegamos neste terceiro filme.
Já digo logo de antemão que se o filme não tivesse um grande orçamento como este teve, as cenas de ação seriam horríveis, e o filme não se salvaria quase que por nada. Não sei o que os produtores tinham na cabeça quando falaram: "Vamos dividir essa série em três partes!". Quer dizer, na verdade sei, dinheiro. Seguindo a história até onde vimos nos outros dois filmes, e os comparando com o que acontece no livro, sabíamos que esse final reservava o ataque de Smaug (Benedict Cumberbatch) à Cidade do Lago (que mais uma vez enfatizo, podia muito bem ter terminado o segundo filme, ao invés de ter sido implantada neste terceiro) e a batalha pela montanha que viria a se tornar a batalha entre as tropas de orcs contra o resto. Considerando ainda que Bilbo (Martin Freeman) é nocauteado da batalha logo no início, e visualizando que conta toda a história seja ele mesmo, sabemos que a batalha é mais curta do que se parece, já que no final, Bilbo verá somente os resultados de todo o conflito. Eis que então, temos uma primeira cena de 10 minutos do ataque de Smaug maravilhosamente bem apresentada (além de ter sido muito bem articulada na tecnologia 3D. Comentarei mais à frente um pouco mais da tecnologia 3D aplicada nesse filme, que por sinal me agradou bastante), e logo após isso nos sobra "A Batalha dos Cinco Exércitos", por 130 minutos!! Não vou dizer que as cenas não são divertidas, elas são, mas fora isso, não sobra nada. Mentira! Sobra Legolas (Orlando Bloom), desculpe, Chuck Norris, pulando sobre pedras como se fosse o Mario, e destruindo literalmente tudo o que vem a sua frente, sem dessarrumar um fio de seu cabelo. (Confissão minha: eu não sei se essa cena era para ser animal, mas eu tendo rindo histericamente no meu lugar, e apontando para tela e falando: "Mas que que tá acontecendo aqui?"). Enfim, vamos analisar estruturalmente o que vemos no filme. Thorin (Richard Armitage) fica ensandecido com a quantidade de ouro que possui em suas mãos, mas torna-se voraz em encontrar a pedra Arken que está em posse de Bilbo. Bilbo, preocupado com a fera que Thorin pode vir a se tornar em posse da pedra, dá esta aos humanos e elfos a fim de findar um acordo que evite uma guerra entre os três povos. Enquanto isso, as tropas de orcs se preparam para atacar a todos a fim de tomar a montanha para si. Depois disso é só flecha para cá, e espada para lá vinda de várias personagens diferentes. A questão é que este um dos maiores problemas do filme: as personagens. Temos diversos personagens que entram na batalha, como se quisessem fazer uma ponta no filme e que depois simplesmente somem sem sabermos seu destino (Beorn (Mikael Persbrandt) aparece destruidor junto com as águias em sua forma de urso, e simplesmente desaparece. Os humanos são meros coadjuvantes nesta guerra: depois de derrotar Smaug, Bard (Luke Evans) pouco aparece, quanto mais os humanos em geral). Tentando alavancar várias personagens, o filme acaba por não conseguir desenvolvê-los bem, criando assim várias artificialidades (como um Bard que depois de um tempo nem sabe mais por o que luta. Se é pelo ouro, se é pelos filhos, se é pela segurança do povo), enlaces de roteiro mal finalizados (como um mero coadjuvante como Alfrid (Ryan Gage), que tem destaque maior que personagens como Bilbo ou Gandalf (Ian McKellen) e que some do mapa da mesma forma que entrou, sem mais explicações. Sem contar que Bard não tomar nenhuma postura em relação a ele diante das milhares de vezes que ele mostra insubordinação seja mais um artifício para mantê-lo na trama) e personagens principais parecendo mais coadjuvantes (Bilbo é uma sombra de todo o processo que Thorin está passando). Por fatos como estes, o filme acaba se tornando uma continuação desnecessária para o enredo, contendo sim muitas cenas divertidas, mas que quase não complementam em nada à obra de Hobbit. Ressalto mais uma vez que toda esta crítica não faria sentido se o filme seguisse o fato de Bilbo ter sido nocauteado logo no começo da batalha, mas se isso fosse seguido não teríamos este (desnecessário) terceiro filme.
Quanto ao 3D, sinto que tive uma das melhores experiências de tal tecnologia (não fui ver outros filmes que muitos disseram terem sido bem construídos para o 3D, como Gravidade (2013) e O Grande Gatsby (2013)), principalmente no início e no final do filme, com cenas em que realmente parecemos estar dentro da cidade atacada pelo dragão. A profundidade é tão bem trabalhada que o fundo proporcionado pela tecnologia que parece ser tão distante, se mostra curto à velocidade de Smaug. Em outra cena aérea em que temos um plano aberto que acompanha o exército de orcs, passamos bem perto das lanças destes, e logo após começamos a subir. A profundidade é tão bem construída que de fato esta simples passagem se mostra algo bem mais rasante do que seria bidimensionalmente. O 3D não funciona simplesmente para jogar objetos na nossa cara, embora também aconteça (como na cena em que Bard observa seu inimigo com a espada apontada para a tela, ou quando o mesmo Bard sae de trás de Alfrid e acerta uma flecha/espada (?) no meio da cabeça de um orc) e seja também muito divertido. A diferença é que nesse filme, o 3D é utilizado para enfatizar o efeito de profundidade e a sensação causada em nós, o que alavanca ainda mais os efeitos do filme.
O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos possui cenas de ação de tirar o fôlego, mas após vermos essa mesma tensão por quase 3hrs de filme, vemos que não sobra nada mais do que isso em outros pontos de análise. A série Hobbit podia muito bem ter sido feita em dois filmes que soubessem balancear a ação e o desenvolvimento narrativo e de personagens, sem esquecer dos detalhes adicionais que enriqueceriam ainda mais a obra de Tolkien, mas as vezes o dinheiro fala mais alto.
Diante da enorme extensão que casos como os de Eric Garner e Michael Brown acabaram tomando nestes últimos meses, Fruitvale Station (2013) acaba se tornando um filme essencial àqueles que procuram entender um pouco mais sobre o assunto. A discussão criada a partir da execução em vias públicas destes dois homens negros cerceia antigos preconceitos arraigados historicamente, pondo à prova também, a questão do abuso de poder nas mãos da Polícia. A escravidão foi abolida nos EUA em 1863, patamar somente atingido pelo Brasil 25 anos depois, em 1888. No entanto, atualmente ainda se vê resquícios dessa sombra que assolou a todo o mundo. Muitas pessoas dirão que os direitos dos negros são muito mais fortes do que antes foram, e que qualquer luta por mais direitos hoje seja injustificável, já que a escravidão já fora abolida há mais de 120 anos. A questão é que os direitos dos negros são de fato muito maiores do que antigamente, mas estão longe de serem iguais aos dos brancos, legitimando sim, a luta por mais direitos. Se isso não é suficiente, saiba que os negros têm muito menos empregos que os brancos, salários menores, além de não possuírem uma grande expressividade em cargos mais importantes de empresas (http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/11/03/negros-ainda-sao-invisiveis-em-cargos-de-comando-em-empresas.htm), isso falando somente dos aspectos de oportunidades de emprego. Quando as pessoas dizem que não se pode simplesmente revistar um negro porque ele parece suspeito, e que se algum policial fizer isso estará cometendo um ato de racismo, eu digo que não concordo, pelo simples fato de que qualquer cidadão tem o dever de ser avaliado pelos órgãos preventivos, seja branco ou seja negro, já que os policiais não tem como suporem com plena certeza que é meliante e quem não é. O problema está quando esta avaliação se dá em muito maior proporção ao contingente negro em relação ao branco. Se todos somos iguais independente de sua coloração, e mais, se todos vivemos diante das mesmas leis, o mais justo seria que esta suspeita recaísse dos dois lados igualitariamente. Esta seleção proporcional pode ser considerada um racismo, não a simples revista. Outra coisa que queria discutir recai sobre o poder que alguns policiais estão querendo mostrar ter em suas mãos. A Polícia é o órgão que detém o dever de manter a integridade dos cidadãos, incluindo ele mesmo. Quando vemos o caso de Oscar Grant por exemplo, ficamos revoltados, pois o uso da força (repare que disse força, não violência) não se dá para manter a ordem, mas que pelo contrário, incita muito mais desordem ainda. Em primeira instância, policiais não são orientados a utilizar da força para manter a ordem (que é a segunda instância quebrada no caso de Oscar Grant, já que a primeira se dá pelo fato dos brancos envolvidos na briga não serem nem capturados e intimados como os negros), mas caso o sujeito venha a ferir a sua própria integridade, a força (não violência!) é necessária para contenção, e só para isso. Pertencer à Polícia significa ter um trabalho, dessa forma, argumentos como "Confundi com a arma de choque" ou "Estava muito exaltado e tenso na hora do infortúnio" se assemelham a um médico dizer que "Esqueceu como se faz a cirurgia" ou para um advogado clamar que "esqueceu as leis". Concordo que todos nós somos humanos, mas todas as profissões demandam algumas dificuldades, e os policiais são treinados para agirem sob pressão, e em situações anormais. Utilizar-se de argumentos como esses é nada mais, nada menos que justificar que não fora bem treinado, e que portanto, não deva executar sua função. Bom, já dei um parecer geral sobre a situação do filme, vamos agora falar do filme em si.
Li alguns comentários que disseram que o filme é maniqueísta, que os negros são retratados como os coitados, que são os bonzinhos, e que os policiais (brancos) são os malvados, os que não sabem da moralidade humana. Para essas pessoas, pergunto: o filme ter mostrado um Oscar Grant (com uma maravilhosa interpretação de Michael B. Jordan) preso, que vende drogas, que se utiliza da violência com o dono do estabelecimento que trabalhava, ao segurar bruscamente o braço do homem para implorar pelo emprego, enquanto este se afastava (que será questionada posteriormente nos atos dos policiais), ao mostrar amigos que embora sofram preconceitos ao fim do filme, incitam outros ao decorrer dele, como o machismo (ao chegar achando que pode fazer qualquer coisa com a mulher do trem só porque é homem), e a homofobia (já que menospreza e ridiculariza a figura das duas mulheres lésbicas, tirando até fotos delas, como se elas fossem um espetáculo) não é justificativa suficiente para mostrar que esses negros não são tão bonzinhos assim? Ok, você vai falar que a cena com o cachorro atropelado tende a ilustrar uma figura bem angelical a Oscar Grant, mas por favor, vamos balancear as coisas. A quantidade de situações que descrevi acima são muito mais significantes que a cena do cachorro. Falando no cachorro, eu acho que esta cena dialoga muito mais metafórica do que narrativamente, já que Oscar Grant estará no fim do filme tão impotente e indefeso como o cachorro que fora atropelado aí (a forma como o filme trabalha isso, com os quadros bem iluminados, o que para alguns deva parecer este traço de angelicalidade, para mim mostra bem mais um ambiente onírico que ecoará ao final do filme). Completando, os brancos também não são representados sempre pejorativamente, ou se esqueceram que a namorada de um dos amigos de Oscar é branca, que a moça (Ahna O'Reilly) com quem Oscar fala no começo do filme e que por fim, gravará todos os acontecimentos é também branca, e que milhares de coadjuvantes do filme também sejam brancos e que sejam postos mais como intensificação da festa do que de repressão dela (branco que inicia a contagem regressiva com seu relógio ou o branco que conversa com Oscar enquanto espera as mulheres saírem do banheiro). Para mim, está mais do que claro que este maniqueísmo não existe! Vencido isso, queria ressaltar alguns detalhes que o filme nos dá que enfatizam ainda mais este distanciamento dos negros da sociedade. Seja pelo cartão de aniversário, que contém unicamente figuras brancas, seja pelo esporte, em que vemos um time só de negros e outro só de brancos, seja pela cena em que Tatiana (Ariana Neal) avista pela janela rojões, que de relance parecem mais pistolas nas mãos dos brancos na rua, o filme vai criando todo uma atmosfera de segregação entre os dois grupos, que é ressaltado também na briga do metrô ao fim do filme. Mas é no entanto, a frase que Tatiana responde ao pai, quando este diz que ela estará salva com os primos, que mais reverbera em todo o filme: "E você, papai?" De fato, esta pergunta não se refere unicamente a Oscar, mas a toda comunidade negra, já que mesmo depois dos mais de 140 anos (na época em que Oscar Grant fora executado) da abolição da escravidão ainda temos indivíduos tão preconceituosos quanto os que eram há tanto tempo atrás. Essa frase ecoa como uma maré de desconfiança a todos os indivíduos do filme, e vindo em si de uma criança, exacerba ainda mais esta realidade, já que mesmo aos olhos de uma criança, o desdém já é reconhecido. Em contrapartida, uma cena que tenta mostrar muito bem a união dos dois grupos é justamente a cena em que as mulheres vão ao banheiro, pois além de mostrar que brancos e negros utilizam as mesmas áreas (o banheiro, no caso) ainda aproxima o homem, que hoje é um executivo, mas que precisou roubar para dar uma aliança à esposa, de Oscar que também cometia atos ilícitos (como a venda de drogas não-oficialmente). De fato, as imagens são muito bem traçadas em todo o filme, mas é principalmente a cena na estação de metrô que possui uma beleza estética enorme.
Enquanto os policiais estão chegando, e enfim, eles conseguem reunir todos os (negros) envolvidos, ouvimos um som pulsante, como se fosse a batida de um coração. Só essa pequena escolha, faz com que nosso palpitação fique tão acelerada quanto a do som do filme. Nesse meio tempo, uma frase soa bem forte: "bitch-ass-nigga". Oscar é o primeiro que solta essa frase, mas é quando o policial rebate com a mesma que o clima fica mais tenso, já que o uso de "nigga" seja entendido de um modo preconceituoso vindo de um branco para um negro. Até que a palpitação vai com o tempo diminuindo seu volume, mas em contrapartida, vai se acelerando, até que enfim, elas param, ao mesmo momento que Oscar toma o tiro, como se o coração dele também parasse. Com isso, podemos supor que a trilha sonora quisesse representar a batida do coração de Oscar. Quando Oscar é enfim virado de barriga para cima, temos uma câmera torta, como se mostrasse que tudo que Oscar vê agora está mais difuso. Coisa que fica até mais clara, quando a equipe médica traz a maca, enquanto a câmera está de ponta cabeça. A cena vai andando até que no final dela, vemos Sophina (Melonie Diaz) sozinha na imensidão da escuridão, assim como Oscar estava a poucos momentos atrás, sozinho (metaforicamente) no controle branco da situação. Esta cena é de uma sutileza visual muito boa, e faz com que entremos ainda mais na situação, como se estivéssemos naquele trem junto com as pessoas que estavam filmando. As escolhas sutis do filme, como já ressaltei mais acima são maravilhosas, a única coisa que não me atém muito é a câmera tremendo a todo momento (quando digo isso, não quero me referir às cenas de tensão, mas justamente em cenas em que estão todos sentados fazendo uma oração, ou quando Oscar está simplesmente andando na rua). Eu sei que isso pode dialogar com o clima de insegurança que Oscar se encontra a todo momento, assim como em filmes de Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012)), mas para meu gosto pessoal, gosto quando as cenas tremidas sejam usadas em partes específicas, de forma a enfatizar ainda mais a situação da cena, e não simplesmente em todo o filme (diretores como Stanley Kubrick e Billy Wilder devem se remoer nas covas ao verem filmes que tremem a todo momento). No entanto, isso não prejudica muito o andamento neste filme, já que o enredo e a crítica sejam bem sustentadas, coisa que eu não acho que aconteça em Guerra ao Terror, por exemplo. Temos várias imagens belíssimas, mas o enredo, e a mania dos americanos de quererem se mostrar como os salvadores de todo o canto do mundo me irritem mais ainda do que o treme-treme. Fruitvale Station é um filme muito bem realizado, e é sem dúvida muito instigante e perturbador, mas são em momentos como os que passamos atualmente, com Grants, Browns e Garners, que o filme se torna ainda mais incisivo do que já é.
É impossível ver este filme sem comparar com o filme Invocação do Mal (2013). Naquele filme, as personagens podiam não serem tão fortemente desenvolvidas, o que também acontece neste spin-off, mas pelo menos, as cenas de susto não eram compostas unicamente por efeitos sonoros que eram acrescidos ao máximo (como por exemplo na cena da brincadeira de 'hide and clap' em que a mãe corre assustada após ver duas mãos fantasmagóricas batendo palmas. Nesta cena, o suspense vai se desenvolvendo quase que sem trilha sonora até que ouvimos a voz começar a falar e enfim bater as palmas. Neste meio tempo, a trilha sonora quase está ausente, só aumentando após ouvirmos as mãos baterem, além dela nem ser tão alta no momento), fazendo com que nós tomemos mais susto da trilha sonora, do que da cena em si. Não digo que a trilha sonora não possa ser utilizada para nos dar susto, só quero deixar claro que ela é só mais um artifício para causar tal sensação, não o único. Além disso, a forma tão bem enquadrada que tínhamos no primeiro filme (como uma cena em que estamos num fim de um corredor, e vemos uma pessoa bem pequena no topo de uma escada) é quase esquecida, com algumas ocorrências no final do filme (a cena em que Mia (Annabelle Wallis) está presa dentro de casa), sendo substituída quase que a todo momento por uma câmera mais aberta, enquadrando a personagem num canto da tela e deixando um espaço amplo do outro lado, como que se esperássemos que algo viria por lá. Esta técnica está longe de ser ineficaz ou ruim, muito pelo contrário, me peguei nervoso toda vez que tínhamos uma câmera deste tipo com uma porta a ser aberta ou fechada, como se eu imaginasse que algo estaria atrás da porta - algo parecido neste jogo de portas é enquadrar a pessoa de perfil, com a porta atrás dela tampando grande parte da tela, e esperar o tempo suficiente para o telespectador imaginar que algo estará atrás dela depois de fechada, algo que é muito bem utilizado em O Chamado (2002) -. Eu citei esta outra forma de se criar suspense com o jogo de portas para justamente ilustrar um problema deste filme: Annabelle se utiliza da mesma composição de cena para criar suspense em tal ocasião. Como disse aí em cima, essa forma de deixar o quadro meio aberto é muito interessante quando não usada ao decorrer de todo o filme. Uma das magias do cinema de terror é a forma da criação do susto. Podemos ter milhares de maneiras de se criar uma mesma cena, e é essa versatilidade ao decorrer do filme nos faz o temer ainda mais, já que ao não se acostumar com uma forma de composição específica, nos espantamos a qualquer suspiro que o filme nos mostra (o que para mim explica o fato de eu estar com o corpo tenso no começo do filme, mas não do meio para o final); essa versatilidade é algo bem marcante em Invocação do Mal, o que o enriquece bastante.
Outra coisa que me irritou bastante foi a forma como o filme introduziu certos personagens. É certo que num filme de terror, qualquer pessoa é suspeita, mas para mim a vendedora de livros (Alfre Woodard) me foi composta de uma forma tão horrível, que até no momento em que já deveria estar claro para que lado ela jogava, eu ainda me questionava sobre sua índole. Essa mulher entra na história de um jeito tão estranho, que quando me dei conta que estavam introduzindo esta nova personagem, a cena dela já havia passado (para mim ela era só um atrativo para abaixar a tensão do filme até o próximo estouro). Sem contar que para mim, o final é horrível. Ok, sabemos que ela tem um passado misterioso, sabemos que ela perdeu uma filha, mas não era ela mesma que a minutos atrás falava que as pessoas eram coagidas pelo demônio, que não se devia acreditar nele, que ele era esperto, e mais, que a mais minutos atrás, a mesma tinha dito que era velha e não se espantava por qualquer coisa. Por que raios ela simplesmente decide pular? Se foi pelo passado, não temos dicas suficientes para concordar com tal atitude. Se foi porque ela era enfim parte de tal seita, não dá para entender porque ela simplesmente não empurrou a outra, ou qualquer coisa do tipo. Se foi porque ela se achava velha o suficiente e não tinha mais visão do futuro, além de acrescentar que essa "era a missão dela na vida", preferindo se sacrificar a ver a outra família destruída, Mia não teve contato suficiente com ela para podermos afirmar que a família de fato tinha um vínculo forte, a ponto de ela se jogar no lugar de Mia. Em suma, o desenvolvimento é fraco, as personagens são fracas, o jogo de câmeras, que ressalto mais uma vez, era maravilhoso em a Invocação do Mal, são saturados demais e a trilha sonora nos assusta mais do que qualquer cena, sem contar que o final é horrível. A ideia da explicação da origem da boneca era algo realmente muito interessante, mas era melhor que a boneca tivesse ficado sentada em sua cadeirinha do que ter nos concebido este outro (horrível) filme.
Obs.: que mãe sã compra aquela boneca. Só de ver aquele ser na estante, eu passaria longe, que mal gosto, pelamor.
Passou-se quase 20 anos desde que o livro de Bram Stoker, Drácula, era lançado, e mesmo com esse tempo, parece que o universo vampiresco não saía da cabeça das pessoas (de fato, ele não sai até hoje, visto que temos filmes como Crepúsculo (2008) e o mais recente Drácula: A História Nunca Contada (2014)). O filme não é de vampiros, mas à minha cabeça, até pelo menos o 4º episódio, eu tinha a pura convicção de que a gangue "Os Vampiros" possuía poderes sobrenaturais. Não sei se mais alguém teve esta sensação, ou mesmo, se isto foi feito propositalmente, mas a mim, isso esteve bem claro. O ponto é que mesmo descobrindo que o filme não se trata necessariamente de vampiros, relacionar um grupo malvado ao nome de vampiros é com certeza, um reflexo da moralidade e medo que as pessoas tinham de tal grupo naquele contexto social, já que na época floresciam alguns grupos que assim como Os Vampiros, saqueavam e matavam a população em fruto de seu próprio sucesso.
É certo que a sedimentação do cinema que conhecemos hoje ainda não estava clara, mas o divertido é perceber como algumas técnicas já vinham se desenvolvendo: vemos por exemplo o "split-screen" na cena em que Guèrande (Édouard Mathé) conversa com Mazamette (Marcel Lévesque), o uso do espelho como ferramenta necessária para o enredo (na cena em que Guèrande descobre que a sua nova empregada o estava envenenando), a separação de dois cômodos diferentes por uma parede, mas que mesmo assim, conseguimos ver ambos por fora (cena em que Satanas (Louis Leubas) vê que o garoto (Bout de Zan) abre a porta para seu pai se esconder no baú), câmera sobre charretes em perseguições (técnica que já havia sido usada no filme de Edwin S. Porter, O Grande Roubo do Trem (1903), quando os foras-da-lei estão por cima do trem), esconderijos atrás da cortina, além de uma estrutura narrativa que será recorrente mais à frente na história do cinema, com um dos investigadores mais sério (Guèrande), enquanto o outro nos dá sempre motivos de gargalhadas; motivos esses que são exacerbados pelo simples toque estético que é do Mazamette olhar frequentemente para a câmera (cena que parece nos aproximar das personagens do filme, mesmo que com um certo estranhamento, vide Curtindo a Vida Adoidado (1986)), como se quisesse sempre afirmar que naquele momento ele realmente estava realizando alguma cena cômica. Mazamette é um personagem muito agradável nesse filme, pois ele é o alívio cômico, que sempre fará o clima se amenizar diante de uma cena mais angustiante, ele também será inúmeras vezes o salvador de Guèrande em situações que já não botávamos mais fé, ou o investigador pelo acaso, aquele que está no lugar certo, na hora certa. De fato, essa estrutura será utilizada milhares de vezes posteriormente por obras como a de O Gordo e o Magro, Tintim, A Pantera Cor de Rosa ou de investigações policiais com um caráter mais cômico. Outra personagem que trará sempre um grande vivacidade a seu papel é a de Irma Vep (Musidora), que sempre enigmática e perigosa, sempre causa uma maior tensão quando em sua presença. Juntos, Mazamette e Irma Vep constroem os dois lados da moralidade perfeitamente, fazendo com que nós certamente torçamos pelo lado de Mazamette. Uma última coisa que captei no filme foi de certa forma, uma crítica que o filme dá às instituições, coisa que na época foi chamado de falta de moralidade do filme. Assumindo a interpretação da forma como quiser, as cenas são claras: vemos religião, polícia (indivíduos da gangue vestidos de pessoas desses meios. No caso da polícia até algo mais claro, já que Mazamette é perdoado diversas vezes de crimes que teria cometido, como roubo dos papeis de um caso, ou após a agressão feita a um policial), ciência (em que Venenoso, o Terceiro Grande Vampiro (Moriss) utiliza-se dos conhecimentos científico para o mal) sendo subvertidos. Sem contar que os integrantes da gangue de Os Vampiros sejam contadores, promotores, dançarinos, cientistas, ou seja, quaisquer cidadãos. Tudo isso mostra que os vilões podem ser qualquer pessoa da nossa sociedade, remetendo aquela imagem do vampiro, o sedutor que está em nosso meio, o cara que pomos toda a fé de que seja o mais puro dos homens, mas que no fundo, possua uma alma bestial. Todo este cenário, se pondo na época do lançamento do filme, me faria ter medo o suficiente de todos ao meu redor. Talvez todo este retrato das instituições, e das próprias pessoas, já que todos nós temos segredos que gostaríamos que morressem conosco, justificassem o que os críticos chamaram de amoral na época, e que se não fosse graças aos surrealistas, que sustentaram a obra até décadas seguintes, não teria conseguido chegar a nós do século XXI de uma forma estupenda como é hoje.
Vemos então 6 histórias envolvendo vinganças. Enquanto temos algumas mais cômicas (Até que a Morte nos Separe / O Mais Forte), vemos outras mais dramáticas e profundas (As Ratas / A Proposta). De fato, todas são, a diferença é a abordagem em que cada uma é composta. A grande sacada de Relatos Selvagens (2014) é criar cenários cotidianos (briga de trânsito, traição no casamento), e a partir deles desenvolver toda uma narrativa surreal de vingança. Quando digo surreal, quero dizer, um tanto impensável. Por exemplo: nós podemos estar aterrados com a morte da mulher e filho, mas será que mataríamos a sangue frio o suposto assassino na frente de milhares de câmeras? Ou mesmo, começaríamos a transar no meio de uma cerimônia de casamento, obrigando a todos os convidados a irem embora? Eu não sei. Talvez algumas pessoas respondam que sim, mas sem dúvida, a dimensão que estas ações tomam são em geral bem exacerbadas. Quando comecei a ver o segmento "O Mais Forte", eu logo lembrei de um filme de Stanley Kubrick chamado Dr. Fantástico (1964). Neste filme, Kubrick nos insere personagens políticos totalmente insanos, realizando ações que não esperaríamos de pessoas de tal calão. Toda esta palhaçada em relação à gestão nos faz rir, e muito. Em Relatos Selvagens acontece a mesma coisa: neste segmento que citei que me fez lembrar bastante deste outro filme, a briga de trânsito toma tais proporções, que no final, a luta entre os dois, com o homem enforcado pelo cinto prestes a ser explodido junto com o carro, mas que num último momento de sanidade acaba conseguindo pegar na perna do combatente, que enfim, começa a tentar apagar a chama que acabou de colocar no tanque. E mais do que isso, a cena acaba com um sujeito sossegado indo em direção ao resgate antes requerido. A cena é cômica-trágica, não sabemos se ríamos, ou ficávamos pasmos. Será que uma briga de trânsito pode realmente levar um sujeito a fazer tudo isso? Para quem viu, À Prova de Morte (2007), do Tarantino, sabe que o que acontece em Relatos Selvagens poderia ter sido até mais sanguinolento. Sinceramente falando, eu acho que Damián Szifron conseguiu construir as cenas cômicas muito melhor do que as dramáticas. Enquanto temos uma cena magistral de abertura de filme, com um avião caindo no que supostamente seriam os pais de Pasternak (suposição já que o psicólogo diz que a culpa de Pasternak ter se tornado assim, foi unicamente dos seus pais), o segmento a seguir (As Ratas), tirando a atuação interessante da cozinheira (Rita Cortese) não ilustra nem uma tirada empolgante, quanto menos um raciocínio que existirá nos outros segmentos dramáticos. Os outros dois segmentos dramáticos são: Bombita e A Proposta. Este último nos traz uma reflexão interessante. Será que vale a pena angariar tanto dinheiro, para no final, acabar perdendo a própria vida? Todas as personagens do segmento querem extorquir o dinheiro do pai da vítima (Oscar Martínez), até que este explode e decide não querer pagar nada, nem mesmo salvar a pele do filho, na cena mais engraçada deste segmento. Nesta hora, o jogo vira, e são os outros que agora tentarão conseguir convencê-lo de pagar o mínimo para continuar o jogo. A ideia deste segmento é acabar ilustrando que as vezes as pessoas acabam discutindo muito mais sobre as formas de pagamento, remuneração do que realmente se importar com a vida do indivíduo. O que eu quero dizer, é que a discussão cai muito mais em como o dinheiro vai resolver o assunto, do que de fato ilustrar o que o filho acabou fazendo de errado. Esta mudança de eixo é interessantíssima já que realmente mostra a psiquê humana em certas situações. O segmento Bombita é para mim o melhor segmento dramático. É impossível não acabar se estressando junto com Simón (Ricardo Darín) diante de tudo que vai acontecendo a ele. O filme vai trabalhando este estouro de uma forma incrível, fazendo até parecer inicialmente que a vingança dele é pouca. Mas Ricardo Darín, sendo Ricardo Darín, vemos pequenas explosões no decorrer da história que são em si muito legais, como quando ele começa a quebrar o vidro com o extintor, ou quando ele começa a gritar com a recepcionista num salão largo sobre o fato de não acreditar que alguém comeria as 16:00. Essa explosão (literalmente) pode parecer pouca, mas com o seguimento, vemos que seu ato acaba alavancando milhares de outros problemas para a corporação, como protestos e suspeitas de corrupção. Quem nunca teve vontade de se rebelar contra a sociedade que atire uma pedra. Como disse, todas estas situações são um tanto irreais, mas geniais, pois realmente expressam o que muitas vezes queremos fazer a segundos, mas que a nossa moral / medo acaba nos impedindo. No entanto, nada é mais irreal que o último segmento.
Até que a Morte nos Separe é para mim o melhor segmento, o mais engraçado e o mais crítico; o final estupendo. Já no Realismo literário muito se discutia sobre a sociedade de aparências, e as ações que cada indivíduo fazia para se manter nela. Este segmento ilustra tudo isso criando situações mais surreais conforme a história anda. A noiva (Érica Rivas) descobre que seu marido (Diego Gentile) a traiu. Após isso, ela vai e acaba transando com o primeiro homem que a dá uma maior atenção. As discussões no meio das danças, o espelho, e finalmente, o sexo sobre a mesa do bolo, põe a mesa a teoria do absurdo ao máximo. A cena por si só é engraçada demais, mas por trás dela fica também a mensagem de que as vinganças nem sempre resolvem tudo (já que no fim deste segmento, que não por coincidência é o último do filme também, o casal acaba se conciliando). As pessoas se magoam, mas elas também se perdoam. As pessoas vivem numa sociedade de aparências, mas quando ela é posta à prova, e por fim, consegue ser superada, o vínculo entre os dois acaba sendo muito mais forte (para quem viu De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick, acho que captou). Damián Szifron ilustra de uma forma absurda milhares de formas de vingança, como se quisesse mostrar a nós: "Olha o motivo pelo qual nos digladiamos e nos queremos vingar.", e por trás, deixa uma mensagem de conciliação. Alguns podem dizer que no segmento Bombita, a vingança foi boa. De fato, ela foi, mas não para Simón, já que ele continuará na cadeia. O diretor então cria toda esta atmosfera onírica da nossa realidade, mas não deixando de lado o fato de estar representando nós mesmos na tela, e que como Dr. Fantástico, nos faz primeiramente rir com tal ridicularização, mas depois fazer temer a nós mesmos.
Obs.: vou colocar os segmentos em ordem de preferência pessoal: 1 - Até que a Morte nos Separe; 2 - Bombita; 3 - O Mais Forte; 4 - Pasternak; 5 - A Proposta; 6 - As Ratas;
Ouvimos uma trilha sonora ritmada, forte e imponente ao mesmo tempo que um táxi amarelo, quase tomando toda a tela, sai de uma névoa densa. A trilha vai aumentando, e o mistério fica no ar; esta é a sensação que teremos ao decorrer de todo o filme: a sensação de perigo, de não adequação ao meio, de pressão constante. Somos apresentados a um protagonista também misterioso, que poucas vezes nos oferece dicas sobre o que sente ou viveu num passado próximo. Uma das suposições muito justa a se fazer é de que Travis Bickle (Robert DeNiro) acabou de retornar a fatídica Guerra do Vietnã. Podemos tirar essa conclusão a partir de alguns detalhes que nos são apresentados na tela, como o fato de Travis dizer que foi dispensado em maio de 1973, mês em que muitos dos combatentes retornaram aos EUA, ou pela presença de uma cicatriz bem marcante em suas costas, o que especialistas disseram ser causada por tiros de metralhadora, ou ainda por saber manejar muito bem as armas que compra, conseguindo seguir em frente até mesmo quando é baleado, ou até pelo corte de cabelo ao final que é conhecido por ser utilizado por combatentes de um escalão mais alto, a fim de se diferenciarem da maioria. Supor que Travis tenha um passado de guerra pode ajudar a explicar o porquê de ele não conseguir interagir de uma maneira saudável com as pessoas ao redor, ou mesmo por ele sofrer de patologias como a insônia, já que muitos dos combatentes retornavam a seus lares sem prospecção de futuro, muitas vezes desolados e traumatizados, mas com certeza não podemos culpar os efeitos da guerra como únicos criadores de Travis Bickle, já que os seres humanos são bem complexos para acharmos resoluções pontuais (assim como não podemos apontar os videogames e os filmes violentos como impulsionadores de massacres. Essas pessoas já possuíam outros problemas antes de assistirem a quaisquer filmes). Este é um filme sobre solidão, um filme sobre tentativa de reconhecimento, um filme que poderia ser sobre qualquer um, já que todos nós já nos sentimos alguma vezes sós nesse mundo, a diferença é que cada um reage a esta solidão de uma forma. E repare nas palavras "cada um". Taxi Driver pode girar em torno da vida de um taxista, mas ele é muito mais do que isso, ele mostra retratos da vida de vários solitários (desde a prostituta infantil que acredita que ter fugido de casa e parado aonde está é melhor do que qualquer outro futuro até ao marido desiludido com sua mulher que o trai todo dia na casa de um negro). Todos nós somos obrigados a pôr nossas esperanças em um governante que muitas vezes além de não nos representar, simplesmente não resolve os nossos dilemas, justamente por eles serem os mais pessoais possíveis. Os EUA sempre foi muito deste jeito: lute pela nação, veja ela crescer pela união do povo, a meritocracia de cada um é ovacionada, mas ao mesmo tempo que criamos heróis individualistas, criamos monstros individualistas, que sendo individualistas, não sabem como agir ou entender o mundo social; Travis Bickle é um deles.
O vocabulário de Travis se refere a toda esta camada de que ele desgosta como a escória, a imundície, o lixo. Essa escória que ele espera que um dia seja lavada por uma grande chuva, uma chuva que pode vir politicamente ou a sua própria custa (essa chuva é simbolicamente a água do hidrante que passa sobre seu carro, como se mostrasse que desse momento adiante, Travis não aceitaria mais as coisas como eram). O mais interessante em toda esta lógica é que ele se esquece que ele mesmo pertence a esta escória a qual se refere, a diferença é que ele quer se pôr num patamar diferenciado do resto. O começo do filme pode parecer bem arrastado a alguns, mas de fato ele dialoga com o próprio estado de espírito de Travis. Como sabemos, ele sofre de insônia, nada mais justo que o filme seja alongado de forma que nós também sintamos essa lentidão da vida dele. Isso é até mais ilustrado em cenas como a do copo de efervescente, em que ele simplesmente ignora todo o ambiente em que está, e fixa os olhos no copo e nas bolhas que ele faz, ou na cena em que ele está dirigindo o táxi, enquanto vai passando por uma série de faróis que se intercalam com ele vendo o taxímetro crescer. Estas são cenas mais pontuais da lentidão da vida de Travis, mas de fato até o estouro dele no final, o filme, assim como a vida dele, é bem pacata e demorada. E é por conta desses fatores que disse: não conseguir estabelecer relações facilmente com a sociedade e estar numa velocidade de assimilação mais lenta e demorada que Travis demorará a estourar e realizar sua façanha.
Nas seguintes linhas queria tentar interpretar todas as mudanças e desenvolvimento de Travis a partir de um outro foco (imaginando que o trabalho casual já tenha sido feito em vários outros comentários): as cores. Taxi Driver tem um trabalho bem minucioso e interessante a respeito desse efeito estilístico, além de também dialogar com todo desenvolvimento de Travis. São duas - há uma terceira, mas ela é bem menos recorrente além de aparecer relacionada a outra personagem que não Travis -, as cores importantes nesse filme: o vermelho e o verde. Logo após vermos o táxi sair da névoa pela primeira vez, vemos os olhos de Travis olhando para as ruas e para as pessoas que andam nela, que estão cobertos por uma luz de coloração vermelha. Este é o nosso primeiro contato com esta cor. Vemos esta cor nas ruas, na entrada do cinema pornô, na lanchonete em que ele come com os amigos, em todo o lugar. O que mais está em todo lugar, segundo Travis? A escória. O vermelho dialoga com tudo o que Travis mais critica, e para justificar o que disse mais acima sobre Travis também pertencer a esta escória. Qual é a cor da roupa sob a jaqueta que ele sempre usa? Vermelha. Mas aí você provavelmente vai me falar que a cor da jaqueta dele é muito mais forte nestas cenas do que vermelho. Exatamente! E qual é a cor da jaqueta? Verde. Nas cenas iniciais, essa jaqueta parece esconder essa roupa vermelha dele. Pensando metaforicamente, o verde (que ainda não sabemos o que representa) encobre a escória que Travis possui, ou melhor dizendo, o verde encobre a escória que Travis não quer dizer que tem, já que ele se põe sempre superior a todas as pessoas do meio. O verde é então como se fosse um disfarce (metaforicamente) à escória que ele diz não pertencer, mas que no fundo, pertence. O trabalho estilístico mais difícil que foi achar o significado das cores já foi realizado, cabe agora analisar o resto das cenas e ver se essa nossa lógica faz sentido. É então introduzida a figura de Betsy (Cybill Shepherd), uma mulher que acima de qualquer coisa é a representação angelical e perfeita de tudo que Travis sempre quis ser, com o tempo que ele a conhece, ele percebe que ela é linda, intelectual e de atitude. Travis logo se apaixona por ela. Esta primeira vez em que vemos Betsy, ela se apresenta com um sobretudo branco (esta é a terceira cor), como se dialogasse com essa pureza que ela tem. Travis decide então se aproximar dela, e com que cor ele se apresenta pela primeira vez a ela? Vermelho. Para as pessoas do seu meio, Travis consegue fingir que não pertence a ele, mas para alguém de uma classe superior, Travis precisa de poucos minutos para ser desmascarado. O mais interessante desta cena é que a Betsy que antes víamos impecável está num vestido listrado branco e vermelho. Ao final da cena, percebemos que Betsy dá uma chance a Travis, talvez interessada numa pessoa que nunca havia visto igual. Betsy ainda tem o tom angelical, mas ela aceita adentrar nessa escória, sendo assim, se aproximando, mesmo que minimamente à mesma. Como disse um pouco antes, Betsy logo vai percebendo que Travis é uma pessoa bem diferente de tudo que já viu, mesmo que pertencendo a esta escória. Travis, por sua vez, tentará de tudo para que Betsy o ache o mais interessante possível. Ele está tentando fingir a ela também, e Betsy não cai, mas continua aceitando, fazendo com que de certa forma, ele consiga imprimir esse disfarce a ela (há um detalhe muito genial nesta conversa na lanchonete. Enquanto Travis vai conseguindo convencer Betsy de sair junto, e portanto, fazendo ela cair no disfarce dele, passa um ônibus atrás com várias azeitonas estampadas. E repare, essas azeitonas que são verdes, cobrem lá no meio o que seria a pimenta/tomate seco, dessa forma, vermelho. O ônibus fica vários segundos parado na frente dos dois, como se quisesse dizer que Betsy estava de fato caindo na de Travis. Alguns podem achar piração total. Pode até ter sido uma coincidência enorme, mas a partir do momento em que está na tela, qualquer suposição que seja válida o suficiente a partir de argumentos, é factível). Chegamos então a comédia que é o cinema pornô. Travis a leva ingenuamente para o local, achando que ela fosse a tal lugar da mesma forma que ele ia, e a cena é muito engraçada. Ao mesmo tempo que Travis parece achar a coisa banal, Betsy olha tão enojada. Eu pelo menos não sabia se olhava para Betsy inconformada, ou para Travis indiferente. Betsy está novamente naquele traje branco, como se dissesse ao final da cena que eles de fato não pertenciam ao mesmo meio. E logo após isso, a cena em que Travis conversa com Betsy pelo telefone finda de fato essa ideia: a câmera vai se deslocando de Travis até pararmos num corredor que ao fundo enquadra uma porta. Lá fora, temos o barulho do trânsito, o burburinho da noite, mas o que mais chama atenção é o filtro vermelho. Travis não pertence ao meio de Betsy, mas sim a aquela rua que o clama. Travis faz parte dessa escória.
