SPOILER DETECTED!!! Embora utilize-se de uma narrativa convencional, Meu Ódio Será Sua Herança (1969) cria personagens multifacetados e um estilo (que mais a frente será largamente utilizada por diretores como Tarantino e Scorsese) de se contar uma história (violência e sangue jorrando) nunca vista antes num faroeste, reivindicando assim, o caráter marcante dentre os filmes de faroestes de todo o cinema.
Acompanhando um grupo experiente de bandoleiros (Pike (William Holden), Dutch (Ernest Borgnine), os irmãos Gorch (Warren Oates e Ben Johnson) e Angel (Jaime Sanchéz)) em suas últimas missões, temos aqui o primeiro choque. Diferentemente de vários faroestes, não temos mocinhos com que podemos nos identificar. Mais do que isso, toda figura de lei é aqui desvirtuada à canastrice (como o Exército de jovens confusos na cena do roubo do trem) ou a total corrupção (Mapache (Emilio Fernández) é um general mexicano que possui ao mesmo tempo, relações com nazistas, o governo americano, foras-da-lei e prostitutas. Se formos expandir ao contexto histórico – Revolução Mexicana - temos um quadro ainda mais crítico, visto que os poderes políticos eram descaradamente utilizados ao favor pessoal). Toda esta caracterização (muito característica em filmes de gângsters) é interessantíssima pois contrasta com a ideia romantizada da luta maniqueísta, liderada por um sujeito íntegro e limpo contra o porco pertencente à mazela da sociedade. Este senso de podridão vai mais além quando confrontado com a imagem de mulheres, crianças e idosos tão pouco inocentes quanto os bandidos. Se destrincharmos, podemos extrair uma das ideias mais importantes da corrente literária do Naturalismo: o Determinismo. Nele, temos a visão pessimista de indivíduos que se desenvolvem conforme o meio os designa. O que cabe perfeitamente ao filme, já que num mundo em que os mais fortes/aptos (Darwinismo Social: outra ideia recorrente do Naturalismo) sobrevivem, nada mais justo que todos os indivíduos reajam mais violentamente, justificando assim, o acréscimo de violência até então nunca vista na época do lançamento do filme.
O mais genial disto tudo é que o diretor do filme (Sam Peckinpah) parece brincar com os esteriótipos do faroeste, fazendo com que quando nos damos conta do que de fato estamos nos deparando, o choque torna-se muito mais poderoso. Num ritmo lento repleto de quebras, vamos seguindo o bando através das ruas tomadas por crianças, mulheres e idosos. Com uma câmera que normalmente os pega de baixo para cima, os engradecendo, são poucas as vezes que vemos seus rostos. Vindo impecavelmente vestidos, toda essa caracterização dá um caráter heroico aos personagens, ao mesmo tempo que contrasta a sujeira e o barulho dos arruaceiros em vigília no alto das construções como os malvados da cena. Por outro lado, Peckinpah é sutil em mostrar duas cenas que parecem nos dar indícios da má índole de nossos protagonistas: a mais bizarra se dá ao fato das crianças estarem brincando com escorpiões tomados de formigas (que será importante como metáfora de todo o filme), mas a mais interessante, ocorre quando um dos sujeitos esbarra na velhinha que passava. Sem saber se ele deve se manter no disfarce, vemos que ele pondera ao que fazer, mantendo a forma poucos segundos depois.
Enfim, temos o primeiro tiroteio do filme. Vemos os arruaceiros nos telhados totalmente despreparados para a tarefa, deixando-os fugir facilmente. No entanto, temos um detalhe na relação entre Deke Thornton (Robert Ryan) e Pike que talvez passa despercebido devido ao fato de não o conhecermos a fundo. Em uma chance clara de atirar Pike, Thornton para para pensar por alguns segundos, acertando um músico por conta disto. Com o decorrer do filme, entendemos que Thornton fazia parte do grupo que agora ele persegue para sair da prisão, e uma coisa é clara. Embora persiga, Thornton se imagina a todo momento do lado dos fugitivos, demonstrando que embora tenha tido uma vida difícil, ele, assim como Pike, sentem gosto em fazer o que fazem, talvez por ser a menos pior opção a se seguir. Nesta mesma cena vemos os arruaceiros pilhando os corpos como se fossem abutres, caracterizando aqui mais um tema constante do Naturalismo: a animalização. Sob condições difíceis de vida, todos estes marginalizados acabaram atuando como animais como forma de perpetuação. Em outras cenas temos essa mesma ideia vista de formas diferentes, como o libido em relação às mulheres do filme, transformando os homens em totais animais em busca de uma fêmea. E em outro momento, a rima visual dos mexicanos com os abutres cercando os nossos “herois” nas montanhas, mais uma vez repetem a ideia de sobrevivência, de vigília, de desconfiança.
Por outro lado, ao mesmo tempo que se assemelham a animais, as personagens seguem um estrito código de conduta que justificará por exemplo, o porquê de Pike atirar no companheiro quando este impossibilitado com um tiro na cabeça os atrasava. Da mesma forma que os indivíduos do século XVIII seguiam a ideia de uma sociedade de aparências e formalidades (muito bem retratada em Barry Lyndon (1975)), nos faroestes teremos a ideia do bem maior do grupo, do pragmatismo. Isto explica o porquê de Thornton e os demais arruaceiros manterem sua busca aos fugitivos, ao invés de simplesmente fugir com as armas que lhes são dadas. Isso justifica o porquê de Pike deixar Crazy Lee (Bo Hopkins) como peso para o sucesso do grupo. Juntamente com isto, temos a ideia do fim da carreira, da virilidade que estes homens estão passando (Pike caindo do estribo do cavalo, roubarem arruelas, irmãos Gorch querendo abrir um rancho). A ideia que temos aqui é a de que ou estes homens realizarão um último grande roubo, ou morrerão tentando. E este processo é impressionante, pois são poucos os momentos em que "flash-backs" ou diálogos explicitam a dor destes sujeitos (mais uma vez, eles foram criados de forma lacônica). E é aqui que está o poder do cinema: mostrar através de gestos e expressões sensações exprimidas num livro através de palavras. Esse processo é gradual, passando da total desunião (cena em que os irmãos Gorch querem dividir a quantia do dinheiro e brigam com Angel), pela união (o irmão que tira sarro da cara de Pike quando ele cai do cavalo é o que oferece a bebida ao mesmo) até a sensação de que eles estão fadados à morte sem luxúrias (olhares entrecruzados depois do sexo com as prostitutas). Sem contar o agravante de Thornton saber como o bando funciona por já ter feito parte dele. Esta é uma forma de entender a fúria do bando ao final do filme: eles pelo menos morrerão com estilo.
Uma outra forma está justamente no modo de agir dos mexicanos. Se os nossos “heróis” e o bandos de arruaceiros são horríveis, os mexicanos são ainda mais, seja pela caracterização visual (a vila em que Mapache está ao final do filme está caindo aos pedaços) ou pelo caráter. Diferentemente dos "cowboys", Mapache não liga para o código de ética, torturando e matando indivíduos ao mero prazer. Pike e seu grupo tentam diversas vezes um acordo com Mapache, tendo por fim, sacrificado Angel quando tudo parecia acertado.
Antes de concluir toda a lógica queria fazer uma pausa para analisar os maravilhosos aspectos técnicos do filme. Primeiramente, a cena em que Mapache revela a Angel que sabe que este roubou munição dele, temos um dos únicos momentos de câmera subjetiva e tremida do filme. O uso consciente desta técnica agrega muito mais valor a esta cena, já que acentua-se a tensão, a angústia e a claustrofobia que não só Angel, como nós também, sentimos ao ver o que ele vê. Alguns minutos mais tarde, temos o momento em que o bando de Pike decide salvar Angel independentemente das consequências. O “travelling” para trás é cadenciado com a gradual troca da trilha mexicana por uma bateria pontual que cessa nos momentos em que eles param, criando assim como na cena anterior, uma crescente tensão ao que virá. Tensão esta que já vinha sido arquitetada desde a despedida dos nossos “heróis ” da vila mexicana em que Angel descobre sobre seus conhecidos. Todos os moradores, vestidos impecavelmente, com uma predominância de tons escuros, se despedem de Pike e seu bando como se estivessem num funeral. O mais interessante disto tudo é que a caracterização dos humanos que dei em todo este excerto é bem degradante, totalmente contrária a grandiloquência da natureza aos fundos, em câmeras que prezam pelo imensidão do azul do céu, ou do marrom das montanhas. E se por um lado temos um ritmo lento em todas estas cenas, quando vamos para as cenas de ação, temos uma dinâmica de câmeras e cortes bem intuitiva (sujeito A atira, sujeito B toma o tiro), já que os eixos de câmera prezam tanto por nos situar na exata angulação do atirador e atirado quanto por nos mostrar o mesmo combate por diversas partes do mesmo cenário.
Por fim, chegamos a cena final, mulheres e crianças atiram em Pike e seu grupo (ninguém é inocente!), e Thornton chegando depois do massacre, senta-se na entrada da vila, enquanto os arruaceiros pilham mais uma vez os corpos e vão de encontro à morte (essas personagens são tão desimportantes e inferiores a Pike ou Dutch que nem os vemos morrer). Thornton enfim cumpriu sua missão, e portanto, seguiu com seu código moral, ficando ao relento, liberto. Talvez o maior roubo de sua vida tenha sido buscar seu melhor amigo. E agora? Sykes (Edmond O’Brien) então aparece e o oferece companhia para mais aventuras. E o fato de ele aceitar seguir isto vem mais uma vez da ideia da ética por trás de tudo. Estes indivíduos vivem e morrem pelo grupo. Viver sozinho é como negar a sua existência. Pike cumpriu com tudo que o segurava, a partir de agora, ele está livre, livre para ser quem sempre foi, e mesmo que ele tenha o mesmo fim de seu antigo grupo, é preferível a ficar sozinho.
A metáfora imagética lá do início serve então para findar toda esta complexa ideia de fatos. As formigas (Pike e seu grupo), embora mais fracas, possuem união, mas mais do que isso, só funcionam juntas, e por isso conseguem derrotar o escorpião (general Mapache). Mas independemente disto tudo, sempre haverá o fogo que levará todos a danação, já que todos são produtos do mesmo meio. Cabe somente escolher entre ser as formigas unidas ou o escorpião solitário.
Vingadores: Era de Ultron (2015) dá prosseguimento à evolução positiva que a Marvel vem mostrando a cada novo filme. Principalmente nos 3/4 iniciais, o filme segue num ritmo fluido, desenvolvendo personagens e tramas de uma forma muito mais superior que o seu antecessor. No entanto, chegando ao quarto final, Vingadores cai no bê-a-bá de sempre, parecendo criar um filme à parte de tudo que havia feito até então.
O primeiro - e meu principal desafeto com o primeiro filme - ponto notável encontra-se justamente em seus personagens. Em Os Vingadores (2012) tínhamos basicamente uma narrativa que permeava os conflitos de Homem de Ferro (Robert Downey Jr.) e Capitão América (Chris Evans). Talvez Hulk (Mark Ruffalo) também possa ser colocado a um nível relevante do primeiro filme, mas Viúva Negra (Scarlett Johansson), Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), e principalmente, Thor (Chris Hemsworth) tinham papeis tão secundários que pareciam nem estar no filme. Isto não seria um problema se o filme se chamasse Homem de Ferro e Capitão América, ou Homem de Ferro vs. Capitão América. O problema é que o filme contava a história de um grupo de heróis, o que no caso, ilustrava o péssimo roteiro (fator que a Marvel acerta em cheio em Guardiões da Galáxia (2014)).
Neste segundo filme, as personagens só não mais bem exploradas, como também são mais complexas. Hulk entra em crise de identidade, numa cena muito poderosa (que poderia ter sido melhor utilizada, no sentido dos humanos desconfiarem mais do papel dos heróis. No mais, o conflito interno dos heróis coube para sanar este espaço), Viúva Negra funciona bem tanto como femme-fatale, quanto como a pessoa pragmática. No começo do filme, quando o Gavião Arqueiro é o primeiro a ser ferido, logo imaginei: "Putz, de novo, para falar que não feriu ninguém, vão ferir o coitado?", mas conforme a trama se desenrola, a conflito de humanidade e endeusamento estará totalmente impregnada nele. O que nos leva ao segundo ponto: o endeusamento dos heróis. Enquanto víamos heróis quase que inabaláveis, sob os braços protetores da S.H.I.E.L.D., comentários narcisistas que aumentam ainda mais o ego das personagens e cenas de ação com personagens tão poderosos, fazendo a luta parecer mais uma dança, este segundo filme mostra um Homem de Ferro muito mais questionável (ecoando Pierce de Capitão América 2: Soldado Invernal (2014)) e um Capitão América mais incapaz. Todo este quadro ajuda a acreditar que os heróis que estamos acompanhando tenham de fato uma chance de saírem perdendo (o que de fato acontece, já que no final Mercúrio (Aaron Taylor-Johnson) morre e o grupo é desmembrado).
E o Thor? Uma boa pergunta. Se existe uma exceção a tudo isto que disse, aqui está ela. Sem contar o alívio cômico do martelo e a viagem que ele faz (cujo único propósito é o de ampliar o Universo Marvel, trazendo à cena as Gemas do Infinito), Thor não acrescenta de nada ao filme. No entanto, mesmo com toda esta evolução, um problema que existia no primeiro filme, se mantém aqui também. Embora as personagens tenham um bom desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento em conjunto é muito fraco (vemos uma relação de Homem de Ferro com Hulk, e no máximo, Capitão América. Viúva Negra tem um relacionamento muito mal desenvolvido - comentarei mais adiante - com Hulk e Gavião Negro. As melhores dinâmicas estão justamente em Hulk, Capitão América e, curiosamente, Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) para com os demais, já que ela cria conflitos interessantes com seu irmão, Capitão América, Homem de Ferro, Gavião Arqueiro e o próprio Ultron (James Spader). Por fim, o Thor é o Thor; ele está em outra realidade que não a do filme).
Além disso, temos um problema que se propagará para o final deste filme: personagens surgindo e desaparecendo em momentos chaves, sem que houvesse um desenvolvimento. Isso acontece com o Falcão (Anthony Mackie), Máquina de Combate (Don Cheadle), e principalmente, Nick Fury (Samuel L. Jackson). O final é horrível pois no momento clímax, em que temos o primeiro confronto moral da saga Vingadores, o filme escolhe uma saída fácil, ressurgindo com Nick Fury. Talvez o maior confronto moral de Vingadores recaia entre seguir fielmente os quadrinhos ou criar um desfecho factível, pois o desenvolvimento que temos até então de Nick Fury está longe de explicar este final. Muitos talvez justifiquem a entrada e saída de personagens pelo fato do Universo Marvel funcionar numa escala maior que filmes separados. A Marvel de fato criou um novo jeito de se contar uma história, mas mesmo assim, nenhum elemento que acontece em Capitão América 2: Soldado Invernal explica o final fácil que o filme escolhe. Se mesmo assim, você não tenha se convencido que este argumento não explica esse "plot-twist", darei um exemplo desta própria obra: a Viúva Negra pode se relacionar com quem ela quiser (e não é por isso que ela será uma vadia como alguns atores vem falando). O problema é que isto é um filme, e ela passa por três filmes se relacionando com três heróis diferentes, sem um desenvolvimento razoável que explique este processo. Se o argumento do Universo Marvel for utilizado para responder o porquê de Nick Fury ter salvado a pele dos nossos heróis, o mesmo deverá valer para o desenvolvimento dos relacionamentos da Viúva Negra ao decorre dos filmes.
As cenas de ação são muito boas, sempre pegando planos abertos que visam mostrar a movimentação e combates de um jeito mais realista do que sucessivos cortes e câmeras tremidas. A misé-en-scene dos combates é muito interessante, pois vai levando a câmera através dos movimentos até o novo personagem (a cena inicial ilustra isto perfeitamente). Algo que talvez possa incomodar certos telespectadores é o excesso de conteúdo em cada cena, com múltiplos combates e poderes que nos obrigam a escolher a luta que queremos seguir. Uma estratégia que o filme usa para sanar este problema é a constância nas câmeras lentas, nos dando não só mais tempo para observarmos tudo, como também a magnitude do poder destrutivo aparente nos diversos objetos destruídos que completam o enquadramento (o 3D é realmente descartável).
E enfim chegamos ao quarto final... eu já expus meu ponto sobre o Nick Fury, então me atentarei a outros aspectos. Até aqui tínhamos um quadro menos endeusado e maniqueísta (Homem de Ferro e Hulk) dos nossos heróis. Mas aí o filme faz questão de mostrar os heróis salvando civis específicos, e não uma vez só, o que ficaria subentendido diante de um conflito no meio de uma cidade. Nós já sabemos que eles são os mocinhos, o filme não precisava mostrar eles salvando pessoas enquanto Ultron tenta destruir o planeta Terra em geral. Mas o maior problema ocorre só quando começam os créditos: vemos uma grande estátua de mármore dos nossos heróis. Há jeito mais endeusante do que mostrar alguém lapidado numa escultura de mármore?
Vingadores: Era de Ultron possui cenas de ação impressionantes e uma sobriedade e profundidade de trama relevantes, mas que peca num final fraco e contraditório (com o que vinha construindo até então), marcado por personagens, embora mais complexos e desenvolvidos do que os do primeiro filme (menos o Thor, é claro), pobres em quesito de relações de grupo, sendo assim, injustificável para algo que se vende como um filme de um grupo de heróis.
No decorrer dos anos, a Marvel vem se mostrando não só boa com o entretenimento, como desenvolvendo temas e personagens muito mais complexos do que as carinhas bonitas pareçam ilustrar. De um lado temos Guardiões da Galáxia (2014) com sua pulsante naturalidade e momentos dignos de Pulp Fiction (1994), e de outro temos a sobriedade da série Demolidor (2015), com uma profundidade de temas e relatos psicológicos como nunca antes. Deste berço nasce Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Se em Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), tínhamos um protagonista caricato, numa sociedade maniqueísta, baseada no fortalecimento do nacionalismo, neste segundo filme, todas essas ideias serão diluídas.
Ao começo do filme, Steve Rogers (Chris Evans) e Sam Wilson (Anthony Mackie) parecem questionar a ideia de belicismo derivada do nacionalismo exacerbado do primeiro filme, interrogando-se de seu papel na sociedade atual e os receios vindos com a guerra. Da mesma forma, se antes víamos os mocinhos dos Estados Unidos lutando contra as forças do mal da H.Y.D.R.A., aqui vemos um conflito entre irmãos da mesma pátria (confiança é um tema bem forte dentre todas as personagens), no que antes fora o exemplo máximo de ordem e respeito, a S.H.I.E.L.D.. O momento de sua dissolução só será tão poderoso, pois contrapõe com a imponência supranacional que a instituição estampava. E se os órgãos não ilustram a ausência de maniqueísmo do filme, temos tanto um Capitão América que varia entre herói (com um museu próprio) e perseguido, como um Soldado Invernal (Sebastian Stan) confuso com sua origem ou seu propósito.
Interessante também é perceber o papel do Capitão América em todo o processo; ele não passa de um cavalo de guerra, seguindo as ordens de seus superiores, como ele mesmo se refere em certo momento do filme (embora seja ele quem comande a articulação da equipe, é Nick Fury (Samuel L. Jackson) ou Viúva Negra (Scarlett Johansson, caracterizando a perfeita femme-fatale) que possuem as informações mais privilegiadas. Em outro momento, quando Nick Fury o orienta a não confiar em ninguém, vemos um Capitão América perdido como uma criança sozinha num shopping). A ideia de um poder que controla a força bruta é importante pois mais uma vez desconstrói a ideia romantizada de um herói sem precedentes. É claro que várias dessas ideias (anti-belicismo, inteligência sobre força bruta) serão diluídas progressivamente conforme o filme passa. Mas só pela oportunidade de vermos um dos maiores símbolos de força dos quadrinhos a partir de um outro parecer é, sem dúvida, interessantíssimo.
Os aspectos técnicos também evoluíram consideravelmente desde o filme anterior (embora a série Demolidor tenha de longe a melhor direção de todas as obras da Marvel). Acredito que a cena que melhor resume essa evolução é justamente quando o Capitão América vai conversar com Pierce (Robert Redford) após Nick Fury dizer que ele não deveria confiar em ninguém. Conforme a conversa segue e Pierce vai jogando mais na ofensiva, a câmera vai se distanciando, de forma a pegar os dois cada vez mais longes um do outro, expressando cinematograficamente a desconfiança do Capitão América. Um pouco depois, temos a cena do elevador. É claro que a parada em vários andares, com cada vez mais pessoas entrando, servem para aumentar o suspense. Mas mais do que isso, esta cena expressa mais uma vez a desconfiança, já que não só o elevador vai enchendo, como a câmera faz questão de enquadrar o Capitão América através dos vultos dos demais. Detalhes como estes podem ser sentidos quando vemos o filme, mesmo que passem despercebidos, mas quando notados, a sensação acaba enaltecida. Excetuando alguns momentos em que as cenas de ação são demasiadamente tremidas e possuem muitos cortes, elas são em geral funcionais, principalmente as que o Soldado Invernal está em cena, já que temos planos mais distantes, pegando a amplitude das ótimas coreografias de luta.
Por outro lado, Capitão América 2: O Soldado Invernal falha em amarrar cenas por vezes irracionais, por vezes expositivas demais. Em relação ao primeiro ponto, a cena mais problemática é justamente a final. Ao invés do Capitão América, da Viúva Negra e afins seguirem diretamente para as plataformas aéreas e implantar os chips de forma sorrateira (o que seria possível, já que todas as missões até então, por mais difíceis que fossem, fossem feitas desse modo), vemos os heróis anunciando suas presenças, tornando a tarefa muito mais complicada (muito porque os funcionários justos da S.H.I.E.L.D. não acrescentam ao clímax da ação). Na verdade, até aqui não vejo um problema tão grande; o que não entendo é como Pierce e os integrantes da H.Y.D.R.A. simplesmente não desmentem tudo o que acabara de ser dito, pois até então, tudo parecia indicar que o Capitão América de fato era o meliante. Em relação aos diálogos expositivos, o principal problema está na cena de Zola (Toby Jones) e os milhares de computadores. Até antes disso, não sabíamos quase nada do "Projeto Insight", da existência da H.Y.D.R.A. ou dos planos de aniquilamento seletivo. É claro que para quem viu o filme anterior, Zola faz muito sentido, mas como obra separada, esta cena não se sustenta, além de ser, mais uma vez, muito expositiva.
Capitão América 2: O Soldado Invernal tem personagens complexas e psicologicamente profundas, um cuidado estético bem aparente e temas periféricos relevantes, sendo, sem dúvida, muito superior ao seu filme anterior. No entanto, o filme acaba não desenrolando a narrativa em pontos vitais de seu desenvolvimento, tendo assim, resoluções mais pobres que suas introduções.
Quem nunca ouviu "All My Loving", "Come Together" ou "All You Need Is Love"? Across the Universe (2007) não só trás uma sensação nostálgica como constrói uma narrativa embalante que será importantíssima para dar vigor e sentido às músicas. Acompanhando a história de Jude (Jim Sturgess) entramos numa orgia de referências à músicas, artistas e momentos da vida dos integrantes The Beatles (nome das personagens - Jude ("Hey Jude"), Prudence ("Dear Prudence", "She Came Through the Window", Max ("Maxwell's Silver Hammer") - ao se juntar ao grupo entrando pela janela do banheiro), Lucy ("Lucy is the Sky with Diamonds")...; artistas - Sadie (Janis Joplin), Jo-Jo (Jimi Hendrix), Max (Kurt Cobain), sem contar as aparições de Bono Vox e Joe Cocker; momentos em que Jim se assemelha ao Paul McCartney, John Lennon).
Sendo um filme minimamente arquitetado para tanto contar uma história fluida como para homenagear uma das bandas mais famosas da história, Across the Universe não se perde em nenhum dos lados. Adotando a forma de um musical, muitas vezes temos cenas em que o que vemos não é de fato um, já que as vezes ouvimos uma personagem cantando, mas não a vemos de fato mexendo a boca, como se tomasse parcela unicamente de trilha sonora. Vejo o filme em quatro partes: "o encontro", "a curtição", "o declínio" e "o reencontro". As duas partes periféricas, principalmente "o encontro", são bem casuais em qualquer filme, tendo algumas pinceladas muito interessantes. Destaco a cena em que descobrimos que Prudence (T.V. Carpio) é lésbica. A cena tem um charme no movimento da câmera, pendendo sempre para a garota: quando vemos Prudence cantando, a câmera vai girando no sentido horário. Esse movimento é tudo, menos ingênuo. Sendo o cinema baseado no movimento, esse leve inclinar se propagará imageticamente para o corte do casal, fazendo nos dirigir para a garota loira para qual ele olhava.
