SPOILER DETECTED! (E se você se incomodar com o maniqueísmo do comentário, a culpa é da lógica do filme)
De fato, assistir a uma obra de Aleksandr Sokurov não é para qualquer um: o ritmo de câmera e narrativa pode rapidamente afastar os mais impacientes (considerando que algum de seus filmes predecessores são ainda mais lentos). No entanto, se tentarmos prestar um pouco mais de atenção, podemos perceber alguns artifícios muito interessantes que toda a equipe produz. Como o filme diz logo no início, ele é livremente inspirado na obra homônima de Goethe, portanto, não traçarei parâmetros entre os dois. Dito isso, podemos começar contextualizando um pouco o enredo. Fausto (Johannes Zeiler), um intelectual anacrônico, tenta incessantemente buscar a alma de um ser humano, e clamar por mais conhecimento. Em condições financeiras complicadas, e sem um prognóstico para o futuro, Fausto começa a ser atraído pelas forças malignas de Mefistófeles (Stefan Weber). Assim que damos de cara com Mefistófeles, o vemos como um penhorista, que só para reforçar, é o indivíduo que troca objetos de valor de algumas pessoas. Sendo assim, essa troca não funcionaria melhor que neste caso, já que metaforicamente, a alma é o bem de maior valor para uma pessoa. Com o tempo, Mefistófeles vai mostrando o que mundo pode ser, no sentido maligno da coisa, fazendo com que Fausto vá aos poucos se transformando para uma figura horrível.
Sabendo então da lógica do filme, a cena inicial resume bem não só a ideia que será passada no filme em questão, como a de toda a tetralogia do poder de Sokurov. O pano que vem caindo dos céus em direção ao chão remete a esse poder que vem em declínio, descaracterizando a figura imponente e passando a um mero indivíduo (há também aquela sensação vista em Forrest Gump (1994), da pena passando por toda uma cidade e caindo em cima do indivíduo que contará a história a nós, mostrando que as coisas que aconteceram a este homem poderiam muito bem terem acontecido com qualquer outro. Essa análise serve para a transformação de Fausto, já que qualquer indivíduo pode ser transformado pelas forças do mal); isto acontece no Moloch, acontece no Taurus, e acontece em O Sol. Em Fausto vemos um homem de caráter impetuoso, mas de certa dignidade que a cada momento tenta se sobrepujar sobre ele mesmo. Essa personalidade ambiciosa, que pouco existe em outros indivíduos, estes, sonhando com coisas mais pontuais, como bens e riquezas, desperta um sentimento de necessidade de posse maior em Mefistófeles, o que faz com que Fausto tenha um tratamento mais especial que a de outros mortais quando aquele consegue finalmente sua atenção. O primeiro choque que tomamos no filme, já que neste momento, Fausto ainda não tem total segurança da entidade que está à sua frente, é descobrir que vários indivíduos desta sociedade têm relações com Mefistófeles, sejam eles, civis, artistas ou clérigos. Esteticamente, o filme mostra assim que Fausto sai de sua casa, que esse segredo que cada pessoa tinha, começa a aparecer, visto que todos ao seu redor, vestem preto, simbolizando assim, esse obscurantismo talhado em qualquer um. É somente Marguerite (Isolda Dychauk), a única a não ter essa aura a sua volta, denotando assim, a pureza e ingenuidade presentes (algumas cenas em que isto pode ser visto claramente é por exemplo, a do confessionário em que a mão dela está numa parte iluminada, como se fosse algo sagrado, enquanto que a de Fausto está escondida nas sombras, e na do delírio de Fausto, em que o filtro do filme está praticamente amarelo/dourado, de tanta pureza que ela teria). Um outro artifício que Mefistófeles se utiliza para conquistar Fausto é sempre se rebaixar diante dele, de forma a encher seu ego. Expandindo esta característica, podemos perceber que Mefistófeles omite o que lhe convém, para que a sua vítima esteja mais propensa a realizar o que ele quer que faça. É tudo uma parte de um jogo. Neste jogo, temos ainda uma progressão de maldade nos acontecimentos em que Mefistófeles arranja a Fausto, passando por um prostíbulo (Mefistófeles, assim como a montagem/fotografia, fazem com que todo o local ganhe um tom sexual muito mais forte do que realmente teria, já que ele rebaixa o local a um lugar de passeio libidinoso, e a montagem/fotografia cria um ambiente bem embaçado, em que quase não conseguimos ver os contornos das pessoas e objetos, de forma a quase nos convidar a desbravar os mistérios e recantos deste ambiente, acentuando ainda mais o tom sexual), pela doença (esse mal que a qualquer momento pode acometer a qualquer um) e pelo assassinato (como o ato mais pecaminoso que uma pessoa poderia cometer). Todo este processo, aliado com o ceticismo inicial de Fausto fazem com que ele simplesmente subestime a figura de Mefistófeles (algo que Mefistófeles incentiva para corromper Fausto com ainda mais intensidade, como citado anteriormente). Fausto, por exemplo, acreditando que a alma não existe, assina o pacto quase que ridicularizando Mefistófeles (corrigindo os termos), imaginando que ele não estará entregando nada a ele. Essa ilusão criada por Mefistófeles, dialoga metaforicamente com todo o filme, já que a fotografia contribui muito para dar esse aspecto onírico às cenas, com quadros bem sombrios, sempre meio embaçados, muitas vezes tortuosos (algo que as vezes até parece que a cena foi filmada com uma lente errada, ou que o 'aspect ratio' foi convertido de forma horrível), mostrando esse mal conjunto da sociedade que rodeia a tudo e a todos (uma curiosidade é que estas câmeras sempre bem tortuosas eram utilizadas bastante na época do Expressionismo Alemão do cinema, em filmes como Nosferatu (1922) ou Metropólis (1927), para mostrar este lado obscuro e animalesco das pessoas do filme, o que para este filme funciona muito bem também). Mefistófeles, como já dito, vai moldando um novo Fausto que atingirá seu ápice no final do filme.
Uma coisa interessante de se perceber neste filme é que Mefistófeles vai levando Fausto para épocas históricas cada vez mais passadas, passando pela Idade Média (justificado pelos formatos das casas, ou pelo fato da cidade inteira se basear na Igreja central), pela Pré-História (homens vestidos com panos/peles de animais) até chegar na origem de tudo (gêiser - fonte da vida). O que Fausto ansiava era por conhecer tudo, desta forma, Mefistófeles vai levando Fausto por uma viagem temporal (algo parecido como o que o hipopótamo faz com Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis) para que ele conheça tudo o que homem possa conhecer. No entanto, é ter noção de tudo, que faz com que Fausto comece a delirar ainda mais dentro da ilusão criada por Mefistófeles no decorrer de todo o filme. Fausto, atingindo assim o máximo de conhecimento possível, ignora a toda a situação, se achando auto-suficiente e inteligente o bastante para achar novas respostas (megalomaníaco), andando para o nada pelo inferno. É na cena final que vemos que o objeto (digo aqui objeto, porque Fausto a considera um mero objeto de satisfação sexual) que atiçou passionalmente toda essa mudança em Fausto (Marguerite) é no final imaginado como um novo impulsionador de novas respostas, mesmo que delirado. Em suma, o que podemos ver neste filme, é a busca, com posterior acúmulo de poder que faz com que Fausto fique insano e comece a achar que é superior a tudo, esquecendo de que ele está preso no inferno, sem escapatórias, fazendo assim com que o real vencedor, seja nada mais, nada menos, que Mefistófeles.
É por ter esta livre-interpretação, repare uma última vez nessa palavra, pois ela é realmente muito importante para o sucesso do filme, de uma obra fictícia (já que a interpretação acerca dos líderes políticos é mais delimitada) de grande renome como esta que acredito que Sokurov alcançou da melhor forma, o sentimento que o poder pode criar num ser humano na tentativa de ancalçá-lo e como ele pode acabar transformando este indivíduo.
A história de um jovem que vislumbra o mundo, sonha, questiona e ao conhecer uma senhora mais velha, mostra a ela todas as belezas da vida que um dia lhe foram férteis e impressionantes como hoje são para este garoto. NÃO! Acho que nesse filme temos um clichê hollywoodiano sendo quebrado, principalmente numa época em que os jovens eram tão aclamados e retratados para o progresso da sociedade, como foi na década de 70 (Woodstock, movimento hippie, entre outros). Acho que este foi um tapa muito forte para a época, não é a toa que o filme foi totalmente ignorado quando lançado. As primeiras imagens de Harold (Bud Corton) mostram um garoto rico (algo acentuado pelo cuidado sonoro do filme, ao se preocupar até mesmo com o fato das escadas de madeira não rangerem nas passadas do garoto, denotando uma família abastada, suficientemente capaz de trocar o assoalho assim que este começa a naturalmente a se deteriorar, e por conseguinte, ranger), que mesmo um tanto reservado (já que demoramos a ver o rosto do garoto, mostrando um certo afastamento com a sociedade que o rodeia) possui uma mente socialmente descontrolada; o mais assustador na cena não é o próprio ato do garoto em si (que com uma ajuda da fotografia, coloca-o enquadrado à frente dos feixes de luz, em um ponto muito valioso tanto para a fotografia quanto para o cinema: o ponto de ouro - também conhecida como regra dos terços. Corta-se o quadro em duas retas horizontais, de forma a termos três espaçamentos iguais, e logo após isso, fazemos o mesmo em duas retas verticais. O local de cruzamento destas retas são onde estão situados os pontos de ouro. - caso você ainda não tenha entendido, segue no final do comentário um vídeo explicando mais detalhadamente esse recurso técnico. No cinema, o ponto de ouro mais importante é o superior direito. Sendo assim, Harold é posto no ponto mais grandioso, para engrandecer ainda mais seu ato), mas a reação da mãe para com o filho, agindo de forma totalmente natural diante de algo que psicologicamente parece totalmente aterrador. Harold segue fazendo estes pequenos suicídios no decorrer de todo o filme, e mesmo que narrativamente ele já tenha uma certa idade (embora o ator pareça ser bem mais jovem do que o filme sugere), ele clama pela atenção de sua mãe, mesmo que de um modo extrapolante, no entanto não conseguindo resultado de qualquer forma. Em outras palavras, ele atua para a mãe, já que sendo natural ele não consegue obter resultado melhor. Isso é muito importante, pois Harold não atua somente para a mãe, mas sim para todos os indivíduos ao seu redor, até mesmo a nós, espectadores. Vislumbrando o mundo a partir da figura da mãe, ele acredita que a vida seja bastante miserável, não dando valor às pessoas ao redor, agindo então de forma dissimulada a todas elas. Esse espetáculo que Harold cria a todos pode ser percebida também na cena do sangue do banheiro, ou nas cenas em que ele assusta as pretendentes ao casamento. Outra coisa que percebemos em relação a sua índole nesse pequeno trecho inicial é que Harold é bem metódico, visto na cena em que ele usa o isqueiro para acender o fósforo, e assim, acender as velas. Esses movimentos regrados são bem perceptíveis também nos passos de Harold, sempre firmes e alongados. Essa análise inicial pode ter sido bem técnica e detalhada, mas é de extrema importância que saibamos seus modos, já que pelo decorrer do filme, seus trejeitos serão alterados profundamente, então em suma, sabemos que Harold atua para as pessoas ao redor e que é extremamente metódico, atendo-se então aos símbolos.
Antes de darmos prosseguimento a análise de Harold, eu queria mostrar como as figuras ao redor dele ajudam a formar esse indivíduo fechado em si, e receoso de viver. Primeiramente, temos uma mãe que como já vista anteriormente, é negligente e impositiva, que vê o problema do filho mais como um problema para si mesma, do que algo que deve ser cuidado por carinho. Sendo a principal pessoa para a vida de Harold, ele não tem a quem recorrer/confiar quando algo lhe viesse a acometer, além do mais que a mãe vive transferindo a responsabilidade do cuidado para terceiros (psicanalista, tio militar, casamento) sem ao menos parar um momento para tentar entendê-lo. A seguir, vemos um psicanalista que por ser inexperiente demais, ao invés de tentar observar o caso de Harold separadamente, tenta rapidamente categorizá-lo em um tipo/problema já catalogado. Este psicanalista, que talvez fosse a ponte para o melhor entendimento de Harold, acaba fazendo com que ele se afaste ainda mais, por não se poder confiar em um indivíduo que mais tenta impor um diagnóstico pré-estabelecido, do que procurá-lo a partir dos fatos em suas mãos, observando Harold como uma pessoa, e não um paciente. Mais a frente, conhecemos o tio de Harold, um ex-combatente que depois da guerra possui maiores influências militares. Esse sujeito tenta mostrar a Harold a beleza, a honra, a satisfação de ser um militar; a sensação de ser livre. O engraçado é que atrás deles, os sons sugerem que essa liberdade é também regrada, ou seja, não se tem liberdade. Além disso, o braço robótico serve metaforicamente para mostrar que um ser humano não se realiza ao se tornar um militar, que não se torna mais humano, mas pelo contrário um robô, uma máquina de morte (como 16 anos depois, Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick, retrataria magnificamente). E por fim, pretendentes para casamento risíveis, que não condizem em nada com a profissão que exercem (a primeira que estuda ciências políticas deveria ser alguém com mais seriedade, mas que conhece Harold por perder uma aposta, a segunda que trabalha como arquivista e que exalta sua empresa citando fatos que nada tem a ver com sua profissão, e por fim uma atriz que mais parece uma ponta de filme de comédia romântica do que uma atriz). Essa sociedade nada amigável a Harold só o faz se isolar ainda mais em seu próprio mundo, tornando-se difícil desabrochá-lo deste encanto, até que Maude (Ruth Gordon) aparece em sua vida...
Maude, assim como Harold, tem um fascínio pela morte, no entanto, os motivos são bem diferentes. Enquanto Harold vai aos funerários como uma forma de encontrar um sofrimento alheio que faça o seu próprio sofrimento parecer irrisório, encontrando assim um pouco de satisfação (algo como o Narrador de Clube da Luta (1999) faz para conseguir se desvencilhar da insônia), Maude cultua esses ambientes para encarar a morte, fazendo com que a sua vida seja então valorizada. Embora com motivos totalmente diferentes, o primeiro contato logo mostrará que os dois se darão muito bem daqui para a frente, já que ambos estão alienados (no sentido bom da palavra) desta sociedade politicamente correta. Nesse primeiro contato, temos novamente um enquadramento um tanto cômico, já que vemos uma cruz tomando grande parte do lado esquerdo da tela, enquanto vemos Maude sentado do lado direito da tela, comendo uma maçã, algo como se tivesse fazendo um lanchinho no meio do cemitério. O melhor relação que podemos fazer é uma antítese do sagrado, do método, da religião na figura da cruz, enquanto que Maude come uma maçã (pecado) diante de uma cena bem figurativa religiosamente para um fiel. Isso acentua ainda mais a ideia de uma pessoa diferente das demais, diferente do padrão. Maude vai então pouco a pouco ensinando Harold a viver (um título mais bem condizente que o original), seja pelos sentidos (com as bugigangas de sua casa), seja mostrando a beleza das pequenas coisas, seja por dar a atenção que Harold sempre sonhou, seja por ver Harold como um indivíduo (as flores são mais belas quando a vemos de perto, e não quando ela é analisada no meio de várias outras, coisa que o psicanalista não consegue fazer anteriormente), seja por mostrar o maior dos sentimentos aos dos símbolos, ou mesmo por estabelecer uma relação amorosa com ele (coisa impensável numa sociedade daquela época, o que será mostrado de um modo bem incisivo pelos monólogos dados por várias pessoas de classes sociais diferentes olhando fixamente para a câmera). Aos poucos, aquelas características supracitadas vão se perdendo: Harold começa a agir mais naturalmente, a viver de uma forma mais leve, a mostrar sua real face, pelo menos para Maude até aquele momento. Algo que simboliza essa passagem é o fato das cores das roupas de Harold tornarem-se mais vivas com o passar do processo (inicialmente Harold anda de blazer pela casa, algo que no final será substituído por uma camisa com detalhes de flores). Toda essa transformação é linda, e é quando Harold encontra com sua última pretendente de casamento que ele vê quão ridículo era. Sunshine (Ellen Geer), assim como Harold, atuava para viver (mesmo que mal). Harold precisou ver sua antiga personalidade para se dar conta de que viver não era isso, que o que ele fazia era medíocre e deveria ser contornado. A partir daí, Harold realizará só mais um suicídio, que é o que acontece logo após a morte de Maude.
Maude ensina este lado bom da vida a Harold, que vivemos somente uma única vez, e que portanto não devemos desperdiçá-lo, mesmo que tenhamos vivido maus bocados, como ela mesma passou quando perdeu o marido, por ela ser uma sobrevivente da perseguição nazista (símbolo de judia que Harold vê no braço dela). Dessa forma, Maude poderia ser a pessoa mais triste da face da Terra, no entanto, ela soube contornar isso e viver a vida da melhor forma, sendo é por isso que ela não se sente mal quando está prestes a morrer, simplesmente pelo fato de ela ter conseguido aproveitar a vida da melhor forma possível, morrendo assim em paz. Harold então realiza seu derradeiro suicídio, no entanto, ele não o faz por estar triste pela perda de Maude, mas sim para mostrar que o processo pelo qual passou foi bem-sucedido, que ele conseguiu aprender a viver. Diferentemente dos demais suicídios, Harold não finge esse suicídio para chamar a atenção ou como forma de repulsa a sociedade ao seu redor, mas sim para se desvencilhar de sua antiga pessoa/personalidade. Harold é um novo indivíduo após deste suicídio (desta vez, o suicídio pode ser realmente entendido como um suicídio real, mesmo que seja de personalidade). Aquelas duas características que Harold tinha logo no começo do filme já não existem mais: a atuação foi levada embora junto com o suicídio, como dito acima, e os métodos por qual vivia também são substituídos quando vemos um Harold tocando o banjo de uma forma totalmente caseira e despretensiosa.
Como visto em todo este comentário, vimos que o filme traça uma crítica bem incisiva a figura de vários indivíduos na sociedade, que não sabem reconhecer cada pessoa como única em seu meio. Outra forma mais implícita em que o filme faz isso é no trabalho de cores, em que um verde bem forte mostra essa sociedade ditando tipos e generalizações, e mais do que isso, tirando o toque de desumanização de cada pessoa na sociedade. A cor pode ser vista por exemplo no campo de flores brancas, ou nas lápides do cemitério. Nesses casos, cada um de nós somos uma flor, uma lápide, e como Maude pontua muito bem, cabe a cada um observar com mais cuidado cada indivíduo a fim de encontrar interessantes características e qualidades. No entanto, essa sociedade que permeia e dita o que é moralmente ou não correto (esse campado que permeia todas as flores e lápides) acaba fazendo com que todos nós pareçamos iguais de longe. Um outro momento bem forte que isso aparece é na figura do militar. Como já dito acima, a liberdade de todo militar que o tio de Harold diz, parece não ser verdadeira, e não é a toa, que a farda dos militares seja da cor verde. A partir do momento em que esta parte da sociedade adentra em cada um de nós, acabamos por nos tornar menos humanos, e mais robóticos, como o braço dele. E finalmente, o verde aparece na cena final em que Harold toca o banjo, mas diferentemente das demais, temos um Harold bem extenso na cena, diferentemente das flores ou lápides vistas anteriormente, que sendo assim, parece não se importar mais com o que a sociedade dita ou não, sendo assim, maior que o verde, maior que o que a sociedade pensa, podendo então viver a sua vida de uma forma bem melhor.
O filme é de um trabalho visual espetacular, mas minha mente de século XXI rapidamente imaginou toda a situação que viria a acontecer com as duas personagens. Não digo que o enredo é fraco, mas tendo uma mente mais aberta que as pessoas da década de 70, tive a liberdade de imaginar muito mais coisas, fazendo com que eu perdesse um pouco da animação e surpresa de descobrir as coisas. Mais uma vez digo, o enredo não é ruim, é só que é bem previsível para minha mente de século XXI. Uma outra coisa que me irritou profundamente no decorrer de todo o filme foi a trilha sonora de Cat Stevens. A composição das músicas não é ruim, pelo contrário, é bem agradável de se ouvir, já que os arranjos são muito bem feitos, mas acho que a aplicação não foi muito bem-sucedida. Não sei se isso aconteceu para tentar aproximar o público de 70 de um tema bem controverso para a época, mas a mim não me apeteceu. A sensação que tive é de que eu era um pouco ignorante, pois a letra da música literalmente expressava as imagens que eu acabava de ver na tela. Como assim? O garoto está triste, a música fala que o garoto está triste. O garoto quer ser livre, a música fala para o garoto ser livre. Isso irrita bastante. Além disso, a dissonância entre a felicidade da música e a cena me pareceram algo como a dissonância histórica com a tentativa de aproximação ao popular feito na trilha sonora de O Grande Gatsby (2013). Em vários momentos da história do cinema, utilizar-se de uma trilha inesperada para a cena cria algo bem mais incisivo que algo esperado, como a cena do Singin' in the Rain de Laranja Mecânica (1974), mas eu achei que a trilha desse filme acaba por ridicularizar a situação de Harold, o que aos meus olhos, não caiu bem. Eu achei também que pela censura da época, muitas cenas que podiam ter uma sensibilidade muito maior, ou mesmo criar uma melhor empatia conosco foram retiradas comprometendo um pouco a dinâmica do filme, que anda tão bem até chegar nesses momentos derradeiros, como a da relação sexual entre os dois. Isso me soou como um certo receio em relação a crítica da época, no sentido de que mesmo que tenha criado um tema ousado, o diretor ainda coloca um pé atrás, com medo de que na tentativa de consolidar o filme como comercial (o que foi um fracasso na época), fizesse com que ele não pudesse ir tão adiante, e isso tira um pouco do brilho do filme. Enfim, a obra é de fato, inesperada, ousada e incrível em várias de suas mensagens, mas algumas falhas tanto técnicas quanto imagéticas fazem com que o filme perca uma grande percentagem de sua magia como mensagem, o que nesse filme é de extrema importância.
- Ponto de Ouro / Regra dos Terços: https://www.youtube.com/watch?v=fnFD6MGrytg
Este foi um filme que me fez pensar bastante. Eu não sabia o que escrever, ou o que pensar acerca de sua qualidade, muito porque o filme é como se fosse um tapa na cara de cada indivíduo, por ser muito real. É claro que que as personagens do filme são algumas vezes bem exageradas ou estereotipadas, mas elas são feitas desse modo para mostrar que essas atitudes que muitos consideram impensáveis, podem sim conter algum sentido, e pior, tornar-se algo tão palpável, que nós, "os normais", nos surpreendemos da capacidade do ser humano. Se há um termo que possa melhor definir esse filme, o termo seria "SOCIEDADE DE APARÊNCIAS".
Esse padrão de sociedade politicamente correta e repleta de formalidades criada no romantismo escondia muitas desvirtuosidades que cada pessoa compartilhava em segredo consigo mesmo. Não expor essas atitudes era uma forma de negar a existência delas; no entanto, elas existiam. Existiam de tal forma que a partir daí, diversas correntes literárias (realismo e naturalismo) começaram a mostrar os segredos da burguesia, a animalização dos populares. E isso não é exceção a este filme. Embora tenhamos uma imagem altamente correta de todas as estruturas de uma família que segue o padrão "American Way of Life" (a nova romantização da sociedade), é até um pouco antes que temos um quadro que se não quebra com essa política, pelo menos nos faz questionar os indivíduos desta família: o narrador que abre a cena dizendo que está morto, e que conseguiu viver os últimos momentos de sua vida, sem se importar com o que era politicamente correto ou não. Essa ideia inicial não só põe em dúvida todas as imagens que estão sendo mostradas a seguir, como vai ecoando nas cenas a seguir que quebram essa ideia. É certo que Lester Burnham (Kevin Spacey) só vai realmente aflorar na cena da dança da amiga de sua filha, mas é um pouco antes que vemos o sinal de que ele está querendo mudar. Na cena em que Lester é chamado pela primeira vez ao escritório para ser informado dos cortes vindouros, temos um Lester bem no fundo de uma sala escura, numa câmera distante, mostrando um personagem meio que conformado com as máscaras da vida e com seu trabalho extremamente chato. A partir do momento que ele começa a revelar os menores dos companheiros de trabalho, o corte da câmera seguinte mostra um Lester bem enquadrado no meio, grande, que num momento de superioridade em relação a Brad (Barry Del Sherman) aproxima-se o rosto da câmera, sendo iluminado por um feixe de luz. Esta cena é o princípio da revolta de Lester em relação a essas máscaras. Essa luz representa metaforicamente a iluminação/revelação de todas as falsidades dele, o que como disse anteriormente, estoura na cena da dança. A cena da dança é de fato uma das mais importantes do filme, e ela é tão boa, pelo jeito que ela é construída. As câmeras não pegam nem os melhores enquadramentos nem a melhor angulação das líderes de torcida, o que denota que esta é uma câmera subjetiva do que Lester está vendo. Esses movimentos lentos e retos denotam a falta de interesse dele pela ação. A partir do momento em que Lester foca Angela Hayes (Mena Suvari), o som que antes era diegético (sons que as personagens ouvem, portanto pertencem ao enredo) torna-se um som angustiante, crispante, a câmera vai se aproximando no zoom até o ponto de interesse. É nesse momento que tudo ao redor some, e ficam só os dois; fica claro que ele está delirando, mas o mais interessante são as luzes. A luz que antes revelou a real intenção de Lester está mais uma vez mostrando que o politicamente correto não existe mais para ele. A cena é finalizada com as rosas sendo lançadas (esse aspecto da cor será discutido mais adiante).
Com o decorrer do filme vamos vendo que essa sociedade de aparências vai aos poucos se revelando: vemos a mulher correta e fiel, traindo o marido, o ex-combatente que renega o homossexualismo, mas que por trás esconde esse mesmo desejo, a ninfeta que conta aos quatros cantos do mundo sobre cada uma de suas experiências, mas que no final se revela virgem, e até mesmo o garoto calmo, quieto, que respeita os pais sem indolência, mas que nas demais horas, trafica maconha para os vizinhos. A forma como o filme trabalha cada um desses segredos é incrível, pois mesmo que alguém tenha pego a ideia do filme (revelação das máscaras), a composição de cada uma dessas revelações é muito bem arquitetada, nos espantando em cada uma delas. Por exemplo, a cena em que o ex-combatente vem na chuva em direção a Lester, imaginamos que ele vem dá-lo uma surra, já que vimos o poderio dele em relação ao filho, quando este simula a mentira do homossexualismo, mas o que vemos no final é simplesmente uma cena de afeto, o que nos faz ficar bem sobressaltados. A forma como os cortes de cena vão levando a imaginar que a arma que matará Lester seria a de sua mulher é bem planejada, pois ao mesmo tempo que vemos os movimentos de cada uma das personagens, vemos o que seria o assassinato, assimilando primeiramente a mulher, o que mais a frente é totalmente destituído. Estes cortes no final do filme são feitos de uma forma tão boa, que essa confusão de papeis das personagens na cena, pode funcionar metaforicamente como essa sociedade de aparências, já que não sabemos como as pessoas realmente são por dentro, então esta confusão de imagens remete a essa máscara que confunde as demais pessoas.
Quanto ao enredo queria dizer somente mais uma coisa referente ao garoto, que tem um papel importante no filme, já que basicamente conecta várias personagens. Ele, um garoto inicialmente apático, estranho se mostra um indivíduo bem interessante, mostrando a Jane Burnham (Thora Birch) que a vida é composta de vários momentos felizes, é só questão de saber olhar. Como ele mesmo diz, tudo ao nosso lado pode ser algo maravilhoso, o bater de asas de um pássaro, a afiação elétrica que liga uma lâmpada; tudo é maravilhoso. Essas coisas maravilhosas de cada dia se escondem na banalidade, assim como essa mesma sociedade de aparências. Mas mais do que isso, é essa mesma sociedade politicamente correta que dita o que é estranho ou não. Diz se algo é digno de beleza ou não. Por que um plástico esvoaçando pelo céu vale menos do que a premiação de um campeonato científico? Esse raciocínio é expandido por todo o filme, e ele que motiva Lester a realizar as coisas que faz.