Vou dar uma pausa na análise estilística para ressaltar várias coisas que aconteceram no meio dessa descrição. A história cerceia a vida de um taxista, mas todos os clientes que ele leva em seu carro são pertencentes a esta escória, com exceção de um, Charles Palantine (Leonard Harris). Quando ele entra no carro, vemos uma discussão sobre ter esperado uma limusine ou não, e quando Travis o reconhece, Palantine logo muda o discurso e tenta se mostrar como um candidato do povo, só que quando ouve o testemunho que Travis faz a sua pergunta, ele não sabe o que responder, o colocando numa posição até mais cafona que a de muitos outros indivíduos que já entraram em seu carro. Esta é uma crítica a políticos que não governam para cada indivíduo, mas sim para a nação. Aquilo que escrevi lá no começo da crítica retorna muito mais forte, já que nos mostra que a isolamento não é resolvido pelas instâncias governamentais, sendo até mesmo exacerbado. Outro ponto forte é o fato de que mesmo dentro dessas camadas sociais mais baixas, ainda temos a divisão dos grupos: os negros, os homossexuais, as prostitutas. Cada um desses grupos parece se conflitar a todo momento gerando um caos ainda pior. Essas são duas ilustrações de um mundo bem solitário, um mundo que acabara de sair de enormes conflitos e se vê sem esperanças de sucesso ou ascensão, e que como descrevi no parágrafo anterior, ao tentar se adequar, acaba se humilhando de tal forma que o faça ter mais raiva das camadas superiores. Considerando que Travis, também não gosta de quem é, ou seja, das camadas inferiores, a solidão está ainda mais presente. E é isso que vai gerar todo o ser que ele virá a se tornar.
Travis vai com o tempo percebendo que nada o satisfaz, que nada resolverá seus problemas, seja um político, seja uma mulher, seja a própria sociedade que ele começará a se tornar o próprio vingador dela. E é nesse momento que as cores verdes vão começando a tomar conta de todo o vermelho que antes dominava a tela. Travis não aguenta mais ser o cara conformado e deprimido que era, ele quer ver as coisas mudarem. A primeira prova disso é quando ele atira no negro no estabelecimento do italiano (a diferença de raças novamente) que é totalmente iluminado por cores verdes. A partir daí, ele começa a perceber que se ninguém faz nada por ele, será ele mesmo que terá que fazer as coisas. O vermelho só estará presente nas cenas em que ele precisará se "rebaixar" para conseguir salvar a vida de Iris (Jodie Foster). Essa meta dele vai crescendo de uma forma infantil se vista de fora, já que a mim pareceu que se Travis conseguisse salvar Iris, na mente dele, ele conseguiria realizar o trabalho que sempre quis, mas o fato é que ele estabelecer essa meta é o primeiro passo que vai desencadear todo o estouro. Agora importante a se ressaltar neste momento, é como Travis trata Iris. Travis se põe como alguém superior a Iris (mesmo que ele não saiba como agir direito quando Iris só quer realizar seu trabalho), e a trata de uma forma tão atenciosa, que até não parece o mesmo cara que levou Betsy para um cinema pornô. A questão é que Travis é em si bem carente e atencioso, ele só não é compreendido, já que ambas as abordagens não conseguiram trazer a pessoa que ele queria para perto dele. Chegamos enfim a cena final do filme.
Nosso protagonista já viu o retrato de várias pessoas que também são solitárias como ele, está totalmente desiludido com tudo que lhe aconteceu, preparando assim uma forma de conseguir se vingar de tudo. Travis decide então matar Palantine, talvez para se vingar de Betsy, talvez por indignação à vida, talvez pelos dois, talvez por nenhum dos dois. Uma das ideias que escrevi lá em cima é a de que temos um cara perturbado que não necessariamente tem justificativa para seus atos, assim como um serial-killer que se baseia num jogo. Podemos criar justificativas, mas sabemos que ele é perturbado. A tentativa dá errado, e ele redireciona suas forças para Sport (Harvey Keitel) e todo a rede de prostituição. Isso nos mostra uma coisa, Travis podia ter direcionado sua raiva para qualquer um, qualquer um mesmo. Ele passou de um vilão para um herói no piscar dos olhos. E é por isso que Travis Bickle pode ser considerado, para mim, um dos melhores anti-heróis do cinema. Ele podia matar qualquer um, ele deu sorte de no final ter matado as pessoas certas. A cena final é composta de uma maestria tão grande, que tudo no final parece uma cena de teatro: a câmera pegando tudo que aconteceu por cima, tambores ritmados que lembram a batida do coração. O estouro tem que ser impactante a nós, porque vai que fôssemos nós o Travis que fez tudo isso? Só para completar a análise das cores, queria dizer que mesmo no final, quando Travis realiza toda essa façanha, mesmo quando ele é reconhecido nos jornais, mesmo após tudo isso, ele não deixou de pertencer a tal escória. Travis acha que deixou, mas ele continua nela. Quando Betsy entra no táxi de Travis, como se fosse um momento de redenção, Betsy vem no mesmo traje branco que a introduziu ao mundo de Travis, mas dessa vez, ele já não tem o mesmo desejo que possuía antes, já que ele sabe que ela assim como todo o resto da humanidade pertence a tal escória, independentemente da sua origem. O branco então não significava a pureza de Betsy, mas assim como o verde para Travis, o branco é um esconderijo do vermelho/podridão de Betsy. Mais uma vez, Travis acha que se libertou dessa podridão, mas o finalzinho do filme é perfeito. Travis olha pelo espelho do motorista e vê o mesmo Travis do começo do filme, o Travis coberto pela luz vermelha. Ele vira o espelho, e temos aquela música dissonante até voltar ao normal. Ele agora olha para o topo das lojas e estabelecimentos da rua, e não mais para as pessoas e carros. Ele não quer olhar para a tal escória. O que essa cena quer mostrar é que Travis, assim como todos nós, possuímos esse escória dentro de nós, basta olha mais fundo. Essa podridão pode estourar a qualquer momento, assim como aconteceu com Travis. O que Travis faz nesta cena é esconder novamente o vermelho, e assim, encarar a solidão de uma forma mais confiante.
Por fim, a história de Travis é bem impactante, e não somente pelas imagens, mas porque ela pode representar a história de qualquer um. No mundo contemporâneo que vivemos hoje, todos somos solitários, a diferença é que nós enfrentamos essa solidão de jeitos diferentes. Alguns podem simplesmente viverem sem se importarem com ela, enquanto outros podem decidir que para se sanar eles tem que matar a primeira pessoa que lhe represente o mal que não o deixa prosseguir. Essa é a história de Travis Bickle. Essa é a história da humanidade.
O que escreverei a seguir é um complemento deste outro comentário que escrevi algumas semanas atrás: http://filmow.com/interestelar-t27814/
SPOILER DETECTED!!!
Esse filme me intrigou por muito tempo, justamente por ser de um diretor que admiro demais, no entanto, como disse no outro comentário, algumas coisas não me convenceram. Neste comentário, darei exemplos de outras partes do filme que também me deixaram a desejar, mas antes quero comentar sobre a trilha sonora, que por alguma razão, esqueci de comentar, e que sem dúvidas, é um dos grandes trunfos do filme. A trilha sonora é sim imponente, mas em nenhum momento do filme, ela ofusca a ação que acontece no filme (quando digo "ofuscar", quero dizer algo como o que acontece diversas vezes em filmes de terror, em que levamos susto mais pela trilha sonora que acompanha, do que pelo conjunto todo - composição de cena, enquadramentos, desenvolvimento narrativo, e também, trilha sonora -). A trilha sonora parece cercear toda a ação, justamente por ter um som divergente, no sentido de não ter um instrumento que se sobressaia, mas que uma composição de sons que juntos formam uma harmonia à cena.
Enfim, agora às cenas: uma outra cena que esqueci de citar é a cena em que a Murph adulta (Jessica Chastain) descobre que os livros na estante são na verdade seu pai. Para nós, espectadores, que estamos vendo as duas ações simultaneamente, concluir isso é fácil, mas e para Murph? Para Murph é como se fosse chutar um número entre 1.000, ela pode ter suposto certo, mas a probabilidade é quase mínima. Se você não concorda com isso, faça o seguinte, reveja a cena, excluindo tudo o que o Cooper fala, ou seja, considerando só as impressões que a Murph tem ao olhar os livros. Para mim, é quase impossível que ela tivesse chegado a tal conclusão, mas tudo bem. Como disse no outro comentário, eu odiei o final, aqui darei outro motivo. No outro comentário disse que não achei suficiente o desenvolvimento sentimental de Cooper, já que ele ter vivido a vida inteira longe dos filhos, ter se resolvido com um simples encontro que tem com a filha, como se para ele fosse o suficiente, ou o que o filme parece indicar, já que ele supera facilmente o fato e corre rapidamente para salvar Brand. Além disso, eu achei que Nolan perdeu um elemento importante da narrativa quando Cooper retorna do hipercubo. Para uma pessoa que viu o mundo em 5 dimensões (mesmo que com sua visão de 3), o mundo normal não seria o mesmo quando retornasse. Eu achei que Nolan perdeu as impressões, e como Cooper iria lidar ao retornar a um mundo visto de uma forma totalmente diferente. Então, só nesse pequeno retorno, Nolan desenvolve mal tanto o psicológico, quanto o sensorial, o que para mim, é imperdoável, e por isso disse que preferiria que o filme tivesse acabado naquele feixe de luz (seria menos pior, embora ainda seria horrível). Para mim, ao invés de Nolan ter finalizado com uma Brand perdida, num desenvolvimento humano diferente da do mundo de Cooper foi horrível, pois ele simplesmente muda o foco do filme que minutos atrás, quando Cooper entra no cubo, havia descartado. Se Nolan quisesse ter retratado o choque de desenvolvimento entre dois indivíduos diferentes, que ele tivesse posto em cheque a diferença entre Cooper e as pessoas do mundo que ele tinha deixado para trás. O filme, como disse no outro comentário, é um tanto pretensioso com o número de questões que se propõem a discutir, mas que além disso, é confuso e errôneo, no desenvolvimento narrativo.
Se em algum dia, Stanley Kubrick (autor de inúmeras obras-primas como O Iluminado (1980) e Laranja Mecânica (1971)) uma vez disse que o cinema deveria se assemelhar mais à pintura e à música do que à literatura (com um enredo servindo como complemento), A Lista de Schindler (1993) é sem dúvidas, um dos filmes mais representativos, já que a emoção contida nas imagens assola muito mais que os diálogos.
Analisar um filme como este de uma forma mais profunda é uma tarefa bem complicada, já que a grande sacada dele é nos pôr tão dentro de toda a situação, que ao mesmo tempo que sentimos todo o terror e sofrimento dos indivíduos da época, nos emocionamos a ponto de ficar chorando à frente da tela por vários e vários minutos ininterruptos. O elongamento do filme passa de forma tão rápida que quando chegamos ao final clamamos tanto por mais, já que tudo parece ter ocorrido tão rapidamente, como por agradecer que todo o martírio tenha acabado, e que paremos de chorar. Nos seguintes parágrafos, tentarei dar um panorama geral de pontos que consegui capturar, mas que mesmo assim creio serem insuficientes devido ao fato de eu ter visto ao filme uma única vez, considerando que foi uma vez bem sofrida.
Somos apresentados à Oskar Schindler (Liam Neeson), e logo de cara nos deparamos com um sujeito calmo, e embora bem convidativo, denote um ar de frieza em seus métodos. Essa sensação só vai crescendo com o decorrer do filme, já que vemos um indivíduo que se importa somente com seu próprio lucro (preferindo trabalhadores mais baratos, mesmo que tenha que explorá-los), prometendo futuro às mulheres com que deita, mas descartando-as posteriormente (até mesmo com uma das mulheres com que ele parece ter tido algum passado mais sentimental), mas por principalmente utilizar-se de discursos que exaltam a sua sorte perante a situação de guerra. Na primeira parte do filme, começamos a criar um certo ódio à figura de Schindler, que logo vai murchando, já que conhecemos uma figura muito mais impiedosa, e pior, sem qualquer padrão de assassinatos, dependendo unicamente de seu humor: Amon Goeth (Ralph Fiennes). Como o próprio Spielberg definiu, Fiennes com sua sexualidade maldosa ("evil sexuality"), cria um personagem tão forte, sádico e imprevisível que nos faz o temer da pior forma, como se fosse a figura nazista mais difundida ao decorrer da história: o típico ser a se repudiar. Funciona. Como se não bastasse, cenas que em sua maioria focam os rostos das pessoas de uma distância tão curta que parecem querer nos sufocar com suas dores. Todo essa aura é ainda enaltecida pela ótima trilha sonora, que ora ausente, causa um sentimento de pânico total, já que só ouvimos os passos acelerados, gritos histéricos e saraivadas de tiros (como na cena em que os pais começam a correr atrás dos carros que levam seus filhos embora ou na cena inicial da liquidação do gueto), e ora angustiante, com violino(s) sempre compassado(s) e longo(s) causando uma sensação ainda mais desconfortante, já que essa lentidão e profusão nos engloba ainda mais nesta atmosfera já opressora (como na cena do banho comum das mulheres ou na cena final do filme quando os sobreviventes e descendentes dos judeus vão homenagear o túmulo de Schindler).
Há porém duas cenas que contrastam com essa fórmula citada acima. A primeira (não está em ordem cronológica) é a cena em que os nazistas assassinam os judeus que ficaram em seus dormitórios escondidos em algum canto. Quando vemos o último judeu sair de seu respectivo esconderijo e acabar acidentalmente pisando nas teclas do teclado, vemos que os nazistas tomam iniciativa e começam a ir em cima dos sobreviventes. Assim que ouvimos os primeiros tiros, inicia-se um acompanhamento num piano, que primeiramente se confunde de forma proposital com os sons dos tiros, e que bem caótico, ilustra bem a situação no momento: um total rebuliço diante da descoberta de judeus ainda escondidos. O tiroteio se segue até que descobrimos enfim, que na verdade, havia um oficial tocando um piano. Outro elemento forte nessa cena são as rajadas de luz que saem das armas dos nazistas; rajadas que posteriormente serão ilustradas nas janelas das casas de todo o gueto, como se entoasse com as notas tocadas ao fundo, como se todo o gueto estivesse neste mesmo pandemônio. Essa composição sinestésica faz desta cena uma das mais maravilhos esteticamente falando, e por ser assim, acaba assustando ainda mais, já que contrasta com a realidade mostrada nesses curtos minutos; uma realidade cruel que quebra toda essa beleza estética. A segunda cena em que isso acontece é justamente na famosa cena da garota do casaco vermelho. Nela, temos algo que parece ser um coro, como que se prenunciasse a vinda da garota, mas que também contrasta com toda a situação, já que vemos várias mortes e uma exacerbada violência contra os judeus. O coro parece remeter a algo sagrado, que no caso está longe de ser visto. Esta é uma cena interessante demais, e muito importante para o desenrolar do enredo. Para mim, ela não consegue superar a cena supracitada em quesito de composição, mas ela é de fato uma das mais importantes para a formação de Oskar Schindler, senão a mais importante, pois dá uma guinada totalmente diferente ao personagem. Até então, Schindler se impunha numa postura bem individualista, o que após esta cena, torna-se totalmente o contrário, utilizando dos mesmos artifícios de sedução anteriores para agora, salvar as famílias de judias. O interessante é o fato do Spielberg não nos dar evidências claras do processo de transformação psicológica de Schindler, o que nos faz questionar a partir de várias perguntas: “Será que Schindler planejava isso desde o começo?”, “O que o fez mudar tão drasticamente de postura em relação à guerra?”, entre outras. O fato é o seguinte, procurando a biografia dele, acabei descobrindo que o Oskar Schindler de Spielberg é exatamente o mesmo do da vida real, pior, anos antes, Schindler manteve relações bem estreitas com o partido nazista, atuando até mesmo como espião. O que o fez mudar então? Não se sabe. Deixando a vida real de lado, e analisando o filme como licença poética. Spielberg, assim como nós, também não soube o que motivou Schindler a mudar. Ele então cria uma cena de uma profundidade sentimental tão grande, que nós, vendo do que seria os olhos do próprio Schindler, nos espantamos com a vida na guerra. O vermelho da roupa da garota une todo o sangue derramado na figura simbólica de alguém puro. Não digo que os judeus são puros, mas me refiro ao fato da crueldade por qual passaram não ter explicação racional existente. A união então desses três símbolos - menina, vermelho e coro - refletem bem, toda a insanidade que os nazistas cometiam, e se no filme isso se refira ao limiar entre o Schindler individualista e o Schindler altruísta, na vida real, a explicação também é mais obscura ainda. Em outra análise, pode-se considerar que o vermelho da menina represente a esperança que ainda se tinha na sobrevivência de tais indivíduos. Quando então vemos a garota morta, sendo levado para ser queimado, o último facho de esperança em Schindler apaga, e então suas ações começam a ficar mais explícitas para nós espectadores. Por fim, queria comentar sobre a escolha do P&B neste filme. Assim como escrevi sobre a mesma técnica no comentário do filme American History X (1998), em a Lista de Schindler, uma possível interpretação da escolha de cores vem do fato das pessoas daquela região verem o mundo de uma forma intolerante, em que somente algumas coisas são aceitas como o certo. Transpondo isso para a estética do filme, o P&B representaria a postura dos nazistas em relação aos judeus, ou seja, bruta. Não há espaço para o diferente, não há espaço para a diversidade, não há espaço para o colorido. Em cenas que o domínio nazista já não existe mais, vemos as ditas cores, para mostrar que neste novo mundo, mesmo com todos os sofrimentos passados, obtemos de certa forma o reconhecimento, a aceitação do diferente (isso acontece no começo do filme, com a cerimônia sagrada dos judeus, e no final, com os sobreviventes homenageando a lápide de Schindler).
Observar estes outros aspectos técnicos mostram que além de se trabalhar com um filme de tema pesado, Spielberg sabe coordenar artifícios que só enriquecem ainda mais a experiência do filme. Para finalizar, para dizer que o Spielberg só acerta nesse filme, queria dizer que não gosto muito da tentativa de comoção que Spielberg tenta criar no final, com um Oskar Schindler caindo aos pés, chorando por não ter trocado um valor monetário por mais um judeu. Para mim, além de manter os judeus numa certa noção de objeto, ainda tenta apelar demais para um sentimentalismo desnecessário, visto que o filme já em si uma obra-prima no quesito emocional. Enfim, para mim neste final há um certo probleminha, no entanto, passando longe de tirar o brilho da obra. O filme merece ser visto, revido, chorado e analisado. Cabe a nós, um dos melhores filmes de Steven Spielberg (senão o melhor).
Quando acabamos de ver esse filme, logo nos damos conta: este filme é bem diferente de outros filmes do Woody Allen, seja em aspectos narrativos, ou pelo forma como ele é direcionado até o final. Assim que começamos o filme, somos introduzidos a Chris (Jonathan Rhys Meyers), um sujeito que vê a vida como se já tivesse no fim dela, dando prognósticos de como preferiu viver a vida, com uma frieza grande ao esclarecer tudo isso (cabe aqui dizer que não sei se a frieza é do personagem de Chris, ou porque o ator que o interprete não possua muitas expressões). Vemos também uma cena que será de extrema importância para o decorrer do filme: a cena da bolinha de tênis, que mais para frente ecoará com a aliança da senhora. Assim que Chris conhece Tom (Matthew Goode), logo nos damos conta da diferença de classes que estamos por ver nos seguintes quadros. Enquanto a família nada em dinheiro, não se importando em suprir suas regalias, Chris vai tentar a todos os esforços parecer alguém de uma classe superior a sua (por exemplo, ele nunca vai dizer que necessita de dinheiro, mesmo nós espectadores, sabermos que inicialmente ele está num grande impasse com o preço da casa, tentando até mesmo sempre provar à família que sua condição é favorável, se dispondo sempre a pagar a conta, mas ao final cedendo convenientemente). Veremos dessa forma um conflito social recorrente, numa forma voraz de sobrevivência e adequação ao "novo mundo" de Chris, e para consolidar essa sobrevivência ele precisará se utilizar de aparências. Chris vai então entrando na família de Tom, até enfim conhecer Nola (Scarlett Johansson), e vai percebendo que assim como ele, ela está deslocada na família, já que não vem de nenhuma herança social favorável, muito pelo contrário como ela mesmo diz. A partir da família de Tom percebemos como as relações emotivas são totalmente desprezadas, já que mais interessa o pretendente ter um futuro promissor do que realmente amar e prezar pela integridade de seus filhos. Pode-se ver também que os pais queriam que Tom na verdade casasse com sua prima, ou seja, cada o vínculo amoroso? Não há. Esse retrato das altas camadas de nossa sociedade atual parece meio que dialogar com a época em que os casamentos eram arranjados a partir de dotes, o que pelo menos a mim, soa como retrocedente, banalizando assim ainda mais toda a família de Tom. Mas por fim, Chris enfim se instala nessa família, casando-se.
O interessante é perceber como o tênis ainda estabelece algumas relações com Chris, já que quando ele encontra seu antigo companheiro de esporte, ele se esnoba e até acabando menosprezando a antiga profissão. Além disso, Chris utiliza-se da mala de tênis para esconder a arma do crime, como se dissesse que o tênis foi um simples suporte passado que o ajudou a chegar aonde está hoje. Mas de fato, aquele eco que eu disse lá em cima da aliança com a bolinha é a relação mais importante. Chris é um canalha, um dos grandes, mas o filme não quer discutir suas ações, mas como ele mesmo diz no começo do filme, a sorte que algumas pessoas têm na vida. Quando Nola enfim conta que está grávida, Chris tem que se decidir quanto o que fazer, pois o que imaginava que poderia levar lado a lado se mostrou muito maior, e é nessa parte que Chris afirma para quê realmente veio no mundo: ele quer ascender socialmente, e pertencer à classe que sempre idolatrou, e para isso, ele vai fazer todas as estrepolias que acabam pela morte de Nola. Uma questão importante que o filme esconde por trás de interpretações é talvez o fato de Nola não estar realmente grávida, talvez ela só tenha se utilizado dessa estratégia para acelerar a decisão de Chris. Essa teoria é muito cabível já que em nenhum momento vemos Nola atestando a veracidade de sua gravidez, mas é mais factível porque quando Chris vai prestar depoimento da delegacia, os policiais em nenhum momento citam o fato de Nola estar grávida, nem mesmo há nenhuma menção em seu diário. Com o andamento das investigações, os policiais sabendo que Chris era casado e tendo um filho com esta, e descobrindo que Nola também estaria grávida faria com que Chris passasse a ser o suspeito número 1, já que eles podiam imaginar que Chris cometeu o ato para se livrar de um peso, que nós, espectadores, sabemos que é verdade. Uma coisa interessante de se perceber é que até antes das investigações, a maioria das cenas são compostas por 'takes' longos e demorados, denotando essa característica bem arrastada que vai compor grande do filme, mas assim que os policiais entram na investigação, vemos muitos cortes, sempre bem rápidos, e com focos maiores nas faces das personagens, fazendo com que essa tensão seja acentuada até um pouco mais.
A sorte que é tão discutida em todo o filme aparece enfim naquela cena que ele tenta descartar as joias da senhora com maior impacto. Quando a aliança cai para trás, logo imaginamos que Chris será pego e preso, mas o que antes parecia ser total azar, acaba se mostrando uma sorte deslavada, e além disso, um componente fundamental para que a história acabe bem para ele. Pense bem, se a polícia não achasse o assaltante com a aliança da senhora, as investigações continuariam, levando os policiais a procurar a arma do sogro, que o comprometeria imensamente. A prisão e a infâmia por que passaria seria imensa, mas a sorte esteve mais uma vez ao seu lado. A brincadeira que o filme faz no final fecha toda a obra espetacularmente: o policial ter sonhado com toda a situação nos faz inicialmente ficar indignado com tal desfecho, mas com o fato que o outro policial nos dá, a brincadeira que Woody Allen nos traz aqui é impressionante, pois isso mostra que a sorte pode acontecer com cada um a cada momento, mas que muitas vezes não as levamos a sério ou nem ao menos as percebemos, e é por isso que o final é magistral ao concluir toda essa análise. Por fim só queria deixar mais uns detalhes como o fato do filme remeter bastante à tragédia grega, já que a trama contém o questionamento de atos antes feitos, personagens secundárias que também analisam seus atos, assombração por fantasmas do passado, com o único porém de que no final, o protagonista se saia bem, o que numa tragédia grega seria uma total desilusão e derrocada. É por fazer todas essas brincadeiras com as noções de sorte e acaso, e trazer elementos que só embasam e nos fazem emergir ainda mais em toda a trama que essa é sem dúvida um dos melhores filmes de Woody Allen.
Obs.: que cena da chuva foi aquela? Meu deus do céu, que arrepio na barriga. :P
É então concebida a nós mais um dos filmes de um dos melhores diretores da atualidade: Christopher Nolan. O autor de filmes como A Origem (2010), Dark Knight (2009) e O Grande Truque (2006) é um contador de histórias impressionante, mas não deixa de ser humano, e sendo um, acaba falhando em algumas partes de seu novo filme: Interestelar (2014). Nas próximas linhas, estarei descrevendo tanto partes que achei muito impressionantes, como outras que a mim penaram um pouco (e aos indivíduos que leram esse pequeno excerto até onde cheguei, e simplesmente por eu ter dito que não amei o filme darão um ‘dislike’, deixo claro que não me importo com a crítica, a menos que refute racionalmente o que direi adiante. Aceitar tudo o que alguém faz por simples ‘fanboylismo’ é algo passivo, e a discussão é a semente mais rica que provém dos filmes. Eu mesmo adoro o Nolan, se você tiver a curiosidade, você pode perceber que dos 6 filmes que vi dele – sem o Interestelar –, 3 estão na minha lista de favoritos. Seja então razoável).
Uma das coisas que sempre me fascina em seus filmes é a forma como ele cria suas histórias. Sempre repleto de mistérios e fatos que em primeiro plano possam parecer surreais, Nolan vai aos poucos nos dando dicas a fim de que no final, tudo faça sentido em nossas cabeças. Ou pelo menos grande parte: quando afirmo isso, quero dizer que os filmes dele sempre levantam certas questões que nos martelam por vários dias, como por exemplo no caso deste filme, a questão de tempo e espaço, e como o controle das ações podem ser fruto dessa relação. Sempre com frases de impacto ao começo do filme que ao final serão revividas, Nolan acentua ainda mais as ideias que expõe ao decorrer do filme (uma das frases deste filme é uma leitura livre da terceira lei de Newton, que do mesmo que acontece em Gravidade (2013) delimitará a separação dos dois viajantes espaciais). E por fim, com cortes rápidos, Nolan sempre dá mais dinamismo as ações que ocorrem no filme, e dessa forma, juntamente com as duas outras características citadas anteriormente, enriquece suas obras de uma forma incrível, misturando reflexão com dinâmica. O filme começa quando conhecemos Cooper (Matthew McConaughey) e sua família num mundo apocalíptico, onde a natureza rege as ações do homem. Enquanto vamos vendo todo o passado de Cooper, e como ele está insatisfeito com a realidade em que vive hoje, logo esperamos que algo venha a quebrar sua rotina diária e o impulsione à grandes aventuras, que é o que justamente acontece. Toda essa cena é inicialmente muito rápida, o que nos faz até questionar sobre a facilidade como ele adere a tal causa. De fato, a questão é válida, mas é ao final do filme que descobrimos quase que num ‘insight kubrickiano’ (aqui me refiro a 2001: uma Odisseia no Espaço (1968)) que na verdade tudo tinha sido arquitetado por ele mesmo, numa amplitude muito maior que nós imaginávamos. Mas vamos com calma, já chegaremos a essa parte. O fato é que Cooper enfim vai ao espaço, junto de Brand (Anne Hathaway), Doyle (Wes Bentley) e David Gyasi (Romilly), na empreitada que promete ser a última salvação da humanidade. A questão de cada entidade acima ter uma noção melhor do objetivo da missão espacial é bem interessante: o povo e todas as pessoas que antigamente (para o filme) ocupavam cargos de importância na sociedade são hoje desprezados, já que vivemos numa política de sobrevivência e não possuem a menor noção do plano que a NASA, ou especificando melhor ainda, estadistas e cientistas almejam. E se não bastasse, acabamos por descobrir no final, que o principal cientista Professor Brand (Michael Caine) de toda a operação não tinha a menor intenção de salvar a humanidade levando os sobreviventes da Terra para lá, mas que na verdade, pretendia manter o que ele chama de plano B, como na verdade o principal plano, sacrificando todas as pessoas da Terra. Toda a ideia de procurar algo não tangível na Terra, lança a discussão do próprio ser humano que temos atualmente (século XXI), e que principalmente foi na Guerra Fria. A exploração espacial era mero artifício de imposição de supremacia, que na época acabou sendo vencida pelos EUA, mas que aos poucos com o descobrimento do impacto de tais tecnologias foi se mostrando um produto de extrema importância para comunicações, relações e comércio. Na época do filme, nós dependemos dessa exploração para a manutenção de nossa espécie. Vemos em toda essa linha do tempo, um certo regresso: luxo auxílio (globalização) sobrevivência. Toda essa passagem só nos ilustra que vários artigos que hoje consideramos meros objetos de vivência, podem futuramente se tornar obsoletos, ou até contrário, tornarem-se imensamente necessários para a nossa própria sobrevivência. Este é uma ironia muito engraçada, mas ao mesmo tempo, triste, pois pare para pensar que talvez o osso que hoje jogamos fora quando acabamos de comer, pode um dia se tornar a última coisa remanescente de uma carcaça. A ideia é muito forte, só fica atrás de outra mensagem também bem irônica, mas bem imponente: a água. Os exploradores classificam um planeta como próprio à sobrevivência assim que constatam entre outras coisas, a presença de água. A ironia é que nos dois planetas que eles visitam, mesmo sendo totalmente permeiado de tal líquido, a situação é inóspita, já que no primeiro planeta Doyle morre, além de eles perderem mais tempo do que esperavam com o tsunami, e no segundo, mesmo com toda a água em forma de gelo, eles não conseguirão habitar, pela ausência de outros compostos necessários a sobrevivência.
O filme vai andando até aí de uma forma impressionante até encontrar um dos primeiros probleminhas, no caso em relação à narrativa. Cooper decide voltar ao planeta Terra após descobrir da real intenção de toda a exploração empreitada por ele e seus companheiros. Dr. Mann (Matt Damon), que inicialmente se mostra a favor de tal atitude, no final acaba por ir contra, e decide por conta própria tomar a nave com que Cooper queria voltar à Terra, e pelo que as frases do filme direcionavam, continuar a explorar outros planetas da região até conseguir achar o lugar ideal. É certo que a criação do personagem de Matt Damon é impressionante, já que muitas vezes a frieza que tem dá lugar há uma ingenuidade quanto ao ato que acaba de fazer com Cooper. No entanto, o que me pergunto é porque Dr. Mann simplesmente não espera Cooper ir embora, para então arquitetar seu plano com mais firmeza, já que assim teria um indivíduo a menos para repreender. Toda a ideia de levar Cooper até bem longe, e assim dar cabo dele me parece ingênua até demais para um cara como Dr. Mann, pois cá entre nós, o cara ficou anos naquele planeta, anos criogenado arquitetando todo o plano que viria a se concretizar futuramente. Tudo bem, este não é ainda o maior problema. Dr. Mann enfim consegue fugir e chegar na nave, só que acabando por explodir. Cooper e Brand se espantam, mas lutam bravamente até conseguirem entrar na nave que está totalmente a esmo. Qual é o movimento a seguir? Cooper decide passar pelo buraco negro, pois afinal a nave já não estava destruída o suficiente para passar perto de um corpo gravitacional de massa enorme que poderia destruí-los maestralmente. Não bastando, ele ainda se joga no buraco negro, afinal vai que ele descobre alguma coisa, não? Calma, calma. Há alguns momentos atrás no filme, ele não estava querendo justamente voltar para o planeta a fim de reencontrar os filhos? Do nada então ele decide ir em direção ao buraco negro, como se não bastasse decide se jogar por ele. Vocês conseguem perceber a falta de lógica nisso? Enfim, continuemos o filme. Ele enfim começa a entrar pelo buraco negro, numa das cenas mais belas do filme. Lembrando muito a estética de 2001 novamente, ele vai passando por um ambiente escuro, de uma forma meio caótica, sendo ultrapassado por vários feixes de luz até que enfim ele chega num cubo, e lá descobre (e nós descobrimos também) toda a origem dos “fantasmas” que assolavam sua filha no começo do filme, descobre também a complexidade da trama, já que ele conseguiu ultrapassar a noção de tempo, além de entender que as entidades que o ajudaram a chegar até onde chegou são na verdade, a humanidade do futuro. Toda essa cena é bem alongada e detalhada, mas é de uma riqueza exemplar; esta é a cena dos filmes do Nolan em que ele lança todas as cartas finais que nos fazem entender todo o emaranhado de ideias iniciais. Vemos então uma tela branca, e Cooper se perguntando o que fará agora. A partir daí, o filme cai de nível gigantescamente. Não digo que a obra foi comprometida porque a necessidade das cenas que virão a seguir são quase nulas. O melhor do filme já passou, a partir daí, é só estratégia comercial. E isso me irritou profundamente.
Cooper acorda e descobre que está num lugar em que tudo está maravilhosamente bem e diferente do que era antes, algo como se fosse o Capitão América acordando num mundo altamente moderno após estar congelado por várias décadas. No Capitão América, a função é em si para dar o choque de realidade nele, já que anteriormente, era ovacionado e idolatrado por todos, numa sociedade em que ele entendia. Ao chegar então nessa nova situação, o herói terá que deixar seus antigos princípios de lado para conseguir se adequar a essa nova vida, mas é claro que há também uma estratégia comercial, já que a partir daí Capitão América terá diversas outras histórias. No entanto, para COOPER o primeiro efeito não existe. Antes de explorar o Universo afora, COOPER não era ninguém, além de viver num local totalmente afastado do mundo. Assim que ele consegue todos os feitos, e descobre tudo o que fez, COOPER acorda e percebe que as glórias do progresso não foram assimiladas a seu nome, mas sim ao de sua filha. Sendo assim, ele continuar sendo ninguém. Pior, no caso ele é o pai de uma pessoa famosa. Ele não é ele, é vinculado a outro, tira mais ainda a noção de identidade. Como se não bastasse, o filme parece querer nos mostrar como ele tem efeitos especiais, mostrando aquela campado em forma de cone ou instalações altamente tecnológicas. Mas o pior de tudo, é ele se reencontrar com a filha. A sensação é de que tudo acaba bem, que o final é feliz, que esse mínimo encontro relaxa toda a situação. Não! Ele viveu a vida inteira longe dos filhos, e o maior impasse da vida dele, que foi ou conviver com sua família, ou salvar toda a humanidade é totalmente deixada de lado nessa simples cena. O fato de ele ter salvo a todos parece ter sido obsoleto, não digo que ele devesse ganhar fama a partir disso, mas que ao contrário, devia encarar frente à frente com o que teve que deixar de lado com suas escolhas. Dessa forma, mostrar todos esses efeitos especiais, além de ilustrar uma cena um tanto quanto reconfortante é no mínimo, negligente com esse embate psicológico que tinha sido trabalhado de forma bem construída a poucos momentos atrás. Acabar o filme mostrando BRAND e deixar de lado esse aspecto que acabei de comentar é algo um tanto pretensioso, pois mostra que neste filme, Nolan atira para todos os lados e não consegue de fato concluí-los com grande incisão. Em outras palavras, Nolan nos traz um filme com um enredo quase impecável, mas que está rodeado de reflexões filosóficas e psicológicas que no fim não nos levam a nada. (Lembra-se da água que eu comentei lá em cima? Onde está ela representada nessa nova sociedade? As questões entre ciência contra sentimentalismo, onde acabaram no final? As ideias que ele puxou sobre religião (coisa que até certo tempo é esquematizada na ideia desses exploradores espaciais serem os “deuses” que definirão a nova morada da humanidade) na figura do sogro de COOPER deram no quê? A força da natureza que consegue mais uma vez controlar a humanidade (já que nos primórdios dos tempos, era ela que definia como os humanos se estruturariam), acabou em algo?). Não, o filme acaba mostrando BRAND perdida, e deixa de lado toda essa questão das consequências das escolhas de COOPER, que mais uma vez enfatizo, são de extrema importância para mim, ao mesmo tempo que tenta achar no amor a justificativa para algumas ações do filme. Esse amor me parece meio fácil de se conquistar, não? A gente realmente só precisa rever a pessoa querida mais uma vez, e está tudo ótimo? Enfim, não sei qual seria o final ideal. Se o filme tivesse acabado naquela tela branca, talvez fosse melhor, mas estaria longe de ser magnífico, como tantas outras obras de Nolan se mostraram. O fato é, o filme nos deixa com diversas perguntas e com um gosto de querer ter mais subsídios para compor esse final de uma forma mais fundamentada. O problema é que o filme tem quase 3 horas, e as perguntas que ficam não são perguntas que deveriam ficar no final de um filme do porte de alguém como Nolan.
Este é um daqueles filmes que assim como Laranja Mecânica (1971), Clube da Luta (1999), Taxi Driver (1976) e Assassinos por Natureza (1994) traz anti-heróis como protagonistas, já que várias de suas ações são malvistas socialmente, mas que no fundo tentam provar a esta mesma sociedade que seus atos são na verdade revolucionários, em propósito de resolver o que as autoridades não conseguem, algo como justiça às próprias mãos. A crítica a esta sociedade é muitas vezes alegorizada a partir de imagens presentes no filme: - Colocar o rádio na geladeira: calar a mídia; - Mudar a posição dos móveis: abalar as estruturas dessa elite, e mudar a forma de gestão atual; - O corte rápido da câmera no começo do filme após a família descobrir todos os pertences desarrumados: censura que esta parte da sociedade ("revolucionários") recebem; - Bomba de oxigênio que Jan (Daniel Brühl) usa: ele está sendo sufocado; - Jan e Julie (Julia Jentsch) olhando sobre um andar bem elevado por cima de todos, como se fosse o líder dessa revolução, que equipará toda essa elite econômica, vista por Jan de cima, como se ele se pusesse num patamar superior a elas, vendo o rumo que a sociedade deve tomar;
O filme seria plano, no sentido de não haver nenhum conflito a desestabilizar o universo das personagens (embora só a questão do socialismo já seja bem forte), se Julia não entrasse na vida desses dois amigos. Estando numa relação Peter (Stipe Erceg), Julie acaba por se apaixonar pelo seu melhor amigo, Jan. Em certo momento, o próprio Jan diz que as drogas tiram o sentimento revolucionário; essas drogas não são unicamente a bebida ou nicotina e semelhantes, mas também a paixão. Até antes desta paixão, o filme parece uma metralhadora de ideais comunistas, que ao chegar nesse ponto acaba por mudar o foco neste embate amoroso e as consequências dele (sequestro de Hardenberg (Burghart Klaußner) ou a resolução do relacionamento entre Julie e Peter). Esta é uma sacada incrível do filme, já que ele mostra que acima de revolucionários, eles são humanos, e é só com a estabilização de suas relações que pode se criar embates em âmbitos de maior escala, como é a própria revolução. Esta é uma palavra interessante, já que ela permeia todo o filme, e não só no caráter político, mas também em relação à sexualidade (relação a três), à amizade (fortificação dos laços) e também na própria forma de conseguir atingir essa reforma social (como é mostrado no final do filme, com os trajes e veículo). Ao fim, é só quando a relação entre os três é resolvida é que o sentimento revolucionário volta forte e imponente.
Um trecho do filme, que pelo menos a mim, abre espaço para duas interpretações vem na figura de Hardenberg. Mais para o final do filme, acabamos descobrindo que os 'Edukators' conseguem se safar, mas a pergunta que fica no ar é a seguinte: Hardenberg os ajuda ou não?
1. Supondo que ele NÃO AJUDE, Hardenberg mostra-se empático e simpático aos jovens enquanto está na cabana só para conquistá-los, contando histórias passadas semelhantes as dos jovens atualmente, e indo aos poucos descobrindo os piores de cada um a fim de jogar contra eles mesmos, como faz com o caso amoroso de Jan e Julie. Ele não foge, pois queria mais informações dos dois garotos (já que a de Julie ele já tinha) a fim de prendê-los, e quando enfim eles decidem voltar e o soltam, ele já tem todas as cartas prontas para jogar contra eles, só não esperando pela sagacidade maior dos mesmos que previram que o velho os trairia, deixando o apartamento original e até mesmo roubando o iate, deixando na parede a mensagem de que algumas pessoas nunca mudam. Dessa forma, eles comprovam que um pertencente da elite não deixa de ser da elite, mesmo quando compelido a ajudar os revolucionários. Os 'Edukators' por sua vez também não mudaram pois mesmo passando por uma crise em suas amizades, continuam a difundir seus modos, dessa vez até com maior planejamento e recursos, mas sem deixar os ideais para trás.
2. Supondo que ele AJUDE, Hardenberg realmente disse a verdade em tudo que falava, não fugiu porque estava revivendo seu passado, e estava começando a se dispor a novamente mudar o mundo. Quando eles voltam para a cidade, Hardenberg combina com os 'Edukators' todo um plano que os colocaria de uma forma mais incisiva em vias da dito cuja revolução que tanto almejavam. Ele limpa então o nome da garota, dá uma quantia bem relevante em dinheiro, além de seu próprio iate. Na cena em que Jan se revolta e quer jogar todos os equipamentos utilizados nas invasões fora, por essa lógica, ele tinha acabado de receber o plano que Hardenberg, e concordando com ele, Jan acaba por se revoltar ao pensar melhor enquanto dirigia, parando no meio do nada, quando se imagina hipócrita, já que utilizaria de certo luxo para combater o mesmo luxo. O que o faz voltar atrás e seguir com o plano de Hardenberg é quando Peter diz que ter um Rolex não influenciaria na forma como as abordagens revolucionárias seriam feitas. As imagens que mostram um Hardenberg preocupado são então de suas reflexões quanto aos atos que acabara de fazer, analisando se eles foram dignos ou não. E por fim, a mensagem na parede não seria contra Hardenberg, mas sim para ele, já que imaginando que tudo que ele dissera fora verdade, para os 'Edukators', Hardenberg nunca mudou, ele só manteve o sentimento revolucionário incubado, bastando um pequeno clique para que ele fosse novamente reativado.