Se o início foi muito normal, a parte central do filme é a (que eu mais gosto) mais delirante. Começando por uma cena incrível de resignificação da música "I Want You", vemos a desumanização da figura antes sempre alegre de Max (Joe Anderson), passando pelas drogas pesadas de "I Am the Walrus", por um circo psicodélico de "Being For The Benefit of Mr. Kite" e chegando enfim à rodinha de "Because", sentimos visualmente toda a loucura que as personagens passam. Impressionante é pouco para os efeitos de saturação, maquiagem, coreografia, movimentos de câmera e edição empregados nestas cenas para intensificar as sensações. A passagem para "o declínio" com a cena de "Strawberry Fields Forever" cria contrapontos com a guerra, amor e dor impressionantes, utilizando-se de um vermelho intenso e pinceladas à la Pollock para retratar toda o sofrimento da cena.
Neste meio tempo é interessante perceber vários temas recorrentes da década de 60, 70 que permeiam o filme: temos a Guerra do Vietnã, a revolução sexual, as drogas, as questões raciais, o movimento "hippie", a ascensão do "Hare Krishna"; todos temas que de fato fizeram parte da carreira The Beatles. O mais interessante de tudo é que eles são tratados musicalmente, como se ilustrasse justamente a ideia de não-violência (paz e amor). A diretora emprega fortemente sua visão em relação às instituições (o Exército e sua desumanização, a Polícia e sua fúria, a desvirtuação de ideologias). Juntamente com os momentos de sexo e drogas, todos estes temas são tratados muitas vezes como as referências The Beatles, como se fossem prêmios a serem descobertos. Num filme em que há certo momento não sabemos se nada de fato é real, deixar as coisas em implícito é mais divertido que qualquer outra abordagem. Destaco aqui a cena do protesto no prédio de Columbia com uma perfeita sobreposição de imagens e músicas, em que Jude desacreditado da eficácia do movimento canta a música título "Across the Universe", mas que ao fim acaba se tornando "Helter Skelter", como se o amor impulsionasse esta fúria escondida.
O "reencontro" ao som de "All You Need is Love" é incrível. Cabe aqui uma análise imagética de Lucy (Evan Rachel Wood). Enquanto a vemos como a garota perfeita e feliz, os tons que a cerceiam são amarelados, transparecendo visualmente esta sensação. Conforme ela vai "conhecendo o mundo" e relacionando-se com Jude, ela vai perdendo o amarelo, ficando tão sem cor quanto Jude era no começo do filme na Inglaterra (o contraponto do Velho e do Novo Mundo intensificam a diferença de paletas das duas protagonistas). No entanto, para se reencontrarem, ambos são trazidos em táxis amarelos, como se a felicidade estivesse retornando. Por fim, uma última ideia interessante se situa justamente no título do filme. Across the Universe remete tanto à viagem que as personagens fazem através das drogas no meio do filme, à evolução de personagens sempre fazendo referências The Beatles, como também a distância que sempre dificultou o amor de Jude e Lucy: o oceano, as paletas de cores, e por fim, a rua que separa os dois prédios. Um filme nostálgico, tocante, mas o mais importante de tudo, bem contado. E que fiquemos com Lucy aos céus com seus diamantes...
Embora muitos se lembrem de Branca de Neve e os Sete Anões (1937) unicamente como um marco para a história das animações, estes acabam passando despercebido por uma construção de personagens e ambientes tão poderosos, que poderiam ser muito bem vistos num filme rodado normalmente com pessoas.
A figura de Branca de Neve já fez, com toda certeza, parte da vida de muitos de nós, mas vendo-a no filme com olhos mais maduros, tenho a impressão de que ela (e o Príncipe) são na verdade as duas figuras mais desinteressantes da obra. O poder de magnetismo de Branca de Neve é de fato explorado desde os primeiros minutos do filme, sendo até mesmo impulsionador de todos os conflitos que prosseguirão, mas ao mesmo tempo que esta beleza se perpetua, cria-se uma personagem tão romantizada, que por efeito faz com que nossa identificação seja muito dificultada, pelo simples fato de ela não parecer real. Falando em romantização, é interessante perceber como Branca de Neve, mesmo em trapos, aparece em um local claro e aberto, rodeada por natureza, em contraste à Rainha num ambiente escuro e claustrofóbico (embora opulente). O tom maniqueísta é tão bem elucidado, que no primeiro momento em que Branca de Neve foge pela floresta, correndo perigo (ou pelo menos achando que corre, já que a idealização do ambiente decorre do caráter romantizado e ingênuo dela), temos um choque impactante com toda a harmonia e beleza que havíamos visto antes.
Seguindo as impressões de Branca de Neve, é nada mais justo termos um mocinho que demarque as características viris e nobres que só alguém ultra-apaixonado poderia criar. Não bastando, nos breves momentos iniciais que seguimos os passos do Príncipe, árvores largamente floridas acompanharão cada quadro em que este se encontra. Esta composição ajuda a compor a idealização contida na personagem, mas mais do que isso, servirá futuramente para um detalhe sutil e primoroso que denotará a perfeita caracterização de personagem.
Antes de conhecermos a Rainha e os Sete Anões (owwnt...), é interessante pontuar como alguns quadros são criados. Na mesma cena em que conhecemos o Príncipe, Branca de Neve termina a canção enquadrada pelo seu reflexo na água do poço. Esquadrinhando a ideia do reflexo/espelho, percebemos que ele será sempre utilizado como recurso de desejo/meta (a Rainha perguntará diversas vezes ao espelho se é a mais bela, estando somente satisfeita se a resposta for favorável). Da mesma forma que a Rainha, Branca de Neve verá seu desejo ser realizado através de um espelho d'água. No entanto, logo após que saímos deste ponto de vista, e voltamos à "realidade", Branca de Neve foge correndo do Príncipe. Esta ideia do espelho é muito poderosa e será também vital para o desfecho do filme.
Após se entender com os bichinhos, no talvez, momento mais romantizado da obra, Branca de Neve avançará para dentro da casa dos anões. É importante ressaltar a composição de cena até então, já que raios de luz e molduras de quadros compostas pela natureza traçarão um paralelo harmonioso entre a casa e a natureza. Assim que Branca de Neve abrir a porta da casa, todo o colorido se desmanchará num escuro infindável. No entanto, mais impactante do que este contraste é uma trilha sonora senão perfeita, funcional. O contraste sonoro, de pontadas bruscas e curtas no interior da casa com um tema mais arrastado e solto do exterior só intensifica o suspense do mais uma vez desconhecido (a primeira vez na entrada da floresta – natureza surrealista – é também poderosíssima, mas o contraste desta segunda vez é mais perceptível, já que Branca de Neve transita entre os dois ambientes várias vezes antes de fato entrar).
Finalmente conhecemos os Sete Anões (Heigh-Ho, Heigh-Ho), e a cena em que estes retornam à casa é no mínimo bela, para não dizer magnetizante. Conforme vamos conhecendo cada um mais a fundo, vamos percebendo como o trabalho de caracterização fora bem feito. Se de Branca de Neve e do Príncipe vemos beleza, em cada um dos anões vamos vendo características que não precisariam nem serem acompanhadas de seus nomes para entendermos. O Mestre embora atrapalhado impõe respeito pela idade, caracterizado no óculos que usa, Soneca possui as olheiras mais bem demarcadas. Zangado tem sobrancelhas rígidas e um nariz protuberante, e assim por diante. Talvez a caracterização mais interessante seja a de Dunga que se assemelha à tartaruga vista antes (roupas verdes grandes como se fosse um casco), e que assim como ela, sempre é deixada para trás. Todos eles são personagens bem caricatos, e a partir da hipérbole de suas ações e características físicas, os identificamos, fazendo-nos se importar com cada um deles.
Na mesma ideia, precisamos de uma vilã que nos faça odiá-la, e mais uma vez o filme acerta em cheio. Se não bastasse uma mulher com trajes e andar arrogante, que além de tudo, praticamente escraviza Branca de Neve, a Rainha passará por um processo gradativo de maldade, tanto físico quanto psicológico. Não satisfeita em mandar sem sucesso matar Branca de Neve, ela mesma decide resolver isso, transfigurando-se em uma velha baixinha enrugada, com uma verruga no nariz e olhos incisivos. O momento de sua morte é tão grandioso que não só vemos nossos heróis derrotando-a, como relâmpagos desferirem ao fundo, o brado e o poder da cena.
Mesmo morta, a Rainha consegue realizar seu feito. E se antes Branca de Neve era como se fosse uma mãe para os anões, ela será a criança coagida pelo desconhecido, e que por fim, acaba "morta" sobre o leito coberto por um vidro, numa cena em que até a vela chora em sincronia aos anões. Dito isto, é interessante perceber uma noção de falta de maternidade presente em quase todas as personagens: desde uma Branca de Neve órfã, passando pelos Sete Anões numa cabana afastada, até uma Rainha sem laços amorosos, filiais ou pelo menos, amigáveis. Concomitantemente, essa privação gerará personagens infatilizados, obstinados e ingênuos em seus pareceres a ponto da Rainha conseguir convencer Branca de Neve a comer a maçã, mesmo alertada pelos anões a não aceitar nada de estranhos (uma ideia muito parecida aparece também em O Labirinto do Fauno (2006)). Mesmo em uma animação aparentemente inocente, conceitos de abandono e amadurecimento aparecem fortes.
Um pouco antes do fim, vemos letreiros anunciando o porquê de Branca de Neve não ter sido enterrada. No entanto, o mais incrível não está nos letreiros, mas atrás deles: vemos o passar das estações (outono, inverno e primavera) através de um galho de uma árvore, e que por fim, termina nas mesmas flores que compunham a imagem do Príncipe. Os letreiros também diziam que o Príncipe chegava, mas este detalhe sutil confirma de fato a sua vinda.
Na fatídica cena, antes do Príncipe chegar, os anões colocam flores sobre o corpo de Branca de Neve, retirando o vidro de cima dela. E é aqui que retornamos ao início do comentário. Se o espelho/reflexo/vidro significava um desejo inalcançável, o tirar do vidro representa metaforicamente que este desejo agora está se tornando real: Branca de Neve ficará com o Príncipe para todo e eterno sempre.
Branca de Neve e os Sete Anões possui sim uma importância histórica, mas pelo trabalho estético e, principalmente, pela composição de personagens, torna-se mais um protagonista na maravilha que é o cinema.
Quando analisamos um filme como Paprika (2006), alguns dizem que temos que ser bem cuidadosos em não destrinchá-lo a ponto de se esquecer da temática onírica do filme, e que portanto, em algumas situações, os sonhos simplesmente não precisam fazer sentido. Por outro lado, numa expressão como o cinema em que cada minuto a mais existe justamente para construir uma coesão mais solidificada do resto da obra, podemos entender que cada inferência não seja desproposital. Se formos analisá-lo assim como um dos filmes mais bem aclamados do tema (A Origem (2010), que segundo Nolan, se inspirou neste filme) faz, parece que a saída mais propícia seja de fato racionalizar todas as imagens. No entanto, muitas das representações oníricas de A Origem se assemelham com a realidade propriamente dita, fazendo com que a confusão esteja em achar no real, o estranho. Em Paprika, quanto mais afundamos no filme, mais bizarrices parecemos presenciar. O efeito aqui é o contrário: encontrar no estranho a realidade. Dessa forma, entramos num dos primeiros - e muitos - impasses de Paprika: como entendê-lo?
Uma boa alternativa é tentar verificar o cunho psicológico do filme e das personagens. Mas antes disso, uma breve explicação da análise psicanalítica do filme: segundo Freud, o homem se divide em três regiões mentais: o ego, o id e o superego. O primeiro se resume nas facetas que são de fato mostradas por cada indivíduo. O segundo são basicamente os desejos mais primitivos do homem, como fome e sexo que só não são expressos devido ao controle que o terceiro faz. Uma figura bem ilustrativa destas três regiões de um homem é um iceberg. Sobre a água, temos uma pequena parcela do que somos, mas é sob ela que encontramos não só a maior parte do indivíduo, como também estas expressões mais irracionais do homem. Controlando nossos impulsos quando estamos acordados, é justamente quando nos embriagamos, nos drogamos, ou simplesmente sonhamos, que o subconsciente não só revisita todo o dia que tivemos, como também verbaliza nossas emoções, sensações e desejos reprimidos. Desde o detetive Kogawa Toshimi (Akio Ôtsuka), com um passado mal resolvido, até o cientista gordinho Tokita (Tôru Furuya), repreendido por sua infantilidade, fazendo com que as pessoas não o levem a sério, todas as personagens deste filme (e de um outro filme chamado vida) possuem certas desilusões. Tentando sanar tais problemas, um grupo de cientistas criará uma máquina que servirá na ajuda de consultas psiquiátricas. A partir do momento que isto cai em mãos erradas (no talvez mais desiludido de todos, já que a inconformação do mundo, pelo presidente Inui Sei-jiroh (Tôru Emori), é tão cruel quanto a dor do amor não correspondido - Osanai Morio (Kôichi Yamadera)), a forma de escapismo de todas essas pessoas, o lugar em que todos poderiam se sentir donos do mundo, acaba se tornando um pesadelo pior do que a própria vida em que vivem. Pior, acaba se mesclando a ela. Passar por um sonho é uma utopia, agora viver nele já passa a ser uma distopia.
Além da desilusão pessoal, ainda temos um outro tema fortíssimo: a repressão sexual. Começando pela personagem principal do filme, Paprika é uma persona de Chiba (Megumi Hayashibara), sendo totalmente contrária a que esta última é. Dessa forma, enquanto a primeira é mais expansiva, instintiva e sexual, a segunda já é mais reservada, racional e analítica (assim como no conflito na forma em que deveríamos analisar o filme). Sendo uma persona, Paprika pode significar todas as características que Chiba almejaria ter, mas que só conseguem ser expressas quando o id se prepondera, sendo por isso o porquê de Paprika aparecer unicamente nos sonhos, e mais do que isso, aparecer com mais constância a partir do momento em que sonho vai se misturando com realidade. Por outro lado, Paprika é também como se fosse uma femme-fatale, já que seduz todos os homens (beija Kogawa, é desejada por Osanai, acorda Shima Tora-taroh (Katsunosuke Hori), acaba com Tokita e destrói Inui). Ou seja, ao mesmo tempo que Paprika significa a repressão sexual de Chiba (já que esta precisa criar uma persona para então realizar tudo o que deseja), ela também é o libido sexual de todos os homens do filme.
Se não bastasse Tokita ainda possui o outro desejo primitivo que citei lá em cima: a fome. Dessa forma, embora nós, e as próprias personagens do filme, não o levem a sério por sua infantilidade, é justamente ele quem terá duas das representações mais características do id, sendo portanto, um dos personagens mais complexos do filme. Essa complexidade é expandida também na figura de seu grande amigo Himuro Kei (Daisuke Sakaguchi). Se pararmos para pensar, Himuro é tão infantil quanto Tokita, pelo fato de se apegar mais a bonecas do que propriamente humanos. Se pararmos para observar elementos específicos de cada cena, perceberemos que Himuro e Tokita eram na verdade grandes amigos. Mesmo que ele aparente ser o inicial antagonista, quando conhecemos seu quarto, conhecemos sutilmente várias de suas características. Primeiramente, Himuro é homossexual. Em uma das estantes de sua casa podemos ver uma revista homossexual dentro de uma caixa. Dessa forma, Himuro poderia idolatrar Tokita muito mais do que só profissionalmente, mas também sexualmente. No entanto, mais uma vez, esse detalhe é tão sutil que por si só indica metaforicamente a repressão sexual que eu comentei acima. Além disso, quando descemos com Chiba por uma escada, chegamos a um corredor repleto de desenhos bem pictóricos de várias bonecas dando mãos a robôs. Se entendermos o robô como Tokita (já que a persona dele nos sonhos é justamente um robô), vemos que a amizade deles era muito mais forte do que Osanai achava ser, quando inferiu que Himuro poderia estar querendo prejudicar Tokita.
Por fim, temos Kogawa, um estudante de cinema desiludido com a morte do seu maior ídolo e amigo que o ajudara a desenvolver seu primeiro filme. A partir de então, Kogawa repugnará toda a forma cinematográfica. Peguemos a ideia de filme. Na mesma ideia de sonho, um filme pode ser uma forma de escapismo da realidade que nos leva a um mundo tão belo e intangível que queremos ficar unicamente nele. É então uma ironia bem interessante ver Kogawa recusando a ficção do filme e aceitando a do sonho com o decorrer da narrativa.
Uma outra forma de analisarmos o filme, já de certa forma comentada nas relações entre Himuro e Tokita é a técnica, já que se pararmos para ver um cena qualquer deste filme, nos depararemos com uma explosão de cores, sons e formas. Paprika é um dos primeiros filmes a se utilizar unicamente de Vocaloid em sua trilha sonora. Se formos levar novamente para o sentido metafórico da coisa, é como se até mesmo os elementos fílmicos estivessem indicando uma surrealidade da vida, o que é bem interessante para incrementar a ideia de confusão do real e do sonho. No entanto, é sem dúvida o trabalho de cores que impressiona não só pela sua beleza estética, mas também pelo significado por trás dele. Talvez a um primeiro momento não seja perceptível, mas se analisarmos mais a fundo veremos que as cores vermelha e verde aparecem ao decorrer do filme, quase como antagonistas. Essa dicotomia aparece várias vezes entre Chiba e Paprika, com a primeira normalmente tendendo ao verde, e a segunda ao vermelho. A cena inicial em que Paprika dirigindo uma lambreta vermelha vai através de cortes se transformando na Chiba, que está dentro de um carro vermelho, retrata o papel destas cores muito bem. Como já dito antes, Paprika é libidinosa, instintiva, sendo representada pela cor vermelha de seus trajes, enquanto Chiba mais refreada, racional, denota tons verdes. Nesta mesma cena da troca da lambreta pelo carro, se repararmos que Chiba usa um batom vermelho, podemos entender que essa sexualidade embora fraca, exista nela, como se denotasse um toque do que ela gostaria de ser. Essa racionalidade diante em relação ao sonho também não é positivamente retratada já que tanto Inui quanto Osanai terão gravatas verdes, além de serem rodeados de plantas (como na estufa de Inui) como se prenunciassem o mal deles. No entanto, estas duas cores apresentam um outro papel bem interessante. Se Chiba é a pessoa real e Paprika a persona, podemos interpretar que o verde significa a realidade, enquanto Paprika remete ao sonho, ao surreal. Se pararmos para ver, no início do filme os tons dominantes eram o verde, já que ainda estávamos no mundo real. Conforme o filme vai passando, a dominância é do vermelho, como se indicasse o mundo onírico em que estávamos. Na realidade, chegando mais ao fim do filme, estas duas cores começarão a se misturar mais e mais, tendo cenas em que só teremos verde e vermelho, indicando justamente a confusão da realidade e do sonho. Em termos práticos, as cores vão se misturando, se misturando até no final, quando Inui for combatido, aparecer um céu azul, como se tivéssemos um novo mundo, uma nova perspectiva.
Finalmente, após darmos todas essas voltas chegamos ao grande fim. Se em todo o filme tínhamos uma repressão sexual, no fim, Paprika "entra" (entenda metaforicamente como sexo) em Tokita e forma um novo ser. Assim como a Starchild de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), esta garota parece prenunciar uma nova vida, um novo rumo, assim como as cores azuis. Considerando ainda que este novo ser é uma mulher, nada mais justo que diante de uma história de repressão sexual, criemos um novo mundo a partir da mulher, o símbolo máximo da fertilidade. Por outro lado, podemos interpretar que a ideia de escapismo através do sonho se perdeu a partir do momento em que tentamos utilizar-se dele como forma de sanação dos maus da realidade, já que o sono tornou-se a nova realidade. Desta forma, engolir o "vírus" deste sonho, não indicaria o prenúncio de um novo mundo, mas sim ter alcançado um nível de convivência com a realidade, por mais cruel que ela seja. Em outras palavras, é como se as personagens precisassem passar por toda essa jornada para despertarem a catarse de aprender se viver com a realidade. Liricamente isto é lindo, e o final parece de fato mostrar que, independentemente da análise do final, tudo parece estar melhor. Porém, a pergunta permanece, podemos racionalizar nossos sonhos/será que tudo está correto mesmo?
Para um filme sobreviver por mais de 80 anos como um clássico é preciso muito mais do que uma boa história, personagens memoráveis ou metáforas/críticas impressionantes; é preciso ser único. Alguns filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) mantém-se pela sua maestria imagética e filosófica, outros como Luzes da Cidade (1931) perpetuam-se pela sua humanidade. É certo que Chaplin levara muitas pessoas ao cinema através de sua pantomima (gestual diz mais que as palavras), mas numa situação pós-crise de 29, com o cinema falado desbancando (faziam 4 anos que O cantor de Jazz (1927) fora lançado), a ousadia em manter uma obra muda parecia questionável. Felizmente, o sucesso foi estrondoso. E muito dele se dá justamente por pela pantomima. Pantomina esta, que sem dúvida, marca juntamente com os trajes, a figura antológica de Carlitos. Esta caracterização é exatamente o que dá humanidade ao filme: enquanto as falas criariam uma barreira inicial às diversas pessoas da Terra, os gestos denotam uma universalidade, pois independentemente do que é dito, a ação é igual a todos.
Embora não empregue o som na figura de Carlitos, vemos algumas experimentações muito bem empregadas, como o zumbido na voz dos políticos, criticando o vazio da fala, sendo seguido por um hino nacional que cessa repentinamente toda a confusão criada por Carlitos. Se formos analisar esta cena das estátuas, veremos uma construção muito similar a de Taxi Driver (1976), mais de 40 anos depois. Nele, vemos o político Charles Palantine discursando num enquadramento bem distante. Enquanto Luzes da Cidade mostra o vazio através dos zumbidos, Taxi Driver mostra através do distanciamento. Embora tenhamos um foco inicial nestas figuras políticas, logo descobriremos que é o transviado quem terá o papel principal na trama. Assim que o vagabundo/Travis Bickle tomar o controle da cena, o político será só mais uma figura na multidão (em Luzes da Cidade, o político aparecia inicialmente sozinho, mas depois é visto rodeado de outras pessoas, assim como em Taxi Driver, com Palantine descendo do palanque e se misturando à massa). Neste breve momento dos dois filmes, vemos quem é que de fato detém o poder na trama que veremos ao decorrer das obras. Por fim, observando as estátuas propriamente ditas (cujo nome é "Paz e Prosperidade"), vemos a personificação da sociedade: embora sobre os braços de uma estátua, uma das outras aponta uma espada para Carlitos. A estátua que representa o símbolo de paz e prosperidade só é plena se não existirem estes marginalizados. Carlitos é um adendo, um apêndice que não harmoniza com o quadro que as pessoas direitas querem dar. No decorrer do filme, veremos que é este mesmo marginalizado quem trará a paz e prosperidade para outros membros da sociedade.
Uma outra cena que reflete esse sufoco ante o marginalizado é o momento em que Carlitos observa uma vitrine e cai num elevador subterrâneo. A vitrine pode significar o reflexo da sociedade. Sendo Carlitos o reflexo da vitrine, Carlitos é a pessoa que não faz parte da sociedade, mesmo que a observe atentamente. Além disso, temos diversos planos (carros/Carlitos/vitrine/estátuas). Assim como as estátuas e a vitrine, os carros indicam a modernidade e evolução da sociedade. Dessa forma, é como se Carlitos fosse sufocado por todos os lados, e quando acha um espaço de conforto é deparado por um operário do elevador que, mais uma vez, o sufoca. Como um vagabundo, Carlitos vai vagando através de diversas figuras que serão tocadas pela sua "ingenuidade" (explicarei o porquê mais para frente), seja o bêbado ricaço (Harry Myers) ou a garota cega (Virginia Cherrill).