É mais do que certo que a cor vermelha significa algo nesse filme. Mais do que qualquer outro filme, ele joga tanto essa cor na tela, que é impossível que não paremos para pensar em seu significado. Jogar tanto o mesmo efeito na nossa cara pode parecer meio infantil, meio megalomaníaco, no sentido de mostrar que sua obra tem um grande poderio em aspectos técnicos, mas o que eu digo é que o significado da cor tem totalmente a ver com essa sociedade de aparências recorrente em nossas vidas. Primeiramente, sabemos que vários objetos casuais contém tal cor, o que significa que o significado dessa cor está no nosso dia-a-dia, mas ela também aparece, até com mais intensidade, em momentos de total devaneio e contemplação, como a cena da dança. Então pela lógica, é algo está frequente no nosso dia-a-dia como se quisesse se preponderar, mas que quando nos lavamos de toda a razão é que aparece com maior intensidade. Por que não esse desejo, essa máscara da sociedade, essa falta da verdade? Não entendeu? Vou explicar. O vermelho se esconde em cada um de nós, ela é nossa real índole, nosso real sentimento sobre a vida e tudo mais. É quando queremos algo animalesco, ou moralmente incorreto que esse vermelho vem à tona. Esse vermelho é o que se esconde por trás das máscaras de cada indivíduo. As vezes ele pode vir num ato falho, por isso a cor as vezes vem forte em objetos casuais, pois essa revelação pode vir sem querer na vida cotidiana, mas é nos momentos de privacidade e desejo que o sentimento realmente se desprende. Esse vermelho é algo como o ego e o id de Freud. Esse id é o que está preso dentro de nós e que está na iminência de se sobressair, o que quer tomar conta, e o racional, o ego, vai sendo controlado pelo superego, fazendo com que essas máscaras do não caiam socialmente. O que o filme mostra no final é impressionante. Lester toma um tiro na cabeça, e o que vemos não é sua cabeça estourada inicialmente, é a mancha de sangue na parede. Logo após isso, vemos uma poça de sangue cobrindo toda sua cabeça. O que isso significa é que finalmente esse desejo, animalização, libido, se preponderaram integralmente. A morte trouxe essa libertação da máscara, trouxe a vida como ela é, crua e nua. E isso é melhor, embora no nosso mundo real seja algo complicado e difícil, e portanto, é por isso que Lester diz que nós só entenderemos essa sensação de libertação quando morrermos, um dia. E esta é a grande cartada de todo o filme: trabalho estético, narrativo e anacrônico (vida e morte) para se retratar um tema tão sutil e dolorido para todos nós humanos.
Acredito que antes de falar sobre qualquer coisa do filme, seria interessante contextualizá-lo. Sendo assim, um golpe militar lança o general Augusto Pinochet em lugar de Salvador Allende, no dia 11 de setembro (data que atualmente é muito mais lembrada por uma outra tragédia) de 1973. Consta-se que existiram muitas mortes de oposicionistas no período de ditadura, trazendo muito sofrimento e angústia. Pelos anos 80, por pressão externa, principalmente dos EUA (embora eles tenham sido os principais apoiadores da campanha de Pinochet anteriormente), o Chile se vê forçado a regulamentar o governo de Pinochet, visto que um mando ditatorial nessa Nova Ordem Mundial não cairia bem para nenhum tipo de relações exteriores. Com essa abertura, muitas dissidências políticas começaram a se unir, de forma a tirar Pinochet do governo. É nessa situação em que vemos o filme, e o seguinte comentário, que terá spoilers...
Logo nos vemos com um personagem que aparenta ser bem seguro, certo do que fala, um indivíduo que parece já ter feito o mesmo discurso milhares e milhares de vezes. A seriedade no tom e nas palavras da fala de René Saavedra (Gael García Bernal) aparentam mostrar que estamos diante de uma inovação do século, enquanto na verdade estamos somente no lançamento de uma bebida (o que historicamente faz sentido, já que apoiado pelos EUA, o Chile incentivava uma política mais neoliberal, permitindo até mesmo propagandas um tanto contraditórias como a da bebida Free - liberdade, numa época ditatorial). A propaganda para a época e local eram de fato inovadoras, mas sabemos que isso é, como o próprio René diz, uma cópia, dos americanos. Aos poucos, vamos vendo a situação que assola todo o país, e mais do que isso, vemos a posição em que René vai se colocando: ele parece tentar se alienar de toda a situação, talvez por não se importar com a forma com que o governo tomará, já que sua vida se manterá a mesma (carro moderno, um dos primeiros a ter as novas tecnologias - microondas, ter uma casa bem confortável), ou mesmo por estar desacreditado do futuro, já que por já ter tido um contato com o mundo mais político, chegando ao ponto de prisão, ele acredita que toda a eleição esteja forjada. O certo é que René acaba aceitando participar da campanha do No. Por quê? Se vimos que independentemente do motivo dele, ele parece tentar se alienar da política, por que ele adentra nesta campanha? Embora tentando se alienar da política, René vive numa sociedade, e desde o ponto em que o oferecem a proposta até ele aceitar, passamos por uma série de imagens que o parecem atormentar, mesmo que minimamente. René vê sua mulher e outros manifestantes sendo fortemente reprimidos pela polícia, René sofre ameaças do chefe (mesmo que ele saiba que não será demitido, já que movimenta grande parcela das atividades, o sentimento de mostrar ao seu superior que também pode, se propugna nele), e de certa forma, René não pode negar o passado pelo qual passou. Mesmo não sendo motivos que contem fortemente para a iniciativa dele, René com certeza deve ter aceito a investida por algum destes motivos.
A partir do momento que o personagem finalmente aceita lutar pela campanha, vamos percebendo que mesmo num ambiente de alta tensão, René ainda se utiliza de seus dotes publicitários para tentar modificar o país. Quanto a escolha de René pelos oposicionistas, podemos imaginar que seja devido unicamente ao seu passado político, já que muitos logo percebem que ele não atingirá suas expectativas, desistindo da campanha. De um modo geral, analisando a própria propaganda do refrigerante, percebemos que ele não é um grande publicitário: embora o mímico seja uma de suas marcas, essa figura normalmente não é relacionada com a alegria, visto que eles normalmente mimetizam a realidade, vivem em "seu mundo"; além disso, focar mais no cantor do que as pessoas que estão apreciando o show não me parece criar uma sensação de liberdade ao público. De qualquer forma, com algumas estipulações que os partidos fazem, René consegue difundir a sua ideia de alegria e felicidade para motivar o povo a criar coragem a ter um futuro novo e diferente. Não quero discutir a eficácia das propagandas, já que historicamente sabemos que elas surtiram efeito, prefiro me ater as características retratadas no filme do personagem principal.
René, como já dito anteriormente, cria imagens de felicidade e alegria para incitar a população a se mobilizar. Sendo então o publicitário que é, percebemos que sua vida é criar simulacros da realidade para aparentar possuir certos aspectos que muitas vezes não tem. Isso de fato não é uma exceção para sua própria vida. A vida dele é quase um "American Way of Life", não? Os produtos e novidades ele tem, só falta ter a família. René pode até mesmo sentir algo por Verónica (Antonia Zegers) ou pelo seu filho, mas mesmo que tente fingir que sente, ele não parece expressar da melhor forma, o que quero dizer é que eu não gostaria de ter um pai assim, por exemplo. A vida dele é uma ilusão para os demais, para o trabalho (enquanto ele trabalha para um apoiador da campanha do Si, ele ajuda o No). O trabalho, a família representam a ele algo mais simbólico (como a publicidade é, cheia de símbolos). O exemplo que elucida melhor o sentimento dele pela família ou pela campanha é a da reunião pública do No em que a polícia começa a enfrentar algum dos integrantes, tornando-se rapidamente um pandemônio. A primeira frase que René solta é: "Porra, meu carro.". Não algo como um: "Porra, minha mulher está lá no meio" (já que ele ainda "sente" algo pela sua ex-mulher), ou "Filho, vamos sair daqui.", ou até mesmo, "Não revidem pessoas, mantenha o discurso pacífico.". Não é nada disso. Ele não liga para nada disso. A vida dele é um simulacro. Até mesmo no momento em que René aparentemente está "mais humano", que é quando ele sofre ao ver a ex-mulher com outro cara, mesmo sofrendo, ele não expressa nada a ela nem ninguém mais, e volta ao normal no dia seguinte. Nesta cena, vemos também que o trabalho dele, a campanha do No, invadiu a vida pessoal dele na figura da camisa do namorado da ex-mulher. Sendo assim, as duas coisas que deveriam ser as mais importantes em sua vida até então, estão crescendo, mas ele não está psicologicamente imerso em nenhuma das duas. E é por distanciamento que mesmo depois da derrota do ditador que René se mantém inerte ao redor da comemoração da vitória do No, que continua usando seus mesmos bordões, que prossegue vendendo da mesma forma.
Por último, mas não menos importante, alguns aspectos técnicos também ajudam a criar esse sentimento ilusório que metaforicamente envolverá toda a obra. Primeiramente, o uso da U-matic 3:4 (que dá o efeito aos pixels mais granulados e às cores mais borradas), cria esse ambiente mais antigo, até mesmo saudosista para as pessoas que viveram nessa época de júbilo, mas que também remete a publicidade, já que ela era usada com muita constância por essa profissão. A trilha sonora, composta unicamente de sons instrumentais, geralmente melancólicos, mostra esse conservadorismo (ditadura militar) ir se esvaindo. As câmeras sempre tremendo e se deslocando rapidamente e caoticamente, em que vemos as vezes personagens que estão falando não enquadrados inicialmente, levando um tempo para a câmera se movimentar ao seu foco. Todos esses cuidados criam essa sensação de um documento afetivo da época, como já dito um pouco antes, mas também, sendo artifícios da publicidade (casualidade, caseiro, dinâmica) enfatizam ainda mais esse simulacro, já que como um todo, temos um filme (simulacro 1) que conta a história de um personagem confuso (simulacro 2, como discutido acima), a partir de estéticas mais antigas (simulacro 3), que tenta a partir de telas de televisão e propagandas convencer as pessoas a acreditar nesse novo futuro (simulacro 4), retratando uma época passada (simulacro 5). Nesse momento vocês devem estar se perguntando: "Se o filme é todo um simulacro, se o personagem é também um outro simulacro, por que toda essa investida deu certo?" Porque as pessoas acreditam em ilusões. Quem nunca quis ser um astronauta, ou voar, ou procurar pela paz, ou viver feliz? Todos nós temos nossas ilusões, e gostamos de acreditar nelas, porque elas nos fazem continuar a viver, e criar novas expectativas. E é por isso que um simulacro dá certo, porque é justamente um simulacro.
Extra: algumas cenas são muito interessantes. 1) Em 1:33:53 temos a aparição de um arco-íris (símbolo do No) no meio dos embates, o que me faz pensar em duas coisas. Pensaram nisso e colocaram muito bem, ou foi simplesmente uma coincidência muito feliz. Colocar o símbolo da esperança no meio das revoltas é afirmar que embora o tempo atual (violência nunca é legal) seja difícil, tempos vindouros vão ser bem melhores. 2) Temos duas cenas que René anda de skate. Na primeira, a ditadura ainda não havia caído, então vemos um personagem andando para um ponto fixo no fundo, sem ninguém nas ruas e sem obstáculos. Logo após a comemoração da vitória do No, René anda novamente no skate, num "take" muito mais longo, repleto de pessoas, desviando de diversas coisas, com um câmera ainda mais tremida, acompanhando todo o movimento. Isso denota que as pessoas realmente foram tocadas pelas propagandas, que mesmo um simulacro (o movimento de René desviando de obstáculos representa metaforicamente essa ilusão criada para a realidade, a partir de ideias tortuosas). O semblante de René mostra que ele sabe que tudo isso foi um simulacro, por isso a expressão dele até mesmo na comemoração.
Falarei sobre o próprio Biutiful, traçando panoramas gerais com a obra de Iñárritu, então haverá spoilers (só do Biutiful)!
Para quem já viu outros filmes de Alejandro González Iñárritu, fica claro os temas com que o diretor gosta de trabalhar, tanto como a forma como ele os aborda. Um pouco diferentemente dos filmes que precederam Biutiful, este filme tem um enlace de histórias um pouco mais moderado, se concentrando em sua maior parte em Uxbal (Javier Bardem). A dinâmica de filmes como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003), em que vemos várias histórias que se cruzam num enredo maior, dando a sensação de que a vida é uma gama de relações mais complexa do que podemos imaginar, é muito mascarada nessa obra, justamente para nos impelir a sentir mais dó de toda a situação. O que nos leva a ver como Iñárritu transparece o mundo em seus filmes: o pessimismo. Desde Amores Brutos, vemos personagens frágeis, marcados por algum sofrimento passado, essa angústia de viver cada dia sem conseguir mais levar adiante; não há exceção nem às crianças, visto que elas estão imersas numa família totalmente desestruturada. Essa forma tão negativa de se ver o mundo, com o fato de ele ter crescido num país onde grande parte da cultura é influenciada por um tom altamente melodramático, acabam por criar uma obra, por vezes sensível, por outras artificial.
Nesse filme, Iñárritu tenta utilizar-se de uma dinâmica já recorrente em outras obras dele, ao contar parcelas futuras do filme, logo no início dele. A cena inicial é de uma sensibilidade imensa, já que somos colocados em 'close' com duas mãos numa cena de carinho e de falas amendoadas. A cena embora escura, tem um brilho ameno que a deixa ainda mais casual, acentuando essa sensação de aproximação. Com o decorrer do filme, vamos imaginando que esta cena retrata Uxbal conversando com Marambra (Maricel Álvarez), no entanto, pelo final do filme, somos totalmente contraditos com a figura da filha. Um detalhe importante na história do anel é outro tema recorrente na obra de Iñárritu: a continuidade das gerações. A história acerca do anel começa com o pai de Uxbal que passa para sua mulher, esta estando grávida, antes de fugir para o México. Uxbal, anos mais tarde, receberá o anel da mesma forma que sua mãe. No final derradeiro do filme, vemos que Uxbal mantém esse ciclo de continuidade. Isso é visto também nas falas de outras personagens e dele próprio ao dizerem que não querem que seus filhos tenham a mesma vida pela qual passaram (Uxbal perdeu os pais precocemente, e não quer deixar os filhos a sós no mundo como ele mesmo ficou. Ige (Diaryatou Daff) diz que o lugar de pessoas do seu "tipo" não é na Espanha, e não quer que o filho viva como o pai viveu. O filho de Lili (Lang Sofia Lin) acaba morto da mesma forma que a própria mãe). Mais uma vez, esse tema não trabalhado unicamente neste filme (em Amores Brutos o filho do irmão de Gael García Bernaz vive uma vida medíocre num lar também desestruturado. E por fim, os filhos marroquinos estão basicamente fadados a viver daquele modo que os pais viveram, e prosseguir assim ciclicamente). Essa questão determinista, de que as próximas gerações viverão conforme os antepassados viveram é outro fator que contribui para o aumento do pessimismo em suas obras.
Prosseguindo então na primeira cena, vemos todo esse clima de afago ser totalmente substituído por uma floresta coberta de neve, que costumava ser somente água salgada. Repare nessa informação: "água salgada". Uxbal desde o começo do filme infere que tem um certo temor do barulho e da própria figura do mar, não é a toa que quando chega o seu momento de morte, ele esteja num desconforto imenso, sobre o que originalmente seria o mar. Esse não é o único momento em que o mar "amedronta" nosso protagonista, para ser bem sincero, o filme inteiro dialoga com esse pavor dele, já que ao decorrer de toda a obra vemos imagens que remetem ao mar. Temos por exemplo, um adesivo de peixe na parede de seu banheiro, um aquário luminoso no quarto de seus filhos, uma parede totalmente pichada na forma de um tubarão que está prestes a engolir um barco, várias televisões mostrando baleias encalhadas, e os próprios filhos dizem que estão cansados de só comerem peixes. O filme inteiro espanta esteticamente o nosso protagonista, criando a sensação de perigo constante ao lançar imagens que remetem a esse pavor ao personagem. Outra forma de criar essa mesma sensação está presente no filtro e nas próprias cores do filme. A todo momento, vemos paredes, céus, mares, roupas e objetos pessoais na coloração azul; quando não, a própria cena tem uma iluminação pendendo para uma matiz mais azul (não é à toa que Iñárritu levou 14 meses para editar este filme). Portanto, percebemos que não é somente a angústia do personagem que nos faz sentir mal o filme todo, mas é o próprio filme que cria essa sensação, nos sufocando de imagens perigosas ao personagem. O único momento em que não vemos esse filtro azulado, ou mesmo objetos em azul é na cena em que a família parece estar melhor, tomando os sorvetes. Se formos perceber, esse é o único momento de alegria do filme todo, já que a desgraça é como se fosse a respiração de uma pessoa nesse filme.
Outro ponto importante na obra de Iñárritu é a forma como ele une camadas sociais e etnias menos favorecidas num mesmo filme (Em Babel temos os marroquinos na extrema miséria e a japonesa surda, embora eu pessoalmente ache que esse filme seja muuuuito forçado na forma como as ligações são feitas. Em 21 Gramas temos garotos de rua que são instigados a se converter ao cristianismo. E em Amores Brutos, temos um mendigo esfarrapado, além de personagens que vivem a partir da clandestinidade da briga de cachorros para sobreviver). Este filme não é uma exceção, já que vemos imigrantes chineses sendo explorados em condições desumanas, senegaleses que vivem da venda de objetos falsificados e drogas para sobreviver, além do próprio protagonista que media todas essas ligações. Além disso, eu senti algo que não havia sentido nos outros filmes: uma crítica à autoridade da polícia. A crítica é bem aparente na figura do policial corrupto, que aceita o suborno, mas ela é ainda mais forte na brutalidade com que os policiais perseguem os senegaleses, numa das tomadas mais belas de tristes do filme, e a seguir, prende os chineses. Numa época em que várias pessoas questionam o papel da polícia na sociedade, esse filme parece cair de barriga nessa crítica. No entanto, eu acho que mais do que a crítica à polícia, temos outra que é ainda mais forte, também representada na figura daquele policial corrupto: uma crítica ao sistema (Tudo bem, agora joguem as pedras em mim... eu sei que falar que há crítica ao sistema é algo já bem clichê, senão argumento de quem não tem argumento, mas aquela fala que o policial diz que ele faz isso porque de outra forma não conseguiria sobreviver me instigou bastante). Um sistema que não consegue nem dar as mínimas condições de sustento para os trabalhadores que mantém a ordem no Estado; eu acho que mostrar isso para criticar o sistema é até mais forte do que mostrar pessoas menos privilegiadas totalmente sem prognóstico de futuro.
Por fim, o enfoque espiritualista pode vir tanto das alucinações do câncer, pode mesmo ser algo que ele tenha capacidade, ou mesmo mais uma das formas que ele se utiliza para enganar os outros em troca de dinheiro. Uma coisa é certa, depois de toda essa análise, temos um sentimento dúbio em relação ao protagonista, pois ao mesmo tempo que ele é uma figura a se sentir pena, que se importa com a vida dos demais (comprando o aquecedor aos chineses, ou ajudando Ige depois da prisão do marido), vemos um cara que como qualquer outra pessoa, precisa sobreviver nesse mundo de adversidades, muitas vezes fazendo coisas que ele mesmo poderá se arrepender. Num plano maior, todas as pessoas no mundo de Iñárritu são miseráveis, e todas criam sentimentos dúbios ao espectador (sentimos pena de Ige, mas ao mesmo tempo ela deixa Uxbal e seus filhos para trás para retornar a seu marido e país de origem, para tentar recompor a vida). O que ele tenta retratar a nós é que mesmo que tentemos resolver todos os problemas antes de nossa morte e ser a melhor das pessoas que já pisaram no mundo, sempre cometeremos algo imoral, mesmo que sem a intenção, para manter a própria integridade ativa. E é isso que o final do filme retrata. Se Uxbal tivesse conseguido resolver tudo o que tentou até o fim da vida, a sua morte seria uma morte relaxada, uma morte calma, e ele não estaria entrando nesse "mundo dos mortos" num lugar totalmente azul, na presença do fantasma do pai dele que assolou seus pensamentos a vida inteira, sobre um local que antes era repleto de água salgada. Até aí a visão do filme seria bem pessimista, algo a se chorar e se perguntar o porquê da vida ser tão sem sentido assim, no entanto, Uxbal diz a última frase: "O que tem ali?". No mundo dos mortos há uma esperança, uma esperança que pode deixar de lado todo o passado triste, que no caso é retratado pelo quadro das árvores solitárias no filtro azul. E o mais incrível desse final é o fato de Iñárritu não mostrar o que Uxbal vê, fazendo então com que nós imaginemos o que nos espera não só no mundo dos mortos, como no nosso próprio futuro. A maioria das histórias com que Uxbal estava envolvido, acaba de uma maneira seca, muitas vezes sem resolução, o que mostra que essa conclusão que Uxbal queria dar aos seus problemas nem sempre é certo, e muito complicado. O filme pode pecar bastante nos 'takes' altamente melodramáticos, mas acontecimentos não tão espalhafatosos quanto os dos outros filmes fazem com que esse seja o filme de maior aproximação sentimental. O que sinto que faltou um pouco nesse filme, embora tenha tido toda essa complexidade visual, foi uma maior dinâmica nas relações entre as personagens que é perfeitamente bem feita em Amores Perros e 21 Gramas, mas que não tira o fato de este ser um ótimo filme.
Ver uma obra como essa é algo realmente complicado, e dependendo da profundidade que tentamos decupar o filme, temos opiniões diferentes. O que para alguns pode parecer simplista, pode maravilhar outros. O que farei a seguir, é expor algumas impressões acerca da técnica utilizada, do contexto histórico do filme, traçando panoramas com a situação que a Europa passava na época, e das figuras alegóricas que recheiam toda a narrativa. Cabe então a você decidir se essas imagens embelezam ou não acrescentam nada às suas impressões... (Detalhe: spoilers à vista! ;) ).
A primeira barreira que pode causar um certo estranhamento a nós é o fato do filme ser inteiramente P&B. De fato, juntando isso com o estilo de filmagem europeia ('takes' mais longos, câmeras com poucos movimentos e poucos cortes), o filme pode não agradar os mais influenciados pelo cinema hollywoodiano, mas assistir ao filme com esse pré-conceito, pode deixar passar grandes detalhes que só agregam valor à obra aos olhares desses cinéfilos mais despercebidos. A ausência de cores, quando bem trabalhada, pode criar uma sensação que o cinema atual não consegue reproduzir: a imaginação dos sentidos. No P&B, enfatizar que as maravilhosas amoras que o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow) degusta são roxas, nos faz criar uma imagem na cabeça de uma cor bem forte e vívida, que condiga com a formosura expressa nas palavras da atriz Mia (Bibi Andersson) ao descrevê-las. Da mesma forma que olhar para a expressão de alguma personagem no filme, nos faz imaginar o sentimento dela, a ausência das cores faz com que o ambiente seja entendido por nós de uma forma muito mais fundamentada, justamente por termos um trabalho a mais de imaginação. Outra função do P&B neste filme dialoga com o papel do xadrez no filme. É certo para todos que as cores do tabuleiro e das peças são justamente, o preto e o branco. Sendo assim, a utilização dos mesmos tons para o filme todo, indicam que o significado do xadrez se expande esteticamente para o resto da obra. Mas antes de explicar o papel do jogo de xadrez, vamos contextualizar um pouco as aflições e o que move Antonius por toda essa derradeira jornada.
Antonius, como vários outros nobres, acaba de combater em nome de Deus nas Cruzadas. E após várias batalhas, que o próprio escudeiro (Gunnar Björnstrand) considera, infrutíferas, eles começam a retornar à seu castelo. Até aí, uma história bem recorrente desde os primórdios (a própria Odisseia retrata o retorno de Odisseu à casa após as guerras da Ilíada). O que dá um diferencial à narrativa é a forma como cada personagem vai lidar com todos os acontecimentos recentes, e como vai levar a vida daí adiante. Com o acréscimo da figura da peste, que historicamente, não ocorre no mesmo momento que as pós-Cruzadas, mas que Bergman utiliza-se desse para enfatizar ainda mais o sofrimento daquelas pessoas. O então cavaleiro, desacreditado das conquistas da guerra, vendo que o sofrimento e a morte estão perto, começa a se questionar sobre seus grande feitos, sobre o conhecimento adquirido, e principalmente, sobre a religião e a existência de Deus. A vinda da Morte é tanto um sinal de alerta ao cavaleiro, como a de alívio, já que ele acreditava que a busca pelo conhecimento que ele ansiava poderia ser respondida pela figura poderosa da Morte. No decorrer de todo o filme, o cavaleiro busca a partir de tentativas diferentes confirmar que a pessoa em nome que ele lutou realmente existe, seja perguntando para a Morte, seja com a garota que diz ter falado com o Diabo, ou mesmo com o que ele achava ser o padre, mas que depois se mostra a própria Morte. Por sua vez, Jöns é um cara muito pragmático, que consegue reunir pessoas com uma grande facilidade e que muito diferente de seu cavaleiro, não perde tempo se questionando sobre a vida. Em algumas cenas do filme, os papeis dos dois parece se inverter, já que temos um escudeiro muito mais impositivo e bruto que o indivíduo que, na verdade, deveria mandar nele. Essa é uma crítica forte a elite sanguínea, que não lutou pelas suas comodidades e que muitas vezes se vê num papel totalmente adverso ao que realmente deveria ter. Então, enquanto de um lado temos a figura de um pensador, um indivíduo que teme não ter por que viver, e mais do que isso, não conseguir achar a resposta dessa questão, independentemente dos esforços que fizer, do outro, ficamos com um homem mais decidido, que prefere agir a ficar resignado diante de maus atos cometidos no passado. É de grande estranheza achar figuras desse tipo na época em que o filme é retratado, não? De fato, essas são duas alegorias modernas; alegorias vigentes na época em que o filme foi produzido, na época da Guerra Fria. Enquanto de um lado temos os idealistas (Antonius), do outro temos os realistas (Jöns). Assim como no filme, são os realistas que movem a sociedade, são eles quem decidem como uma unidade de poder deve ou não proceder, mas são nas eras de crise, como as Cruzadas, que os idealistas, a partir de seus questionamentos, levantam hipóteses da identidade do erro. Num mundo contemporâneo em que a bipolaridade prevalece, os estados não andam à frente, justamente por não haver um consenso entre os dois lados, o que vale da mesma forma para essas correntes. Sendo assim, a melhor personalidade que as protagonistas do filme poderiam ter, seria justamente a mistura de Antonius com Jöns. No entanto, mesmo possuindo essa balança de personalidade, ninguém conseguiria alcançar esse conhecimento que Antonius tanto procura.
Você deve estar me perguntando agora: "Você fez toda essa volta para caracterizar a melhor postura que o ser humano poderia ter, desmentiu-a e não concatenou com a ideia inicial do xadrez. O que você está querendo dizer com tudo isso?". O que eu tenho a dizer é unicamente: "Calma, tudo fará sentido.". Antonius propõe então um jogo de xadrez com a Morte, tanto para postergar narrativamente a sua morte (já que desde o encontro inicial com a Morte, ele já estaria fadado a morrer), como para tentar entender o sentido da vida, atestar a existência de algumas figuras e realizar um último ato que ateste que sua vida foi boa. Esse jogo de xadrez percorre o filme inteiro, sendo assim, percorre todo o restante da "vida" do cavaleiro. O xadrez é então a metáfora para a vida, a vida que minimamente perdida, não se cansa de lutar, visto que o importante não é a morte/conformação/rei, mas sim o processo com que ganhamos ou perdemos. Tratando-se da Morte como adversária, sabemos que o destino é a da derrota. No entanto, Antonius não percebe que ao invés de se questionar sobre o porquê de já estar morrendo e não ter conhecido tudo o que queria, o que ele deveria estar fazendo era justamente viver, assim como o seu escudeiro o faz. É claro que como já discutido anteriormente, a forma como se deve viver deve ser permeada de algumas privações, mas que o mais importante é saber aproveitar o processo, pois como o próprio filme ilustra: no fim, todos (elite, artesãos, trabalhadores, clero), até mesmo os artistas que aparentemente fugiram, mas que na verdade só não foram levados ainda, morreram. Como visto anteriormente, disse que mesmo tendo as qualidades que ambos Antonius e Jöns têm numa única pessoa, a capacidade de chegar nesse conhecimento seria intangível e se aplica perfeitamente a essa ideia de morte. O conhecimento que cada um deles quer, pode ser diferente, no entanto, não tira o fato de ambos quererem algum conhecimento. E é aí que a figura dos artistas entra. Os artistas são aparentemente a única parcela da sociedade que não se importa com a peste, com o que foi a guerra e o que ela representa (ridicularizando-a em forma de teatro); eles são a representação da ignorância. A ignorância que acalma pela única vez o cavaleiro, ao oferecer as amoras e o leite, a ignorância que consegue se levantar em tempos adversos com um simples sorriso do filho, a ignorância que por não tentar buscar esse conhecimento, sorri e vive como se nada estivesse acontecendo. O que Bergman faz aqui não é dizer que ser ignorante é o que todo ser humano deve ser, o que ele diz é que a ignorância faz com que nosso processo até o fim seja mais leve, menos angustiante, visto que os ignorantes terão o mesmo fim que os demais. Perceba que seguir isso é uma escolha, mas que não é a única forma de seguir a vida. Se todos fossem iguais desse modo, a vida seria um grande plágio. Essa diversificação de personalidades é a beleza da humanidade, e o que Bergman mostra aqui não é que a personalidade de Jöns é melhor que a de Antonius, ou que as dos artistas transcende as dos demais, mas que dependendo da escolha que cada um fizer, o processo até esta Morte (aqui podendo ser tanto maiúsculo como minúsculo, de acordo com a lógica do filme) é mais, ou menos doloroso. Ou seja, cada um deve viver a vida da melhor forma que entender.