O filme teve críticas negativas em relação a forma como os 'Edukators' arquitetavam seus planos, utilizando muitas vezes do medo para educar. Não sei se sou a favor ou não de tais medidas, diante de tais circunstâncias, mas queria deixar um fato. Na época da Guerra Fria, os EUA difundiram amplamente o medo e invasão comunista. Se o que vemos hoje é uma herança do que ocorreu naqueles tempos, os EUA se utilizavam, nada mais, nada menos, de modos diferentes de imposição de medo para combater tal ideia/parcela da sociedade que alguns hoje criticam. Você pode ser contra ou a favor da forma como os 'Edukators' realizam sua revolução, só seja parcial, analisando as ações independente de sua postura política.
Extra: o filme possui uma referência bem clara a outros filmes, como a forma que a abertura do filme se dá, lembrando muito à caoticidade e perturbação de Clube da Luta. Ou mesmo na cena em que a polícia invade a casa dos 'Edukators', remetendo à cena em que os agentes do FBI também invadem a possível casa de Buffalo Bill em Silêncio dos Inocentes (1991), apresentando toda uma estética confusa repleta de cortes rápidos entre os dois pontos de vista, mas que no fim se mostra genial.
De cara somos postos à frente de dizeres expondo que o filme que veremos logo a seguir é todo feito em linguagens de sinais, já que as personagens do filme são em sua maioria, jovens surdos-mudos. Este é de cara, o primeiro de muitos choques que levamos ao começar o filme. Toda esta estética tenta inicialmente nos pôr na mesma situação que um surdo-mudo tem em todos os dias de sua vida. Eles veem tudo o que acontece, sem entender o que as pessoas à sua frente dizem. Este jeito de trazer a obra a nós inverte totalmente os papeis, já que de uma hora para outra, entramos na realidade e no mundo deles, e nós desta vez, é quem seremos as pessoas que tentarão a se adequar a lógica deles. Ao decorrer de todo o filme, não temos contato com nenhum papel contendo a informação que é comunicada na tela (como quando nosso protagonista entrega uma carta ao que parece ser a diretora do colégio, dizendo os motivos que o levaram até aquela instituição), nem ao menos ouvimos uma única voz de alguém que possivelmente nos aproximaria do nosso mundo (até mesmo em cenas em que os jovens tentam se comunicar com as pessoas que não possuem tais deficiências, não as ouvimos; ficamos somente com os ruídos, sons cotidianos de uma cidade). Toda essa sensação tenta nos alienar da situação, como se fôssemos intrusos nessa realidade. Isso é primariamente bem angustiante, já que somos muito acostumados com abordagens cinematográficas líricas, com textos e diálogos. E se Stanley Kubrick (autor de inúmeras obras-primas como O Iluminado (1980) e Laranja Mecânica (1971)) uma vez disse que o cinema deveria se assemelhar mais à pintura e à música do que à literatura (em que o enredo deve ser mais como um complemento que essas outras estéticas criariam em nós), A Gangue (2014) consegue expressar justamente o que Kubrick faz com 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), trazendo imagens sempre muito fortes e perturbadoras, e mesmo que não se utilize de uma trilha sonora impactante como a presente em 2001, pelo menos sabe se utilizar do silêncio com a mesma maestria que Kubrick faz em cenas de extrema tensão. Se não bastasse, por trás de todo esse cuidado técnico, A Gangue, assim como 2001, traz em plano de fundo, um retrato transformador bem cruel.
Assim que temos esse primeiro impacto, somos progressivamente jogados a outros de intensidade cada vez maiores: seja por aspectos mais técnicos, como a lentidão das cenas, o plano-sequência (já que não há nenhum corte dentre as ações de uma mesma cena) até por padrões sociológicos, começando por ações que o cinema comercial também difunde bastante, o que seriam o caso das drogas e das bebidas, passando por temas que começam a ser um pouco menos explorados (pelo cinema comercial), como a sexualidade (na figura bissexual das duas garotas) e o sexo (juntando tudo que há de sexo do filme, com os jovens passando por várias posições sexuais, parece que a duração delas é enorme, no entanto, como já disse, todas as cenas do filme são bem alongadas, é tratando-se de um tabu sendo quebrado à nossa frente que a cena parece demorar mais, mesmo que em comparação às demais, a lentidão seja a mesma - como a cena em que os garotos têm que descer e subir todos os lances de escada do prédio em que vivem, chegando até a dar tontura -), até chegar a outros bem raros (no cinema comercial), como o aborto, a prostituição de menores que depois se torna, um esquema de prostituição internacional (não sabemos a idade dos jovens ao certo, mas podemos supor que eles sejam menores, para o quadro ser ainda pior), o estupro (a última vez em que o protagonista transa com a garota é um estupro, já que a garota agoniza em recusa) e a violência exacerbada. Se formos analisar a condição social destas pessoas, além de juntar a quantidade de imagens pejorativas relacionadas aos mesmos, traça-se um quadro bem pessimista dos jovens em questão, e como se não bastasse, os ambientes em que passam, contém um teor sempre melancólico, já que figuras como a natureza e outras pessoas são sempre deixadas num plano diferente ao desses jovens, quando não são mostradas de um modo miserável (vida dura de um caminhoneiro, policiais em suas salas claustrofóbicas, transeuntes que são logo furtados). É então de se perceber que toda a atmosfera do filme é muito miserável, além de pessimista. Caso você ainda não tenha entendido o porquê do filme ser bem pessimista, vou tentar explicar de uma outra forma. Assim que começamos a seguir a vida do nosso protagonista (acho que eu já falei várias vezes "protagonista", "jovens", etc. As personagens não têm nomes, o que seguindo a lógica inicial por mim descrita, serve para nos afastar do mundo deles ainda mais, já que sem nome, não há identificação, e sem identificação, não há proximidade), logo percebemos que ele é um garoto bem ingênuo, com muita precaução, sendo ridicularizado até mesmo por um outro alvo de chacota (o jovem com "síndrome de Down"). Ao adentrar nesse novo mundo, o garoto vai se transformando e conhecendo as adversidades da vida. Todas as influências que sofre o levam a um lado obscuro da vida que ele antes não conhecia. O filme é uma obra determinista, assim como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, em que as personagens são influenciadas pelo meio em que vivem, como se a corrupção de espírito é dada pelas pessoas com que se comunica e o ambiente que o rodeia. Uma das características do Naturalismo, escola literária a qual O Cortiço pertence, é um forte pessimismo arraigado, e mesmo que não fôssemos utilizar da literatura como parâmetro, vemos que o Determinismo é por si só uma característica pessimista, já que tira o poder de escolha do indivíduo que adere a uma determinada sociedade. Toda a situação que permeia a vida dos jovens no filme não colabora para que eles saiam de tal realidade, já que para começar eles são excluídos socialmente (surdos-mudos - naquela babaquice que é a de "excluir o diferente"), além de não terem um poder econômico seguro (o lugar em que vivem é bem precário), e para completar, serem totalmente esquecidos por suas famílias (não vemos nenhuma menção de algum familiar de algum destes jovens) e pelo próprio colégio (além de não amparar, ainda incentiva, na figura de um professor que ainda se aproveita do esquema de prostituição). Todo esse quadro clínico, talvez não justifique, mas nos ajuda a entender essa alienação e desvirtuação destes jovens da sociedade. Um esquema estético bem legal que mostra esse determinismo entrando na vida do protagonista vem do esquema de cores, em que enquanto o garoto é ingênuo, a cor que predomina ao redor é o verde (arbustos da cena inicial, paredes do colégio, brinquedos do pátio), mas que aos poucos vai sendo substituído por um azul claro (corredores do prédio em que vive, brinquedos do pátio começam a ficar mais azuis, a vã que leva as garotas a fim de se prostituirem), como se dialogasse com essa gangue/atmosfera que entra e transforma a vida dele. Jogando como os companheiros jogam, o protagonista começa a possuir desejos que no final se mostram contrários aos dos interesses do conjunto, fazendo-o tornar-se o monstro que se torna no final.
As cenas impactantes como as de sexo e a de aborto servem para enfatizar ainda mais essa dura realidade que o protagonista começa a enfrentar, e se a máquina mortífera que ele enfim se torna parece demais para as pretensões da gangue, saiba que o culpado não é o líder desta mesma gangue, ou o professor que não faz nada para mudar a realidade destes jovens. A culpa não é de ninguém! Todos esses indivíduos estão neste meio que os corrompeu, e que os fez se transformarem em monstros tão terríveis como a do protagonista. Eles podem não terem estourado como este garoto, mas a corrupção está dentro de cada um deles, e é essa corrupção que pode destruir qualquer indivíduo que a pessoa era anteriormente. O determinismo é cruel, e pode até parecer bem surreal, mas mesmo que não sirva como justificativa universal para todas as intenções de uma pessoa numa sociedade, ele é real; e real porque as desigualdades existem.
Obs.: (agora haverá spoilers de outros filmes, leia por conta e risco) comparando a outros filmes, pude traçar um panorama bem forte com a união de alguns dos temas de dois clássicos do cinema: um do próprio diretor que citei acima, Laranja Mecânica, e outro do Martin Scorsese, que seria o Taxi Driver (1976). Ambos mostram camadas menos privilegiadas da sociedade conflitando com outras maiores (em Taxi Driver na figura de Betsy e do político, e em Laranja Mecânica, com as casas mais abastadas que são sitiadas). Em Taxi Driver, vemos um homem que embora faça parte do mesmo meio que critica, tenta se adequar a um mundo 'mais civilizado' socialmente, mas que desprezado por esse outro contingente se revolta consigo mesmo e com tudo o que o enoja, estourando assim como o protagonista de A Gangue faz. O legal nisso é perceber que ambos são modificados pelo meio em que vivem, ambos são produto do desprezo de outras camadas, e que inconformados com a realidade que esse meio os levou a ter, explode, causando uma tragédia estrondosa (DETERMINISMO mais uma vez aí). Tanto o protagonista deste filme como Travis Bickle não são inicialmente pessoas más, o que eles passaram os fez da forma como acabam. Travis no final parece ter melhorado, já que volta a ser a pessoa calma e conformada que antes era, mas que no entanto, por continuar dentro desse mundo, nunca deixará de ser quem se tornou, da mesma forma que o garoto talvez seja preso, ou mesmo que não, continue abandonado pelo mundo, indo para locais tão fétidos quanto esse pelo qual passou. Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, vive numa sociedade em que os jovens, sem expectativa de futuro, vagam pelas cidades, causando medo e desestabilização pelos lugares em que os mais afortunados estão. Assim como ele e sua trupe, a gangue deste outro filme também tentará se adequar as barreiras que lhe foram impostas, que recorrendo a atos muitas vezes ilícitos, tenta sobreviver nesta sociedade. Outra semelhança vem do fato das instituições os desprezarem (os pais têm medo dele, a polícia o espanca, clínicas de reabilitação o trocam mais como cobaia do que humano, e os próprios amigos o acabam traindo), e que como disse acima, se não justificar os atos deles, pelo menos nos fazer entender uma parcela das suas ações. Diria que A Gangue é então uma mistura de Laranja Mecânica com Taxi Driver, pincelado com possibilidades estéticas e chocantes que eram impossíveis para o público da década de 70. O filme não é uma cópia dos outros dois, já que traz outros assuntos também pouco explorados, como a própria estética surda-muda, sem contar o fato do filme vir de um cinema com uma estética bem diferente do americano.
Caso você consiga superar a primeira dificuldade do filme, que se dá em relação ao ritmo dele, as imagens que virão a seguir conterão uma sensibilidade tamanha, que por si só, justificará a lentidão da obra (Não teríamos o mesmo tocante caso a velocidade do filme fosse qualquer senão esta). A Ilha dos Milharais (2014) começa com a imagem de um senhor sobre um barco, ilhado de água; e repare nesta palavra: ilhado. A partir desta imagem inicial, vemos que mesmo que fisicamente o velho (Ilyas Salman) só fique ilhado quando justamente pisa na ilha, a cena inicial mostra que não; o velho sempre esteve ilhado, e indo mais além, ficará ilhado até o final do filme, seja pelas águas no barco, seja na ilha, ou seja pelo Exército (num plano mais metafísico, já que vimos o velho e a garota (Mariam Buturishvili) sempre sufocados quando na presença destes).
Não é muito difícil perceber que a construção de uma vida com os recursos básicos para o plantio remetem ao amadurecimento da garota (isso está na própria sinopse do filme). Então, ao mesmo tempo que vemos o velho construindo as bases da casa, fortalecendo toda a estrutura, nos damos conta da perda da infantilidade da garota, que inicialmente se dá no esquecimento da figura da boneca, que logo no começo, não se desgarra da garota. Queria então usar este espaço para mostrar esse progresso, que como disse acima, é bem alongado, devido ao ritmo do filme; mas se pararmos para pensar, o amadurecimento de alguém nunca se deu a passos furtivos, sendo assim, a velocidade tem que ser sim deste jeito. Comparando a velocidade do começo do filme em relação a mais do meio para o fim, temos aparentemente um aumento da velocidade, que se for comparado ao amadurecimento da garota ou do plantio do milho faz muito sentido: enquanto criança, cada nova descoberta leva tempo, e é sempre tomada pelos pais de uma forma gloriosa. A criança precisa de mais tempo para entender as coisas. Com a idade, a criança vai se tornando um jovem, e nesta fase, o mundo parece infinito demais para tudo que ele quer almejar. Parece que repentinamente, tudo parece mais rápido, que cada novo passo, parece que encobre o passo feito logo anteriormente (digo isso, pois eu sou um jovem, e sinto exatamente tudo o que acabei de escrever). Da mesma forma, o plantio do milho será auto-suficiente após o velho ter dado todas as condições propícias para seu desenvolvimento. O preparo é demorado, mas após isso, o crescimento delas se dá por conta própria. O ritmo do filme é então metaforizado com a velocidade do crescimento das figuras do filme. Desta forma, a garota começa a amadurecer, deixa a boneca de lado, ao mesmo tempo que a casa vai ficando pronta; é como se fosse a preparação para um olhar diferente do mundo. Quando a garota está finalmente para o próximo passo, o primeiro movimento que ela faz ao chegar na ilha remete ao começo do filme com o velho, como se dialogasse que ela estaria pronta para enfrentar a vida assim como o velho estava ao se firmar na ilha: a cena que me refiro é a cena em que a câmera foca o velho pisando no solo. Minutos mais tarde, com essa prontidão da garota, o movimento será repetido com ela. Em outra momento mais adiante, quando a garota menstrua, vemos passar sutilmente uma borboleta voando, como se quisessem dizer que ela estava saindo deste casulo que a protegia, e conhecendo o mundo de verdade. Ao mesmo tempo, a plantação começa a florescer, assim como ela mesma. Estas últimas análises lembram uma outra coisa que é muito forte neste filme: a relação homem-natureza. Logo no começo do filme, temos as informações iniciais que contextualizam um pouco a situação que enfrentaremos. No final desta mensagem, temos uma frase que diz que o homem só conseguirá alcançar o que quer nesta ilhota, caso a natureza assim permita. Uma frase de efeito poderosa para o que veremos no decorrer de toda a obra. Já citei um pouco antes, a imagem da borboleta voando e da plantação florescendo, mas há ainda outras. Nesta mesma cena, a garota só menstrua após ver o sangue do alce morto. Ainda com o alce, a morte dele no meio do milharal prenuncia o soldado ferido (Irakli Samushia) que eles encontraram logo a seguir. Todas estas imagens parecem dizer que a natureza precisa passar por tal acontecimento, para então mexer com a natureza humana. É uma metáfora muito bonita, mas principalmente pelo fato de estarmos imersos em natureza (ilha). Assim como esta natureza opulenta vai mostrando sua face, a garota vai descobrindo sobre sua sexualidade. O velho até tenta segurar a garota para si, mas a imagem é clara: assim como o velho perde parte de sua plantação para chuva, uma torrente muito mais forte de amadurecimento vai tomando a garota do velho. O que acontece a seguir é bem ilustrativo: o velho faz uma barreira a fim de proteger sua plantação, assim como afugenta os 'voyeurs' da filha. No entanto, sabemos que o fim será derradeiro para ele, já que não conseguirá conter as chuvas que levarão toda sua plantação, assim como a garota está pronta para viver o mundo com estes novos olhos. É um fim triste para o velho, mas infelizmente este é o ciclo da vida. Como se não bastasse, a garota ainda leva os milhos da plantação como se estivesse metaforicamente colhendo os frutos que descobriu. Outra ideia bastante interessante também é com a figura do fugitivo, que em um momento aparece, e em outro mais rápido, foge, sem ao menos dar pistas de onde foi. Esta imagem mostra este ato fora da lei, que principia uma desvirtuação dos antigos preceitos. Desta forma, o velho quase perde tudo o que luta, ao proteger este fora da lei, assim como a garota quase é levada a paixão, sentimento que vem com este afloramento. Ambas as interpretações são quase efetivadas, se o fugitivo não tivesse sumido do jeito que fugiu, levando consigo toda esta aura problemática com ele. Como vocês podem perceber, o filme é maravilhoso em suas metáforas, mas nenhuma delas é mais bela que a que permeia todo a obra como uma assombração: o ciclo da vida. O ciclo da vida em interpretações mais pontuais pode ser o cultivo do milho, ou a afloração da garota, como disse várias vezes neste comentário, mas em aspectos mais abrangentes, vemos que a vida é em si uma grande luta, por descobertas, por sobrevivência e por sofrimentos. No final do filme, após a tormenta de água que leva tudo, vemos uma nova pessoa que virá se ilhar do mundo (ilhar no sentido de viver sua própria vida, independente da vida dos demais, já que a evolução/desenvolvimento de cada indivíduo toma ritmos diferentes) e amadurecer a partir disso. Encontrar o artefato deixado pelo anterior, e tomá-lo como um objeto de adoração/desconhecido (como o velho inicial faz o tempo todo) é de uma sutileza incrível, pois acentua ainda mais o significado de ciclo de vida infinito, que permeará a todos nós, seres humanos da Terra.
Estamos em plena ditadura militar, em que o ditador Franco consolidado no poder no período da Segunda Guerra Mundial lidera plena e integralmente. O que poderia ser então um filme mais diretamente militante contra este governo centralizador, se mostra de uma delicadeza impressionante, questionando a mesma realidade de uma forma bem diferente, sem deixar de ser inteligente. O filme trata de tal assunto como plano de fundo para os embates das personagens; em tempos de crise, é claro que todo o país estará mobilizado de forma a superá-la, mas isso não quer dizer que problemas pessoais deixam de existir. Não é porque a situação nacional não é das melhoras que as pessoas tenham que se abster de todos os seus sentimentos em prol da manutenção do Estado. O ponto central de Viver é Fácil com Olhos Fechados é então justamente este: tentar mostrar a inversão da importância dos problemas em cada indivíduo, deixando de ser político, e passando a ser preocupar primeiramente consigo mesmo. Isto não quer dizer que o filme não critique tudo o que foi a ditadura. Como eu mesmo disse, é somente uma abordagem diferente do assunto, no sentido de que o filme tenta mostrar um sentimento de normalidade diante de tal situação política. Desta forma, ele expõe que dá para se ter uma vida comum mesmo numa sociedade como aquela, que preferir se esconder com medo de qualquer passo que o Estado venha a dar, seja nada mais, nada menos do que se conformar com a situação. O filme, assim como No (2012) - filme que retrata a campanha política para a 'Não' legitimidade de Pinochet no poder do Chile. No entanto, diferentemente de outras campanhas, um publicitário utiliza-se de propostas totalmente de 'marketing' e propaganda que fizessem o povo tomar coragem a fim de ir às urnas acreditando num futuro melhor, sem medo -, tenta inserir uma ideia de confiança, de busca dos sonhos, trazendo um sentimento de vida que por si só motiva quaisquer movimentos, seja eles em cunho pessoal ou político. Dito isso, podemos ver que o que move inicialmente Antonio (Javier Cámara) a entrar nessa jornada pelas estradas é o sonho de trespassar, conquistar, ou somente almejar algo. Conhecer Lennon, independentemente de atravessar meia Espanha para conseguir isso, é o maior sonho dele. Este sentimento vai aos poucos sendo identificado também nas outras personagens (Belén (Natalia de Molina) vaga por aí desiludida com a condição dela, estando grávida prematuramente, mas também por estar cansada dos cortejos machistas que sofre diariamente. Juanjo (Francesc Colomer), por sua vez, desiludido com o desprezo com que o pai tem com ele, foge a fim de tentar despertar algo no pai que faça-o ceder em alguns quesitos), que embora primariamente pareçam inconformados, sem uma solução visível em mãos, acabam no final por entender que a luta é válida, e que mesmo que eles não consigam nada (Belén continuará grávida. O pai de Juanjo pode ter cedido ao vir buscar o filho, mas não necessariamente ele agirá normalmente dali em diante), só o fato de agir, já se prepondera sobre o conformismo. A ideia que o filme passa é que independente do seu sonho, tentar ir atrás dela, nunca é uma luta vã. Pode até parecer, mas e se por um acaso der certo, como deu para Antonio? O próprio título do filme traz esta mensagem: fechar os olhos faz tudo parecer mais fácil, mas se alienar nem sempre é a melhor solução. Sabendo que este título provém do próprio Lennon, podemos traçar outro panorama. A crise dos Beatles era real, fechar os olhos a ela é ser muito ignorante, no entanto, tentar contornar esse problema é diferente de virar as costas a ele. Contornar é achar modos de levar tal fato adiante de uma forma mais suportável, assim como acontece para os dois jovens. Eles contornam os problemas das suas vidas, mas como já disse anteriormente, lutar/tentar contornar é mais forte do que simplesmente se dar por vencido. Expandindo até um pouco mais, isso serve também para a própria Espanha de Franco: a situação é real, e muito mais que isso, difícil de ser superada, criar modos de se sentir humano, como a viagem em busca do sonho é uma forma de tentar contornar, de tentar tornar a vida mais suportável. Esta ideia cabe então para o filme de uma forma majestosa, ocorrendo em diversas camadas de análise, como exemplificado acima.
Outro retrato forte do filme é o das experiências, seja para Antonio (que consegue com sucesso conversar com seu maior ídolo), como para os jovens (que descobrem no outro coisas que nunca haviam visto antes. Belén vê um garoto ingênuo, desprovido de toda aquela falsa superioridade que os homens que ela viu quiseram passar a ela, como se ela fosse um objeto. Juanjo a trata com carinho, confiando a ela tudo o que qualquer outro homem que ela viu subjugaria. Juanjo, por sua vez, descobre em Belén a sexualidade, a paixão, um sentimento de cuidado (que inicialmente até não se sobressai tanto, como na cena em que ela o masturba de um modo totalmente desprovido de emoções, mas que aos poucos vai sendo desabrochado, ao perceber que ele não é um homem igual aos demais - que nem a mãe tem por ele, o que acontece porque o pai, "impondo" toda esta imponência, acaba por ofuscar e causar até um certo medo na mulher, fazendo com que ela não tenha um carinho tão forte quanto poderia ter pelo garoto -, acabando por ceder). Estas experiências podem ter sido um momento efêmero na vida de cada um deles, mas eles mostraram que este ideal que eles buscam existe sim, sendo então de enorme importância para a formação de cada uma das personagens depois da separação deles.
Quando disse que a crítica a política também existe neste filme, mesmo que de uma forma mais sutil, queria dizer que existem elementos inseridos no enredo que traçam todo um ideal sobre a ditadura, que acabam por final a reforçar ainda mais essa ideia que disse de viver a própria vida, de não se conformar. Quando as personagens no filme querem ouvir alguma música, muitas vezes escutamos um programa político, que só é uma única vez levado a sério pelas pessoas da ação, que é na mesa do almoço, quando o pai, policial, se atenta a tudo o que a propaganda diz. Em todos os outros momentos, o rádio é automaticamente substituído por outra atividade que faça naquela ideia supracitada, contornar tal realidade, a fim das personagens viverem a própria vida. Em outra cena quando Antonio pede para Juanjo limpar as mãos para mexer nos objetos que acabara de ganhar, Juanjo pega um jornal com uma figura de Franco estampada, amassando-a toda, e limpando a mão. Como se a sujeira da mão dele valesse mais que a figura de Franco. Todas essas imagens acabam por acentuar o desprezo e displicência com que as personagens tem com a realidade atual. Quero deixar mais uma vez bem claro, que eles não desconhecem a situação, afinal Antonio é um professor, sendo assim, estando sempre bem ligado com as atualidades do mundo, e Juanjo vive numa família em que o pai é altamente politizado. Eles sabem da realidade, só não querem se dar por vencidos diante delas. É a partir destes pequenos detalhes que o filme não só mostra esse desdém, como critica piamente a importância que Franco dava as suas ideias, que como disse, não passam de guardanapos para as mãos. Muitas vezes o passado deles acaba permeando a viagem, como na cena em que o garoto deficiente bate em Belén, como se remetesse a violência que sofre dos homens no dia-a-dia, ou a violência física que o camponês tem com Juanjo, lembrando o arredio do pai na casa. Essa realidade existe, não tem como fugirmos dela, mas como Antonio vai mostrando a eles: é preciso confrontá-las, como acontece após a destruição de toda a plantação do camponês (repare que a força aqui só é utilizada depois de eles já terem ido ao camponês uma vez, e não terem obtido o que queriam), ou com a forma com que o deficiente acaba por se portar no final do filme, de uma forma bem mais amável que antes, muito pela atenção (o confronto aqui é a mobilização, o cuidado) que os dois garotos dão a ele.
O título como eu disse acima serve metaforicamente para mostrar que esta luta deve existir, mas ele também mostra outra coisa que é altamente difundida pelo filme. Peço desculpas, mas eu não lembro exatamente o termo que eles usam, mas sinto que a ideia é bem similar a de um hipérbato (troca/inversão lógica dos termos numa frase) só que num cunho muito mais psicológico, no sentido de querer enfatizar tal ideia com essa inversão. No filme inteiro, Antonio fala que algumas frases funcionam deste modo, sempre pontuando este sentimento que elas querem causar. Metaforicamente, essa inversão pode indicar esse clamor pela mudança das coisas como elas estavam no momento, como se eles pedissem que abríssemos os olhos de uma forma diferente, e encarássemos esta luta também. Fazendo o enlace com o título: Viver é fácil com os olhos fechados, vemos que esta ideia de hipérbato (com as devidas modificações) também é válida, já que a forma usual seria: Viver com os olhos fechados é fácil. Seguindo então esta metáfora que disse, podemos reparar que o próprio título já é uma chamada por esta mudança, seja na forma semântica como analisamos ele (como eu disse alguns parágrafos acima), ou na forma dele, e por isso que este título é fantástico (a tradução é bem similar ao original, o que faz com que tiremos estas conclusões mais fidedignamente). Outro aspecto que indica este ar de sempre buscar os sonhos é a paleta de cores do filme, com um aspecto bem europeu mesmo, como a de um filme de Jean-Pierre Jeunet, de Le fabuleux destin d'Amélie Poulain (2001), que no caso deste filme transparece esse clima adorável e familiar que é viver mesmo estando na situação de uma ditadura. Por fim, a temática 'On the Road' por si só já traz essa sensação de auto-libertação, de procura de um significado de vida, de catarse, que é o que acaba por acontecer pelo fim com os dois jovens, principalmente.
A crítica ao sistema político vigente também está presente na quantidade de figuras miseráveis que encontramos pelo caminho, seja no garoto que prefere o dinheiro (sobrevivência) a bola (diversão, já que não há isso sem primeiro conseguir sobreviver), ou na própria vila no meio do nada. Esta desigualdade, assim como as figuras da ditadura no rádio ou no jornal pelo decorrer do filme, afirmam que o filme é si engajado, mas de uma forma mais sutil que só a olhos mais atentos ('abrindo mais os olhos') pode ser percebida. A quem sobreviveu até aqui, vocês já devem muito bem terem percebido que o filme é repleto de metáforas, que funciona mais uma vez, muito bem metaforicamente para a situação de uma ditadura. As verdades são suprimidas, escondidas, que só os bons olhos e os mais corajosos e indagadores para quebrar o bloqueio encontram, sendo assim o que não se pode faltar num filme que trata a ditadura de uma forma bem sutil são as metáforas (uma última metáfora interessante, juro que é a última, é a do estrangeirismo - na figura de Lennon - e a da costa da praia, como se essas coisas distantes, na borda do cotidiano, sejam essa meta física para se cumprir os sonhos idealizados, que aparentemente diante de um contexto político crítico, pareçam intangíveis).
O último aspecto que queria analisar antes da conclusão, já que já me estendi bastante são alguns aspectos técnicos. Quando Belén escapa do homem com o guarda-chuva, vemos logo depois uma cena em que começamos a ver um infinito de degraus de escada, não enxergando o fim. E na cena em que Belén acorda, Antonio a puxa para o Sol, e somos totalmente cegados por ele. O que o filme quer nos fazer sentir, é como se fôssemos mais um viajante desse 'On the Road'. Nós, ao mesmo tempo que vemos a situação das personagens, ao passar pelo que eles passam, somos impelidos a se sentir no local, principalmente com estas câmeras totalmente direcionadas a nós. Essa imersão nos mostra mais uma vez uma das coisas que mais repeti nessa crítica, e que juntamente com a questão de contornar a situação problemática deve sair bem clara para alguém que mergulhou no filme: será que só ao passarmos por essas experiências de uma forma tão profunda - acentuada pela imersão causada pelas câmeras - nos faz olhar com outros olhos a situação que passa ao nosso redor? Ou em outras palavras, estamos realmente com os olhos abertos para o que nos acontece ao redor, ou estamos tão inseguros de nós mesmos que preferimos nos fechar e ter nossa vida perfeitamente plana?
Imagino que quem tenha chego aqui, tenha visto primeiramente o Nosferatu (1922) original. Caso não tenha feito isto, digo que este comentário não terá somente spoilers do Nosferatu de Herzog, como também do de 1922. Leia sabendo disto.
Acho que desde quando começamos a ver nossos primeiros filmes de terror, logo tomamos conhecimento do que muitos dizem ser o primeiro grande clássico do gênero: Nosferatu; um filme que foi feito sob baixo orçamento, um tanto que às pressas, e ainda passando posteriormente por um grande processo pelos direitos autorais vindo da viúva de Bram Stoker, pelo livro Drácula. É sabido ainda que o filme foi impedido de circulação em várias regiões, requerendo-se até sua destruição, o que de fato aconteceu. Por sorte, sobraram algumas cópias com colecionadores que nos possibilitaram ver o filme hoje da mesma forma. Todo este histórico levanta a minha impressão: talvez os filmes que temos desta época considerados como clássicos atualmente não são os melhores, mas os que restaram. É meio singelo dizer isto, porque o filme tem seus pontos altos, mas nada tira o fato disto poder ser muito bem a verdade. Os vampiros, não necessariamente com este nome, foram desde muito cedo, fruto da imaginação de muitos indivíduos na tentativa de uma explicação para fenômenos intangíveis. A personificação de um problema, de um medo foi desde muito tempo uma forma de se conformar misticamente algo que assolava as sociedades; isso acontece com os vampiros, bichos-papões, botos, homem do saco e por aí vai. A transposição para o cinema destas figuras é desde cedo muito viável, já que criar cinematograficamente um corpo monstruoso assombraria muitos e muitas constantemente. Além disso, na época em que o primeiro Nosferatu fora feito, o mundo ainda estava se adequando às consequências decorrentes da Primeira Guerra Mundial. Dialogar com um monstro que represente toda a desgraça e sofrimento é mais do que cabível para toda a situação. É muito por conta disso que o final é feito do jeito que é, com a vitória da humanidade, como se dissessem que esse medo/vampiro/guerra que a todos nós angustiava, passou, que enfim conseguimos superar. Cinematograficamente, o filme deve ter espantado o público, já que possui cenas bem inusitadas, como a do aceleramento da câmera quando Nosferatu chega com a carruagem e, posteriormente, foge com os caixões, ou com os efeitos de sombra, que não mostrando a figura, assustam muito mais o espectador, como se tal sombra encobrisse a todos nós. A estética das cores representando cada período do dia serve atualmente para nos auxiliar a nos adequar ao tempo, já que inicialmente não havia nada disto para os telespectadores. O simples fato de uma vela recostando no canto, indicava a eles da época que o ambiente era noturno; isso funcionava muito bem já que as pessoas eram muito acostumadas com o teatro, explicando assim, as câmeras mais fixas (também porque elas eram muito pesadas), repleta de movimentos das personagens ao invés do das câmeras. O fato é, a forma como Nosferatu é retratado neste filme é muito mais caricatural, como o monstro que precisa ser destruído, como o mistério a ser resolvido, e como disse anteriormente, o combate a ele é muito bem vindo e condizível com a realidade pela qual as pessoas passavam, como se fosse um reconforto ver que pelo menos as pessoas da tela estavam bem.
Chegamos então ao ano de 1979, e Herzog decide fazer um 'remake' do filme. O que podia ter se provado uma inutilidade, se mostrou uma majestosa obra, julgo dizer que até melhor que o original. Primeiro, queria dizer que até a metade do filme, não vi quase diferenças entre o filme original e este, o que me deixou um pouco irritado, já que na minha concepção 'remake', 're' - 'make', significa refazer, trazer algo de novo à obra, algo que respeite a ideia original mas que abranja e abra novos horizontes de reflexão. Desta forma, a partir do meio do filme, as nuances vão sendo tão lindamente contornadas, que no final do filme, estava muito exaltado, pois tudo que poderia ser revitalizado e incorporado foi posto naquela tela. Inicialmente, vemos um conflito religião X ciência, muito mais forte que no filme original. Este conflito imerso principalmente na pessoa de Van Helsing (Walter Ladengast), remete a essa crendice que as pessoas depositavam na Igreja para assim como os vampiros, tentar se consolar e achar justificativa para as ações que aconteciam na Terra ("Foi Deus que quis"). Andando vários anos à frente, com uma ciência muito mais desenvolvida, o filme começa a questionar os dogmas da ciência. Será que ela acabou tomando um lugar tão importante na nossa sociedade, que assim como a religião não acabou se tornando um pouco obsoleta. Van Helsing tenta o decorrer de todo o filme explicar toda a situação a partir dela, como se fosse a verdade absoluta, e assim como muitos quebraram os preceitos da religião, Helsing se vê um tanto confuso com o leque de fatos à sua frente. Da mesma forma, o papel da mulher neste filme é mais forte (mesmo que no final ela tenha sido enganada brutalmente, mostrando essa ingenuidade dela), já que nesta obra, será ela a responsável por alavancar todas as pistas que levam ao momento derradeiro. Mas a questão mais bem trabalhada neste segundo filme é o fato de que a figura de Nosferatu é meramente representativa. O foco que o filme dá aos ratos é muitas vezes maior que a que dá a Nosferatu, nos fazendo questionar se realmente toda essa desgraça é causada pelo vampiro, ou se não é realmente fruto desta peste. Muito melhor arquitetado que no primeiro filme, Nosferatu é a personificação deste medo intrínseco em cada um, ao explicar o motivo de tanta miserabilidade. O que no primeiro filme mostra-se um tanto ingênuo, no segundo é incrível, já que o assassinato de Nosferatu/medo/causa da peste não leva a nada, já que um novo Nosferatu ressurge. A mensagem que o filme traça é de que matar a figura simbólica não mata a ideia. Eles podem ter matado esse mal, mas o problema/peste continua. Não demorará muito até que se crie outra figura que represente este mal, que no caso seria a de Jonathan (Bruno Ganz) transformado. Essa ideia de personificação do medo é então muito melhor pensada a fim de trazer esse mar de reflexões sobre o que seria um monstro; é também por esta ideia supracitada que Nosferatu é mais humano no segundo filme, pois a humanização de um ser sobrenatural assusta mais ainda do que o próprio monstro em si (é por isso que O Iluminado (1980) assusta demais, pois a transformação não necessariamente tem causa sobrenatural). Além disso, o azul que no filme anterior era usado para retratar a noite (que seria quando o Nosferatu ataca) permeia várias cenas em que o medo está à tona, como na da entrada do castelo, em que vemos várias luzes bem fantasmagóricas de tom azul. O medo é muito bem trabalhado narrativamente, assim como esteticamente, em que vemos por exemplo três cenas de um morcego voando com uma gradação deste medo adentrando o espaço da personagem. Na primeira, o vampiro só paira pelo quarto, na segunda, ele já se instala nas cortinas do quarto, e na última, o morcego é Nosferatu, com ele aos pés da cama da mulher para sugar-lhe o sangue. Imageticamente isso é perfeito para o vampiro que começa a atordoar nossa vida, mas metaforicamente é ainda melhor, já que o medo é algo que não vem à tona, ele vem sendo construído, até que chegamos no estopim.
Outras cenas que também são muito legais, são as cenas da praia. Na primeira vemos um casal unido, se recostando na figura do outro para ficar forte, se distanciando da câmera, como se eles não precisassem do amparo de ninguém; eles são auto-suficientes por si mesmos. É por isso que eles dão as costas à câmera e se distanciam. Logo depois, vemos Lucy (Isabelle Adjani) se aproximando da tela, como se estivesse totalmente perdida com o sumiço do marido, estando totalmente assolada. Ela então se aproxima da câmera como se vessemos o sofrimento estampado na cara dela, como se estivéssemos invadindo a privacidade e segurança dela. E por fim, a última cena em que isto acontece é quando o novo Nosferatu vai cavalgando num cavalo para qualquer lugar. Mais uma vez, a figura foi criada, o medo é preponderante, então ele é auto-suficiente por si só para seguir adiante, seguindo então a mesma analogia da primeira cena com o casal. Por último, eu gostaria de analisar a cena que considero como a melhor do filme: a cena em que Lucy vai andando no meio de uma multidão que dança até chegar num banquete (1:30:25 de filme). Enquanto andamos numa tomada do alto, vamos vendo como as pessoas parecem ser insignificantes diante de toda esta enfermidade. Aos poucos, vamos sendo trazidos para mais perto da situação, e o que parece altamente alegre, é na verdade bem sombrio, pelo simples fato de não estarmos ouvido a música que as pessoas estão dançando, e sim, uma bem pontuda. Lucy vai andando como se estivesse totalmente ausente a ação, e quando enfim chegamos na mesa, a primeira coisa que vemos não são as pessoas, mas sim os ratos; mostrar a quantidade de ratos, além de mostrar antes das próprias pessoas indicam o tom de superioridade que estes seres têm sobre os humanos. A frase do homem que serve o vinho a Lucy é incrível, dizendo para aproveitar todo o tempo que lhes resta, cortando para um quadro de toda a mesa, como se fosse um almoço normal de uma tarde de domingo. Logo após isso, somos cortados novamente aos ratos (superioridade novamente), e quando voltamos, todas as pessoas na mesa sumiram. Os ratos conseguiram se sobrepor com sucesso sobre os humanos, os erradicando. Esta cena é incrível pois não só é muito bem composta, como também reforça a ideia de que talvez o monstro que todos estejam enfrentando não seja Nosferatu, mas sim a praga.
Por conta disto tudo, acho o segundo filme superior ao primeiro. Sei que o primeiro foi uma inovação magnífica para a época, e que o intervalo de tempo entre a tecnologia e desenvolvimento da linguagem cinematográfica dos dois filmes foi enorme, mas nada disso tira o fato da complexidade ser muito maior no segundo filme. Atualmente, o vampiro já foi domesticado, no sentido, de ele não representar aquele ser monstruoso que ataca sem avisar, mas sim de ser um ser charmoso que aos poucos vai demonstrando todo esse medo que está em cada um de nós. Nos dias de hoje, o vampiro é mais um ser que assusta psicologicamente do que pela sua monstruosidade. Fazer então o que Herzog faz, ao questionar o vigor deste ser nos fazendo duvidar a causa de todos os problemas e pânicos, ele faz nada mais, nada menos que esta domesticação do animal, dando este caráter muito mais humanizado, que ao meu ver é muito mais assustador. E é por essas e outras, que os vampiros de Crepúsculo (2008), são muito bem vampiros, já que criados nesta estética, tentam se aproximar ainda mais da humanização total, tendo como ideia inicial assustar bem mais ao trazer o animal em cada um.
Bônus: a cena em que Van Helsing vai preso é a cena mais engraçada do filme, parece um pouco Dr. Fantástico (1964), com a lógica do absurdo. É demais.
Assim como em Círculo de Fogo (2013), em que saí extasiado pela quantidade de efeitos especiais jogados na sua cara, ou em Lanterna Verde (2011), que me fez chorar de ver uma adaptação tão, mas tão horrível, O Medo é um título forte, angustiante, mas real. Não há um único momento do filme em que nos sintamos relaxados, e isso não é somente decorrente da narrativa, mas também pela forma técnica que o filme costura toda a trama. Logo na primeira cena, vemos uma câmera totalmente desfocada, pegando objetos disformes, enquanto gira por todo um ambiente, que parece ser um quarto de uma residência. Com o decorrer da cena, vamos vendo enquadramentos sempre bem incisivos, sempre pegando parcelas bem específicas dos locais e ocupando a tela inteira com elas; isso acontece com a escova de dente, o despertador, as pantufas, até mesmo com o rosto, mais especificamente, os olhos do menino. Estes enquadramentos parecem estar nos mostrando que cada objeto da cena é testemunha de algum acontecimento, de que cada novo ângulo do quarto esconde mistérios que estão aquém do que as pessoas que não moram na casa sabem, e que portanto, nós, como telespectadores, estamos invadindo esta privacidade, no entanto, de um modo bem cauteloso, o que logo nos indica que estamos num ambiente de grande perigo. A seguir pela trilha sonora, sempre meio dissonante, como se houvesse um ruído contínuo a cada novo passo que dávamos para descobrir tal mistério. Estando impotentes do modo que estamos, muitas vezes, a figura que posteriormente descobriremos ser o pai da família, se distancia da câmera, se desfocando, criando a sensação de um poder pungente que transborda daquele ser. Toda esta tensão é hermeticamente calculada, para que nós, assim como o garoto que vemos, sinta-se retraído sob as cobertas de nossa cama, para aumentar ainda mais essa sensação de impotência que permeia todos os indivíduos da casa. Toda essa aura só será quebrada quando finalmente, o homem em questão sai da casa; é só assim que começamos a ver corpos completos e câmeras mais abertas. Esta cena que abre o filme é uma cena incisiva tanto para as personagens da cena quanto para nós, telespectadores, o que denota uma certa aproximação psicológica que o filme quer que também sintamos, fazendo isso magistralmente.