O primeiro contato que temos com o bêbado é ofuscado por uma lamparina forte atrás da ação. Da mesma forma, quando vemos a cega pela primeira vez (um tanto sonhadora, um tanto melancólica), temos a impressão de que ela é quase um anjo (o rosto virado, a iluminação do semblante, o enquadramento harmônico e a relação das flores à sua pessoa). Essa luz está até mesmo nos indivíduos mais ausentes da sociedade, mas por que não em Carlitos? Porque não. Na verdade ele também tem sua luz, a flor que carrega ao peito ao decorrer de todo o filme. A flor, assim como ele, é bondosa e delicada. Carlitos não é ingênuo (percebendo que a garota é não só cega quanto acha que ele é rico, Carlitos se aproveitará para se aproximar cada vez mais dela. No entanto, Carlitos não é mau. Em outras palavras, não ser ingênuo não é algo ruim, nem mesmo para a figura meiga de Carlitos, mas sim uma característica que intensifica sua humanidade, e por conseguinte, a do filme), assim como a cega também não é. A questão é simplesmente julgar bom algo que não é ingênuo (pois algo ingênuo é sempre por natureza bom), e é isso que embeleza mais ainda as personagens. Falando em julgamento, esta é outra ideia forte no filme. Todos, sem exceção, ou não veem Carlitos como ele realmente é ou o ignoram. A sociedade não só despreza sua presença, como o identifica como infrator da paz. O resto das personagens que o veem positivamente, na verdade não o veem em sua completude, já que temos uma cega, um rico que só simpatiza quando bêbado e uma mãe que nunca viu Carlitos, mas o romantiza através das palavras da filha (dessa forma podemos interpretar que a ausência das falas deste filme sirva para que o espectador entre no filme com um artifício a menos para julgar Carlitos, servindo como efeito metalinguístico). Esta ideia enfatiza ainda mais a noção de vagabundo, do sujeito que muito mais do que sem trabalho (muito porque ele acha emprego assim que precisa) e errante é um peso à sociedade.
Dentre diversas cenas recheadas de graça e fofura (como a cena divertidíssima de boxe ou da cena em que Carlitos guarda uma nota para si, mas acaba cedendo ao beijo da cega), chegamos a cena final com uma carga emocional positiva muito grande. Este contraste será fundamental como intensificador da tristeza. Após ser rechaçado pelos garotos de rua, Carlitos verá a flor, ou melhor, a luz da cidade que o guiou até este fatídico fim, e ao encontrar a agora florista e não mais cega se emociona mas se assusta com a realidade. Mais uma vez teremos a vitrine como intermédio. De dentro da vitrine temos a garota, agora como parte da sociedade. Com uma mistura de dó e escárnio em relação a Carlitos, ela vai até ele e entrega a flor/luz, só que por esta agora pertencer à sociedade é como se ela apresentasse a sociedade a ele (fato que durante todo o filme fora apresentado na verdade por ele). Não dá para se saber se o choro da garota é de arrependimento da zombaria que acabara de fazer, de carinho, de choque de realidade. E nem devemos. A única coisa que precisamos saber é que Carlitos/Chaplin enfim tocou a sociedade.
Sempre que falamos em Coração Valente (1995), um segundo filme sempre nos vem a cabeça: Gladiador (2000). Para um gênero em decadência, a segunda metade da década de 90 é fundamental para o estrondoso retorno dos épicos que por fim desencadeará o fenômeno O Senhor dos Anéis (2001-2003). Coração Valente é com certeza um filme muito mais coeso que Gladiador em vários aspectos, já que possui batalhas sempre bem filmadas, em contrapartida a uma cena inicial tremida e confusa de Gladiador, e um desenvolvimento fluido que conclui a história sem contrariar o objetivo inicial do protagonista. Embora menos coeso (eu escrevi o porquê disso em um outro comentário que linkarei ao fim deste), é Gladiador o filme que possui a história mais grandiloquente e enérgica, justamente por suas cenas estupendas no meio do filme.
Após um início sofrido, William Wallace (Mel Gibson) adulto possui uma jovialidade e leveza muito maior que qualquer guerreiro épico. Sua brutalidade e fúria são decerto imponentes, mas é sua carisma a grande responsável pela mobilização de numerosas tropas contra os ingleses. Em muitos momentos do filme me perguntava realmente se fazia sentido Wallace ser espevitado e brincalhão, já que em vários momentos de tensão, ele parecia estar brincando com a sorte. Ver ele assolado quando ele implora aos nobres por ajuda (muito ajudado pela composição dos cabelos desgrenhados que não aparecem nem quando ele está lutando) é realmente um choque à figura moleque de todo o filme. Mais do que isso, tudo que Wallace evita acaba acontecendo: ele não quer se meter em guerras, acaba liderando uma. Ele repudia toda a forma de nobreza, acaba virando Sir. Ele quer se portar e ser tratado como humano, acaba sendo idealizado numa figura tão mítica quanto próprio Deus. Essa série de desavenças cria mais uma vez uma personagem tão poderosa que a mim soou um pouco artificial. Wallace é como se fosse o próprio Jesus Cristo na Terra: não consegue fugir de seu destino, é tratado como bom por todos que estão ao seu redor, toca a alma de pessoas que estavam do outro lado do jogo só pela sua carisma, e por fim, morre sobre uma cruz como o símbolo da liberdade em Terra. Se Mel Gibson quis formar uma imagem messiânica de William Wallace, ele desmistifica a mesma ideia nos traços de bufão do mesmo, já que a imagem sagrada é sempre veiculada a uma pessoa boa, sensível, mas direita, sensata e focada. Dessa forma, Wallace é uma personagem contraditória e muito mais complexa do que parece, pois se de um lado o filme o queira mostrar como Jesus em pessoa, por outro, a índole dele acaba por ridicularizando esta ideia.
Uma outra ideia forte em Coração Valente é justamente o papel do coração/amor na tomada de decisões de cada indivíduo. Educado a seguir a mente/racionalidade, Wallace se vê apaixonado por uma mulher desde sua infância. Quando esta é por fim assassinada, todo o cuidado para evitar brigas desnecessárias some, e Wallace não se inicia um motim como faz um assassinato em massa. Por sinal, esta é uma das cenas mais bem filmadas do filme, já que toda a sensação de tensão é espelhada nas câmeras distantes e desfocadas que pegam relances e silhuetas de Wallace. Neste momento, aquela figura brincalhona não existe, assim como sua moral, que é suprimida pelo seu amor. Se a cena inicial idealizava um amor infantil (pegue a cena da prima nocte deles. O jogo de luzes e sombra criam uma ideia de eternidade e sutileza ainda maior do que já tinha sido apresentada na tela), a mesma garota morre sem rodeios. Ela é capturada, degolada de uma forma bruta, simples e cruel. Ao fim da cena é interessante ver que toda a nobreza e poder representada no vermelho das roupas dos ingleses é transposta no sangue dos mesmos sobre o corpo dos camponeses enfurecidos. Essa ideia de amor se preponderando sobre a moral estará presente também quando um dos camponeses mata à sangue-frio o molestador de sua esposa, logo após o primeiro dia de casamento e na figura da princesa francesa (Sophie Marceau) que se abdica das convenções da nobreza, ajudando o selvagem amado. Ainda do título, coração pode significar o porquê da luta destes camponeses: coragem. Wallace cita muitas vezes essa ideia e não é por menos. Enquanto os nobres lutam por maior reconhecimento, mais influência ou mais poder, os camponeses lutam porque querem ser donos de si mesmos, porque lutam com o coração (Robert Bruce (Angus Macfadyen) é a representação dessa dualidade, já que ele nunca sabe se deve lutar pelos seus princípios ou pela sua nobreza). Tanto é isso que em uma cena, dois camponeses discutem que a trégua deve ser discutida pelos nobres, porque são eles quem fazem a política.
Em suma, Coração Valente é um filme com a representação de um protagonista dúbio (se formos levar em conta a verossimilhança, a romantização vai bem além, mas analisei aqui a história em relação à produção artística), um jogo de câmeras competente (em um momento do filme quando o exército inglês cerca os camponeses, aqueles aparecem grandes na tela, como se refletisse a sensação de dominador e dominado do momento. Mas há um joguinho incrível, pois quem aparecerá ainda mais acima é justamente Wallace e seus companheiros, como se indicasse que a superioridade do exército inglês - entenda por nobreza - é ilusória, e que os escoceses são de fato os mandantes da região), um desenvolvimento narrativo fluido, sem altos e baixos e personagens periféricos que se questionam a todo momento de seu papel no reinado. Coração Valente foi na verdade o apelido vinculado a Robert Bruce, e se formos analisar o seu desenvolvimento, veremos que sua índole é ainda mais contraditória que a de Wallace. Talvez a maior dualidade seja: Robert Bruce é produto de um legado (famílias que passam seus símbolos de nobreza e poder hereditariamente) ou de uma nação (luta popular pela liberdade)? Não há cena melhor para representar isso que não seja a de Robert Bruce fechando a porta para o pai (cof, cof, O Poderoso Chefão (1972)), num símbolo de afastamento e negação a tudo o que o pai foi, e o que ele mesmo poderia ser.
Gladiador (2000) é repleto de imagens fortes que não só dão vida ao filme, como ajudam a reforçar a sensação das cenas. Além disso, ele possui um desenvolvimento de personagens muito interessante e demarcado. No entanto, ao criar um início tão fraco quanto o final (por motivos diferentes que explicarei nas seguintes linhas), Gladiador acaba sendo um filme que não consegue expor em completude todo seu potencial.
O filme abre com um Maximus (Russel Crowe) imponente, grandioso e temível, andando diante de suas tropas como Kirk Douglas andou em Glória Feita de Sangue (1957). O prenúncio da guerra é algo a ser sempre bem trabalhado, porque não só faz parte do filme, como cria todo um ambiente de tensão para a guerra. Até aí, Gladiador vai muito bem, já que não só a sensação é criada como a estratégia de cercamento das tropas bárbaras é muito bem explícita a nós, sem que nem seja comentada na tela (em cinema, melhor do que dizer o que vai fazer, é fazer). Criada toda esta tensão, esperamos uma guerra gloriosa e grandiosa, mas a única coisa que vemos é um conflito filmado todo por câmeras tremidas, em que confundimos quem de fato é quem, e quem está tomando a ofensiva no momento. A movimentação da câmera é tão brusca que foi só quando a guerra se findou que pude ter certeza que as tropas romanas haviam ganhado. Gladiador é feito de duas parcelas: ação e narrativa, e esta primeira cena quebra totalmente a primeira parte. A boa notícia é que a ação ficará muito boa daqui para a frente.
Após a batalha vencida na Germânia, Maximus será recebido como um herói para o imperador Marcus Aurélio (Richard Harris), mostrando desde início sua predileção por este em detrimento ao próprio filho. O interessante é perceber quão inseguro Maximus é, mesmo sendo o mais temido general do exército romano, já que pondera entre voltar para a família e defender o império, mas mais do que isso, na cena em que ele fala pela primeira vez com Lucille (Connie Nielsen), visto que ela chama por ele três vezes, e Maximus nas três atende, fala duas palavras e se afasta. Em poucos minutos, podemos ver que toda aquela fortaleza é na verdade bem domesticável, e isso é muito importante para a trama como um todo, pois em certo momento, Maximus terá que definir qual é o propósito dele. No caso, salvar o império das mãos de um tirano, e isso tudo, por um sentimento muito importante para todas as personagens do filme: a honra. A honra, principalmente em momentos históricos (analisarei o filme como obra de arte, pois sei que muitos fatos ilustrados no filme não possuem nenhuma relação com a vida real) como o visto em questão, é tão forte quanto o amor, ou a paternidade, já que ela fará com que homens tornem-se pessoas totalmente diferentes das que eram, com único propósito de manter a palavra. Maximus não é o primeiro a demonstrar isso, mas sim Marcus Aurélio, já que ele mesmo em seu leito de morte, preocupa-se com a sucessão do trono. É pela honra de Próximo (Oliver Reed) a Marcus Aurélio, que este abdicará das riquezas em prol de um bem maior. É pela honra que o mesmo Próximo, além de Marcus Aurélio, Lucille e Graco (Derek Jacobi) acreditarão na palavra de Maximus, e que por conseguinte, depositarão todas as forças a fim de verem Commodus (Joaquin Phoenix) fora do trono. No entanto, ao mesmo tempo que temos a honra, temos a noção de eternidade, visto que tanto Commodus quanto o Senado queiram deixar um legado, um nome, uma figura que reverberá por décadas. Essa noção inicia-se logo na imagem de Roma, já que a todo momento, as personagens a identificam como um sonho, um poder inabalável, o que será inteiramente passada aos governantes dela. É nessa lógica que temos um embate entre Cassius (David Hemmings) e Graco, em que o primeiro que manter uma aparência a fim de obter sucesso e criar esse legado, enquanto que o segundo é a própria pessoa que é. Essa noção se prepondera em Commodus também: "Se eles não me respeitam, como eles podem me amar?”. O que é ilustrado é a incessante busca por reconhecimento, por louvor. Estas duas ideias serão muito fortes, regendo as ações das personagens por todo o filme.
Uma parte interessante a se analisar é como as imagens em cenas específicas parecem enfatizar ainda mais a mensagem passada naquele momento. Na cena em que Maximus descobre o fim que sua família tomou, acompanhamos Maximus caindo de joelhos, à medida que a câmera começa a subir de forma a mostrar somente os pés de sua família. Nesta cena, ao mesmo tempo que descobrimos isso, Maximus se encontra inferiorizado, simplesmente pelo fato da câmera o pegar de cima para baixo, deixando-o menor. Uma outra cena muito boa, agora em aspectos de ação também, é justamente a primeira luta no Coliseu. A câmera entra pegando-os de baixo, aumentando assim as suas figuras. Assim que os lutadores de biga entram, os gladiadores são pegos de longe, como se fossem figuras pequenas diante do poder que acabara de entrar. À medida que os gladiadores começam a ganhar a luta, a câmera vai se aproximando, nesta ideia de engrandecê-los. Quando Commodus entra na arena após a vitória dos gladiadores, Maximus vira as costas ao imperador. Não bastando, quando Commodus pede ao povo para se aquietar, indicando que ele decidirá o destino de Maximus, o povo não se cala. Nesta breve cena temos a nítida sensação do poder de Commodus. Na segunda batalha no Coliseu, essa mesma ideia será utilizada, já que ao Commodus tentar se utilizar de seu fracasso e do sucesso de Maximus, este acaba agindo de uma forma inesperada para a situação (poupar o gladiador), causando maior furor do povo. Mais uma vez, o imperador não consegue mandar sobre o povo. Analisando a personagem de Lucille, temos um momento em que as falas denotam o interesse dela: quando Cícero (Tommy Flanagan) a avisa que Maximus se encontrará com Graco, o primeiro argumento dele para falar com ela é que ele serviu Marcus Aurélio, o pai dela. Ela parece não ligar. Mas é quando ele fala que serviu Maximus que ela de fato gostará de falar com ele. Nesta pequena cena, entendemos que Lucille tem um afinco tão grande por Maximus, que subjuga até mesmo o seu pai. Falando em Maximus e Lucille, a segunda vez que eles se encontrarão demarcará a total mudança da personalidade deste, já que diferentemente da domesticação espelhada no primeiro encontro, dessa vez, Maximus se mostrará um homem bem mais agressivo e bruto, raivoso de sua situação.
Uma outra estética muito interessante em Gladiador se dá no papel das cores no filme, especificamente do vermelho e do azul. Enquanto o vermelho representa uma certa força, brutalidade, o azul representa a política. Esta força aparece nas roupas vermelhas que Maximus usa enquanto general. Ela aparece também nas primeiras vezes em que aparece como gladiador, mas é a cor vermelha que aparece em Marcus Aurélio a ideia mais interessante acerca desta cor. Marcus Aurélio foi o imperador de Roma, a instância de maior representatividade política do império. Em seu leito de morte, Marcus Aurélio veste roupas vermelhas, englobado num quarto com cores muito quentes. Dessa forma, Marcus Aurélio embora preocupado em escolher o sucessor do seu trono parece demonstrar que a política não funciona, já que acredita que grande parte dela está corrupta. Já o azul aparece principalmente nos trajes dos senadores e de Commodus. À medida que Maximus começa a definir seu propósito de matar Commodus, seus trajes começam a ficar mais azulados, chegando ao ponto de ficarem totalmente azuis na conversa com Graco. Da mesma forma, quando Commodus vê que seu poder se esvaiu, ele tem uma grande parcela da roupa em vermelho, até chegarmos a cena final. Na cena final, Commodus entra na arena como um Deus, branco até os pés, como se fosse a pureza em pessoa, pronto para livrar o povo dos males do mundo. No entanto, o que vemos são pétalas vermelhas caindo sobre sua cabeça. Além disso, temos um chão totalmente coberto pelas mesmas pétalas. É como se um subconsciente dissesse que Commodus está tentando utilizar-se unicamente da força para atingir seus propósitos. Quando ele morre, ainda vemos sangue saindo de seu corpo. Num enquadramento final, vemos Commodus caído num campo repleto de pétalas vermelhas. Commodus perdeu seu poder político, e tenta se reconciliar usando unicamente da força, só que diferentemente do Maximus do começo do filme, Commodus não tem a pureza (que ele quer refletir em suas roupas) que aquele tinha. Commodus queria fazer da morte de Maximus um espetáculo. No final, quem se tornou o espetáculo foi ele mesmo. Desa forma, em dois momentos distintos do filme, critica-se tanto a política quanto a força. O ideal é o balanço. Até aqui, tudo anda muito bem; até aqui...
A partir deste momento, teremos uma série de cenas que tentam endeusar Maximus mais do que ele já havia sido. Lucille vem abraçar Maximus e fala uma frase para endeusar ainda mais Maximus. O filme acaba com uma trilha sonora magnífica (um dos melhores trabalhos de Hans Zimmer), se não fosse para evocar uma sensação de melodrama ainda maior. Em todo o filme, Maximus quis tirar Commodus do poder e cumprir com honra o que havia prometido a Marcus Aurélio. Maximus em nenhum momento quis obter um reconhecimento, criar um legado. Se ele quisesse, qual é a diferença entre ele e as pessoas que ele combateu? Nenhuma. Os objetivos no final eram o mesmo, somente a forma de conseguir era diferente. É claro que Maximus não viu nada dessa glorificação a sua pessoa, já que ele morreu. Mas o filme, não podia ter criado essa imagem por completude de obra. Com isso, além de Gladiador tem um final extremamente melodramático e excessivo, o filme ainda contraria tudo o que Maximus representou no filme. Sendo assim, Gladiador quebra a segunda parcela importante no filme: a narrativa. Só que dessa vez, de um jeito estrondoso.
O filme abre com um curta muito bem filmado e pontual, ilustrando a luta de velhinhos em Londres a fim de se desvencilharem de jovens e novos empresários no ramo de contabilidade. Numa cena divertidíssima, todos os velhinhos se rebelam, e vestidos de piratas, avançam com seu prédio/embarcação para uma metrópole. Metaforicamente, é como se os velhinhos fossem o antigo sistema financeiro que embora consigam conter os primeiros esforços de um novo sistema financeiro, acabam caindo à amplitude que essa nova estrutura toma. Podemos também relacionar os velhinhos com o país Inglaterra: com o final da sedimentação do capitalismo, os EUA acabam tomando o posto que antes pertencia à Europa. Mimeticamente, o que está sendo retratado é justamente estas últimas investidas do Velho Mundo de manter seu poderio inicial sobre o Novo Mundo; o que dá errado. Analisando econômica ou politicamente, o fato é que estas é uma das cenas mais bem filmadas em todo o filme, já que a noção de superioridade está totalmente inserida no posicionamento das câmeras, já que em momentos que os velhinhos estão no controle, vemos câmeras pegando os mesmos de baixo para cima, como se aumentássemos a figura deles, da mesma forma que os engravatados acanhados são pegos de cima para baixo, em tom de inferioridade.
O MILAGRE DO NASCIMENTO (PARTE I)
Após uma cena inicial estupenda, passaremos por uma primeira metade ainda melhor do que já visto anteriormente: os médicos mais interessados em aparecerem bem para seu chefe e para os jornais, executam um procedimento de parto como se a criança fosse só mais uma, ironizando totalmente a noção do título da esquete. Nessa mesma esquete ainda teremos uma frase final magnífica: "- É um menino ou uma menina?" "- Eu acho que está um pouco cedo para começar a impor papeis, não acha?"
O MILAGRE DO NASCIMENTO - PARTE 2: O TERCEIRO MUNDO
Em poucos segundos, seremos transpostos para uma das esquetes mais hilárias do filme, em que milhares de crianças cantam como se estivessem num musical da Disney. A alegria, a coreografia, as cores se refere a uma música sobre sêmen. Sêmen! É nesta esquete em que teremos a primeira crítica à religião, que ao impor dogmas, acaba cegando a natureza e individualidade dos seres humanos. E nesta esquete também que temos um dos principais embates da humanidade (que não à toa estão justamente na esquete do Milagre do Nascimento): religião e ciência. De um lado, a religião com a forma a agir em relação à prática sexual, e de outro, a ciência ao inventar uma das maiores revoluções sexuais de todos os tempos, a camisinha.
CRESCIMENTO E APRENDIZADO (PARTE II)
A discussão sobre sexo se prepondera também sobre esta esquete, em que uma turma totalmente ingênua em relação ao sexo, faz com que o professor tenha que ilustrar um coito de fato. O interessante a se pensar desta esquete é justamente a forma como o ensino é tratado nas escolas: vários professores acabam trazendo experiências científicas impalpáveis à realidade dos alunos. Da mesma forma, se o mundo desconhece o sexo em razões práticas, ou mesmo, se tivéssemos um mundo dominado pela religião, aulas como estas não seriam tão longínquas de nossa realidade, afinal, é parte da vida e do aprendizado.
LUTANDO ENTRE SI (PARTE III)
Ainda na primeira metade do filme, temos uma crítica fervorosa à guerra e à honra. Em um dos momentos, um dos oficiais fala que levaria um raio se o exército não fosse importante para a civilização; e, ele acaba tomando. Logo em seguida, um oficial acaba marchando sobre o campo sozinho, porque a sua honra, a cegueira que o Estado impõe a combatentes o faz marchar (esse mundo fechado pode ser relacionado com a religião na esquete do musical sobre sêmen). Mas é de fato a última parte da esquete que temos a parte mais ácida em relação a esse arco, já que vemos oficiais sossegados enquanto o batalhão é destroçado por nativos. A honra, que é tão difundida pelo Estado, e pelos oficiais, já que eles são os exemplos a serem seguidos, é totalmente desfeita. Enquanto oficiais andam calmamente pela batalha, o resto do batalhão é destroçado. A ideia não é que um exército é forte unido, que as estratégias só são realizáveis com todos juntos? Então, essa honra não existe. Ao final desta esquete temos uma das primeiras cenas não-coesas do filme: uma discussão longa com dois homens vestidos de tigre em questão da perna roubada. Para mim, esta cena além de tirar todo o clima sarcástico em relação ao exército e aos oficiais, ainda cria uma discussão incoerente com o que veio antes e o que viria a seguir no filme.
O MEIO DO FILME
Este é um momento bem divertido do filme, porque vemos que além de Monty Python brincar com vários ramos da vida, ele ainda brinca com o que é fazer cinema, parando no meio do filme para dizer que está no meio do filme. O momento em si é totalmente surreal, já que somos postos a procurar um peixe que não existe, ao mesmo tempo que três figuras bizarras aparecem a nossa frente. E o pior, nós ficamos de fato procurando o peixe (atrás do sofá, na tromba do elefante). O divertido é que Monty Python brinca com a nossa atenção, já que a sala da mulher que fala que estamos no meio do filme está, tem um vaso com uma mão segurando as flores. Se formos levar a uma instância maior: quantas coisas acontecem ao nosso redor que nem percebemos, que é de fato uma discussão que será levantada mais a frente no filme.
MEIA IDADE (PARTE IV)
Aqui, dois adultos decidem ir a um restaurante que oferece assuntos a se falar. A reflexão desta esquete tangencia justamente o rigor e desumanização das pessoas, já que as mesmas não conseguem nem ao mesmo iniciar uma conversa, fazendo com que esta seja o prato principal da noite. Mais uma vez, levada a uma instância maior, esta esquete representa justamente a falta de comunicação entre os seres humanos (Dr. Fantástico (1964) é um ótimo filme sobre o tema, e uma ótima comédia-sarcástica também). A falta de comunicação que faz com que se iniciem guerras, que cria filhos atrás de filhos e que impede dois seres humanos de iniciarem uma conversa saudável num jantar.
TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS VIVOS (PARTE V)
O Sentido da Vida, embora cometa um deslize ou outro, anda perfeito, pelo menos até aqui. Nas três seguintes esquetes teremos situações totalmente destoantes do resto do filme, tanto como obra, como por nível de argumentação da crítica. Na primeira esquete, dois enfermeiros entram na casa de um sujeito a fim de retirarem o fígado, detalhe, com este vivo. A parte mais engraçada da esquete é quando um sujeito que parece muito com um Willy Wonka da Fantástica Fábrica de Chocolate, sai de uma geladeira e passa por uma série de surrealidades a fim de explicar a insignificância do ser humano em relação ao tamanho do universo. A cena na verdade é bem divertida, além de criar uma metáfora da criação do universo com uma mulher muito interessante, se não tivesse como intuito fazer a mulher querer doar seu fígado também. Eu, sinceramente, não vi graça em enfermeiros retirando um fígado de um homem vivo a força. Será que eles estavam querendo criticar as pessoas que não leem direito as coisas em que se metem, mas até aí, o homem mesmo grita que estava escrito que o fígado seria doado assim que ele morresse. Será que ele estava querendo criticar o trabalho desses enfermeiros, que assim como os primeiros parteiros do filme não se importavam com o ser humano? Eu não vi essa crítica lá, além dessa ser uma profissão de muito respeito, já que se trata em salvar vidas. Para mim, a cena foi articulada de um jeito espalhafatoso para tirar risos. Não deu muito certo...
ANOS DE OUTONO (PARTE VI) / O SENTIDO DA VIDA (PARTE VI-B)
Mas nada, repito, nada é mais espalhafatoso do que a cena que viria a seguir. Nada! Após ouvirmos uma música totalmente sem sentido para a situação sobre pênis, vemos um cara vomitando, e vomitando, e vomitando. Gente, o que aconteceu com aquelas cenas divertidas e sarcásticas da nossa realidade que estavam no começo do filme? Será que Monty Python chegou a um momento em que eles simplesmente cansaram do que estavam fazendo e decidiram enfim nos impor a rir pelo grotesco? No começo da cena, eu imaginei que Monty Python criticaria os ricos que chegam até mesmo a vomitar para conseguir comer os diversos requintes da culinária, enquanto outros nem o que comer têm, mas me enganei totalmente. Não vejo sentido nessa esquete, não acho essa esquete engraçada, e muito menos equiparada com as que a precederam. A parte B dessa esquete já é bem mais engraçada, já que cria-se todo um suspense a fim de descobrirmos o sentido da vida, e no fim, após andarmos muito (mais uma brincadeira com o fazer cinema, já que sempre quando temos uma cena assim, somos logo cortados para o destino sem rodeios), acabamos não descobrindo nada. Eu achei a cena engraçada porque ela se mostra bem despretensiosa no final do seu desenrolar. Mas no mais, não a vejo como um grande complemento à narrativa.
MORTE (PARTE VII)
Esta esquete começa de um jeito repulsivo, com mais uma vez, não acrescentando em nada à narrativa, em que um homem decide como prefere morrer, escolhendo então fugir de mulheres nuas, caindo por fim num caixão. O final dessa parte comenta que o cara era machista e tudo mais, sem se dar conta (ou se dando conta, sendo assim proposital) que ao mostrar isso, de um jeito irônico, o filme por si só também está sendo machista. Qual é de fato a necessidade disto para o filme? A cena animada das folhas é muito mais significativa do que esta. Mais uma vez, Monty Python tenta nos fazer rir por situações grotescas. Depois de uma série de erros, O Sentido da Vida consegue por fim retornar aos eixos (é claro que não na mesma maestria inicial, mas volta), mostrando um diálogo bem divertido de um conceito bem antigo, principalmente na Idade Média: o encontro com a Morte. Repare que até mesmos os elementos (a cabana, a decoração) parecem remeter a uma época da Idade Média, com o detalhe de que os presentes estão vestidos de uma forma bem moderna, além de possuírem carros. Este contraponto entre antigo (Morte) e o moderno (pessoas modernas) é de fato bem cômico, pois o encontro com a Morte, acaba de fato sendo um encontro, pois os indivíduos parecem nem se importar com a presença dela até o momento em que eles são avisados que morrerão. A Morte, embora imponente e assustadora parece não ter o domínio da situação, sendo até mesmo perguntada o porquê dessas pessoas terem morrido. A banalização dos costumes é algo demarcado pelo desenvolvimento da sociedade, e ela é de fato muito engraçada ao ser apresentada justamente em relação à Morte. O mais divertido ainda é o lugar onde estas pessoas vão parar, que no caso, é a mesma recepção daquele casal que não sabia sobre o que conversar. Juntando todas as pontas, temos um pessimismo enorme em relação à humanidade, pois se de um lado temos uma alta filosofia e teologia a respeito do que viria a ser a morte, no filme, vemos ela banalizada, assim como a Morte (morte é diferente de Morte), como se fosse só mais uma passagem da vida. Além disso, a religião que tem um papel até mais importante no que é morrer do que a filosofia é mais uma vez banalizada quando descobrimos que todo dia é Natal. Se o Natal que é uma data importante para a religião (cristã, no caso), e no Céu vemos uma banalização do que é Natal, é como se esse final banalizasse também a religião. Por fim, o que quero dizer, é que é como se tudo o que acabássemos de ver nos minutos anteriores fosse banal. Como se nada tivesse sentido, já que a vida é um caminho sem volta, simplesmente para ser vivido. Mais nada.
FINAL DO FILME
Dessa forma, quando voltamos a moça do meio do filme, concluímos de fato essa ideia de banalização, pois a resposta do sentido da vida está numa carta de um programa de televisão, com os dizeres de, adivinhe só, coisas banais e casuais. Sem perder o momento, o final ainda brinca mais uma vez com o que é fazer filme, dizendo que eles têm que colocar um pênis para tirarem as pessoas da frente da TV a fim de irem no cinema verem coisas que a censura televisiva não deixa.
Monty Python - O Sentido da Vida (1983) é um filme afiadíssimo, sarcástico e cru, mas que acaba se perdendo em pequenos pedaços da trama ao cair em piadas grotescas e espalhafatosas demais (até mesmo para os parâmetros de Monty Python).
Beetlejuice (1988) é um filme divertido, despretensioso e pulsante. Seguindo o mesmo visual que empregaria em A Noiva Cadáver (2005), Tim Burton consegue criar um mundo dos mortos colorido, embora burocrático; surreal, embora mundano. Uma das experiências mais divertidas deste filme é descobrir como cada um dos indivíduos chegou nesse mundo dos mortos: afogados, decapitados, suicídios, queimados. Embora se trate de milhares de formas de morte, não nos enojamos ou surpreendemos em nenhum momento, pelo contrário, rimos. Nos dois filmes citados, temos um mundo dos mortos muito mais agradável que o dos humanos, seja pela paleta de cores sempre vívidas e fortes em contraste a um tom seco e rígido do mundo dos vivos, ou por cenários inclinados e labirínticos que dão um tom de mais casualidade do que a perfeição humana. A ridicularização do que é o mundo dos mortos é tamanha que os humanos a querem utilizar como meio de distração e entretenimento. Em Beetlejuice, embora tenhamos personagens insatisfeitos com suas realidades (Lydia (Winona Ryder) com o mundo apático e ostensivo dos humanos, e Adam (Alec Baldwin) e Barbara (Geena Davis) com um mundo novo e desconhecido dos mortos), as maiores lamentações e caricaturas parecem vir do mundo dos humanos, já que nenhum adulto do filme parece se importar com outra coisa que não seja dinheiro (até mesmo a corretora de imóveis chata do início (Annie McEnroe) é assim). Mas mais do que isso, o fato do mundo dos mortos ser algo como uma extensão do mundo dos vivos (o que em Noiva Cadáver é uma quebra/passagem), já que os mortos mantém-se no mesmo núcleo de convivência que viviam antes de morrerem, indica toda uma passagem de costumes do mundo dos vivos para o mundo dos mortos (toda a burocracia, filas imensuráveis, códigos), como se a vida não deixasse nem a morte descansar em paz. Uma frase de Adam dá uma falsa ilusão do que é estar morto, na lógica deste filme: "Não precisamos mais nos preocupar com isso, estamos mortos!" Todo o desenrolar do filme indica que essa ideia não era de todo verdadeira, e conclui de fato esta ideia que vim desenvolvendo.
O mais divertido é a ideia/metáfora da maquete: a função básica de uma maquete é simular a vida real. Se transpormos para a ideia geral do filme, o mundo dos mortos parece mais como um simulacro do mundo dos vivos, uma maquete. Ou será que não é o contrário? O mundo dos vivos é que na verdade é uma maquete do que virá no mundo dos mortos. Se for assim, a ideia animada e excitante do que é a morte nos filmes de Tim Burton meio que se desfaz. Outra ideia que ajuda a incrementar esta ideia de maquete é justamente o papel do exorcista no filme. Além de termos o habitual exorcismo de fantasmas, temos o bio-exorcismo, com Betelgeuse (Michael Keaton). Disto, decorre a ideia da negação do outro mundo, como se ambos estivessem ávidos por reconhecimento, por afirmar seu espaço natural no meio. Qual é de fato o melhor mundo, o mais divertido, o mais conveniente? Fica a questão. No mais, temos um filme divertidíssimo, num ritmo incansável e dinâmico.
Selma (2014) é uma cine-biografia concisa, sentimental, mas mais importante do que estas coisas, humana. Diferentemente de filmes como A Teoria de Tudo (2014) e Sniper Americano (2014), Selma não cai num endeusamento da figura em questão. Muito pelo contrário, temos uma visão mais completa do ser humano que Martin Luther King Jr. (David Oyelowo, trazendo uma figura que sempre fora retratada forte e imponente, como além de tudo, insegura. As cenas em que vemos King se pronunciando são de fato bem imponentes, mas é quando estamos dentro da casa, presenciando discussões com sua mulher (Carmen Ejogo), que vemos que embora incisivo, King era um homem indefeso e preocupado) foi.
A proximidade de King com Deus é um elemento narrativo muito interessante, pois sabendo de sua história, King é quase como se fosse a personificação de Deus para seu povo. No entanto, como disse acima, sendo a fragilidade uma das principais características de King retratadas no filme, o endeusamento se torna mais belo, justamente por podermos identificar empatia em sua humanidade. King é um homem como todos nós, que lutou e conquistou de pequenos em pequenos passos o direito intrínseco a qualquer ser humano numa sociedade moderna: a igualdade jurídica. E repare que eu disse jurídica, pois em mentes racistas nunca haverá um equiparamento. Numa sociedade como a americana, assuntos como este serão sempre um soco no estômago, já que os EUA foram um dos precursores a defender as chamadas liberdades civis (o interessante é notar como a história se repete: os ingleses exigem a Magna Carta ao governo, assegurando maior liberdade à população. Meio século mais tarde, serão os americanos a reivindicar posse de suas terras baseados nos mesmos direitos. Quase dois séculos depois, os americanos serão os tiranos da liberdade racial, travando uma das batalhas mais ferrenhas acerca do racismo - o divertido é que uma cena de discussão entre King e o presidente dos EUA (Tom Wilkinson), temos um quadro de George Washington, como se enfatizasse ainda mais essa noção luta pela liberdade que ficara no passado). É por isso que sempre que histórias de liberdade racial são trazidas ao cinema, as opiniões se dividem em dois polos bem definidos: os indivíduos que enaltecem que mais e mais histórias sobre a injustiça social sejam trazidas à tona a fim de exporem a voz de um povo sempre calado e aqueles que cansados de verem histórias de submissão, de brancos que ajudam negros a saírem de sua condição de inferioridade (vide Histórias Cruzadas (2011)), ou de imagens que façam brancos sentirem culpa e dó de seu passado, defendem histórias casuais vistas no "cinema branco" (o mais próximo que temos disto são os diversos filmes com Denzel Washington sobre máfias, dramas ou mesmo, futuros apocalípticos). Peguemos Histórias Cruzadas por exemplo: aqui temos a história de boas e injustiçadas empregadas que diante de um mundo totalmente branco, necessitam da ajuda de uma Messias branca para tirá-las de sua condição. O problema deste filme é justamente o maniqueísmo enraizado em todas as personagens do filme: os brancos são maus, e por isso, devem acabar mal. Os negros são bons, por isso devem acabar bem. Comparemos agora Histórias Cruzadas com Fruitvale Station (2013). Neste filme, embora tenhamos um personagem que injustiçado pela condição em que nasceu, não é justamente um perfeito cidadão, na verdade, ele faz coisas fora da lei, tem amigos maloqueiros e uma família desestruturada. A complexidade deste personagem é bem maior que as das empregadas de Histórias Cruzadas, mas que fique claro um coisa: quando digo que uma personagem deve fugir deste maniqueísmo não quero dizer que o negro precisa ser um porra-louca total para ser um personagem digno. Quando digo isto quero dizer que a personagem deve ser unicamente humana, afinal, humanos não são santos. Selma, por toda a história e espiritualidade de Martin Luther King Jr. poderia acabar num filme horrivelmente maniqueísta, mas ele não o é (embora ele não seja maniqueísta, uma coisa que me incomodou consideravelmente no filme foi a forma caricatural e ridícula em que os políticos são retratados. Se você tirasse o terno e a pompa, eles pareceriam palhaços, e isso me irritou um pouco). Se não bastasse a personalidade insegura e tensa de King ainda temos em plano de fundo vários grupos negros que não concordavam com as posturas de King (Malcolm X, grupos estudantis, líderes locais). King deu muito certo como poderia ter dado muito errado. A diversificação das facetas deixa a narrativa muito mais interessante.
Além disto, o trabalho técnico do filme contribui e muito para que o sentimentalismo da cena seja ainda maior. Este sentimentalismo não é recorrente, nem exagerado quando aparece, mas é por aparecer em poucas vezes que a sensação causada é bem maior (pegue um filme de terror por exemplo. Se até o assassino de fato agir nós formos tomando pequenos sustos, o susto final não seria tão impactante se esses pequenos sustos fossem, na verdade, unicamente suspense. A analogia é a mesma). Uma cena em especial me comoveu bastante. Ela é rápida, porém efetiva. Quando os negros de Selma se reúnem para fazer um protesto noturno, somos postos frente à frente com uma represália intensa. Contra uma luz forte e incisiva, policiais ao surpreenderem o grupo, começam a bater indiscriminadamente com seus cassetetes contra os negros da área. O detalhe técnico é que não vemos os negros serem espancados, mas sim as sombras deles sofrendo angustiadamente a violência. Se não se tratasse de uma cena tão brutal, a composição de luzes e sombra seria uma obra à parte, já que mesmo com uma luz forte não conseguimos ver os alvos em questão. Essa mesma ideia será utilizada na represália na ponte, com a luz sendo substituída pela fumaça. Metaforicamente, os negros são tão obscuros/esquecidos nesta sociedade que não conseguimos nem ao mesmo vê-los sendo agredidos. O tom pastel recorrente em todo filme que poderia retratar um ambiente agradável passa a ser mais como um inferno, como se esse alaranjado fosse um inferno na Terra para estes negros (se formos reparar bem, quando temos a cena das 4 garotas na Igreja, a saturação avermelhada/alaranjada é ainda mais aparente, enfatizando ainda mais essa sensação de claustrofobia). Uma edição de som consistente ainda aumenta a figura monstruosa da polícia que ao invés de proteger os negros, acaba amedrontando-os.
Selma é um filme com uma atuação principal maravilhosa (ainda não entendo o que o Bradley Cooper está fazendo lá...), que não se preocupa em dar rodeios a fim de endeusar ou criar sentimentalismos desnecessários à trama. Criando um traçado justo e direto de um dos momentos mais importantes da luta dos direitos raciais dos EUA, Selma ainda se preocupa em manter a lenda sob o conteúdo, criando um protagonista humano em lugar de salvador.
Gremlins (1984) abre com um clima noir, em que ouvimos um voice-over de um pai procurando um presente de Natal para o filho. Entre fumaças e luzes vermelhas agressivas, nosso personagem anda por Chinatown como se tivesse à procura de um criminoso. A trilha sonora (um trabalho esplêndido de Jerry Goldsmith, que além de nos proporcionar um dos temas mais famosos do cinema ainda soube cadenciar momentos de tensão e suavidade, como por exemplo com os temas natalinos em tons mais fúnebres, ou na cena de perseguição entre Billy e Listra (chefe dos Gremlins), em que quando este último está na tela, ouvimos uma trilha de bem mais suspense daquela que ouvimos quando Billy está em seu encalço), que até começa agradável, se transforma misteriosa e tensa, assim que nosso personagem diz que contará uma história que ninguém possui igual. Ao entrarmos num estabelecimento de um beco qualquer (com várias luzes vermelhas também), Randall Peltzer (Hoyt Axton) logo se mostra um charlatão, vendendo bugigangas que mais quebram do que funcionam, quando não explodem. O interessante é que embora ele venda coisas misteriosas e "inovadoras", ele se interessará da mesma forma por algo impalpável em seu mundo, um Mogwai. De uma forma muito bem construída (muito por conta dos aspectos técnicos que citei), Gremlins começa de uma forma misteriosa e instigante que fará com que nosso interesse se perpetue pelos próximos minutos.
Nas próximas cenas, conheceremos vários dos principais personagens do filme de uma forma bem natalina, e totalmente contrária a da ideia inicial do filme: Billy (Zach Galligan), o protagonista infantil, Kate (Phoebe Cates), a garota pronta para beijar Billy e Murray Futterman (Dick Miller), o bêbado paranoico. Sem contar também, os adultos "normais" e maus que só se importam com dinheiro (até mesmo Randall é assim, querendo transformar os Gremlins em dinheiro). Todos estes, personagens bem caricatos do melhor que os anos 80 pode nos oferecer (não estou criticando, muito porque eu amo os anos 80). São indicadas três regras que não se pode quebrar (que é óbvio que serão quebradas de uma forma ou de outra), bichinhos fofíssimos que acabam se tornando em criaturas horrendas e confusão, muita confusão. Ok, até aqui o filme não parece nada de mais, do que simplesmente uma diversão de fim de tarde (o que cumpre muito bem também). No entanto, existem detalhes narrativos e metáforas que enriquecem muito a simples história de monstros que atacam uma vila pacata.
A primeira, e mais óbvia, é justamente a ideia que nos é passada ao fim do filme: os seres humanos não estão preparados para os presentes que nos são dados: foi assim com o Fogo do Olimpo, foi assim com o Paraíso de Deus e foi assim com os Gremlins. Nós, humanos, querendo ou não, somos competitivos, sedentos por mais, por ter. Pegue por exemplo a Sra. Deagle (Polly Holliday): ela aluga casas para várias pessoas da cidade, possui outra bem luxuosa e mesmo assim não consegue soltar um sorriso no Natal (não lembra o avarento protagonista de A Christmas Carol)? Tudo bem, eu concordo que o filme romantiza demais o que é Natal, mesmo em cenas que vão contra o espírito natalino (não dá uma dó danada de Kate quando conhecemos a sua história? É, bem, agora que ela contou, ela já pode beijar Billy. Nada como o Natal sarando feridas), mas o interessante é notar a simbologia (não a religiosa, mas sim a vulgar) natalina: uma época em que pratica-se o bem, em que presenteamos nossos queridos. É muito interessante que a humanidade seja presenteada com uma dádiva (como o chinês diz) exatamente no Natal. E o mais divertido é a dádiva/loucura tomando conta da cidade, justamente na época de Natal. (Pô, mais aí você vai me perguntar: isso não é quebrar a romantização do Natal? Sim, se o final não fosse aquele em que a família fica feliz embora a cidade inteira esteja debaixo de fogo. Afinal, é Natal - eu só queria dizer que eu gosto sim do Natal, só estou dizendo que a romantização do Natal no filme é grande, não que isso seja algo negativo para ele). Uma segunda ideia interessante recai justamente à pessoa do bêbado que vê e imagina coisas. Atire a primeira pedra quem nunca viu uma figura dessas na rua. Vai que de fato aconteça o que este cara falou por toda sua vida. E agora? Nós só caracterizamos algo ou alguém de louco, sabendo da conjuntura atual do mundo. Não imaginamos que exista alienígenas, porque de fato, nunca vimos um. Não acreditamos no Papai Noel, porque nunca falamos com um. Mas e se eles existirem, e nós só não tivemos o tempo ou a felicidade de encontrarmos. Será que os loucos são realmente loucos então? Imaginar estas possibilidades pode parecer coisa de louco (opa, mas não é?), mas é a partir de loucos que o mundo virou o que ele é hoje (pegue Hitler ou George W. Bush por exemplo). O mais interessante é que tem uma cena em específico que esta ideia é bem presente: quando Kate está saindo do bar e se depara com um dos Gremlins com uma arma, ficamos num impasse, até que este atira, acertando um quadro de um avião que parece se assemelhar com um da Segunda Guerra Mundial. O engraçado é que minutos atrás, Futterman dizia que os inimigos haviam plantado Gremlins nos aviões de guerra. A metáfora do tiro no quadro é sem dúvida muito interessante.
Por fim, a última, mas a mais interessante metáfora se dá justamente na figura dos Gremlins. O que são Gremlins? Bichinhos fofinhos que tornam-se monstros se alimentados depois da meia-noite (só uma reflexão minha babaca: se alimentarmos depois da meia-noite, será antes da meia-noite do dia seguinte, mas ok, pára, sem racionalizar a magia do cinema :P ). Resposta correta, mas tentemos achar uma ideia mais profunda por trás desses monstrinhos. Para isso, vamos as 3 restrições impostas sobre eles. O que são elas? Regras que restringem Billy de fazer certas coisas com os Gremlins. Lá em cima disse que Billy é bem infatilizado. Repare, o garoto deve ter mais de 18 anos e recebe de presente de Natal um bichinho felpudo e fofinho como mascote. E ainda lhe dão regras de como proceder com ele. Billy é representado como uma criança. Uma criança que não pode fazer isso e aquilo, justamente como os Gremlins. Se Gremlin está para Billy, e Billy está para criança, logo Gremlin está para criança. A criança que precisa obedecer uma série de regras de convivência, mas que aos poucos vai descobrindo que a vida é muito mais do que o conforto da casa dos seus pais, e começa a desobedecer algumas coisas. Com estas desobediências, ela vai conhecendo o mundo, e formando a pessoa que ela será daqui a alguns anos. Esta criança vai então se transformando, se metamorfizando. Bingo! Os Gremlins são metaforicamente crianças que vão aos poucos se tornando adolescentes. Não existe cena melhor que a do bar para representar isto: Gremlins/adolescentes fumando, bebendo, jogando, conquistando parceiros, brigando, tudo num tom festeiro e contagiante. Troque os Gremlins que estão ali por jovens dos anos 80, não parece vários outros filmes da mesma década? Se formos levar por esse lado, a frase final de Randall toma um significado totalmente diferente: "Confira seus armários, olhe debaixo da cama, porque você nunca sabe quando um Gremlin está na sua casa." As crianças amadurecem, tornando-se adolescentes quando menos se espera, e quando isso acontecer, a vida nunca será mais a mesma.
Obs.: embora adolescentes, "eu vou, eu vou, eu vou para casa, eu vou..."
Se tem uma cena que resume Leviatã (2014), esta cena é justamente quando Roma (Sergey Pokhodaev) pergunta aos amigos de sua madrasta o motivo de eles quererem a sua guarda: "Vocês me querem pelo dinheiro, não é." Leviatã é aquele tipo de filme que você entra pensando que a vida é horrível e sai dele, pensando que horrível é pouco. Em poucos mais de 2 horas somos apresentados a diversas histórias entrecruzadas que nos fazem refletir sobre o poder efetivo das instituições e dos próprios conhecidos em nossas vidas.
Desde a abertura, com um clima pouco hospitalar no ar, somos bombardeados de imagens sobre uma cidade pacata e fria (fato ressaltado no tom fúnebre e lento de cada uma das paisagens que nos são apresentadas). Somos apresentados a Kolya (Aleksey Serebryakov), uma granada prestes a explodir no primeiro sinal de descontentamento. Um homem muito apegado à rotina e ao bucolismo do distanciamento da cidade. Vadim (Roman Madyanov), um político importante da região cisma com a propriedade de Kolya, tentando se apossar dela a qualquer custo. Este, tem como único e último recurso, seu irmão, Dmitri (Vladimir Vdovichenkov), advogado da cidade grande que criará uma barreira inicialmente eficaz contra Vadim. Neste meio ainda temos Lilya (Elena Lyadova), uma mulher misteriosa, com ares sempre preocupados e frágeis, que vista entre a fúria do marido, o desacato de um filho que não é seu, tenta se apoiar na primeira pessoa que mais lhe dá atenção: Dmitri. O desenrolar destes acontecimentos, embora lento, se mostrará catastrófico e claustrofóbico para todas as partes (o que é ressaltado pelos planos mais fechados que substituem em grandes-angulares do começo do filme, como se cada personagem estivesse em sufoco). Será que o motivo de Dmitri ter vindo é porquê ele queria de fato ajudar o irmão, ou será que ele veio para se encontrar com Lilya? Lilya de fato se suicidou, não aguentando a pressão que os fatos lhe impuseram ou ela na verdade fora assassinada? E se de fato, ela tenha sido assassinada, quem teria feito isso? Estas são alguns exemplos de perguntas que podem ser feitas da narrativa, embora todas sem respostas. E isso é proposital. Se a ideia é retratar uma sociedade corrupta (e por corrupta entenda, corrupta em todos os planos, não só politicamente), nada melhor do que expor todos os enlaces das histórias com algumas omissões, para que nos questionemos se a corrupção é maior que a vista. Fazendo essa analogia para a vida real, é como se os corruptos omitissem seus atos a fim de que as pessoas não suspeitem dela, mesmo que já suspeitem. O mistério, a lentidão são escolhas fundamentais para aumentar o suspense dos atos das personagens, e portanto a suposta corrupção.