Agora que já entendemos o raciocínio do filme, mesmo que ele não deixe uma mensagem clara como outros filmes hollywoodianos fariam (entenda, é a segunda vez que comparo com essa indústria de cinema totalmente diferente, mas não a reduzo. Há muita qualidade nesse meio, sem dúvida alguma.) podemos partir para o último tópico da discussão, o tópico que Bergman "amava": a religião. Como visto muitas vezes acima, Bergman critica várias parcelas da sociedade, mas não há uma figura que haja mais críticas como essa. Para começar, é bem claro que o monge (Anders Ek) é para onde são direcionadas o maior número de críticas. A pessoa que convenceu o cavaleiro a lutar nas Cruzadas, a figura sagrada que todos os cidadãos respeitam, transforma-se num batedor de mortos, estuprador de mulheres e a pessoa que ridiculariza o próximo. Só isso, destrói toda a figura santa e sagrada desses indivíduos, que assim como a elite sanguínea, possui privilégios, totalmente desmerecidos. Outro ponto bem incisivo é a forma como os flagelantes e os inquisidores (as pessoas que queimam a bruxa) são retratados. Esses grupos que deveriam ser só mais um ramo da Igreja, se mostram figuras quase que demoníacas, por serem tão sombrias. Além disso, Bergman retrata como o fanatismo (algo que deve ter sido influente na família dele) leva as pessoas à total intolerância; preceitos totalmente opostos aos difundidos pela Igreja. E por fim, critica os próprios fiéis, que são retratados numa sociedade de aparências e machista (as mulheres são retratadas como simples objetos, para estupro e posse), em que diferentemente do que a religião diz para seguir, fornicam, estupram e difamam. Criticando então desde o alto escalão até as bases da religião, Bergman mostra uma análise bem pessimista do que é ser religioso nesta época, e mais do que isso, a refuta.
Esta grande obra pode não te maravilhar, ou pelo contrário, pode magnificar, mas é com certeza um trabalho de grande primor e cuidado, seja aceitando a postura religiosa dele ou não, ou mesmo, acreditando na figura mística da Morte, ou considerando-a como somente a personificação da peste, que leva rápida e indiscriminavelmente.
De vez em outra, nos deparamos com filmes fora do eixo angariando premiações por todos os lados. O Silêncio dos Inocentes é um ótimo exemplo de uma obra dessas; e não é por menos, já que temos atuações mais do que memoráveis. Primeiramente, vemos uma garota indefesa, engajada e sonhadora, como a que Jodie Foster vividamente reproduz (a cena em que Clarice Starling (Jodie Foster) se encontra pela primeira vez com Jack Crawford (Scott Glenn) ilustra bem essa garota dedicada, embora inexperiente, simplesmente pela forma de agir, com passos sempre bem ritmados e perpendiculares, como se fosse um robô programado a realizar determinadas tarefas. Além disso, vemos uma garota trajada com roupas mais simples, sem serem chamativas, denotando esse caráter mais recolhido e isolado que a personagem vai desenvolvendo no decorrer de todo o filme). Para continuar, nos vemos pressionados psicologicamente por a figura imponente e segura de um homem de meia-idade, com olhos sempre fixos e passos mais regrados ainda do que os de Clarice. Todo esse porte do Dr. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) é ainda prosseguido de uma fala pausada e forte nas sibilantes, dominado de trejeitos bem frios e calculados. O que cria a sensação ainda mais aterradora é o trabalho de câmeras que pega o personagem sempre muito próximo em câmeras subjetivas (que seriam as câmeras que retratam o que o personagem vê em primeira pessoa), como se Hannibal fosse invadir não só a privacidade de Clarice, como a nossa própria, já que nós vemos o que ela vê, e por conseguinte, sentimos o que ela sente.
Outra das categorias bem aclamadas nesse filme foi a de roteiro, e de fato, temos aqui um roteiro ao mesmo tempo misterioso, andando a passos largos e nos fazendo descobrir a cada nova cena uma peça que no final se encaixará no grande quebra-cabeça do filme, caracterizando assim um filme típico de thriller, quanto uma história envolvente que juntamente com o trabalho de direção de fotografia e de direção (o porquê disso será explicado mais adiante), nos prendem de forma tão incisiva que não perdemos a tensão em único momento sequer, já que a cada novo momento vemos um novo acontecimento trará novas consequências e que em ciclo, nunca cessará até mesmo após o final do filme. A trama se baseia na personagem de Clarice, que inicialmente ingênua da situação como um cordeiro, acaba sendo colocada aos pés de toda um emaranhado de doentes mentais para resolver um caso que vem causando dores de cabeça ao alto escalão do FBI e à própria população. Repare que eu disse "como um cordeiro", e o filme realmente traça um panorama entre a imagem de um acontecimento passado na vida da protagonista com a de algo puro, ela mesma, sendo maculado pela sociedade distorcida. Como a própria história se desenrola, Clarice, como Hannibal muito bem pontua, acredita que resolvendo o caso de Buffalo Bill (Ted Levine) e salvando a vida de ao menos uma garota, sanará o pesadelo ocorrido na fazenda dos tios. Ao finalmente vermos Clarice alcançando seu objetivo, vemos uma garota mais relaxada e suavizada, no entanto, essa falsa ilusão que criada por ela, para ela mesma mascara o fato de que ela nunca irá conseguirá superar tal passado, pois uma vez maculada, não haverá caminho de volta. Essa ideia é realmente transposta para o contexto geral do filme e para nossas próprias vidas, já que tendo melhor noção de como as coisas funcionam no mundo, percebemos que traumas, felicidades e sonhos passados são lembranças, sendo portanto, questões atemporais que ficarão guardadas em nossas vidas, independentemente do que façamos para apagá-las; conseguimos no máximo, mascarar ou ignorá-las, como Clarice bem faz, mas nunca esquecê-las.
Outra questão bem presente nesse filme é a sanidade de cada indivíduo. Será que traumas em nossas vidas despertam atitudes psicopatas, como acontece com Buffalo Bill? Se fosse assim, Clarice, como qualquer um de nós, poderíamos ser muito bem psicopatas também. É aí que nos perguntamos, o que é um psicopata? Será que realmente não somos um? Um psicopata é uma denominação criada pela sociedade para categorizar indivíduos que não se adequam às leis e posturas aceitáveis. Dessa forma, psicopatas não existem fora de uma sociedade, e dependendo de cada organização, podemos ter indivíduos considerados psicopatas com tendências diferentes. Este tema é, com certeza, muito polêmico, no entanto, as formas com que podemos retratá-lo são inúmeras, e me parece que nesse filme, a principal questão acerca deste assunto não é a das origens de uma psicopatia (mesmo que Hannibal dê várias suposições de como uma possa se formar), mas sim essa mesma discutida anteriormente de um questionamento de o que e quem pode ser categorizado um doente mental. Hannibal é um bom exemplo disso: vemos uma pessoa extremamente racional, culta e persuasiva. Por que Hannibal é mais psicopata que Frederick Chilton (Anthony Heald), já que este se demonstra alguém altamente emocional, explosivo e irascível? Eu acho que esse questionamento é por si só, já bem assustador, pois tira a representação caricatural do que venha a ser um psicopata, e expanda o conceito a vários novos horizontes.
Toda essa manipulação de Clarice em vias de conseguir a ajuda necessária para a captura de Buffalo Bill esconde uma crítica muito bem arquitetada, muito por algumas cenas em específico, da sociedade machista opressora das mulheres. Clarice está praticamente envolta de um universo de homens que ora se mostram corteses, como o próprio Hannibal, e ora se mostram lascivos, como Miggs (Stuart Rudin) bem caracteriza. O filme todo vai mostrando esse ambiente opressor a partir de cenas um tanto quanto alongadas, em que temos uma sensação de angústia no ar, já que vemos homens cercando Clarice de uma forma atípica (a primeira cena em que vemos isso com clareza, é quando Clarice entra num elevador, e se vê rodeado de vários homens vestidos em vermelho - 04:10. Essa imagem de roda aparece mais tarde também na casa em que os agentes analisam o corpo já morto de uma das vítimas de Buffalo Bill, com vários policiais dentro do cômodo - 39:25. Outra cena em que vemos isso acontece antes de Clarice se encontrar com Hannibal pela primeira vez, em que uma câmera subjetiva vai mostrando o olhar tenso dela no local em que estão os seguranças do manicômio - 10:55). Outra forma de retratar esse desconforto acontece no toque das mãos, em que vemos um Hannibal acariciando a palma da mão de Clarice (1:13:35) e uma câmera fixada no cumprimentar de mãos entre Clarice e Crawford (1:51:45). E por fim, mais uma vez o trabalho de câmeras subjetivas pegando em um close muito próximo a pessoa a frente, mostra esse homem que parece tentar invadir a privacidade de Clarice a todo momento. Podemos criar uma analogia da mulher nessa sociedade machista com a mariposa em seu casulo. O casulo é um envoltório que protege esse inseto das adversidades do exterior, no entanto, estando nesse invólucro, a mariposa não tem poder sobre si mesma, não tem a liberdade, permitindo então que esse exterior possa muito bem controlá-la. A sociedade cria leis e normas que atestam uma defesa à mulher. No entanto, estando nesse "casulo", a mulher, assim como a mariposa, está mais indefesa do que protegida, retratada também nas vítimas de Buffalo Bill, que aproveitando dessa fragilidade vem a cometer seus atos sobre estas. A mulher ainda hoje é vista por muitos como alguém inferior ao homem, alguém que deve ser submissa ao controle destes, e esse filme ilustra muito bem o quanto a mulher sofre nesta sociedade atual nas mãos daqueles. Atualmente, vemos vários movimentos feministas que lutam pelo direito da mulher, pela igualdade de gêneros, e é imprescindível, que nós, homens, não só aceitemos esta luta, como ajudemos a compensar esta figura historicamente prejudicada na sociedade, a ascender e se equivaler ao papel do homem.
Acho que o fato da premiação à direção do filme já foi muito bem exemplificada, mas se por acaso, você ainda não concorde com isso, aqui vão mais algumas cenas. Logo no começo do filme, nos deparamos com a figura de uma garota correndo pela floresta. Esse desenvolvimento de uma personagem isolada e indefesa, se dá muito bem pelo contraste de um humano com a figura de uma natureza imponente que parece engolir Clarice. Além disso, nesse momento do filme, ainda não vemos as câmeras próximas que controlarão o resto do filme. Por ora, vemos uma mulher sempre longe e afastada do primeiro plano, como se ela estivesse fora do ambiente que a cerca, denotando então esse isolamento. Essa natureza que aflige Clarice, tomará conta dela de novo na conclusão do filme, já que a cor dominante na perseguição de Clarice a Buffalo é a verde, a mesma da natureza (seja na cor da tinta das paredes da casa, ou mesmo no visor de Buffalo, alcançando o ápice dessa insegurança de Clarice, ao vermos ela totalmente aterrorizada). Nessa casa, vemos papeis de parede de flores, folhas e insetos dominando o local. Toda essa atmosfera não quer mostrar que a natureza oprime Clarice, como a figura dos homens, anteriormente citados, mas que essas imagens funcionam metaforicamente para expressar os momentos em que Clarice está mais vulnerável. Um outro momento em que vemos um incrível trabalho técnico do diretor é na hora em que Clarice mostra a falsa proposta da senadora a Hannibal (52:10). Nessa cena, diferentemente das demais, vemos um Hannibal encolhido num canto escuro de sua cela. Vemos também a figura segura e altiva de Clarice ao relatar toda a proposta. Ela, estando de pé, em linguagens cinematográficas, está numa posição superior a de Hannibal, dominando portanto a situação. A partir do momento que Hannibal descobre a farsa, Clarice se senta, denotando assim um pé de igualdade que momentos depois será controlada mais uma vez por Hannibal. E se você ainda não está convencido, analisarei a cena mais impressionante do filme todo, tanto em aspectos técnicos quanto semânticos.
A cena começa com Clarice descendo as escadas do manicômio com Chilton em direção a cela de Hannibal. A cena em que ele mostra o estrago causado por este na enfermeira ao queixar-se das dores é dominada por uma luz vermelha sobre suas cabeças, além de uma trilha sonora mortificada, que se assemelha aos dos corredores da nave de Alien, o Oitavo Passageiro (1979). Todos esses efeitos ajudam a criar a tensão na cena, nos fazendo criar uma imagem horrível do que tenha acontecido à enfermeira, e mais ainda, imaginar Hannibal como uma figura quase satânica. Logo após isso, adentramos o local dos seguranças já supracitado, e vamos juntos com Clarice caminhar pelo corredor que leva até a cela de Hannibal. Toda a cena foi feita para criar uma tensão enorme, ao juntarmos os efeitos contidos nela, com toda a informação já dada anteriormente sobre o doente mental que iremos encontrar: o primeiro efeito que já citei aqui milhares de vezes, que logo salta aos olhos, é o da câmera subjetiva. Vemos que toda a tensão de Clarice é expressa no tremer das câmeras que observa cada novo louco com um olhar aterrador. A cadeira no final do corredor funciona como o lugar onde Clarice tem que chegar, mas que ao mesmo tempo precisa evitar. Olhar para a cadeira a cada novo 'take', é por si só angustiante tanto para ela quanto para nós. O último efeito que conseguimos perceber é algo chamado "Efeito Kuleshov" (imagine um rosto sem emoções na tela. De repente vemos uma câmera subjetiva de um bebê brincando com seus brinquedos. Voltamos para o rosto sem mudanças de expressões. Logo após isso, a câmera subjetiva agora foca numa criança estirada morta no chão, o que é seguido de novamente um foco no rosto mais uma vez sem expressões alguma. A ideia desse efeito é criar a sensação do que o indivíduo sem expressões sentiria ao ver tais imagens. Sendo assim, no primeiro caso, a pessoa sente uma sensação boa ao ver a criança brincando, o que não acontece no segundo caso. Nele, o que aconteceria se assemelharia mais a um sentimento de desgosto e pena. Esse efeito é muito bom, pois ele nos faz imaginar o que a personagem sente, fazendo assim com que nós sintamos a sensação também. Existem uns exemplos desse efeito no YouTube ou no Google para quem se interessar. Vou deixar um link no final do comentário com um deles). Pois bem, o efeito Kuleshov é bem presente nesta cena, fazendo com que criemos toda uma imagem aterradora de Hannibal, já que a cada novo louco, temos uma sensação pior ainda. Toda esta cena que acabei de descrever faz com que imaginemos a figura do diabo em pessoa em Hannibal. A expectativa é alta. Mas o que vemos é um senhor com uma ótima postura, num quarto bem iluminado, contrastando com toda a ideia que vínhamos criando dele até então no filme.
O Oscar comete várias injustiças no decorrer dos anos, mas em 1991 ele foi perfeito, premiando com as 5 principais categorias esse filme senão maravilhoso, angustiante.
Embora o filme tenha tido muitas críticas, a ideia que o filme consegue criar, mesmo preponderando-se de ação é muito interessante. Criar um mundo onde um indivíduo consiga acessar qualquer informação existente é, sem dúvida, de extrema complexidade para um humano qualquer, senão angustiante, já que saber de tudo, e não ter ninguém com quem discutir ou capaz de entender, é algo realmente decepcionante. Uma pergunta muito pertinente a se fazer não é o que Lucy (Scarlet Johansson) poderia fazer tendo conhecimento de tudo que agora sabia, mas sim o que a humanidade faria ao receber ele. Criaria mais armas, formas de energia, água, o que poderia gerar mais guerras em busca do pleno poder? A humanidade finalmente agiria em conjunto para o futuro de todos os indivíduos? Nessa sociedade será que conseguiríamos por em prática ideias utópicas como o comunismo e a paz? Todas elas são respostas além de nossa capacidade imaginativa, mas de fato é algo interessante a se questionar.
Outra partícula legal nesse filme são as imagens expressas nele que, ora substituem o contexto que antes se passava. De fato, elas são bem importantes para o andamento do filme, já que elas serão as responsáveis por despertar todo esse conhecimento em Lucy, e por conseguinte, tanto despertar um maior interesse em nós, como para explicar todo o processo pelo qual Lucy. Embora muitas delas sejam bem clichês, como a do guepardo correndo atrás da gazela (cena que podemos ver em filmes como Assassinos por Natureza (1994)) ou a da "Criação de Adão", de Michelangelo que mais tarde será parafraseada no próprio filme (esta cena então, vemos em milhares de filmes, até chega a cansar, E.T. - O Extraterrestre (1982), Tenacious D - Uma Dupla Infernal (2006), e até mesmo em Laranja Mecânica (1971)). Essas cenas, que muito se assemelham a clipes de músicas pop atuais, embora as vezes típicas servem para dar toda uma dinâmica a esse filme, que dialoga com as cenas rápidas de ação pela qual a personagem passa.
Lucy é a prova de que um filme altamente comercial pode também trazer questionamentos muito válidos para a nossa vida. E mesmo que ele não desenvolva de uma forma detalhada as personagens, como a figura de um Morgan Freeman totalmente submisso e sem qualquer humanidade e ação nenhuma, diante de uma figura tão impressionante como a de Lucy. E mais do que nos perguntar como obtemos tal conhecimento, é nos questionar como o utilizaríamos, como o professor Norman (Morgan Freeman) pontua muito bem: "We humans are more concerned with having than with being.". A resposta de como deveríamos proceder é simples: "I am everywhere", nas relações interpessoais, na natureza, na ciência, nas crenças, ou seja, em tudo.
Diferentemente do filme Os Estagiários (2013), em que víamos uma propaganda mais do que descarada da Google, Uma Aventura Lego consegue expor todo um enredo bem dinâmico, sem de maneira alguma, aparentar ser algo expositório (curiosidade: em nenhum momento do filme, a palavra "Lego" é dita). Só isso já mostra todo um trabalho de colocar o nome da obra à frente do nome da empresa.
As referências são inúmeras (DC, Senhor dos Anéis, figuras históricas), mas o mais divertido, é o filme ir adentrando em cada novo mundo sem se enrolar, nem sendo simplista (coisa que por exemplo em Detona Ralph (2012), o filme se extende muito no mundo das guloseimas, deixando de lado uma enorme gama de gêneros de jogos que podiam ser explorados).
O filme permeia todo um mundo satírico (criticando a robotização dos indivíduos, em que toda ideia original é brutalmente reprimida). Vemos também um mundo obtuso, encarado de forma natural, como visto no preço exorbitante dos cafés, mas que não causam nenhuma sensação indignada nos habitantes, seja pelo sistema de governo, ou pela naturalidade das coisas. Todo esse mundo mágico, de construtores, tenta quebrar com essa pacatez e linearidade de um comandante ditatorial. Conforme vamos andando no filme, percebemos a mente criadora de todas esses enlaces, e a metalinguagem transcrita ao mundo Lego. Ver toda essa caoticidade é de total sentido para a mente de uma criança que se vê sem a presença de um pai por perto. E mais do que isso, o final pontual (para o mundo do Lego) faz bastante sentido, já que as transformações neste mundo provém da cabeça dessas pessoas que estão brincando no mundo real. Toda essa metalinguagem funciona de uma forma cativante e engraçada (já que o Presidente Business é nada mais, nada menos que Will Ferrell, famoso por satirizar profissões que demandam uma maior formalidade e cuidado).
Achar o filme engraçado ou empolgante vai depender do quão familiarizado a pessoa está com as personagens que aparecem no decorrer do filme e com o próprio mundo de Lego, no entanto, é certo afirmar que a construção do filme funciona muito bem, seja pela origem dos acontecimentos (a cabeça da criança), ou pela própria criação de um sentimento de desprendimento de uma sociedade totalitária, mesmo que contendo um cunho mais imaginário e fantasioso.
Criar um filme de comédia que não te faz rir, com uma narrativa mais água com açúcar possível, num desenvolvimento de personagens mais fracos ainda, e tentando por fim laçar todas essas histórias parece longe de algo feito por um cara como Almodóvar. É certo que vemos nesse filme, temas recorrentes em sua filmografia, como o trato com a sexualidade e sua descoberta. No entanto, ao mesmo tempo que vemos ideias tão belas quanto essas, vemos outras cenas que retratam o estupro como algo normal (e não só uma vez... drogando a garota, ou com o cara dormindo. Estar satisfeito posteriormente não tira o fato do que precedeu). Atos como esse, embora retratados num contexto de forte crítica social soam como um regresso a um diretor tão militante de causas tão incríveis como a da igualdade sexual (já que criar um besteirol com temática homossexual no meio de tantos outros heterossexuais é realmente um avanço incrível). O trabalho artístico inicia-se de uma forma promissora, mas com o tempo vai se mostrando algo totalmente sem nexo(as cores, tão fortes na filmografia desse diretor, nesse filme não significam nada a não ser o de impressionar com a incisão delas; em suma, vemos então as cores, como o vermelho e o azul, como meros artifícios de impacto). Em geral, é uma obra que além de não divertir, ainda causa certo desgosto como nas cenas supracitadas, sendo recheada de clichês e estruturas narrativas fracas demais para qualquer diretor mediano, e olha que por aqui, estamos falando de um Almodóvar.
O eco sonoro que o título do filme nos traz é um dos melhores que já vi até o momento. "Volver", como vulgo voltar, significa muito mais do que voltar a um ambiente físico para pegar algo que esqueceu. Voltar aqui significa, reviver o passado em busca de respostas mal-acabadas. Remete a um voltar a vida para terminar uma pendência não resolvida (assim como vemos na crendice local). Significa voltar a encarar de frente algo que assombrou a sua vida inteira, e que jamais imaginava que voltaria do modo que retorna bem em nossas caras. Almodóvar se baseia num contexto regionalista para mostrar que embora o movimento, a velocidade permeiem a vida na cidade, é no interior que crendices se misturam a casos para criar um universo muito obscuro. Nessa obra, a cidade serve só mais como um apoio às histórias presentes nesse outro espaço, vendo situações passadas nesse lugar mais movimentado de uma forma bem rápida e desprezível (como a cena que nos situamos ao trabalho de Raimunda - tudo passa num lampejo, as turbinas dos aviões só servem de eco aos moinhos do campo). A forte presença e destreza das personagens femininas, todas rondeadas de um passado duro, criam um forte vínculo, para que juntas, todas se afirmem como indivíduas numa sociedade ainda mais patriarcal que a vivida nas cidades. Embora a figura do homem apareça muitas vezes como a de um palhaço, um idiota, no filme essa imagem serve como uma grande crítica a postura vista por essa sociedade historicamente machista, mais uma vez, o volver. Mas será que em todos os casos, o voltar é a melhor coisa? Ou será que as vezes precisamos voltar atrás para deixar esse mesmo passado que buscamos? O certo é que a luta de um indivíduo não precisa ser cheia de explosões e tiroteios como vemos em vários filmes atualmente, mas sim o simples fato de encarar a realidade, é sim algo muitas vezes pior e mais assustador que a dessas outras histórias.
Viver a vida toda seguindo certos preceitos, e de repente se ver num mundo totalmente diferente é um choque para qualquer um. Essa ideia pode se expandir para qualquer coisa, seja ao achar algo anteriormente e alguém vir e mostrar que o contrário não está necessariamente errado, seja na mudança de um mundo religioso para um mundo científico, ou mesmo com jovens trazendo novos pensamentos aos mais velhos. Mudanças são sempre drásticas para o indivíduo que está realmente mudando, e esse processo, dependendo de quão arraigado ao veredicto antigo, pode ser bem complicado. Esse manuseio com o personagem de Stanley, embora caricatural, retrata bem esse panorama e o faz de uma forma bem natural, o que faz nos questionarmos ou comemorarmos de acordo com quão céticos formos em relação a tais assuntos místicos, e provocar o que achamos sobre tais assuntos é o que o filme melhor faz. Assim como em Blue Jasmine (2013), temos um personagem mais frio, calculista e sarcástico, se achando muito superior a todos ao seu redor, mas diferentemente deste, o final de Magia ao Luar pode até deixar alguns um tanto inconformados, mas o filme sem dúvida mostra que a tolerância e o amor são muitas vezes mais fortes que as crendices e achismos.
Muito se foi criticado sobre este filme na época de seu lançamento: como faltava um enredo ou como o desenrolar era cansativo, mas essa é uma daquelas obras que guardam vários significados por trás dela.
Primeiramente, a lógica do filme é toda baseada em problemas, tentativas de resoluções que levam a novos problemas. A escolha dessa abordagem foi a melhor feita para um filme que tenta recriar o espaço de uma forma mais verossímil, pois ao mesmo tempo que nos deparamos com imagens de tirar o fôlego de tão bonitas, vemos situações de puro desespero, que são só mais enfatizadas com os takes longos, câmeras subjetivas (principalmente na cabeça de Ryan) e no aumentar e abaixar da trilha sonora.
Todo o contexto que desencadeia todos esses problemas parece algo inimaginável, mas como a própria Ryan diz, se referindo a morte da filha, que podemos morrer por qualquer estupidez, seja ela numa pedra, brincando, ou no espaço, sem oxigênio e sem para onde fugir. A vida é efêmera, e pode ser tirada de formas impensáveis com o piscar dos olhos. Estamos tão bitolados com a vida, tão preocupados com as perdas e os nossos problemas que nos esquecemos de vivê-la, e é esse o papel de Kowalski; o cara que mesmo morrendo consegue parar e se encantar com os pequenos momentos e nuances (ele me lembrou bastante o Tallahassee, do Zumbilândia (2009)). Essa catarse de Ryan, que precisa sair da Terra para perceber que o que mais quer e voltar para ela, inicialmente até lembra muitas cenas de 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), na busca por uma resposta, no renascimento do ser (Starchild), só que diferentemente desse filme, o conhecimento desenvolvido não é intelectual, mas sim psicológico. E mesmo tendo Kowalski como instrutor, o maior professor dela não foi ele, mas sim a experiência de estar no espaço, diante de todas essas adversidades. O que temos então não é somente uma luta pela sobrevivência, nem até onde um ser humano consegue resistir a todas essas pressões, mas também uma busca por um reconhecimento, por uma personalidade.
Para ela conseguir entender o que quer, ela precisa passar por quase que um renascimento. No entanto, diferentemente do normal, esse renascimento é reverso, pois o que a protagonista precisa, é voltar a viver a vida antes da morte de sua filha, voltando assim para o passado de uma forma renovada, e para isso, algumas imagens do filme nos ajudam a entender melhor essa troca de ordem: a vida na Terra de Ryan foi, resumidamente, nascer, receber a notícia da morte da filha e depois ficar vagando perdida pelo mundo, então se a ideia é ser uma mudança reversa, a primeira coisa que deveria acontecer seria Ryan estar a esmo pelo espaço, perdida, o que realmente acontece. Vemos isso numa cena logo após o primeiro impacto, com ela girando e girando sozinha por uma grande vastidão. Quando finalmente ela se encontra, os astronautas vão ver a situação dos companheiros, achando-os todos mortos (detalhe que Shariff morre por um detrito, ou uma rocha, na cabeça, remetendo a própria morte da filha). A partir daí, as imagens do filme vão sempre esconder algo relacionado com a vida e a criação dela, mas sempre seguindo essa ordem inversa. A primeira cena que logo salta aos olhos em relação a isso é o desprendimento/corte que Kowalski faz para salvar Ryan(remetendo ao corte do cordão umbilical que cria uma nova vida). Ryan então consegue se salvar e quando entra na cápsula quase sem oxigênio e começa a tirar o traje, vemos uma das cenas mais belas e representativas dessa ideia: a cena pára por vários instantes em um enquadramento em que vemos Ryan em posição fetal com tubos da nave parecendo se acoplar na barriga dela, como se fosse um cordão umbilical. E para finalizar, o encontro dos espermatozoides com o óvulo é esquematizado com o choque dos meteoros na Terra, numa cena angustiante que leva Ryan finalmente ao planeta. Foi somente depois de passar por todo esse processo de revitalização e ressurgimento que Ryan estará finalmente pronta para viver a vida na Terra novamente. Nesse final ainda temos uma metáfora do surgimento da vida na Terra, que veio do espaço, tomou os mares, conquistou a Terra e ficou sobre dois pés, numa tomada mais uma vez linda e angustiante.