Vamos sendo, pouco a pouco, inseridos na vida da família, a entender a angústia que cada indivíduo passa, e principalmente, a sentir o medo de cada um; o medo que a qualquer momento pode se tornar realidade, e sermos incapazes de fazer qualquer coisa. Vamos conhecendo então a figura aterradora do pai (Ramon Madaula), que por poucas vezes aparece no filme, fazendo com que estas poucas sejam o gatilho para um mundo de imaginações sobre a voraz personalidade deste. A soberba inicial é muito pior narrativamente que a violência, pois ela faz com que temamos coisas ainda piores por vir (isso funciona muito bem num filme de terror também: até o ponto em que não vemos a entidade, o monstro, a coisa que nos aflige, o filme é muito mais assustador, pois todo o trabalho vem da nossa imaginação). Sabemos que este cara, um homem aparentemente bem-sucedido, sem problemas financeiros bate em sua família. Mas por quê? A resposta poderia ser: "Porque ele bebe." ou talvez um, "Porque ele teve um passado obscuro." O que eu diria, seria algo mais para um: "Não importa." O filme mesmo não mostra um passado deste homem, e isso não é mesmo importante, pelo contrário, é até um ponto positivo para o filme. Se o filme tivesse mostrado que num passado, este pai que agora bate teve problemas faria com que criássemos um sentimento de pena, o que é totalmente inválido para a situação. O pai bate na família e ponto, não se deve criar sentimentalismo nenhum para este ser horrendo. Ao mesmo tempo que vemos esta figura mandatória do pai, vemos uma mãe (Roser Camí) totalmente indefesa, conformada, mas que no fundo, tem uma luz de desprendimento, que é acesa quando o filho (Igor Szpakowski) se mostra disposto a fugir. Ela se sente impotente financeira e psicologicamente para fugir do marido, já que trabalha num emprego de muito menos valor, em termos rentáveis, que o dele, e se sente totalmente perdida para como levar a vida adiante. A filha, por sua vez, inocente, reflete algumas das ações que sofre em casa na escola, batendo posteriormente em colegas que a perturbam. E por fim, o filho, talvez a pessoa mais insegura da trama, até mais que a própria mãe, tenta a partir dos trajes se mostrar um jovem normal, descolado, dono de seu próprio rumo, mas que no fundo, esconde uma angústia que tem vergonha ou receio de trazer à tona. Ele será o impulsionador de alguma fuga, mas é ao mesmo tempo, confuso do que fazer em relação a própria vida, não sabendo muito bem o que sente por Laura, se deve se desvencilhar dela para ajudar a família mais obstinadamente, ou se deve semear tal relacionamento como forma de esquecimento do que ocorre em casa e um momento de maior curtição. Sempre muito inseguro, Manel se questiona se um dia se tornaria igual ao pai, ao mesmo tempo que tenta planejar uma forma de fuga da família. Estes sofrimentos são sempre compartilhados de uma forma bem crua, em que o diretor se alonga nas cenas de simplesmente andar, como se nem o andar fosse algo fácil para a vida destas pessoas; há sempre essa brincadeira com os focos da câmera, principalmente nestas cenas do andar, remetendo a este perigo sempre à espreita. No entanto, o perigo é máximo quando nos deparamos com as cenas em que as personagens olham diretamente para a câmera. Para começar, não é de praxe que personagens olhem fixamente à câmera, já que isso estaria quebrando a ideia de fantasia e da divisão de mundos (o nosso e o das personagens) do cinema. Mas neste filme, a ideia é totalmente diferente; este olhar penetrante é como se fosse um aviso: "Olha, veja o que está acontecendo com a gente? O que fazer?", mas naquela ideia de aproximação da personagem e do telespectador, a mensagem é bem mais forte. É como se ela dissesse que casos como este acontecem diariamente, e pode estar muito bem do nosso lado, sem nos darmos conta. Este olhar é sim bem inesperado, mas envolve toda essa mensagem que nos aflige ainda mais do que um simples olhar na câmera.
Manel quer uma vida melhor para ele e sua família, no entanto, ele não sabe que vida é esta, se baseando então em seus amigos mais próximos. Eles podem ser figuras secundárias em toda trama, mas são elas as grandes figuras que vão mostrar esta vida que Manel sempre almejou. Deste modo, Manel vê que o pai de seu amigo o traz diariamente à escola, vê que um cuidado por outra pessoa ainda existe (o que é mostrado na figura da namorada, que mesmo tendo a atenção de um novo pretendente, ainda possui o sentimento antigo por ele - ela, por sua vez, é uma personagem um tanto quanto interessante, já que em duas tomadas, imersas num filtro bem azulado, ela se vê andando numa total melancolia, ao visitar o cemitério com o amigo dele, ou ao andar por um campado até a quadra em que Manel está jogando basquete; nesta cena ainda, um palpitar do coração que cada vez mais aumenta, se confunde com o som da bola de basquete quicando, num 'matching' perfeito. Você deve estar se perguntando: "Mas que raios são essas cenas?" A minha melhor resposta seria que elas são sonhos (muito também pelo ambiente mais azulado, em situações desconexas com a linearidade do filme). Sonhos que Manel tem sobre Laura, acentuando ainda mais este conflito entre sentimento e dever com a família na cabeça dele). Estes valores serão então de extrema importância para as atitudes que Manel tomará com o decorrer do filme.
Uma cena bem interessante e triste é quando Coral (Alícia Falcó) mostra o comunicado da diretoria e questiona a autoridade da mãe. Ver-se uma figura impotente até mesmo para os filhos, o que aparentemente é a única fonte de vivacidade que a mãe tira para continuar a viver, talvez a inspire um pouco para tomar alguma atitude junto com o filho. O que alguns podem ter se inconformado no decorrer do filme com eu descrevendo esta cena, é a forma como a mulher é tratada de um modo tão frágil diante dessa figura "paterna" (a.k.a. machista, a.k.a. opressora, a.k.a. ignóbil) nesta obra. Eu acho que mais do que tentar mostrar uma revira-volta da figura feminina, o filme tenta mostrar como ainda hoje, mulheres ainda são tratadas de forma inferior pelos homens. O quadro que o filme mostra é sim para se criar revolta diante dessa figura patriarcal, mas serve mais como ilustração de um caso do que a força pungente da mulher. Isso serve do mesmo modo para o desprezo que alguns adultos tem para com os jovens, tratando-os como levianos, ignorantes, que é retratado na figura de Manel (que não tem autoridade para receber um comunicado de sua própria irmã, que não tem pé de igualdade com os pais). Da mesma forma que na criação do sentimento do tensão, discutida acima, o sentimento de revolta, de repulsa é criado muito mais fortemente diante da situação apresentada, que tem seu estopim na cena final.
A cena final é de uma beleza técnica, principalmente sonora, estrondosa, sendo criada de um simples artifício: mudança de ponto de vista. Ao retratar toda a discussão e violência a partir do ponto de vista do garoto exacerba ainda mais toda a brutalidade da cena. Não vemos violência física sanguinolenta, como veríamos num filme que preza mais pela ação do que pela mensagem (não estou dizendo que este tipo de filme é pior que o outro, são somente modos diferentes de abordar um tema), mas sim um deslocamento, uma tensão e, principalmente, uma impotência gigantesca. Não vemos, ouvimos, e de longe. A cara geral de espanto de Manel decorrente dos gritos e estilhaços nos causa um enrijecimento intenso, e mais uma vez aqui, a imaginação trabalha. Se tivéssemos a cena vívida do espancamento, saberíamos exatamente o que estava acontecendo, mas não temos, o que nos faz imaginar algo horripilante que é completo com a imagem machucada da mãe. Só para terminar a análise do som, eles são tão bem construídos para criar essa imagem em nossas cabeças, que quando o pai começa a se aproximar do quarto de Manel, imaginamos que ele virá enfurecido, o que quebra toda nossa expectativa, mas que é sem dúvida, muito angustiante. Quando Manel desce com a irmã, e o pai mostra a arma que carrega até nos espantamos, já que pensamos o que ganharia um homem ao matar toda sua família, o que pelo contrário, até perderia, já que vizinhos poderiam ouvir os tiros, levando-o para a prisão; mas mais uma vez, o que acontece depois na história é desimportante para a mensagem. Após todo o descarregamento dos cartuchos, voltamos àquela cena inicial do filme que percorremos vários objetos da casa desfocados, e mais do que isso, o som do acionamento do gatilho como aquele som dissonante de fundo, mostrando que esse perigo que tanto se mostrava, enfim se completou. Mas o mais interessante nesta cena não é o aspecto técnico, mas sim o narrativo: Por quê o filme termina deste jeito, e não com uma vitória da família, ou com a mudança de personalidade do marido? A ideia do filme, como já disse anteriormente, não é mostrar uma superação, mas sim o quadro de um caso de que é muito real em nosso cotidiano, infelizmente. Um cara desses não precisa de motivo para bater na família, ele só bate. Esse perigo ronda toda a família, e caso ela não faça algo para tentar contorná-lo, esse perigo pode se tornar muito bem uma realidade, de uma forma que não possamos mais controlá-lo. Esse filme tem uma mensagem então muito mais de alerta, porque ele mostra justamente o pior infortúnio que possa vir a acontecer caso ele não seja ultrapassado. Essa mensagem é muito mais forte que uma de superação, pois mostra pela catástrofe algo que pode ser contornado. É claro que isso está longe de ser fácil, e que qualquer auxílio é de grande favor para a vida dessas pessoas, nesta sociedade que continua a ser tão machista como é. O filme mostra que mesmo depois de alcançada, a primeira medida a ser tomada a fim de se livrar deste "modo de vida" (já que não é uma escolha de como viver) é justamente a do combate ao medo (como o próprio título diz).
Whiplash: Em Busca da Perfeição
4.4 4,1K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Não tem como ver esse filme e não relacionar Terence Fletcher (J. K. Simmons) com o sargento Hartman (R. Lee Ermey) de Nascido para Matar (1987). O jeito bruto, visceral e inconsequente de agir, de uma forma que acaba até mesmo desumanizando seus pupilos. O olhar sempre fixo em cada um dos músicos, quando não para a própria tela (embora eu não me recorde de ele ter olhado diretamente para a câmera, sempre há alguma inclinação). Os estouros frequentes, o linguajar preconceituoso e calunioso. Tudo, cada movimento, cada respiração nos faz odiar Fletcher, assim como Hartman, da cabeça aos pés. Assim que o filme começa, temos um quadro um tanto quanto disforme do personagem que viríamos a acompanhar o filme inteiro. A câmera não parecendo enquadrá-lo direito, começa a se aproximar de Neiman (Miles Teller) conforme a batida da percussão se acentua. A situação é tão estranha que parece que estamos espiando o que o jovem está fazendo, mas de uma forma analítica, já que a aproximação flui de um jeito leve. O que de fato descobrimos é que esta câmera que acompanhávamos é na verdade o próprio Fletcher observando o esforço do garoto, o que se pegarmos o filme no geral faz muito sentido, já que este é justamente o cara que analisará minuciosamente cada batida de Neiman. Além disso, no final da cena, Fletcher acaba voltando à sala, o que nos faz imaginar que ele dará alguma chance a Neiman, o que é totalmente quebrado pelo simples fato de ele ter retornado para pegar a jaqueta. Estas quebras de expectativas serão marcas que ocorrerão em todo o filme também. Sendo assim, este breve início não só nos faz entrar no clima do filme, como também nos dá pinceladas importantes do que o filme se tornará.
O divertido no decorrer de todo o filme é ver cenas em que tudo ocorre bem, seguidas de outra em que nada dá certo, como se fosse uma música, com seus altos e baixos. Dessa forma, vemos Neiman entrando para a companhia, saindo com Nicole (Melissa Benoist, que em seus poucos momentos de filme, consegue dar uma vivacidade meiga a um protagonista obstinado), seguido de total sufoco para conseguir acertar o que Fletcher quer, e preferindo se afastar da mesma Nicole para seguir adiante. Depois ele conseguindo retomar o posto de primeiro baterista e ser convocado para o concurso, mas que acaba tomando medidas desproporcionais no simples fato de conseguir chegar até o lugar. Até o fim do filme está mesma lógica se repetirá várias e várias vezes, assim como vimos no começo do filme quando Fletcher retorna para pegar a jaqueta. Essas pulsões de energias, assimilando com as batidas da bateria podem lembrar algo muito importante para todos nós: o coração. O coração bate forte quando encontramos uma pessoa que de fato nos sintamos atraídos, o coração bate fraco quando estamos num jantar familiar, o coração bate forte quando estamos no primeiro dia de aula, o coração bate fraco quando estamos andando pela rua, o coração bate forte quando somos postos diante de uma condição desumana de esforço, várias e várias vezes. Whiplash (2014) é um filme sobre pulsões, um filme que mostra os altos e baixos da vida de um músico, mas que poderia ser muito bem a de um escritor (como a do pai de Neiman), ou a de um diretor (como a do próprio diretor deste filme - Damien Chazelle). Essas pulsões de fato nos fazem vivos, pois imagine uma vida constante, sem nada a se surpreender ou temer. Isso só tiraria basicamente o nosso princípio humano, e a escolha da história ser a de um músico foi muito feliz, já que no cinema além do visual, o som é, sem dúvida, um dos maiores amplificadores de emoções (vide um filme de terror ou ação com as diversas explosões de sons). Com esta escolha ficamos ainda mais imersos nestas pulsões da vida, fazendo com que nós também entremos mais profundamente no filme.
Ao mesmo tempo que temos essas pulsões, temos um outro processo totalmente contraditório que citei lá acima: a desumanização de Neiman. No começo do filme, vemos um cara que não sabe muito bem se relacionar visualmente com outras pessoas, tímido, choroso, mas obstinado a conseguir ser o melhor. A partir do momento que ele entra em contato com Fletcher, Neiman começa a se tornar um Fletcher para as pessoas ao seu redor, tornando-se um cara bruto à mesa de família, rebaixando seus irmãos em represália ao que dizem de sua profissão. Neiman algumas vezes se utiliza do mesmo linguajar que Fletcher usava com ele para seus companheiros de companhia. A pessoa ingênua que Neiman se perde, a ponto de ele ser o único dos três, na cena em que Fletcher os põe incessavelmente à prova, raivoso a tocar a bateria, enquanto os outros já submissos a realidade, tocavam com olhares ausentes a situação. Assim como Nascido para Matar,
em que a desumanização de Pyle o leva a matar Hartman e posteriormente a se suicidar, se assemelhando as brutalidades que este cometia com aquele
Obs.: este foi um dos trailers mais incríveis que eu vi ano passado. Mesmo se vocês já viram o filme, confiram: https://www.youtube.com/watch?v=BjyCGE32Xdo
Tangerinas
4.3 243SPOILER DETECTED!!!!
Estar numa situação de guerra nunca é algo agradável. Independente de onde estamos, a guerra sempre funciona da mesma forma, dois lados combatendo entre si até a morte de um deles. Todo o patriotismo, honra e companheirismo são postos à prova. Cada combatente é incentivado a aniquilar o maior número de vidas em prol de uma melhor promoção futura, de melhor prestígio social. O estado te toma como um herói, um salvador da nação. No entanto, por baixo de todo esse brilhantismo, reside a dor, o sofrimento, os horrores da guerra. A guerra não é nada daquele glamour todo que os governantes querem denotar. São homens, pais, irmãos e filhos lutando lado a lado por interesses que muitas vezes não são os seus contra outros homens, pais, irmãos e filhos. A destruição se alastra, os resultados da guerra, embora favoráveis ao estado são de total rebaixamento mental. Ex-combatentes ficam loucos, traumatizados com toda a experiência. É neste contexto que Tangerines (2013) se baseia. Logo nos somos apresentados a um velho senhor, de nome Ivo (Lembit Ulfsak) que diante de tanta miséria preferiu permanecer na terra por um motivo desconhecido. Já seu amigo, Margus (Elmo Nüganen) tenta com suas últimas forças lucrar um pouco na condição já desastrosa em que se encontra. Juntos, os dois passarão por experiências que irão muito além do que simplesmente colher tangerinas e montar caixas. Estamos poucos anos após 1992, considerando a idade dos dois senhores, é muito possível que os mesmos já tenham combatido na Segunda Guerra Mundial. Reviver todos os horrores passados na guerra não deve ser algo prazeroso para um veterano de guerra. Tudo isto é só suposição, mas este fato poderia muito bem explicar a fuga imediata da guerra, mas Ivo e Margus permaneceram. Isso pode explicar também a receptividade com que tiveram com os feridos, imaginando anos atrás, eles na mesma situação. O fato é que independente disto, alguma mágoa enorme se apoderou de Ivo, de forma que ele se mantivesse nesta terra, resgatando os dois combatentes.
É com o desenrolar do filme, que vemos que existem embates em diversas áreas entre os dois resgatados: orgulho (ambos perderam irmãos nesta micro-guerra), cultural (quando Ahmed (Giorgi Nakashidze) cita a música ou mesmo a comida), religioso (cristão e muçulmano). No entanto, ambos possuem algo que até mesmo espanta Margus: honra. A honra que os impede de matar um ao outro dentro da casa de seu salvador. Se formos reparar, honra é um ato muito recorrente em obras de guerra, mesmo que ela seja uma palavra muito perigosa. Utilizando-se deste discurso, os estados motivaram milhares de combatentes a lutar pela sua nação - a honra de defender seu território -, ao mesmo tempo que a honra seja a única barreira que impede o homem de soltar seu espírito animal, como no caso de Ahmed e Niko (Misha Meskhi). Essa dualidade da honra é importante neste filme, pois como disse acima, agora transcrevendo para o filme, ela motivou os dois lados a se digladiarem, ao mesmo tempo que vai ampliando horizontes entre Ahmed e Ivo, a ponto dos dois se tornarem companheiros na "mesma guerra". Um detalhe interessante que permeia todo o filme é a tensão retratada nele de uma forma sutil: em diversos momentos do filme, temos várias cenas que parecem quebrar a tensão do momento. Citarei três: quando Ahmed diz que assim que Niko sair de casa, ele o matará, se ele colocar a cabeça para fora ele o matará, Ivo o pergunta se ele pelo menos pode mijar para fora de casa. Em outro momento, quando todos perguntam onde está Ivo, e este responde que está mijando, fazendo todos caírem na gargalhada. E uma última vez, quando Ivo descobre que Niko era um ator de uma companhia de teatro, e começando a imitar Ahmed sério aplaudindo Niko da plateia, os dois caem na gargalhada também. Mas se vocês se lembrarem um pouco melhor, se lembrarão que segundos depois de cada uma destas cenas, algo tenso acontece. Na primeira, Niko arremessa o copo em Ahmed. No segundo momento, bombas acertam a casa de Margus. E no último, aparecem os chechenos que levará à morte de Niko e Margus. Parece que o cômico, mesmo que presente no filme, é sempre sufocado pelo estado de guerra, como se estivesse sempre para alertar aonde estavam. E isso é genial, já que o cômico, o rir, um detalhe que nos faz mais humanos é sempre efêmero; a guerra suprime. Esta ideia é metaforicamente uma representação do próprio sufocamento das pessoas num estado como este. Só para completar a ideia de tensão, temos um detalhe técnico, também sutil, que evidencia esta sensação. Na grande maioria do filme, mesmo quando estamos em cena em que Ivo vai simplesmente andar pelo campo de tangerinas, a câmera sempre o acompanha deslizando para os lados. A câmera nunca está estática, focando as personagens da cena. O mais divertido é que esse leve deslize sempre vai para o lado em que as personagens logo após acabarem a cena vão se movimentar, o que dá um dinamismo, e uma melhor movimentação da câmera, dando movimentos mais bruscos só quando necessário (o que é algo que eu particularmente não gosto em Guerra ao Terror (2008), em que temos a câmera sempre tremendo, tirando a sensação que poderia ser mais enfática em cenas mais tensas, caso tremesse somente nestas cenas em específico).
Citei a pouco que Niko era um ator antes da guerra, e que Ahmed bateria palmas de um jeito mecânico. Nisso, podemos tirar algumas ideias dos dois combatentes no estado psicológico. Aparentemente, Niko é mais alegre, mais voltado às artes, com mais cultura (detalhe que ele sempre deixará claro entre eles: que Ahmed não lê), enquanto, Ahmed leva a vida de um jeito mais sério, mais rígido. Estes detalhes são novamente, só suposições, mas a ideia é clara, a imagem que temos tanto de Ahmed quanto de Niko no filme é muito semelhante; homens frios, numa situação delicada. Disso tiramos mais uma ideia da guerra: esta pasteuriza os indivíduos, tira a individualidade deles. São como disse acima, homens, pais, irmãos e filhos lutando contra outros homens, pais, irmãos e filhos. Não vemos a individualidade aqui, e de fato é isso que acontece na guerra: os homens não estão lutando por João, Lucas ou Pedro, eles lutam pela nação, um coletivo, se ausentando de seu indivíduo. A fala de Ahmed evidencia isso ainda mais, já que ele sempre fala "nós" ao invés de "eu acho isso" ("Nós costumamos respeitar os mais velhos", "Nós respeitamos as outras crenças").
Uma última analogia interessante a se fazer que para mim é a mais forte, se dá no contraste de duas cenas: a primeira é aquela em que um grupo de chechenos vêm à casa de Ivo para cumprimentar tanto Ahmed, quanto Niko (ou seja, ele teve que se disfarçar), com a cena em que outros chechenos não acreditam que Ahmed é também outro checheno, causando todas as seguintes mortes. Essas duas cenas ilustram uma ideia que Kubrick em Medo e Desejo (1953) já havia muito bem pontuado (embora ele repudie o filme, vai saber por quê): a ideia de que combatentes lutam com seus similares, de uma forma em que um nem sabe se o outro é de fato amigo, ou inimigo. Nestas duas cenas de Tangerines, vemos essa mesma ideia muito bem demarcada: no primeiro caso, o georgiano se passa por um checheno e tudo fica bem. Na outra, cria-se um desentendimento entre dois indivíduos da mesma nação, causando todo pandemônio. Ivo, pontua isso no final do filme: "Faz diferença quem ataca quem?" Numa guerra, tudo é estrondoso, é horrível, mas mais do que tudo, babaca, para não se usar termo pior. Os horrores são tantos, que ninguém sabe quem luta com quem e por o que. A tristeza é tanta que a glória que alguns tentam achar não passa perto da devastação. Tangerines é sobre isso, o terror da guerra até mesmo num vilarejo minúsculo (perceba que em nenhum momento saímos dessa região para de fato ver o que acontece fora. O externo chega a esta vila - as bombas, os combatentes, os carros), e se pararmos para pensar que só neste lugar tivemos tudo isso, eu nem sei se quero imaginar o que está para fora disto.
Por fim, por que o filme se chamar Tangerines (mexericas, na tradução)? Como Margus mesmo diz, é a luta contra suas mexericas. Faz de fato diferença se a denominação é "Guerra das Mexericas", "Guerra pela Abecásia" ou "Guerra ao Terror"? Eu acho que não.
Obs.: agora totalmente fora do universo deste filme: por alguma razão eu fiquei o filme inteiro lembrando de O Poderoso Chefão. Sei lá, mexericas, laranjas, mortes, devaneios.
Sin City: A Cidade do Pecado
3.8 1,3K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Enquanto via o filme, vários diretores passavam pela minha mente, além dos já creditados ao filme: Robert Rodriguez, Quentin Tarantino, Christopher Nolan e Stanley Kubrick. Queria então fazer a abordagem deste comentário baseado nos diretores citados. Os dois primeiros, por serem colaboradores do projeto, deixam sua marca bem clara neste filme. Rodriguez e sua tara por mulheres ultra-sensuais, repleta de armas e quinquilharias mortais e Tarantino com aquele sanguinolência típica, além de termos cenas com Miho (Devon Aoki) bem parecidas com as presentes em Kill Bill (sem contar que a espada é a mesma deste filme). Quando estava no final do segmento "That Yellow Bastard", logo me lembrei de uma característica que estava presenciando no mesmo momento, e que Nolan utiliza em todos seus filmes, como A Origem (2010), Interestelar (2014) e a Trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012): diálogos impactantes que são retomados exatamente da mesma forma em momentos mais finais do filme. Se você não concorda com isso, ou não se lembra, vou elencar alguns deles:
- "An old man dies. A young woman lives. A fair trade. I love you, Nancy."
- "I take away his weapon. Both of them."
- "That there is one damn fine coat you're wearin'."
- "She smells like angels ought to smell, the perfect woman... the Goddess. Goldie."
Esta é uma estratégia bem interessante a fim de capturar o interesse do espectador, atento ao fato de já ter ouvido a mesma frase.
Por fim, temos o último nome: Stanley Kubrick. Se achar uma característica de Nolan neste filme já foi difícil, prepare-se para esta. Kubrick, como vocês talvez já devam saber, foi um cara visionário e perfeccionista, que nos presenteou com uma série de belas obras, tais como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) ou Nascido para Matar (1987). Kubrick tirou o máximo de cada gênero, de cada história, criando várias realidades bem diferentes. No entanto, sendo o cara estupendo que era, Kubrick inseriu vários temas recorrentes em sua obra, que tive o prazer de presenciar em Sin City (2005). O tema a que me refiro é justamente um dos pontos mais importantes do filme: a relação entre amor e morte, começando por alguns títulos de seus filmes (que aqui traduzirei literalmente), Fear and Desire (Medo e Desejo), Killer's Kiss (O beijo do assassino), Dr. Strangelove (Dr. Estranho-amor). (As próximas marcações de spoiler se referem aos exemplos deste tema em alguns filmes dele).
A Morte Passou por Perto (1955):
o protagonista conta toda a epopeia por qual passou, matando vários integrantes de uma máfia a fim de salvar sua amada.
os planos do roubo são totalmente desmascarados quando um dos assaltantes conta a sua amada (ou o que pensava ser). Este será o motivo de toda a chacina no final do filme.
a paixão de Humbert por Lolita o levará a matar Quilty.
o general Jack D. Ripper decide exterminar o inimigo, justificando que este polui os fluidos corporais.
Alex DeLarge dança com a Mulher dos Gatos num quarto repleto de imagens sexuais, que será por fim, finalizado com a morte da mesma.
A Máfia Nunca Perdoa
3.7 20SPOILER DETECTED!!!!
A crítica racial deste filme vai muito além do que simplesmente violência desferida contra brancos em represália a feita em negros. A profundidade do filme é muito maior do que colocar uma protagonista negra femme-fatale que assassina todos os homens com que deita, com direito a exposição contínua de seios enormes. Across 110th Street (1972) - não gosto do título em português, já que no título em inglês, a crítica fica ainda maior. A rua 110th é famosa por dividir o Central Park do Harlem. 'Across' então é como se remetesse ao que viesse depois desta rua, como se mostrasse a obsolência que estas pessoas (negras) sofrem do resto da cidade - possui sim vários dos temas do blaxpoitation (a trilha sonora de artistas do soul negro, personagens negros fortes em contrapartida aos brancos racistas, drogas e prostituição), embora mais sutis, deixando mais espaço para a crítica à sociedade racista que existia (e ainda existe). Começamos então o filme com uma confusão de raças e seus interesses. Brancos vão até o Harlem fazer negócios com negros, até outros negros não simpatizantes aparecem e realizarem uma chacina no local, levando todo o dinheiro em cheque. Somos então levados à figura de um policial (Anthony Quinn), que inicialmente parece controlar o caso, apenas a dar tempo do real tenente tomar rédeas da situação: Pope (Yaphet Kotto). Frank Mattelli não se conforma com isso. Não se conforma talvez por ter que subordinar a um negro, ou simplesmente por estar perdendo seu posto. Inicialmente não sabemos; inicialmente. Sem contar o agravante da idade, o caso se localiza no Harlem, ou seja, área negra. Politicamente é melhor colocar um negro na frente do caso do que um branco, o que irrita ainda mais Mattelli ("Fuck the politics"). Aqui temos o primeiro indício da personalidade de Mattelli: interesseiro. Essa mesma política fez vários anos antes com que negros fossem ainda mais segregados do que já eram socialmente. O estado nunca esteve com esses indivíduos. Mattelli parece ter se esquecido que essa mesma política, que ele manda se lixar, um dia favoreceu a ele mesmo, branco. Mattelli só segue então com as normas quando a ele lhe convém. Nesta mesma cena, temos uma composição fílmica muito boa: depois que seu colega diz que ele deveria se aposentar, Mattelli olha para o espelho, como se estivesse vendo o seu duplo. O real, não se conforma com a situação em que está, já seu duplo, sabe que ele terá que ceder. Quando percebemos que Mattelli enfim se conforma, a câmera passa para o ponto de vista do espelho, como se este estivesse olhando para Mattelli. Agora o duplo olha para o real. Esta balança mudou de lado. Narrativamente nós sabemos que isso acontece pelo prosseguimento do filme, mas esse pequeno detalhe técnico já nos faz supor traços que também encontramos na atuação inconformada de Quinn. Essa noção de real e duplo também pode ser criada na figura de Nick (Anthony Franciosa): com a família italiana (algo que lembra muito O Poderoso Chefão (1972), com aquele pomposa festa inicial), Nick se mostra o cara mais solícito e agradável possível. No entanto, este não é o Nick real, este é seu duplo. O real é o Nick que veremos nos demais minutos, bruto como um touro, torturando e linchando os negros. Nick é o estereótipo perfeito do branco racista que sempre odiamos e que esperamos ter o pior final possível, como o visto no filme. O interessante do filme é que ele não se baseia unicamente neste estereótipo. É claro que o outro personagem branco importante do filme (Mattelli) também é racista, mas a intensidade é muito menor que ao de Nick. Além disso, vemos negros e brancos trabalhando conjuntamente e contrários a indivíduos da mesma raça (na gangue de Nick temos um negro, Doc Johnson (Richard Ward) é subjulgado e subjulga brancos, dono do guincho não acredita que Pope seja um policial encarregado e Jim (Paul Benjamin) mata outros negros). As relações são conjuntas, não um simples maniqueísmo em que todos os negros sejam bons e os brancos, maus, e é nesta detalhe que o filme ganha mais realidade.
Deixando este maniqueísmo de lado, o filme pode tratar de assuntos mais delicados como o porquê de negros não possuírem a mesma posição social dos brancos. Numa cena entre Jim e sua concubina, temos o perfeito quadro de falta de perspectiva do mundo. "Pare de ter sonhos de uma mulher branca". Se ambas as mulheres, brancas e negras nasceram na mesma cidade, suporíamos que as condições devessem ser iguais para ambas, o que não é. Mais uma vez, esta frase remete àquela ideia supracitada de que o governo não se dá conta desta outra parcela da cidade. É este sentimento que motiva Jim a roubar, já que a mesma quantia só seria adquirida com anos de trabalho pesado, muitas vezes humilhantes, como a prostituição (já que a escolaridade não é elevada) ou submissivos (se rebaixando a um branco). Será que a criação de melhores condições para os negros não diminuiria em níveis expressivos os índices de criminalidade? Outra crítica muito pontual é feita à forma de obtenção de informações. Mattelli, bruto como é, logo começa a esmurrar um suspeito que nem sabe se de fato fez algo de errado (neste caso, branco batendo em negro). Ironicamente, a cena logo a seguir é de Nick interrogando outra pessoa, em torno de vários negros. Nesta cena, o mais opressivo não é Nick, tanto que nem chegamos a vê-lo realizando alguma brutalidade, mas sim o ambiente em si, rodeado de negros. E se não bastasse, temos um detalhe técnico maravilhoso: o braço de um dos negros, conforme a câmera vai se aproximando parece formar um cerco na figura reprimida da Sra. Fears (assim como em A Primeira Noite de um Homem (1967)). Desta vez, a crítica não vai unicamente aos brancos, mas aos interrogadores em geral. Será que é moralmente correto torturar os investigados em troca de informações? Uma última crítica interessante vai agora as entidades da polícia: o mais alto comandante da polícia recebe propina das pessoas que ele deveria estar prendendo. Mais a frente, vemos um policial indo recolher a roupa que deixara na lavanderia, e se recusando a pagar os impostos, que todos os cidadãos americanos são obrigados a pagar conforme seu estado, com nenhum argumento plausível. Ele não precisa pagar porque é um policial? Essa corrupção da polícia que é sempre expressa em filmes que vemos é também pontuada neste filme, de uma forma mais sutil, mas presente.
Antes de terminar, gostaria de pontuar alguns (outros) detalhes técnicos muito interessantes presentes no filme: assim como na ideia do espelho e no enclausuramento visual da Sra. Fears, o filme é repleto de escolhas imagéticas muito ricas, como na cena em que o homem caindo no vão do elevador corte para Jim gritando ao acordar da cama, mostrando o sofrimento daquela ocasião dos dois indivíduos. Ou mesmo na câmera subjetiva (câmera no olhar da personagem em questão), quando Joe (Ed Bernard) está pendurado no topo do prédio, em que temos um câmera que não cessa em tremer, como se nós também estivéssemos balançando junto com ele, a ponto de quase cairmos. A trilha sonora embora bem característica do movimento blaxpoitation, como pontuei acima, também é rica na expressão da emoção do momento, já que vemos instrumentos de percussão, como a bateria e um chocalho nas cenas de fuga, como se os intervalos das batidas remetessem aos passos que a pessoa em questão está dando para fugir, ou mesmo um violoncelo, dando uma atmosfera mais jazzística, como em Taxi Driver (1976), enaltecem a sensação de sensualidade da cena. Se não bastasse, ainda temos a música tema do filme, Across 110th Street, que será mais tarde altamente difundida em filmes como Jackie Brown (1997) e Gangstêr Americano (2007), ilustrando perfeitamente a reflexão de Jim em sua letra ("Doing whatever I had to do to survive. I´m not saying what I did was alright"). Os detalhes técnicos são muito ricos e só por si, incorporam ainda mais ao filme.
A cena final em que Jim lança o dinheiro às crianças do gueto, remetem a uma ideia de Robin Hood (que detalhe, possa parecer bonito e tudo mais, mas que temos que lembrar que só foi feito, visto que não teria mais condições de manter todo o dinheiro com ele), como se ecoasse àquela ideia de que o governo não guarda pelas almas negras, assim como faz com as brancas. Já que o governo não ajudará, ele fará por si mesmo. A última cena mostra Mattelli tomando um tiro, e caindo sobre Pope. O que vemos então é justamente as mãos agarradas enquadradas, como se remetesse àquela ideia que Mattelli tem de interesse sobre as outras coisas, já que a minutos atrás, ele ainda desconfiava do garoto por ele ser negro. Esse desprendimento das mãos resume por si só, a ajuda que os negros recebem dos brancos, - nenhuma - e que dessa forma, por se distanciar ainda mais das comunidades negras, acabam longe de receber apoio das mesmas. Ressalto mais uma vez, não por vingança, mas justamente por conta desta distância que estes brancos preferiram ter.
Obs.: Em 2013, foi lançado um filme muito interessante sobre a violência desferida contra negros nos EUA: Fruitvale Station. Vale a pena a conferida. Que com filmes como estes dois, a igualdade entre as duas raças se equivalha cada vez mais.
Tudo Pode Dar Certo
4.0 1,1KSPOILER DETECTED!!!
Vou logo dizer que não gostei do filme. Não gostei da história. Não gostei do personagem de Larry David (nem do ator, até quando ele monologa com o telespectador, ele está gritando). Não gostei dos clichês que o filme tenta explicar como naturais (a naturalidade criada em Tudo Pode Dar Certo (2009) não é a mesma de Match Point (2005), o que fez com que as explicações de acaso e sorte não fossem tão incríveis quanto as deste segundo filme, também de Woody Allen).
Começamos o filme com a figura de Boris, que logo de supetão interage com o espectador de uma forma inicialmente interessante, como se mostrasse que Boris, em toda sua intelectualidade, está acima das demais personagens (estratégia muito bem utilizada em Curtindo a Vida Adoidado (1986)). Seria um artifício inteligente, se o filme não se utilizasse toda vez dele quando quisesse transpor a ideia de superioridade. Se não bastasse, a primeira cena em que isto acontece, embora novamente interessante à primeira vista, acabe se alongando de uma forma cansativa e totalmente incoerente com a linguagem cinematográfica (num filme, as palavras devem servir de apoio para as ações e imagens que vemos na tela, e não o contrário. Isto não é um documentário). Larry David sempre em seu modo incomodante - gritando - para à frente da câmera e basicamente resume tudo o que o filme vai mostrar em palavras. Para que continuar em imagens então? Vou dar um exemplo. Um bom trecho deste monólogo, Boris conta o porquê de não conseguir se adequar a este mundo, como ninguém o entende, finalmente dizendo que tentou se suicidar. Logo após isso, vemos os momentos finais da relação dele com a ex-mulher, explicando novamente tudo o que ele acabou de dizer, com palavras diferentes, e indo por fim, tentar se suicidar. Eu não entendo porque Woody Allen simplesmente não corta a primeira introdução, se ele recontará tudo em novas palavras. Isso é tempo de filme, mas mais do que isso, cansa o espectador. Se você ainda não está satisfeito, vou comentar outro momento em que isto acontece: Boris, como sabemos, acolhe Melody (Evan Rachel Wood) em seu apartamento, cuida dela e tudo mais. A primeira vez que retornaremos a ver os amigos de Boris do começo do filme, ele conta que acabou de acolher uma garota, sem acrescentar nenhuma informação que ele já não tinha dado antes. Mas caramba, a gente não acabou de ver isso? Estas duas cenas acontecem logo nos 10 primeiros minutos do filme, e confesso que fiquei bem inquieto com este início.
Vamos ao personagem principal. Boris, é um cara chato, sem mais. Logo no começo do filme ele nos diz que não é muito carismático. Não precisava nem ter dito, o cara é chato para caral-e-o. Para não dizer que não simpatizei nem um pouco com Boris, quero dizer que o Boris final é um cara muito mais engraçado do que o do começo, já que no final, Boris continua sendo pessimista e desiludido, mas ele tem um tom sarcástico muito incisivo na voz, o que me fez dar umas boas risadas ("Por que todos os psicóticos religiosos acabam rezando na minha entrada?"). A questão é que ele só é assim, de 3/4 do filme para o final, e quando aparece; da metade do filme adiante, Tudo Pode Dar Certo começa a acrescentar tantas personagens novas, que para desenvolvê-las bem, acaba deixando Boris em segundo plano. Isso não seria um problema, se no final, Boris acabasse mais perto das relações do meio, do que afastado como era antes (me refiro a cena final em que ele olha novamente para a câmera, monologando). Outra coisa que me irritou bastante foi o fato de acabarmos o filme justamente como esperávamos que acabasse: O coração de Boris amolece, mas não o suficiente para o filme não ficar totalmente previsível. Alguns podem dizer que esse clichê é totalmente explicado pelo fato do filme trabalhar com a ideia de que embora clichês sejam previsíveis, eles as vezes são as melhores coisas a se dizer. O filme até começa bem, iniciando este assunto acerca dos clichês, só que até o fim do filme, o desenvolvimento desta ideia será o mesmo. Parece que o filme cansou de trabalhar o que seriam clichês porque estava inserindo personagens demais na trama. Se você não concorda com isso, veja por exemplo o filme Match Point, que citei mais acima. Neste filme, cada ideia em relação à sorte e ao acaso é estrategicamente posicionada para que o desenvolvimento geral cresça junto com estas ideias.
Por fim, o filme cria críticas interessantes acerca da religião. A principal delas se dá ao fato das pessoas acreditarem tão piamente em tais seitas, que acabam colocando muitas vezes, seu interesse pessoal muito abaixo dos dogmas gerais, em suma, perde-se a individualidade que motiva o indivíduo a continuar vivendo. Além disso, temos quadros religiosos bem conservadores acerca do aborto, homossexualidade, casamento entre pessoas de idades bem defasadas relações à três, que são bem desconstruídos nesta ideia de seguir o seu próprio querer. Até aí o filme vai perfeitamente bem em sua crítica, no entanto, temos outras duas coisas que fazem esse discurso caírem por água abaixo. A primeira é a caracterização do homossexual, na figura de Joe (Michael McKean). O esteriótipo que o filme cria é muito intransigente. Por que a partir do momento que Joe se assume homossexual, quando o vimos na festa de ano-novo, ele magicamente torna-se mais efeminado. Assumir-se homossexual não quer dizer que você tenha que mudar suas nuances. Mas mais até do que isso, o que me fez ficar bem inconformado foi o desenvolvimento de algumas personagens, principalmente, - e de novo - Boris. Se existe alguém mais intolerante que a religião neste filme, esse alguém é Boris: a forma como ele trata as pessoas, ditando regras e superioridades a partir de sua inteligência, como se tudo o que ele sabe, seja o correto, simplesmente porque ele é mais sábio que os demais. Além disso, temos uma mãe (Patricia Clarkson) que mesmo depois de "transformada", continue tão intolerante com o desejo da filha do que outra coisa (é claro que temos uma imagem ingênua de Melody, mas se Melody se achava suficientemente madura para querer esta nova relação, ela também estava suficientemente madura para arcar a relação com Boris). É por personagens (pontos normalmente fortes na filmografia de Woody Allen) como estes que acabei me questionando se a crítica a religião vinha de uma maneira tão forte quanto poderia vir. Ao mais, não considero este um dos melhores filmes deste século de Woody Allen, nem um bom filme.