Um ponto forte do filme é retratar as instituições fragilizadas, ou mesmo ridicularizadas. Temos por exemplo, uma família totalmente desestruturada pelo adultério de Lilya. Mas se pararmos para pensar melhor, a família já era um tanto desestruturada, já que víamos um filho que não se dava bem com a madrasta, e esta, totalmente desiludida da situação em que se encontra. Temos também um político irascível e tempestuoso, mas que a todo momento precisa escutar conselhos de um bispo. Este, por sua vez, é um sujeito bem caricato de uma pessoa que vive totalmente para a religião, como se tudo fosse resolvido pelas mesmas palavras: "Deus quis". É claro que um indivíduo como ele, acredita de fato que tudo se origina da palavra de Deus, mas a verbalização desta crença soa muitas vezes ridícula, já que a solução de qualquer problema de Vadim se resume no mesmo argumento reformulado. Se formos pegar todos os discursos deste homem e englobá-los em somente um, parece que na verdade temos um único discurso sempre. Um homem como Vadim, que não dá ouvidos a ninguém, ouvir exatamente o mesmo sermão parece contrariar a pessoa intolerante que ele é. Em certo momento do filme, Dmitri diz que Moscou embora seja grande, ainda assim tem as coisas bem interligadas. Se num microcosmo como este, temos tantos problemas como estes, porque numa metrópole como Moscou os problemas também não podem coexistir. O diretor deste filme é com certeza cético quanto a qualquer instituição religiosa e política (vemos um quadro de Putin associado ao irascível Vadim, ao mesmo tempo que Lênin figura como uma das pessoas a ser acertada por tiros). À essa altura, acho que falar que o filme é pessimista seja um pleonasmo. O número de infortúnios é tão grande que no final é melhor ficar preso numa cela, fora do mundo, do que de fato vivê-lo (é claro que a prisão também é uma instituição interligada ao governo, mas quero somente a ideia do enclausuramento).
Querer ter a propriedade ou a mulher do outro a toda custa são características que denotam uma sentimento de inveja. E não é a toa que o nome do filme seja Leviatã, já que na passagem bíblica, esse monstro representava justamente a inveja. No entanto, muitos anos mais tarde, um sujeito chamado Thomas Hobbes escreverá um livro que diz respeito à sociedade e o governo homônimo a esta fera. Neste livro, Hobbes discute a definição de contrato social, teoria que explica a formação de um governo em que os homens dentre outras coisas abrem mão de sua liberdade para que um comandante absoluto (no caso de Hobbes) governe a sociedade para o bem da mesma. Como dito acima, o filme é bem pessimista e cético política e socialmente. Dando ao filme o nome de Leviatã, Andrei Zvyagintsev ilustra aonde este contrato social nos levou. Vivemos numa sociedade deturpada em que o governo que deveria propiciar as mesmas condições a todos, por ser corrupto, faz com que homens invejem outros homens, desestruturando toda a estabilidade que o contrato social buscava. Leviatã (filme) consegue então pontuar questões humanas (inveja) e políticas (contrato social) baseado num comum religioso (Bíblia). Se não bastasse, Lilya é encontrada no mar (local onde o monstro das águas vive), Roma chora suas angústias perto de um esqueleto de um animal marítimo, sem contar que a Kolya descobre a traição perto de uma cachoeira (água). Após presenciarmos cada uma destas histórias, o filme finaliza com as mesmas imagens do início dele. Em primeiro plano, encaramos as referências ao mar/água de uma forma mais tensa do que já era, no entanto, a ideia mais sutil é ainda mais aterradora: terminamos o filme com as imagens que vemos no começo, como se fechássemos um ciclo. A tendência de um ciclo é se repetir. E se repetir. E se repetir...
Que Martin Scorsese foi, e sempre será um dos maiores diretores de todos os tempos, todos sabemos. O mais interessante é quando vemos os filmes de um mesmo diretor e começamos a achar padrões muito bem arquitetados em vários de seus filmes. Os Bons Companheiros (1990) é mais um dos filmes de Scorsese que segue a estrutura ascensão-declínio de uma forma muito bem estruturada (Touro Indomável (1980), Os Infiltrados (2006), O Lobo de Wall Street (2013), e até mesmo A Invenção de Hugo Cabret (2012) - retratando a parte miserável da vida de um dos primeiros cineastas do mundo).
Seguindo a vida de Henry Hill (Ray Liotta), vivenciaremos três décadas de subidas e descidas de um integrante ativo da máfia. Sem contar a cena inicial do carro, a primeira imagem que temos do filme são as dos olhos incisivos de Henry. E se seguirmos o ditado popular: "os olhos são as janelas da alma e o espelho do mundo" podemos logo perceber que o futuro deste garoto aguarda grandes momentos. Deste começo só queria que mais uma imagem ficasse guardada para o final deste comentário: os olhos verdes (quase os de Scarlett O'hara, a.k.a. Elizabeth Taylor).
Nos minutos seguintes, teremos várias imagens de como a máfia funcionava, os milhares de nomes que Scorsese faz questão de mencionar (como se cada integrante fosse importante para a corporação, como uma família). Vemos o prestígio que Henry por cada mafioso, como se cada um deles fosse um Batman ou um Homem-Aranha para uma criança. Um monólogo extenso sobre como os mafiosos levam uma vida bem mais fácil e lucrativa que a de um cidadão comum. Veremos todo o avanço de Henry na vida de uma máfia, passando de um "garçom" a um dos mais influentes indivíduos, simplesmente por se relacionar com os certos contatos e possuir o "dom" para o ofício. Alguns anos depois já podemos ver um Henry crescido, com alta-estima dentro da máfia, sendo um dos integrantes mais jovens de todo o esquema. Esta ascensão é tanto narrativamente muito bem construída a partir de cenas bem pontuais (como a perda da "virgindade" = ir preso), como também é esteticamente bem arquitetada. Na cena em que Henry decide finalmente sair decentemente com Karen (Lorraine Bracco), temos uma sutileza imagética muito boa. Enquanto Henry percorre os corredores e salões que levaram até o salão principal, além de vermos Henry distribuindo dinheiro assim como James (Robert DeNiro) pouco antes fazia, vemos um enorme plano-sequência de todo este caminho, como se fôssemos meros coadjuvantes no meio do reino dele. Se não bastasse isto, ainda temos a forte presença de uma cor em específico: o vermelho. As paredes são vermelhas, os ternos dos garços são vermelhos, as caixas são vermelhas, em suma, tudo por que passamos naquele corredor é vermelho; até mesmo a luz ambiente do salão de jantar. Essa cor não é posta por mero acaso, já que mais para a frente, ela aparecerá bem forte no carro do vizinho que tenta se aproveitar de Karen e nas cenas em que os três mafiosos enterram e desenterram um outro mafioso. Em todas estas cenas, temos uma ideia em comum: a ascensão de Henry. Essa cor é justamente este poder, respeito e luz que Henry possui em todo seu processo de ascensão. O último momento em que isto aparece bem fortemente é justamente quando os três estão desenterrando o mafioso, em que vemos uma luz bem forte ofuscando todo o semblante (preocupado) de Henry. Analogamente à narrativa, é a partir deste desenterro que Henry começa a decair, e portanto, a cor vermelha, começará a cair da mesma maneira (eu concordo que Henry ainda participará de um grande roubo, mas se compararmos a influência que Henry tinha antes do episódio do desenterro do mafioso e depois, Henry parecerá ser só mais um mafioso dentro do conjunto, começando a ter problemas com a mulher e companheiros).
Ao mesmo tempo que visualizamos estas mudanças visuais, percebemos um desenvolvimento das personagens muito interessante. Tommy (Joe Pesci) continua explosivo, irascível embora veja que grandes acontecimentos começam a surgir, o que em James já é pouco diferente, já que embora ele nunca perca sua compostura, os sinais de preocupação são expressos em sua maneira sutil de querer controlar cada ação, desde a distribuição do dinheiro até o movimento dos companheiros. Henry e Karen terão evoluções muito semelhantes, e considerando que em alguns momentos, não só Henry aparecerá em voice-over (o que a primeiro momento me incomodou bastante, mas que com o tempo foi tomando uma impressão totalmente diferente), mas Karen também, isto é algo bem importante para igualá-los ainda mais (embora o mundo refletido no filme seja machista. O que quero dizer é que seguindo a lógica de que a máfia é uma família, o contrário, sendo incisivamente expresso na figura de Karen, acaba se tornando parte da máfia). Ambos, desesperados com a situação que o rumo da vida deles os está levando começam a se perder no mundo das drogas. Henry ao começo do filme afirma que só vai preso quem quer, ou melhor, quem quer deixar a mulher, que é exatamente o que acaba acontecendo com ele. Embora a prisão dele não seja por espontânea vontade, a ideia continua, já que a traição dele será recorrente até mesmo antes disso. E diga-se de passagem, traição carnal, já que vemos que ele não tem nenhuma intenção com as amantes dele que não seja sexo (a entrada de Henry, James e Paul (Paul Sorvino) na casa da primeira amante a fim de discutirem o problema que Karen está se tornando explicita essa ideia muito bem, já que o único que nem a beija é justamente Henry). Ao mesmo tempo, Karen que se inconformava com as mulheres dos mafiosos se importarem unicamente com banalidades, produtos e fofocas acabará ao fim se tornando a mesma mulher que repudiava.
Se a ascensão de Henry finda, a cor vermelha também começa a desaparecer, como disse acima, mas o mais interessante disto é que Scorsese apimenta ainda mais esta ideia imagética, colocando outra cor no lugar do vermelho que significará exatamente o oposto do que esta cor significa: o verde. À medida que Henry começa a afundar ainda mais, a cor verde começa a aparecer tão fortemente que as vezes chega a ocupar mais da metade da tela. E eu vou selecionar uma cena em específico para analisar e pontuar não só o uso desta cor, mas como de várias técnicas que incorporam mais ainda ao filme; a cena que eu particularmente acho a mais interessante e bem feita do filme (e não, não é a cena do "funny" do Pesci, embora ela seja bem engraçada): a cena que precede a prisão dos integrantes da máfia na lanchonete. A cena começa com uma câmera subjetiva trêmula se aproximando da mesa em que James já se encontrava. Esse andar preocupado não só dá mais tensão a cena como um todo como engradece a pessoa ou objeto que está no fim do caminho. Se repararmos nos arredores, percebemos que existe um caminhão verde enorme cobrindo quase a visão de todas as janelas. Utilizando-se da ideia do declínio, a sensação de fraqueza de Henry é ainda mais acentuada. Com o andar da conversa, Henry percebe que o trabalho que James propõe acabará sendo seu último trabalho, e aí temos um dos efeitos mais impressionantes do cinema, quando bem usados (e aqui é!): o Dolly Zoom (vou colocar um link na descrição de um vídeo que mostra o que é esta técnica). Esta técnica é usada normalmente em situações de fraqueza para engradecer ou diminuir alguém (Touro Indomável (1980)), oníricas (Poltergeist (1982) e O Abismo do Medo (2005)) ou mesmo em situações de catarse (Tubarão (1975)). E é nesta última categoria em que se encontra a Dolly Zoom de Os Bons Companheiros. É quando Henry descobre que James não é mais seu amigo que a câmera começa a se distorcer. Por fim, ao final desta cena a câmera começa a se distanciar da mesa, como se as relações que existiam na máfia fossem agora tão pequenas que a aproximação (tanto pessoal quanto estética) fossem ínfimas. Logo após isso, Henry, sem prognóstico de futuro, e prestes a ser morto, entregará todos os seus antigos companheiros para se salvar de uma condenação. Nesta cena Henry também se encontra de verde, e logo após isso, a câmera focará a nova casa em que ele morará, mas também em grande parte, o gramado verde dela, como se dissesse que o tempo de máfia de Henry chegou ao fim. Nesse meio tempo, teremos outros trabalhos técnicos muito interessantes. Primeiramente, a trilha sonora sempre embalada em ritmos alucinantes e festivos, quando do momento da prisão, a trilha que começava a aumentar, quando Henry decide voltar para buscar o chapéu da mulher, cessa bruscamente, assim que a câmera foca um policial apontando uma arma a Henry. Mas a técnica mais interessante é quando o monólogo de Henry, antes em voice-over acaba se mesclando com a fala do mesmo. Se o voice-over significava uma certa onisciência/onipotência de Henry sobre tudo que acontecia na história, com essa mescla, Henry é agora um sujeito normal, sem nenhuma característica especial, como que se reforçasse o fato de ele viver uma vida simples e justa na casinha mostrada.
Dito tudo isto, queria por fim levantar o título do filme: Os Bons Companheiros (similar ao título em inglês). Numa máfia, será que existe de fato o sentimento de família, irmandade que tantos mafiosos querem mostrar ou essa sensação é só uma máscara de interesse, como se a partir do momento que alguém corre perigo, o bom companheiro é aquele que salva a própria pele? O conflito entre uma ideia romantizada que quer ser passada com a realidade bruta que vemos. Henry, quando jovem, tinha certamente uma imagem romantizada do que viria a ser um mafioso, e seus olhos curiosos pontuavam muito bem isso. Mas será que os seus olhos verdes (declínio como aspecto negativo, logo, realidade) representam a janela da alma (a idealização de Henry) ou o espelho do mundo (a realidade da máfia)?
- Dolly Zoom: https://vimeo.com/84548119 (3:40 temos a cena de Os Bons Companheiros que contém esta técnica)
Touro Indomável (1980) não é um filme para ser visto. Touro Indomável é um filme para ser visto e revisto infindáveis vezes. A história de Jake La Motta (Robert DeNiro), um boxeador habilidoso vive uma vida em que tudo é resolvido na base da força bruta, ou pelo menos, ele acha que é. Enquanto em outras mãos o filme poderia ter se tornado uma homenagem acalorada a este ótimo lutador ou uma crítica ferrenha a pessoa horrível que ele foi, nas mãos de Martin Scorsese, seguimos a vida de Jake como ela é. Cabe a nós ponderar se as imagens mostradas enfatizam um homem vitorioso, ou um monstro avassalador. Logo que abrimos o filme, veremos um dos enquadramentos mais bonitos e significativos para o filme, já que este resumirá tudo o que será mostrado acerca da vida deste homem (considero este o único momento do filme que vemos a vida de Jake por outra pessoa que não seja Jake), mas eu voltarei a comentar sobre isto mais a frente.
Muito parecido em questão de lógica, mais de 30 anos depois, com Lobo de Wall Street (2013), já que vemos um homem ascender rapidamente, da mesma forma que cai em perdição. Após um monólogo de um homem gordo e desfigurado que posteriormente assimilaremos a pessoa de Jake La Motta no futuro, somos logo cortados para uma cena de luta. Nestes poucos segundos, Touro Indomável já nos mostrou o destino de Jake, mas em uma camada metafórica, mostrou também que a vida é algo muito sutil; em um momento podemos ser o alvo de holofotes e discussões e em outro, um velho chato e repetitivo. Com um mise-en-scène impecável logo nos primeiros minutos vemos a condição de cada um na luta. Após ouvirmos o sinal do intervalo, uma câmera veloz se aproxima de Jake, como se este corresse contra o tempo para vencer, enquanto segundos depois veremos a mesma câmera bem mais devagar se aproximando do adversário, mais tranquilo com a vitória encaminhada. Só por este leve movimento de câmera percebemos quem está com o poder no momento. Estes movimentos de câmera acompanharão cada luta de Jake de formas diferentes, não somente aumentando a tensão de cada cena, como ilustrando a sensação de Jake em cada luta. Mais ao final do filme, quando vemos a luta de Jake contra Sugar Ray Robinson (Johnny Barnes) estas mesmas câmeras serão de vital importância para mostrar mais uma vez quem está controlando a luta, já que vemos uma Dolly Zoom (vou colocar um link na descrição de um vídeo que mostra o que é esta técnica) incrível em Robinson até este parece muito maior do que era, sem contar a fumaça e os holofotes atrás que quase nos cegam. Após uma série de cortes rápidos, ainda somos levados por uma câmera que começa no tórax de Robinson e vai parar na luva, a representação da força no boxe que o destruirá completamente. Cada quadro desta cena ajuda a enfatizar ainda mais a sensação de frenesi, clausura e fraqueza de Jake na situação. Para completar ainda temos uma fotografia em P&B que remete à época dos filmes de máfia, como se algo ou alguém fosse ilegal, perigoso ou inesperado (tanto que o único momento em que temos imagens coloridas é quando tudo está estável e agradável, e os dois irmãos se casam e criam filhos. Sem contar as lutas que vão o levando ao estrelato em cortes rápidos com estas imagens alegres). De fato, a atmosfera, o mercado de apostas deste esporte e, principalmente o próprio Jake La Motta são figuras representativas dessa desvirtuosidade.
O mundo do boxe é retratado quase como que a Nova York de Taxi Driver (1976): sujeitos ambiciosos e amorais que fazem de tudo para que tal competidor esteja no ápice, ou contrário. Jake, no entanto, não está somente enojado com o que vê, como simplesmente luta contra cada um dos que lhe impõe uma barreira. A moral de Jake não é a de que todos são miseráveis e que ele é o salvador deles já que não há ninguém que possa salvá-los. Jake está tão no sistema quanto Travis Bickle está, a diferença é que ele vê os demais como inferiores, não ligando quem seja ou como seja, contanto que não seja melhor do que ele. Jake não liga para competidores, juízes, mulheres (desde o primeiro momento em que ele se encontra com Vickie (Cathy Moriarty), nós sabemos que ele conseguirá o que quer com ela, e que a relação entre eles estará fadada à perdição, assim como a relação de Jake com a ex), filhos (em algumas cenas, as cenas de afeto que ele tem para com eles é pegar as crianças e tratá-las como se fossem brinquedos, pegando e empurrando para lá e para cá) e família. Jake é tão baixo como qualquer um dos outros apostadores, e nisto fica a primeira reflexão. Será que vale a pena deixar o esporte nas mãos de quem tem dinheiro, e acabar tornando tudo uma burocracia, ou deixar nas mãos de homens como Jake, criando monstros que embora também procurem o dinheiro, sejam brutos e megalomaníacos a ponto de quererem resolver a vida como se estivessem num ringue de luta? Uma questão que inicialmente me deixou um tanto intrigado, mas que depois me conteve bem é justamente o papel da mulher neste filme. As mulheres deste filme, desde a ex-mulher de Jake até Vickie, todas parecem se subjugar diante dos homens do filme. E é o que de fato acontece, já que tanto Jake quanto Joey (Joe Pesci) maltratam suas mulheres, tratando como se fosse cargas que pudessem ser descartadas (até mesmo a tiros) quando estas os enchesse o saco. Um primeiro argumento contra a visão machista do filme é a de que o machismo está em Jake e em seu mundo, e não no filme, mas as vezes acho que este é um argumento fraco, já que muitas vezes, os realizadores das obras ao tratarem de assuntos problemáticos como estes, acabam impondo sua visão ao filme em detalhes sutis. Como disse no começo deste comentário, Martin Scorsese mostra o que Jake é sem inclinações, então de certa forma, se posicionar moralmente é um pouco complicado. Mas se formos analisar a personagem de Vickie mais a fundo, podemos retirar alguns detalhes importantes.
Vickie é uma ninfeta. Aos seus 15 anos, é cortejada por todos os homens da região, e embora não seja direta na resposta, sabemos que ela não é a garota mais pura do mundo. E é justamente nesta malícia que está a beleza e a complexidade de Vickie. Quando Jack começa a suspeitar inicialmente da infidelidade de Vickie, logo assimilamos à característica controladora e machista dele, nos pondo quase que imediatamente a Vickie. Quando enfim descobrimos que ela estava traindo o marido, percebemos que a mulher indefesa e fraca que achávamos que Vickie era, na verdade era uma faceta (sim, nada tira o fato de Vickie ser maltratada, o que quero dizer é que Vickie não é uma mulher conformada, mas na verdade bem forte). A traição dela cria uma personagem feminina muito mais forte do que aparentemente achávamos (o que não tira o fato do universo da história ainda ser bem machista).
Após se afastar dos ringues, numa situação já bem precária do que um dia já fora, Jake acaba abrindo um bar requintado onde pode viver e abusar da vida como sempre quis: sem ninguém para mandá-lo. O mais engraçado é como Jake enfim entrará em cana. O fato de ele ser preso pela luxúria que tem com a garota menor de idade ecoa fortemente com o início do filme. Se no começo da trama, Jake era um homem que achava que conseguia tudo, agressivamente ou não, vemos que esta renovação do "poder" o levou à impotência. Tentando utilizar-se do cinturão de campeão para sanar sua sentença, Jake acaba metaforicamente toda a glória que um dia quis, ao mesmo tempo que leva a representação da sua vitória a se tornar cifras de dinheiro (não era o que os apostadores queriam desde o começo?). O poder que ele acha que tem não é nada. Ele pode ter sido alguém em algum momento da vida, mas este tipo de poder que motiva Jake a continuar não é suficiente para mantê-lo eternamente em glória. Após ser finalmente deixado pela mulher, perder a guarda dos filhos, não conseguir se reconciliar com o irmão e acabar sozinho na vida (não era isso que ele queria desde o começo?), Jake vai a um sarau recitar grandes nomes. Retornando ao monólogo inicial, Jake fala de seus pesares passados, cita homens como Marlon Brando, em On the Waterfront (1954) que são miseráveis na vida porque são maus e desaventurados. Admite que está na fossa, mas não admite que a culpa seja sua, ou que sua índole tenha afastado alguma coisa, culpando um tal de Charlie. Ou seja, ao final, Jake continua sendo megalomaníaco ("Quem manda sou eu"). Jake se acha tão bom, que não quer ser comparados a homens como Marlon Brando do filme supracitado, Jake quer se juntar aos maiores, como Shakespeare. Mesmo depois de toda a decadência, Jake continua se achando o maioral. Martin Scorsese ilustra a vida de Jake do ponto de vista de Jake. Dessa forma, Jake não se acha um perdedor, mas somos nós que percebemos ao fim do filme, que Jake é um homem horrível, megalomaníaco e fracassado. E esta é a beleza do filme, olhar a partir dos olhos de um cara que não tem olhos bons. E tudo isto nos faz voltar a cena inicial do filme, em que víamos um enquadramento maravilhoso do ringue cercando Jake. Este enquadramento quer dizer justamente tudo que vínhamos comentando até aqui: um homem que se acha grande, indomável/furioso (como diz o título em inglês, embora eu goste bastante do título em português), dono de si, mas que se visto por outros olhos, está enclausurado pela mesma grandeza que acha que tem; as barras existem por conta de sua própria característica. Sendo assim, é como se ele mesmo se prendesse: as barras indomáveis.
- Dolly Zoom: https://vimeo.com/84548119 (1:33 temos a cena de Touro Indomável que contém esta técnica)
Ida (2013) é um filme frio e direto da vida de uma quase freira judia em que nada visto na tela precisa de rodeios. Desde o tom fúnebre do P&B até à edição, nada é posto mais do que o necessário. E é nisto em que está beleza (ou melhor, a tristeza) do filme, a vida pacata e sem gosto dos seres humanos.