O filme todo é cheio de surpresas e emoções, e mesmo que em algumas partes se mostre algo delongado e cansativo, é sem dúvida alguma, um filme espetacular, seja ele por essas imagens metafóricas ou somente pelos efeitos especiais.
A primeira cena desse filme tenta criticar a postura social em que todos nós, humanos, ao vermos a vida de um jeito pessimista, procura como última solução, o suicídio. Essa crítica é retratada de uma forma bem irônica... no entanto, é fazendo desse modo que o roteirista ao invés de ressaltar a dor com que essas pessoas vivem, ele a ridiculariza.
Nessas últimas semanas, após a morte de um dos grandes comediantes de Hollywood: Robin Williams, começou-se a discutir muito sobre a depressão. Vimos que embora diagnosticada como uma doença, muitas pessoas continuam a tomá-la como motivo de chacota: "Ah, veja se anima", "Vai passar", "Para de fazer cu doce". Esse sentimento de que uma hora tudo se resolverá, de ser uma fase passageira, pode se revelar uma eternidade para os indivíduos que realmente passam por tal infortúnio, e é dessa forma que A Pequena Loja de Suicídios dialoga com os espectadores.
A figura de Alan como um Messias para os "mimimis" desses indivíduos se eleva ao tom de ofensa, já que vemos um garoto desinteressado, querendo mudar a realidade de todos ao seu redor, sendo no entanto uma pessoa altamente influenciável (o que faria sentido se o filme só o tratasse como um indivíduo a conhecer as dores do mundo, sem um caráter interventivo). Além disso, temos a imagem de um psicólogo que está mais interessado no dinheiro do paciente do que a sua cura, temos alterações de temperamento imensamente vãs (como a da irmã que é "tocada" pela felicidade de um CD), e se não bastasse, toda uma cantoria que contrasta com a realidade dura, que nem esteticamente funciona, irritando mais ainda o telespectador. Se todo esse filme fosse na verdade uma crítica a essas pessoas que não compreendem a profundidade da depressão e de que como ela pode estar no vizinho ao seu lado (na representação de que todos os cidadãos estão "tristes"), o filme não acabaria numa grande festa, onde até mesmo os mortos são "curados" e entendem quão bobos eram! A depressão não é algo a se esperar passar, é algo que demanda orientação médica e cuidado a todo momento, e a forma como esse filme o alegoriza é de se matar de vazio.
Muitos dos filmes de terror são criados para nos assustar no momento, para nos causar certo desconforto e nervos em determinadas circunstâncias, mas o que O Bebê de Rosemary faz é muito mais do que simplesmente aterrorizar, ele cria um drama psicológico em que o medonho não está na tela, mas o que concluímos dela (no caso, acreditar se o sobrenatural existe ou não, e até mais do que isso, ver que essa disputa pode aparecer em situações de extremas tensões em nossas próprias vidas). No filme inteiro nos perguntamos se Rosemary está realmente delirando ou não acerca da seita satânica que a ronda, já que toda a narrativa embora beire muitas vezes o surreal (como nas cenas oníricas), cabe muito bem na própria lógica da protagonista. Esse questionamento nos faz entender que o bebê (muito porque não conseguimos ver a criança), na verdade, serve como metáfora a essa ideia demoníaca, ou em escalas maiores, a racionalidade X sobrenatural na vida dentro de cada um de nós, que a qualquer momento pode florescer e tomar conta de nossas ações, sendo efetivada quando o "bebê" finalmente nasce. Se Rosemary (remetendo a virgem Maria, fora todas as outras imagens bíblicas que aparecem - teto da Capela Sistina, o seminário em que Rosemary passou), a imagem de santa na Terra (com seus traços ingênuos e angelicais), pode conceber um monstro como esse a nós, porque nós mesmos não poderíamos nos submeter a tais forças (não só no sentido satânico, mas também no moral)? E é isso que nos assusta muito mais que um terror em que sabemos ser cabível somente ao mundo fictício da tela, porque neste filme vemos que todos nós somos mais Rosemary que jamais imaginamos.
A partir do momento em que vemos a cena de Ferris Bueller, de Curtindo a Vida Adoidado (John Hughes, 1986) logo no começo do filme (o cabelo moicano de xampu sob o chuveiro), já sabemos que o personagem em questão quer se afastar de sua realidade, e mais do que simplesmente viver, ele quer reinar (como o próprio pôster insinua). Todo esse processo nos remete a um outro filme em que os protagonistas também se veem em fuga de seus mundinhos: Moonrise Kingdom (Wes Anderson, 2012), só que diferentemente deste, Os Reis de Verão tenta retratar esse amadurecimento de uma forma mais realista e dura (Moonrise Kingdom é por si só um conto infantil, e nada mais justo que o filme trazer essa estética mais ilusória que metaforicamente enriquece mais ainda o filme). É claro que Os Reis de Verão não possui o mesmo trabalho artístico dessa obra de Wes Anderson, mas suas fotografias, sons e efeitos de luz e sombra estão longe de passarem despercebidas (o campado em que a garota dos sonhos de Joe aparece, a câmera lenta na construção da casinha de pássaro com um feixe de luz incindindo bem no braço do garoto, os ecos sonoros das batidas nos canos com os movimentos dos garotos no decorrer do filme). Tornar-se adulto não é uma tarefa fácil, e mesmo que discordemos muito de nossos pais, sempre trazemos algo deles para a nossa própria personalidade. E mais do que ser independente, o mais importante é saber como se levantar caso tudo dê errado.
Em primeira vista, o filme parece um emaranhado de insetos, corpos, gritos guturais e gore, tudo numa mistura bem trash, mas que não deixa de ser contagiante. Além disso, por trás de todo esse banho de sangue, vemos uma sátira enorme a um governo totalitário, controlador de mídia e defensor de superioridades (em que tudo que não for humano, deve ser aniquilado). Ao decorrer do filme, vemos propagandas de guerra muitas vezes bizarras (como a cena mais engraçada do filme, em que crianças em círculo esmagam algumas baratas, mostrando que todos estão combatendo em pró da Terra), a repreensão de qualquer questionamento que vá contra as ideias expansivas (como a cena em que os soldados se questionam se não foi a invasão humana em territórios de insetos que iniciou toda guerra, o que é seguido de um sermão vindo do tenente) e a desumanização de cada indivíduo posto em combate (como a de Carl - Neil Patrick Harris -, um dos primeiros amigos de Rico - Casper van Dien - que inicialmente se mostrava uma pessoa carismática e engraçada, mas que ao fim do filme transforma-se num indivíduo frio e calculista). Juntando-se todos esses pontos, vemos nada mais, nada menos que uma sociedade fascista que tem por objetivo dizimar qualquer forma orgânica que "ameaçasse" os humanos (em aspas pois muitas vezes quem inicia as investidas são os próprios fascistas), e é isso o que incorpora toda a ideia do filme. Você quer ser um cidadão?
Mais que um enlace de personagens e desfechos inusitados, Woody Allen mostra como as relações na vida as vezes podem ser vãs, ou pelo contrário, versáteis, e que em muitas vezes o melhor é se viver de uma eterna ilusão.
São filmes como esse que te fazem filosofar sobre a vida e o que buscamos nela. Será que foi preciso a transformação/comparação de uma boneca inflável (no estilo Pinocchio) para mostrar a podridão e efemeridade de toda humanidade? Será que o problema de cada indivíduo seja a sociedade em que estamos, onde toda nova geração semeia os problemas dos antecessores? Será que a vida é tão inútil para se desmiolar em desilusões antigas? Essas são somente algumas das indagações que o filme nos traz, mas o certo é que o sentimento de tristeza que permeia cada personagem na história, embora diferente, acaba sendo "sanado", ou melhor cultivado, de maneiras semelhantes. Então o que vale em nossa vida?
Obs.: eu achei que o filme Her (Spike Jonze, 2013) se baseia em várias fotografias do Air Doll, seja nos primeiros takes do filme com o reflexo do "marido" da boneca, seja com a água do chuveiro que encharca a cabeça da boneca ou mesmo nos enquadramentos gigantes dos prédios ao fundo que contracenam com a insignificância dos bancos em que os personagens ficam sentados na cena. E eu não acho que tudo isso seja coincidência, mas sim que Jonze realmente tenha visto e amado esse filme, para tratar de um assunto tão conflituoso na vida de todos de um jeito tão adverso.
Antes de qualquer coisa, o comentário terá vários spoilers, então nem me darei ao trabalho de ficar marcando tudo :P
Embora a confusão do papel de cada personagem vá se esclarecendo com o decorrer do filme, muito pelo fato de Espósito se identificar tanto com o caso à sua frente, a ideia maior do filme é justamente essa intersecção de pensamentos e ações entre os principais personagens que acabam por formar uma das melhores obras memorialistas da história do cinema. Antes de continuar a análise, nada mais justo que citarmos um dos livros mais influentes da cultura brasileira: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nesse livro, temos um autor-personagem que discorre sobre sua vida, utilizando de sua audácia narrativa e descritiva, a fim de mostrar sua benevolência a todos. Saber então quando identificar a postura que o autor quer transparecer e a sua real índole é a tarefa mais justa e complexa de ambas as obras, já que isso também ocorre em O Segredo dos seus Olhos.
Dito isso, a análise de cada personagem terá de ser feita com muito mais cuidado do que inicialmente faríamos. Em todo o filme, vemos abordagens melodramáticas: seja na partida do trem, no amor incondicional de Morales, ou mesmo no papel da paixão, cenas que à primeiros olhos se assemelham a algo ultrarromântico demais, que no entanto são sempre seguidas de outras que acabam por quebrar essa contemplação, nos levando a ideias mais realistas (a partida do trem é seguida de uma morte bruta de Liliana, o amor incondicional de Morales acaba se tornando uma vingança irascível e banal, e a paixão leva à morte de Sandoval e à captura de Gómez), mas perceba que toda essa desconstrução romântica feita no romance de Espósito é feita a todos os personagens, com exceção dele próprio, o que denota essa incompatibilidade de personalidade. Em outras palavras, todos as personagens do seu livro são de alguma forma destronadas pela paixão que as movia, mas ele mesmo, consegue cultivar a sua paixão por Irene e levá-la adiante a ponto de alcançar seu objetivo no final. E o pior disso tudo, a forma como Espósito manipula todas as personagens a seu favor a fim de martirizar (romantizar) ou impor uma causa de morte maior (como a suposição de que Sandoval morreu por ele, ou que o amor incondicional de Morales intensificou o seu próprio amor) mostra essa insegurança que ele tem quanto a seus próprios sentimentos, querendo mostrar uma imagem, uma complacência que ele mesmo não partilha. Não parece meio injusto? Sim, mas lembremos mais uma vez de que a obra fora escrita pelo próprio Espósito, então ele nos mostrará o que ele quer que vejamos. No entanto, olhos mais atentos percebem esses defeitos na retórica dele.
Pensando agora fora do universo do filme, algumas imagens bem fortes nos levam a nos questionar: será que vale a pena ir tão longe, tão fanático a uma paixão, que como o próprio Sandoval verbaliza, não muda? Será que passado algum tempo, essa paixão presa a nós terá ainda o mesmo significado, ou será que nem ao menos conseguiremos nos lembrar da força motriz que nos levava a cometer tais atos (como o próprio Morales diz ao não se lembrar se a colher era de mel ou de limão)? Essas paixões que começam a ser racionalizadas, podem se tornar sagradas, assim como uma religião, não aceitando então questionamentos. Por isso eu pergunto mais uma vez: será que vale a pena levar o rancor a tal ponto? O filme tenta elucidar que não, como na cena do cativeiro de Gómez, quando ele nos mostra o monstro que Morales se torna ao guardar essa "paixão", e o olhar penitente e resignado de Gómez. São imagens duras, mas bem eficazes.
Todo o cuidado que o filme tem para transparecer o sentimento que temos em determinada cena é transposta para os elementos estéticos presentes: seja em uma das melhores cenas de câmera em movimento que já vi no cinema (a cena do estádio de futebol), dando essa sensação de tensão e maior vividez (a câmera treme para transparecer enaltecer a emoção da cena), seja nos sons diegéticos (o que seria os sons de fundo) na cena em que Gómez mostra o pênis, ou até mesmo nos movimentos das câmeras (subjetivas - a câmera mostra o que a personagem vê a partir de seus próprios olhos - ou não), criando toda uma imersão maior ao mundo do filme. Outra coisa que é bem importante no decorrer do filme, é o trabalho de duas cores: vermelho e verde, em que no primeiro temos o papel da paixão (o vestido, as cortinas e movéis, vermelhos, que Espósito se depara na primeira vez que vê Irene, a cortina vermelha que Morales fecha em sua casa do final do filme, nos fazendo desconfiar que diferentemente do que ele fala, a sua paixão ainda está guardada com ele, desencadeando a série de cenas seguintes), e no segundo podendo significar em certas cenas a solidão (o abajur próximo a Espósito, quando ele começa a escrever o romance, triste de não estar com Irene, o sofá em que Sandoval está sentado momentos antes de sua morte, denotando sua desolação em seus momentos fatídicos, nas portas da casa afastada de Morales, mostrando o seu afastamento social após da tragédia), e em outras, o poder - ou o que deveria estar exercendo ele (a cena da prisão dos dois operários, em que uma luz verde bate na figura de um policial, no campo de futebol sob o corpo de Gómez, quando esse é pego pelos policiais). Mesmo que exista todo esse trabalho estético, fiquei um tanto incomodado com o fato do filme ter uma certa insegurança na certeza da passagem de ideias ao telespectador, por conta de uma repetição constante dos fatos ocorridos (parece que o filme nos acha ingênuos demais para ter que ficar nos dando diversas chances de entender um acontecimento que já passou ao repetir as mesmas cenas), tendo seu ápice na cena de flashbacks no final do filme; talvez eu possa estar sendo um pouco ignorante, já que essa repetição pode ser um eco dos pensamentos que assolam o narrador em linguagem cinematográfica, mas admito que isso me irritou um pouco, mas nada que tire a genialidade da obra. E essa genialidade, que mesmo nem sempre muito aparente, nos faz gostar mais ainda do filme.
Admito que esse é um daqueles filmes que me vem instigando a muito tempo simplesmente por um detalhe de marketing: o poster. Essa composição de mulheres em formato de caveira é de longe um dos melhores e mais horripilantes posters que eu já vi na minha vida. E muito por conta disso, confesso que imaginava o filme numa pegada mais satânica, de rituais e de demônios; até certo ponto (aquela cena do corredor do hospital, com uma ótima composição de Dolly Zoom - aquela em que o fundo vem se aproximando em zoom, enquanto o primeiro plano, que no caso era a garota, parece que mantém-se do mesmo tamanho, algo que fizeram em filmes como Tubarão e Poltergeist) imaginei que seguiria por esse ramo mesmo. O filme, repleto de cenas em ambientes fechados, passa uma noção bem claustrofóbica que vai nos perseguindo até o final. Mas em contrapartida, no quesito medo, o fato deles mostrarem as criaturas logo no começo, pelo menos a mim, não causaram tanto pavor. Além disso, situações bem absurdas, mesmo para lógica do filme, me fizeram rir ao invés de temer as cenas.
No entanto, ponto para o trabalho estético, pela utilização de ângulos tortuosos que intensificam ainda mais a sensação de impotência, pelos giros lentos de câmera que só aumentam a tensão da cena, por uma das melhores aplicações da técnica de footage (na qual as personagens filmam a cena que nós, os telespectadores, vemos; assim como em A Bruxa de Blair). E por principalmente um cuidado com a escolha das cores, dando significados para os seguintes movimentos das personagens (como a cor verde que identifica o perigo no ar, seja nas cenas iniciais, em que a vegetação indica que algo ruim paira, seja na cena do corredor do hospital, ou mesmo, em momentos tensos de luta com as criaturas da caverna, ou a cor vermelha: que nesse caso, indica a coragem/bravura/força dos indivíduos. Vemos essa cor nas camisetas de Holly e Juno - que inicialmente são as mais aventureiras, nos flares que tomam conta dos locais, ou mesmo nas cordas que são usadas para a exploração das áreas. No entanto, é principalmente na transformação de Sarah, que esse recurso é mais bem utilizado: no começo do filme, vemos uma mulher insegura, traumatizada trajando vestimentas verdes, que dão a terminar numa mulher raivosa, vingativa coberta de sangue, portanto, vermelho).
Outro ponto bem interessante no filme, é quantidade de referências que avistamos: começando pela Tomb Raider (que é até realmente citada no filme). Juno está com os mesmos trajes que Tomb Raider estaria, e é ela a garota mais exploradora, experiente e planejadora, assim como a personagem dos jogos de ação é. Juno ainda faz referência ao filme Silêncio dos Inocentes, na cena em que ela vem correndo pela floresta da mesma forma que Clarice viria, e que mais uma vez, apresenta as características da personagem (portar-se como conhecida da situação, mas na verdade ser bem inexperiente e desprecavida). No entanto, é a cena final de Sarah que mais chama atenção: quem não reparou uma semelhança com Carrie, de Brian de Palma? Assim como Carrie, Sarah se emputece com as descobertas e se vinga de uma forma sanguinolenta de sua "amiga".
O recurso do delírio que é muito bem utilizado nas cenas iniciais do filme: no corredor do hospital (é a terceira vez que falo dessa cena; mas cara ela é muito foda!) ou no espelho da cabana, perde todo seu vigor no desfecho. Como já disse, o fato da aparição da forma das criaturas logo no começo do filme, satura a repetição de cenas com elas, chegando a ser cansativo (já que você sabe que elas não têm como ganhar, porque os bichos são infinitos), e que juntamente com aquela queda na qualidade do uso do delírio acabam por comprometer todo a obra. Sim, o filme é uma formosura em sua forma, mas o conteúdo em si é bem fraco.
Eu queria compartilhar uma análise mais estética do filme, então aviso desde já que o comentário estará repleto de spoilers, já que citarei diversas cenas do filme:
Logo no início do filme quando estamos nos adequando com a situação pela qual Robert está passando, temos uma série de cenas em que o enquadramento está ora em ângulos tortuosos, ora focando objetos em planos diferentes das do personagem (a chegada do carro sido vista de um buraco da passarela, ou Robert junto ao padre em segundo plano, enquanto que em primeiro, vemos um corredor de madeira). Dessa forma, o filme nos diz que embora tudo pareça normal, algo por traz de todo o contexto está errada, algo poderoso, misterioso e secreto: o Diabo. Esses enquadramentos irregulares vão até uma cena que considero a mais importante de todo filme, já que por si só, resume completamente o filme: a primeira vez que Robert conhece a criança que substituíra seu filho; explicarei a sua importância mais para frente.
Damien vai crescendo... temos a festa de aniversário dele, vemos a figura de um cachorro preto (que assim como em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, significa um mau agouro, um mau presságio que vai assombrar Robert ao decorrer de todo o filme), até que por fim chegamos à cena em que a nova governanta vê pela primeira vez o Damien. A esta altura, ainda não sabemos que o garoto é na verdade o Anticristo, mas uma dica de sua real identidade está logo atrás: o fogo que circunda a cabeça dele. Esse fogo, que remete ao inferno, ao pecado, e portanto ao próprio Diabo quebra toda a figura angelical que vemos estampada na face do garoto.
Com o tempo, outra estética começa a dar dicas do desenrolar das personagens e da própria história: as cores. A primeira cor que mais chama a atenção no decorrer de todo o filme é o verde (vai dizer que aqueles campados gigantes não chegam até a irritar? :P ). Mais para o meio do filme, essa cor começa a aparecer somente em momentos chaves, mas sempre dando as caras quando algum personagem corre perigo (isso mesmo, perigo!). Antes do ataque de babuínos vemos um ambiente repleto de grama e circundado por cercas da cor verde. Antes do empalamento do padre, ele percorre campos cheios de árvores e folhas da cor verde. Antes da morte do fotógrafo pelo vidro da carreta, vemos dois cestos enormes de bananas maduras, portanto verdes. Antes de Damien se aproximar completamente da igreja, vemos ao lado um campo gigantesco verde (repare que nesse momento, quem está em perigo é justamente, Damien). Os cenários estão sempre repletos de verde, pois todos as personagens estão em constante perigo com a entidade maligna ao redor; e é por isso que vemos verde nas portas e janelas do sobrado, verde nos campos enormes, verdes até em bananas! Vemos também o verde (prometo que é a última vez que falo disso, mas é para você ter uma ideia de como essa cor aparece no filme) na cena do acidente de Kathy, que tentava arrumar o vaso de plantas (que é daquela cor que eu não posso mais falar). O interessante nessa cena é que vemos também as outras duas cores que também tem um significado próprio: o amarelo e o vermelho. Um pouco antes dessa cena, vemos Kathy desesperada, trajando um pijama amarelo dizendo ao marido que precisa de um psiquiatra, pois acha que o filho está demonizado. O amarelo no filme, embora seja menos explorado, significa esse desespero de Kathy (eu não consegui identificar em outras personagens) em relação aos últimos acontecimentos. Depois da visita ao psiquiatra, Robert adentra num quarto que de tão amarelo, parece que até foi colocado um filtro enquanto filmavam a cena; é esse desespero tomando conta de todo o ambiente ao seu redor. O desespero se vê em intensidade máxima justamente na cena do acidente com a motoca: o quarto novamente está imerso em amarelo, e ela trajando um suéter amarelo prenuncia o medo que virá a seguir. E por fim, o vermelho. A primeira vez em que o vermelho aparece alarmantemente é na cena em que o fotógrafo está revelando as recém-tiradas fotos em seu laboratório. Em todo o filme, essa cor tem um significado de presságio/profecia, seja ele sendo previsto, ou consumado. E mais uma vez nessa cena do acidente, a motoca de Damien (vermelha) vem selar o presságio que viremos a saber momentos depois da perda do bebê. E é finalmente com essa cor que sabemos que o mal vencerá bem antes da morte de Robert: quando esse começa a entrar no quarto de Damien para cortar seu cabelo, logo vemos que o pijama do garoto é totalmente vermelho. Sendo assim, logo concluímos que toda a previsão descrita no filme do Apocalipse será então finalizada.
Você que conseguiu chegar até aqui deve estar se perguntando: por que raios é interessante ficar reparando em todo esse lance de cores? Eu te entendo muito bem, eu mesmo já me perguntei isso. A resposta é que você consegue prever cenas e acontecimentos, entender o sentimento de alguma personagem e criar suposições a partir de certa ação a partir de simplesmente uma lógica que você criou a partir de tal cor. E isso é incrível, pois o que eu concluí nisso tudo pode ser totalmente o contrário do que outro alguém supôs, e as duas podem fazer sentido. Enfim, sem mais delongas, direi porque acho aquela cena logo no começo, a mais importante de todo o filme.
Essa cena acontece por volta dos 3:27 do filme e nela vemos um enquadramento de uma freira segurando em seu colo um bebê. Segundos depois, Robert entra no quadro e se instala no meio dos dois. Qual é a função de Robert depois dele finalmente se dar conta da real identidade de Damien? Tentar impedir que os planos do Diabo se concretizem; ele é então a pessoa que selará o destino da humanidade, ele é o mediador entre o satânico, o anticristo, e a pureza, a salvação (na lógica do filme). E é por isso que eu acho que esse é o enquadramento mais importante do filme, pois ele justamente resume toda a luta do filme: quem Robert deixará por fim prevalecer?
Guardiões da Galáxia tem tudo que um bom filme de herois precisa ter: muita ação e aventura, humor, explosões e efeitos especiais, personagens fortes e carismáticos, e mais do que tudo, uma história envolvente. O novo título da Marvel tem tudo para ser um dos melhores do gênero, trazendo um enredo que balanceia todos os personagens de uma forma dinâmica e comovente (coisa que Os Vingadores não haviam feito muito bem) e uma inovação muito legal na forma de contar a história que me lembrou muito a de filmes como Pulp Fiction: a imprevisibilidade; em que vemos sequências totalmente inusitadas para a forma como a cena se desenvolvia até então, que além de aumentarem o tom de humor, dão uma dinâmica totalmente diferente das dos filmes anteriores da Marvel.
Sabe um filme que você decide ver pensando numa coisa, e com o tempo você vai assimilando que aquilo que você vê é algo totalmente inesperado, e que você vai até o final do filme assim, é bem esse filme.
Psicopata americano: esse ótimo título não traduz simplesmente a dualidade da sanidade do personagem de Bateman, como transpõe para toda a sociedade (americana ou qualquer outra), essas características que tanto o meio como o sistema econômico produz em nós: competitividade, narcisismo e cobiça. Um filme que aparentemente se assemelharia a qualquer slasher da década de 80, se mostra algo muito mais profundo por mostrar que existe em cada um de nós, um Patrick Bateman. No mundo em que vivemos, todos queremos nos dar bem na vida (isso é algo inquestionável), e que para isso, todas as formas tangíveis são testadas para "se dar melhor que o outro". O mais importante nesse "todas as formas tangíveis" é que estamos tão absortos em nossos objetivos que não percebemos o quão estúpidos estamos sendo. Será que lutar por um terno ou um cartão melhor nos faz alguém superior que o outro? Essa visão niilista da sociedade é justamente o foco desse filme. Todas as pessoas são exatamente iguais, todas querem se destacar, mas acabam caindo na sombra do outro, todos querem serem melhores. Tome como exemplo a cena do cartão: cada modelo de cartão é nada mais nada menos que a mesma coisa, com fontes e texturas diferentes, mas é de se notar que o cartão é o mesmo, mais importante que isso é o fato de todos terem o mesmo cargo: vice-presidente. Todos! Um cargo que teoricamente tem grande influência e importância é banalizado pelo design do cartão. Ninguém quer exercer a sua função, mas sim parecerem que a exercem, e é esse mundo de aparências que permeia toda essa realidade. Outro fato de que todos os indivíduos do filme não passem de meros caricatos são as visões de mundo de cada um, algo que para um integrante de uma "seleta" Wall Street deva ser como uma voz divina, mas vocês não tem a expressão de que os discursos de cada um deles não passe de algo que uma Miss Universo proporia, só faltou falar da paz mundial para ficar mais claro. Mais uma vez, o filme mostra a direção do pensamento desses, mais uma vez, "seletos" indivíduos. Algo que até reforça essa ideia, é a falta de identidade das pessoas, em que as pessoas não sabem os nomes verdadeiros de ninguém, seja das prostitutas ou a do próprio Bateman.
Puxando agora para o lado da sanidade, queria falar algo antes em relação ao consumismo: como o próprio Tyler Durden diria: "Advertising has us chasing cars and clothes, working jobs we hate so we can buy shit we don't need". Essa busca pelo melhor corpo, pelo melhor terno, pelo melhor emprego nos guia desenfreadamente para uma direção em que não sabemos mais o que queremos. As personagens desse filme são exatamente assim, eles podem tanto, mas tanto, que não sabem o que querem; não fazem a mínima ideia do que querem, que o "querem" é assasinar, porque precisam, caso contrário, você se sentirá um merda. E reparem nas aspas em "querem"; querer não é o mesmo que realizar, e é por isso que ficamos sempre loucos pelo melhor, e esquecemos o trabalho que tivemos para conseguir o outro, é então essa loucura desmedida, que é o que vai se desenvolvendo ao decorrer do filme.
Eu acredito que existam boas almas em lugares como esse, mas a grande sacada do filme é criar personagens tão, mas tão irreais, frios, tontos, como algo bem pastelão para mostrar justamente como a sociedade como um todo está cega quanto aos seus desejos; corrijo, suas necessidades. E uma coisa é certa, quando se entra nesse jogo: "This is not an exit", como a plaquinha no final do filme diz.
Fausto
3.4 220SPOILER DETECTED! (E se você se incomodar com o maniqueísmo do comentário, a culpa é da lógica do filme)
De fato, assistir a uma obra de Aleksandr Sokurov não é para qualquer um: o ritmo de câmera e narrativa pode rapidamente afastar os mais impacientes (considerando que algum de seus filmes predecessores são ainda mais lentos). No entanto, se tentarmos prestar um pouco mais de atenção, podemos perceber alguns artifícios muito interessantes que toda a equipe produz. Como o filme diz logo no início, ele é livremente inspirado na obra homônima de Goethe, portanto, não traçarei parâmetros entre os dois. Dito isso, podemos começar contextualizando um pouco o enredo. Fausto (Johannes Zeiler), um intelectual anacrônico, tenta incessantemente buscar a alma de um ser humano, e clamar por mais conhecimento. Em condições financeiras complicadas, e sem um prognóstico para o futuro, Fausto começa a ser atraído pelas forças malignas de Mefistófeles (Stefan Weber). Assim que damos de cara com Mefistófeles, o vemos como um penhorista, que só para reforçar, é o indivíduo que troca objetos de valor de algumas pessoas. Sendo assim, essa troca não funcionaria melhor que neste caso, já que metaforicamente, a alma é o bem de maior valor para uma pessoa. Com o tempo, Mefistófeles vai mostrando o que mundo pode ser, no sentido maligno da coisa, fazendo com que Fausto vá aos poucos se transformando para uma figura horrível.