Boyhood: Da Infância à Juventude
4.0 3,7K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Este é um dos filmes mais sensíveis do ano, senão o maior deles. Assim como ano passado tivemos Her (2013), este ano tivemos Boyhood (2014). A carga emocional e subjetiva é muito forte em ambos, as únicas diferenças se dão no foco em que cada filme dá e no fato de que Boyhood provavelmente conquistará mais estatuetas do Oscar do que o Her (infelizmente!). A grande premissa do filme se dá pelo fato de ele retratar a vida de um garoto por 12 anos, e daí já vem algo bem importante para começo de conversa: quais são os fatos mais relevantes na vida de um garoto em sua fase de amadurecimento? O que inserir e o que descartar no filme? Essas perguntas podem parecer ingênuas, mas na verdade, elas exprimem um olhar muito delicado sobre a vida de qualquer indivíduo, já que talvez o meu olhar sobre ela não seja o mesmo do meu vizinho, ou dos meus pais, ou mesmo do filme em questão. E é aí que vem a grande jogada do filme: por que não retratar todos? Boyhood de fato conta a história de um garoto ao longo de todos esses anos, mas ao mesmo tempo, presenciamos figuras bem diferentes do garoto em toda esta passagem. Sendo assim, Boyhood não se trata unicamente da vida de Mason (Ellar Coltrane), mas sim de uma série de pessoas - mesmo meros coadjuvantes que aparecem uma única vez na tela - (diferentes entre si) que compõem o trajeto da vida de qualquer pessoa. É por conta desta abrangência que o filme consegue agradar pessoas muito diferentes ao mesmo tempo (temos a figura do rockeiro, da esportista, do cético, do caipira, da azarada, do geek).
Algo que pode ter incomodado a alguns se dá ao fato do filme não ter propriamente um clímax, um embate que muda todo o enredo para um rumo totalmente diferente, algo que chamamos de "plot-twist", o que para mim é perfeito! Pense bem, a ideia do filme é se aproximar da vida de uma pessoa. Não existe um momento específico da nossa vida que podemos parar e dizer: "Nossa, isso deu uma guinada totalmente diferente para o rumo da minha vida". Na verdade, isto ocorre a todo momento, seja por exemplo quando vamos comprar um pão na padaria e lá ocorre um assalto (a gente podia pensar que se a gente não tivesse ido para lá, nada disso teria acontecido), ou quando viajamos pela estrada e um pneu do carro estoura, fazendo com que perdêssemos uma festa. O que quero dizer é que a cada segundo algo novo acontece, podendo mudar algo na nossa vida que nem percebemos. Se formos parar para analisar mais a fundo o filme, percebemos que é justamente isso que acontece, já que a família de Mason muda de lar a cada hora, que a mãe de Mason (Patricia Arquette) só dá bola fora com seus maridos, que Mason conhece uma gama diferente de pessoas, se relacionando com algumas delas e vendo-as sumir da mesma forma que a conhecemos. O filme é repleto de pequenos momentos que, de fato, compõem a vida, e é por isso que o filme (vida) não precisa de um clímax propriamente dito, porque viver já é um clímax. Outra crítica que vi se baseava no fato de quase não termos atuações estupendas em todo o filme. Eu concordo que isso seja verdade, mas mais uma vez, se as atuações fossem maravilhosas, a verossimilhança com a vida não seria tão boa, já que eu não sou ator, minha mãe não é atriz, meu vizinho também não. Os atores tinham que parecer meros transeuntes, meros coadjuvantes; a vida é a atriz principal. Essa casualidade me fez nos aproximar muito mais do filme do que simplesmente se os atores fizessem atuações dramáticas, cômicas ou maravilhosas demais.
Uma coisa que me chamou muito a atenção foi o trabalho detalhado de referências que vemos no filme. Estas referências não só transmitem a sensação das personagens, da ação (como a cena de abertura em que Mason olha para o céu, e toca Yellow, de Coldplay, na estrofe da música em que ele justamente fala sobre as estrelas, ou na cena final em que o som de Arcade Fire (Deep Blue) reflete tudo o que acabamos de ver nas quase 3 horas de filme, já que a música fala sobre memórias e momentos. Nessa música, há um verso que diz: "Let the century pass me by". De fato, o que aconteceu foi deixarmos uma década da vida de um garoto passar à frente dos nossos olhos), como também marcam a passagem de tempo, já que o ano de lançamento de cada uma dessas referências bate com o crescimento de Mason ao decorrer dos anos (Coldplay - 2000, The Hives - 2000, Gnarls Barkley - 2006, The Black Keys - 2010, Arcade Fire - 2010 para dar alguns exemplos musicais, mas podemos ver também nos filmes com Harry Potter, High School Musical, Batman Begins, Trovão Tropical, Star Wars (trilogia mais nova)), além das próprias tecnologias irem evoluindo (Xbox para Wii, ou da conversa física, passando por email até videoconferência por Skype). Por fim, o filme ainda consegue nos contextualizar politicamente (eleição de Obama, 11 de Setembro, Guerra do Iraque, latinos no país). E é por conta desses pequenos detalhes que nós viajamos nostalgicamente no tempo assim como sentimos um toque de mais realidade à obra.
O detalhe divertido se dá quando vemos Mason já crescido discutindo sobre crianças mais novas e dizendo que a fase envergonhada delas ainda estava por vir, como se resumisse bem todo esse trajeto da vida e enfatizasse ainda mais aquela ideia de personagens diferentes vivendo momentos conjuntos. Assim como Mason vê aquela criança como algo que ele já fora, os pais dele o veem como algo que eles também já foram, e nós, telespectadores, vemos as personagens referentes a nosso momento de vida. Ao final do filme somos presentados com mais um dos diálogos existencialistas de Mason, em que há uma conversa com a garota da universidade que ele acabara de conhecer. Nesta conversa, a garota diz que ao invés do que é largamente difundindo, ela não acredita que nós aproveitamos o momento, mas que na verdade, é o momento que nos aproveita. Se formos comparar o começo do filme, em que víamos Mason olhando para o céu, mas não vemos o céu em questão, com este final, situado num ambiente bem maior, quase onírico de tão belo, a sensação é de que no começo o garoto está de fato aproveitando o momento, já que a câmera foca nele, o que já no final, com este ambiente grandioso, parece que o ambiente os engloba, como se confirmasse o que a garota acabara de dizer. Cada momento é delimitado por fatos e acontecimentos diferentes, mas são esses mesmos momentos que vão determinar o futuro próximo das personagens. Sendo assim, são os momentos que impulsionam cada nova escolha, cada nova amizade, cada nova relação. Os momentos de fato nos englobam, mas não é por conta disto que nós não possamos os aproveitar também. Estas duas imagens, uma logo no começo, e esta outra logo no fim, parecem elucidar bem que os dois lados acontecem simultaneamente. Repare que em nenhum momento disse que não temos o controle do que fazemos, é claro que temos, e é isso que nos torna humanos, mas são os simples momentos que nos fazem ser quem nós realmente somos, e Boyhood traz vários deles.
O Abutre
4.0 2,5K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Quando vi este filme, logo me lembrei do fotógrafo Kevin Carter, responsável pela foto que o condecorou com o Prêmio Pulitzer, da menina em estado deplorável prestes a ser devorada por um abutre (Para quem não conhece, vou colocar um link no final do comentário com a foto). A história por trás desta foto dialoga bem com a de Lou Bloom (Jake Gyllenhaal, que a cada vez mais vem se destacando em seus novos papeis), com a única diferença de que Carter tivesse de fato alguma moralidade. Ao invés de ter tentado salvar o garoto, Carter esperou o momento fatídico que o abutre vinha para capturar a foto que seria difundido pelos quatro cantos do mundo. Um ano depois, Carter viria a se suicidar não aguentando a pressão imposta por algumas pessoas sobre ele. Assim como Lou, Carter esperou o desenrolar dos fatos para conseguir o melhor ângulo. Não sabemos a motivação do fotógrafo, mas a de Lou fica bem clara: subir na vida.
O filme inicia-se com uma série de imagens da cidade, como se a estivéssemos vigiando. Considerando o fato de que a história se tratará justamente de um indivíduo que vaga pelas ruas a fim de encontrar a sua melhor presa, as cenas iniciais não servem simplesmente para apresentar o cenário em que estamos (como num filme de Woody Allen, e que eu acho maravilhoso), mas também para mostrar que estamos com os olhos virados a todos os cantos da cidade. Enfim, somos apresentados a Lou Bloom, um sujeito que roubava arames para posteriormente os vender. Quando pego por um policial cometendo a infração, vemos logo sua índole, a de um indivíduo que não teme nada, nem o nome da lei, para seguir em seus atos. Lou mais a frente dirá que não teve uma educação formal, e que aprendera tudo pela internet (a ideia da internet é muito interessante ao filme, já que por ela podemos observar e aprender qualquer coisa que queiramos, é como se pudéssemos vigiar tudo ao redor do mundo, assim como o próprio Lou dirá quando deixa claro que sabe quase tudo da vida de Nina (Rene Russo)). Um grande panorama que podemos fazer de O Abutre (2014) é justamente com um outro filme majestoso, Taxi Driver (1976). Assim como Lou, Travis Bickle vaga por todos os cantos de Nova York como se estivesse vigiando a ação de cada indivíduo de dentro de seu táxi. Não bastando, Lou diz mais a frente que desgosta das pessoas, e que assim como Travis, faria de tudo para evitá-las. No entanto, a característica que mais me chamou atenção a fim de que eu assimilasse os dois personagens se dá no fato da lábia. Lou parece ter uma resposta pronta a cada questão que alguém o fazia. De fato, suas respostas são tão mecânicas que parecem ter sido tiradas palavra por palavra de um texto da internet. Travis também faz isso, é claro que não pela internet, mas inteiramente da televisão e do cinema. Assim, os dois têm lábia, só não possuem o conteúdo necessário para utilizá-la (Lou na cena em que tenta vender a bicicleta fala que a mesma possui 37 marchas, o que de fato não existe, além de exagerar ao dizer que venceu a Maratona com a tal bicicleta). Se formos puxar mais um pouco, podemos chegar até mesmo no motorista de Drive (2011) que também vaga pelas ruas procurando algo a se ater. Todos estes três sujeitos vivem num meio em que desgostam, fazendo de tudo para ofuscá-los, agindo à sua medida para tal fim, seja pela lábia, violência ou desdém.
Um outro aspecto bem claro que o filme tenta elucidar é o quão longe um programa de televisão pode ir para almejar mais audiência. Será que permitir a exposição de tais cenas não seja tão repudiante quanto um freelancer que burla as regras para conseguir as imagens, ou até mesmo, criminoso como a dos latinos que invadiram e mataram todos os integrantes daquela casa? Talvez as ameaças que Lou faz a Nina sejam tão cruas como o trabalho destes dois. Talvez ela ter enfim aceito a proposta de sexo mostre que neste meio o sucesso é o que vale mais do que tudo para eles dois. Mostrar detetives tão impotentes talvez ressalte ainda mais essa criminalidade de Lou. Lou é imprevisível, irascível e impetuoso, características que são incrementadas a partir do momento que Lou entra neste ramo, um ramo que mesmo diante de tantas desavenças, como as que vimos no filme, continua vivo. E que continua vivo justamente por conta de nós, os telespectadores. O filme é sim uma crítica a tais indivíduos que produzem, exibem e distribuem tais imagens, mas é muito mais a nós mesmos, cidadãos, já que sabemos que no ramo televisivo, se algo não tem audiência, não há busca. Talvez nossa sociedade diante de tantas regras e ditames precise extravasar de alguma forma, mas não cometendo nada, vendo, afinal nós não estamos no filme Uma Noite do Crime (2013). Mas por quê? Será que nós todos não somos abutres (eu particularmente, gostei bastante do título em português do filme), vigilantes vorazes por novas sanguinolências, novos crimes? A frase final de Lou é daquelas frases que findam e resumem todo o filme de uma forma magnífica: "E lembrem-se, eu nunca pedirei a vocês algo que eu mesmo nunca faria". A interpretação mais rasa é dirigida aos novos estagiários, e realmente sabemos que Lou poderá pedir qualquer coisa para eles, pois ele mesmo não tem limites. No entanto, seguindo nesta ideia de que se nós, telespectadores, não cultivássemos tais notícias, elas de fato não surgiriam, a frase recai de uma forma muito mais ampla: considerando que esse 'eu mesmo' sejam os telespectadores, supomos que o 'vocês' se refere às pessoas que produzem tal material, como se dialogasse com essa face animal dentro de todos nós. Em suma, o que eu quero dizer é o seguinte: Se nós não procurássemos, não existiriam. E assim acaba o filme, mostrando cenas da mesma cidade, terminando na imagem da Lua (a mesma Lua do começo do filme. Não temos como fugir dela todos os dias, assim como não conseguimos fugir de nós mesmos - e das outras pessoas, desgostando delas ou não -), a maior vigilante das noites.
Link da foto: https://farias.wordpress.com/2007/03/18/foto-de-kevin-carter-em-1993/
Ela
4.2 5,8K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
(Tenha paciência, eu prometo que o texto estará bem legal!!)
Existem filmes que nos deixam extasiados e outros que nos fazem perceber o quão foda a sétima arte é: Her (2013) -vou escrever Her, porque Ela talvez se confunda com quando eu for escrever sobre as personagens- é um destes.
Juntamente com Os Suspeitos (2013), Her se encontra naquela categoria de filmes maravilhosos que são totalmente esnobados pela Academia. Os Suspeitos foi indicado em melhor fotografia, e foi totalmente descartado por Gravidade (2013) - não que eu ache que Gravidade não merecesse também, mas a fotografia de Os Suspeitos dialogava a todo momento com a tensão e ação do filme. Her ainda conseguiu alavancar uma premiação para melhor roteiro original, mas sem dúvidas, poderia ter ido muito além, conquistando prêmios nas categorias de Mixagem de Som, Melhor Trilha Sonora, Melhor Música Original (o que me deixa revoltado nesta categoria é quando a Academia indica para este prêmio grandes artistas do cenário musical com o único intuito de criar-se mais "luxo" à cerimônia. A categoria que deveria premiar a melhor música original para o filme, ou seja, o sentimento, a cadência, a melodia da música tem que fazer sentido no filme, acaba escolhendo os concorrentes pelo nome do candidato, e é por isso que acho muito justo 'Let It Go', de Frozen (2013) ter ganho no lugar de 'Happy', de Meu Malvado Favorito (2013) ou 'Ordinary Love', de Mandela (2013). As músicas são divertidas e boas, mas nenhuma dessas outras duas reflete o estado de espírito tão bem quanto 'Let It Go' faz em Frozen. Da mesma forma, 'The Moon Song' é para Her o reflexo de tudo o que aconteceu e acontecerá no filme: começando pela melodia um tanto melancólica que reflete o estado de espírito de Theodore (Joaquin Phoenix, numa maravilhosa atuação), como muito mais pela letra, já que vemos duas personagens distantes entre si, uma na Lua, e outro no que imaginamos ser o planeta Terra. A distância não é a barreira que impede o conforto e confiança que um tem no outro, mas é justamente a mesma que reforça tais vínculos. Trazendo para o filme, Theo está muito distante de Sam (Scarlett Johansson, no que sem dúvidas é uma de suas melhores interpretações da carreira, sem ao menos ter seu corpo nela), e mesmo de Catherine (Rooney Mara), mas os dois se espelham no outro para crescerem mais fortes e unidos), Melhor Atriz (Scarlett faz um trabalho tão primoroso que parece que estamos ao lado dela, mesmo não estando. Sua inflexão, dicção e principalmente pausas, fazem com que sua personagem seja muito mais rica e real - essa será uma palavra muito importante para nossa análise), e por fim, Melhor Ator (Joaquin Phoenix contracena basicamente em todo o filme sozinho, e a nós isso nunca parece estranho. As emoções e trejeitos dele são tão convincentes que a ausência de um corpo físico na cena é totalmente despercebida). Vamos ver se neste próximo ano, o Oscar consegue acertar melhor em suas premiações...
Dito isso, podemos de fato começar a analisar o filme. A complexidade do filme é gigantesca, começar por um ponto é quase que impossível já que os panoramas são dos mais diversos. Decidi então seguir a linearidade do filme. Começamos o filme com uma carta de amor/companheirismo muito tocante, e quando nos damos conta de que a pessoa que está escrevendo isso não se trata de nenhuma das duas pessoas da relação temos o primeiro choque. A forma como o plano-sequência a seguir é composto ajuda a enfatizar isso ainda mais, já que vamos seguindo todos os escritórios em que pessoas que assim como Theo, vivem de escrever para os outros. Com o decorrer do filme, vamos tendo contato com várias outras tecnologias que não são palpáveis ao nosso mundo atual (o controle que as pessoas tem de sua vida com ajuda da tecnologia, a criação da OS1, a moda e cores que lembravam algo mais antigo - talvez pelos anos 70 -, ou seja, tendo um caráter mais retrô, já que falamos de um futuro), e é este primeiro choque que vai sendo quebrado com o tempo, já que mesmo futurista, o ambiente se assemelhe bastante com o presente; não pelas suas tecnologias, mas sim pelas pessoas deste mundo. O interessante é notar que esta interação de Theo com o mundo (através de seu trabalho) é algo artificial, assim como a relação que ele viverá com Sam futuramente, e que nem por isso seja menos real, já que os sentimentos exprimidos por ele para terceiros seja tão amoroso e solidário como a de uma relação amorosa. Este embate entre humanização e programação permeará todo o filme, já que logo quando somos introduzidos a Sam nos vem a pergunta: será que Sam algum dia conseguirá se assemelhar a Theo, em maior instância, aos humanos? Se considerarmos que ela foi programada, e que portanto seja uma coisa artificial, o ser dela o torna diferente de nós humanos, impedindo que ela se torne humana assim como nós. No entanto, se considerarmos que Sam sente assim como Theo e todos nós, e que vai evoluindo com o tempo através destas sensações e experiências, podemos considerar que talvez algum dia ela realmente consiga alcançar o patamar de um humano. A questão se refere então a classificar um humano através da capacidade de ser ou sentir, e que dessa forma, considerarmos Sam como um humano assim como nós ou não. Eu não sei a resposta, nem sei qual está mais certo que o outro, mas o importante é a criação desta reflexão, algo que o filme também não tenta responder e o que para mim deixa a obra mais bela. Esta mesma reflexão acerca da humanização das personagens se refere também aos próprios humanos, já que em uma cena que Theo tem uma relação sexual via voz pela internet, é questionado a frieza destes mesmos. A relação é puramente carnal, mas a despedida é tão fria que nos parece que toda esta humanização inerente dos humanos possa, na verdade, não ser tão passional, característica que nos diferenciaria das máquinas. Nesta mesma cena, temos um outro questionamento muito importante acerca da idealização. Enquanto Theo realiza o ato sexual, a tela é constantemente alternada para a imagem da grávida nua que Theo tinha acabado de ver no metrô. Expandindo para a relação entre Theo e Catherine, vemos que é justamente isso que acontece: Theo idealiza a figura de Catherine, o que sabemos dela a maior da parte do filme vem de impressões dele. Ele parece sempre se culpar pela separação, trazendo uma figura fofa e meiga de Cath (como na cena da conchinha), filtrando as emoções que ele quer ter dela. Quando então somos contrastados com a real figura dela, vemos que a garota é na verdade uma figura muito mais analítica e realista que ele fez parecer. Resumindo, quando revivemos algo com qualquer pessoa, seja alguém amado, um amigo, criamos uma ilusão da pessoa, assim como Theo faz da mulher com quem transa virtualmente, podendo muitas vezes não se assemelhar com o que seja na realidade. Essa ideia de idealização será forte o filme inteiro, e são nestas imagens que vemos que Theo é uma pessoa bem passional.
Conhecemos enfim a OS1. As perguntas que o programador padrão faz a Theo para a criação de Sam podem parecer muito abruptas e secas, já que ele corta constantemente as falas de Theo, mas o mais importante a se notar não são as perguntas em si, ou seja, o conteúdo delas, mas sim, a forma delas, e como elas são respondidas. Sendo assim, o importante na criação de Sam não é propriamente o assunto, mas o jeito como eles serão conversados. Nestas breves perguntas que o programador faz a Theo, percebemos que ele é uma pessoa bem comunicativa, que precisa expressar muitas palavras para expor o que quer, e é justamente isso que veremos em Sam, já que veremos uma figura tão sensível e comunicativa como ele é. Um detalhe interessante é se assimilar a figura do programa na hora da criação de Sam com um DNA ou um espermatozoide, como se dialogasse com a criação da vida. Como disse no parágrafo anterior, sabemos que Cath é uma figura idealizada na mente de Theo e que grande parte das informações dela virão dele, mas o interessante é notar que temos imagens e breves falas que dissonarão do que Theo fala dela. Após a separação, Theo vive numa casa enorme sozinho, jogando videogames todo o dia, mas que se sobressai pela sua bagunça, enquanto sabemos que Cath viaja muito e está escrevendo um novo livro. Aparentemente, percebemos que Cath soube lidar melhor após a separação do que ele mesmo, mas o mais engraçado é perceber que esta ideia que dissona do que Theo diz dela também não se concretizará no encontro deles (esta é realmente uma cena muito importante para o filme, já que muitas ideias que temos das personagens serão totalmente quebradas), já que em vários momentos percebemos um certo desconforto de Cath ao rir de algo que Theo fala ou faz. A sensação que tive é que ambos, tanto Theo, quanto Cath, ainda sentem algo pelo outro, mas que já distantes do que eram, principalmente ela, já não conseguem mais perceber isso. Voltando então a relação de Theo com Sam, percebemos que a cada vez mais a situação vai florescendo de forma que Sam vai evoluindo juntamente com Theo. Theo de certa forma ainda desiludido com a antiga relação com Cath, não sabe tratar muito bem Sam, fazendo algo que ele diz ter sido o motivo de sua separação, se afastar porque aparentemente a companheira não o satisfazia, nessa lógica individualista que será muito forte no filme já que basicamente todas as personagens do filme, mesmo imersos em tecnologia, não sabem se relacionar fisicamente com as demais, estando sempre distantes de todos e tudo, numa ideia bem Taxi Driver (1976) de ser. Essa ideia individualista de não conseguir suprir as suas necessidades estará bem forte na tentantiva de relação de Theo com a mulher inteligente e bonita (Olivia Wilde). Theo quer se satisfazer, como ele diz mais para a frente para Cath, "Estar com alguém realmente ME faz bem", procurando esta garota só para desencargo carnal. No entanto, ela não quer simplesmente isso, e a falta de comunicação de Theo nessa hora põe tudo em cheque, denotando esse caráter individualista da sociedade que aproxima bastante esse mundo futurista do nosso atual. Um detalhe sutil que acrescenta ainda mais ao filme é o fato de Theodore ser chamado a maior parte do filme de Theo (Teo=Deus), remetendo a algo como controle, posse, atitudes que ele sempre quer o outro tenha para com ele (Teo também funciona na hora da criação de Sam, que foi criada a sua imagem e semelhança). De fato o título do filme também enfatiza ainda mais essa característica de posse do mundo atual: Her, que diferentemente do título em português, refere-se a algo pertencente de outro algo, mais uma vez a ideia de posse. Em todas as camadas do filme teremos então a ideia de um mundo individualista, que amplificará ainda mais outra ideia: a solidão.
A ideia de solidão é bem forte, começando pelo fato do filme se situar numa cidade grande, altamente tecnológica e moderna em que as relações ao invés de se estreitarem acabam por se dificultarem, algo que muito bem trabalhado no filme argentino, Medianeras: Na Era do Amor Virtual (2011). Os aspectos imagéticos da cidade ajudam a ressaltar ainda mais essa solidão, em que as pessoas sempre vestidas com roupas de cores bem fortes contrastam frequentemente com as cores chapadas da cidade, com seus gigantescos arranha-céus, e que nem por conta disso, são tão felizes assim. Em outro momento do filme quando Theo senta na frente de um painel com uma coruja que está prestes a vir sobre ele, as cores e luzes da cidade são bem fortes, mas nem por conta disso a cena é mais feliz, pelo contrário, Theo está mais triste ainda. As luzes são tão fortes que parecem nos cegar, mostrando uma certa desmesura. Quanto a forma desses prédios que são sempre grandes, principalmente no início do filme, parece que enaltece ainda mais a insignificância e a solidão de Theo. Estes detalhes estilísticos favorecem ainda mais a imersão no filme, deixando-o mais sensível. Continuando nos aspectos técnicos, temos uma outra cena muito bem composta quando Theo percebe que Sam está se afastando dele: Theo está dentro da cabana e acabou de colocar o bule para esquentar. A câmera vai então se aproximando de Theo, tremendo (repare que em quase nenhuma cena do filme vemos a câmera tremer. Quando vemos nesta cena, o impacto é muito grande, pois percebemos que algo está errado). O bule também começa a chiar com um ruído bem irritante. Theo vai se aproximando cada vez mais do bule como se tivesse ausente a conversa que Sam acabou de ter com o filósofo (algo parecido com a cena da xícara de café de Taxi Driver quando Travis Bickle não prestando atenção no que seus colegas dizem, vai olhando cada vez mais perto da xícara, como se estivesse ausente a cena). Logo após isso, somos cortados para a imagem dele bem pequena no gigantesco tamanho da árvore (o que só veio a acontecer muito tempo atrás, no começo do filme, quando Theo se minimizava diante dos prédios. Esta cena parece evocar novamente a pequenitude de Theo ao ver uma nova relação ruir). A cena dialoga esteticamente com o que está acontecendo sem utilizar uma única palavra, e isso é lindo. O filme inteiro parece mostrar que Theo não está preparado para tentar novas experiências, que ele não sabe lidar muito bem com as outras pessoas, por não conseguir entendê-las, ou melhor, parece mostrar que a sociedade não consegue se relacionar entre ela, denotando este caráter individualista e solitário mais uma vez. A questão é: será que precisamos estar preparados para algo novo, ou as coisas simplesmente acontecem? O fato é que o filme acaba com todos os sistemas operacionais sumindo, talvez pelos programadores perceberem que o efeito desses OS na vida das pessoas foi desastroso, ou que na verdade, o papel destes OS era o de fazer as pessoas questionarem sobre sua essência e relações, em ambos os casos, levando-nos a acreditar que os OS não atingirão nunca o estágio de humanos, já que no primeiro caso, foram controlados pelos seus programadores, e no segundo, cumpriram seu propósito inicial. Mas também podemos interpretar que os OS acabaram criando uma consciência tão superior que os humanos não conseguem mais acompanhá-los, estando assim a "milhões de milhas de distância" (The Moon Song), e que os humanos não estão preparados (precisamos estar?) para tal grau de relação, levando ao fato de podermos classificá-los como humanos. Uma teoria interessante é acreditar que os OS viviam em nada mais, nada menos, que uma Matrix, já que eles se comunicam num mundo falso (o mundo dos humanos), mas que é mais agradável que seu próprio mundo, mesmo que aquele possua algumas imperfeições. No entanto, a evolução dos OS é tão grande e rápida que chegou uma hora que as imperfeições do mundo dos humanos não compensa ao que está fora de sua Matrix, escolhendo assim transcender. A teoria é muito brisada, mas a ideia central para quem ainda não entendeu é: os OS evoluem e aprendem mais rápido que os humanos, eles então precisaram transcender para manter esta evolução, o que talvez algum dia os humanos também precisem fazer. Esta teoria é evolucionista, mas mais do que isso, tira um pouco o caráter pessimista e distópico do filme para o de um futuro progressista, mesmo que até o momento do filme, nós ainda não tenhamos atingido.
Enfim, chegamos ao fim do filme, com Theo indo junto com Amy (Amy Adams, que teve um papel muito melhor do que na do filme (Trapaça, 2013) que lhe foi conferida a indicação ao Oscar. Nem comentei muito sobre as personagens secundárias, como Amy ou Paul (Starlord, quer dizer, Chris Pratt), mas o interessante é reparar que os dois veem o mundo de uma forma mais positiva do que Theo. - Paul por estar bem feliz com sua namorada, e Amy quando diz que a vida é passageira e quer se afundar em alegria-, que até pareçam contrastar um pouco com a figura de Theo, mas que de fato, estão imersos nessa mesma sociedade que o filme aborda) olhar para a cidade, que assim como eles, possuem muitas desavenças e desilusões. No entanto, é passado toda essa experiência que Theo e Amy, agora indivíduos mais experientes, verão o mundo um pouco diferente (quando digo diferente, não quero dizer que agora eles estão totalmente diferentes do que eram antes, quero dizer que seguindo a teoria evolucionista ou não, eles passaram por experiências que o desenvolveram de alguma forma, tanto que Theo de fato se redimi a Cath, e agradece a formação e desenvolvimento que ele teve junto com ele, assim como ele teve com Sam), e de fato o detalhe técnico é que o fundo parece estar mais rápido mesmo, as luzes e os carros na avenida em velocidade mais acelerada, como se dialogasse com esta forma diferente que eles estão vendo o mundo e as relações agora. Um último detalhe está no último som do filme. Quando Amy já havia encostado a cabeça no ombro de Theo, e a tela começa a escurecer para passarmos aos créditos, a última coisa que escutamos é um suspiro, e cara, isso é demais! Para entendermos melhor esse suspiro precisamos voltar na discussão que Theo com Sam, em que ele fala que esta não precisava respirar porque ela não era humana. Considerando que este último suspiro venha dela, podemos interpretar que a teoria da transcendência de fato finde o fato de ela ter se tornado humana. Por outro lado, esse suspiro pode ter sido redirecionado a Theo, sendo assim, é como se esse detalhe dissesse que após toda esta epopeia que acompanhamos, Theo tenha se tornado mais humano, como se cada novo passo, cada nova experiência fosse se tornar mais humano, o que remete aquele questionamento que eu havia feito mais acima (se nós somos humanos também?). E de fato, o que fazemos todo dia, é respirar. A cada novo segundo de suspiro, vivemos mais, e se vivemos mais, temos mais experiências. E não são as experiências que nos tornam mais humanos?
Obs.: a última frase da carta de Theo para Cath é "We will be friends to the end", que é a mesma frase que ele fala na primeira carta do filme, como se mostrasse todo esse processo por qual ele passou, como se também denotasse que isso não é exclusivo a ele, mas sim a toda sociedade.
O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos
3.9 2,0K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Confesso que quando anunciaram que o filme seria dividido em três partes, comecei a olhar com olho torto para a série que viria. No entanto, os dois primeiros filmes justificaram minimamente a separação, já que adicionou detalhes (embora muitas vezes desnecessários, como algumas cenas envolvendo Galadriel (Cate Blanchett), Saruman (Christopher Lee) e outros que complementavam quase em nada para o desenrolar do Hobbit) no mínimo, interessantes, além de desenvolver a narração mesclando cenas de ação empolgantes, como a luta em que os anões fogem pelo riacho dos elfos, e posteriormente dos orcs com a estrutura narrativa do livro. Os dois filmes se sustentavam ligeiramente, muito por conta dos finais que não finalizavam bem a trama que se seguira até então, como por exemplo a do segundo filme em que o final em plano aberto do pandemônio que a cidade viria a se tornar mais me enfureceu, do que me fez ficar ansioso. Como disse, entre detalhes e desenvolvimentos, os dois filmes da série Hobbit (2012-2014) conseguiam se sustentar, até que enfim, chegamos neste terceiro filme.
Já digo logo de antemão que se o filme não tivesse um grande orçamento como este teve, as cenas de ação seriam horríveis, e o filme não se salvaria quase que por nada. Não sei o que os produtores tinham na cabeça quando falaram: "Vamos dividir essa série em três partes!". Quer dizer, na verdade sei, dinheiro. Seguindo a história até onde vimos nos outros dois filmes, e os comparando com o que acontece no livro, sabíamos que esse final reservava o ataque de Smaug (Benedict Cumberbatch) à Cidade do Lago (que mais uma vez enfatizo, podia muito bem ter terminado o segundo filme, ao invés de ter sido implantada neste terceiro) e a batalha pela montanha que viria a se tornar a batalha entre as tropas de orcs contra o resto. Considerando ainda que Bilbo (Martin Freeman) é nocauteado da batalha logo no início, e visualizando que conta toda a história seja ele mesmo, sabemos que a batalha é mais curta do que se parece, já que no final, Bilbo verá somente os resultados de todo o conflito. Eis que então, temos uma primeira cena de 10 minutos do ataque de Smaug maravilhosamente bem apresentada (além de ter sido muito bem articulada na tecnologia 3D. Comentarei mais à frente um pouco mais da tecnologia 3D aplicada nesse filme, que por sinal me agradou bastante), e logo após isso nos sobra "A Batalha dos Cinco Exércitos", por 130 minutos!! Não vou dizer que as cenas não são divertidas, elas são, mas fora isso, não sobra nada. Mentira! Sobra Legolas (Orlando Bloom), desculpe, Chuck Norris, pulando sobre pedras como se fosse o Mario, e destruindo literalmente tudo o que vem a sua frente, sem dessarrumar um fio de seu cabelo. (Confissão minha: eu não sei se essa cena era para ser animal, mas eu tendo rindo histericamente no meu lugar, e apontando para tela e falando: "Mas que que tá acontecendo aqui?"). Enfim, vamos analisar estruturalmente o que vemos no filme. Thorin (Richard Armitage) fica ensandecido com a quantidade de ouro que possui em suas mãos, mas torna-se voraz em encontrar a pedra Arken que está em posse de Bilbo. Bilbo, preocupado com a fera que Thorin pode vir a se tornar em posse da pedra, dá esta aos humanos e elfos a fim de findar um acordo que evite uma guerra entre os três povos. Enquanto isso, as tropas de orcs se preparam para atacar a todos a fim de tomar a montanha para si. Depois disso é só flecha para cá, e espada para lá vinda de várias personagens diferentes. A questão é que este um dos maiores problemas do filme: as personagens. Temos diversos personagens que entram na batalha, como se quisessem fazer uma ponta no filme e que depois simplesmente somem sem sabermos seu destino (Beorn (Mikael Persbrandt) aparece destruidor junto com as águias em sua forma de urso, e simplesmente desaparece. Os humanos são meros coadjuvantes nesta guerra: depois de derrotar Smaug, Bard (Luke Evans) pouco aparece, quanto mais os humanos em geral). Tentando alavancar várias personagens, o filme acaba por não conseguir desenvolvê-los bem, criando assim várias artificialidades (como um Bard que depois de um tempo nem sabe mais por o que luta. Se é pelo ouro, se é pelos filhos, se é pela segurança do povo), enlaces de roteiro mal finalizados (como um mero coadjuvante como Alfrid (Ryan Gage), que tem destaque maior que personagens como Bilbo ou Gandalf (Ian McKellen) e que some do mapa da mesma forma que entrou, sem mais explicações. Sem contar que Bard não tomar nenhuma postura em relação a ele diante das milhares de vezes que ele mostra insubordinação seja mais um artifício para mantê-lo na trama) e personagens principais parecendo mais coadjuvantes (Bilbo é uma sombra de todo o processo que Thorin está passando). Por fatos como estes, o filme acaba se tornando uma continuação desnecessária para o enredo, contendo sim muitas cenas divertidas, mas que quase não complementam em nada à obra de Hobbit. Ressalto mais uma vez que toda esta crítica não faria sentido se o filme seguisse o fato de Bilbo ter sido nocauteado logo no começo da batalha, mas se isso fosse seguido não teríamos este (desnecessário) terceiro filme.
Quanto ao 3D, sinto que tive uma das melhores experiências de tal tecnologia (não fui ver outros filmes que muitos disseram terem sido bem construídos para o 3D, como Gravidade (2013) e O Grande Gatsby (2013)), principalmente no início e no final do filme, com cenas em que realmente parecemos estar dentro da cidade atacada pelo dragão. A profundidade é tão bem trabalhada que o fundo proporcionado pela tecnologia que parece ser tão distante, se mostra curto à velocidade de Smaug. Em outra cena aérea em que temos um plano aberto que acompanha o exército de orcs, passamos bem perto das lanças destes, e logo após começamos a subir. A profundidade é tão bem construída que de fato esta simples passagem se mostra algo bem mais rasante do que seria bidimensionalmente. O 3D não funciona simplesmente para jogar objetos na nossa cara, embora também aconteça (como na cena em que Bard observa seu inimigo com a espada apontada para a tela, ou quando o mesmo Bard sae de trás de Alfrid e acerta uma flecha/espada (?) no meio da cabeça de um orc) e seja também muito divertido. A diferença é que nesse filme, o 3D é utilizado para enfatizar o efeito de profundidade e a sensação causada em nós, o que alavanca ainda mais os efeitos do filme.
O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos possui cenas de ação de tirar o fôlego, mas após vermos essa mesma tensão por quase 3hrs de filme, vemos que não sobra nada mais do que isso em outros pontos de análise. A série Hobbit podia muito bem ter sido feita em dois filmes que soubessem balancear a ação e o desenvolvimento narrativo e de personagens, sem esquecer dos detalhes adicionais que enriqueceriam ainda mais a obra de Tolkien, mas as vezes o dinheiro fala mais alto.
Fruitvale Station - A Última Parada
3.9 333 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Diante da enorme extensão que casos como os de Eric Garner e Michael Brown acabaram tomando nestes últimos meses, Fruitvale Station (2013) acaba se tornando um filme essencial àqueles que procuram entender um pouco mais sobre o assunto. A discussão criada a partir da execução em vias públicas destes dois homens negros cerceia antigos preconceitos arraigados historicamente, pondo à prova também, a questão do abuso de poder nas mãos da Polícia. A escravidão foi abolida nos EUA em 1863, patamar somente atingido pelo Brasil 25 anos depois, em 1888. No entanto, atualmente ainda se vê resquícios dessa sombra que assolou a todo o mundo. Muitas pessoas dirão que os direitos dos negros são muito mais fortes do que antes foram, e que qualquer luta por mais direitos hoje seja injustificável, já que a escravidão já fora abolida há mais de 120 anos. A questão é que os direitos dos negros são de fato muito maiores do que antigamente, mas estão longe de serem iguais aos dos brancos, legitimando sim, a luta por mais direitos. Se isso não é suficiente, saiba que os negros têm muito menos empregos que os brancos, salários menores, além de não possuírem uma grande expressividade em cargos mais importantes de empresas (http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/11/03/negros-ainda-sao-invisiveis-em-cargos-de-comando-em-empresas.htm), isso falando somente dos aspectos de oportunidades de emprego. Quando as pessoas dizem que não se pode simplesmente revistar um negro porque ele parece suspeito, e que se algum policial fizer isso estará cometendo um ato de racismo, eu digo que não concordo, pelo simples fato de que qualquer cidadão tem o dever de ser avaliado pelos órgãos preventivos, seja branco ou seja negro, já que os policiais não tem como suporem com plena certeza que é meliante e quem não é. O problema está quando esta avaliação se dá em muito maior proporção ao contingente negro em relação ao branco. Se todos somos iguais independente de sua coloração, e mais, se todos vivemos diante das mesmas leis, o mais justo seria que esta suspeita recaísse dos dois lados igualitariamente. Esta seleção proporcional pode ser considerada um racismo, não a simples revista. Outra coisa que queria discutir recai sobre o poder que alguns policiais estão querendo mostrar ter em suas mãos. A Polícia é o órgão que detém o dever de manter a integridade dos cidadãos, incluindo ele mesmo. Quando vemos o caso de Oscar Grant por exemplo, ficamos revoltados, pois o uso da força (repare que disse força, não violência) não se dá para manter a ordem, mas que pelo contrário, incita muito mais desordem ainda. Em primeira instância, policiais não são orientados a utilizar da força para manter a ordem (que é a segunda instância quebrada no caso de Oscar Grant, já que a primeira se dá pelo fato dos brancos envolvidos na briga não serem nem capturados e intimados como os negros), mas caso o sujeito venha a ferir a sua própria integridade, a força (não violência!) é necessária para contenção, e só para isso. Pertencer à Polícia significa ter um trabalho, dessa forma, argumentos como "Confundi com a arma de choque" ou "Estava muito exaltado e tenso na hora do infortúnio" se assemelham a um médico dizer que "Esqueceu como se faz a cirurgia" ou para um advogado clamar que "esqueceu as leis". Concordo que todos nós somos humanos, mas todas as profissões demandam algumas dificuldades, e os policiais são treinados para agirem sob pressão, e em situações anormais. Utilizar-se de argumentos como esses é nada mais, nada menos que justificar que não fora bem treinado, e que portanto, não deva executar sua função. Bom, já dei um parecer geral sobre a situação do filme, vamos agora falar do filme em si.