Prestes a declarar seus votos, Anna (Agata Trzebuchowska) é sugerida a passar um tempo com Wanda (Agata Kulesza) a fim de que passe os últimos dias em convívio do seu único laço de sangue vivo da família. Casta e pura, mas com um semblante sempre emblemático, visto nos olhos sempre atentos e incisivos, Anna então vai ao encontro de Wanda, encontrando uma mulher totalmente diferente do que ela é. Ao entrar na casa, vemos uma mulher cansada, fumante, com um homem sobre a cama e bebidas por toda a casa, em suma, tudo o que Anna não é. O processo de descobrimento e afloramento de Anna não é belo nem demorado, mas sim uma série de imagens tempestuosas que a levarão ser quem é. Após descobrir quem de fato é, Anna/Ida decide encontrar o resto de seus pais, judeus na Segunda Guerra Mundial. Com pouco mais de 15 anos do fim da guerra, as consequências desta ainda são estrondosas não somente para as famílias dos sobreviventes, mas para toda uma população desolada pelos horrores por quais tiveram que se submeter para sobreviverem (como matar outras famílias). Wanda, diferentemente do seu passado, em que condenava com poder inimigos do Estado, se vê agora uma mulher insegura e traumatizada com a perda do filho e dos familiares, que personifica de uma forma estranha todo o carinho por qual tinha por estes em Ida, fato bem ilustrado ao fim da vida dela, em que ela comenta do cabelo ruivo de Ida. Com a guerra, laços e afetos são abalados, de forma a criar uma comunidade pesarosa e vigilante sobre tudo o que acontece aos arredores.
Toda essa sensação de vigilância e enclausuramento é muito bem composta nos aspectos técnicos deste filme. Em diversos momentos do filme, enquadramentos amplos ou capturando grandes partes do teto parecem enclausurar as personagens, como se quase as sufocasse, já que em várias destas cenas conseguimos mal ver a cabeça dos indivíduos (no começo do filme temos um quadro de Ida e suas amigas arrumando a estátua de Jesus Cristo sobre um altar, e o enquadramento dela é estupendo, já que estas ficam no canto inferior, quase suprimidas pelo frio e pela Igreja aos fundos, como se a religião suprimisse a liberdade destas). Em ambientes fechados, ainda temos paredes e colunas sempre parecendo tampar os ambientes em que as personagens se situam, numa sensação não só claustrofóbica, mas de privacidade, como se o assunto destes indivíduos não coubesse a nós (isso acontece por exemplo, quando o filho do homem que manteve os pais de Ida durante a guerra se encontra com ela a fim de acertar o que fariam as seguir, ou mesmo na dança de Ida e do saxofonista (Dawid Ogrodnik). Ambas cenas bem pessoais a Ida, mas de certa forma agressivas a ela, já que no primeiro caso o mesmo homem que concordou em levá-la ao túmulo de seus pais, na verdade os matou, e no segundo caso, pelo fato de ela estar experimentando algo novo, nunca antes visto pela mesma). Por fim, ainda temos uma edição maravilhosa das cenas que funcionam muito bem como agravantes da sensação crua e seca do filme. Em vários momentos, o filme corta em situações pontuais que ficaram muito bem subentendidas para o prosseguimento do filme. Essa estratégia além de reduzir consideravelmente o tempo do filme (1h20min), faz com que tudo seja muito mais bruto do que já é (isso acontece por exemplo quando a tia pergunta a uma pessoa se alguém sabe onde o homem que matou seus pais morava. Quando alguém responde com uma outra pessoa sabe, nós somos cortados diretos para o homem na cama do hospital, já que não é necessário termos uma outra conversa em que só veríamos Wanda perguntar a mesma coisa. A cena pode ser subentendida. Isso acontece também quando vemos um guincho recolhendo um carro, e logo após, Wanda na polícia).
Quando Ida enfim retorna para a Igreja a fim de finalmente fazer seus votos, Ida despreparada e chorosa clama que ainda não está preparada, precisando passar por um momento catártico, em que ela se submete aos prazeres da carne, se assemelhando muito à forma como Wanda realizava as mesmas coisas. Ao final de tudo, Ida percebe que nada destas coisas de fato lhe satisfaria, ou melhor, nada teria um prognóstico de futuro melhor do que o da vida que antes tinha, como expressa na pergunta de Ida ao saxofonista: "O que faremos depois disso (casar, ter filhos e uma casa)?" Ele não tem a resposta. Ida então decide voltar à vida que antes tinha, numa câmera final trêmula que destoa de todo o filme. Ida é uma pessoa mais ciente da vida, uma pessoa diferente. Se antes a vida sufocava Ida, Ida agora determinada, é que faz o que quer dela; o ambiente já não é mais um problema, como os enquadramentos antes mostravam. O filme é sim pessimista, já que afirma que a vida mundana não é só indigna, mas também não válida de se viver.
Ida é um filme maravilhoso em sua estética, direto em sua mensagem (pessimista, mas direta), mas que sinto que poderia ter explorado um pouco mais no conflito entre ser judia e católica, não que o foco mundo X castidade já não seja muito forte, e que como pano de fundo ainda caracteriza toda uma sociedade reprimida pelo o que foi a guerra.
Foxcatcher (2014) é o filme indicado ao Oscar que segue uma onda totalmente diferente de filmes dinâmicos e rápidos como Whiplash (2014), O Abutre (2014), Interestelar (2014), e principalmente Sniper Americano (2014) tendendo a uma narrativa mais arrastada e minuciosa dos acontecimentos que levarão a uma brutalidade tamanha que destoa totalmente do ritmo lento empregado ao resto do filme, causando de fato um choque, como o subtítulo pretende incitar.
Conhecemos a família dos Schultz, homens dispostos a dar raça e determinação a fim de que consigam conquistar as trabalhosas medalhas olímpicas em luta greco-romana. Enquanto, Mark (Channing Tatum) aparece como um homem solitário, bruto e anti-sociável, seu irmão, Dave (Mark Ruffalo), um homem mais carinhoso e atencioso já se porta como um homem de família, que preza não só por esta, mas também bem fortemente por Mark. Essa dissonância de personalidades será fundamental para que a sensação de raiva de Mark por Dave seja mais enfática. Após acompanharmos um dia normal de treinos, Mark é requerido pelo ricaço John Du Pont (Steve Carell) para que treine em sua mansão, com tudo custeado e organizado. Por estar desprendido de qualquer vínculo pessoal, Mark, diferentemente de Dave, parte para a majestosa mansão de Du Pont com a certeza de que está fazendo uma escolha certeira pelo seu próprio bem e pelo bem da nação americana. Em primeira vista, essa parece de fato ser uma ótima escolha, muito pelo trabalho visual empregado na cena, em que nos situamos numa casa impecavelmente arrumada e simétrica, repleta de tons vermelhos (esta será uma cor importante para a análise, guarde ela) agradáveis por todos os aposentos. Embora criemos toda uma imagem de Du Pont através do telefone, do helicóptero ou da própria mansão, a chegada deste é simples e casual. O problema é que esta figura consoladora e motivadora que vemos no homem que se importa em vir até o chalé de Mark para ver se o mesmo se encontra acomodado, se tornará aos poucos uma figura tirânica e problemática, e se a construção há pouco, fora muito bem utilizada para formar uma ideia positiva de Du Pont, não posso afirmar o mesmo em relação a esta desconstrução.
O filme, como já disse, tem um ritmo bem lento, chegando a possuir momentos em que sentimos que essa elongação não é de todo necessária. Mas ao mesmo tempo que tempos cenas como estas, me pareceu que o desenvolvimento da figura má de Du Pont não é muito bem construída, pois não vemos de fato muitos embates entre Mark e Du Pont, enquanto tivemos várias cenas em que se enaltecia a figura de Du Pont, como no abraço encalorado de Mark após da vitória ou no discurso positivo diante de ricaços. A meu ver, Du Pont começa a decair moralmente quando na viagem de helicóptero, ele apresenta a cocaína a Mark. O foco deste começa a cair vertiginosamente, passando de um homem determinado a um outro narcisista. O que quero dizer é que para mim, Mark transforma-se numa figura tão imoral quanto Du Pont, enquanto o filme tenta demonizar somente este último, a partir de imagens frias nos laços familiares com a mãe, numa expressão desgostosa por todos os cômodos que o vemos. Essa construção nos faz sentir pena de Mark, o que ao meu ver não parece muito sensato, já que a marginalização de Mark é tão grande quanto a de Du Pont. O resultado disto é que Du Pont exige que Dave substitua o lugar de Mark a qualquer custo, e é aí que todas as ideias que Du Pont tinha impregnado à cabeça de Mark vão à tona.
No primeiro arco do filme, Du Pont coloca Mark contra seu irmão, muitas vezes o menorizando, a fim de fazê-lo com que se esforçasse mais para superar Dave. Ao mesmo tempo que ele desfazia este vínculo, Du Pont criava uma ideia de dever com a nação, muito mais importante do que qualquer coisa, o que chamamos de patriotismo, e é aqui que ele destoa completamente de Sniper Americano. Primeiramente, queria dizer que não sou contra o patriotismo, só não acho moral utilizar-se desta noção para justificar violência e terror, como é amplamente divulgado em Sniper Americano. No primeiro arco deste filme, temos uma ampla divulgação de patriotismo desde a palestra de Mark no colégio até nos vídeos que contavam a história da família de Du Pont, no entanto, a partir daí, a ideia de patriotismo será totalmente quebrada, totalmente. O patriotismo que motivou Mark a chegar até onde chegou personificado na figura de Du Pont passará a ser motivo de desgosto e nojo. O patriotismo de Du Pont o levará a assassinar Dave. A ideia de pátria é totalmente desmitificada por imagens cruas e frias relacionadas as personagens mais patriotas do começo do filme. Além disso, aquela cor vermelha reconfortante do começo do filme passará a ser opressiva, ou melhor, sempre foi opressiva, desde aquela sala, a questão é que não encarávamos desta forma. A cor vermelha estará presente em grande parte dos uniformes dos adversários de Mark, no chão das Olimpíadas oprimindo Mark, assim como estará na roupa sempre ajeitada e completamente vermelha da mãe de Du Pont, oprimindo o filho. Mas é ao final do filme que esta cor terá um papel muito forte: o sangue de Dave. O sangue de Dave é a representação máxima da opressão, no caso, a opressão do patriotismo em um indivíduo, que o faz lutar pelo conjunto, e que caso não o siga, seja peça descartável (assassinato). Esta ideia de opressão é ainda enfatizada por uma trilha sonora muitas vezes dissonante, como se sofrêssemos para escutar o que acontece ao redor. Este detalhe técnico ajuda muito para enaltecer a ideia progressiva de tensão, já que esse artifício é progressivamente usado com o decorrer do filme e a desmitificação das personagens.
Foxcatcher é um filme tecnicamente muito bem feito, estupendamente bem interpretado, com pinceladas psicológicas bem incisivas, mas com um ritmo lento em cenas que não precisavam se alongar demais e um desenvolvimento raso da mudança da índole das personagens, principalmente no meio do filme, que compromete em parte a dimensão do conflito.
A Teoria de Tudo (2014) podia ser um filme bem criativo, questionador e emocionante, mas por tentar abordar muitas facetas do astrofísico Stephen Hawking (Eddie Redmayne, numa atuação magistral que vai desde o jeito tortuoso de andar até a inclinação compulsiva da face), acaba se perdendo num filme genérico sobre tudo e nada. A primeira ideia que vem a mente quando se trata de Stephen Hawking é justamente acerca de sua inteligência e descobertas no campo científico, descobertas que achei que seriam muito mais abordadas neste filme. Não vejo problema em tentar dar uma outra cara à história de Hawking, só acho que seria preferível não falar de assuntos científicos ao invés de ficar na rasa profundidade do assunto. Em diversos momentos do filme, temos leves pontuações sobre suas descobertas, explicadas de forma incompleta e pomposa a fim de dar mais veracidade às afirmações. Um exemplo perfeito disso é quando Hawking vai dar uma palestra após o sucesso do livro: sem contar o fato de ele estar falando a velocidade mil (nós sabemos como o equipamento funciona, mas mais uma vez, de forma bem superficial) para poder-se criar um maior sentimentalismo nas palavras, Hawking ainda responde as questões de uma forma também superficial (quando o senhor pergunta sobre a crença de Hawking em Deus, ele responde que enquanto tivermos esperança ainda teremos vida. Esperança no quê? Cadê a resposta em relação a Deus? A cena é totalmente arquitetada a fim de causa emoção em massa. Você não se sensibiliza por o que Hawking fala, você se sensibiliza pelo devaneio que ele tem com a caneta ao cair ao chão). Além disso, o filme não nos dá nenhuma profundidade a mais senão a necessária para nos sensibilizarmos. Em diversos momentos do filme, eu me perguntava se aquilo era de fato emocionante, porque ao decorrer de todas as duas horas do filme, entram e saem personagens secundários, que servem para fomentar a situação presente e somem como se nada tivesse acontecido. Você não consegue criar nenhum vínculo emotivo com nenhuma das personagens ao redor de Stephen, sem contar é claro, Jane (Felicity Jones). Stephen cria filhos que não tem nenhuma importância no filme senão serem parte da história de Stephen. Stephen tem amigos cujo único papel é ser amigo de Stephen. Isso faz com que uma hora nos cansemos de tanta veneração a Stephen. Sim, o cara é demais, o cara é impressionante, mas o filme podia se chamar Stephen é Tudo que daria na mesma.
Além disso, o filme se fundamenta sobre um roteiro/direção bem conservadora no sentido de a cada novo momento ele tentar nos sensibilizar mais ainda ao invés de tentar pontuar questões que nos façam pensar, e por conseguinte, nos fazer emocionar de um modo diferente, mas também efetivo, que complementasse o resto das sensações. Sendo assim, toda vez que a religião é citada, ou Stephen lança um sorriso, como se o ceticismo dele não valesse de nada, ou Jane fala de ciência, ciência, ciência, e depois afirma que ainda existe a religião (e isso acontece exatamente igual na relação de Jane e Jonathan (Charlie Cox), já que não sabemos de fato quando algo aconteceu, quando algo não aconteceu). Por não questionar nem de um lado nem de outro, mas tentar mostrar os dois lados, A Teoria de Tudo não anda ideologicamente, porque parece que embora o filme siga adiante, ficamos parados no mesmo lugar. Talvez a ideia mais inovadora do filme seja a estética dele, com cores por vezes pastéis, por vezes frias em enquadramentos um tanto difusos. O problema é que não faz sentido o filme criar toda uma estética se ele não faz sentido para a trama, ou pior, não nos cria sensações diferentes a cada novo quadro. A minha única sensação o filme todo era que eu estava num sonho, porque passávamos por cenas belas, por cenas tristes em filtros tão diferentes que o que era mostrado na tela me parecia muito surreal. E este é o maior problema do filme. Por tentar humanizar demais a história de Stephen Hawking, entramos numa espécie de sonho em que o nosso único intuito, é venerá-lo. Mais uma vez, o cara é fantástico, mas qual é o sentido de se criar um filme que só aumente ainda mais a pessoa que alguém já é? Propaganda? Eu pensava que esta era uma história sobre sentimentos, e não sobre um mito, um ídolo que não possui mais nada a ser acrescentado. Se não bastasse essa idolatria, ainda existe uma cena que me incomodou profundamente neste sentido de desenvolver outras personagens que não seja Stephen Hawking. Quando Jane vai encontrar o médico, após saber da condição do marido, ela inicia uma conversa em francês, passando posteriormente para o inglês, como se quisesse afirmar que Jane existe nesse filme, e que ela faz outra coisa além de cuidar do marido, afinal, ela estudou outras línguas na universidade.
A Teoria de Tudo é um filme emocionante, por vezes até demais da conta, com atuações impecáveis vindas do casal principal, mas que peca em tentar criar um sentimentalismo desnecessário, se perdendo no que falar, e como falar.
Poucos são os filmes que te fazem viver uma experiência, nos alocando num espaço quase palpável de tão real, tendo como única consequência, nos fazer sair extasiado do cinema. Boyhood (2014) é com certeza uma experiência marcante, O Abutre (2014) transborda realidade crítica e Whiplash (2014) sem dúvidas nos leva ao total sufoco, mas é Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014) - que é tão importante quanto o título principal - que consegue mesclar todas essas sensações em um único filme (Quem quiser ler somente a minha interpretação do final do filme, siga até o último parágrafo, mas digo que o comentário por completo está repleto de pontuações de que me utilizarei no final).
A primeiros olhos, Birdman parece ser só mais um título de herói (o que não significa que é ruim, já que Guardiões da Galáxia (2014) conseguiu ser um dos mais inovativos do gênero, por exemplo), mas é ao ler o próprio subtítulo que vemos que não é nada assim. Após algumas imagens iniciais, somos apresentados a Riggan Thomson (Michael Keaton), um ator decadente que viveu seus anos de glória sob a figura de Birdman, o herói fictício que iniciou a onda de super-heróis que viríamos a ter hoje em dia (a colocação de que Michael Keaton tenha de fato interpretado Batman (1989) e posteriormente Batman - O Retorno (1992) não é só muito justa, como abre alas a uma nova camada de análise do filme: a realidade fora do filme, que virei a discutir mais à frente. Uma outra curiosidade é que o ano de 1992 é não só o ano em que Keaton se despede do papel de Batman, como também de Birdman neste filme). Em poucos minutos, vamos conhecendo cada uma das personagens do filme: Jake (Zach Galifianakis, numa interpretação bem diferente do que estamos habituados na série Se Beber, Não Case (2009-2013)) como um produtor meticuloso, mas impetuoso quando necessário, Sam (Emma Stone) como uma jovem desinteressada na vida que acabara de retornar de uma clínica de reabilitação, Lesley (Naomi Watts) como uma atriz desesperada tanto emocionalmente quanto pelo sucesso e Mike (Edward Norton) como um ator de muito habilidoso, mas também bem desequilibrado e complicado de se trabalhar. E o que todos esses indivíduos almejam se resume em uma única palavra: reconhecimento. A palavra reconhecimento remete a ideia de reconhecer, sendo assim, independentemente da amplitude, o importante é que haja um alvo. Dessa forma, o reconhecimento pode ser tanto ser reconhecido como não só como um ator de sucesso, mas também respeito (coisas bem diferentes), como ser reconhecido (receber mais atenção) do seu próprio pai. Na sociedade altamente competitiva e tecnológica que vivemos hoje, essa noção de reconhecimento se perde muitas vezes em 'likes', como muitas vezes pontuadas no filme (como na cena em que Sam diz que seu pai não é famoso por não ter contas em algumas redes sociais). Como eu disse, a amplitude do reconhecimento varia de pessoa para pessoa, mas será que é realmente efetivo se expor a milhares de pessoas numa rede social a fim de buscar mais prestígio, ou o simples reconhecimento de um núcleo menor já é o bastante? A resposta é única e verdadeira para cada um de nós. Talvez pior do que o reconhecimento seja a obstinação pelo mesmo. Riggan se recusa a usar qualquer um destes meios, mas é o primeiro a querer mais enfoque, da mesma forma que Sam mesmo com as redes sociais é um ninguém ao mundo. Mais uma vez recorremos ao subtítulo do filme: A Inesperada Virtude da Ignorância. Pessoas obstinadas sabem muito bem os objetivos delas, ou seja, são totalmente cientes do que os permeia, mas as vezes são as ignorantes que conseguem o mesmo resultado sem a mínima ideia de como chegarão até ali. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o patriarca da família afirma em um momento que ser ignorante é uma benção, já que se começasse a conhecer, não poderia parar mais. Conhecer é sem dúvida algo majestoso, mas é ao mesmo tempo, aterrador. Saber que algo pode te machucar te impede de seguir o momento com mais naturalidade. É claro que este saber permite viver por mais tempo, o que não quer dizer, que você viverá feliz. Todos as personagens de Birdman são obstinadas, e sendo obstinadas, farão de tudo para alcançar essa felicidade, o que para alguém que é obstinado, pode estar sempre bem distante. Riggan quer ser mais do que alguém de sucesso, ele quer ser respeitado, o problema é que nem ele mesmo consegue se respeitar, já que a imagem de Birdman, seu passado de sucesso, o atormenta a cada novo passo que ele decide dar. A obstinação dele é tamanha que Riggan não somente precisa fazer uma peça de sucesso, como também suprimir um alter-ego que o perturba. Essa dualidade é por si só impressionante, pois de um lado temos Riggan depois de anos do sucesso de Birdman, lutando para ser alguém desmitificado do papel do super-herói, enquanto que por dentro, temos a ideia de alguém que não consegue se livrar deste papel, como se Riggan e Birdman fossem uma pessoa só. Como o psicológico (o interno) manda no físico (o externo), é como se Birdman fosse até maior que Riggan, como de fato é, por exemplo na cena das explosões. Ao inserimos a ideia do espelho, que será muito importante para o desfecho do filme, a metáfora fica ainda mais bela, já que o espelho é não somente o que queremos ver de nós (pegue por exemplo a anorexia, o que vemos no espelho não é o real, mas é o que achamos que vemos de nós) como também a representação visual do que temos por dentro, denotando uma dualidade psicológica muito incisiva a Riggan (para quem gosta disto, procure por Cisne Negro (2010) e O Homem Duplicado (2013)). Ok, Riggan é obstinado, bipolar e fracassado, o que mais falta? Um péssimo indivíduo para se lidar com pessoas. E o pior é que ainda conseguimos torcer para esse cara ter o sucesso que de fato procura. Riggan é um pai terrível, um marido terrível e um namorado terrível. Em nenhum momento até ele de fato conseguir o sucesso que tanto almeja, vemos uma única cena de afeto com alguma das pessoas ao redor. É claro que ninguém é santo, já que a própria ex-mulher dele entra no camarim toda sorridente quando percebe que o ex-marido pode ser importante mais uma vez, contrastando com o semblante inexpressivo da primeira vez que conhecemos ela.
Birdman ainda insere pontadas muito sarcásticas ao vários ramos da produção teatral/cinematográfica, satirizando por exemplo a atuação de Jeremy Renner em Guerra ao Terror (2008) ou Justin Bieber. As pontadas vão desde a máquina copiadora do cinema hollywoodiano em que vemos todo ano saírem mais e mais filmes genéricos, com a mesma estrutura e inovação dos anteriores, passando por fãs que não respeitam a privacidade de seus artistas, assim como um jornalismo barato (que inicialmente é representado na figura de uma jornalista sensacionalista que confunde nomes e faz perguntas idiotas, passando a ser um jornalismo voraz por catástrofes, no caso, a tentativa de suicídio) até ao papel da crítica (representada no caso por uma mulher fria e calculista, mas que na verdade se baseia em questões pessoais para assinar seu trabalho). O mais divertido de todas essas críticas é que elas são em sua maioria, sarcásticas (super-heróis dançando ridiculamente, explosões, monstros e armamentos aparecendo de uma forma tão brusca que a cena fica cômica, uma mulher dizendo que vai ferrar com a peça só porque não gosta de Riggan, como se fosse uma criança), trazendo um alívio cômico para uma realidade de fato presente em nossa sociedade (uma das melhores formas de se criticar algo é banalizando o mesmo, e Relatos Selvagens (2014) e Dr. Fantástico (1964) são duas obras que fazem isso muito bem). Uma ideia também bem forte vem verbalizada no que Mike diz: o único local em que ele é verdadeiro é nos palcos, enfatizando ainda mais aquela ideia do duplo Riggan/Birdman. Quem é o verdadeiro? As vezes, os atores acabam entrando tanto no papel que já não sabem mais o que é falso e o que é realidade (Heath Ledger com o Coringa), outras vezes, um personagem fica tão estigmatizado que quando o vemos novamente, não é o ator, mas sim o personagem (Harry Potter, Frodo). E aqui voltamos lá para o começo do comentário: reconhecimento. Esses artistas buscam tanto reconhecimento dos demais que muitas vezes não consegue nem ao menos se reconhecer sozinhos. Expandindo isso para todas as pessoas, identidade é uma palavra muito forte, já que sempre queremos ser alguém que vemos na televisão, ou algum jogador que vimos jogar, nunca estamos satisfeitos com nós mesmos. Aceitamos a identidade, o cabelo espetado, o vestido pomposo em detrimento do nosso próprio ser. Sendo assim, talvez não temos um duplicado, mas na verdade, vários, e isso é mais aterrador do que parece.