Sabendo então da lógica do filme, a cena inicial resume bem não só a ideia que será passada no filme em questão, como a de toda a tetralogia do poder de Sokurov. O pano que vem caindo dos céus em direção ao chão remete a esse poder que vem em declínio, descaracterizando a figura imponente e passando a um mero indivíduo (há também aquela sensação vista em Forrest Gump (1994), da pena passando por toda uma cidade e caindo em cima do indivíduo que contará a história a nós, mostrando que as coisas que aconteceram a este homem poderiam muito bem terem acontecido com qualquer outro. Essa análise serve para a transformação de Fausto, já que qualquer indivíduo pode ser transformado pelas forças do mal); isto acontece no Moloch, acontece no Taurus, e acontece em O Sol. Em Fausto vemos um homem de caráter impetuoso, mas de certa dignidade que a cada momento tenta se sobrepujar sobre ele mesmo. Essa personalidade ambiciosa, que pouco existe em outros indivíduos, estes, sonhando com coisas mais pontuais, como bens e riquezas, desperta um sentimento de necessidade de posse maior em Mefistófeles, o que faz com que Fausto tenha um tratamento mais especial que a de outros mortais quando aquele consegue finalmente sua atenção. O primeiro choque que tomamos no filme, já que neste momento, Fausto ainda não tem total segurança da entidade que está à sua frente, é descobrir que vários indivíduos desta sociedade têm relações com Mefistófeles, sejam eles, civis, artistas ou clérigos. Esteticamente, o filme mostra assim que Fausto sai de sua casa, que esse segredo que cada pessoa tinha, começa a aparecer, visto que todos ao seu redor, vestem preto, simbolizando assim, esse obscurantismo talhado em qualquer um. É somente Marguerite (Isolda Dychauk), a única a não ter essa aura a sua volta, denotando assim, a pureza e ingenuidade presentes (algumas cenas em que isto pode ser visto claramente é por exemplo, a do confessionário em que a mão dela está numa parte iluminada, como se fosse algo sagrado, enquanto que a de Fausto está escondida nas sombras, e na do delírio de Fausto, em que o filtro do filme está praticamente amarelo/dourado, de tanta pureza que ela teria). Um outro artifício que Mefistófeles se utiliza para conquistar Fausto é sempre se rebaixar diante dele, de forma a encher seu ego. Expandindo esta característica, podemos perceber que Mefistófeles omite o que lhe convém, para que a sua vítima esteja mais propensa a realizar o que ele quer que faça. É tudo uma parte de um jogo. Neste jogo, temos ainda uma progressão de maldade nos acontecimentos em que Mefistófeles arranja a Fausto, passando por um prostíbulo (Mefistófeles, assim como a montagem/fotografia, fazem com que todo o local ganhe um tom sexual muito mais forte do que realmente teria, já que ele rebaixa o local a um lugar de passeio libidinoso, e a montagem/fotografia cria um ambiente bem embaçado, em que quase não conseguimos ver os contornos das pessoas e objetos, de forma a quase nos convidar a desbravar os mistérios e recantos deste ambiente, acentuando ainda mais o tom sexual), pela doença (esse mal que a qualquer momento pode acometer a qualquer um) e pelo assassinato (como o ato mais pecaminoso que uma pessoa poderia cometer). Todo este processo, aliado com o ceticismo inicial de Fausto fazem com que ele simplesmente subestime a figura de Mefistófeles (algo que Mefistófeles incentiva para corromper Fausto com ainda mais intensidade, como citado anteriormente). Fausto, por exemplo, acreditando que a alma não existe, assina o pacto quase que ridicularizando Mefistófeles (corrigindo os termos), imaginando que ele não estará entregando nada a ele. Essa ilusão criada por Mefistófeles, dialoga metaforicamente com todo o filme, já que a fotografia contribui muito para dar esse aspecto onírico às cenas, com quadros bem sombrios, sempre meio embaçados, muitas vezes tortuosos (algo que as vezes até parece que a cena foi filmada com uma lente errada, ou que o 'aspect ratio' foi convertido de forma horrível), mostrando esse mal conjunto da sociedade que rodeia a tudo e a todos (uma curiosidade é que estas câmeras sempre bem tortuosas eram utilizadas bastante na época do Expressionismo Alemão do cinema, em filmes como Nosferatu (1922) ou Metropólis (1927), para mostrar este lado obscuro e animalesco das pessoas do filme, o que para este filme funciona muito bem também). Mefistófeles, como já dito, vai moldando um novo Fausto que atingirá seu ápice no final do filme.
Uma coisa interessante de se perceber neste filme é que Mefistófeles vai levando Fausto para épocas históricas cada vez mais passadas, passando pela Idade Média (justificado pelos formatos das casas, ou pelo fato da cidade inteira se basear na Igreja central), pela Pré-História (homens vestidos com panos/peles de animais) até chegar na origem de tudo (gêiser - fonte da vida). O que Fausto ansiava era por conhecer tudo, desta forma, Mefistófeles vai levando Fausto por uma viagem temporal (algo parecido como o que o hipopótamo faz com Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis) para que ele conheça tudo o que homem possa conhecer. No entanto, é ter noção de tudo, que faz com que Fausto comece a delirar ainda mais dentro da ilusão criada por Mefistófeles no decorrer de todo o filme. Fausto, atingindo assim o máximo de conhecimento possível, ignora a toda a situação, se achando auto-suficiente e inteligente o bastante para achar novas respostas (megalomaníaco), andando para o nada pelo inferno. É na cena final que vemos que o objeto (digo aqui objeto, porque Fausto a considera um mero objeto de satisfação sexual) que atiçou passionalmente toda essa mudança em Fausto (Marguerite) é no final imaginado como um novo impulsionador de novas respostas, mesmo que delirado. Em suma, o que podemos ver neste filme, é a busca, com posterior acúmulo de poder que faz com que Fausto fique insano e comece a achar que é superior a tudo, esquecendo de que ele está preso no inferno, sem escapatórias, fazendo assim com que o real vencedor, seja nada mais, nada menos, que Mefistófeles.
É por ter esta livre-interpretação, repare uma última vez nessa palavra, pois ela é realmente muito importante para o sucesso do filme, de uma obra fictícia (já que a interpretação acerca dos líderes políticos é mais delimitada) de grande renome como esta que acredito que Sokurov alcançou da melhor forma, o sentimento que o poder pode criar num ser humano na tentativa de ancalçá-lo e como ele pode acabar transformando este indivíduo.
Ensina-me a Viver
4.3 873 Assista AgoraSPOILER DETECTED!
A história de um jovem que vislumbra o mundo, sonha, questiona e ao conhecer uma senhora mais velha, mostra a ela todas as belezas da vida que um dia lhe foram férteis e impressionantes como hoje são para este garoto. NÃO! Acho que nesse filme temos um clichê hollywoodiano sendo quebrado, principalmente numa época em que os jovens eram tão aclamados e retratados para o progresso da sociedade, como foi na década de 70 (Woodstock, movimento hippie, entre outros). Acho que este foi um tapa muito forte para a época, não é a toa que o filme foi totalmente ignorado quando lançado. As primeiras imagens de Harold (Bud Corton) mostram um garoto rico (algo acentuado pelo cuidado sonoro do filme, ao se preocupar até mesmo com o fato das escadas de madeira não rangerem nas passadas do garoto, denotando uma família abastada, suficientemente capaz de trocar o assoalho assim que este começa a naturalmente a se deteriorar, e por conseguinte, ranger), que mesmo um tanto reservado (já que demoramos a ver o rosto do garoto, mostrando um certo afastamento com a sociedade que o rodeia) possui uma mente socialmente descontrolada; o mais assustador na cena não é o próprio ato do garoto em si (que com uma ajuda da fotografia, coloca-o enquadrado à frente dos feixes de luz, em um ponto muito valioso tanto para a fotografia quanto para o cinema: o ponto de ouro - também conhecida como regra dos terços. Corta-se o quadro em duas retas horizontais, de forma a termos três espaçamentos iguais, e logo após isso, fazemos o mesmo em duas retas verticais. O local de cruzamento destas retas são onde estão situados os pontos de ouro. - caso você ainda não tenha entendido, segue no final do comentário um vídeo explicando mais detalhadamente esse recurso técnico. No cinema, o ponto de ouro mais importante é o superior direito. Sendo assim, Harold é posto no ponto mais grandioso, para engrandecer ainda mais seu ato), mas a reação da mãe para com o filho, agindo de forma totalmente natural diante de algo que psicologicamente parece totalmente aterrador. Harold segue fazendo estes pequenos suicídios no decorrer de todo o filme, e mesmo que narrativamente ele já tenha uma certa idade (embora o ator pareça ser bem mais jovem do que o filme sugere), ele clama pela atenção de sua mãe, mesmo que de um modo extrapolante, no entanto não conseguindo resultado de qualquer forma. Em outras palavras, ele atua para a mãe, já que sendo natural ele não consegue obter resultado melhor. Isso é muito importante, pois Harold não atua somente para a mãe, mas sim para todos os indivíduos ao seu redor, até mesmo a nós, espectadores. Vislumbrando o mundo a partir da figura da mãe, ele acredita que a vida seja bastante miserável, não dando valor às pessoas ao redor, agindo então de forma dissimulada a todas elas. Esse espetáculo que Harold cria a todos pode ser percebida também na cena do sangue do banheiro, ou nas cenas em que ele assusta as pretendentes ao casamento. Outra coisa que percebemos em relação a sua índole nesse pequeno trecho inicial é que Harold é bem metódico, visto na cena em que ele usa o isqueiro para acender o fósforo, e assim, acender as velas. Esses movimentos regrados são bem perceptíveis também nos passos de Harold, sempre firmes e alongados. Essa análise inicial pode ter sido bem técnica e detalhada, mas é de extrema importância que saibamos seus modos, já que pelo decorrer do filme, seus trejeitos serão alterados profundamente, então em suma, sabemos que Harold atua para as pessoas ao redor e que é extremamente metódico, atendo-se então aos símbolos.
Antes de darmos prosseguimento a análise de Harold, eu queria mostrar como as figuras ao redor dele ajudam a formar esse indivíduo fechado em si, e receoso de viver. Primeiramente, temos uma mãe que como já vista anteriormente, é negligente e impositiva, que vê o problema do filho mais como um problema para si mesma, do que algo que deve ser cuidado por carinho. Sendo a principal pessoa para a vida de Harold, ele não tem a quem recorrer/confiar quando algo lhe viesse a acometer, além do mais que a mãe vive transferindo a responsabilidade do cuidado para terceiros (psicanalista, tio militar, casamento) sem ao menos parar um momento para tentar entendê-lo. A seguir, vemos um psicanalista que por ser inexperiente demais, ao invés de tentar observar o caso de Harold separadamente, tenta rapidamente categorizá-lo em um tipo/problema já catalogado. Este psicanalista, que talvez fosse a ponte para o melhor entendimento de Harold, acaba fazendo com que ele se afaste ainda mais, por não se poder confiar em um indivíduo que mais tenta impor um diagnóstico pré-estabelecido, do que procurá-lo a partir dos fatos em suas mãos, observando Harold como uma pessoa, e não um paciente. Mais a frente, conhecemos o tio de Harold, um ex-combatente que depois da guerra possui maiores influências militares. Esse sujeito tenta mostrar a Harold a beleza, a honra, a satisfação de ser um militar; a sensação de ser livre. O engraçado é que atrás deles, os sons sugerem que essa liberdade é também regrada, ou seja, não se tem liberdade. Além disso, o braço robótico serve metaforicamente para mostrar que um ser humano não se realiza ao se tornar um militar, que não se torna mais humano, mas pelo contrário um robô, uma máquina de morte (como 16 anos depois, Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick, retrataria magnificamente). E por fim, pretendentes para casamento risíveis, que não condizem em nada com a profissão que exercem (a primeira que estuda ciências políticas deveria ser alguém com mais seriedade, mas que conhece Harold por perder uma aposta, a segunda que trabalha como arquivista e que exalta sua empresa citando fatos que nada tem a ver com sua profissão, e por fim uma atriz que mais parece uma ponta de filme de comédia romântica do que uma atriz). Essa sociedade nada amigável a Harold só o faz se isolar ainda mais em seu próprio mundo, tornando-se difícil desabrochá-lo deste encanto, até que Maude (Ruth Gordon) aparece em sua vida...
Maude, assim como Harold, tem um fascínio pela morte, no entanto, os motivos são bem diferentes. Enquanto Harold vai aos funerários como uma forma de encontrar um sofrimento alheio que faça o seu próprio sofrimento parecer irrisório, encontrando assim um pouco de satisfação (algo como o Narrador de Clube da Luta (1999) faz para conseguir se desvencilhar da insônia), Maude cultua esses ambientes para encarar a morte, fazendo com que a sua vida seja então valorizada. Embora com motivos totalmente diferentes, o primeiro contato logo mostrará que os dois se darão muito bem daqui para a frente, já que ambos estão alienados (no sentido bom da palavra) desta sociedade politicamente correta. Nesse primeiro contato, temos novamente um enquadramento um tanto cômico, já que vemos uma cruz tomando grande parte do lado esquerdo da tela, enquanto vemos Maude sentado do lado direito da tela, comendo uma maçã, algo como se tivesse fazendo um lanchinho no meio do cemitério. O melhor relação que podemos fazer é uma antítese do sagrado, do método, da religião na figura da cruz, enquanto que Maude come uma maçã (pecado) diante de uma cena bem figurativa religiosamente para um fiel. Isso acentua ainda mais a ideia de uma pessoa diferente das demais, diferente do padrão. Maude vai então pouco a pouco ensinando Harold a viver (um título mais bem condizente que o original), seja pelos sentidos (com as bugigangas de sua casa), seja mostrando a beleza das pequenas coisas, seja por dar a atenção que Harold sempre sonhou, seja por ver Harold como um indivíduo (as flores são mais belas quando a vemos de perto, e não quando ela é analisada no meio de várias outras, coisa que o psicanalista não consegue fazer anteriormente), seja por mostrar o maior dos sentimentos aos dos símbolos, ou mesmo por estabelecer uma relação amorosa com ele (coisa impensável numa sociedade daquela época, o que será mostrado de um modo bem incisivo pelos monólogos dados por várias pessoas de classes sociais diferentes olhando fixamente para a câmera). Aos poucos, aquelas características supracitadas vão se perdendo: Harold começa a agir mais naturalmente, a viver de uma forma mais leve, a mostrar sua real face, pelo menos para Maude até aquele momento. Algo que simboliza essa passagem é o fato das cores das roupas de Harold tornarem-se mais vivas com o passar do processo (inicialmente Harold anda de blazer pela casa, algo que no final será substituído por uma camisa com detalhes de flores). Toda essa transformação é linda, e é quando Harold encontra com sua última pretendente de casamento que ele vê quão ridículo era. Sunshine (Ellen Geer), assim como Harold, atuava para viver (mesmo que mal). Harold precisou ver sua antiga personalidade para se dar conta de que viver não era isso, que o que ele fazia era medíocre e deveria ser contornado. A partir daí, Harold realizará só mais um suicídio, que é o que acontece logo após a morte de Maude.
Maude ensina este lado bom da vida a Harold, que vivemos somente uma única vez, e que portanto não devemos desperdiçá-lo, mesmo que tenhamos vivido maus bocados, como ela mesma passou quando perdeu o marido, por ela ser uma sobrevivente da perseguição nazista (símbolo de judia que Harold vê no braço dela). Dessa forma, Maude poderia ser a pessoa mais triste da face da Terra, no entanto, ela soube contornar isso e viver a vida da melhor forma, sendo é por isso que ela não se sente mal quando está prestes a morrer, simplesmente pelo fato de ela ter conseguido aproveitar a vida da melhor forma possível, morrendo assim em paz. Harold então realiza seu derradeiro suicídio, no entanto, ele não o faz por estar triste pela perda de Maude, mas sim para mostrar que o processo pelo qual passou foi bem-sucedido, que ele conseguiu aprender a viver. Diferentemente dos demais suicídios, Harold não finge esse suicídio para chamar a atenção ou como forma de repulsa a sociedade ao seu redor, mas sim para se desvencilhar de sua antiga pessoa/personalidade. Harold é um novo indivíduo após deste suicídio (desta vez, o suicídio pode ser realmente entendido como um suicídio real, mesmo que seja de personalidade). Aquelas duas características que Harold tinha logo no começo do filme já não existem mais: a atuação foi levada embora junto com o suicídio, como dito acima, e os métodos por qual vivia também são substituídos quando vemos um Harold tocando o banjo de uma forma totalmente caseira e despretensiosa.
Como visto em todo este comentário, vimos que o filme traça uma crítica bem incisiva a figura de vários indivíduos na sociedade, que não sabem reconhecer cada pessoa como única em seu meio. Outra forma mais implícita em que o filme faz isso é no trabalho de cores, em que um verde bem forte mostra essa sociedade ditando tipos e generalizações, e mais do que isso, tirando o toque de desumanização de cada pessoa na sociedade. A cor pode ser vista por exemplo no campo de flores brancas, ou nas lápides do cemitério. Nesses casos, cada um de nós somos uma flor, uma lápide, e como Maude pontua muito bem, cabe a cada um observar com mais cuidado cada indivíduo a fim de encontrar interessantes características e qualidades. No entanto, essa sociedade que permeia e dita o que é moralmente ou não correto (esse campado que permeia todas as flores e lápides) acaba fazendo com que todos nós pareçamos iguais de longe. Um outro momento bem forte que isso aparece é na figura do militar. Como já dito acima, a liberdade de todo militar que o tio de Harold diz, parece não ser verdadeira, e não é a toa, que a farda dos militares seja da cor verde. A partir do momento em que esta parte da sociedade adentra em cada um de nós, acabamos por nos tornar menos humanos, e mais robóticos, como o braço dele. E finalmente, o verde aparece na cena final em que Harold toca o banjo, mas diferentemente das demais, temos um Harold bem extenso na cena, diferentemente das flores ou lápides vistas anteriormente, que sendo assim, parece não se importar mais com o que a sociedade dita ou não, sendo assim, maior que o verde, maior que o que a sociedade pensa, podendo então viver a sua vida de uma forma bem melhor.
O filme é de um trabalho visual espetacular, mas minha mente de século XXI rapidamente imaginou toda a situação que viria a acontecer com as duas personagens. Não digo que o enredo é fraco, mas tendo uma mente mais aberta que as pessoas da década de 70, tive a liberdade de imaginar muito mais coisas, fazendo com que eu perdesse um pouco da animação e surpresa de descobrir as coisas. Mais uma vez digo, o enredo não é ruim, é só que é bem previsível para minha mente de século XXI. Uma outra coisa que me irritou profundamente no decorrer de todo o filme foi a trilha sonora de Cat Stevens. A composição das músicas não é ruim, pelo contrário, é bem agradável de se ouvir, já que os arranjos são muito bem feitos, mas acho que a aplicação não foi muito bem-sucedida. Não sei se isso aconteceu para tentar aproximar o público de 70 de um tema bem controverso para a época, mas a mim não me apeteceu. A sensação que tive é de que eu era um pouco ignorante, pois a letra da música literalmente expressava as imagens que eu acabava de ver na tela. Como assim? O garoto está triste, a música fala que o garoto está triste. O garoto quer ser livre, a música fala para o garoto ser livre. Isso irrita bastante. Além disso, a dissonância entre a felicidade da música e a cena me pareceram algo como a dissonância histórica com a tentativa de aproximação ao popular feito na trilha sonora de O Grande Gatsby (2013). Em vários momentos da história do cinema, utilizar-se de uma trilha inesperada para a cena cria algo bem mais incisivo que algo esperado, como a cena do Singin' in the Rain de Laranja Mecânica (1974), mas eu achei que a trilha desse filme acaba por ridicularizar a situação de Harold, o que aos meus olhos, não caiu bem. Eu achei também que pela censura da época, muitas cenas que podiam ter uma sensibilidade muito maior, ou mesmo criar uma melhor empatia conosco foram retiradas comprometendo um pouco a dinâmica do filme, que anda tão bem até chegar nesses momentos derradeiros, como a da relação sexual entre os dois. Isso me soou como um certo receio em relação a crítica da época, no sentido de que mesmo que tenha criado um tema ousado, o diretor ainda coloca um pé atrás, com medo de que na tentativa de consolidar o filme como comercial (o que foi um fracasso na época), fizesse com que ele não pudesse ir tão adiante, e isso tira um pouco do brilho do filme. Enfim, a obra é de fato, inesperada, ousada e incrível em várias de suas mensagens, mas algumas falhas tanto técnicas quanto imagéticas fazem com que o filme perca uma grande percentagem de sua magia como mensagem, o que nesse filme é de extrema importância.
- Ponto de Ouro / Regra dos Terços: https://www.youtube.com/watch?v=fnFD6MGrytg
Beleza Americana
4.1 2,9K Assista AgoraSPOILER DETECTED!
Este foi um filme que me fez pensar bastante. Eu não sabia o que escrever, ou o que pensar acerca de sua qualidade, muito porque o filme é como se fosse um tapa na cara de cada indivíduo, por ser muito real. É claro que que as personagens do filme são algumas vezes bem exageradas ou estereotipadas, mas elas são feitas desse modo para mostrar que essas atitudes que muitos consideram impensáveis, podem sim conter algum sentido, e pior, tornar-se algo tão palpável, que nós, "os normais", nos surpreendemos da capacidade do ser humano. Se há um termo que possa melhor definir esse filme, o termo seria "SOCIEDADE DE APARÊNCIAS".
Esse padrão de sociedade politicamente correta e repleta de formalidades criada no romantismo escondia muitas desvirtuosidades que cada pessoa compartilhava em segredo consigo mesmo. Não expor essas atitudes era uma forma de negar a existência delas; no entanto, elas existiam. Existiam de tal forma que a partir daí, diversas correntes literárias (realismo e naturalismo) começaram a mostrar os segredos da burguesia, a animalização dos populares. E isso não é exceção a este filme. Embora tenhamos uma imagem altamente correta de todas as estruturas de uma família que segue o padrão "American Way of Life" (a nova romantização da sociedade), é até um pouco antes que temos um quadro que se não quebra com essa política, pelo menos nos faz questionar os indivíduos desta família: o narrador que abre a cena dizendo que está morto, e que conseguiu viver os últimos momentos de sua vida, sem se importar com o que era politicamente correto ou não. Essa ideia inicial não só põe em dúvida todas as imagens que estão sendo mostradas a seguir, como vai ecoando nas cenas a seguir que quebram essa ideia. É certo que Lester Burnham (Kevin Spacey) só vai realmente aflorar na cena da dança da amiga de sua filha, mas é um pouco antes que vemos o sinal de que ele está querendo mudar. Na cena em que Lester é chamado pela primeira vez ao escritório para ser informado dos cortes vindouros, temos um Lester bem no fundo de uma sala escura, numa câmera distante, mostrando um personagem meio que conformado com as máscaras da vida e com seu trabalho extremamente chato. A partir do momento que ele começa a revelar os menores dos companheiros de trabalho, o corte da câmera seguinte mostra um Lester bem enquadrado no meio, grande, que num momento de superioridade em relação a Brad (Barry Del Sherman) aproxima-se o rosto da câmera, sendo iluminado por um feixe de luz. Esta cena é o princípio da revolta de Lester em relação a essas máscaras. Essa luz representa metaforicamente a iluminação/revelação de todas as falsidades dele, o que como disse anteriormente, estoura na cena da dança. A cena da dança é de fato uma das mais importantes do filme, e ela é tão boa, pelo jeito que ela é construída. As câmeras não pegam nem os melhores enquadramentos nem a melhor angulação das líderes de torcida, o que denota que esta é uma câmera subjetiva do que Lester está vendo. Esses movimentos lentos e retos denotam a falta de interesse dele pela ação. A partir do momento em que Lester foca Angela Hayes (Mena Suvari), o som que antes era diegético (sons que as personagens ouvem, portanto pertencem ao enredo) torna-se um som angustiante, crispante, a câmera vai se aproximando no zoom até o ponto de interesse. É nesse momento que tudo ao redor some, e ficam só os dois; fica claro que ele está delirando, mas o mais interessante são as luzes. A luz que antes revelou a real intenção de Lester está mais uma vez mostrando que o politicamente correto não existe mais para ele. A cena é finalizada com as rosas sendo lançadas (esse aspecto da cor será discutido mais adiante).
Com o decorrer do filme vamos vendo que essa sociedade de aparências vai aos poucos se revelando: vemos a mulher correta e fiel, traindo o marido, o ex-combatente que renega o homossexualismo, mas que por trás esconde esse mesmo desejo, a ninfeta que conta aos quatros cantos do mundo sobre cada uma de suas experiências, mas que no final se revela virgem, e até mesmo o garoto calmo, quieto, que respeita os pais sem indolência, mas que nas demais horas, trafica maconha para os vizinhos. A forma como o filme trabalha cada um desses segredos é incrível, pois mesmo que alguém tenha pego a ideia do filme (revelação das máscaras), a composição de cada uma dessas revelações é muito bem arquitetada, nos espantando em cada uma delas. Por exemplo, a cena em que o ex-combatente vem na chuva em direção a Lester, imaginamos que ele vem dá-lo uma surra, já que vimos o poderio dele em relação ao filho, quando este simula a mentira do homossexualismo, mas o que vemos no final é simplesmente uma cena de afeto, o que nos faz ficar bem sobressaltados. A forma como os cortes de cena vão levando a imaginar que a arma que matará Lester seria a de sua mulher é bem planejada, pois ao mesmo tempo que vemos os movimentos de cada uma das personagens, vemos o que seria o assassinato, assimilando primeiramente a mulher, o que mais a frente é totalmente destituído. Estes cortes no final do filme são feitos de uma forma tão boa, que essa confusão de papeis das personagens na cena, pode funcionar metaforicamente como essa sociedade de aparências, já que não sabemos como as pessoas realmente são por dentro, então esta confusão de imagens remete a essa máscara que confunde as demais pessoas.
Quanto ao enredo queria dizer somente mais uma coisa referente ao garoto, que tem um papel importante no filme, já que basicamente conecta várias personagens. Ele, um garoto inicialmente apático, estranho se mostra um indivíduo bem interessante, mostrando a Jane Burnham (Thora Birch) que a vida é composta de vários momentos felizes, é só questão de saber olhar. Como ele mesmo diz, tudo ao nosso lado pode ser algo maravilhoso, o bater de asas de um pássaro, a afiação elétrica que liga uma lâmpada; tudo é maravilhoso. Essas coisas maravilhosas de cada dia se escondem na banalidade, assim como essa mesma sociedade de aparências. Mas mais do que isso, é essa mesma sociedade politicamente correta que dita o que é estranho ou não. Diz se algo é digno de beleza ou não. Por que um plástico esvoaçando pelo céu vale menos do que a premiação de um campeonato científico? Esse raciocínio é expandido por todo o filme, e ele que motiva Lester a realizar as coisas que faz.