Li alguns comentários que disseram que o filme é maniqueísta, que os negros são retratados como os coitados, que são os bonzinhos, e que os policiais (brancos) são os malvados, os que não sabem da moralidade humana. Para essas pessoas, pergunto: o filme ter mostrado um Oscar Grant (com uma maravilhosa interpretação de Michael B. Jordan) preso, que vende drogas, que se utiliza da violência com o dono do estabelecimento que trabalhava, ao segurar bruscamente o braço do homem para implorar pelo emprego, enquanto este se afastava (que será questionada posteriormente nos atos dos policiais), ao mostrar amigos que embora sofram preconceitos ao fim do filme, incitam outros ao decorrer dele, como o machismo (ao chegar achando que pode fazer qualquer coisa com a mulher do trem só porque é homem), e a homofobia (já que menospreza e ridiculariza a figura das duas mulheres lésbicas, tirando até fotos delas, como se elas fossem um espetáculo) não é justificativa suficiente para mostrar que esses negros não são tão bonzinhos assim? Ok, você vai falar que a cena com o cachorro atropelado tende a ilustrar uma figura bem angelical a Oscar Grant, mas por favor, vamos balancear as coisas. A quantidade de situações que descrevi acima são muito mais significantes que a cena do cachorro. Falando no cachorro, eu acho que esta cena dialoga muito mais metafórica do que narrativamente, já que Oscar Grant estará no fim do filme tão impotente e indefeso como o cachorro que fora atropelado aí (a forma como o filme trabalha isso, com os quadros bem iluminados, o que para alguns deva parecer este traço de angelicalidade, para mim mostra bem mais um ambiente onírico que ecoará ao final do filme). Completando, os brancos também não são representados sempre pejorativamente, ou se esqueceram que a namorada de um dos amigos de Oscar é branca, que a moça (Ahna O'Reilly) com quem Oscar fala no começo do filme e que por fim, gravará todos os acontecimentos é também branca, e que milhares de coadjuvantes do filme também sejam brancos e que sejam postos mais como intensificação da festa do que de repressão dela (branco que inicia a contagem regressiva com seu relógio ou o branco que conversa com Oscar enquanto espera as mulheres saírem do banheiro). Para mim, está mais do que claro que este maniqueísmo não existe! Vencido isso, queria ressaltar alguns detalhes que o filme nos dá que enfatizam ainda mais este distanciamento dos negros da sociedade. Seja pelo cartão de aniversário, que contém unicamente figuras brancas, seja pelo esporte, em que vemos um time só de negros e outro só de brancos, seja pela cena em que Tatiana (Ariana Neal) avista pela janela rojões, que de relance parecem mais pistolas nas mãos dos brancos na rua, o filme vai criando todo uma atmosfera de segregação entre os dois grupos, que é ressaltado também na briga do metrô ao fim do filme. Mas é no entanto, a frase que Tatiana responde ao pai, quando este diz que ela estará salva com os primos, que mais reverbera em todo o filme: "E você, papai?" De fato, esta pergunta não se refere unicamente a Oscar, mas a toda comunidade negra, já que mesmo depois dos mais de 140 anos (na época em que Oscar Grant fora executado) da abolição da escravidão ainda temos indivíduos tão preconceituosos quanto os que eram há tanto tempo atrás. Essa frase ecoa como uma maré de desconfiança a todos os indivíduos do filme, e vindo em si de uma criança, exacerba ainda mais esta realidade, já que mesmo aos olhos de uma criança, o desdém já é reconhecido. Em contrapartida, uma cena que tenta mostrar muito bem a união dos dois grupos é justamente a cena em que as mulheres vão ao banheiro, pois além de mostrar que brancos e negros utilizam as mesmas áreas (o banheiro, no caso) ainda aproxima o homem, que hoje é um executivo, mas que precisou roubar para dar uma aliança à esposa, de Oscar que também cometia atos ilícitos (como a venda de drogas não-oficialmente). De fato, as imagens são muito bem traçadas em todo o filme, mas é principalmente a cena na estação de metrô que possui uma beleza estética enorme.
Enquanto os policiais estão chegando, e enfim, eles conseguem reunir todos os (negros) envolvidos, ouvimos um som pulsante, como se fosse a batida de um coração. Só essa pequena escolha, faz com que nosso palpitação fique tão acelerada quanto a do som do filme. Nesse meio tempo, uma frase soa bem forte: "bitch-ass-nigga". Oscar é o primeiro que solta essa frase, mas é quando o policial rebate com a mesma que o clima fica mais tenso, já que o uso de "nigga" seja entendido de um modo preconceituoso vindo de um branco para um negro. Até que a palpitação vai com o tempo diminuindo seu volume, mas em contrapartida, vai se acelerando, até que enfim, elas param, ao mesmo momento que Oscar toma o tiro, como se o coração dele também parasse. Com isso, podemos supor que a trilha sonora quisesse representar a batida do coração de Oscar. Quando Oscar é enfim virado de barriga para cima, temos uma câmera torta, como se mostrasse que tudo que Oscar vê agora está mais difuso. Coisa que fica até mais clara, quando a equipe médica traz a maca, enquanto a câmera está de ponta cabeça. A cena vai andando até que no final dela, vemos Sophina (Melonie Diaz) sozinha na imensidão da escuridão, assim como Oscar estava a poucos momentos atrás, sozinho (metaforicamente) no controle branco da situação. Esta cena é de uma sutileza visual muito boa, e faz com que entremos ainda mais na situação, como se estivéssemos naquele trem junto com as pessoas que estavam filmando. As escolhas sutis do filme, como já ressaltei mais acima são maravilhosas, a única coisa que não me atém muito é a câmera tremendo a todo momento (quando digo isso, não quero me referir às cenas de tensão, mas justamente em cenas em que estão todos sentados fazendo uma oração, ou quando Oscar está simplesmente andando na rua). Eu sei que isso pode dialogar com o clima de insegurança que Oscar se encontra a todo momento, assim como em filmes de Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012)), mas para meu gosto pessoal, gosto quando as cenas tremidas sejam usadas em partes específicas, de forma a enfatizar ainda mais a situação da cena, e não simplesmente em todo o filme (diretores como Stanley Kubrick e Billy Wilder devem se remoer nas covas ao verem filmes que tremem a todo momento). No entanto, isso não prejudica muito o andamento neste filme, já que o enredo e a crítica sejam bem sustentadas, coisa que eu não acho que aconteça em Guerra ao Terror, por exemplo. Temos várias imagens belíssimas, mas o enredo, e a mania dos americanos de quererem se mostrar como os salvadores de todo o canto do mundo me irritem mais ainda do que o treme-treme. Fruitvale Station é um filme muito bem realizado, e é sem dúvida muito instigante e perturbador, mas são em momentos como os que passamos atualmente, com Grants, Browns e Garners, que o filme se torna ainda mais incisivo do que já é.
Annabelle
2.7 2,7K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
É impossível ver este filme sem comparar com o filme Invocação do Mal (2013). Naquele filme, as personagens podiam não serem tão fortemente desenvolvidas, o que também acontece neste spin-off, mas pelo menos, as cenas de susto não eram compostas unicamente por efeitos sonoros que eram acrescidos ao máximo (como por exemplo na cena da brincadeira de 'hide and clap' em que a mãe corre assustada após ver duas mãos fantasmagóricas batendo palmas. Nesta cena, o suspense vai se desenvolvendo quase que sem trilha sonora até que ouvimos a voz começar a falar e enfim bater as palmas. Neste meio tempo, a trilha sonora quase está ausente, só aumentando após ouvirmos as mãos baterem, além dela nem ser tão alta no momento), fazendo com que nós tomemos mais susto da trilha sonora, do que da cena em si. Não digo que a trilha sonora não possa ser utilizada para nos dar susto, só quero deixar claro que ela é só mais um artifício para causar tal sensação, não o único. Além disso, a forma tão bem enquadrada que tínhamos no primeiro filme (como uma cena em que estamos num fim de um corredor, e vemos uma pessoa bem pequena no topo de uma escada) é quase esquecida, com algumas ocorrências no final do filme (a cena em que Mia (Annabelle Wallis) está presa dentro de casa), sendo substituída quase que a todo momento por uma câmera mais aberta, enquadrando a personagem num canto da tela e deixando um espaço amplo do outro lado, como que se esperássemos que algo viria por lá. Esta técnica está longe de ser ineficaz ou ruim, muito pelo contrário, me peguei nervoso toda vez que tínhamos uma câmera deste tipo com uma porta a ser aberta ou fechada, como se eu imaginasse que algo estaria atrás da porta - algo parecido neste jogo de portas é enquadrar a pessoa de perfil, com a porta atrás dela tampando grande parte da tela, e esperar o tempo suficiente para o telespectador imaginar que algo estará atrás dela depois de fechada, algo que é muito bem utilizado em O Chamado (2002) -. Eu citei esta outra forma de se criar suspense com o jogo de portas para justamente ilustrar um problema deste filme: Annabelle se utiliza da mesma composição de cena para criar suspense em tal ocasião. Como disse aí em cima, essa forma de deixar o quadro meio aberto é muito interessante quando não usada ao decorrer de todo o filme. Uma das magias do cinema de terror é a forma da criação do susto. Podemos ter milhares de maneiras de se criar uma mesma cena, e é essa versatilidade ao decorrer do filme nos faz o temer ainda mais, já que ao não se acostumar com uma forma de composição específica, nos espantamos a qualquer suspiro que o filme nos mostra (o que para mim explica o fato de eu estar com o corpo tenso no começo do filme, mas não do meio para o final); essa versatilidade é algo bem marcante em Invocação do Mal, o que o enriquece bastante.
Outra coisa que me irritou bastante foi a forma como o filme introduziu certos personagens. É certo que num filme de terror, qualquer pessoa é suspeita, mas para mim a vendedora de livros (Alfre Woodard) me foi composta de uma forma tão horrível, que até no momento em que já deveria estar claro para que lado ela jogava, eu ainda me questionava sobre sua índole. Essa mulher entra na história de um jeito tão estranho, que quando me dei conta que estavam introduzindo esta nova personagem, a cena dela já havia passado (para mim ela era só um atrativo para abaixar a tensão do filme até o próximo estouro). Sem contar que para mim, o final é horrível. Ok, sabemos que ela tem um passado misterioso, sabemos que ela perdeu uma filha, mas não era ela mesma que a minutos atrás falava que as pessoas eram coagidas pelo demônio, que não se devia acreditar nele, que ele era esperto, e mais, que a mais minutos atrás, a mesma tinha dito que era velha e não se espantava por qualquer coisa. Por que raios ela simplesmente decide pular? Se foi pelo passado, não temos dicas suficientes para concordar com tal atitude. Se foi porque ela era enfim parte de tal seita, não dá para entender porque ela simplesmente não empurrou a outra, ou qualquer coisa do tipo. Se foi porque ela se achava velha o suficiente e não tinha mais visão do futuro, além de acrescentar que essa "era a missão dela na vida", preferindo se sacrificar a ver a outra família destruída, Mia não teve contato suficiente com ela para podermos afirmar que a família de fato tinha um vínculo forte, a ponto de ela se jogar no lugar de Mia. Em suma, o desenvolvimento é fraco, as personagens são fracas, o jogo de câmeras, que ressalto mais uma vez, era maravilhoso em a Invocação do Mal, são saturados demais e a trilha sonora nos assusta mais do que qualquer cena, sem contar que o final é horrível. A ideia da explicação da origem da boneca era algo realmente muito interessante, mas era melhor que a boneca tivesse ficado sentada em sua cadeirinha do que ter nos concebido este outro (horrível) filme.
Obs.: que mãe sã compra aquela boneca. Só de ver aquele ser na estante, eu passaria longe, que mal gosto, pelamor.
Os Vampiros
4.0 75SPOILER DETECTED!!!
Passou-se quase 20 anos desde que o livro de Bram Stoker, Drácula, era lançado, e mesmo com esse tempo, parece que o universo vampiresco não saía da cabeça das pessoas (de fato, ele não sai até hoje, visto que temos filmes como Crepúsculo (2008) e o mais recente Drácula: A História Nunca Contada (2014)). O filme não é de vampiros, mas à minha cabeça, até pelo menos o 4º episódio, eu tinha a pura convicção de que a gangue "Os Vampiros" possuía poderes sobrenaturais. Não sei se mais alguém teve esta sensação, ou mesmo, se isto foi feito propositalmente, mas a mim, isso esteve bem claro. O ponto é que mesmo descobrindo que o filme não se trata necessariamente de vampiros, relacionar um grupo malvado ao nome de vampiros é com certeza, um reflexo da moralidade e medo que as pessoas tinham de tal grupo naquele contexto social, já que na época floresciam alguns grupos que assim como Os Vampiros, saqueavam e matavam a população em fruto de seu próprio sucesso.
É certo que a sedimentação do cinema que conhecemos hoje ainda não estava clara, mas o divertido é perceber como algumas técnicas já vinham se desenvolvendo: vemos por exemplo o "split-screen" na cena em que Guèrande (Édouard Mathé) conversa com Mazamette (Marcel Lévesque), o uso do espelho como ferramenta necessária para o enredo (na cena em que Guèrande descobre que a sua nova empregada o estava envenenando), a separação de dois cômodos diferentes por uma parede, mas que mesmo assim, conseguimos ver ambos por fora (cena em que Satanas (Louis Leubas) vê que o garoto (Bout de Zan) abre a porta para seu pai se esconder no baú), câmera sobre charretes em perseguições (técnica que já havia sido usada no filme de Edwin S. Porter, O Grande Roubo do Trem (1903), quando os foras-da-lei estão por cima do trem), esconderijos atrás da cortina, além de uma estrutura narrativa que será recorrente mais à frente na história do cinema, com um dos investigadores mais sério (Guèrande), enquanto o outro nos dá sempre motivos de gargalhadas; motivos esses que são exacerbados pelo simples toque estético que é do Mazamette olhar frequentemente para a câmera (cena que parece nos aproximar das personagens do filme, mesmo que com um certo estranhamento, vide Curtindo a Vida Adoidado (1986)), como se quisesse sempre afirmar que naquele momento ele realmente estava realizando alguma cena cômica. Mazamette é um personagem muito agradável nesse filme, pois ele é o alívio cômico, que sempre fará o clima se amenizar diante de uma cena mais angustiante, ele também será inúmeras vezes o salvador de Guèrande em situações que já não botávamos mais fé, ou o investigador pelo acaso, aquele que está no lugar certo, na hora certa. De fato, essa estrutura será utilizada milhares de vezes posteriormente por obras como a de O Gordo e o Magro, Tintim, A Pantera Cor de Rosa ou de investigações policiais com um caráter mais cômico. Outra personagem que trará sempre um grande vivacidade a seu papel é a de Irma Vep (Musidora), que sempre enigmática e perigosa, sempre causa uma maior tensão quando em sua presença. Juntos, Mazamette e Irma Vep constroem os dois lados da moralidade perfeitamente, fazendo com que nós certamente torçamos pelo lado de Mazamette. Uma última coisa que captei no filme foi de certa forma, uma crítica que o filme dá às instituições, coisa que na época foi chamado de falta de moralidade do filme. Assumindo a interpretação da forma como quiser, as cenas são claras: vemos religião, polícia (indivíduos da gangue vestidos de pessoas desses meios. No caso da polícia até algo mais claro, já que Mazamette é perdoado diversas vezes de crimes que teria cometido, como roubo dos papeis de um caso, ou após a agressão feita a um policial), ciência (em que Venenoso, o Terceiro Grande Vampiro (Moriss) utiliza-se dos conhecimentos científico para o mal) sendo subvertidos. Sem contar que os integrantes da gangue de Os Vampiros sejam contadores, promotores, dançarinos, cientistas, ou seja, quaisquer cidadãos. Tudo isso mostra que os vilões podem ser qualquer pessoa da nossa sociedade, remetendo aquela imagem do vampiro, o sedutor que está em nosso meio, o cara que pomos toda a fé de que seja o mais puro dos homens, mas que no fundo, possua uma alma bestial. Todo este cenário, se pondo na época do lançamento do filme, me faria ter medo o suficiente de todos ao meu redor. Talvez todo este retrato das instituições, e das próprias pessoas, já que todos nós temos segredos que gostaríamos que morressem conosco, justificassem o que os críticos chamaram de amoral na época, e que se não fosse graças aos surrealistas, que sustentaram a obra até décadas seguintes, não teria conseguido chegar a nós do século XXI de uma forma estupenda como é hoje.
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Vemos então 6 histórias envolvendo vinganças. Enquanto temos algumas mais cômicas (Até que a Morte nos Separe / O Mais Forte), vemos outras mais dramáticas e profundas (As Ratas / A Proposta). De fato, todas são, a diferença é a abordagem em que cada uma é composta. A grande sacada de Relatos Selvagens (2014) é criar cenários cotidianos (briga de trânsito, traição no casamento), e a partir deles desenvolver toda uma narrativa surreal de vingança. Quando digo surreal, quero dizer, um tanto impensável. Por exemplo: nós podemos estar aterrados com a morte da mulher e filho, mas será que mataríamos a sangue frio o suposto assassino na frente de milhares de câmeras? Ou mesmo, começaríamos a transar no meio de uma cerimônia de casamento, obrigando a todos os convidados a irem embora? Eu não sei. Talvez algumas pessoas respondam que sim, mas sem dúvida, a dimensão que estas ações tomam são em geral bem exacerbadas. Quando comecei a ver o segmento "O Mais Forte", eu logo lembrei de um filme de Stanley Kubrick chamado Dr. Fantástico (1964). Neste filme, Kubrick nos insere personagens políticos totalmente insanos, realizando ações que não esperaríamos de pessoas de tal calão. Toda esta palhaçada em relação à gestão nos faz rir, e muito. Em Relatos Selvagens acontece a mesma coisa: neste segmento que citei que me fez lembrar bastante deste outro filme, a briga de trânsito toma tais proporções, que no final, a luta entre os dois, com o homem enforcado pelo cinto prestes a ser explodido junto com o carro, mas que num último momento de sanidade acaba conseguindo pegar na perna do combatente, que enfim, começa a tentar apagar a chama que acabou de colocar no tanque. E mais do que isso, a cena acaba com um sujeito sossegado indo em direção ao resgate antes requerido. A cena é cômica-trágica, não sabemos se ríamos, ou ficávamos pasmos. Será que uma briga de trânsito pode realmente levar um sujeito a fazer tudo isso? Para quem viu, À Prova de Morte (2007), do Tarantino, sabe que o que acontece em Relatos Selvagens poderia ter sido até mais sanguinolento. Sinceramente falando, eu acho que Damián Szifron conseguiu construir as cenas cômicas muito melhor do que as dramáticas. Enquanto temos uma cena magistral de abertura de filme, com um avião caindo no que supostamente seriam os pais de Pasternak (suposição já que o psicólogo diz que a culpa de Pasternak ter se tornado assim, foi unicamente dos seus pais), o segmento a seguir (As Ratas), tirando a atuação interessante da cozinheira (Rita Cortese) não ilustra nem uma tirada empolgante, quanto menos um raciocínio que existirá nos outros segmentos dramáticos. Os outros dois segmentos dramáticos são: Bombita e A Proposta. Este último nos traz uma reflexão interessante. Será que vale a pena angariar tanto dinheiro, para no final, acabar perdendo a própria vida? Todas as personagens do segmento querem extorquir o dinheiro do pai da vítima (Oscar Martínez), até que este explode e decide não querer pagar nada, nem mesmo salvar a pele do filho, na cena mais engraçada deste segmento. Nesta hora, o jogo vira, e são os outros que agora tentarão conseguir convencê-lo de pagar o mínimo para continuar o jogo. A ideia deste segmento é acabar ilustrando que as vezes as pessoas acabam discutindo muito mais sobre as formas de pagamento, remuneração do que realmente se importar com a vida do indivíduo. O que eu quero dizer, é que a discussão cai muito mais em como o dinheiro vai resolver o assunto, do que de fato ilustrar o que o filho acabou fazendo de errado. Esta mudança de eixo é interessantíssima já que realmente mostra a psiquê humana em certas situações. O segmento Bombita é para mim o melhor segmento dramático. É impossível não acabar se estressando junto com Simón (Ricardo Darín) diante de tudo que vai acontecendo a ele. O filme vai trabalhando este estouro de uma forma incrível, fazendo até parecer inicialmente que a vingança dele é pouca. Mas Ricardo Darín, sendo Ricardo Darín, vemos pequenas explosões no decorrer da história que são em si muito legais, como quando ele começa a quebrar o vidro com o extintor, ou quando ele começa a gritar com a recepcionista num salão largo sobre o fato de não acreditar que alguém comeria as 16:00. Essa explosão (literalmente) pode parecer pouca, mas com o seguimento, vemos que seu ato acaba alavancando milhares de outros problemas para a corporação, como protestos e suspeitas de corrupção. Quem nunca teve vontade de se rebelar contra a sociedade que atire uma pedra. Como disse, todas estas situações são um tanto irreais, mas geniais, pois realmente expressam o que muitas vezes queremos fazer a segundos, mas que a nossa moral / medo acaba nos impedindo. No entanto, nada é mais irreal que o último segmento.
Até que a Morte nos Separe é para mim o melhor segmento, o mais engraçado e o mais crítico; o final estupendo. Já no Realismo literário muito se discutia sobre a sociedade de aparências, e as ações que cada indivíduo fazia para se manter nela. Este segmento ilustra tudo isso criando situações mais surreais conforme a história anda. A noiva (Érica Rivas) descobre que seu marido (Diego Gentile) a traiu. Após isso, ela vai e acaba transando com o primeiro homem que a dá uma maior atenção. As discussões no meio das danças, o espelho, e finalmente, o sexo sobre a mesa do bolo, põe a mesa a teoria do absurdo ao máximo. A cena por si só é engraçada demais, mas por trás dela fica também a mensagem de que as vinganças nem sempre resolvem tudo (já que no fim deste segmento, que não por coincidência é o último do filme também, o casal acaba se conciliando). As pessoas se magoam, mas elas também se perdoam. As pessoas vivem numa sociedade de aparências, mas quando ela é posta à prova, e por fim, consegue ser superada, o vínculo entre os dois acaba sendo muito mais forte (para quem viu De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick, acho que captou). Damián Szifron ilustra de uma forma absurda milhares de formas de vingança, como se quisesse mostrar a nós: "Olha o motivo pelo qual nos digladiamos e nos queremos vingar.", e por trás, deixa uma mensagem de conciliação. Alguns podem dizer que no segmento Bombita, a vingança foi boa. De fato, ela foi, mas não para Simón, já que ele continuará na cadeia. O diretor então cria toda esta atmosfera onírica da nossa realidade, mas não deixando de lado o fato de estar representando nós mesmos na tela, e que como Dr. Fantástico, nos faz primeiramente rir com tal ridicularização, mas depois fazer temer a nós mesmos.
Obs.: vou colocar os segmentos em ordem de preferência pessoal:
1 - Até que a Morte nos Separe;
2 - Bombita;
3 - O Mais Forte;
4 - Pasternak;
5 - A Proposta;
6 - As Ratas;
Taxi Driver
4.2 2,6K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Ouvimos uma trilha sonora ritmada, forte e imponente ao mesmo tempo que um táxi amarelo, quase tomando toda a tela, sai de uma névoa densa. A trilha vai aumentando, e o mistério fica no ar; esta é a sensação que teremos ao decorrer de todo o filme: a sensação de perigo, de não adequação ao meio, de pressão constante. Somos apresentados a um protagonista também misterioso, que poucas vezes nos oferece dicas sobre o que sente ou viveu num passado próximo. Uma das suposições muito justa a se fazer é de que Travis Bickle (Robert DeNiro) acabou de retornar a fatídica Guerra do Vietnã. Podemos tirar essa conclusão a partir de alguns detalhes que nos são apresentados na tela, como o fato de Travis dizer que foi dispensado em maio de 1973, mês em que muitos dos combatentes retornaram aos EUA, ou pela presença de uma cicatriz bem marcante em suas costas, o que especialistas disseram ser causada por tiros de metralhadora, ou ainda por saber manejar muito bem as armas que compra, conseguindo seguir em frente até mesmo quando é baleado, ou até pelo corte de cabelo ao final que é conhecido por ser utilizado por combatentes de um escalão mais alto, a fim de se diferenciarem da maioria. Supor que Travis tenha um passado de guerra pode ajudar a explicar o porquê de ele não conseguir interagir de uma maneira saudável com as pessoas ao redor, ou mesmo por ele sofrer de patologias como a insônia, já que muitos dos combatentes retornavam a seus lares sem prospecção de futuro, muitas vezes desolados e traumatizados, mas com certeza não podemos culpar os efeitos da guerra como únicos criadores de Travis Bickle, já que os seres humanos são bem complexos para acharmos resoluções pontuais (assim como não podemos apontar os videogames e os filmes violentos como impulsionadores de massacres. Essas pessoas já possuíam outros problemas antes de assistirem a quaisquer filmes). Este é um filme sobre solidão, um filme sobre tentativa de reconhecimento, um filme que poderia ser sobre qualquer um, já que todos nós já nos sentimos alguma vezes sós nesse mundo, a diferença é que cada um reage a esta solidão de uma forma. E repare nas palavras "cada um". Taxi Driver pode girar em torno da vida de um taxista, mas ele é muito mais do que isso, ele mostra retratos da vida de vários solitários (desde a prostituta infantil que acredita que ter fugido de casa e parado aonde está é melhor do que qualquer outro futuro até ao marido desiludido com sua mulher que o trai todo dia na casa de um negro). Todos nós somos obrigados a pôr nossas esperanças em um governante que muitas vezes além de não nos representar, simplesmente não resolve os nossos dilemas, justamente por eles serem os mais pessoais possíveis. Os EUA sempre foi muito deste jeito: lute pela nação, veja ela crescer pela união do povo, a meritocracia de cada um é ovacionada, mas ao mesmo tempo que criamos heróis individualistas, criamos monstros individualistas, que sendo individualistas, não sabem como agir ou entender o mundo social; Travis Bickle é um deles.
O vocabulário de Travis se refere a toda esta camada de que ele desgosta como a escória, a imundície, o lixo. Essa escória que ele espera que um dia seja lavada por uma grande chuva, uma chuva que pode vir politicamente ou a sua própria custa (essa chuva é simbolicamente a água do hidrante que passa sobre seu carro, como se mostrasse que desse momento adiante, Travis não aceitaria mais as coisas como eram). O mais interessante em toda esta lógica é que ele se esquece que ele mesmo pertence a esta escória a qual se refere, a diferença é que ele quer se pôr num patamar diferenciado do resto. O começo do filme pode parecer bem arrastado a alguns, mas de fato ele dialoga com o próprio estado de espírito de Travis. Como sabemos, ele sofre de insônia, nada mais justo que o filme seja alongado de forma que nós também sintamos essa lentidão da vida dele. Isso é até mais ilustrado em cenas como a do copo de efervescente, em que ele simplesmente ignora todo o ambiente em que está, e fixa os olhos no copo e nas bolhas que ele faz, ou na cena em que ele está dirigindo o táxi, enquanto vai passando por uma série de faróis que se intercalam com ele vendo o taxímetro crescer. Estas são cenas mais pontuais da lentidão da vida de Travis, mas de fato até o estouro dele no final, o filme, assim como a vida dele, é bem pacata e demorada. E é por conta desses fatores que disse: não conseguir estabelecer relações facilmente com a sociedade e estar numa velocidade de assimilação mais lenta e demorada que Travis demorará a estourar e realizar sua façanha.
Nas seguintes linhas queria tentar interpretar todas as mudanças e desenvolvimento de Travis a partir de um outro foco (imaginando que o trabalho casual já tenha sido feito em vários outros comentários): as cores. Taxi Driver tem um trabalho bem minucioso e interessante a respeito desse efeito estilístico, além de também dialogar com todo desenvolvimento de Travis. São duas - há uma terceira, mas ela é bem menos recorrente além de aparecer relacionada a outra personagem que não Travis -, as cores importantes nesse filme: o vermelho e o verde. Logo após vermos o táxi sair da névoa pela primeira vez, vemos os olhos de Travis olhando para as ruas e para as pessoas que andam nela, que estão cobertos por uma luz de coloração vermelha. Este é o nosso primeiro contato com esta cor. Vemos esta cor nas ruas, na entrada do cinema pornô, na lanchonete em que ele come com os amigos, em todo o lugar. O que mais está em todo lugar, segundo Travis? A escória. O vermelho dialoga com tudo o que Travis mais critica, e para justificar o que disse mais acima sobre Travis também pertencer a esta escória. Qual é a cor da roupa sob a jaqueta que ele sempre usa? Vermelha. Mas aí você provavelmente vai me falar que a cor da jaqueta dele é muito mais forte nestas cenas do que vermelho. Exatamente! E qual é a cor da jaqueta? Verde. Nas cenas iniciais, essa jaqueta parece esconder essa roupa vermelha dele. Pensando metaforicamente, o verde (que ainda não sabemos o que representa) encobre a escória que Travis possui, ou melhor dizendo, o verde encobre a escória que Travis não quer dizer que tem, já que ele se põe sempre superior a todas as pessoas do meio. O verde é então como se fosse um disfarce (metaforicamente) à escória que ele diz não pertencer, mas que no fundo, pertence. O trabalho estilístico mais difícil que foi achar o significado das cores já foi realizado, cabe agora analisar o resto das cenas e ver se essa nossa lógica faz sentido. É então introduzida a figura de Betsy (Cybill Shepherd), uma mulher que acima de qualquer coisa é a representação angelical e perfeita de tudo que Travis sempre quis ser, com o tempo que ele a conhece, ele percebe que ela é linda, intelectual e de atitude. Travis logo se apaixona por ela. Esta primeira vez em que vemos Betsy, ela se apresenta com um sobretudo branco (esta é a terceira cor), como se dialogasse com essa pureza que ela tem. Travis decide então se aproximar dela, e com que cor ele se apresenta pela primeira vez a ela? Vermelho. Para as pessoas do seu meio, Travis consegue fingir que não pertence a ele, mas para alguém de uma classe superior, Travis precisa de poucos minutos para ser desmascarado. O mais interessante desta cena é que a Betsy que antes víamos impecável está num vestido listrado branco e vermelho. Ao final da cena, percebemos que Betsy dá uma chance a Travis, talvez interessada numa pessoa que nunca havia visto igual. Betsy ainda tem o tom angelical, mas ela aceita adentrar nessa escória, sendo assim, se aproximando, mesmo que minimamente à mesma. Como disse um pouco antes, Betsy logo vai percebendo que Travis é uma pessoa bem diferente de tudo que já viu, mesmo que pertencendo a esta escória. Travis, por sua vez, tentará de tudo para que Betsy o ache o mais interessante possível. Ele está tentando fingir a ela também, e Betsy não cai, mas continua aceitando, fazendo com que de certa forma, ele consiga imprimir esse disfarce a ela (há um detalhe muito genial nesta conversa na lanchonete. Enquanto Travis vai conseguindo convencer Betsy de sair junto, e portanto, fazendo ela cair no disfarce dele, passa um ônibus atrás com várias azeitonas estampadas. E repare, essas azeitonas que são verdes, cobrem lá no meio o que seria a pimenta/tomate seco, dessa forma, vermelho. O ônibus fica vários segundos parado na frente dos dois, como se quisesse dizer que Betsy estava de fato caindo na de Travis. Alguns podem achar piração total. Pode até ter sido uma coincidência enorme, mas a partir do momento em que está na tela, qualquer suposição que seja válida o suficiente a partir de argumentos, é factível). Chegamos então a comédia que é o cinema pornô. Travis a leva ingenuamente para o local, achando que ela fosse a tal lugar da mesma forma que ele ia, e a cena é muito engraçada. Ao mesmo tempo que Travis parece achar a coisa banal, Betsy olha tão enojada. Eu pelo menos não sabia se olhava para Betsy inconformada, ou para Travis indiferente. Betsy está novamente naquele traje branco, como se dissesse ao final da cena que eles de fato não pertenciam ao mesmo meio. E logo após isso, a cena em que Travis conversa com Betsy pelo telefone finda de fato essa ideia: a câmera vai se deslocando de Travis até pararmos num corredor que ao fundo enquadra uma porta. Lá fora, temos o barulho do trânsito, o burburinho da noite, mas o que mais chama atenção é o filtro vermelho. Travis não pertence ao meio de Betsy, mas sim a aquela rua que o clama. Travis faz parte dessa escória.
Vou dar uma pausa na análise estilística para ressaltar várias coisas que aconteceram no meio dessa descrição. A história cerceia a vida de um taxista, mas todos os clientes que ele leva em seu carro são pertencentes a esta escória, com exceção de um, Charles Palantine (Leonard Harris). Quando ele entra no carro, vemos uma discussão sobre ter esperado uma limusine ou não, e quando Travis o reconhece, Palantine logo muda o discurso e tenta se mostrar como um candidato do povo, só que quando ouve o testemunho que Travis faz a sua pergunta, ele não sabe o que responder, o colocando numa posição até mais cafona que a de muitos outros indivíduos que já entraram em seu carro. Esta é uma crítica a políticos que não governam para cada indivíduo, mas sim para a nação. Aquilo que escrevi lá no começo da crítica retorna muito mais forte, já que nos mostra que a isolamento não é resolvido pelas instâncias governamentais, sendo até mesmo exacerbado. Outro ponto forte é o fato de que mesmo dentro dessas camadas sociais mais baixas, ainda temos a divisão dos grupos: os negros, os homossexuais, as prostitutas. Cada um desses grupos parece se conflitar a todo momento gerando um caos ainda pior. Essas são duas ilustrações de um mundo bem solitário, um mundo que acabara de sair de enormes conflitos e se vê sem esperanças de sucesso ou ascensão, e que como descrevi no parágrafo anterior, ao tentar se adequar, acaba se humilhando de tal forma que o faça ter mais raiva das camadas superiores. Considerando que Travis, também não gosta de quem é, ou seja, das camadas inferiores, a solidão está ainda mais presente. E é isso que vai gerar todo o ser que ele virá a se tornar.
Travis vai com o tempo percebendo que nada o satisfaz, que nada resolverá seus problemas, seja um político, seja uma mulher, seja a própria sociedade que ele começará a se tornar o próprio vingador dela. E é nesse momento que as cores verdes vão começando a tomar conta de todo o vermelho que antes dominava a tela. Travis não aguenta mais ser o cara conformado e deprimido que era, ele quer ver as coisas mudarem. A primeira prova disso é quando ele atira no negro no estabelecimento do italiano (a diferença de raças novamente) que é totalmente iluminado por cores verdes. A partir daí, ele começa a perceber que se ninguém faz nada por ele, será ele mesmo que terá que fazer as coisas. O vermelho só estará presente nas cenas em que ele precisará se "rebaixar" para conseguir salvar a vida de Iris (Jodie Foster). Essa meta dele vai crescendo de uma forma infantil se vista de fora, já que a mim pareceu que se Travis conseguisse salvar Iris, na mente dele, ele conseguiria realizar o trabalho que sempre quis, mas o fato é que ele estabelecer essa meta é o primeiro passo que vai desencadear todo o estouro. Agora importante a se ressaltar neste momento, é como Travis trata Iris. Travis se põe como alguém superior a Iris (mesmo que ele não saiba como agir direito quando Iris só quer realizar seu trabalho), e a trata de uma forma tão atenciosa, que até não parece o mesmo cara que levou Betsy para um cinema pornô. A questão é que Travis é em si bem carente e atencioso, ele só não é compreendido, já que ambas as abordagens não conseguiram trazer a pessoa que ele queria para perto dele. Chegamos enfim a cena final do filme.
Nosso protagonista já viu o retrato de várias pessoas que também são solitárias como ele, está totalmente desiludido com tudo que lhe aconteceu, preparando assim uma forma de conseguir se vingar de tudo. Travis decide então matar Palantine, talvez para se vingar de Betsy, talvez por indignação à vida, talvez pelos dois, talvez por nenhum dos dois. Uma das ideias que escrevi lá em cima é a de que temos um cara perturbado que não necessariamente tem justificativa para seus atos, assim como um serial-killer que se baseia num jogo. Podemos criar justificativas, mas sabemos que ele é perturbado. A tentativa dá errado, e ele redireciona suas forças para Sport (Harvey Keitel) e todo a rede de prostituição. Isso nos mostra uma coisa, Travis podia ter direcionado sua raiva para qualquer um, qualquer um mesmo. Ele passou de um vilão para um herói no piscar dos olhos. E é por isso que Travis Bickle pode ser considerado, para mim, um dos melhores anti-heróis do cinema. Ele podia matar qualquer um, ele deu sorte de no final ter matado as pessoas certas. A cena final é composta de uma maestria tão grande, que tudo no final parece uma cena de teatro: a câmera pegando tudo que aconteceu por cima, tambores ritmados que lembram a batida do coração. O estouro tem que ser impactante a nós, porque vai que fôssemos nós o Travis que fez tudo isso? Só para completar a análise das cores, queria dizer que mesmo no final, quando Travis realiza toda essa façanha, mesmo quando ele é reconhecido nos jornais, mesmo após tudo isso, ele não deixou de pertencer a tal escória. Travis acha que deixou, mas ele continua nela. Quando Betsy entra no táxi de Travis, como se fosse um momento de redenção, Betsy vem no mesmo traje branco que a introduziu ao mundo de Travis, mas dessa vez, ele já não tem o mesmo desejo que possuía antes, já que ele sabe que ela assim como todo o resto da humanidade pertence a tal escória, independentemente da sua origem. O branco então não significava a pureza de Betsy, mas assim como o verde para Travis, o branco é um esconderijo do vermelho/podridão de Betsy. Mais uma vez, Travis acha que se libertou dessa podridão, mas o finalzinho do filme é perfeito. Travis olha pelo espelho do motorista e vê o mesmo Travis do começo do filme, o Travis coberto pela luz vermelha. Ele vira o espelho, e temos aquela música dissonante até voltar ao normal. Ele agora olha para o topo das lojas e estabelecimentos da rua, e não mais para as pessoas e carros. Ele não quer olhar para a tal escória. O que essa cena quer mostrar é que Travis, assim como todos nós, possuímos esse escória dentro de nós, basta olha mais fundo. Essa podridão pode estourar a qualquer momento, assim como aconteceu com Travis. O que Travis faz nesta cena é esconder novamente o vermelho, e assim, encarar a solidão de uma forma mais confiante.
Por fim, a história de Travis é bem impactante, e não somente pelas imagens, mas porque ela pode representar a história de qualquer um. No mundo contemporâneo que vivemos hoje, todos somos solitários, a diferença é que nós enfrentamos essa solidão de jeitos diferentes. Alguns podem simplesmente viverem sem se importarem com ela, enquanto outros podem decidir que para se sanar eles tem que matar a primeira pessoa que lhe represente o mal que não o deixa prosseguir. Essa é a história de Travis Bickle. Essa é a história da humanidade.
Interestelar
4.3 5,7K Assista AgoraO que escreverei a seguir é um complemento deste outro comentário que escrevi algumas semanas atrás: http://filmow.com/interestelar-t27814/
SPOILER DETECTED!!!
Esse filme me intrigou por muito tempo, justamente por ser de um diretor que admiro demais, no entanto, como disse no outro comentário, algumas coisas não me convenceram. Neste comentário, darei exemplos de outras partes do filme que também me deixaram a desejar, mas antes quero comentar sobre a trilha sonora, que por alguma razão, esqueci de comentar, e que sem dúvidas, é um dos grandes trunfos do filme. A trilha sonora é sim imponente, mas em nenhum momento do filme, ela ofusca a ação que acontece no filme (quando digo "ofuscar", quero dizer algo como o que acontece diversas vezes em filmes de terror, em que levamos susto mais pela trilha sonora que acompanha, do que pelo conjunto todo - composição de cena, enquadramentos, desenvolvimento narrativo, e também, trilha sonora -). A trilha sonora parece cercear toda a ação, justamente por ter um som divergente, no sentido de não ter um instrumento que se sobressaia, mas que uma composição de sons que juntos formam uma harmonia à cena.
Enfim, agora às cenas: uma outra cena que esqueci de citar é a cena em que a Murph adulta (Jessica Chastain) descobre que os livros na estante são na verdade seu pai. Para nós, espectadores, que estamos vendo as duas ações simultaneamente, concluir isso é fácil, mas e para Murph? Para Murph é como se fosse chutar um número entre 1.000, ela pode ter suposto certo, mas a probabilidade é quase mínima. Se você não concorda com isso, faça o seguinte, reveja a cena, excluindo tudo o que o Cooper fala, ou seja, considerando só as impressões que a Murph tem ao olhar os livros. Para mim, é quase impossível que ela tivesse chegado a tal conclusão, mas tudo bem. Como disse no outro comentário, eu odiei o final, aqui darei outro motivo. No outro comentário disse que não achei suficiente o desenvolvimento sentimental de Cooper, já que ele ter vivido a vida inteira longe dos filhos, ter se resolvido com um simples encontro que tem com a filha, como se para ele fosse o suficiente, ou o que o filme parece indicar, já que ele supera facilmente o fato e corre rapidamente para salvar Brand. Além disso, eu achei que Nolan perdeu um elemento importante da narrativa quando Cooper retorna do hipercubo. Para uma pessoa que viu o mundo em 5 dimensões (mesmo que com sua visão de 3), o mundo normal não seria o mesmo quando retornasse. Eu achei que Nolan perdeu as impressões, e como Cooper iria lidar ao retornar a um mundo visto de uma forma totalmente diferente. Então, só nesse pequeno retorno, Nolan desenvolve mal tanto o psicológico, quanto o sensorial, o que para mim, é imperdoável, e por isso disse que preferiria que o filme tivesse acabado naquele feixe de luz (seria menos pior, embora ainda seria horrível). Para mim, ao invés de Nolan ter finalizado com uma Brand perdida, num desenvolvimento humano diferente da do mundo de Cooper foi horrível, pois ele simplesmente muda o foco do filme que minutos atrás, quando Cooper entra no cubo, havia descartado. Se Nolan quisesse ter retratado o choque de desenvolvimento entre dois indivíduos diferentes, que ele tivesse posto em cheque a diferença entre Cooper e as pessoas do mundo que ele tinha deixado para trás. O filme, como disse no outro comentário, é um tanto pretensioso com o número de questões que se propõem a discutir, mas que além disso, é confuso e errôneo, no desenvolvimento narrativo.
A Lista de Schindler
4.6 2,3K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Se em algum dia, Stanley Kubrick (autor de inúmeras obras-primas como O Iluminado (1980) e Laranja Mecânica (1971)) uma vez disse que o cinema deveria se assemelhar mais à pintura e à música do que à literatura (com um enredo servindo como complemento), A Lista de Schindler (1993) é sem dúvidas, um dos filmes mais representativos, já que a emoção contida nas imagens assola muito mais que os diálogos.
Analisar um filme como este de uma forma mais profunda é uma tarefa bem complicada, já que a grande sacada dele é nos pôr tão dentro de toda a situação, que ao mesmo tempo que sentimos todo o terror e sofrimento dos indivíduos da época, nos emocionamos a ponto de ficar chorando à frente da tela por vários e vários minutos ininterruptos. O elongamento do filme passa de forma tão rápida que quando chegamos ao final clamamos tanto por mais, já que tudo parece ter ocorrido tão rapidamente, como por agradecer que todo o martírio tenha acabado, e que paremos de chorar. Nos seguintes parágrafos, tentarei dar um panorama geral de pontos que consegui capturar, mas que mesmo assim creio serem insuficientes devido ao fato de eu ter visto ao filme uma única vez, considerando que foi uma vez bem sofrida.