Se não bastasse um protagonista complexo e críticas para lá de incisivas, o filme ainda tem uma estética totalmente diferente, lembrando em muitos momentos a escolhas de filmes da Nouvelle Vague (movimento fílmico francês que prezava por mais sutilezas estéticas e suas alterações pré-estabelecidas), como a do controle da trilha sonora (na cena em que temos o voo de Riggan/Birdman, a trilha para e prossegue em momentos muitos bruscos, como se denotasse uma artificialidade ao momento, mas que por si só, é incrível: um filme em que o protagonista controla o que tá acontecendo em várias camadas - cof, cof, Curtindo a Vida Adoidado (1986)). A escolha de um plano-sequência por praticamente todo o filme é em si bem ousada, mas ela não seria boa se não fizesse sentido ao filme. Mas, ela faz. A sensação que temos no filme inteiro é que de fato estamos andando junto com cada uma das personagens pelos corredores, passando por luzes vermelhas e azuis como se as sensações fossem de clausura, desconforto, como se não tivéssemos somente física mais também psicologicamente presos aos problemas de cada personagem. A sensação que tive em todo o filme é que eu era um cara do backstage que acompanhava a vida de cada um, sedento para que a cada nova virada de câmera eu presenciasse algo totalmente diferente do que eu havia visto em outra personagem. Esses movimentos criam então tensão e turbulência para um ambiente já repleto de desavenças. Além disso temos uma trilha composta quase que unicamente por percussão, aumentando e desacelerando a cada estado de espírito da personagem em questão. A brincadeira do que acontece em filmes e por trás deles é tanta que chegamos até mesmo a ver a fonte da trilha sonora em um momento, como se de fato mostrasse que estamos na produção de algo (já que uma trilha sonora só é considerada trilha se só os espectadores conseguirem escutá-la, mas podemos por outro lado, imaginar que o baterista seja parte da imaginação da cabeça de Riggan).
Para quem já viu outros filmes desse ótimo diretor (Alejandro Gonzalez Iñarritu. Para quem quiser ler um pouco mais sobre as características do cinema de Iñarritu, eu escrevi um comentário sobre o filme Biutiful (2010) em que contraponho várias ideias recorrentes na filmografia deste diretor. Colocarei o link ao fim do comentário) é surpreendente ver como a estrutura narrativa se distancia a primeiros olhos dos filmes predecessores (personagens de diferentes realidades que se unem por um objeto/sentimento em comum). No entanto, para aqueles que chegaram até aqui, vocês se lembrarão que no início do meu comentário, citei a busca de reconhecimento através da obstinação de cada um. Sendo assim, embora a relação estrutural não seja tão aparente como a dos demais filmes, ela está sim presente em uma camada diferente de análise. Outra marca forte em toda a obra de Iñarritu é o forte pessimismo, que aqui está mais do que presente na figura de toda uma indústria de entretenimento que se preocupa mais em obter dinheiro do que prestígio, presente também em personagens problemáticos que não conseguem se situar no meio em que vivem, em um protagonista sarcástico, mas ao mesmo tempo, atordoado.
Por fim, chegamos ao fatídico fim. Totalmente transtornado, Riggan tentar se suicidar à frente de centenas de pessoas. Queria fazer uma pausa breve aqui. Após deste ato, a câmera enquadra a plateia aplaudindo o ato, aplaudindo o fato de Riggan ter tentando se matar. É claro que a plateia não sabe que isso de fato aconteceu, mas nós sabemos. Em outra camada de análise podemos ver o papel da plateia. A plateia que aplaude por violência, explosões e anomalias, a plateia que aplaude por uma morte de fato. Uma plateia que não sabe o que quer, mas sabe que não quer o leve. Da mesma forma que a plateia aplaudiu um estupro alguns minutos atrás, ela aplaude um suicídio. Se pararmos para pensar nisso, qual é de fato o papel da plateia, ou melhor, o que aceitamos e o que não aceitamos? Mas voltando ao fim, assim que Riggan tenta se suicidar, vemos o primeiro corte de todo o filme. Sendo este o primeiro corte do filme, é de se supor que ele não foi por mero acaso, tendo um papel bem importante para os minutos seguintes do filme. Seguindo a análise que fiz, em que eu dizia que o plano-sequência era de certa forma uma certeza da realidade que presenciávamos, como se estivéssemos quase que num backstage, vendo o que cada personagem fazia, o primeiro corte pode significar o próprio corte da realidade. Sendo assim, toda esta cena depois do tiro, pode ser na verdade um sonho. Riggan tendo morrido ou não, pode estar imaginando que todo o sucesso que ele tanto almejava fosse na verdade um sonho, explicando o fato ao final do filme de ele conseguir voar, expresso no semblante de felicidade da filha. Nessa primeira interpretação, temos um final bem pessimista, porque Riggan não conseguiu nada do que ele de fato queria: ser respeitado. Numa outra interpretação, Riggan de fato acertou o próprio nariz, foi internado e sobreviveu, alcançando todo o sucesso e respeito que queria. Riggan inicialmente com uma máscara que encobre o nariz, e posteriormente com o próprio nariz, parece se assemelhar muito com Birdman, até que ele mesmo vê que Birdman está no reflexo do espelho. Mas só no reflexo. Aquela ideia que comentei nos parágrafos anteriores, do eu e do duplicado, da luta por identidade, embora tendo parecido estar desfeita (já que Riggan conseguiu um outro papel de sucesso que não seja o de Birdman), continua mais forte do que nunca, porque se Birdman era o sinônimo de sucesso, enquanto Riggan de fracasso, ao alcançar este sucesso, Riggan agora é tão famoso como Birdman, sendo assim, Birdman e Riggan são mais a mesma pessoa do que nunca. Mas se toda essa dicotomia e loucura se passava somente na cabeça de Riggan (como enfatizado na cena do espelho) porque quando Sam chega ao quarto, ao olhar para o alto ela sorri? Com o sucesso de Riggan, ele é agora quem passa a ser o sinônimo de sucesso, e não mais Birdman. Se os poderes de Birdman eram a representação de sucesso, embora irreais, agora que Riggan detém o sucesso, ele é o irreal, ou seja, Birdman e os poderes passam a ser o verdadeiro. O que Sam vê é o sucesso que Riggan agora detém metaforizado no voo de Birdman. Esta outra interpretação embora mais feliz também contém um tom de detrimento, já que mesmo com o sucesso, Riggan ainda não consegue se desprender de Birdman, precisando se afirmar sobre ele para se identificar como alguém neste mundo.
O Jogo da Imitação (2014) é um ótimo exemplo de filme de guerra que não se fundamenta na guerra propriamente dita. Sendo mais preciso ainda, praticamente todas as imagens que se passam no campo de batalha não possuem nenhuma glorificação da guerra, elas são na verdade bem cruas e frias do que algo horroroso como uma guerra pode ser (várias cenas aéreas de bombardeios, feridos dos campos de batalha amputados, e uma cena que eu acho muito significativa imagética mas também para uma ideia que direi mais a frente: o tanque de guerra esmagando o capacete de guerra).
O primeiro contato que temos do filme se dá num monólogo do próprio Alan Turing (Benedict Cumberbatch, numa atuação muito tocante, alterando-se de um cara arrogante para outro inseguro em frações de segundo. O interessante é perceber os trejeitos de Benedict nestas duas situações, principalmente quando ele está inseguro. Vemos um indivíduo tremendo os mínimos pontos - especialmente os lábios -, como se fosse difícil conter o temor, além de Benedict ficar arrumando o cabelo, numa tentativa de esconder essa fraqueza) em que a primeiro momento parece se dirigir a nós (o que pode ser perfeitamente cabível, já que nós como espectadores, não estamos no controle da história), mas que mais ao final pode ser entendida como referida ao investigador. Assim, somos enfim apresentados a Alan de uma maneira um tanto quanto suspeita, já que acompanhamos uma investigação policial a sua casa. Lá conhecemos um homem bem arrogante e seguro do que está fazendo. Segurança esta, apresentada nos minutos seguintes, concedendo um emprego a ele, num passado próximo. Aqui temos um outro artifício utilizado muito bem ao decorrer de todo o filme, com exceção de um momento: a não-linearidade da história. Em determinado momento da história, quando precisamos concluir uma ideia de uma forma mais clara, ou mesmo para acrescentar mais informações ao que já temos, o filme muda temporalmente. E estas passagens são tão sutis, que os momentos antes representados ficam mais fortes com a confirmação num passado do mesmo (por exemplo, quando descobrimos que ele é homossexual, se tivéssemos ficado só na descoberta, não saberíamos quão profundo foi este fato em sua vida). A minha única exceção de como isto é mal usado, não é nem pela cena em si, mas pelo detalhe de como ele se situa no tempo em uma ocorrência. As três vezes que somos situados num novo espaço-temporal, aparecem os dizeres na tela do ano e local em que estamos. Se a estrutura coesiva do filme fosse boa (e é, em todos momentos), esses dizeres não precisariam ser mais apresentados daí em diante, já que a cena se construiria de forma que conseguíssemos descobrir em que momento do tempo estamos, o problema é que esses dizeres aparecem em mais um momento: quando voltamos novamente da época da II Guerra Mundial para o presente. Não entendi o porquê de ele ter mostrado novamente os dizeres, porque para mim estava claro de que estávamos no presente. É um detalhe desimportante, mas que incomoda.
Tirando-se esta exceção (que comparativamente não é nada), o filme recairá sobre um mar de acertos que fará a história muito mais interessante daqui para a frente, como por exemplo uma ótima montagem de cena, no momento em que todos os estudiosos se reúnem pela primeira vez, para se inteirarem da situação. O posicionamento de cada personagem nesta cena é maravilhoso, não simplesmente por equilíbrio de cena, mas também por introdução da índole de cada um. Enquanto um grupo de estudiosos logo se aproxima quando o Comandante Denniston (Charles Dance) coloca algo sobre a mesa, Alan espera os mais afoitos se desvencilharem para então tomar partido. É só quando Alan diz o que queria é que Hugh Alexander (Matthew Goode) se pronuncia de uma forma bem dona de si. Só nesta cena, vemos a hierarquia intelectual de importância de cada matemático na situação. Essa mesma cena se repetirá quando Alan finalmente tomar conta do desenvolvimento, só que agora o bloco inicial de afoitos terá ainda Hugh, enquanto Alan recosta mais ao lado.
O que deixa O Jogo da Imitação mais interessante é que o filme não se trata somente de um filme de drama, de um filme biográfico, ou mesmo de um filme de guerra. O filme é tudo isso sim, mas além disso, ele ainda consegue permear questões sociais, morais e psicológicas. A ideia mais óbvia que o filme apresenta é como um herói da nação passa a ser considerado um tirano quando sabido de sua homossexualidade. As lutas por direitos sexuais é algo muito recente, e mesmo hoje, ainda sofre muitas retaliações. Imagine quantos homossexuais tiveram que viver grande parte da vida como Alan, reclusos em sua sombra, temendo serem executados por um simples gosto pessoal. Numa sociedade ainda muito regrada pela religião, ser homossexual é como ser um espião contra o governo. Essa analogia torna-se ainda mais forte quando Alan descobre que seu companheiro de trabalho é o espião através de uma passagem da Bíblia. Irônico tanto por conta da mensagem espiã ser transmitida por algo religioso - lembrando novamente que religião e estado ainda eram coisas bem fortes na Inglaterra -, como se indiretamente tentasse se questionar o próprio governo, como também a descoberta desta passagem ser a barreira do companheiro contar ou não sobre sua natureza. Neste caso, a Bíblia personificada em John Cairncross (Allen Leech) seria a representação da religião, e consequentemente, do governo na vida de Alan. Uma segunda reflexão do filme se relaciona totalmente com esta primeira: máquinas são iguais as pessoas? Em certo momento do filme, Alan responde que elas nunca serão, pois elas pensam diferente, mas ressalta que nós humanos também pensamos diferente um dos outros. Nessa lógica, se os humanos pensam diferentes, mas mesmo assim, aceitamos uns aos outros, porque não aceitar um homossexual, já que seu pensamento sexual é uma das únicas coisas que os diferenciam das demais pessoas? Nesta mesma analogia, traçamos o perfil das máquinas. É fato que com as guerras mundiais, muitas tecnologias são desenvolvidas, e que cada vez mais, as guerras são muito em parte definidas pelas mesmas. Após o término das guerras, muitas destas tecnologias são transpostas para a vida comum (vide o GPS), além de termos muitas outras sendo desenvolvidas a cada dia. A pergunta que fica é a seguinte: será que algum dia, as máquinas serão tão auto-suficientes, que poderemos classificá-las como humanas? Ou pior do que isso, será que essas máquinas poderão tomar o nosso lugar na Terra (um Exterminador do Futuro way of life)? O discurso de Alan acerca disso pode ser de alguém que viu as máquinas crescerem, mas é sem dúvida um discurso medonho (uma máquina que pode resolver tudo). O filme traça várias imagens que pontuam muito bem isto também: logo no começo do filme, o barulho das tropas nos campos de guerra se assemelha ao barulho do trem andando sobre os trilhos. Logo no começo deste comentário me referi ao capacete sendo amassado pelo tanque de guerra. Estas duas imagens mostram uma única coisa, a substituição do homem em suas antigas tarefas. É claro que ambos, tanto o trem como o tanque são controlados por humanos, mas imaginando que este seja só o começo do desenvolvimento das máquinas, e retomando o discurso de Alan, as imagens são na verdade bem brutas. Será que de fato elas serão humanas? (Ela (2013) é um bom filme para refletir sobre isso). Nestas duas ideias citadas, ainda existe um outro objeto que as engloba: Christopher (máquina). Alan foi homossexual, sendo assim, não podendo gerar filhos, o carinho que Alan tem por Christopher (máquina) é quase como a de um pai, protegendo-o quando estava prestes a ser desligado, direcionando todos os esforços para que a Christopher funcione da melhor forma possível. Antes de chegarmos ao fim do filme, Christopher poderia ser a representação do bebê que Alan nunca terá, reforçando ainda mais a humanização das máquinas. A ideia é muito válida, pois mesmo depois de descobrimos que Christopher era na verdade o nome de seu melhor amigo de infância (Jack Bannon), e que pelo qual, ele teve uma paixão secreta, a ideia de amigo/amante ainda reverbera a humanização da máquina.
Além destas duas ideias, temos outras duas que são também muito presentes no filme: feminismo e Deus. A primeira é mais simples, e é sem mistério, atribuída totalmente a Joan Clarke (Keira Knightley). Desde a primeira vez que somos apresentados a Joan, logo percebemos que de fraco ela não tem nada. Quando questionada se de fato fora ela que completara todas as cruzadas, vemos logo qual era o papel convencional da mulher na sociedade: não pensar, agir, de preferência em casa. Historicamente, sabemos que as mulheres tiveram uma importância social bem maior com a chegada das guerras, já que com os homens indo ao campo de batalha, as mulheres tinham que preencher os cargos antes masculinos. Essa imersão gerará futuramente vários movimentos sociais em busca de direito feminino. No entanto, mesmo que as mulheres começassem a preencher os cargos masculinos, sabemos que cargos de administração e ciência ainda eram majoritariamente masculinos. Joan, assim como Alan, é uma mulher a frente de seu tempo, e é muito bonito (mesmo que a vida de Joan não tenha sido de fato assim; eu não li a respeito) ver como ela batalha para conseguir o posto dominado por homens, sempre se equiparando aos homens da época. A segunda ideia é bem complexa, não por ela ter uma explicação complicada, mas porque ela está contida em várias perspectivas do filme. A mais aparente é uma que já citei no parágrafo acima: a ideia da religião conjuntamente importante com o estado na tomada de decisão de seus cidadãos e o conflito com o homossexualismo, mas a ideia de Deus aparece também, assim que Alan resolve Enigma. Agora que Alan sabe todos os movimentos dos alemães, quem deverá ser poupado e quem deverá ser morto em vista da vitória na guerra? Perderemos irmãos para ganhar a guerra? (O Resgate do Soldado Ryan (1998) não gostou desta sentença) Esta é uma ideia muito complicada porque implica em controle. Muitas pessoas procuram uma instância superior que dite e salve todas as pessoas da face da Terra. Mas será que de fato queremos ser controlados? Parar para pensar nisso é algo complicado, porque o contrato social que criou os governos que conhecemos hoje, foi de fato uma determinação de controle, mesmo que à mercê dos cidadãos. Quando um ser humano se vê diante de tamanho controle, as decisões ficam difíceis, pois o objetivo é salvar o maior número de vidas ou salvar qualquer um que consegue ser salvo? (Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008), especificamente na cena do barco é um ótimo exercício deste pensamento). Alan profere uma frase muito interessante a respeito disso tudo: "Eu era Deus? Não, porque Deus não ganhou a guerra. Nós ganhamos." Será que o que ele está dizendo se refere ao fato de Deus ter escolhido salvar qualquer um que pudesse ser salvo, ou será que ele diz que se ele fosse Deus, não haveria guerra, ao invés de ter ganhado a guerra (perceba que ganhar algo implica o fato de esse algo ter existido). Desta última frase, temos uma ideia anti-guerra muito interessante. Diferentemente de outros filmes deste ano (cof, cof, American Sniper (2014)), O Jogo da Imitação parece questionar essa guerra. Não vemos cenas de guerra de fato, o que presenciamos dela é sempre algo frio e cruel. Não sabemos o motivo de Alan querer ter acabado a guerra: se era para ver a guerra vencida, ou acabada (vencer significa ter um certo orgulho. Acabada remete a ideia de cessar estes horrores). Há outra frase muito interessante a respeito disso, também proferida por Alan: "Nós não estamos lutando contra os alemães, mas sim contra o relógio", como se ilustrasse a ideia de querer evitar mais mortes. É ao final do filme que vemos um Alan retraído, quase que não se aguentando em pé, com Joan espantada com a condição do amigo, e que ao fundo, ouvimos um relógio. Alan estava lutando contra o relógio. Relógio igual a mais mortes. Se o relógio está batendo em sua casa, isso pode significar que ele estaria prestes a morrer. Na vida normal, será que todos também lutamos contra o relógio? Eu não gosto de pensar assim, porque parece que lutar contra ele, significa que estamos perdendo nosso tempo com as coisas que fazemos, quando na verdade, tudo o que fazemos é na realidade, algo. Sendo assim, não estamos lutando contra o relógio, mas estamos vivendo com o relógio. O Jogo da Imitação é muito mais que um drama, é muito mais que uma biografia, é uma reflexão socio-moral da vida. Rodeado de interpretações espetaculares e edições maravilhosas, este filme é com certeza um dos melhores do ano.
(Onde que a atuação da Laura Dern está melhor do que a atuação de qualquer uma das coadjuvantes de Garota Exemplar?)
Livre (2014) é um filme que possui todos os bons conceitos de um On the Road, uma fotografia impecável (para mim este é um dos únicos gêneros em que câmeras contra a luz podem ser utilizados sem muita discrição. Sem contar que a mudança de ambientes cria contrapontos visuais que só embelezam ainda mais o filme como um todo), um trilha sonora, de preferência folk, que combina perfeitamente com uma viagem espiritual e um visual lindo (como se cada lapso de memória fosse um belo momento), no entanto, Livre peca num de seus traços mais fundamentais, no desenvolvimento coeso de uma narrativa. Repare que eu disse "coeso", ou seja, se formos analisar a narração como um todo, ela se encaixa muito bem, mas em pontos particulares, as ideias não são articuladas de um modo que nos interessemos pelo que está acontecendo no filme. Confesso que durante a primeira metade do filme me atentei bastante aos aspectos técnicos do filme, já que meu interesse pela história só foi crescer quando grande parte dos 'flashbacks' já estavam estabelecidos. Essa construção de interesse é bem equilibrada, o problema é que ela pende muito na primeira metade do filme para uma personagem que não mostra nenhuma profundidade emocional que nos faça querer saber o porquê de toda esta provação. É claro que na realidade, muitas pessoas se isolam do mundo por motivos diversos, muitas vezes mesmo sem um motivo aparente. A diferença é que isto é um filme, devendo ser portanto, permeado de momentos de interesse, ou pelo completo inverso, vários momentos que por si só constroem personagens pelos quais temos afeição de ver se desenvolverem (vide Boyhood (2014)). O problema é que a primeira metade do filme não tem nem um, nem outro.
Muitas pessoas compararam logo de cara, este filme com Na Natureza Selvagem (2007), dirigido por Sean Penn, ciente do fato dos dois filmes serem On the Roads, em que personagens deslocados da sociedade se isolam do mundo procurando respostas para suas vidas. Em Livre isso pode até ser verdade, já que depois dos milhares de infortúnios que conhecemos com os 'flashbacks', vemos uma personagem tentando sanar e reconciliar a vida que tinha antes da perda da mãe. Na Natureza Selvagem já recai sobre um lado de mais auto-conhecimento, as vezes até mesmo num tom de repulsa à humanidade, preferindo uma sintonia com a natureza, o que imagens (sem 'flashbacks') dão uma perfeita conexão para o desenvolvimento de John McCandless, Não digo que o motivo de Cheryl (Reese Witherspoon, numa interpretação muito bem construída em detalhes como o esforço na respiração em situações sufocantes, como a da cena que abre o filme) seja inferior ao de McCandless. São duas abordagens diferentes para a provação que viriam a ter, a diferença é que Livre não constrói a ideia de Cheryl tão bem quanto Na Natureza Selvagem faz de McCandless.
Em contrapartida a construção um tanto desfalcada de 'flashbacks', temos uma outra ideia sempre muito forte e apreensiva construída ao decorrer de todo o filme: a mulher no mundo atual. Como já é de saber, o mundo continua sendo machista e tudo mais, levará algum tempo até que consigamos sanar esse problema, e mesmo longe da sociedade a situação não é diferente. Sendo assim, toda figura masculina se apresenta de um modo suspeito à Cheryl, desde o dono do trator até o cara com quem ela de fato transa posteriormente. Como repetido várias e várias vezes no filme, mulheres não são comuns nestes tipos de atividades, e muitos dos homens ao verem uma, se aproveitarão desta fragilidade aparente delas. O mais interessante (e principalmente na segunda metade do filme, quando conhecemos o passado dela) é como o filme constrói as várias facetas do homem em toda a vida de Cheryl. Quando pequena, o contato masculino vinha da brutalidade do pai alcoólatra que surrava esporadicamente sua mãe. Quando da perda de sua mãe, Cheryl passará por uma vida carnal, em que ela rodará por vários homens com único desejo sexual. E por fim, na natureza, Cheryl presenciará vários e vários homens que mesmo que não tenham uma má índole, se apresentam como desconhecidos perigosos. Dessa forma, o filme aborda de uma maneira sutil, mas incisiva a vida de uma mulher num mundo machista, que independentemente de onde esteja, continue sofrendo de medos que não deveria passar. Agora vai uma suposição minha: talvez os suspiros de sufoco que Reese dá ao decorrer de todo o filme, possam ser entendidos como gemidos, revelando esse teor sexual, como se transparecesse esse medo que cerceia todo esse trajeto de vida dela.
Quanto aos aspectos técnicos, senti um ótimo trabalho no que o Oscar chamaria de Mixagem de Som (que seria como os sons são compostos na cena, ou seja, se o som X está mais alto do que Y, porque X é mais importante na cena ou se não haverá som, entre outros), já que em vários momentos de contemplação por parte de Cheryl, ouvimos um som dissonante como se fosse um eco da mente, ou quando passamos por algum 'flashback', vemos passagens bem claras e interessantes de passagem de tempo, ou mesmo aquela cena bem interessante em que Cheryl e o irmão matam o cavalo e o som do tiro se confunde com um trovão, e ao mesmo tempo indicasse o pesadelo que Cheryl teve no momento. Como disse mais acima, o meu interesse pela história no começo do filme não era grande, então consegui reparar mais detalhes em relação a esse comecinho, e uma coisa que me irritou bastante foi o fato de literalmente o começo inteiro do filme, a câmera não parar de tremer. Não era algo insuportável como o que acontece em Guerra ao Terror (2008), mas era no mínimo incomodante, pois não fazia o menor sentido a câmera estar tremendo, sem contar que fazia com que o filme ficasse ainda mais desinteressante do que a história já estava.
Por fim, gostaria de expressar um pouco de minha revolta com o final do filme. Quando chegamos na fatídica "Ponte dos Deuses", soltamos aquele suspiro de alívio, o problema é que mesmo depois disso, Cheryl entra em voz-off falando de todo o resto da vida dela, como tudo deu certo, falando frases motivantes, e tudo mais. Caramba! O mais interessante que o filme tinha a dar se perdeu nesses pequenos minutos finais. A pergunta que sempre fica para mim ao ver estes filmes é sempre a mesma: será que depois de tudo isto, a pessoa consegue achar o que procurava? O silêncio é a melhor resposta, já que na vida, ninguém sabe o que é melhor para gente, justamente porque vivemos uma coisa de cada vez. Só temos a capacidade de classificar em melhor ou pior quando comparamos duas ou mais coisas. Não, Livre acaba com uma mensagem que quebra toda a ideia de provação e desconforto que Cheryl vinha passando, e define que enfim ela conseguiu o que queria, e que o que ela queria era se estabelecer numa família e ter filhos. Enfim, o filme segue muito bem do meio até aqui, mas são justamente em dois pontos cruciais do filme, que temos imagens e ideias um tanto decepcionantes. No mais, "HEYAAAAHHHEYAHHHEEEYAAAHHEY I SAY HEY What's going on?"