É mais do que certo que a cor vermelha significa algo nesse filme. Mais do que qualquer outro filme, ele joga tanto essa cor na tela, que é impossível que não paremos para pensar em seu significado. Jogar tanto o mesmo efeito na nossa cara pode parecer meio infantil, meio megalomaníaco, no sentido de mostrar que sua obra tem um grande poderio em aspectos técnicos, mas o que eu digo é que o significado da cor tem totalmente a ver com essa sociedade de aparências recorrente em nossas vidas. Primeiramente, sabemos que vários objetos casuais contém tal cor, o que significa que o significado dessa cor está no nosso dia-a-dia, mas ela também aparece, até com mais intensidade, em momentos de total devaneio e contemplação, como a cena da dança. Então pela lógica, é algo está frequente no nosso dia-a-dia como se quisesse se preponderar, mas que quando nos lavamos de toda a razão é que aparece com maior intensidade. Por que não esse desejo, essa máscara da sociedade, essa falta da verdade? Não entendeu? Vou explicar. O vermelho se esconde em cada um de nós, ela é nossa real índole, nosso real sentimento sobre a vida e tudo mais. É quando queremos algo animalesco, ou moralmente incorreto que esse vermelho vem à tona. Esse vermelho é o que se esconde por trás das máscaras de cada indivíduo. As vezes ele pode vir num ato falho, por isso a cor as vezes vem forte em objetos casuais, pois essa revelação pode vir sem querer na vida cotidiana, mas é nos momentos de privacidade e desejo que o sentimento realmente se desprende. Esse vermelho é algo como o ego e o id de Freud. Esse id é o que está preso dentro de nós e que está na iminência de se sobressair, o que quer tomar conta, e o racional, o ego, vai sendo controlado pelo superego, fazendo com que essas máscaras do não caiam socialmente. O que o filme mostra no final é impressionante. Lester toma um tiro na cabeça, e o que vemos não é sua cabeça estourada inicialmente, é a mancha de sangue na parede. Logo após isso, vemos uma poça de sangue cobrindo toda sua cabeça. O que isso significa é que finalmente esse desejo, animalização, libido, se preponderaram integralmente. A morte trouxe essa libertação da máscara, trouxe a vida como ela é, crua e nua. E isso é melhor, embora no nosso mundo real seja algo complicado e difícil, e portanto, é por isso que Lester diz que nós só entenderemos essa sensação de libertação quando morrermos, um dia. E esta é a grande cartada de todo o filme: trabalho estético, narrativo e anacrônico (vida e morte) para se retratar um tema tão sutil e dolorido para todos nós humanos.
Não
4.2 472 Assista AgoraAcredito que antes de falar sobre qualquer coisa do filme, seria interessante contextualizá-lo. Sendo assim, um golpe militar lança o general Augusto Pinochet em lugar de Salvador Allende, no dia 11 de setembro (data que atualmente é muito mais lembrada por uma outra tragédia) de 1973. Consta-se que existiram muitas mortes de oposicionistas no período de ditadura, trazendo muito sofrimento e angústia. Pelos anos 80, por pressão externa, principalmente dos EUA (embora eles tenham sido os principais apoiadores da campanha de Pinochet anteriormente), o Chile se vê forçado a regulamentar o governo de Pinochet, visto que um mando ditatorial nessa Nova Ordem Mundial não cairia bem para nenhum tipo de relações exteriores. Com essa abertura, muitas dissidências políticas começaram a se unir, de forma a tirar Pinochet do governo. É nessa situação em que vemos o filme, e o seguinte comentário, que terá spoilers...
Logo nos vemos com um personagem que aparenta ser bem seguro, certo do que fala, um indivíduo que parece já ter feito o mesmo discurso milhares e milhares de vezes. A seriedade no tom e nas palavras da fala de René Saavedra (Gael García Bernal) aparentam mostrar que estamos diante de uma inovação do século, enquanto na verdade estamos somente no lançamento de uma bebida (o que historicamente faz sentido, já que apoiado pelos EUA, o Chile incentivava uma política mais neoliberal, permitindo até mesmo propagandas um tanto contraditórias como a da bebida Free - liberdade, numa época ditatorial). A propaganda para a época e local eram de fato inovadoras, mas sabemos que isso é, como o próprio René diz, uma cópia, dos americanos. Aos poucos, vamos vendo a situação que assola todo o país, e mais do que isso, vemos a posição em que René vai se colocando: ele parece tentar se alienar de toda a situação, talvez por não se importar com a forma com que o governo tomará, já que sua vida se manterá a mesma (carro moderno, um dos primeiros a ter as novas tecnologias - microondas, ter uma casa bem confortável), ou mesmo por estar desacreditado do futuro, já que por já ter tido um contato com o mundo mais político, chegando ao ponto de prisão, ele acredita que toda a eleição esteja forjada. O certo é que René acaba aceitando participar da campanha do No. Por quê? Se vimos que independentemente do motivo dele, ele parece tentar se alienar da política, por que ele adentra nesta campanha? Embora tentando se alienar da política, René vive numa sociedade, e desde o ponto em que o oferecem a proposta até ele aceitar, passamos por uma série de imagens que o parecem atormentar, mesmo que minimamente. René vê sua mulher e outros manifestantes sendo fortemente reprimidos pela polícia, René sofre ameaças do chefe (mesmo que ele saiba que não será demitido, já que movimenta grande parcela das atividades, o sentimento de mostrar ao seu superior que também pode, se propugna nele), e de certa forma, René não pode negar o passado pelo qual passou. Mesmo não sendo motivos que contem fortemente para a iniciativa dele, René com certeza deve ter aceito a investida por algum destes motivos.
A partir do momento que o personagem finalmente aceita lutar pela campanha, vamos percebendo que mesmo num ambiente de alta tensão, René ainda se utiliza de seus dotes publicitários para tentar modificar o país. Quanto a escolha de René pelos oposicionistas, podemos imaginar que seja devido unicamente ao seu passado político, já que muitos logo percebem que ele não atingirá suas expectativas, desistindo da campanha. De um modo geral, analisando a própria propaganda do refrigerante, percebemos que ele não é um grande publicitário: embora o mímico seja uma de suas marcas, essa figura normalmente não é relacionada com a alegria, visto que eles normalmente mimetizam a realidade, vivem em "seu mundo"; além disso, focar mais no cantor do que as pessoas que estão apreciando o show não me parece criar uma sensação de liberdade ao público. De qualquer forma, com algumas estipulações que os partidos fazem, René consegue difundir a sua ideia de alegria e felicidade para motivar o povo a criar coragem a ter um futuro novo e diferente. Não quero discutir a eficácia das propagandas, já que historicamente sabemos que elas surtiram efeito, prefiro me ater as características retratadas no filme do personagem principal.
René, como já dito anteriormente, cria imagens de felicidade e alegria para incitar a população a se mobilizar. Sendo então o publicitário que é, percebemos que sua vida é criar simulacros da realidade para aparentar possuir certos aspectos que muitas vezes não tem. Isso de fato não é uma exceção para sua própria vida. A vida dele é quase um "American Way of Life", não? Os produtos e novidades ele tem, só falta ter a família. René pode até mesmo sentir algo por Verónica (Antonia Zegers) ou pelo seu filho, mas mesmo que tente fingir que sente, ele não parece expressar da melhor forma, o que quero dizer é que eu não gostaria de ter um pai assim, por exemplo. A vida dele é uma ilusão para os demais, para o trabalho (enquanto ele trabalha para um apoiador da campanha do Si, ele ajuda o No). O trabalho, a família representam a ele algo mais simbólico (como a publicidade é, cheia de símbolos). O exemplo que elucida melhor o sentimento dele pela família ou pela campanha é a da reunião pública do No em que a polícia começa a enfrentar algum dos integrantes, tornando-se rapidamente um pandemônio. A primeira frase que René solta é: "Porra, meu carro.". Não algo como um: "Porra, minha mulher está lá no meio" (já que ele ainda "sente" algo pela sua ex-mulher), ou "Filho, vamos sair daqui.", ou até mesmo, "Não revidem pessoas, mantenha o discurso pacífico.". Não é nada disso. Ele não liga para nada disso. A vida dele é um simulacro. Até mesmo no momento em que René aparentemente está "mais humano", que é quando ele sofre ao ver a ex-mulher com outro cara, mesmo sofrendo, ele não expressa nada a ela nem ninguém mais, e volta ao normal no dia seguinte. Nesta cena, vemos também que o trabalho dele, a campanha do No, invadiu a vida pessoal dele na figura da camisa do namorado da ex-mulher. Sendo assim, as duas coisas que deveriam ser as mais importantes em sua vida até então, estão crescendo, mas ele não está psicologicamente imerso em nenhuma das duas. E é por distanciamento que mesmo depois da derrota do ditador que René se mantém inerte ao redor da comemoração da vitória do No, que continua usando seus mesmos bordões, que prossegue vendendo da mesma forma.
Por último, mas não menos importante, alguns aspectos técnicos também ajudam a criar esse sentimento ilusório que metaforicamente envolverá toda a obra. Primeiramente, o uso da U-matic 3:4 (que dá o efeito aos pixels mais granulados e às cores mais borradas), cria esse ambiente mais antigo, até mesmo saudosista para as pessoas que viveram nessa época de júbilo, mas que também remete a publicidade, já que ela era usada com muita constância por essa profissão. A trilha sonora, composta unicamente de sons instrumentais, geralmente melancólicos, mostra esse conservadorismo (ditadura militar) ir se esvaindo. As câmeras sempre tremendo e se deslocando rapidamente e caoticamente, em que vemos as vezes personagens que estão falando não enquadrados inicialmente, levando um tempo para a câmera se movimentar ao seu foco. Todos esses cuidados criam essa sensação de um documento afetivo da época, como já dito um pouco antes, mas também, sendo artifícios da publicidade (casualidade, caseiro, dinâmica) enfatizam ainda mais esse simulacro, já que como um todo, temos um filme (simulacro 1) que conta a história de um personagem confuso (simulacro 2, como discutido acima), a partir de estéticas mais antigas (simulacro 3), que tenta a partir de telas de televisão e propagandas convencer as pessoas a acreditar nesse novo futuro (simulacro 4), retratando uma época passada (simulacro 5). Nesse momento vocês devem estar se perguntando: "Se o filme é todo um simulacro, se o personagem é também um outro simulacro, por que toda essa investida deu certo?" Porque as pessoas acreditam em ilusões. Quem nunca quis ser um astronauta, ou voar, ou procurar pela paz, ou viver feliz? Todos nós temos nossas ilusões, e gostamos de acreditar nelas, porque elas nos fazem continuar a viver, e criar novas expectativas. E é por isso que um simulacro dá certo, porque é justamente um simulacro.
Extra: algumas cenas são muito interessantes.
1) Em 1:33:53 temos a aparição de um arco-íris (símbolo do No) no meio dos embates, o que me faz pensar em duas coisas. Pensaram nisso e colocaram muito bem, ou foi simplesmente uma coincidência muito feliz. Colocar o símbolo da esperança no meio das revoltas é afirmar que embora o tempo atual (violência nunca é legal) seja difícil, tempos vindouros vão ser bem melhores.
2) Temos duas cenas que René anda de skate. Na primeira, a ditadura ainda não havia caído, então vemos um personagem andando para um ponto fixo no fundo, sem ninguém nas ruas e sem obstáculos. Logo após a comemoração da vitória do No, René anda novamente no skate, num "take" muito mais longo, repleto de pessoas, desviando de diversas coisas, com um câmera ainda mais tremida, acompanhando todo o movimento. Isso denota que as pessoas realmente foram tocadas pelas propagandas, que mesmo um simulacro (o movimento de René desviando de obstáculos representa metaforicamente essa ilusão criada para a realidade, a partir de ideias tortuosas). O semblante de René mostra que ele sabe que tudo isso foi um simulacro, por isso a expressão dele até mesmo na comemoração.
Biutiful
4.0 1,1KFalarei sobre o próprio Biutiful, traçando panoramas gerais com a obra de Iñárritu, então haverá spoilers (só do Biutiful)!
Para quem já viu outros filmes de Alejandro González Iñárritu, fica claro os temas com que o diretor gosta de trabalhar, tanto como a forma como ele os aborda. Um pouco diferentemente dos filmes que precederam Biutiful, este filme tem um enlace de histórias um pouco mais moderado, se concentrando em sua maior parte em Uxbal (Javier Bardem). A dinâmica de filmes como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003), em que vemos várias histórias que se cruzam num enredo maior, dando a sensação de que a vida é uma gama de relações mais complexa do que podemos imaginar, é muito mascarada nessa obra, justamente para nos impelir a sentir mais dó de toda a situação. O que nos leva a ver como Iñárritu transparece o mundo em seus filmes: o pessimismo. Desde Amores Brutos, vemos personagens frágeis, marcados por algum sofrimento passado, essa angústia de viver cada dia sem conseguir mais levar adiante; não há exceção nem às crianças, visto que elas estão imersas numa família totalmente desestruturada. Essa forma tão negativa de se ver o mundo, com o fato de ele ter crescido num país onde grande parte da cultura é influenciada por um tom altamente melodramático, acabam por criar uma obra, por vezes sensível, por outras artificial.
Nesse filme, Iñárritu tenta utilizar-se de uma dinâmica já recorrente em outras obras dele, ao contar parcelas futuras do filme, logo no início dele. A cena inicial é de uma sensibilidade imensa, já que somos colocados em 'close' com duas mãos numa cena de carinho e de falas amendoadas. A cena embora escura, tem um brilho ameno que a deixa ainda mais casual, acentuando essa sensação de aproximação. Com o decorrer do filme, vamos imaginando que esta cena retrata Uxbal conversando com Marambra (Maricel Álvarez), no entanto, pelo final do filme, somos totalmente contraditos com a figura da filha. Um detalhe importante na história do anel é outro tema recorrente na obra de Iñárritu: a continuidade das gerações. A história acerca do anel começa com o pai de Uxbal que passa para sua mulher, esta estando grávida, antes de fugir para o México. Uxbal, anos mais tarde, receberá o anel da mesma forma que sua mãe. No final derradeiro do filme, vemos que Uxbal mantém esse ciclo de continuidade. Isso é visto também nas falas de outras personagens e dele próprio ao dizerem que não querem que seus filhos tenham a mesma vida pela qual passaram (Uxbal perdeu os pais precocemente, e não quer deixar os filhos a sós no mundo como ele mesmo ficou. Ige (Diaryatou Daff) diz que o lugar de pessoas do seu "tipo" não é na Espanha, e não quer que o filho viva como o pai viveu. O filho de Lili (Lang Sofia Lin) acaba morto da mesma forma que a própria mãe). Mais uma vez, esse tema não trabalhado unicamente neste filme (em Amores Brutos o filho do irmão de Gael García Bernaz vive uma vida medíocre num lar também desestruturado. E por fim, os filhos marroquinos estão basicamente fadados a viver daquele modo que os pais viveram, e prosseguir assim ciclicamente). Essa questão determinista, de que as próximas gerações viverão conforme os antepassados viveram é outro fator que contribui para o aumento do pessimismo em suas obras.
Prosseguindo então na primeira cena, vemos todo esse clima de afago ser totalmente substituído por uma floresta coberta de neve, que costumava ser somente água salgada. Repare nessa informação: "água salgada". Uxbal desde o começo do filme infere que tem um certo temor do barulho e da própria figura do mar, não é a toa que quando chega o seu momento de morte, ele esteja num desconforto imenso, sobre o que originalmente seria o mar. Esse não é o único momento em que o mar "amedronta" nosso protagonista, para ser bem sincero, o filme inteiro dialoga com esse pavor dele, já que ao decorrer de toda a obra vemos imagens que remetem ao mar. Temos por exemplo, um adesivo de peixe na parede de seu banheiro, um aquário luminoso no quarto de seus filhos, uma parede totalmente pichada na forma de um tubarão que está prestes a engolir um barco, várias televisões mostrando baleias encalhadas, e os próprios filhos dizem que estão cansados de só comerem peixes. O filme inteiro espanta esteticamente o nosso protagonista, criando a sensação de perigo constante ao lançar imagens que remetem a esse pavor ao personagem. Outra forma de criar essa mesma sensação está presente no filtro e nas próprias cores do filme. A todo momento, vemos paredes, céus, mares, roupas e objetos pessoais na coloração azul; quando não, a própria cena tem uma iluminação pendendo para uma matiz mais azul (não é à toa que Iñárritu levou 14 meses para editar este filme). Portanto, percebemos que não é somente a angústia do personagem que nos faz sentir mal o filme todo, mas é o próprio filme que cria essa sensação, nos sufocando de imagens perigosas ao personagem. O único momento em que não vemos esse filtro azulado, ou mesmo objetos em azul é na cena em que a família parece estar melhor, tomando os sorvetes. Se formos perceber, esse é o único momento de alegria do filme todo, já que a desgraça é como se fosse a respiração de uma pessoa nesse filme.
Outro ponto importante na obra de Iñárritu é a forma como ele une camadas sociais e etnias menos favorecidas num mesmo filme (Em Babel temos os marroquinos na extrema miséria e a japonesa surda, embora eu pessoalmente ache que esse filme seja muuuuito forçado na forma como as ligações são feitas. Em 21 Gramas temos garotos de rua que são instigados a se converter ao cristianismo. E em Amores Brutos, temos um mendigo esfarrapado, além de personagens que vivem a partir da clandestinidade da briga de cachorros para sobreviver). Este filme não é uma exceção, já que vemos imigrantes chineses sendo explorados em condições desumanas, senegaleses que vivem da venda de objetos falsificados e drogas para sobreviver, além do próprio protagonista que media todas essas ligações. Além disso, eu senti algo que não havia sentido nos outros filmes: uma crítica à autoridade da polícia. A crítica é bem aparente na figura do policial corrupto, que aceita o suborno, mas ela é ainda mais forte na brutalidade com que os policiais perseguem os senegaleses, numa das tomadas mais belas de tristes do filme, e a seguir, prende os chineses. Numa época em que várias pessoas questionam o papel da polícia na sociedade, esse filme parece cair de barriga nessa crítica. No entanto, eu acho que mais do que a crítica à polícia, temos outra que é ainda mais forte, também representada na figura daquele policial corrupto: uma crítica ao sistema (Tudo bem, agora joguem as pedras em mim... eu sei que falar que há crítica ao sistema é algo já bem clichê, senão argumento de quem não tem argumento, mas aquela fala que o policial diz que ele faz isso porque de outra forma não conseguiria sobreviver me instigou bastante). Um sistema que não consegue nem dar as mínimas condições de sustento para os trabalhadores que mantém a ordem no Estado; eu acho que mostrar isso para criticar o sistema é até mais forte do que mostrar pessoas menos privilegiadas totalmente sem prognóstico de futuro.
Por fim, o enfoque espiritualista pode vir tanto das alucinações do câncer, pode mesmo ser algo que ele tenha capacidade, ou mesmo mais uma das formas que ele se utiliza para enganar os outros em troca de dinheiro. Uma coisa é certa, depois de toda essa análise, temos um sentimento dúbio em relação ao protagonista, pois ao mesmo tempo que ele é uma figura a se sentir pena, que se importa com a vida dos demais (comprando o aquecedor aos chineses, ou ajudando Ige depois da prisão do marido), vemos um cara que como qualquer outra pessoa, precisa sobreviver nesse mundo de adversidades, muitas vezes fazendo coisas que ele mesmo poderá se arrepender. Num plano maior, todas as pessoas no mundo de Iñárritu são miseráveis, e todas criam sentimentos dúbios ao espectador (sentimos pena de Ige, mas ao mesmo tempo ela deixa Uxbal e seus filhos para trás para retornar a seu marido e país de origem, para tentar recompor a vida). O que ele tenta retratar a nós é que mesmo que tentemos resolver todos os problemas antes de nossa morte e ser a melhor das pessoas que já pisaram no mundo, sempre cometeremos algo imoral, mesmo que sem a intenção, para manter a própria integridade ativa. E é isso que o final do filme retrata. Se Uxbal tivesse conseguido resolver tudo o que tentou até o fim da vida, a sua morte seria uma morte relaxada, uma morte calma, e ele não estaria entrando nesse "mundo dos mortos" num lugar totalmente azul, na presença do fantasma do pai dele que assolou seus pensamentos a vida inteira, sobre um local que antes era repleto de água salgada. Até aí a visão do filme seria bem pessimista, algo a se chorar e se perguntar o porquê da vida ser tão sem sentido assim, no entanto, Uxbal diz a última frase: "O que tem ali?". No mundo dos mortos há uma esperança, uma esperança que pode deixar de lado todo o passado triste, que no caso é retratado pelo quadro das árvores solitárias no filtro azul. E o mais incrível desse final é o fato de Iñárritu não mostrar o que Uxbal vê, fazendo então com que nós imaginemos o que nos espera não só no mundo dos mortos, como no nosso próprio futuro. A maioria das histórias com que Uxbal estava envolvido, acaba de uma maneira seca, muitas vezes sem resolução, o que mostra que essa conclusão que Uxbal queria dar aos seus problemas nem sempre é certo, e muito complicado. O filme pode pecar bastante nos 'takes' altamente melodramáticos, mas acontecimentos não tão espalhafatosos quanto os dos outros filmes fazem com que esse seja o filme de maior aproximação sentimental. O que sinto que faltou um pouco nesse filme, embora tenha tido toda essa complexidade visual, foi uma maior dinâmica nas relações entre as personagens que é perfeitamente bem feita em Amores Perros e 21 Gramas, mas que não tira o fato de este ser um ótimo filme.
O Sétimo Selo
4.4 1,0KVer uma obra como essa é algo realmente complicado, e dependendo da profundidade que tentamos decupar o filme, temos opiniões diferentes. O que para alguns pode parecer simplista, pode maravilhar outros. O que farei a seguir, é expor algumas impressões acerca da técnica utilizada, do contexto histórico do filme, traçando panoramas com a situação que a Europa passava na época, e das figuras alegóricas que recheiam toda a narrativa. Cabe então a você decidir se essas imagens embelezam ou não acrescentam nada às suas impressões... (Detalhe: spoilers à vista! ;) ).
A primeira barreira que pode causar um certo estranhamento a nós é o fato do filme ser inteiramente P&B. De fato, juntando isso com o estilo de filmagem europeia ('takes' mais longos, câmeras com poucos movimentos e poucos cortes), o filme pode não agradar os mais influenciados pelo cinema hollywoodiano, mas assistir ao filme com esse pré-conceito, pode deixar passar grandes detalhes que só agregam valor à obra aos olhares desses cinéfilos mais despercebidos. A ausência de cores, quando bem trabalhada, pode criar uma sensação que o cinema atual não consegue reproduzir: a imaginação dos sentidos. No P&B, enfatizar que as maravilhosas amoras que o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow) degusta são roxas, nos faz criar uma imagem na cabeça de uma cor bem forte e vívida, que condiga com a formosura expressa nas palavras da atriz Mia (Bibi Andersson) ao descrevê-las. Da mesma forma que olhar para a expressão de alguma personagem no filme, nos faz imaginar o sentimento dela, a ausência das cores faz com que o ambiente seja entendido por nós de uma forma muito mais fundamentada, justamente por termos um trabalho a mais de imaginação. Outra função do P&B neste filme dialoga com o papel do xadrez no filme. É certo para todos que as cores do tabuleiro e das peças são justamente, o preto e o branco. Sendo assim, a utilização dos mesmos tons para o filme todo, indicam que o significado do xadrez se expande esteticamente para o resto da obra. Mas antes de explicar o papel do jogo de xadrez, vamos contextualizar um pouco as aflições e o que move Antonius por toda essa derradeira jornada.
Antonius, como vários outros nobres, acaba de combater em nome de Deus nas Cruzadas. E após várias batalhas, que o próprio escudeiro (Gunnar Björnstrand) considera, infrutíferas, eles começam a retornar à seu castelo. Até aí, uma história bem recorrente desde os primórdios (a própria Odisseia retrata o retorno de Odisseu à casa após as guerras da Ilíada). O que dá um diferencial à narrativa é a forma como cada personagem vai lidar com todos os acontecimentos recentes, e como vai levar a vida daí adiante. Com o acréscimo da figura da peste, que historicamente, não ocorre no mesmo momento que as pós-Cruzadas, mas que Bergman utiliza-se desse para enfatizar ainda mais o sofrimento daquelas pessoas. O então cavaleiro, desacreditado das conquistas da guerra, vendo que o sofrimento e a morte estão perto, começa a se questionar sobre seus grande feitos, sobre o conhecimento adquirido, e principalmente, sobre a religião e a existência de Deus. A vinda da Morte é tanto um sinal de alerta ao cavaleiro, como a de alívio, já que ele acreditava que a busca pelo conhecimento que ele ansiava poderia ser respondida pela figura poderosa da Morte. No decorrer de todo o filme, o cavaleiro busca a partir de tentativas diferentes confirmar que a pessoa em nome que ele lutou realmente existe, seja perguntando para a Morte, seja com a garota que diz ter falado com o Diabo, ou mesmo com o que ele achava ser o padre, mas que depois se mostra a própria Morte. Por sua vez, Jöns é um cara muito pragmático, que consegue reunir pessoas com uma grande facilidade e que muito diferente de seu cavaleiro, não perde tempo se questionando sobre a vida. Em algumas cenas do filme, os papeis dos dois parece se inverter, já que temos um escudeiro muito mais impositivo e bruto que o indivíduo que, na verdade, deveria mandar nele. Essa é uma crítica forte a elite sanguínea, que não lutou pelas suas comodidades e que muitas vezes se vê num papel totalmente adverso ao que realmente deveria ter. Então, enquanto de um lado temos a figura de um pensador, um indivíduo que teme não ter por que viver, e mais do que isso, não conseguir achar a resposta dessa questão, independentemente dos esforços que fizer, do outro, ficamos com um homem mais decidido, que prefere agir a ficar resignado diante de maus atos cometidos no passado. É de grande estranheza achar figuras desse tipo na época em que o filme é retratado, não? De fato, essas são duas alegorias modernas; alegorias vigentes na época em que o filme foi produzido, na época da Guerra Fria. Enquanto de um lado temos os idealistas (Antonius), do outro temos os realistas (Jöns). Assim como no filme, são os realistas que movem a sociedade, são eles quem decidem como uma unidade de poder deve ou não proceder, mas são nas eras de crise, como as Cruzadas, que os idealistas, a partir de seus questionamentos, levantam hipóteses da identidade do erro. Num mundo contemporâneo em que a bipolaridade prevalece, os estados não andam à frente, justamente por não haver um consenso entre os dois lados, o que vale da mesma forma para essas correntes. Sendo assim, a melhor personalidade que as protagonistas do filme poderiam ter, seria justamente a mistura de Antonius com Jöns. No entanto, mesmo possuindo essa balança de personalidade, ninguém conseguiria alcançar esse conhecimento que Antonius tanto procura.
Você deve estar me perguntando agora: "Você fez toda essa volta para caracterizar a melhor postura que o ser humano poderia ter, desmentiu-a e não concatenou com a ideia inicial do xadrez. O que você está querendo dizer com tudo isso?". O que eu tenho a dizer é unicamente: "Calma, tudo fará sentido.". Antonius propõe então um jogo de xadrez com a Morte, tanto para postergar narrativamente a sua morte (já que desde o encontro inicial com a Morte, ele já estaria fadado a morrer), como para tentar entender o sentido da vida, atestar a existência de algumas figuras e realizar um último ato que ateste que sua vida foi boa. Esse jogo de xadrez percorre o filme inteiro, sendo assim, percorre todo o restante da "vida" do cavaleiro. O xadrez é então a metáfora para a vida, a vida que minimamente perdida, não se cansa de lutar, visto que o importante não é a morte/conformação/rei, mas sim o processo com que ganhamos ou perdemos. Tratando-se da Morte como adversária, sabemos que o destino é a da derrota. No entanto, Antonius não percebe que ao invés de se questionar sobre o porquê de já estar morrendo e não ter conhecido tudo o que queria, o que ele deveria estar fazendo era justamente viver, assim como o seu escudeiro o faz. É claro que como já discutido anteriormente, a forma como se deve viver deve ser permeada de algumas privações, mas que o mais importante é saber aproveitar o processo, pois como o próprio filme ilustra: no fim, todos (elite, artesãos, trabalhadores, clero), até mesmo os artistas que aparentemente fugiram, mas que na verdade só não foram levados ainda, morreram. Como visto anteriormente, disse que mesmo tendo as qualidades que ambos Antonius e Jöns têm numa única pessoa, a capacidade de chegar nesse conhecimento seria intangível e se aplica perfeitamente a essa ideia de morte. O conhecimento que cada um deles quer, pode ser diferente, no entanto, não tira o fato de ambos quererem algum conhecimento. E é aí que a figura dos artistas entra. Os artistas são aparentemente a única parcela da sociedade que não se importa com a peste, com o que foi a guerra e o que ela representa (ridicularizando-a em forma de teatro); eles são a representação da ignorância. A ignorância que acalma pela única vez o cavaleiro, ao oferecer as amoras e o leite, a ignorância que consegue se levantar em tempos adversos com um simples sorriso do filho, a ignorância que por não tentar buscar esse conhecimento, sorri e vive como se nada estivesse acontecendo. O que Bergman faz aqui não é dizer que ser ignorante é o que todo ser humano deve ser, o que ele diz é que a ignorância faz com que nosso processo até o fim seja mais leve, menos angustiante, visto que os ignorantes terão o mesmo fim que os demais. Perceba que seguir isso é uma escolha, mas que não é a única forma de seguir a vida. Se todos fossem iguais desse modo, a vida seria um grande plágio. Essa diversificação de personalidades é a beleza da humanidade, e o que Bergman mostra aqui não é que a personalidade de Jöns é melhor que a de Antonius, ou que as dos artistas transcende as dos demais, mas que dependendo da escolha que cada um fizer, o processo até esta Morte (aqui podendo ser tanto maiúsculo como minúsculo, de acordo com a lógica do filme) é mais, ou menos doloroso. Ou seja, cada um deve viver a vida da melhor forma que entender.