Somos apresentados à Oskar Schindler (Liam Neeson), e logo de cara nos deparamos com um sujeito calmo, e embora bem convidativo, denote um ar de frieza em seus métodos. Essa sensação só vai crescendo com o decorrer do filme, já que vemos um indivíduo que se importa somente com seu próprio lucro (preferindo trabalhadores mais baratos, mesmo que tenha que explorá-los), prometendo futuro às mulheres com que deita, mas descartando-as posteriormente (até mesmo com uma das mulheres com que ele parece ter tido algum passado mais sentimental), mas por principalmente utilizar-se de discursos que exaltam a sua sorte perante a situação de guerra. Na primeira parte do filme, começamos a criar um certo ódio à figura de Schindler, que logo vai murchando, já que conhecemos uma figura muito mais impiedosa, e pior, sem qualquer padrão de assassinatos, dependendo unicamente de seu humor: Amon Goeth (Ralph Fiennes). Como o próprio Spielberg definiu, Fiennes com sua sexualidade maldosa ("evil sexuality"), cria um personagem tão forte, sádico e imprevisível que nos faz o temer da pior forma, como se fosse a figura nazista mais difundida ao decorrer da história: o típico ser a se repudiar. Funciona. Como se não bastasse, cenas que em sua maioria focam os rostos das pessoas de uma distância tão curta que parecem querer nos sufocar com suas dores. Todo essa aura é ainda enaltecida pela ótima trilha sonora, que ora ausente, causa um sentimento de pânico total, já que só ouvimos os passos acelerados, gritos histéricos e saraivadas de tiros (como na cena em que os pais começam a correr atrás dos carros que levam seus filhos embora ou na cena inicial da liquidação do gueto), e ora angustiante, com violino(s) sempre compassado(s) e longo(s) causando uma sensação ainda mais desconfortante, já que essa lentidão e profusão nos engloba ainda mais nesta atmosfera já opressora (como na cena do banho comum das mulheres ou na cena final do filme quando os sobreviventes e descendentes dos judeus vão homenagear o túmulo de Schindler).
Há porém duas cenas que contrastam com essa fórmula citada acima. A primeira (não está em ordem cronológica) é a cena em que os nazistas assassinam os judeus que ficaram em seus dormitórios escondidos em algum canto. Quando vemos o último judeu sair de seu respectivo esconderijo e acabar acidentalmente pisando nas teclas do teclado, vemos que os nazistas tomam iniciativa e começam a ir em cima dos sobreviventes. Assim que ouvimos os primeiros tiros, inicia-se um acompanhamento num piano, que primeiramente se confunde de forma proposital com os sons dos tiros, e que bem caótico, ilustra bem a situação no momento: um total rebuliço diante da descoberta de judeus ainda escondidos. O tiroteio se segue até que descobrimos enfim, que na verdade, havia um oficial tocando um piano. Outro elemento forte nessa cena são as rajadas de luz que saem das armas dos nazistas; rajadas que posteriormente serão ilustradas nas janelas das casas de todo o gueto, como se entoasse com as notas tocadas ao fundo, como se todo o gueto estivesse neste mesmo pandemônio. Essa composição sinestésica faz desta cena uma das mais maravilhos esteticamente falando, e por ser assim, acaba assustando ainda mais, já que contrasta com a realidade mostrada nesses curtos minutos; uma realidade cruel que quebra toda essa beleza estética. A segunda cena em que isso acontece é justamente na famosa cena da garota do casaco vermelho. Nela, temos algo que parece ser um coro, como que se prenunciasse a vinda da garota, mas que também contrasta com toda a situação, já que vemos várias mortes e uma exacerbada violência contra os judeus. O coro parece remeter a algo sagrado, que no caso está longe de ser visto. Esta é uma cena interessante demais, e muito importante para o desenrolar do enredo. Para mim, ela não consegue superar a cena supracitada em quesito de composição, mas ela é de fato uma das mais importantes para a formação de Oskar Schindler, senão a mais importante, pois dá uma guinada totalmente diferente ao personagem. Até então, Schindler se impunha numa postura bem individualista, o que após esta cena, torna-se totalmente o contrário, utilizando dos mesmos artifícios de sedução anteriores para agora, salvar as famílias de judias. O interessante é o fato do Spielberg não nos dar evidências claras do processo de transformação psicológica de Schindler, o que nos faz questionar a partir de várias perguntas: “Será que Schindler planejava isso desde o começo?”, “O que o fez mudar tão drasticamente de postura em relação à guerra?”, entre outras. O fato é o seguinte, procurando a biografia dele, acabei descobrindo que o Oskar Schindler de Spielberg é exatamente o mesmo do da vida real, pior, anos antes, Schindler manteve relações bem estreitas com o partido nazista, atuando até mesmo como espião. O que o fez mudar então? Não se sabe. Deixando a vida real de lado, e analisando o filme como licença poética. Spielberg, assim como nós, também não soube o que motivou Schindler a mudar. Ele então cria uma cena de uma profundidade sentimental tão grande, que nós, vendo do que seria os olhos do próprio Schindler, nos espantamos com a vida na guerra. O vermelho da roupa da garota une todo o sangue derramado na figura simbólica de alguém puro. Não digo que os judeus são puros, mas me refiro ao fato da crueldade por qual passaram não ter explicação racional existente. A união então desses três símbolos - menina, vermelho e coro - refletem bem, toda a insanidade que os nazistas cometiam, e se no filme isso se refira ao limiar entre o Schindler individualista e o Schindler altruísta, na vida real, a explicação também é mais obscura ainda. Em outra análise, pode-se considerar que o vermelho da menina represente a esperança que ainda se tinha na sobrevivência de tais indivíduos. Quando então vemos a garota morta, sendo levado para ser queimado, o último facho de esperança em Schindler apaga, e então suas ações começam a ficar mais explícitas para nós espectadores. Por fim, queria comentar sobre a escolha do P&B neste filme. Assim como escrevi sobre a mesma técnica no comentário do filme American History X (1998), em a Lista de Schindler, uma possível interpretação da escolha de cores vem do fato das pessoas daquela região verem o mundo de uma forma intolerante, em que somente algumas coisas são aceitas como o certo. Transpondo isso para a estética do filme, o P&B representaria a postura dos nazistas em relação aos judeus, ou seja, bruta. Não há espaço para o diferente, não há espaço para a diversidade, não há espaço para o colorido. Em cenas que o domínio nazista já não existe mais, vemos as ditas cores, para mostrar que neste novo mundo, mesmo com todos os sofrimentos passados, obtemos de certa forma o reconhecimento, a aceitação do diferente (isso acontece no começo do filme, com a cerimônia sagrada dos judeus, e no final, com os sobreviventes homenageando a lápide de Schindler).
Observar estes outros aspectos técnicos mostram que além de se trabalhar com um filme de tema pesado, Spielberg sabe coordenar artifícios que só enriquecem ainda mais a experiência do filme. Para finalizar, para dizer que o Spielberg só acerta nesse filme, queria dizer que não gosto muito da tentativa de comoção que Spielberg tenta criar no final, com um Oskar Schindler caindo aos pés, chorando por não ter trocado um valor monetário por mais um judeu. Para mim, além de manter os judeus numa certa noção de objeto, ainda tenta apelar demais para um sentimentalismo desnecessário, visto que o filme já em si uma obra-prima no quesito emocional. Enfim, para mim neste final há um certo probleminha, no entanto, passando longe de tirar o brilho da obra. O filme merece ser visto, revido, chorado e analisado. Cabe a nós, um dos melhores filmes de Steven Spielberg (senão o melhor).
Ponto Final: Match Point
3.9 1,4K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Quando acabamos de ver esse filme, logo nos damos conta: este filme é bem diferente de outros filmes do Woody Allen, seja em aspectos narrativos, ou pelo forma como ele é direcionado até o final. Assim que começamos o filme, somos introduzidos a Chris (Jonathan Rhys Meyers), um sujeito que vê a vida como se já tivesse no fim dela, dando prognósticos de como preferiu viver a vida, com uma frieza grande ao esclarecer tudo isso (cabe aqui dizer que não sei se a frieza é do personagem de Chris, ou porque o ator que o interprete não possua muitas expressões). Vemos também uma cena que será de extrema importância para o decorrer do filme: a cena da bolinha de tênis, que mais para frente ecoará com a aliança da senhora. Assim que Chris conhece Tom (Matthew Goode), logo nos damos conta da diferença de classes que estamos por ver nos seguintes quadros. Enquanto a família nada em dinheiro, não se importando em suprir suas regalias, Chris vai tentar a todos os esforços parecer alguém de uma classe superior a sua (por exemplo, ele nunca vai dizer que necessita de dinheiro, mesmo nós espectadores, sabermos que inicialmente ele está num grande impasse com o preço da casa, tentando até mesmo sempre provar à família que sua condição é favorável, se dispondo sempre a pagar a conta, mas ao final cedendo convenientemente). Veremos dessa forma um conflito social recorrente, numa forma voraz de sobrevivência e adequação ao "novo mundo" de Chris, e para consolidar essa sobrevivência ele precisará se utilizar de aparências. Chris vai então entrando na família de Tom, até enfim conhecer Nola (Scarlett Johansson), e vai percebendo que assim como ele, ela está deslocada na família, já que não vem de nenhuma herança social favorável, muito pelo contrário como ela mesmo diz. A partir da família de Tom percebemos como as relações emotivas são totalmente desprezadas, já que mais interessa o pretendente ter um futuro promissor do que realmente amar e prezar pela integridade de seus filhos. Pode-se ver também que os pais queriam que Tom na verdade casasse com sua prima, ou seja, cada o vínculo amoroso? Não há. Esse retrato das altas camadas de nossa sociedade atual parece meio que dialogar com a época em que os casamentos eram arranjados a partir de dotes, o que pelo menos a mim, soa como retrocedente, banalizando assim ainda mais toda a família de Tom. Mas por fim, Chris enfim se instala nessa família, casando-se.
O interessante é perceber como o tênis ainda estabelece algumas relações com Chris, já que quando ele encontra seu antigo companheiro de esporte, ele se esnoba e até acabando menosprezando a antiga profissão. Além disso, Chris utiliza-se da mala de tênis para esconder a arma do crime, como se dissesse que o tênis foi um simples suporte passado que o ajudou a chegar aonde está hoje. Mas de fato, aquele eco que eu disse lá em cima da aliança com a bolinha é a relação mais importante. Chris é um canalha, um dos grandes, mas o filme não quer discutir suas ações, mas como ele mesmo diz no começo do filme, a sorte que algumas pessoas têm na vida. Quando Nola enfim conta que está grávida, Chris tem que se decidir quanto o que fazer, pois o que imaginava que poderia levar lado a lado se mostrou muito maior, e é nessa parte que Chris afirma para quê realmente veio no mundo: ele quer ascender socialmente, e pertencer à classe que sempre idolatrou, e para isso, ele vai fazer todas as estrepolias que acabam pela morte de Nola. Uma questão importante que o filme esconde por trás de interpretações é talvez o fato de Nola não estar realmente grávida, talvez ela só tenha se utilizado dessa estratégia para acelerar a decisão de Chris. Essa teoria é muito cabível já que em nenhum momento vemos Nola atestando a veracidade de sua gravidez, mas é mais factível porque quando Chris vai prestar depoimento da delegacia, os policiais em nenhum momento citam o fato de Nola estar grávida, nem mesmo há nenhuma menção em seu diário. Com o andamento das investigações, os policiais sabendo que Chris era casado e tendo um filho com esta, e descobrindo que Nola também estaria grávida faria com que Chris passasse a ser o suspeito número 1, já que eles podiam imaginar que Chris cometeu o ato para se livrar de um peso, que nós, espectadores, sabemos que é verdade. Uma coisa interessante de se perceber é que até antes das investigações, a maioria das cenas são compostas por 'takes' longos e demorados, denotando essa característica bem arrastada que vai compor grande do filme, mas assim que os policiais entram na investigação, vemos muitos cortes, sempre bem rápidos, e com focos maiores nas faces das personagens, fazendo com que essa tensão seja acentuada até um pouco mais.
A sorte que é tão discutida em todo o filme aparece enfim naquela cena que ele tenta descartar as joias da senhora com maior impacto. Quando a aliança cai para trás, logo imaginamos que Chris será pego e preso, mas o que antes parecia ser total azar, acaba se mostrando uma sorte deslavada, e além disso, um componente fundamental para que a história acabe bem para ele. Pense bem, se a polícia não achasse o assaltante com a aliança da senhora, as investigações continuariam, levando os policiais a procurar a arma do sogro, que o comprometeria imensamente. A prisão e a infâmia por que passaria seria imensa, mas a sorte esteve mais uma vez ao seu lado. A brincadeira que o filme faz no final fecha toda a obra espetacularmente: o policial ter sonhado com toda a situação nos faz inicialmente ficar indignado com tal desfecho, mas com o fato que o outro policial nos dá, a brincadeira que Woody Allen nos traz aqui é impressionante, pois isso mostra que a sorte pode acontecer com cada um a cada momento, mas que muitas vezes não as levamos a sério ou nem ao menos as percebemos, e é por isso que o final é magistral ao concluir toda essa análise. Por fim só queria deixar mais uns detalhes como o fato do filme remeter bastante à tragédia grega, já que a trama contém o questionamento de atos antes feitos, personagens secundárias que também analisam seus atos, assombração por fantasmas do passado, com o único porém de que no final, o protagonista se saia bem, o que numa tragédia grega seria uma total desilusão e derrocada. É por fazer todas essas brincadeiras com as noções de sorte e acaso, e trazer elementos que só embasam e nos fazem emergir ainda mais em toda a trama que essa é sem dúvida um dos melhores filmes de Woody Allen.
Obs.: que cena da chuva foi aquela? Meu deus do céu, que arrepio na barriga. :P
Interestelar
4.3 5,7K Assista AgoraSPOILER DETECTED!
É então concebida a nós mais um dos filmes de um dos melhores diretores da atualidade: Christopher Nolan. O autor de filmes como A Origem (2010), Dark Knight (2009) e O Grande Truque (2006) é um contador de histórias impressionante, mas não deixa de ser humano, e sendo um, acaba falhando em algumas partes de seu novo filme: Interestelar (2014). Nas próximas linhas, estarei descrevendo tanto partes que achei muito impressionantes, como outras que a mim penaram um pouco (e aos indivíduos que leram esse pequeno excerto até onde cheguei, e simplesmente por eu ter dito que não amei o filme darão um ‘dislike’, deixo claro que não me importo com a crítica, a menos que refute racionalmente o que direi adiante. Aceitar tudo o que alguém faz por simples ‘fanboylismo’ é algo passivo, e a discussão é a semente mais rica que provém dos filmes. Eu mesmo adoro o Nolan, se você tiver a curiosidade, você pode perceber que dos 6 filmes que vi dele – sem o Interestelar –, 3 estão na minha lista de favoritos. Seja então razoável).
Uma das coisas que sempre me fascina em seus filmes é a forma como ele cria suas histórias. Sempre repleto de mistérios e fatos que em primeiro plano possam parecer surreais, Nolan vai aos poucos nos dando dicas a fim de que no final, tudo faça sentido em nossas cabeças. Ou pelo menos grande parte: quando afirmo isso, quero dizer que os filmes dele sempre levantam certas questões que nos martelam por vários dias, como por exemplo no caso deste filme, a questão de tempo e espaço, e como o controle das ações podem ser fruto dessa relação. Sempre com frases de impacto ao começo do filme que ao final serão revividas, Nolan acentua ainda mais as ideias que expõe ao decorrer do filme (uma das frases deste filme é uma leitura livre da terceira lei de Newton, que do mesmo que acontece em Gravidade (2013) delimitará a separação dos dois viajantes espaciais). E por fim, com cortes rápidos, Nolan sempre dá mais dinamismo as ações que ocorrem no filme, e dessa forma, juntamente com as duas outras características citadas anteriormente, enriquece suas obras de uma forma incrível, misturando reflexão com dinâmica. O filme começa quando conhecemos Cooper (Matthew McConaughey) e sua família num mundo apocalíptico, onde a natureza rege as ações do homem. Enquanto vamos vendo todo o passado de Cooper, e como ele está insatisfeito com a realidade em que vive hoje, logo esperamos que algo venha a quebrar sua rotina diária e o impulsione à grandes aventuras, que é o que justamente acontece. Toda essa cena é inicialmente muito rápida, o que nos faz até questionar sobre a facilidade como ele adere a tal causa. De fato, a questão é válida, mas é ao final do filme que descobrimos quase que num ‘insight kubrickiano’ (aqui me refiro a 2001: uma Odisseia no Espaço (1968)) que na verdade tudo tinha sido arquitetado por ele mesmo, numa amplitude muito maior que nós imaginávamos. Mas vamos com calma, já chegaremos a essa parte. O fato é que Cooper enfim vai ao espaço, junto de Brand (Anne Hathaway), Doyle (Wes Bentley) e David Gyasi (Romilly), na empreitada que promete ser a última salvação da humanidade. A questão de cada entidade acima ter uma noção melhor do objetivo da missão espacial é bem interessante: o povo e todas as pessoas que antigamente (para o filme) ocupavam cargos de importância na sociedade são hoje desprezados, já que vivemos numa política de sobrevivência e não possuem a menor noção do plano que a NASA, ou especificando melhor ainda, estadistas e cientistas almejam. E se não bastasse, acabamos por descobrir no final, que o principal cientista Professor Brand (Michael Caine) de toda a operação não tinha a menor intenção de salvar a humanidade levando os sobreviventes da Terra para lá, mas que na verdade, pretendia manter o que ele chama de plano B, como na verdade o principal plano, sacrificando todas as pessoas da Terra. Toda a ideia de procurar algo não tangível na Terra, lança a discussão do próprio ser humano que temos atualmente (século XXI), e que principalmente foi na Guerra Fria. A exploração espacial era mero artifício de imposição de supremacia, que na época acabou sendo vencida pelos EUA, mas que aos poucos com o descobrimento do impacto de tais tecnologias foi se mostrando um produto de extrema importância para comunicações, relações e comércio. Na época do filme, nós dependemos dessa exploração para a manutenção de nossa espécie. Vemos em toda essa linha do tempo, um certo regresso: luxo auxílio (globalização) sobrevivência. Toda essa passagem só nos ilustra que vários artigos que hoje consideramos meros objetos de vivência, podem futuramente se tornar obsoletos, ou até contrário, tornarem-se imensamente necessários para a nossa própria sobrevivência. Este é uma ironia muito engraçada, mas ao mesmo tempo, triste, pois pare para pensar que talvez o osso que hoje jogamos fora quando acabamos de comer, pode um dia se tornar a última coisa remanescente de uma carcaça. A ideia é muito forte, só fica atrás de outra mensagem também bem irônica, mas bem imponente: a água. Os exploradores classificam um planeta como próprio à sobrevivência assim que constatam entre outras coisas, a presença de água. A ironia é que nos dois planetas que eles visitam, mesmo sendo totalmente permeiado de tal líquido, a situação é inóspita, já que no primeiro planeta Doyle morre, além de eles perderem mais tempo do que esperavam com o tsunami, e no segundo, mesmo com toda a água em forma de gelo, eles não conseguirão habitar, pela ausência de outros compostos necessários a sobrevivência.
O filme vai andando até aí de uma forma impressionante até encontrar um dos primeiros probleminhas, no caso em relação à narrativa. Cooper decide voltar ao planeta Terra após descobrir da real intenção de toda a exploração empreitada por ele e seus companheiros. Dr. Mann (Matt Damon), que inicialmente se mostra a favor de tal atitude, no final acaba por ir contra, e decide por conta própria tomar a nave com que Cooper queria voltar à Terra, e pelo que as frases do filme direcionavam, continuar a explorar outros planetas da região até conseguir achar o lugar ideal. É certo que a criação do personagem de Matt Damon é impressionante, já que muitas vezes a frieza que tem dá lugar há uma ingenuidade quanto ao ato que acaba de fazer com Cooper. No entanto, o que me pergunto é porque Dr. Mann simplesmente não espera Cooper ir embora, para então arquitetar seu plano com mais firmeza, já que assim teria um indivíduo a menos para repreender. Toda a ideia de levar Cooper até bem longe, e assim dar cabo dele me parece ingênua até demais para um cara como Dr. Mann, pois cá entre nós, o cara ficou anos naquele planeta, anos criogenado arquitetando todo o plano que viria a se concretizar futuramente. Tudo bem, este não é ainda o maior problema. Dr. Mann enfim consegue fugir e chegar na nave, só que acabando por explodir. Cooper e Brand se espantam, mas lutam bravamente até conseguirem entrar na nave que está totalmente a esmo. Qual é o movimento a seguir? Cooper decide passar pelo buraco negro, pois afinal a nave já não estava destruída o suficiente para passar perto de um corpo gravitacional de massa enorme que poderia destruí-los maestralmente. Não bastando, ele ainda se joga no buraco negro, afinal vai que ele descobre alguma coisa, não? Calma, calma. Há alguns momentos atrás no filme, ele não estava querendo justamente voltar para o planeta a fim de reencontrar os filhos? Do nada então ele decide ir em direção ao buraco negro, como se não bastasse decide se jogar por ele. Vocês conseguem perceber a falta de lógica nisso? Enfim, continuemos o filme. Ele enfim começa a entrar pelo buraco negro, numa das cenas mais belas do filme. Lembrando muito a estética de 2001 novamente, ele vai passando por um ambiente escuro, de uma forma meio caótica, sendo ultrapassado por vários feixes de luz até que enfim ele chega num cubo, e lá descobre (e nós descobrimos também) toda a origem dos “fantasmas” que assolavam sua filha no começo do filme, descobre também a complexidade da trama, já que ele conseguiu ultrapassar a noção de tempo, além de entender que as entidades que o ajudaram a chegar até onde chegou são na verdade, a humanidade do futuro. Toda essa cena é bem alongada e detalhada, mas é de uma riqueza exemplar; esta é a cena dos filmes do Nolan em que ele lança todas as cartas finais que nos fazem entender todo o emaranhado de ideias iniciais. Vemos então uma tela branca, e Cooper se perguntando o que fará agora. A partir daí, o filme cai de nível gigantescamente. Não digo que a obra foi comprometida porque a necessidade das cenas que virão a seguir são quase nulas. O melhor do filme já passou, a partir daí, é só estratégia comercial. E isso me irritou profundamente.
Cooper acorda e descobre que está num lugar em que tudo está maravilhosamente bem e diferente do que era antes, algo como se fosse o Capitão América acordando num mundo altamente moderno após estar congelado por várias décadas. No Capitão América, a função é em si para dar o choque de realidade nele, já que anteriormente, era ovacionado e idolatrado por todos, numa sociedade em que ele entendia. Ao chegar então nessa nova situação, o herói terá que deixar seus antigos princípios de lado para conseguir se adequar a essa nova vida, mas é claro que há também uma estratégia comercial, já que a partir daí Capitão América terá diversas outras histórias. No entanto, para COOPER o primeiro efeito não existe. Antes de explorar o Universo afora, COOPER não era ninguém, além de viver num local totalmente afastado do mundo. Assim que ele consegue todos os feitos, e descobre tudo o que fez, COOPER acorda e percebe que as glórias do progresso não foram assimiladas a seu nome, mas sim ao de sua filha. Sendo assim, ele continuar sendo ninguém. Pior, no caso ele é o pai de uma pessoa famosa. Ele não é ele, é vinculado a outro, tira mais ainda a noção de identidade. Como se não bastasse, o filme parece querer nos mostrar como ele tem efeitos especiais, mostrando aquela campado em forma de cone ou instalações altamente tecnológicas. Mas o pior de tudo, é ele se reencontrar com a filha. A sensação é de que tudo acaba bem, que o final é feliz, que esse mínimo encontro relaxa toda a situação. Não! Ele viveu a vida inteira longe dos filhos, e o maior impasse da vida dele, que foi ou conviver com sua família, ou salvar toda a humanidade é totalmente deixada de lado nessa simples cena. O fato de ele ter salvo a todos parece ter sido obsoleto, não digo que ele devesse ganhar fama a partir disso, mas que ao contrário, devia encarar frente à frente com o que teve que deixar de lado com suas escolhas. Dessa forma, mostrar todos esses efeitos especiais, além de ilustrar uma cena um tanto quanto reconfortante é no mínimo, negligente com esse embate psicológico que tinha sido trabalhado de forma bem construída a poucos momentos atrás. Acabar o filme mostrando BRAND e deixar de lado esse aspecto que acabei de comentar é algo um tanto pretensioso, pois mostra que neste filme, Nolan atira para todos os lados e não consegue de fato concluí-los com grande incisão. Em outras palavras, Nolan nos traz um filme com um enredo quase impecável, mas que está rodeado de reflexões filosóficas e psicológicas que no fim não nos levam a nada. (Lembra-se da água que eu comentei lá em cima? Onde está ela representada nessa nova sociedade? As questões entre ciência contra sentimentalismo, onde acabaram no final? As ideias que ele puxou sobre religião (coisa que até certo tempo é esquematizada na ideia desses exploradores espaciais serem os “deuses” que definirão a nova morada da humanidade) na figura do sogro de COOPER deram no quê? A força da natureza que consegue mais uma vez controlar a humanidade (já que nos primórdios dos tempos, era ela que definia como os humanos se estruturariam), acabou em algo?). Não, o filme acaba mostrando BRAND perdida, e deixa de lado toda essa questão das consequências das escolhas de COOPER, que mais uma vez enfatizo, são de extrema importância para mim, ao mesmo tempo que tenta achar no amor a justificativa para algumas ações do filme. Esse amor me parece meio fácil de se conquistar, não? A gente realmente só precisa rever a pessoa querida mais uma vez, e está tudo ótimo? Enfim, não sei qual seria o final ideal. Se o filme tivesse acabado naquela tela branca, talvez fosse melhor, mas estaria longe de ser magnífico, como tantas outras obras de Nolan se mostraram. O fato é, o filme nos deixa com diversas perguntas e com um gosto de querer ter mais subsídios para compor esse final de uma forma mais fundamentada. O problema é que o filme tem quase 3 horas, e as perguntas que ficam não são perguntas que deveriam ficar no final de um filme do porte de alguém como Nolan.
Edukators: Os Educadores
4.1 663SPOILER DETECTED!!
Este é um daqueles filmes que assim como Laranja Mecânica (1971), Clube da Luta (1999), Taxi Driver (1976) e Assassinos por Natureza (1994) traz anti-heróis como protagonistas, já que várias de suas ações são malvistas socialmente, mas que no fundo tentam provar a esta mesma sociedade que seus atos são na verdade revolucionários, em propósito de resolver o que as autoridades não conseguem, algo como justiça às próprias mãos. A crítica a esta sociedade é muitas vezes alegorizada a partir de imagens presentes no filme:
- Colocar o rádio na geladeira: calar a mídia;
- Mudar a posição dos móveis: abalar as estruturas dessa elite, e mudar a forma de gestão atual;
- O corte rápido da câmera no começo do filme após a família descobrir todos os pertences desarrumados: censura que esta parte da sociedade ("revolucionários") recebem;
- Bomba de oxigênio que Jan (Daniel Brühl) usa: ele está sendo sufocado;
- Jan e Julie (Julia Jentsch) olhando sobre um andar bem elevado por cima de todos, como se fosse o líder dessa revolução, que equipará toda essa elite econômica, vista por Jan de cima, como se ele se pusesse num patamar superior a elas, vendo o rumo que a sociedade deve tomar;
O filme seria plano, no sentido de não haver nenhum conflito a desestabilizar o universo das personagens (embora só a questão do socialismo já seja bem forte), se Julia não entrasse na vida desses dois amigos. Estando numa relação Peter (Stipe Erceg), Julie acaba por se apaixonar pelo seu melhor amigo, Jan. Em certo momento, o próprio Jan diz que as drogas tiram o sentimento revolucionário; essas drogas não são unicamente a bebida ou nicotina e semelhantes, mas também a paixão. Até antes desta paixão, o filme parece uma metralhadora de ideais comunistas, que ao chegar nesse ponto acaba por mudar o foco neste embate amoroso e as consequências dele (sequestro de Hardenberg (Burghart Klaußner) ou a resolução do relacionamento entre Julie e Peter). Esta é uma sacada incrível do filme, já que ele mostra que acima de revolucionários, eles são humanos, e é só com a estabilização de suas relações que pode se criar embates em âmbitos de maior escala, como é a própria revolução. Esta é uma palavra interessante, já que ela permeia todo o filme, e não só no caráter político, mas também em relação à sexualidade (relação a três), à amizade (fortificação dos laços) e também na própria forma de conseguir atingir essa reforma social (como é mostrado no final do filme, com os trajes e veículo). Ao fim, é só quando a relação entre os três é resolvida é que o sentimento revolucionário volta forte e imponente.
Um trecho do filme, que pelo menos a mim, abre espaço para duas interpretações vem na figura de Hardenberg. Mais para o final do filme, acabamos descobrindo que os 'Edukators' conseguem se safar, mas a pergunta que fica no ar é a seguinte: Hardenberg os ajuda ou não?
1. Supondo que ele NÃO AJUDE, Hardenberg mostra-se empático e simpático aos jovens enquanto está na cabana só para conquistá-los, contando histórias passadas semelhantes as dos jovens atualmente, e indo aos poucos descobrindo os piores de cada um a fim de jogar contra eles mesmos, como faz com o caso amoroso de Jan e Julie. Ele não foge, pois queria mais informações dos dois garotos (já que a de Julie ele já tinha) a fim de prendê-los, e quando enfim eles decidem voltar e o soltam, ele já tem todas as cartas prontas para jogar contra eles, só não esperando pela sagacidade maior dos mesmos que previram que o velho os trairia, deixando o apartamento original e até mesmo roubando o iate, deixando na parede a mensagem de que algumas pessoas nunca mudam. Dessa forma, eles comprovam que um pertencente da elite não deixa de ser da elite, mesmo quando compelido a ajudar os revolucionários. Os 'Edukators' por sua vez também não mudaram pois mesmo passando por uma crise em suas amizades, continuam a difundir seus modos, dessa vez até com maior planejamento e recursos, mas sem deixar os ideais para trás.
2. Supondo que ele AJUDE, Hardenberg realmente disse a verdade em tudo que falava, não fugiu porque estava revivendo seu passado, e estava começando a se dispor a novamente mudar o mundo. Quando eles voltam para a cidade, Hardenberg combina com os 'Edukators' todo um plano que os colocaria de uma forma mais incisiva em vias da dito cuja revolução que tanto almejavam. Ele limpa então o nome da garota, dá uma quantia bem relevante em dinheiro, além de seu próprio iate. Na cena em que Jan se revolta e quer jogar todos os equipamentos utilizados nas invasões fora, por essa lógica, ele tinha acabado de receber o plano que Hardenberg, e concordando com ele, Jan acaba por se revoltar ao pensar melhor enquanto dirigia, parando no meio do nada, quando se imagina hipócrita, já que utilizaria de certo luxo para combater o mesmo luxo. O que o faz voltar atrás e seguir com o plano de Hardenberg é quando Peter diz que ter um Rolex não influenciaria na forma como as abordagens revolucionárias seriam feitas. As imagens que mostram um Hardenberg preocupado são então de suas reflexões quanto aos atos que acabara de fazer, analisando se eles foram dignos ou não. E por fim, a mensagem na parede não seria contra Hardenberg, mas sim para ele, já que imaginando que tudo que ele dissera fora verdade, para os 'Edukators', Hardenberg nunca mudou, ele só manteve o sentimento revolucionário incubado, bastando um pequeno clique para que ele fosse novamente reativado.
O filme teve críticas negativas em relação a forma como os 'Edukators' arquitetavam seus planos, utilizando muitas vezes do medo para educar. Não sei se sou a favor ou não de tais medidas, diante de tais circunstâncias, mas queria deixar um fato. Na época da Guerra Fria, os EUA difundiram amplamente o medo e invasão comunista. Se o que vemos hoje é uma herança do que ocorreu naqueles tempos, os EUA se utilizavam, nada mais, nada menos, de modos diferentes de imposição de medo para combater tal ideia/parcela da sociedade que alguns hoje criticam. Você pode ser contra ou a favor da forma como os 'Edukators' realizam sua revolução, só seja parcial, analisando as ações independente de sua postura política.
Extra: o filme possui uma referência bem clara a outros filmes, como a forma que a abertura do filme se dá, lembrando muito à caoticidade e perturbação de Clube da Luta. Ou mesmo na cena em que a polícia invade a casa dos 'Edukators', remetendo à cena em que os agentes do FBI também invadem a possível casa de Buffalo Bill em Silêncio dos Inocentes (1991), apresentando toda uma estética confusa repleta de cortes rápidos entre os dois pontos de vista, mas que no fim se mostra genial.
A Gangue
3.8 134SPOILER DETECTED!!!
De cara somos postos à frente de dizeres expondo que o filme que veremos logo a seguir é todo feito em linguagens de sinais, já que as personagens do filme são em sua maioria, jovens surdos-mudos. Este é de cara, o primeiro de muitos choques que levamos ao começar o filme. Toda esta estética tenta inicialmente nos pôr na mesma situação que um surdo-mudo tem em todos os dias de sua vida. Eles veem tudo o que acontece, sem entender o que as pessoas à sua frente dizem. Este jeito de trazer a obra a nós inverte totalmente os papeis, já que de uma hora para outra, entramos na realidade e no mundo deles, e nós desta vez, é quem seremos as pessoas que tentarão a se adequar a lógica deles. Ao decorrer de todo o filme, não temos contato com nenhum papel contendo a informação que é comunicada na tela (como quando nosso protagonista entrega uma carta ao que parece ser a diretora do colégio, dizendo os motivos que o levaram até aquela instituição), nem ao menos ouvimos uma única voz de alguém que possivelmente nos aproximaria do nosso mundo (até mesmo em cenas em que os jovens tentam se comunicar com as pessoas que não possuem tais deficiências, não as ouvimos; ficamos somente com os ruídos, sons cotidianos de uma cidade). Toda essa sensação tenta nos alienar da situação, como se fôssemos intrusos nessa realidade. Isso é primariamente bem angustiante, já que somos muito acostumados com abordagens cinematográficas líricas, com textos e diálogos. E se Stanley Kubrick (autor de inúmeras obras-primas como O Iluminado (1980) e Laranja Mecânica (1971)) uma vez disse que o cinema deveria se assemelhar mais à pintura e à música do que à literatura (em que o enredo deve ser mais como um complemento que essas outras estéticas criariam em nós), A Gangue (2014) consegue expressar justamente o que Kubrick faz com 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), trazendo imagens sempre muito fortes e perturbadoras, e mesmo que não se utilize de uma trilha sonora impactante como a presente em 2001, pelo menos sabe se utilizar do silêncio com a mesma maestria que Kubrick faz em cenas de extrema tensão. Se não bastasse, por trás de todo esse cuidado técnico, A Gangue, assim como 2001, traz em plano de fundo, um retrato transformador bem cruel.
Assim que temos esse primeiro impacto, somos progressivamente jogados a outros de intensidade cada vez maiores: seja por aspectos mais técnicos, como a lentidão das cenas, o plano-sequência (já que não há nenhum corte dentre as ações de uma mesma cena) até por padrões sociológicos, começando por ações que o cinema comercial também difunde bastante, o que seriam o caso das drogas e das bebidas, passando por temas que começam a ser um pouco menos explorados (pelo cinema comercial), como a sexualidade (na figura bissexual das duas garotas) e o sexo (juntando tudo que há de sexo do filme, com os jovens passando por várias posições sexuais, parece que a duração delas é enorme, no entanto, como já disse, todas as cenas do filme são bem alongadas, é tratando-se de um tabu sendo quebrado à nossa frente que a cena parece demorar mais, mesmo que em comparação às demais, a lentidão seja a mesma - como a cena em que os garotos têm que descer e subir todos os lances de escada do prédio em que vivem, chegando até a dar tontura -), até chegar a outros bem raros (no cinema comercial), como o aborto, a prostituição de menores que depois se torna, um esquema de prostituição internacional (não sabemos a idade dos jovens ao certo, mas podemos supor que eles sejam menores, para o quadro ser ainda pior), o estupro (a última vez em que o protagonista transa com a garota é um estupro, já que a garota agoniza em recusa) e a violência exacerbada. Se formos analisar a condição social destas pessoas, além de juntar a quantidade de imagens pejorativas relacionadas aos mesmos, traça-se um quadro bem pessimista dos jovens em questão, e como se não bastasse, os ambientes em que passam, contém um teor sempre melancólico, já que figuras como a natureza e outras pessoas são sempre deixadas num plano diferente ao desses jovens, quando não são mostradas de um modo miserável (vida dura de um caminhoneiro, policiais em suas salas claustrofóbicas, transeuntes que são logo furtados). É então de se perceber que toda a atmosfera do filme é muito miserável, além de pessimista. Caso você ainda não tenha entendido o porquê do filme ser bem pessimista, vou tentar explicar de uma outra forma. Assim que começamos a seguir a vida do nosso protagonista (acho que eu já falei várias vezes "protagonista", "jovens", etc. As personagens não têm nomes, o que seguindo a lógica inicial por mim descrita, serve para nos afastar do mundo deles ainda mais, já que sem nome, não há identificação, e sem identificação, não há proximidade), logo percebemos que ele é um garoto bem ingênuo, com muita precaução, sendo ridicularizado até mesmo por um outro alvo de chacota (o jovem com "síndrome de Down"). Ao adentrar nesse novo mundo, o garoto vai se transformando e conhecendo as adversidades da vida. Todas as influências que sofre o levam a um lado obscuro da vida que ele antes não conhecia. O filme é uma obra determinista, assim como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, em que as personagens são influenciadas pelo meio em que vivem, como se a corrupção de espírito é dada pelas pessoas com que se comunica e o ambiente que o rodeia. Uma das características do Naturalismo, escola literária a qual O Cortiço pertence, é um forte pessimismo arraigado, e mesmo que não fôssemos utilizar da literatura como parâmetro, vemos que o Determinismo é por si só uma característica pessimista, já que tira o poder de escolha do indivíduo que adere a uma determinada sociedade. Toda a situação que permeia a vida dos jovens no filme não colabora para que eles saiam de tal realidade, já que para começar eles são excluídos socialmente (surdos-mudos - naquela babaquice que é a de "excluir o diferente"), além de não terem um poder econômico seguro (o lugar em que vivem é bem precário), e para completar, serem totalmente esquecidos por suas famílias (não vemos nenhuma menção de algum familiar de algum destes jovens) e pelo próprio colégio (além de não amparar, ainda incentiva, na figura de um professor que ainda se aproveita do esquema de prostituição). Todo esse quadro clínico, talvez não justifique, mas nos ajuda a entender essa alienação e desvirtuação destes jovens da sociedade. Um esquema estético bem legal que mostra esse determinismo entrando na vida do protagonista vem do esquema de cores, em que enquanto o garoto é ingênuo, a cor que predomina ao redor é o verde (arbustos da cena inicial, paredes do colégio, brinquedos do pátio), mas que aos poucos vai sendo substituído por um azul claro (corredores do prédio em que vive, brinquedos do pátio começam a ficar mais azuis, a vã que leva as garotas a fim de se prostituirem), como se dialogasse com essa gangue/atmosfera que entra e transforma a vida dele. Jogando como os companheiros jogam, o protagonista começa a possuir desejos que no final se mostram contrários aos dos interesses do conjunto, fazendo-o tornar-se o monstro que se torna no final.
As cenas impactantes como as de sexo e a de aborto servem para enfatizar ainda mais essa dura realidade que o protagonista começa a enfrentar, e se a máquina mortífera que ele enfim se torna parece demais para as pretensões da gangue, saiba que o culpado não é o líder desta mesma gangue, ou o professor que não faz nada para mudar a realidade destes jovens. A culpa não é de ninguém! Todos esses indivíduos estão neste meio que os corrompeu, e que os fez se transformarem em monstros tão terríveis como a do protagonista. Eles podem não terem estourado como este garoto, mas a corrupção está dentro de cada um deles, e é essa corrupção que pode destruir qualquer indivíduo que a pessoa era anteriormente. O determinismo é cruel, e pode até parecer bem surreal, mas mesmo que não sirva como justificativa universal para todas as intenções de uma pessoa numa sociedade, ele é real; e real porque as desigualdades existem.
Obs.: (agora haverá spoilers de outros filmes, leia por conta e risco) comparando a outros filmes, pude traçar um panorama bem forte com a união de alguns dos temas de dois clássicos do cinema: um do próprio diretor que citei acima, Laranja Mecânica, e outro do Martin Scorsese, que seria o Taxi Driver (1976). Ambos mostram camadas menos privilegiadas da sociedade conflitando com outras maiores (em Taxi Driver na figura de Betsy e do político, e em Laranja Mecânica, com as casas mais abastadas que são sitiadas). Em Taxi Driver, vemos um homem que embora faça parte do mesmo meio que critica, tenta se adequar a um mundo 'mais civilizado' socialmente, mas que desprezado por esse outro contingente se revolta consigo mesmo e com tudo o que o enoja, estourando assim como o protagonista de A Gangue faz. O legal nisso é perceber que ambos são modificados pelo meio em que vivem, ambos são produto do desprezo de outras camadas, e que inconformados com a realidade que esse meio os levou a ter, explode, causando uma tragédia estrondosa (DETERMINISMO mais uma vez aí). Tanto o protagonista deste filme como Travis Bickle não são inicialmente pessoas más, o que eles passaram os fez da forma como acabam. Travis no final parece ter melhorado, já que volta a ser a pessoa calma e conformada que antes era, mas que no entanto, por continuar dentro desse mundo, nunca deixará de ser quem se tornou, da mesma forma que o garoto talvez seja preso, ou mesmo que não, continue abandonado pelo mundo, indo para locais tão fétidos quanto esse pelo qual passou. Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, vive numa sociedade em que os jovens, sem expectativa de futuro, vagam pelas cidades, causando medo e desestabilização pelos lugares em que os mais afortunados estão. Assim como ele e sua trupe, a gangue deste outro filme também tentará se adequar as barreiras que lhe foram impostas, que recorrendo a atos muitas vezes ilícitos, tenta sobreviver nesta sociedade. Outra semelhança vem do fato das instituições os desprezarem (os pais têm medo dele, a polícia o espanca, clínicas de reabilitação o trocam mais como cobaia do que humano, e os próprios amigos o acabam traindo), e que como disse acima, se não justificar os atos deles, pelo menos nos fazer entender uma parcela das suas ações. Diria que A Gangue é então uma mistura de Laranja Mecânica com Taxi Driver, pincelado com possibilidades estéticas e chocantes que eram impossíveis para o público da década de 70. O filme não é uma cópia dos outros dois, já que traz outros assuntos também pouco explorados, como a própria estética surda-muda, sem contar o fato do filme vir de um cinema com uma estética bem diferente do americano.