Agora que já entendemos o raciocínio do filme, mesmo que ele não deixe uma mensagem clara como outros filmes hollywoodianos fariam (entenda, é a segunda vez que comparo com essa indústria de cinema totalmente diferente, mas não a reduzo. Há muita qualidade nesse meio, sem dúvida alguma.) podemos partir para o último tópico da discussão, o tópico que Bergman "amava": a religião. Como visto muitas vezes acima, Bergman critica várias parcelas da sociedade, mas não há uma figura que haja mais críticas como essa. Para começar, é bem claro que o monge (Anders Ek) é para onde são direcionadas o maior número de críticas. A pessoa que convenceu o cavaleiro a lutar nas Cruzadas, a figura sagrada que todos os cidadãos respeitam, transforma-se num batedor de mortos, estuprador de mulheres e a pessoa que ridiculariza o próximo. Só isso, destrói toda a figura santa e sagrada desses indivíduos, que assim como a elite sanguínea, possui privilégios, totalmente desmerecidos. Outro ponto bem incisivo é a forma como os flagelantes e os inquisidores (as pessoas que queimam a bruxa) são retratados. Esses grupos que deveriam ser só mais um ramo da Igreja, se mostram figuras quase que demoníacas, por serem tão sombrias. Além disso, Bergman retrata como o fanatismo (algo que deve ter sido influente na família dele) leva as pessoas à total intolerância; preceitos totalmente opostos aos difundidos pela Igreja. E por fim, critica os próprios fiéis, que são retratados numa sociedade de aparências e machista (as mulheres são retratadas como simples objetos, para estupro e posse), em que diferentemente do que a religião diz para seguir, fornicam, estupram e difamam. Criticando então desde o alto escalão até as bases da religião, Bergman mostra uma análise bem pessimista do que é ser religioso nesta época, e mais do que isso, a refuta.
Esta grande obra pode não te maravilhar, ou pelo contrário, pode magnificar, mas é com certeza um trabalho de grande primor e cuidado, seja aceitando a postura religiosa dele ou não, ou mesmo, acreditando na figura mística da Morte, ou considerando-a como somente a personificação da peste, que leva rápida e indiscriminavelmente.
O Silêncio dos Inocentes
4.4 2,8K Assista AgoraEsse comentário terá muitos spoilers...
De vez em outra, nos deparamos com filmes fora do eixo angariando premiações por todos os lados. O Silêncio dos Inocentes é um ótimo exemplo de uma obra dessas; e não é por menos, já que temos atuações mais do que memoráveis. Primeiramente, vemos uma garota indefesa, engajada e sonhadora, como a que Jodie Foster vividamente reproduz (a cena em que Clarice Starling (Jodie Foster) se encontra pela primeira vez com Jack Crawford (Scott Glenn) ilustra bem essa garota dedicada, embora inexperiente, simplesmente pela forma de agir, com passos sempre bem ritmados e perpendiculares, como se fosse um robô programado a realizar determinadas tarefas. Além disso, vemos uma garota trajada com roupas mais simples, sem serem chamativas, denotando esse caráter mais recolhido e isolado que a personagem vai desenvolvendo no decorrer de todo o filme). Para continuar, nos vemos pressionados psicologicamente por a figura imponente e segura de um homem de meia-idade, com olhos sempre fixos e passos mais regrados ainda do que os de Clarice. Todo esse porte do Dr. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) é ainda prosseguido de uma fala pausada e forte nas sibilantes, dominado de trejeitos bem frios e calculados. O que cria a sensação ainda mais aterradora é o trabalho de câmeras que pega o personagem sempre muito próximo em câmeras subjetivas (que seriam as câmeras que retratam o que o personagem vê em primeira pessoa), como se Hannibal fosse invadir não só a privacidade de Clarice, como a nossa própria, já que nós vemos o que ela vê, e por conseguinte, sentimos o que ela sente.
Outra das categorias bem aclamadas nesse filme foi a de roteiro, e de fato, temos aqui um roteiro ao mesmo tempo misterioso, andando a passos largos e nos fazendo descobrir a cada nova cena uma peça que no final se encaixará no grande quebra-cabeça do filme, caracterizando assim um filme típico de thriller, quanto uma história envolvente que juntamente com o trabalho de direção de fotografia e de direção (o porquê disso será explicado mais adiante), nos prendem de forma tão incisiva que não perdemos a tensão em único momento sequer, já que a cada novo momento vemos um novo acontecimento trará novas consequências e que em ciclo, nunca cessará até mesmo após o final do filme. A trama se baseia na personagem de Clarice, que inicialmente ingênua da situação como um cordeiro, acaba sendo colocada aos pés de toda um emaranhado de doentes mentais para resolver um caso que vem causando dores de cabeça ao alto escalão do FBI e à própria população. Repare que eu disse "como um cordeiro", e o filme realmente traça um panorama entre a imagem de um acontecimento passado na vida da protagonista com a de algo puro, ela mesma, sendo maculado pela sociedade distorcida. Como a própria história se desenrola, Clarice, como Hannibal muito bem pontua, acredita que resolvendo o caso de Buffalo Bill (Ted Levine) e salvando a vida de ao menos uma garota, sanará o pesadelo ocorrido na fazenda dos tios. Ao finalmente vermos Clarice alcançando seu objetivo, vemos uma garota mais relaxada e suavizada, no entanto, essa falsa ilusão que criada por ela, para ela mesma mascara o fato de que ela nunca irá conseguirá superar tal passado, pois uma vez maculada, não haverá caminho de volta. Essa ideia é realmente transposta para o contexto geral do filme e para nossas próprias vidas, já que tendo melhor noção de como as coisas funcionam no mundo, percebemos que traumas, felicidades e sonhos passados são lembranças, sendo portanto, questões atemporais que ficarão guardadas em nossas vidas, independentemente do que façamos para apagá-las; conseguimos no máximo, mascarar ou ignorá-las, como Clarice bem faz, mas nunca esquecê-las.
Outra questão bem presente nesse filme é a sanidade de cada indivíduo. Será que traumas em nossas vidas despertam atitudes psicopatas, como acontece com Buffalo Bill? Se fosse assim, Clarice, como qualquer um de nós, poderíamos ser muito bem psicopatas também. É aí que nos perguntamos, o que é um psicopata? Será que realmente não somos um? Um psicopata é uma denominação criada pela sociedade para categorizar indivíduos que não se adequam às leis e posturas aceitáveis. Dessa forma, psicopatas não existem fora de uma sociedade, e dependendo de cada organização, podemos ter indivíduos considerados psicopatas com tendências diferentes. Este tema é, com certeza, muito polêmico, no entanto, as formas com que podemos retratá-lo são inúmeras, e me parece que nesse filme, a principal questão acerca deste assunto não é a das origens de uma psicopatia (mesmo que Hannibal dê várias suposições de como uma possa se formar), mas sim essa mesma discutida anteriormente de um questionamento de o que e quem pode ser categorizado um doente mental. Hannibal é um bom exemplo disso: vemos uma pessoa extremamente racional, culta e persuasiva. Por que Hannibal é mais psicopata que Frederick Chilton (Anthony Heald), já que este se demonstra alguém altamente emocional, explosivo e irascível? Eu acho que esse questionamento é por si só, já bem assustador, pois tira a representação caricatural do que venha a ser um psicopata, e expanda o conceito a vários novos horizontes.
Toda essa manipulação de Clarice em vias de conseguir a ajuda necessária para a captura de Buffalo Bill esconde uma crítica muito bem arquitetada, muito por algumas cenas em específico, da sociedade machista opressora das mulheres. Clarice está praticamente envolta de um universo de homens que ora se mostram corteses, como o próprio Hannibal, e ora se mostram lascivos, como Miggs (Stuart Rudin) bem caracteriza. O filme todo vai mostrando esse ambiente opressor a partir de cenas um tanto quanto alongadas, em que temos uma sensação de angústia no ar, já que vemos homens cercando Clarice de uma forma atípica (a primeira cena em que vemos isso com clareza, é quando Clarice entra num elevador, e se vê rodeado de vários homens vestidos em vermelho - 04:10. Essa imagem de roda aparece mais tarde também na casa em que os agentes analisam o corpo já morto de uma das vítimas de Buffalo Bill, com vários policiais dentro do cômodo - 39:25. Outra cena em que vemos isso acontece antes de Clarice se encontrar com Hannibal pela primeira vez, em que uma câmera subjetiva vai mostrando o olhar tenso dela no local em que estão os seguranças do manicômio - 10:55). Outra forma de retratar esse desconforto acontece no toque das mãos, em que vemos um Hannibal acariciando a palma da mão de Clarice (1:13:35) e uma câmera fixada no cumprimentar de mãos entre Clarice e Crawford (1:51:45). E por fim, mais uma vez o trabalho de câmeras subjetivas pegando em um close muito próximo a pessoa a frente, mostra esse homem que parece tentar invadir a privacidade de Clarice a todo momento. Podemos criar uma analogia da mulher nessa sociedade machista com a mariposa em seu casulo. O casulo é um envoltório que protege esse inseto das adversidades do exterior, no entanto, estando nesse invólucro, a mariposa não tem poder sobre si mesma, não tem a liberdade, permitindo então que esse exterior possa muito bem controlá-la. A sociedade cria leis e normas que atestam uma defesa à mulher. No entanto, estando nesse "casulo", a mulher, assim como a mariposa, está mais indefesa do que protegida, retratada também nas vítimas de Buffalo Bill, que aproveitando dessa fragilidade vem a cometer seus atos sobre estas. A mulher ainda hoje é vista por muitos como alguém inferior ao homem, alguém que deve ser submissa ao controle destes, e esse filme ilustra muito bem o quanto a mulher sofre nesta sociedade atual nas mãos daqueles. Atualmente, vemos vários movimentos feministas que lutam pelo direito da mulher, pela igualdade de gêneros, e é imprescindível, que nós, homens, não só aceitemos esta luta, como ajudemos a compensar esta figura historicamente prejudicada na sociedade, a ascender e se equivaler ao papel do homem.
Acho que o fato da premiação à direção do filme já foi muito bem exemplificada, mas se por acaso, você ainda não concorde com isso, aqui vão mais algumas cenas. Logo no começo do filme, nos deparamos com a figura de uma garota correndo pela floresta. Esse desenvolvimento de uma personagem isolada e indefesa, se dá muito bem pelo contraste de um humano com a figura de uma natureza imponente que parece engolir Clarice. Além disso, nesse momento do filme, ainda não vemos as câmeras próximas que controlarão o resto do filme. Por ora, vemos uma mulher sempre longe e afastada do primeiro plano, como se ela estivesse fora do ambiente que a cerca, denotando então esse isolamento. Essa natureza que aflige Clarice, tomará conta dela de novo na conclusão do filme, já que a cor dominante na perseguição de Clarice a Buffalo é a verde, a mesma da natureza (seja na cor da tinta das paredes da casa, ou mesmo no visor de Buffalo, alcançando o ápice dessa insegurança de Clarice, ao vermos ela totalmente aterrorizada). Nessa casa, vemos papeis de parede de flores, folhas e insetos dominando o local. Toda essa atmosfera não quer mostrar que a natureza oprime Clarice, como a figura dos homens, anteriormente citados, mas que essas imagens funcionam metaforicamente para expressar os momentos em que Clarice está mais vulnerável. Um outro momento em que vemos um incrível trabalho técnico do diretor é na hora em que Clarice mostra a falsa proposta da senadora a Hannibal (52:10). Nessa cena, diferentemente das demais, vemos um Hannibal encolhido num canto escuro de sua cela. Vemos também a figura segura e altiva de Clarice ao relatar toda a proposta. Ela, estando de pé, em linguagens cinematográficas, está numa posição superior a de Hannibal, dominando portanto a situação. A partir do momento que Hannibal descobre a farsa, Clarice se senta, denotando assim um pé de igualdade que momentos depois será controlada mais uma vez por Hannibal. E se você ainda não está convencido, analisarei a cena mais impressionante do filme todo, tanto em aspectos técnicos quanto semânticos.
A cena começa com Clarice descendo as escadas do manicômio com Chilton em direção a cela de Hannibal. A cena em que ele mostra o estrago causado por este na enfermeira ao queixar-se das dores é dominada por uma luz vermelha sobre suas cabeças, além de uma trilha sonora mortificada, que se assemelha aos dos corredores da nave de Alien, o Oitavo Passageiro (1979). Todos esses efeitos ajudam a criar a tensão na cena, nos fazendo criar uma imagem horrível do que tenha acontecido à enfermeira, e mais ainda, imaginar Hannibal como uma figura quase satânica. Logo após isso, adentramos o local dos seguranças já supracitado, e vamos juntos com Clarice caminhar pelo corredor que leva até a cela de Hannibal. Toda a cena foi feita para criar uma tensão enorme, ao juntarmos os efeitos contidos nela, com toda a informação já dada anteriormente sobre o doente mental que iremos encontrar: o primeiro efeito que já citei aqui milhares de vezes, que logo salta aos olhos, é o da câmera subjetiva. Vemos que toda a tensão de Clarice é expressa no tremer das câmeras que observa cada novo louco com um olhar aterrador. A cadeira no final do corredor funciona como o lugar onde Clarice tem que chegar, mas que ao mesmo tempo precisa evitar. Olhar para a cadeira a cada novo 'take', é por si só angustiante tanto para ela quanto para nós. O último efeito que conseguimos perceber é algo chamado "Efeito Kuleshov" (imagine um rosto sem emoções na tela. De repente vemos uma câmera subjetiva de um bebê brincando com seus brinquedos. Voltamos para o rosto sem mudanças de expressões. Logo após isso, a câmera subjetiva agora foca numa criança estirada morta no chão, o que é seguido de novamente um foco no rosto mais uma vez sem expressões alguma. A ideia desse efeito é criar a sensação do que o indivíduo sem expressões sentiria ao ver tais imagens. Sendo assim, no primeiro caso, a pessoa sente uma sensação boa ao ver a criança brincando, o que não acontece no segundo caso. Nele, o que aconteceria se assemelharia mais a um sentimento de desgosto e pena. Esse efeito é muito bom, pois ele nos faz imaginar o que a personagem sente, fazendo assim com que nós sintamos a sensação também. Existem uns exemplos desse efeito no YouTube ou no Google para quem se interessar. Vou deixar um link no final do comentário com um deles). Pois bem, o efeito Kuleshov é bem presente nesta cena, fazendo com que criemos toda uma imagem aterradora de Hannibal, já que a cada novo louco, temos uma sensação pior ainda. Toda esta cena que acabei de descrever faz com que imaginemos a figura do diabo em pessoa em Hannibal. A expectativa é alta. Mas o que vemos é um senhor com uma ótima postura, num quarto bem iluminado, contrastando com toda a ideia que vínhamos criando dele até então no filme.
O Oscar comete várias injustiças no decorrer dos anos, mas em 1991 ele foi perfeito, premiando com as 5 principais categorias esse filme senão maravilhoso, angustiante.
Efeito Kuleshov: https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc
Lucy
3.3 3,4K Assista AgoraEmbora o filme tenha tido muitas críticas, a ideia que o filme consegue criar, mesmo preponderando-se de ação é muito interessante. Criar um mundo onde um indivíduo consiga acessar qualquer informação existente é, sem dúvida, de extrema complexidade para um humano qualquer, senão angustiante, já que saber de tudo, e não ter ninguém com quem discutir ou capaz de entender, é algo realmente decepcionante. Uma pergunta muito pertinente a se fazer não é o que Lucy (Scarlet Johansson) poderia fazer tendo conhecimento de tudo que agora sabia, mas sim o que a humanidade faria ao receber ele. Criaria mais armas, formas de energia, água, o que poderia gerar mais guerras em busca do pleno poder? A humanidade finalmente agiria em conjunto para o futuro de todos os indivíduos? Nessa sociedade será que conseguiríamos por em prática ideias utópicas como o comunismo e a paz? Todas elas são respostas além de nossa capacidade imaginativa, mas de fato é algo interessante a se questionar.
Outra partícula legal nesse filme são as imagens expressas nele que, ora substituem o contexto que antes se passava. De fato, elas são bem importantes para o andamento do filme, já que elas serão as responsáveis por despertar todo esse conhecimento em Lucy, e por conseguinte, tanto despertar um maior interesse em nós, como para explicar todo o processo pelo qual Lucy. Embora muitas delas sejam bem clichês, como a do guepardo correndo atrás da gazela (cena que podemos ver em filmes como Assassinos por Natureza (1994)) ou a da "Criação de Adão", de Michelangelo que mais tarde será parafraseada no próprio filme (esta cena então, vemos em milhares de filmes, até chega a cansar, E.T. - O Extraterrestre (1982), Tenacious D - Uma Dupla Infernal (2006), e até mesmo em Laranja Mecânica (1971)). Essas cenas, que muito se assemelham a clipes de músicas pop atuais, embora as vezes típicas servem para dar toda uma dinâmica a esse filme, que dialoga com as cenas rápidas de ação pela qual a personagem passa.
Lucy é a prova de que um filme altamente comercial pode também trazer questionamentos muito válidos para a nossa vida. E mesmo que ele não desenvolva de uma forma detalhada as personagens, como a figura de um Morgan Freeman totalmente submisso e sem qualquer humanidade e ação nenhuma, diante de uma figura tão impressionante como a de Lucy. E mais do que nos perguntar como obtemos tal conhecimento, é nos questionar como o utilizaríamos, como o professor Norman (Morgan Freeman) pontua muito bem: "We humans are more concerned with having than with being.". A resposta de como deveríamos proceder é simples: "I am everywhere", nas relações interpessoais, na natureza, na ciência, nas crenças, ou seja, em tudo.
Uma Aventura LEGO
3.8 907 Assista AgoraO comentário contém spoilers...
Diferentemente do filme Os Estagiários (2013), em que víamos uma propaganda mais do que descarada da Google, Uma Aventura Lego consegue expor todo um enredo bem dinâmico, sem de maneira alguma, aparentar ser algo expositório (curiosidade: em nenhum momento do filme, a palavra "Lego" é dita). Só isso já mostra todo um trabalho de colocar o nome da obra à frente do nome da empresa.
As referências são inúmeras (DC, Senhor dos Anéis, figuras históricas), mas o mais divertido, é o filme ir adentrando em cada novo mundo sem se enrolar, nem sendo simplista (coisa que por exemplo em Detona Ralph (2012), o filme se extende muito no mundo das guloseimas, deixando de lado uma enorme gama de gêneros de jogos que podiam ser explorados).
O filme permeia todo um mundo satírico (criticando a robotização dos indivíduos, em que toda ideia original é brutalmente reprimida). Vemos também um mundo obtuso, encarado de forma natural, como visto no preço exorbitante dos cafés, mas que não causam nenhuma sensação indignada nos habitantes, seja pelo sistema de governo, ou pela naturalidade das coisas. Todo esse mundo mágico, de construtores, tenta quebrar com essa pacatez e linearidade de um comandante ditatorial. Conforme vamos andando no filme, percebemos a mente criadora de todas esses enlaces, e a metalinguagem transcrita ao mundo Lego. Ver toda essa caoticidade é de total sentido para a mente de uma criança que se vê sem a presença de um pai por perto. E mais do que isso, o final pontual (para o mundo do Lego) faz bastante sentido, já que as transformações neste mundo provém da cabeça dessas pessoas que estão brincando no mundo real. Toda essa metalinguagem funciona de uma forma cativante e engraçada (já que o Presidente Business é nada mais, nada menos que Will Ferrell, famoso por satirizar profissões que demandam uma maior formalidade e cuidado).
Achar o filme engraçado ou empolgante vai depender do quão familiarizado a pessoa está com as personagens que aparecem no decorrer do filme e com o próprio mundo de Lego, no entanto, é certo afirmar que a construção do filme funciona muito bem, seja pela origem dos acontecimentos (a cabeça da criança), ou pela própria criação de um sentimento de desprendimento de uma sociedade totalitária, mesmo que contendo um cunho mais imaginário e fantasioso.
Os Amantes Passageiros
3.1 648 Assista AgoraCriar um filme de comédia que não te faz rir, com uma narrativa mais água com açúcar possível, num desenvolvimento de personagens mais fracos ainda, e tentando por fim laçar todas essas histórias parece longe de algo feito por um cara como Almodóvar. É certo que vemos nesse filme, temas recorrentes em sua filmografia, como o trato com a sexualidade e sua descoberta. No entanto, ao mesmo tempo que vemos ideias tão belas quanto essas, vemos outras cenas que retratam o estupro como algo normal (e não só uma vez... drogando a garota, ou com o cara dormindo. Estar satisfeito posteriormente não tira o fato do que precedeu). Atos como esse, embora retratados num contexto de forte crítica social soam como um regresso a um diretor tão militante de causas tão incríveis como a da igualdade sexual (já que criar um besteirol com temática homossexual no meio de tantos outros heterossexuais é realmente um avanço incrível). O trabalho artístico inicia-se de uma forma promissora, mas com o tempo vai se mostrando algo totalmente sem nexo(as cores, tão fortes na filmografia desse diretor, nesse filme não significam nada a não ser o de impressionar com a incisão delas; em suma, vemos então as cores, como o vermelho e o azul, como meros artifícios de impacto). Em geral, é uma obra que além de não divertir, ainda causa certo desgosto como nas cenas supracitadas, sendo recheada de clichês e estruturas narrativas fracas demais para qualquer diretor mediano, e olha que por aqui, estamos falando de um Almodóvar.
Volver
4.1 1,1K Assista AgoraO eco sonoro que o título do filme nos traz é um dos melhores que já vi até o momento. "Volver", como vulgo voltar, significa muito mais do que voltar a um ambiente físico para pegar algo que esqueceu. Voltar aqui significa, reviver o passado em busca de respostas mal-acabadas. Remete a um voltar a vida para terminar uma pendência não resolvida (assim como vemos na crendice local). Significa voltar a encarar de frente algo que assombrou a sua vida inteira, e que jamais imaginava que voltaria do modo que retorna bem em nossas caras. Almodóvar se baseia num contexto regionalista para mostrar que embora o movimento, a velocidade permeiem a vida na cidade, é no interior que crendices se misturam a casos para criar um universo muito obscuro. Nessa obra, a cidade serve só mais como um apoio às histórias presentes nesse outro espaço, vendo situações passadas nesse lugar mais movimentado de uma forma bem rápida e desprezível (como a cena que nos situamos ao trabalho de Raimunda - tudo passa num lampejo, as turbinas dos aviões só servem de eco aos moinhos do campo). A forte presença e destreza das personagens femininas, todas rondeadas de um passado duro, criam um forte vínculo, para que juntas, todas se afirmem como indivíduas numa sociedade ainda mais patriarcal que a vivida nas cidades. Embora a figura do homem apareça muitas vezes como a de um palhaço, um idiota, no filme essa imagem serve como uma grande crítica a postura vista por essa sociedade historicamente machista, mais uma vez, o volver. Mas será que em todos os casos, o voltar é a melhor coisa? Ou será que as vezes precisamos voltar atrás para deixar esse mesmo passado que buscamos? O certo é que a luta de um indivíduo não precisa ser cheia de explosões e tiroteios como vemos em vários filmes atualmente, mas sim o simples fato de encarar a realidade, é sim algo muitas vezes pior e mais assustador que a dessas outras histórias.
Magia ao Luar
3.4 569 Assista AgoraViver a vida toda seguindo certos preceitos, e de repente se ver num mundo totalmente diferente é um choque para qualquer um. Essa ideia pode se expandir para qualquer coisa, seja ao achar algo anteriormente e alguém vir e mostrar que o contrário não está necessariamente errado, seja na mudança de um mundo religioso para um mundo científico, ou mesmo com jovens trazendo novos pensamentos aos mais velhos. Mudanças são sempre drásticas para o indivíduo que está realmente mudando, e esse processo, dependendo de quão arraigado ao veredicto antigo, pode ser bem complicado. Esse manuseio com o personagem de Stanley, embora caricatural, retrata bem esse panorama e o faz de uma forma bem natural, o que faz nos questionarmos ou comemorarmos de acordo com quão céticos formos em relação a tais assuntos místicos, e provocar o que achamos sobre tais assuntos é o que o filme melhor faz. Assim como em Blue Jasmine (2013), temos um personagem mais frio, calculista e sarcástico, se achando muito superior a todos ao seu redor, mas diferentemente deste, o final de Magia ao Luar pode até deixar alguns um tanto inconformados, mas o filme sem dúvida mostra que a tolerância e o amor são muitas vezes mais fortes que as crendices e achismos.
Gravidade
3.9 5,1K Assista Agora/O comentário tem spoilers.../ :P
Muito se foi criticado sobre este filme na época de seu lançamento: como faltava um enredo ou como o desenrolar era cansativo, mas essa é uma daquelas obras que guardam vários significados por trás dela.
Primeiramente, a lógica do filme é toda baseada em problemas, tentativas de resoluções que levam a novos problemas. A escolha dessa abordagem foi a melhor feita para um filme que tenta recriar o espaço de uma forma mais verossímil, pois ao mesmo tempo que nos deparamos com imagens de tirar o fôlego de tão bonitas, vemos situações de puro desespero, que são só mais enfatizadas com os takes longos, câmeras subjetivas (principalmente na cabeça de Ryan) e no aumentar e abaixar da trilha sonora.
Todo o contexto que desencadeia todos esses problemas parece algo inimaginável, mas como a própria Ryan diz, se referindo a morte da filha, que podemos morrer por qualquer estupidez, seja ela numa pedra, brincando, ou no espaço, sem oxigênio e sem para onde fugir. A vida é efêmera, e pode ser tirada de formas impensáveis com o piscar dos olhos. Estamos tão bitolados com a vida, tão preocupados com as perdas e os nossos problemas que nos esquecemos de vivê-la, e é esse o papel de Kowalski; o cara que mesmo morrendo consegue parar e se encantar com os pequenos momentos e nuances (ele me lembrou bastante o Tallahassee, do Zumbilândia (2009)). Essa catarse de Ryan, que precisa sair da Terra para perceber que o que mais quer e voltar para ela, inicialmente até lembra muitas cenas de 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), na busca por uma resposta, no renascimento do ser (Starchild), só que diferentemente desse filme, o conhecimento desenvolvido não é intelectual, mas sim psicológico. E mesmo tendo Kowalski como instrutor, o maior professor dela não foi ele, mas sim a experiência de estar no espaço, diante de todas essas adversidades. O que temos então não é somente uma luta pela sobrevivência, nem até onde um ser humano consegue resistir a todas essas pressões, mas também uma busca por um reconhecimento, por uma personalidade.
Para ela conseguir entender o que quer, ela precisa passar por quase que um renascimento. No entanto, diferentemente do normal, esse renascimento é reverso, pois o que a protagonista precisa, é voltar a viver a vida antes da morte de sua filha, voltando assim para o passado de uma forma renovada, e para isso, algumas imagens do filme nos ajudam a entender melhor essa troca de ordem: a vida na Terra de Ryan foi, resumidamente, nascer, receber a notícia da morte da filha e depois ficar vagando perdida pelo mundo, então se a ideia é ser uma mudança reversa, a primeira coisa que deveria acontecer seria Ryan estar a esmo pelo espaço, perdida, o que realmente acontece. Vemos isso numa cena logo após o primeiro impacto, com ela girando e girando sozinha por uma grande vastidão. Quando finalmente ela se encontra, os astronautas vão ver a situação dos companheiros, achando-os todos mortos (detalhe que Shariff morre por um detrito, ou uma rocha, na cabeça, remetendo a própria morte da filha). A partir daí, as imagens do filme vão sempre esconder algo relacionado com a vida e a criação dela, mas sempre seguindo essa ordem inversa. A primeira cena que logo salta aos olhos em relação a isso é o desprendimento/corte que Kowalski faz para salvar Ryan(remetendo ao corte do cordão umbilical que cria uma nova vida). Ryan então consegue se salvar e quando entra na cápsula quase sem oxigênio e começa a tirar o traje, vemos uma das cenas mais belas e representativas dessa ideia: a cena pára por vários instantes em um enquadramento em que vemos Ryan em posição fetal com tubos da nave parecendo se acoplar na barriga dela, como se fosse um cordão umbilical. E para finalizar, o encontro dos espermatozoides com o óvulo é esquematizado com o choque dos meteoros na Terra, numa cena angustiante que leva Ryan finalmente ao planeta. Foi somente depois de passar por todo esse processo de revitalização e ressurgimento que Ryan estará finalmente pronta para viver a vida na Terra novamente. Nesse final ainda temos uma metáfora do surgimento da vida na Terra, que veio do espaço, tomou os mares, conquistou a Terra e ficou sobre dois pés, numa tomada mais uma vez linda e angustiante.
O filme todo é cheio de surpresas e emoções, e mesmo que em algumas partes se mostre algo delongado e cansativo, é sem dúvida alguma, um filme espetacular, seja ele por essas imagens metafóricas ou somente pelos efeitos especiais.
A Pequena Loja de Suicídios
3.7 774A primeira cena desse filme tenta criticar a postura social em que todos nós, humanos, ao vermos a vida de um jeito pessimista, procura como última solução, o suicídio. Essa crítica é retratada de uma forma bem irônica... no entanto, é fazendo desse modo que o roteirista ao invés de ressaltar a dor com que essas pessoas vivem, ele a ridiculariza.
Nessas últimas semanas, após a morte de um dos grandes comediantes de Hollywood: Robin Williams, começou-se a discutir muito sobre a depressão. Vimos que embora diagnosticada como uma doença, muitas pessoas continuam a tomá-la como motivo de chacota: "Ah, veja se anima", "Vai passar", "Para de fazer cu doce". Esse sentimento de que uma hora tudo se resolverá, de ser uma fase passageira, pode se revelar uma eternidade para os indivíduos que realmente passam por tal infortúnio, e é dessa forma que A Pequena Loja de Suicídios dialoga com os espectadores.
A figura de Alan como um Messias para os "mimimis" desses indivíduos se eleva ao tom de ofensa, já que vemos um garoto desinteressado, querendo mudar a realidade de todos ao seu redor, sendo no entanto uma pessoa altamente influenciável (o que faria sentido se o filme só o tratasse como um indivíduo a conhecer as dores do mundo, sem um caráter interventivo). Além disso, temos a imagem de um psicólogo que está mais interessado no dinheiro do paciente do que a sua cura, temos alterações de temperamento imensamente vãs (como a da irmã que é "tocada" pela felicidade de um CD), e se não bastasse, toda uma cantoria que contrasta com a realidade dura, que nem esteticamente funciona, irritando mais ainda o telespectador. Se todo esse filme fosse na verdade uma crítica a essas pessoas que não compreendem a profundidade da depressão e de que como ela pode estar no vizinho ao seu lado (na representação de que todos os cidadãos estão "tristes"), o filme não acabaria numa grande festa, onde até mesmo os mortos são "curados" e entendem quão bobos eram! A depressão não é algo a se esperar passar, é algo que demanda orientação médica e cuidado a todo momento, e a forma como esse filme o alegoriza é de se matar de vazio.
O Bebê de Rosemary
3.9 1,9K Assista AgoraMuitos dos filmes de terror são criados para nos assustar no momento, para nos causar certo desconforto e nervos em determinadas circunstâncias, mas o que O Bebê de Rosemary faz é muito mais do que simplesmente aterrorizar, ele cria um drama psicológico em que o medonho não está na tela, mas o que concluímos dela (no caso, acreditar se o sobrenatural existe ou não, e até mais do que isso, ver que essa disputa pode aparecer em situações de extremas tensões em nossas próprias vidas).
No filme inteiro nos perguntamos se Rosemary está realmente delirando ou não acerca da seita satânica que a ronda, já que toda a narrativa embora beire muitas vezes o surreal (como nas cenas oníricas), cabe muito bem na própria lógica da protagonista. Esse questionamento nos faz entender que o bebê (muito porque não conseguimos ver a criança), na verdade, serve como metáfora a essa ideia demoníaca, ou em escalas maiores, a racionalidade X sobrenatural na vida dentro de cada um de nós, que a qualquer momento pode florescer e tomar conta de nossas ações, sendo efetivada quando o "bebê" finalmente nasce. Se Rosemary (remetendo a virgem Maria, fora todas as outras imagens bíblicas que aparecem - teto da Capela Sistina, o seminário em que Rosemary passou), a imagem de santa na Terra (com seus traços ingênuos e angelicais), pode conceber um monstro como esse a nós, porque nós mesmos não poderíamos nos submeter a tais forças (não só no sentido satânico, mas também no moral)? E é isso que nos assusta muito mais que um terror em que sabemos ser cabível somente ao mundo fictício da tela, porque neste filme vemos que todos nós somos mais Rosemary que jamais imaginamos.
Os Reis do Verão
3.6 422 Assista AgoraA partir do momento em que vemos a cena de Ferris Bueller, de Curtindo a Vida Adoidado (John Hughes, 1986) logo no começo do filme (o cabelo moicano de xampu sob o chuveiro), já sabemos que o personagem em questão quer se afastar de sua realidade, e mais do que simplesmente viver, ele quer reinar (como o próprio pôster insinua). Todo esse processo nos remete a um outro filme em que os protagonistas também se veem em fuga de seus mundinhos: Moonrise Kingdom (Wes Anderson, 2012), só que diferentemente deste, Os Reis de Verão tenta retratar esse amadurecimento de uma forma mais realista e dura (Moonrise Kingdom é por si só um conto infantil, e nada mais justo que o filme trazer essa estética mais ilusória que metaforicamente enriquece mais ainda o filme). É claro que Os Reis de Verão não possui o mesmo trabalho artístico dessa obra de Wes Anderson, mas suas fotografias, sons e efeitos de luz e sombra estão longe de passarem despercebidas (o campado em que a garota dos sonhos de Joe aparece, a câmera lenta na construção da casinha de pássaro com um feixe de luz incindindo bem no braço do garoto, os ecos sonoros das batidas nos canos com os movimentos dos garotos no decorrer do filme). Tornar-se adulto não é uma tarefa fácil, e mesmo que discordemos muito de nossos pais, sempre trazemos algo deles para a nossa própria personalidade. E mais do que ser independente, o mais importante é saber como se levantar caso tudo dê errado.
Tropas Estelares
3.5 467 Assista AgoraEm primeira vista, o filme parece um emaranhado de insetos, corpos, gritos guturais e gore, tudo numa mistura bem trash, mas que não deixa de ser contagiante. Além disso, por trás de todo esse banho de sangue, vemos uma sátira enorme a um governo totalitário, controlador de mídia e defensor de superioridades (em que tudo que não for humano, deve ser aniquilado). Ao decorrer do filme, vemos propagandas de guerra muitas vezes bizarras (como a cena mais engraçada do filme, em que crianças em círculo esmagam algumas baratas, mostrando que todos estão combatendo em pró da Terra), a repreensão de qualquer questionamento que vá contra as ideias expansivas (como a cena em que os soldados se questionam se não foi a invasão humana em territórios de insetos que iniciou toda guerra, o que é seguido de um sermão vindo do tenente) e a desumanização de cada indivíduo posto em combate (como a de Carl - Neil Patrick Harris -, um dos primeiros amigos de Rico - Casper van Dien - que inicialmente se mostrava uma pessoa carismática e engraçada, mas que ao fim do filme transforma-se num indivíduo frio e calculista). Juntando-se todos esses pontos, vemos nada mais, nada menos que uma sociedade fascista que tem por objetivo dizimar qualquer forma orgânica que "ameaçasse" os humanos (em aspas pois muitas vezes quem inicia as investidas são os próprios fascistas), e é isso o que incorpora toda a ideia do filme. Você quer ser um cidadão?
Você vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos
2.9 778Mais que um enlace de personagens e desfechos inusitados, Woody Allen mostra como as relações na vida as vezes podem ser vãs, ou pelo contrário, versáteis, e que em muitas vezes o melhor é se viver de uma eterna ilusão.
Boneca Inflável
3.9 192São filmes como esse que te fazem filosofar sobre a vida e o que buscamos nela. Será que foi preciso a transformação/comparação de uma boneca inflável (no estilo Pinocchio) para mostrar a podridão e efemeridade de toda humanidade? Será que o problema de cada indivíduo seja a sociedade em que estamos, onde toda nova geração semeia os problemas dos antecessores? Será que a vida é tão inútil para se desmiolar em desilusões antigas? Essas são somente algumas das indagações que o filme nos traz, mas o certo é que o sentimento de tristeza que permeia cada personagem na história, embora diferente, acaba sendo "sanado", ou melhor cultivado, de maneiras semelhantes. Então o que vale em nossa vida?
Obs.: eu achei que o filme Her (Spike Jonze, 2013) se baseia em várias fotografias do Air Doll, seja nos primeiros takes do filme com o reflexo do "marido" da boneca, seja com a água do chuveiro que encharca a cabeça da boneca ou mesmo nos enquadramentos gigantes dos prédios ao fundo que contracenam com a insignificância dos bancos em que os personagens ficam sentados na cena. E eu não acho que tudo isso seja coincidência, mas sim que Jonze realmente tenha visto e amado esse filme, para tratar de um assunto tão conflituoso na vida de todos de um jeito tão adverso.
O Segredo dos Seus Olhos
4.3 2,1K Assista AgoraAntes de qualquer coisa, o comentário terá vários spoilers, então nem me darei ao trabalho de ficar marcando tudo :P
Embora a confusão do papel de cada personagem vá se esclarecendo com o decorrer do filme, muito pelo fato de Espósito se identificar tanto com o caso à sua frente, a ideia maior do filme é justamente essa intersecção de pensamentos e ações entre os principais personagens que acabam por formar uma das melhores obras memorialistas da história do cinema. Antes de continuar a análise, nada mais justo que citarmos um dos livros mais influentes da cultura brasileira: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nesse livro, temos um autor-personagem que discorre sobre sua vida, utilizando de sua audácia narrativa e descritiva, a fim de mostrar sua benevolência a todos. Saber então quando identificar a postura que o autor quer transparecer e a sua real índole é a tarefa mais justa e complexa de ambas as obras, já que isso também ocorre em O Segredo dos seus Olhos.
Dito isso, a análise de cada personagem terá de ser feita com muito mais cuidado do que inicialmente faríamos. Em todo o filme, vemos abordagens melodramáticas: seja na partida do trem, no amor incondicional de Morales, ou mesmo no papel da paixão, cenas que à primeiros olhos se assemelham a algo ultrarromântico demais, que no entanto são sempre seguidas de outras que acabam por quebrar essa contemplação, nos levando a ideias mais realistas (a partida do trem é seguida de uma morte bruta de Liliana, o amor incondicional de Morales acaba se tornando uma vingança irascível e banal, e a paixão leva à morte de Sandoval e à captura de Gómez), mas perceba que toda essa desconstrução romântica feita no romance de Espósito é feita a todos os personagens, com exceção dele próprio, o que denota essa incompatibilidade de personalidade. Em outras palavras, todos as personagens do seu livro são de alguma forma destronadas pela paixão que as movia, mas ele mesmo, consegue cultivar a sua paixão por Irene e levá-la adiante a ponto de alcançar seu objetivo no final. E o pior disso tudo, a forma como Espósito manipula todas as personagens a seu favor a fim de martirizar (romantizar) ou impor uma causa de morte maior (como a suposição de que Sandoval morreu por ele, ou que o amor incondicional de Morales intensificou o seu próprio amor) mostra essa insegurança que ele tem quanto a seus próprios sentimentos, querendo mostrar uma imagem, uma complacência que ele mesmo não partilha. Não parece meio injusto? Sim, mas lembremos mais uma vez de que a obra fora escrita pelo próprio Espósito, então ele nos mostrará o que ele quer que vejamos. No entanto, olhos mais atentos percebem esses defeitos na retórica dele.
Pensando agora fora do universo do filme, algumas imagens bem fortes nos levam a nos questionar: será que vale a pena ir tão longe, tão fanático a uma paixão, que como o próprio Sandoval verbaliza, não muda? Será que passado algum tempo, essa paixão presa a nós terá ainda o mesmo significado, ou será que nem ao menos conseguiremos nos lembrar da força motriz que nos levava a cometer tais atos (como o próprio Morales diz ao não se lembrar se a colher era de mel ou de limão)? Essas paixões que começam a ser racionalizadas, podem se tornar sagradas, assim como uma religião, não aceitando então questionamentos. Por isso eu pergunto mais uma vez: será que vale a pena levar o rancor a tal ponto? O filme tenta elucidar que não, como na cena do cativeiro de Gómez, quando ele nos mostra o monstro que Morales se torna ao guardar essa "paixão", e o olhar penitente e resignado de Gómez. São imagens duras, mas bem eficazes.
Todo o cuidado que o filme tem para transparecer o sentimento que temos em determinada cena é transposta para os elementos estéticos presentes: seja em uma das melhores cenas de câmera em movimento que já vi no cinema (a cena do estádio de futebol), dando essa sensação de tensão e maior vividez (a câmera treme para transparecer enaltecer a emoção da cena), seja nos sons diegéticos (o que seria os sons de fundo) na cena em que Gómez mostra o pênis, ou até mesmo nos movimentos das câmeras (subjetivas - a câmera mostra o que a personagem vê a partir de seus próprios olhos - ou não), criando toda uma imersão maior ao mundo do filme. Outra coisa que é bem importante no decorrer do filme, é o trabalho de duas cores: vermelho e verde, em que no primeiro temos o papel da paixão (o vestido, as cortinas e movéis, vermelhos, que Espósito se depara na primeira vez que vê Irene, a cortina vermelha que Morales fecha em sua casa do final do filme, nos fazendo desconfiar que diferentemente do que ele fala, a sua paixão ainda está guardada com ele, desencadeando a série de cenas seguintes), e no segundo podendo significar em certas cenas a solidão (o abajur próximo a Espósito, quando ele começa a escrever o romance, triste de não estar com Irene, o sofá em que Sandoval está sentado momentos antes de sua morte, denotando sua desolação em seus momentos fatídicos, nas portas da casa afastada de Morales, mostrando o seu afastamento social após da tragédia), e em outras, o poder - ou o que deveria estar exercendo ele (a cena da prisão dos dois operários, em que uma luz verde bate na figura de um policial, no campo de futebol sob o corpo de Gómez, quando esse é pego pelos policiais). Mesmo que exista todo esse trabalho estético, fiquei um tanto incomodado com o fato do filme ter uma certa insegurança na certeza da passagem de ideias ao telespectador, por conta de uma repetição constante dos fatos ocorridos (parece que o filme nos acha ingênuos demais para ter que ficar nos dando diversas chances de entender um acontecimento que já passou ao repetir as mesmas cenas), tendo seu ápice na cena de flashbacks no final do filme; talvez eu possa estar sendo um pouco ignorante, já que essa repetição pode ser um eco dos pensamentos que assolam o narrador em linguagem cinematográfica, mas admito que isso me irritou um pouco, mas nada que tire a genialidade da obra. E essa genialidade, que mesmo nem sempre muito aparente, nos faz gostar mais ainda do filme.
Abismo do Medo
3.2 883 Assista AgoraO comentário contém spoilers...
Admito que esse é um daqueles filmes que me vem instigando a muito tempo simplesmente por um detalhe de marketing: o poster. Essa composição de mulheres em formato de caveira é de longe um dos melhores e mais horripilantes posters que eu já vi na minha vida. E muito por conta disso, confesso que imaginava o filme numa pegada mais satânica, de rituais e de demônios; até certo ponto (aquela cena do corredor do hospital, com uma ótima composição de Dolly Zoom - aquela em que o fundo vem se aproximando em zoom, enquanto o primeiro plano, que no caso era a garota, parece que mantém-se do mesmo tamanho, algo que fizeram em filmes como Tubarão e Poltergeist) imaginei que seguiria por esse ramo mesmo. O filme, repleto de cenas em ambientes fechados, passa uma noção bem claustrofóbica que vai nos perseguindo até o final. Mas em contrapartida, no quesito medo, o fato deles mostrarem as criaturas logo no começo, pelo menos a mim, não causaram tanto pavor. Além disso, situações bem absurdas, mesmo para lógica do filme, me fizeram rir ao invés de temer as cenas.
No entanto, ponto para o trabalho estético, pela utilização de ângulos tortuosos que intensificam ainda mais a sensação de impotência, pelos giros lentos de câmera que só aumentam a tensão da cena, por uma das melhores aplicações da técnica de footage (na qual as personagens filmam a cena que nós, os telespectadores, vemos; assim como em A Bruxa de Blair). E por principalmente um cuidado com a escolha das cores, dando significados para os seguintes movimentos das personagens (como a cor verde que identifica o perigo no ar, seja nas cenas iniciais, em que a vegetação indica que algo ruim paira, seja na cena do corredor do hospital, ou mesmo, em momentos tensos de luta com as criaturas da caverna, ou a cor vermelha: que nesse caso, indica a coragem/bravura/força dos indivíduos. Vemos essa cor nas camisetas de Holly e Juno - que inicialmente são as mais aventureiras, nos flares que tomam conta dos locais, ou mesmo nas cordas que são usadas para a exploração das áreas. No entanto, é principalmente na transformação de Sarah, que esse recurso é mais bem utilizado: no começo do filme, vemos uma mulher insegura, traumatizada trajando vestimentas verdes, que dão a terminar numa mulher raivosa, vingativa coberta de sangue, portanto, vermelho).
Outro ponto bem interessante no filme, é quantidade de referências que avistamos: começando pela Tomb Raider (que é até realmente citada no filme). Juno está com os mesmos trajes que Tomb Raider estaria, e é ela a garota mais exploradora, experiente e planejadora, assim como a personagem dos jogos de ação é. Juno ainda faz referência ao filme Silêncio dos Inocentes, na cena em que ela vem correndo pela floresta da mesma forma que Clarice viria, e que mais uma vez, apresenta as características da personagem (portar-se como conhecida da situação, mas na verdade ser bem inexperiente e desprecavida). No entanto, é a cena final de Sarah que mais chama atenção: quem não reparou uma semelhança com Carrie, de Brian de Palma? Assim como Carrie, Sarah se emputece com as descobertas e se vinga de uma forma sanguinolenta de sua "amiga".
O recurso do delírio que é muito bem utilizado nas cenas iniciais do filme: no corredor do hospital (é a terceira vez que falo dessa cena; mas cara ela é muito foda!) ou no espelho da cabana, perde todo seu vigor no desfecho. Como já disse, o fato da aparição da forma das criaturas logo no começo do filme, satura a repetição de cenas com elas, chegando a ser cansativo (já que você sabe que elas não têm como ganhar, porque os bichos são infinitos), e que juntamente com aquela queda na qualidade do uso do delírio acabam por comprometer todo a obra. Sim, o filme é uma formosura em sua forma, mas o conteúdo em si é bem fraco.
A Profecia
3.9 592 Assista AgoraEu queria compartilhar uma análise mais estética do filme, então aviso desde já que o comentário estará repleto de spoilers, já que citarei diversas cenas do filme:
Logo no início do filme quando estamos nos adequando com a situação pela qual Robert está passando, temos uma série de cenas em que o enquadramento está ora em ângulos tortuosos, ora focando objetos em planos diferentes das do personagem (a chegada do carro sido vista de um buraco da passarela, ou Robert junto ao padre em segundo plano, enquanto que em primeiro, vemos um corredor de madeira). Dessa forma, o filme nos diz que embora tudo pareça normal, algo por traz de todo o contexto está errada, algo poderoso, misterioso e secreto: o Diabo. Esses enquadramentos irregulares vão até uma cena que considero a mais importante de todo filme, já que por si só, resume completamente o filme: a primeira vez que Robert conhece a criança que substituíra seu filho; explicarei a sua importância mais para frente.
Damien vai crescendo... temos a festa de aniversário dele, vemos a figura de um cachorro preto (que assim como em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, significa um mau agouro, um mau presságio que vai assombrar Robert ao decorrer de todo o filme), até que por fim chegamos à cena em que a nova governanta vê pela primeira vez o Damien. A esta altura, ainda não sabemos que o garoto é na verdade o Anticristo, mas uma dica de sua real identidade está logo atrás: o fogo que circunda a cabeça dele. Esse fogo, que remete ao inferno, ao pecado, e portanto ao próprio Diabo quebra toda a figura angelical que vemos estampada na face do garoto.
Com o tempo, outra estética começa a dar dicas do desenrolar das personagens e da própria história: as cores. A primeira cor que mais chama a atenção no decorrer de todo o filme é o verde (vai dizer que aqueles campados gigantes não chegam até a irritar? :P ). Mais para o meio do filme, essa cor começa a aparecer somente em momentos chaves, mas sempre dando as caras quando algum personagem corre perigo (isso mesmo, perigo!). Antes do ataque de babuínos vemos um ambiente repleto de grama e circundado por cercas da cor verde. Antes do empalamento do padre, ele percorre campos cheios de árvores e folhas da cor verde. Antes da morte do fotógrafo pelo vidro da carreta, vemos dois cestos enormes de bananas maduras, portanto verdes. Antes de Damien se aproximar completamente da igreja, vemos ao lado um campo gigantesco verde (repare que nesse momento, quem está em perigo é justamente, Damien). Os cenários estão sempre repletos de verde, pois todos as personagens estão em constante perigo com a entidade maligna ao redor; e é por isso que vemos verde nas portas e janelas do sobrado, verde nos campos enormes, verdes até em bananas! Vemos também o verde (prometo que é a última vez que falo disso, mas é para você ter uma ideia de como essa cor aparece no filme) na cena do acidente de Kathy, que tentava arrumar o vaso de plantas (que é daquela cor que eu não posso mais falar). O interessante nessa cena é que vemos também as outras duas cores que também tem um significado próprio: o amarelo e o vermelho. Um pouco antes dessa cena, vemos Kathy desesperada, trajando um pijama amarelo dizendo ao marido que precisa de um psiquiatra, pois acha que o filho está demonizado. O amarelo no filme, embora seja menos explorado, significa esse desespero de Kathy (eu não consegui identificar em outras personagens) em relação aos últimos acontecimentos. Depois da visita ao psiquiatra, Robert adentra num quarto que de tão amarelo, parece que até foi colocado um filtro enquanto filmavam a cena; é esse desespero tomando conta de todo o ambiente ao seu redor. O desespero se vê em intensidade máxima justamente na cena do acidente com a motoca: o quarto novamente está imerso em amarelo, e ela trajando um suéter amarelo prenuncia o medo que virá a seguir. E por fim, o vermelho. A primeira vez em que o vermelho aparece alarmantemente é na cena em que o fotógrafo está revelando as recém-tiradas fotos em seu laboratório. Em todo o filme, essa cor tem um significado de presságio/profecia, seja ele sendo previsto, ou consumado. E mais uma vez nessa cena do acidente, a motoca de Damien (vermelha) vem selar o presságio que viremos a saber momentos depois da perda do bebê. E é finalmente com essa cor que sabemos que o mal vencerá bem antes da morte de Robert: quando esse começa a entrar no quarto de Damien para cortar seu cabelo, logo vemos que o pijama do garoto é totalmente vermelho. Sendo assim, logo concluímos que toda a previsão descrita no filme do Apocalipse será então finalizada.
Você que conseguiu chegar até aqui deve estar se perguntando: por que raios é interessante ficar reparando em todo esse lance de cores? Eu te entendo muito bem, eu mesmo já me perguntei isso. A resposta é que você consegue prever cenas e acontecimentos, entender o sentimento de alguma personagem e criar suposições a partir de certa ação a partir de simplesmente uma lógica que você criou a partir de tal cor. E isso é incrível, pois o que eu concluí nisso tudo pode ser totalmente o contrário do que outro alguém supôs, e as duas podem fazer sentido. Enfim, sem mais delongas, direi porque acho aquela cena logo no começo, a mais importante de todo o filme.
Essa cena acontece por volta dos 3:27 do filme e nela vemos um enquadramento de uma freira segurando em seu colo um bebê. Segundos depois, Robert entra no quadro e se instala no meio dos dois. Qual é a função de Robert depois dele finalmente se dar conta da real identidade de Damien? Tentar impedir que os planos do Diabo se concretizem; ele é então a pessoa que selará o destino da humanidade, ele é o mediador entre o satânico, o anticristo, e a pureza, a salvação (na lógica do filme). E é por isso que eu acho que esse é o enquadramento mais importante do filme, pois ele justamente resume toda a luta do filme: quem Robert deixará por fim prevalecer?
Guardiões da Galáxia
4.1 3,8K Assista AgoraGuardiões da Galáxia tem tudo que um bom filme de herois precisa ter: muita ação e aventura, humor, explosões e efeitos especiais, personagens fortes e carismáticos, e mais do que tudo, uma história envolvente. O novo título da Marvel tem tudo para ser um dos melhores do gênero, trazendo um enredo que balanceia todos os personagens de uma forma dinâmica e comovente (coisa que Os Vingadores não haviam feito muito bem) e uma inovação muito legal na forma de contar a história que me lembrou muito a de filmes como Pulp Fiction: a imprevisibilidade; em que vemos sequências totalmente inusitadas para a forma como a cena se desenvolvia até então, que além de aumentarem o tom de humor, dão uma dinâmica totalmente diferente das dos filmes anteriores da Marvel.
Psicopata Americano
3.7 1,9K Assista AgoraSabe um filme que você decide ver pensando numa coisa, e com o tempo você vai assimilando que aquilo que você vê é algo totalmente inesperado, e que você vai até o final do filme assim, é bem esse filme.
Psicopata americano: esse ótimo título não traduz simplesmente a dualidade da sanidade do personagem de Bateman, como transpõe para toda a sociedade (americana ou qualquer outra), essas características que tanto o meio como o sistema econômico produz em nós: competitividade, narcisismo e cobiça. Um filme que aparentemente se assemelharia a qualquer slasher da década de 80, se mostra algo muito mais profundo por mostrar que existe em cada um de nós, um Patrick Bateman. No mundo em que vivemos, todos queremos nos dar bem na vida (isso é algo inquestionável), e que para isso, todas as formas tangíveis são testadas para "se dar melhor que o outro". O mais importante nesse "todas as formas tangíveis" é que estamos tão absortos em nossos objetivos que não percebemos o quão estúpidos estamos sendo. Será que lutar por um terno ou um cartão melhor nos faz alguém superior que o outro? Essa visão niilista da sociedade é justamente o foco desse filme. Todas as pessoas são exatamente iguais, todas querem se destacar, mas acabam caindo na sombra do outro, todos querem serem melhores. Tome como exemplo a cena do cartão: cada modelo de cartão é nada mais nada menos que a mesma coisa, com fontes e texturas diferentes, mas é de se notar que o cartão é o mesmo, mais importante que isso é o fato de todos terem o mesmo cargo: vice-presidente. Todos! Um cargo que teoricamente tem grande influência e importância é banalizado pelo design do cartão. Ninguém quer exercer a sua função, mas sim parecerem que a exercem, e é esse mundo de aparências que permeia toda essa realidade. Outro fato de que todos os indivíduos do filme não passem de meros caricatos são as visões de mundo de cada um, algo que para um integrante de uma "seleta" Wall Street deva ser como uma voz divina, mas vocês não tem a expressão de que os discursos de cada um deles não passe de algo que uma Miss Universo proporia, só faltou falar da paz mundial para ficar mais claro. Mais uma vez, o filme mostra a direção do pensamento desses, mais uma vez, "seletos" indivíduos. Algo que até reforça essa ideia, é a falta de identidade das pessoas, em que as pessoas não sabem os nomes verdadeiros de ninguém, seja das prostitutas ou a do próprio Bateman.
Puxando agora para o lado da sanidade, queria falar algo antes em relação ao consumismo: como o próprio Tyler Durden diria: "Advertising has us chasing cars and clothes, working jobs we hate so we can buy shit we don't need". Essa busca pelo melhor corpo, pelo melhor terno, pelo melhor emprego nos guia desenfreadamente para uma direção em que não sabemos mais o que queremos. As personagens desse filme são exatamente assim, eles podem tanto, mas tanto, que não sabem o que querem; não fazem a mínima ideia do que querem, que o "querem" é assasinar, porque precisam, caso contrário, você se sentirá um merda. E reparem nas aspas em "querem"; querer não é o mesmo que realizar, e é por isso que ficamos sempre loucos pelo melhor, e esquecemos o trabalho que tivemos para conseguir o outro, é então essa loucura desmedida, que é o que vai se desenvolvendo ao decorrer do filme.
Eu acredito que existam boas almas em lugares como esse, mas a grande sacada do filme é criar personagens tão, mas tão irreais, frios, tontos, como algo bem pastelão para mostrar justamente como a sociedade como um todo está cega quanto aos seus desejos; corrijo, suas necessidades. E uma coisa é certa, quando se entra nesse jogo: "This is not an exit", como a plaquinha no final do filme diz.