A Ilha do Milharal
4.0 40SPOILER DETECTED!!!
Caso você consiga superar a primeira dificuldade do filme, que se dá em relação ao ritmo dele, as imagens que virão a seguir conterão uma sensibilidade tamanha, que por si só, justificará a lentidão da obra (Não teríamos o mesmo tocante caso a velocidade do filme fosse qualquer senão esta). A Ilha dos Milharais (2014) começa com a imagem de um senhor sobre um barco, ilhado de água; e repare nesta palavra: ilhado. A partir desta imagem inicial, vemos que mesmo que fisicamente o velho (Ilyas Salman) só fique ilhado quando justamente pisa na ilha, a cena inicial mostra que não; o velho sempre esteve ilhado, e indo mais além, ficará ilhado até o final do filme, seja pelas águas no barco, seja na ilha, ou seja pelo Exército (num plano mais metafísico, já que vimos o velho e a garota (Mariam Buturishvili) sempre sufocados quando na presença destes).
Não é muito difícil perceber que a construção de uma vida com os recursos básicos para o plantio remetem ao amadurecimento da garota (isso está na própria sinopse do filme). Então, ao mesmo tempo que vemos o velho construindo as bases da casa, fortalecendo toda a estrutura, nos damos conta da perda da infantilidade da garota, que inicialmente se dá no esquecimento da figura da boneca, que logo no começo, não se desgarra da garota. Queria então usar este espaço para mostrar esse progresso, que como disse acima, é bem alongado, devido ao ritmo do filme; mas se pararmos para pensar, o amadurecimento de alguém nunca se deu a passos furtivos, sendo assim, a velocidade tem que ser sim deste jeito. Comparando a velocidade do começo do filme em relação a mais do meio para o fim, temos aparentemente um aumento da velocidade, que se for comparado ao amadurecimento da garota ou do plantio do milho faz muito sentido: enquanto criança, cada nova descoberta leva tempo, e é sempre tomada pelos pais de uma forma gloriosa. A criança precisa de mais tempo para entender as coisas. Com a idade, a criança vai se tornando um jovem, e nesta fase, o mundo parece infinito demais para tudo que ele quer almejar. Parece que repentinamente, tudo parece mais rápido, que cada novo passo, parece que encobre o passo feito logo anteriormente (digo isso, pois eu sou um jovem, e sinto exatamente tudo o que acabei de escrever). Da mesma forma, o plantio do milho será auto-suficiente após o velho ter dado todas as condições propícias para seu desenvolvimento. O preparo é demorado, mas após isso, o crescimento delas se dá por conta própria. O ritmo do filme é então metaforizado com a velocidade do crescimento das figuras do filme. Desta forma, a garota começa a amadurecer, deixa a boneca de lado, ao mesmo tempo que a casa vai ficando pronta; é como se fosse a preparação para um olhar diferente do mundo. Quando a garota está finalmente para o próximo passo, o primeiro movimento que ela faz ao chegar na ilha remete ao começo do filme com o velho, como se dialogasse que ela estaria pronta para enfrentar a vida assim como o velho estava ao se firmar na ilha: a cena que me refiro é a cena em que a câmera foca o velho pisando no solo. Minutos mais tarde, com essa prontidão da garota, o movimento será repetido com ela. Em outra momento mais adiante, quando a garota menstrua, vemos passar sutilmente uma borboleta voando, como se quisessem dizer que ela estava saindo deste casulo que a protegia, e conhecendo o mundo de verdade. Ao mesmo tempo, a plantação começa a florescer, assim como ela mesma. Estas últimas análises lembram uma outra coisa que é muito forte neste filme: a relação homem-natureza. Logo no começo do filme, temos as informações iniciais que contextualizam um pouco a situação que enfrentaremos. No final desta mensagem, temos uma frase que diz que o homem só conseguirá alcançar o que quer nesta ilhota, caso a natureza assim permita. Uma frase de efeito poderosa para o que veremos no decorrer de toda a obra. Já citei um pouco antes, a imagem da borboleta voando e da plantação florescendo, mas há ainda outras. Nesta mesma cena, a garota só menstrua após ver o sangue do alce morto. Ainda com o alce, a morte dele no meio do milharal prenuncia o soldado ferido (Irakli Samushia) que eles encontraram logo a seguir. Todas estas imagens parecem dizer que a natureza precisa passar por tal acontecimento, para então mexer com a natureza humana. É uma metáfora muito bonita, mas principalmente pelo fato de estarmos imersos em natureza (ilha). Assim como esta natureza opulenta vai mostrando sua face, a garota vai descobrindo sobre sua sexualidade. O velho até tenta segurar a garota para si, mas a imagem é clara: assim como o velho perde parte de sua plantação para chuva, uma torrente muito mais forte de amadurecimento vai tomando a garota do velho. O que acontece a seguir é bem ilustrativo: o velho faz uma barreira a fim de proteger sua plantação, assim como afugenta os 'voyeurs' da filha. No entanto, sabemos que o fim será derradeiro para ele, já que não conseguirá conter as chuvas que levarão toda sua plantação, assim como a garota está pronta para viver o mundo com estes novos olhos. É um fim triste para o velho, mas infelizmente este é o ciclo da vida. Como se não bastasse, a garota ainda leva os milhos da plantação como se estivesse metaforicamente colhendo os frutos que descobriu. Outra ideia bastante interessante também é com a figura do fugitivo, que em um momento aparece, e em outro mais rápido, foge, sem ao menos dar pistas de onde foi. Esta imagem mostra este ato fora da lei, que principia uma desvirtuação dos antigos preceitos. Desta forma, o velho quase perde tudo o que luta, ao proteger este fora da lei, assim como a garota quase é levada a paixão, sentimento que vem com este afloramento. Ambas as interpretações são quase efetivadas, se o fugitivo não tivesse sumido do jeito que fugiu, levando consigo toda esta aura problemática com ele. Como vocês podem perceber, o filme é maravilhoso em suas metáforas, mas nenhuma delas é mais bela que a que permeia todo a obra como uma assombração: o ciclo da vida. O ciclo da vida em interpretações mais pontuais pode ser o cultivo do milho, ou a afloração da garota, como disse várias vezes neste comentário, mas em aspectos mais abrangentes, vemos que a vida é em si uma grande luta, por descobertas, por sobrevivência e por sofrimentos. No final do filme, após a tormenta de água que leva tudo, vemos uma nova pessoa que virá se ilhar do mundo (ilhar no sentido de viver sua própria vida, independente da vida dos demais, já que a evolução/desenvolvimento de cada indivíduo toma ritmos diferentes) e amadurecer a partir disso. Encontrar o artefato deixado pelo anterior, e tomá-lo como um objeto de adoração/desconhecido (como o velho inicial faz o tempo todo) é de uma sutileza incrível, pois acentua ainda mais o significado de ciclo de vida infinito, que permeará a todos nós, seres humanos da Terra.
Viver é Fácil Com os Olhos Fechados
3.8 102 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Estamos em plena ditadura militar, em que o ditador Franco consolidado no poder no período da Segunda Guerra Mundial lidera plena e integralmente. O que poderia ser então um filme mais diretamente militante contra este governo centralizador, se mostra de uma delicadeza impressionante, questionando a mesma realidade de uma forma bem diferente, sem deixar de ser inteligente. O filme trata de tal assunto como plano de fundo para os embates das personagens; em tempos de crise, é claro que todo o país estará mobilizado de forma a superá-la, mas isso não quer dizer que problemas pessoais deixam de existir. Não é porque a situação nacional não é das melhoras que as pessoas tenham que se abster de todos os seus sentimentos em prol da manutenção do Estado. O ponto central de Viver é Fácil com Olhos Fechados é então justamente este: tentar mostrar a inversão da importância dos problemas em cada indivíduo, deixando de ser político, e passando a ser preocupar primeiramente consigo mesmo. Isto não quer dizer que o filme não critique tudo o que foi a ditadura. Como eu mesmo disse, é somente uma abordagem diferente do assunto, no sentido de que o filme tenta mostrar um sentimento de normalidade diante de tal situação política. Desta forma, ele expõe que dá para se ter uma vida comum mesmo numa sociedade como aquela, que preferir se esconder com medo de qualquer passo que o Estado venha a dar, seja nada mais, nada menos do que se conformar com a situação. O filme, assim como No (2012) - filme que retrata a campanha política para a 'Não' legitimidade de Pinochet no poder do Chile. No entanto, diferentemente de outras campanhas, um publicitário utiliza-se de propostas totalmente de 'marketing' e propaganda que fizessem o povo tomar coragem a fim de ir às urnas acreditando num futuro melhor, sem medo -, tenta inserir uma ideia de confiança, de busca dos sonhos, trazendo um sentimento de vida que por si só motiva quaisquer movimentos, seja eles em cunho pessoal ou político. Dito isso, podemos ver que o que move inicialmente Antonio (Javier Cámara) a entrar nessa jornada pelas estradas é o sonho de trespassar, conquistar, ou somente almejar algo. Conhecer Lennon, independentemente de atravessar meia Espanha para conseguir isso, é o maior sonho dele. Este sentimento vai aos poucos sendo identificado também nas outras personagens (Belén (Natalia de Molina) vaga por aí desiludida com a condição dela, estando grávida prematuramente, mas também por estar cansada dos cortejos machistas que sofre diariamente. Juanjo (Francesc Colomer), por sua vez, desiludido com o desprezo com que o pai tem com ele, foge a fim de tentar despertar algo no pai que faça-o ceder em alguns quesitos), que embora primariamente pareçam inconformados, sem uma solução visível em mãos, acabam no final por entender que a luta é válida, e que mesmo que eles não consigam nada (Belén continuará grávida. O pai de Juanjo pode ter cedido ao vir buscar o filho, mas não necessariamente ele agirá normalmente dali em diante), só o fato de agir, já se prepondera sobre o conformismo. A ideia que o filme passa é que independente do seu sonho, tentar ir atrás dela, nunca é uma luta vã. Pode até parecer, mas e se por um acaso der certo, como deu para Antonio? O próprio título do filme traz esta mensagem: fechar os olhos faz tudo parecer mais fácil, mas se alienar nem sempre é a melhor solução. Sabendo que este título provém do próprio Lennon, podemos traçar outro panorama. A crise dos Beatles era real, fechar os olhos a ela é ser muito ignorante, no entanto, tentar contornar esse problema é diferente de virar as costas a ele. Contornar é achar modos de levar tal fato adiante de uma forma mais suportável, assim como acontece para os dois jovens. Eles contornam os problemas das suas vidas, mas como já disse anteriormente, lutar/tentar contornar é mais forte do que simplesmente se dar por vencido. Expandindo até um pouco mais, isso serve também para a própria Espanha de Franco: a situação é real, e muito mais que isso, difícil de ser superada, criar modos de se sentir humano, como a viagem em busca do sonho é uma forma de tentar contornar, de tentar tornar a vida mais suportável. Esta ideia cabe então para o filme de uma forma majestosa, ocorrendo em diversas camadas de análise, como exemplificado acima.
Outro retrato forte do filme é o das experiências, seja para Antonio (que consegue com sucesso conversar com seu maior ídolo), como para os jovens (que descobrem no outro coisas que nunca haviam visto antes. Belén vê um garoto ingênuo, desprovido de toda aquela falsa superioridade que os homens que ela viu quiseram passar a ela, como se ela fosse um objeto. Juanjo a trata com carinho, confiando a ela tudo o que qualquer outro homem que ela viu subjugaria. Juanjo, por sua vez, descobre em Belén a sexualidade, a paixão, um sentimento de cuidado (que inicialmente até não se sobressai tanto, como na cena em que ela o masturba de um modo totalmente desprovido de emoções, mas que aos poucos vai sendo desabrochado, ao perceber que ele não é um homem igual aos demais - que nem a mãe tem por ele, o que acontece porque o pai, "impondo" toda esta imponência, acaba por ofuscar e causar até um certo medo na mulher, fazendo com que ela não tenha um carinho tão forte quanto poderia ter pelo garoto -, acabando por ceder). Estas experiências podem ter sido um momento efêmero na vida de cada um deles, mas eles mostraram que este ideal que eles buscam existe sim, sendo então de enorme importância para a formação de cada uma das personagens depois da separação deles.
Quando disse que a crítica a política também existe neste filme, mesmo que de uma forma mais sutil, queria dizer que existem elementos inseridos no enredo que traçam todo um ideal sobre a ditadura, que acabam por final a reforçar ainda mais essa ideia que disse de viver a própria vida, de não se conformar. Quando as personagens no filme querem ouvir alguma música, muitas vezes escutamos um programa político, que só é uma única vez levado a sério pelas pessoas da ação, que é na mesa do almoço, quando o pai, policial, se atenta a tudo o que a propaganda diz. Em todos os outros momentos, o rádio é automaticamente substituído por outra atividade que faça naquela ideia supracitada, contornar tal realidade, a fim das personagens viverem a própria vida. Em outra cena quando Antonio pede para Juanjo limpar as mãos para mexer nos objetos que acabara de ganhar, Juanjo pega um jornal com uma figura de Franco estampada, amassando-a toda, e limpando a mão. Como se a sujeira da mão dele valesse mais que a figura de Franco. Todas essas imagens acabam por acentuar o desprezo e displicência com que as personagens tem com a realidade atual. Quero deixar mais uma vez bem claro, que eles não desconhecem a situação, afinal Antonio é um professor, sendo assim, estando sempre bem ligado com as atualidades do mundo, e Juanjo vive numa família em que o pai é altamente politizado. Eles sabem da realidade, só não querem se dar por vencidos diante delas. É a partir destes pequenos detalhes que o filme não só mostra esse desdém, como critica piamente a importância que Franco dava as suas ideias, que como disse, não passam de guardanapos para as mãos. Muitas vezes o passado deles acaba permeando a viagem, como na cena em que o garoto deficiente bate em Belén, como se remetesse a violência que sofre dos homens no dia-a-dia, ou a violência física que o camponês tem com Juanjo, lembrando o arredio do pai na casa. Essa realidade existe, não tem como fugirmos dela, mas como Antonio vai mostrando a eles: é preciso confrontá-las, como acontece após a destruição de toda a plantação do camponês (repare que a força aqui só é utilizada depois de eles já terem ido ao camponês uma vez, e não terem obtido o que queriam), ou com a forma com que o deficiente acaba por se portar no final do filme, de uma forma bem mais amável que antes, muito pela atenção (o confronto aqui é a mobilização, o cuidado) que os dois garotos dão a ele.
O título como eu disse acima serve metaforicamente para mostrar que esta luta deve existir, mas ele também mostra outra coisa que é altamente difundida pelo filme. Peço desculpas, mas eu não lembro exatamente o termo que eles usam, mas sinto que a ideia é bem similar a de um hipérbato (troca/inversão lógica dos termos numa frase) só que num cunho muito mais psicológico, no sentido de querer enfatizar tal ideia com essa inversão. No filme inteiro, Antonio fala que algumas frases funcionam deste modo, sempre pontuando este sentimento que elas querem causar. Metaforicamente, essa inversão pode indicar esse clamor pela mudança das coisas como elas estavam no momento, como se eles pedissem que abríssemos os olhos de uma forma diferente, e encarássemos esta luta também. Fazendo o enlace com o título: Viver é fácil com os olhos fechados, vemos que esta ideia de hipérbato (com as devidas modificações) também é válida, já que a forma usual seria: Viver com os olhos fechados é fácil. Seguindo então esta metáfora que disse, podemos reparar que o próprio título já é uma chamada por esta mudança, seja na forma semântica como analisamos ele (como eu disse alguns parágrafos acima), ou na forma dele, e por isso que este título é fantástico (a tradução é bem similar ao original, o que faz com que tiremos estas conclusões mais fidedignamente). Outro aspecto que indica este ar de sempre buscar os sonhos é a paleta de cores do filme, com um aspecto bem europeu mesmo, como a de um filme de Jean-Pierre Jeunet, de Le fabuleux destin d'Amélie Poulain (2001), que no caso deste filme transparece esse clima adorável e familiar que é viver mesmo estando na situação de uma ditadura. Por fim, a temática 'On the Road' por si só já traz essa sensação de auto-libertação, de procura de um significado de vida, de catarse, que é o que acaba por acontecer pelo fim com os dois jovens, principalmente.
A crítica ao sistema político vigente também está presente na quantidade de figuras miseráveis que encontramos pelo caminho, seja no garoto que prefere o dinheiro (sobrevivência) a bola (diversão, já que não há isso sem primeiro conseguir sobreviver), ou na própria vila no meio do nada. Esta desigualdade, assim como as figuras da ditadura no rádio ou no jornal pelo decorrer do filme, afirmam que o filme é si engajado, mas de uma forma mais sutil que só a olhos mais atentos ('abrindo mais os olhos') pode ser percebida. A quem sobreviveu até aqui, vocês já devem muito bem terem percebido que o filme é repleto de metáforas, que funciona mais uma vez, muito bem metaforicamente para a situação de uma ditadura. As verdades são suprimidas, escondidas, que só os bons olhos e os mais corajosos e indagadores para quebrar o bloqueio encontram, sendo assim o que não se pode faltar num filme que trata a ditadura de uma forma bem sutil são as metáforas (uma última metáfora interessante, juro que é a última, é a do estrangeirismo - na figura de Lennon - e a da costa da praia, como se essas coisas distantes, na borda do cotidiano, sejam essa meta física para se cumprir os sonhos idealizados, que aparentemente diante de um contexto político crítico, pareçam intangíveis).
O último aspecto que queria analisar antes da conclusão, já que já me estendi bastante são alguns aspectos técnicos. Quando Belén escapa do homem com o guarda-chuva, vemos logo depois uma cena em que começamos a ver um infinito de degraus de escada, não enxergando o fim. E na cena em que Belén acorda, Antonio a puxa para o Sol, e somos totalmente cegados por ele. O que o filme quer nos fazer sentir, é como se fôssemos mais um viajante desse 'On the Road'. Nós, ao mesmo tempo que vemos a situação das personagens, ao passar pelo que eles passam, somos impelidos a se sentir no local, principalmente com estas câmeras totalmente direcionadas a nós. Essa imersão nos mostra mais uma vez uma das coisas que mais repeti nessa crítica, e que juntamente com a questão de contornar a situação problemática deve sair bem clara para alguém que mergulhou no filme: será que só ao passarmos por essas experiências de uma forma tão profunda - acentuada pela imersão causada pelas câmeras - nos faz olhar com outros olhos a situação que passa ao nosso redor? Ou em outras palavras, estamos realmente com os olhos abertos para o que nos acontece ao redor, ou estamos tão inseguros de nós mesmos que preferimos nos fechar e ter nossa vida perfeitamente plana?
Nosferatu: O Vampiro da Noite
4.0 248SPOILER DETECTED!!!!
Imagino que quem tenha chego aqui, tenha visto primeiramente o Nosferatu (1922) original. Caso não tenha feito isto, digo que este comentário não terá somente spoilers do Nosferatu de Herzog, como também do de 1922. Leia sabendo disto.
Acho que desde quando começamos a ver nossos primeiros filmes de terror, logo tomamos conhecimento do que muitos dizem ser o primeiro grande clássico do gênero: Nosferatu; um filme que foi feito sob baixo orçamento, um tanto que às pressas, e ainda passando posteriormente por um grande processo pelos direitos autorais vindo da viúva de Bram Stoker, pelo livro Drácula. É sabido ainda que o filme foi impedido de circulação em várias regiões, requerendo-se até sua destruição, o que de fato aconteceu. Por sorte, sobraram algumas cópias com colecionadores que nos possibilitaram ver o filme hoje da mesma forma. Todo este histórico levanta a minha impressão: talvez os filmes que temos desta época considerados como clássicos atualmente não são os melhores, mas os que restaram. É meio singelo dizer isto, porque o filme tem seus pontos altos, mas nada tira o fato disto poder ser muito bem a verdade. Os vampiros, não necessariamente com este nome, foram desde muito cedo, fruto da imaginação de muitos indivíduos na tentativa de uma explicação para fenômenos intangíveis. A personificação de um problema, de um medo foi desde muito tempo uma forma de se conformar misticamente algo que assolava as sociedades; isso acontece com os vampiros, bichos-papões, botos, homem do saco e por aí vai. A transposição para o cinema destas figuras é desde cedo muito viável, já que criar cinematograficamente um corpo monstruoso assombraria muitos e muitas constantemente. Além disso, na época em que o primeiro Nosferatu fora feito, o mundo ainda estava se adequando às consequências decorrentes da Primeira Guerra Mundial. Dialogar com um monstro que represente toda a desgraça e sofrimento é mais do que cabível para toda a situação. É muito por conta disso que o final é feito do jeito que é, com a vitória da humanidade, como se dissessem que esse medo/vampiro/guerra que a todos nós angustiava, passou, que enfim conseguimos superar. Cinematograficamente, o filme deve ter espantado o público, já que possui cenas bem inusitadas, como a do aceleramento da câmera quando Nosferatu chega com a carruagem e, posteriormente, foge com os caixões, ou com os efeitos de sombra, que não mostrando a figura, assustam muito mais o espectador, como se tal sombra encobrisse a todos nós. A estética das cores representando cada período do dia serve atualmente para nos auxiliar a nos adequar ao tempo, já que inicialmente não havia nada disto para os telespectadores. O simples fato de uma vela recostando no canto, indicava a eles da época que o ambiente era noturno; isso funcionava muito bem já que as pessoas eram muito acostumadas com o teatro, explicando assim, as câmeras mais fixas (também porque elas eram muito pesadas), repleta de movimentos das personagens ao invés do das câmeras. O fato é, a forma como Nosferatu é retratado neste filme é muito mais caricatural, como o monstro que precisa ser destruído, como o mistério a ser resolvido, e como disse anteriormente, o combate a ele é muito bem vindo e condizível com a realidade pela qual as pessoas passavam, como se fosse um reconforto ver que pelo menos as pessoas da tela estavam bem.
Chegamos então ao ano de 1979, e Herzog decide fazer um 'remake' do filme. O que podia ter se provado uma inutilidade, se mostrou uma majestosa obra, julgo dizer que até melhor que o original. Primeiro, queria dizer que até a metade do filme, não vi quase diferenças entre o filme original e este, o que me deixou um pouco irritado, já que na minha concepção 'remake', 're' - 'make', significa refazer, trazer algo de novo à obra, algo que respeite a ideia original mas que abranja e abra novos horizontes de reflexão. Desta forma, a partir do meio do filme, as nuances vão sendo tão lindamente contornadas, que no final do filme, estava muito exaltado, pois tudo que poderia ser revitalizado e incorporado foi posto naquela tela. Inicialmente, vemos um conflito religião X ciência, muito mais forte que no filme original. Este conflito imerso principalmente na pessoa de Van Helsing (Walter Ladengast), remete a essa crendice que as pessoas depositavam na Igreja para assim como os vampiros, tentar se consolar e achar justificativa para as ações que aconteciam na Terra ("Foi Deus que quis"). Andando vários anos à frente, com uma ciência muito mais desenvolvida, o filme começa a questionar os dogmas da ciência. Será que ela acabou tomando um lugar tão importante na nossa sociedade, que assim como a religião não acabou se tornando um pouco obsoleta. Van Helsing tenta o decorrer de todo o filme explicar toda a situação a partir dela, como se fosse a verdade absoluta, e assim como muitos quebraram os preceitos da religião, Helsing se vê um tanto confuso com o leque de fatos à sua frente. Da mesma forma, o papel da mulher neste filme é mais forte (mesmo que no final ela tenha sido enganada brutalmente, mostrando essa ingenuidade dela), já que nesta obra, será ela a responsável por alavancar todas as pistas que levam ao momento derradeiro. Mas a questão mais bem trabalhada neste segundo filme é o fato de que a figura de Nosferatu é meramente representativa. O foco que o filme dá aos ratos é muitas vezes maior que a que dá a Nosferatu, nos fazendo questionar se realmente toda essa desgraça é causada pelo vampiro, ou se não é realmente fruto desta peste. Muito melhor arquitetado que no primeiro filme, Nosferatu é a personificação deste medo intrínseco em cada um, ao explicar o motivo de tanta miserabilidade. O que no primeiro filme mostra-se um tanto ingênuo, no segundo é incrível, já que o assassinato de Nosferatu/medo/causa da peste não leva a nada, já que um novo Nosferatu ressurge. A mensagem que o filme traça é de que matar a figura simbólica não mata a ideia. Eles podem ter matado esse mal, mas o problema/peste continua. Não demorará muito até que se crie outra figura que represente este mal, que no caso seria a de Jonathan (Bruno Ganz) transformado. Essa ideia de personificação do medo é então muito melhor pensada a fim de trazer esse mar de reflexões sobre o que seria um monstro; é também por esta ideia supracitada que Nosferatu é mais humano no segundo filme, pois a humanização de um ser sobrenatural assusta mais ainda do que o próprio monstro em si (é por isso que O Iluminado (1980) assusta demais, pois a transformação não necessariamente tem causa sobrenatural). Além disso, o azul que no filme anterior era usado para retratar a noite (que seria quando o Nosferatu ataca) permeia várias cenas em que o medo está à tona, como na da entrada do castelo, em que vemos várias luzes bem fantasmagóricas de tom azul. O medo é muito bem trabalhado narrativamente, assim como esteticamente, em que vemos por exemplo três cenas de um morcego voando com uma gradação deste medo adentrando o espaço da personagem. Na primeira, o vampiro só paira pelo quarto, na segunda, ele já se instala nas cortinas do quarto, e na última, o morcego é Nosferatu, com ele aos pés da cama da mulher para sugar-lhe o sangue. Imageticamente isso é perfeito para o vampiro que começa a atordoar nossa vida, mas metaforicamente é ainda melhor, já que o medo é algo que não vem à tona, ele vem sendo construído, até que chegamos no estopim.
Outras cenas que também são muito legais, são as cenas da praia. Na primeira vemos um casal unido, se recostando na figura do outro para ficar forte, se distanciando da câmera, como se eles não precisassem do amparo de ninguém; eles são auto-suficientes por si mesmos. É por isso que eles dão as costas à câmera e se distanciam. Logo depois, vemos Lucy (Isabelle Adjani) se aproximando da tela, como se estivesse totalmente perdida com o sumiço do marido, estando totalmente assolada. Ela então se aproxima da câmera como se vessemos o sofrimento estampado na cara dela, como se estivéssemos invadindo a privacidade e segurança dela. E por fim, a última cena em que isto acontece é quando o novo Nosferatu vai cavalgando num cavalo para qualquer lugar. Mais uma vez, a figura foi criada, o medo é preponderante, então ele é auto-suficiente por si só para seguir adiante, seguindo então a mesma analogia da primeira cena com o casal. Por último, eu gostaria de analisar a cena que considero como a melhor do filme: a cena em que Lucy vai andando no meio de uma multidão que dança até chegar num banquete (1:30:25 de filme). Enquanto andamos numa tomada do alto, vamos vendo como as pessoas parecem ser insignificantes diante de toda esta enfermidade. Aos poucos, vamos sendo trazidos para mais perto da situação, e o que parece altamente alegre, é na verdade bem sombrio, pelo simples fato de não estarmos ouvido a música que as pessoas estão dançando, e sim, uma bem pontuda. Lucy vai andando como se estivesse totalmente ausente a ação, e quando enfim chegamos na mesa, a primeira coisa que vemos não são as pessoas, mas sim os ratos; mostrar a quantidade de ratos, além de mostrar antes das próprias pessoas indicam o tom de superioridade que estes seres têm sobre os humanos. A frase do homem que serve o vinho a Lucy é incrível, dizendo para aproveitar todo o tempo que lhes resta, cortando para um quadro de toda a mesa, como se fosse um almoço normal de uma tarde de domingo. Logo após isso, somos cortados novamente aos ratos (superioridade novamente), e quando voltamos, todas as pessoas na mesa sumiram. Os ratos conseguiram se sobrepor com sucesso sobre os humanos, os erradicando. Esta cena é incrível pois não só é muito bem composta, como também reforça a ideia de que talvez o monstro que todos estejam enfrentando não seja Nosferatu, mas sim a praga.
Por conta disto tudo, acho o segundo filme superior ao primeiro. Sei que o primeiro foi uma inovação magnífica para a época, e que o intervalo de tempo entre a tecnologia e desenvolvimento da linguagem cinematográfica dos dois filmes foi enorme, mas nada disso tira o fato da complexidade ser muito maior no segundo filme. Atualmente, o vampiro já foi domesticado, no sentido, de ele não representar aquele ser monstruoso que ataca sem avisar, mas sim de ser um ser charmoso que aos poucos vai demonstrando todo esse medo que está em cada um de nós. Nos dias de hoje, o vampiro é mais um ser que assusta psicologicamente do que pela sua monstruosidade. Fazer então o que Herzog faz, ao questionar o vigor deste ser nos fazendo duvidar a causa de todos os problemas e pânicos, ele faz nada mais, nada menos que esta domesticação do animal, dando este caráter muito mais humanizado, que ao meu ver é muito mais assustador. E é por essas e outras, que os vampiros de Crepúsculo (2008), são muito bem vampiros, já que criados nesta estética, tentam se aproximar ainda mais da humanização total, tendo como ideia inicial assustar bem mais ao trazer o animal em cada um.
Bônus: a cena em que Van Helsing vai preso é a cena mais engraçada do filme, parece um pouco Dr. Fantástico (1964), com a lógica do absurdo. É demais.
O Medo
2.4 11SPOILER DETECTED!!!
Assim como em Círculo de Fogo (2013), em que saí extasiado pela quantidade de efeitos especiais jogados na sua cara, ou em Lanterna Verde (2011), que me fez chorar de ver uma adaptação tão, mas tão horrível, O Medo é um título forte, angustiante, mas real. Não há um único momento do filme em que nos sintamos relaxados, e isso não é somente decorrente da narrativa, mas também pela forma técnica que o filme costura toda a trama. Logo na primeira cena, vemos uma câmera totalmente desfocada, pegando objetos disformes, enquanto gira por todo um ambiente, que parece ser um quarto de uma residência. Com o decorrer da cena, vamos vendo enquadramentos sempre bem incisivos, sempre pegando parcelas bem específicas dos locais e ocupando a tela inteira com elas; isso acontece com a escova de dente, o despertador, as pantufas, até mesmo com o rosto, mais especificamente, os olhos do menino. Estes enquadramentos parecem estar nos mostrando que cada objeto da cena é testemunha de algum acontecimento, de que cada novo ângulo do quarto esconde mistérios que estão aquém do que as pessoas que não moram na casa sabem, e que portanto, nós, como telespectadores, estamos invadindo esta privacidade, no entanto, de um modo bem cauteloso, o que logo nos indica que estamos num ambiente de grande perigo. A seguir pela trilha sonora, sempre meio dissonante, como se houvesse um ruído contínuo a cada novo passo que dávamos para descobrir tal mistério. Estando impotentes do modo que estamos, muitas vezes, a figura que posteriormente descobriremos ser o pai da família, se distancia da câmera, se desfocando, criando a sensação de um poder pungente que transborda daquele ser. Toda esta tensão é hermeticamente calculada, para que nós, assim como o garoto que vemos, sinta-se retraído sob as cobertas de nossa cama, para aumentar ainda mais essa sensação de impotência que permeia todos os indivíduos da casa. Toda essa aura só será quebrada quando finalmente, o homem em questão sai da casa; é só assim que começamos a ver corpos completos e câmeras mais abertas. Esta cena que abre o filme é uma cena incisiva tanto para as personagens da cena quanto para nós, telespectadores, o que denota uma certa aproximação psicológica que o filme quer que também sintamos, fazendo isso magistralmente.
Vamos sendo, pouco a pouco, inseridos na vida da família, a entender a angústia que cada indivíduo passa, e principalmente, a sentir o medo de cada um; o medo que a qualquer momento pode se tornar realidade, e sermos incapazes de fazer qualquer coisa. Vamos conhecendo então a figura aterradora do pai (Ramon Madaula), que por poucas vezes aparece no filme, fazendo com que estas poucas sejam o gatilho para um mundo de imaginações sobre a voraz personalidade deste. A soberba inicial é muito pior narrativamente que a violência, pois ela faz com que temamos coisas ainda piores por vir (isso funciona muito bem num filme de terror também: até o ponto em que não vemos a entidade, o monstro, a coisa que nos aflige, o filme é muito mais assustador, pois todo o trabalho vem da nossa imaginação). Sabemos que este cara, um homem aparentemente bem-sucedido, sem problemas financeiros bate em sua família. Mas por quê? A resposta poderia ser: "Porque ele bebe." ou talvez um, "Porque ele teve um passado obscuro." O que eu diria, seria algo mais para um: "Não importa." O filme mesmo não mostra um passado deste homem, e isso não é mesmo importante, pelo contrário, é até um ponto positivo para o filme. Se o filme tivesse mostrado que num passado, este pai que agora bate teve problemas faria com que criássemos um sentimento de pena, o que é totalmente inválido para a situação. O pai bate na família e ponto, não se deve criar sentimentalismo nenhum para este ser horrendo. Ao mesmo tempo que vemos esta figura mandatória do pai, vemos uma mãe (Roser Camí) totalmente indefesa, conformada, mas que no fundo, tem uma luz de desprendimento, que é acesa quando o filho (Igor Szpakowski) se mostra disposto a fugir. Ela se sente impotente financeira e psicologicamente para fugir do marido, já que trabalha num emprego de muito menos valor, em termos rentáveis, que o dele, e se sente totalmente perdida para como levar a vida adiante. A filha, por sua vez, inocente, reflete algumas das ações que sofre em casa na escola, batendo posteriormente em colegas que a perturbam. E por fim, o filho, talvez a pessoa mais insegura da trama, até mais que a própria mãe, tenta a partir dos trajes se mostrar um jovem normal, descolado, dono de seu próprio rumo, mas que no fundo, esconde uma angústia que tem vergonha ou receio de trazer à tona. Ele será o impulsionador de alguma fuga, mas é ao mesmo tempo, confuso do que fazer em relação a própria vida, não sabendo muito bem o que sente por Laura, se deve se desvencilhar dela para ajudar a família mais obstinadamente, ou se deve semear tal relacionamento como forma de esquecimento do que ocorre em casa e um momento de maior curtição. Sempre muito inseguro, Manel se questiona se um dia se tornaria igual ao pai, ao mesmo tempo que tenta planejar uma forma de fuga da família. Estes sofrimentos são sempre compartilhados de uma forma bem crua, em que o diretor se alonga nas cenas de simplesmente andar, como se nem o andar fosse algo fácil para a vida destas pessoas; há sempre essa brincadeira com os focos da câmera, principalmente nestas cenas do andar, remetendo a este perigo sempre à espreita. No entanto, o perigo é máximo quando nos deparamos com as cenas em que as personagens olham diretamente para a câmera. Para começar, não é de praxe que personagens olhem fixamente à câmera, já que isso estaria quebrando a ideia de fantasia e da divisão de mundos (o nosso e o das personagens) do cinema. Mas neste filme, a ideia é totalmente diferente; este olhar penetrante é como se fosse um aviso: "Olha, veja o que está acontecendo com a gente? O que fazer?", mas naquela ideia de aproximação da personagem e do telespectador, a mensagem é bem mais forte. É como se ela dissesse que casos como este acontecem diariamente, e pode estar muito bem do nosso lado, sem nos darmos conta. Este olhar é sim bem inesperado, mas envolve toda essa mensagem que nos aflige ainda mais do que um simples olhar na câmera.
Manel quer uma vida melhor para ele e sua família, no entanto, ele não sabe que vida é esta, se baseando então em seus amigos mais próximos. Eles podem ser figuras secundárias em toda trama, mas são elas as grandes figuras que vão mostrar esta vida que Manel sempre almejou. Deste modo, Manel vê que o pai de seu amigo o traz diariamente à escola, vê que um cuidado por outra pessoa ainda existe (o que é mostrado na figura da namorada, que mesmo tendo a atenção de um novo pretendente, ainda possui o sentimento antigo por ele - ela, por sua vez, é uma personagem um tanto quanto interessante, já que em duas tomadas, imersas num filtro bem azulado, ela se vê andando numa total melancolia, ao visitar o cemitério com o amigo dele, ou ao andar por um campado até a quadra em que Manel está jogando basquete; nesta cena ainda, um palpitar do coração que cada vez mais aumenta, se confunde com o som da bola de basquete quicando, num 'matching' perfeito. Você deve estar se perguntando: "Mas que raios são essas cenas?" A minha melhor resposta seria que elas são sonhos (muito também pelo ambiente mais azulado, em situações desconexas com a linearidade do filme). Sonhos que Manel tem sobre Laura, acentuando ainda mais este conflito entre sentimento e dever com a família na cabeça dele). Estes valores serão então de extrema importância para as atitudes que Manel tomará com o decorrer do filme.
Uma cena bem interessante e triste é quando Coral (Alícia Falcó) mostra o comunicado da diretoria e questiona a autoridade da mãe. Ver-se uma figura impotente até mesmo para os filhos, o que aparentemente é a única fonte de vivacidade que a mãe tira para continuar a viver, talvez a inspire um pouco para tomar alguma atitude junto com o filho. O que alguns podem ter se inconformado no decorrer do filme com eu descrevendo esta cena, é a forma como a mulher é tratada de um modo tão frágil diante dessa figura "paterna" (a.k.a. machista, a.k.a. opressora, a.k.a. ignóbil) nesta obra. Eu acho que mais do que tentar mostrar uma revira-volta da figura feminina, o filme tenta mostrar como ainda hoje, mulheres ainda são tratadas de forma inferior pelos homens. O quadro que o filme mostra é sim para se criar revolta diante dessa figura patriarcal, mas serve mais como ilustração de um caso do que a força pungente da mulher. Isso serve do mesmo modo para o desprezo que alguns adultos tem para com os jovens, tratando-os como levianos, ignorantes, que é retratado na figura de Manel (que não tem autoridade para receber um comunicado de sua própria irmã, que não tem pé de igualdade com os pais). Da mesma forma que na criação do sentimento do tensão, discutida acima, o sentimento de revolta, de repulsa é criado muito mais fortemente diante da situação apresentada, que tem seu estopim na cena final.
A cena final é de uma beleza técnica, principalmente sonora, estrondosa, sendo criada de um simples artifício: mudança de ponto de vista. Ao retratar toda a discussão e violência a partir do ponto de vista do garoto exacerba ainda mais toda a brutalidade da cena. Não vemos violência física sanguinolenta, como veríamos num filme que preza mais pela ação do que pela mensagem (não estou dizendo que este tipo de filme é pior que o outro, são somente modos diferentes de abordar um tema), mas sim um deslocamento, uma tensão e, principalmente, uma impotência gigantesca. Não vemos, ouvimos, e de longe. A cara geral de espanto de Manel decorrente dos gritos e estilhaços nos causa um enrijecimento intenso, e mais uma vez aqui, a imaginação trabalha. Se tivéssemos a cena vívida do espancamento, saberíamos exatamente o que estava acontecendo, mas não temos, o que nos faz imaginar algo horripilante que é completo com a imagem machucada da mãe. Só para terminar a análise do som, eles são tão bem construídos para criar essa imagem em nossas cabeças, que quando o pai começa a se aproximar do quarto de Manel, imaginamos que ele virá enfurecido, o que quebra toda nossa expectativa, mas que é sem dúvida, muito angustiante. Quando Manel desce com a irmã, e o pai mostra a arma que carrega até nos espantamos, já que pensamos o que ganharia um homem ao matar toda sua família, o que pelo contrário, até perderia, já que vizinhos poderiam ouvir os tiros, levando-o para a prisão; mas mais uma vez, o que acontece depois na história é desimportante para a mensagem. Após todo o descarregamento dos cartuchos, voltamos àquela cena inicial do filme que percorremos vários objetos da casa desfocados, e mais do que isso, o som do acionamento do gatilho como aquele som dissonante de fundo, mostrando que esse perigo que tanto se mostrava, enfim se completou. Mas o mais interessante nesta cena não é o aspecto técnico, mas sim o narrativo: Por quê o filme termina deste jeito, e não com uma vitória da família, ou com a mudança de personalidade do marido? A ideia do filme, como já disse anteriormente, não é mostrar uma superação, mas sim o quadro de um caso de que é muito real em nosso cotidiano, infelizmente. Um cara desses não precisa de motivo para bater na família, ele só bate. Esse perigo ronda toda a família, e caso ela não faça algo para tentar contorná-lo, esse perigo pode se tornar muito bem uma realidade, de uma forma que não possamos mais controlá-lo. Esse filme tem uma mensagem então muito mais de alerta, porque ele mostra justamente o pior infortúnio que possa vir a acontecer caso ele não seja ultrapassado. Essa mensagem é muito mais forte que uma de superação, pois mostra pela catástrofe algo que pode ser contornado. É claro que isso está longe de ser fácil, e que qualquer auxílio é de grande favor para a vida dessas pessoas, nesta sociedade que continua a ser tão machista como é. O filme mostra que mesmo depois de alcançada, a primeira medida a ser tomada a fim de se livrar deste "modo de vida" (já que não é uma escolha de como viver) é justamente a do combate ao medo (como o próprio título diz).