Não tem como ver esse filme e não relacionar Terence Fletcher (J. K. Simmons) com o sargento Hartman (R. Lee Ermey) de Nascido para Matar (1987). O jeito bruto, visceral e inconsequente de agir, de uma forma que acaba até mesmo desumanizando seus pupilos. O olhar sempre fixo em cada um dos músicos, quando não para a própria tela (embora eu não me recorde de ele ter olhado diretamente para a câmera, sempre há alguma inclinação). Os estouros frequentes, o linguajar preconceituoso e calunioso. Tudo, cada movimento, cada respiração nos faz odiar Fletcher, assim como Hartman, da cabeça aos pés. Assim que o filme começa, temos um quadro um tanto quanto disforme do personagem que viríamos a acompanhar o filme inteiro. A câmera não parecendo enquadrá-lo direito, começa a se aproximar de Neiman (Miles Teller) conforme a batida da percussão se acentua. A situação é tão estranha que parece que estamos espiando o que o jovem está fazendo, mas de uma forma analítica, já que a aproximação flui de um jeito leve. O que de fato descobrimos é que esta câmera que acompanhávamos é na verdade o próprio Fletcher observando o esforço do garoto, o que se pegarmos o filme no geral faz muito sentido, já que este é justamente o cara que analisará minuciosamente cada batida de Neiman. Além disso, no final da cena, Fletcher acaba voltando à sala, o que nos faz imaginar que ele dará alguma chance a Neiman, o que é totalmente quebrado pelo simples fato de ele ter retornado para pegar a jaqueta. Estas quebras de expectativas serão marcas que ocorrerão em todo o filme também. Sendo assim, este breve início não só nos faz entrar no clima do filme, como também nos dá pinceladas importantes do que o filme se tornará.
O divertido no decorrer de todo o filme é ver cenas em que tudo ocorre bem, seguidas de outra em que nada dá certo, como se fosse uma música, com seus altos e baixos. Dessa forma, vemos Neiman entrando para a companhia, saindo com Nicole (Melissa Benoist, que em seus poucos momentos de filme, consegue dar uma vivacidade meiga a um protagonista obstinado), seguido de total sufoco para conseguir acertar o que Fletcher quer, e preferindo se afastar da mesma Nicole para seguir adiante. Depois ele conseguindo retomar o posto de primeiro baterista e ser convocado para o concurso, mas que acaba tomando medidas desproporcionais no simples fato de conseguir chegar até o lugar. Até o fim do filme está mesma lógica se repetirá várias e várias vezes, assim como vimos no começo do filme quando Fletcher retorna para pegar a jaqueta. Essas pulsões de energias, assimilando com as batidas da bateria podem lembrar algo muito importante para todos nós: o coração. O coração bate forte quando encontramos uma pessoa que de fato nos sintamos atraídos, o coração bate fraco quando estamos num jantar familiar, o coração bate forte quando estamos no primeiro dia de aula, o coração bate fraco quando estamos andando pela rua, o coração bate forte quando somos postos diante de uma condição desumana de esforço, várias e várias vezes. Whiplash (2014) é um filme sobre pulsões, um filme que mostra os altos e baixos da vida de um músico, mas que poderia ser muito bem a de um escritor (como a do pai de Neiman), ou a de um diretor (como a do próprio diretor deste filme - Damien Chazelle). Essas pulsões de fato nos fazem vivos, pois imagine uma vida constante, sem nada a se surpreender ou temer. Isso só tiraria basicamente o nosso princípio humano, e a escolha da história ser a de um músico foi muito feliz, já que no cinema além do visual, o som é, sem dúvida, um dos maiores amplificadores de emoções (vide um filme de terror ou ação com as diversas explosões de sons). Com esta escolha ficamos ainda mais imersos nestas pulsões da vida, fazendo com que nós também entremos mais profundamente no filme.
Ao mesmo tempo que temos essas pulsões, temos um outro processo totalmente contraditório que citei lá acima: a desumanização de Neiman. No começo do filme, vemos um cara que não sabe muito bem se relacionar visualmente com outras pessoas, tímido, choroso, mas obstinado a conseguir ser o melhor. A partir do momento que ele entra em contato com Fletcher, Neiman começa a se tornar um Fletcher para as pessoas ao seu redor, tornando-se um cara bruto à mesa de família, rebaixando seus irmãos em represália ao que dizem de sua profissão. Neiman algumas vezes se utiliza do mesmo linguajar que Fletcher usava com ele para seus companheiros de companhia. A pessoa ingênua que Neiman se perde, a ponto de ele ser o único dos três, na cena em que Fletcher os põe incessavelmente à prova, raivoso a tocar a bateria, enquanto os outros já submissos a realidade, tocavam com olhares ausentes a situação. Assim como Nascido para Matar,
em que a desumanização de Pyle o leva a matar Hartman e posteriormente a se suicidar, se assemelhando as brutalidades que este cometia com aquele
, Neiman acaba se tornando um Fletcher em sua obstinação de ser o melhor. Visualmente esta obstinação é também muito bem pontuada, já que nos momentos que vemos Neiman tocar, a câmera passa por vários "closes", desde a mão ensanguentada até no suor de Neiman sobre o prato da bateria. Esses detalhes singelos evocam a minuciosidade da técnica de Neiman enfatizando ainda mais esta busca incessável pelo controle. É esta busca que faz Neiman ponderar em denunciar Fletcher ou não, já que ele mesmo ciente de tudo que passou, reconhece que progrediu diante de tal método. E é este o ponto máximo de sua desumanização, em que a técnica prevalece mais que ele mesmo. E ao acabarmos o filme, é justamente isto que fica no ar: será que é justo (já que moralmente não há nem o que discutir) se submeter a tais esforços a ponto de alcançar a primazia? Será que o método de Fletcher é de fato efetivo (no caso de Neiman deu certo, mas lembre-se que um dos alunos que passara pelo mesmo conservatório acabou por fim se suicidando)? Como disse, não acho nenhum destes métodos moralmente corretos, mas não sei responder com toda certeza estas perguntas. No mais, todos sabemos que para sermos os melhores no que fazemos, nós temos que batalhar para isso, mas qual é o limiar que diz que já passamos do perfeito (Cisne Negro (2010) é também um ótimo filme para se discutir isto)? Um professor? O coração? Morrer? "Good Job"?
Obs.: este foi um dos trailers mais incríveis que eu vi ano passado. Mesmo se vocês já viram o filme, confiram: https://www.youtube.com/watch?v=BjyCGE32Xdo
Estar numa situação de guerra nunca é algo agradável. Independente de onde estamos, a guerra sempre funciona da mesma forma, dois lados combatendo entre si até a morte de um deles. Todo o patriotismo, honra e companheirismo são postos à prova. Cada combatente é incentivado a aniquilar o maior número de vidas em prol de uma melhor promoção futura, de melhor prestígio social. O estado te toma como um herói, um salvador da nação. No entanto, por baixo de todo esse brilhantismo, reside a dor, o sofrimento, os horrores da guerra. A guerra não é nada daquele glamour todo que os governantes querem denotar. São homens, pais, irmãos e filhos lutando lado a lado por interesses que muitas vezes não são os seus contra outros homens, pais, irmãos e filhos. A destruição se alastra, os resultados da guerra, embora favoráveis ao estado são de total rebaixamento mental. Ex-combatentes ficam loucos, traumatizados com toda a experiência. É neste contexto que Tangerines (2013) se baseia. Logo nos somos apresentados a um velho senhor, de nome Ivo (Lembit Ulfsak) que diante de tanta miséria preferiu permanecer na terra por um motivo desconhecido. Já seu amigo, Margus (Elmo Nüganen) tenta com suas últimas forças lucrar um pouco na condição já desastrosa em que se encontra. Juntos, os dois passarão por experiências que irão muito além do que simplesmente colher tangerinas e montar caixas. Estamos poucos anos após 1992, considerando a idade dos dois senhores, é muito possível que os mesmos já tenham combatido na Segunda Guerra Mundial. Reviver todos os horrores passados na guerra não deve ser algo prazeroso para um veterano de guerra. Tudo isto é só suposição, mas este fato poderia muito bem explicar a fuga imediata da guerra, mas Ivo e Margus permaneceram. Isso pode explicar também a receptividade com que tiveram com os feridos, imaginando anos atrás, eles na mesma situação. O fato é que independente disto, alguma mágoa enorme se apoderou de Ivo, de forma que ele se mantivesse nesta terra, resgatando os dois combatentes.
É com o desenrolar do filme, que vemos que existem embates em diversas áreas entre os dois resgatados: orgulho (ambos perderam irmãos nesta micro-guerra), cultural (quando Ahmed (Giorgi Nakashidze) cita a música ou mesmo a comida), religioso (cristão e muçulmano). No entanto, ambos possuem algo que até mesmo espanta Margus: honra. A honra que os impede de matar um ao outro dentro da casa de seu salvador. Se formos reparar, honra é um ato muito recorrente em obras de guerra, mesmo que ela seja uma palavra muito perigosa. Utilizando-se deste discurso, os estados motivaram milhares de combatentes a lutar pela sua nação - a honra de defender seu território -, ao mesmo tempo que a honra seja a única barreira que impede o homem de soltar seu espírito animal, como no caso de Ahmed e Niko (Misha Meskhi). Essa dualidade da honra é importante neste filme, pois como disse acima, agora transcrevendo para o filme, ela motivou os dois lados a se digladiarem, ao mesmo tempo que vai ampliando horizontes entre Ahmed e Ivo, a ponto dos dois se tornarem companheiros na "mesma guerra". Um detalhe interessante que permeia todo o filme é a tensão retratada nele de uma forma sutil: em diversos momentos do filme, temos várias cenas que parecem quebrar a tensão do momento. Citarei três: quando Ahmed diz que assim que Niko sair de casa, ele o matará, se ele colocar a cabeça para fora ele o matará, Ivo o pergunta se ele pelo menos pode mijar para fora de casa. Em outro momento, quando todos perguntam onde está Ivo, e este responde que está mijando, fazendo todos caírem na gargalhada. E uma última vez, quando Ivo descobre que Niko era um ator de uma companhia de teatro, e começando a imitar Ahmed sério aplaudindo Niko da plateia, os dois caem na gargalhada também. Mas se vocês se lembrarem um pouco melhor, se lembrarão que segundos depois de cada uma destas cenas, algo tenso acontece. Na primeira, Niko arremessa o copo em Ahmed. No segundo momento, bombas acertam a casa de Margus. E no último, aparecem os chechenos que levará à morte de Niko e Margus. Parece que o cômico, mesmo que presente no filme, é sempre sufocado pelo estado de guerra, como se estivesse sempre para alertar aonde estavam. E isso é genial, já que o cômico, o rir, um detalhe que nos faz mais humanos é sempre efêmero; a guerra suprime. Esta ideia é metaforicamente uma representação do próprio sufocamento das pessoas num estado como este. Só para completar a ideia de tensão, temos um detalhe técnico, também sutil, que evidencia esta sensação. Na grande maioria do filme, mesmo quando estamos em cena em que Ivo vai simplesmente andar pelo campo de tangerinas, a câmera sempre o acompanha deslizando para os lados. A câmera nunca está estática, focando as personagens da cena. O mais divertido é que esse leve deslize sempre vai para o lado em que as personagens logo após acabarem a cena vão se movimentar, o que dá um dinamismo, e uma melhor movimentação da câmera, dando movimentos mais bruscos só quando necessário (o que é algo que eu particularmente não gosto em Guerra ao Terror (2008), em que temos a câmera sempre tremendo, tirando a sensação que poderia ser mais enfática em cenas mais tensas, caso tremesse somente nestas cenas em específico).
Citei a pouco que Niko era um ator antes da guerra, e que Ahmed bateria palmas de um jeito mecânico. Nisso, podemos tirar algumas ideias dos dois combatentes no estado psicológico. Aparentemente, Niko é mais alegre, mais voltado às artes, com mais cultura (detalhe que ele sempre deixará claro entre eles: que Ahmed não lê), enquanto, Ahmed leva a vida de um jeito mais sério, mais rígido. Estes detalhes são novamente, só suposições, mas a ideia é clara, a imagem que temos tanto de Ahmed quanto de Niko no filme é muito semelhante; homens frios, numa situação delicada. Disso tiramos mais uma ideia da guerra: esta pasteuriza os indivíduos, tira a individualidade deles. São como disse acima, homens, pais, irmãos e filhos lutando contra outros homens, pais, irmãos e filhos. Não vemos a individualidade aqui, e de fato é isso que acontece na guerra: os homens não estão lutando por João, Lucas ou Pedro, eles lutam pela nação, um coletivo, se ausentando de seu indivíduo. A fala de Ahmed evidencia isso ainda mais, já que ele sempre fala "nós" ao invés de "eu acho isso" ("Nós costumamos respeitar os mais velhos", "Nós respeitamos as outras crenças").
Uma última analogia interessante a se fazer que para mim é a mais forte, se dá no contraste de duas cenas: a primeira é aquela em que um grupo de chechenos vêm à casa de Ivo para cumprimentar tanto Ahmed, quanto Niko (ou seja, ele teve que se disfarçar), com a cena em que outros chechenos não acreditam que Ahmed é também outro checheno, causando todas as seguintes mortes. Essas duas cenas ilustram uma ideia que Kubrick em Medo e Desejo (1953) já havia muito bem pontuado (embora ele repudie o filme, vai saber por quê): a ideia de que combatentes lutam com seus similares, de uma forma em que um nem sabe se o outro é de fato amigo, ou inimigo. Nestas duas cenas de Tangerines, vemos essa mesma ideia muito bem demarcada: no primeiro caso, o georgiano se passa por um checheno e tudo fica bem. Na outra, cria-se um desentendimento entre dois indivíduos da mesma nação, causando todo pandemônio. Ivo, pontua isso no final do filme: "Faz diferença quem ataca quem?" Numa guerra, tudo é estrondoso, é horrível, mas mais do que tudo, babaca, para não se usar termo pior. Os horrores são tantos, que ninguém sabe quem luta com quem e por o que. A tristeza é tanta que a glória que alguns tentam achar não passa perto da devastação. Tangerines é sobre isso, o terror da guerra até mesmo num vilarejo minúsculo (perceba que em nenhum momento saímos dessa região para de fato ver o que acontece fora. O externo chega a esta vila - as bombas, os combatentes, os carros), e se pararmos para pensar que só neste lugar tivemos tudo isso, eu nem sei se quero imaginar o que está para fora disto.
Por fim, por que o filme se chamar Tangerines (mexericas, na tradução)? Como Margus mesmo diz, é a luta contra suas mexericas. Faz de fato diferença se a denominação é "Guerra das Mexericas", "Guerra pela Abecásia" ou "Guerra ao Terror"? Eu acho que não.
Obs.: agora totalmente fora do universo deste filme: por alguma razão eu fiquei o filme inteiro lembrando de O Poderoso Chefão. Sei lá, mexericas, laranjas, mortes, devaneios.
Meu Ódio Será Sua Herança
4.2 204 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Embora utilize-se de uma narrativa convencional, Meu Ódio Será Sua Herança (1969) cria personagens multifacetados e um estilo (que mais a frente será largamente utilizada por diretores como Tarantino e Scorsese) de se contar uma história (violência e sangue jorrando) nunca vista antes num faroeste, reivindicando assim, o caráter marcante dentre os filmes de faroestes de todo o cinema.
Acompanhando um grupo experiente de bandoleiros (Pike (William Holden), Dutch (Ernest Borgnine), os irmãos Gorch (Warren Oates e Ben Johnson) e Angel (Jaime Sanchéz)) em suas últimas missões, temos aqui o primeiro choque. Diferentemente de vários faroestes, não temos mocinhos com que podemos nos identificar. Mais do que isso, toda figura de lei é aqui desvirtuada à canastrice (como o Exército de jovens confusos na cena do roubo do trem) ou a total corrupção (Mapache (Emilio Fernández) é um general mexicano que possui ao mesmo tempo, relações com nazistas, o governo americano, foras-da-lei e prostitutas. Se formos expandir ao contexto histórico – Revolução Mexicana - temos um quadro ainda mais crítico, visto que os poderes políticos eram descaradamente utilizados ao favor pessoal). Toda esta caracterização (muito característica em filmes de gângsters) é interessantíssima pois contrasta com a ideia romantizada da luta maniqueísta, liderada por um sujeito íntegro e limpo contra o porco pertencente à mazela da sociedade. Este senso de podridão vai mais além quando confrontado com a imagem de mulheres, crianças e idosos tão pouco inocentes quanto os bandidos. Se destrincharmos, podemos extrair uma das ideias mais importantes da corrente literária do Naturalismo: o Determinismo. Nele, temos a visão pessimista de indivíduos que se desenvolvem conforme o meio os designa. O que cabe perfeitamente ao filme, já que num mundo em que os mais fortes/aptos (Darwinismo Social: outra ideia recorrente do Naturalismo) sobrevivem, nada mais justo que todos os indivíduos reajam mais violentamente, justificando assim, o acréscimo de violência até então nunca vista na época do lançamento do filme.
O mais genial disto tudo é que o diretor do filme (Sam Peckinpah) parece brincar com os esteriótipos do faroeste, fazendo com que quando nos damos conta do que de fato estamos nos deparando, o choque torna-se muito mais poderoso. Num ritmo lento repleto de quebras, vamos seguindo o bando através das ruas tomadas por crianças, mulheres e idosos. Com uma câmera que normalmente os pega de baixo para cima, os engradecendo, são poucas as vezes que vemos seus rostos. Vindo impecavelmente vestidos, toda essa caracterização dá um caráter heroico aos personagens, ao mesmo tempo que contrasta a sujeira e o barulho dos arruaceiros em vigília no alto das construções como os malvados da cena. Por outro lado, Peckinpah é sutil em mostrar duas cenas que parecem nos dar indícios da má índole de nossos protagonistas: a mais bizarra se dá ao fato das crianças estarem brincando com escorpiões tomados de formigas (que será importante como metáfora de todo o filme), mas a mais interessante, ocorre quando um dos sujeitos esbarra na velhinha que passava. Sem saber se ele deve se manter no disfarce, vemos que ele pondera ao que fazer, mantendo a forma poucos segundos depois.
Enfim, temos o primeiro tiroteio do filme. Vemos os arruaceiros nos telhados totalmente despreparados para a tarefa, deixando-os fugir facilmente. No entanto, temos um detalhe na relação entre Deke Thornton (Robert Ryan) e Pike que talvez passa despercebido devido ao fato de não o conhecermos a fundo. Em uma chance clara de atirar Pike, Thornton para para pensar por alguns segundos, acertando um músico por conta disto. Com o decorrer do filme, entendemos que Thornton fazia parte do grupo que agora ele persegue para sair da prisão, e uma coisa é clara. Embora persiga, Thornton se imagina a todo momento do lado dos fugitivos, demonstrando que embora tenha tido uma vida difícil, ele, assim como Pike, sentem gosto em fazer o que fazem, talvez por ser a menos pior opção a se seguir. Nesta mesma cena vemos os arruaceiros pilhando os corpos como se fossem abutres, caracterizando aqui mais um tema constante do Naturalismo: a animalização. Sob condições difíceis de vida, todos estes marginalizados acabaram atuando como animais como forma de perpetuação. Em outras cenas temos essa mesma ideia vista de formas diferentes, como o libido em relação às mulheres do filme, transformando os homens em totais animais em busca de uma fêmea. E em outro momento, a rima visual dos mexicanos com os abutres cercando os nossos “herois” nas montanhas, mais uma vez repetem a ideia de sobrevivência, de vigília, de desconfiança.
Por outro lado, ao mesmo tempo que se assemelham a animais, as personagens seguem um estrito código de conduta que justificará por exemplo, o porquê de Pike atirar no companheiro quando este impossibilitado com um tiro na cabeça os atrasava. Da mesma forma que os indivíduos do século XVIII seguiam a ideia de uma sociedade de aparências e formalidades (muito bem retratada em Barry Lyndon (1975)), nos faroestes teremos a ideia do bem maior do grupo, do pragmatismo. Isto explica o porquê de Thornton e os demais arruaceiros manterem sua busca aos fugitivos, ao invés de simplesmente fugir com as armas que lhes são dadas. Isso justifica o porquê de Pike deixar Crazy Lee (Bo Hopkins) como peso para o sucesso do grupo. Juntamente com isto, temos a ideia do fim da carreira, da virilidade que estes homens estão passando (Pike caindo do estribo do cavalo, roubarem arruelas, irmãos Gorch querendo abrir um rancho). A ideia que temos aqui é a de que ou estes homens realizarão um último grande roubo, ou morrerão tentando. E este processo é impressionante, pois são poucos os momentos em que "flash-backs" ou diálogos explicitam a dor destes sujeitos (mais uma vez, eles foram criados de forma lacônica). E é aqui que está o poder do cinema: mostrar através de gestos e expressões sensações exprimidas num livro através de palavras. Esse processo é gradual, passando da total desunião (cena em que os irmãos Gorch querem dividir a quantia do dinheiro e brigam com Angel), pela união (o irmão que tira sarro da cara de Pike quando ele cai do cavalo é o que oferece a bebida ao mesmo) até a sensação de que eles estão fadados à morte sem luxúrias (olhares entrecruzados depois do sexo com as prostitutas). Sem contar o agravante de Thornton saber como o bando funciona por já ter feito parte dele. Esta é uma forma de entender a fúria do bando ao final do filme: eles pelo menos morrerão com estilo.
Uma outra forma está justamente no modo de agir dos mexicanos. Se os nossos “heróis” e o bandos de arruaceiros são horríveis, os mexicanos são ainda mais, seja pela caracterização visual (a vila em que Mapache está ao final do filme está caindo aos pedaços) ou pelo caráter. Diferentemente dos "cowboys", Mapache não liga para o código de ética, torturando e matando indivíduos ao mero prazer. Pike e seu grupo tentam diversas vezes um acordo com Mapache, tendo por fim, sacrificado Angel quando tudo parecia acertado.
Antes de concluir toda a lógica queria fazer uma pausa para analisar os maravilhosos aspectos técnicos do filme. Primeiramente, a cena em que Mapache revela a Angel que sabe que este roubou munição dele, temos um dos únicos momentos de câmera subjetiva e tremida do filme. O uso consciente desta técnica agrega muito mais valor a esta cena, já que acentua-se a tensão, a angústia e a claustrofobia que não só Angel, como nós também, sentimos ao ver o que ele vê. Alguns minutos mais tarde, temos o momento em que o bando de Pike decide salvar Angel independentemente das consequências. O “travelling” para trás é cadenciado com a gradual troca da trilha mexicana por uma bateria pontual que cessa nos momentos em que eles param, criando assim como na cena anterior, uma crescente tensão ao que virá. Tensão esta que já vinha sido arquitetada desde a despedida dos nossos “heróis ” da vila mexicana em que Angel descobre sobre seus conhecidos. Todos os moradores, vestidos impecavelmente, com uma predominância de tons escuros, se despedem de Pike e seu bando como se estivessem num funeral. O mais interessante disto tudo é que a caracterização dos humanos que dei em todo este excerto é bem degradante, totalmente contrária a grandiloquência da natureza aos fundos, em câmeras que prezam pelo imensidão do azul do céu, ou do marrom das montanhas. E se por um lado temos um ritmo lento em todas estas cenas, quando vamos para as cenas de ação, temos uma dinâmica de câmeras e cortes bem intuitiva (sujeito A atira, sujeito B toma o tiro), já que os eixos de câmera prezam tanto por nos situar na exata angulação do atirador e atirado quanto por nos mostrar o mesmo combate por diversas partes do mesmo cenário.
Por fim, chegamos a cena final, mulheres e crianças atiram em Pike e seu grupo (ninguém é inocente!), e Thornton chegando depois do massacre, senta-se na entrada da vila, enquanto os arruaceiros pilham mais uma vez os corpos e vão de encontro à morte (essas personagens são tão desimportantes e inferiores a Pike ou Dutch que nem os vemos morrer). Thornton enfim cumpriu sua missão, e portanto, seguiu com seu código moral, ficando ao relento, liberto. Talvez o maior roubo de sua vida tenha sido buscar seu melhor amigo. E agora? Sykes (Edmond O’Brien) então aparece e o oferece companhia para mais aventuras. E o fato de ele aceitar seguir isto vem mais uma vez da ideia da ética por trás de tudo. Estes indivíduos vivem e morrem pelo grupo. Viver sozinho é como negar a sua existência. Pike cumpriu com tudo que o segurava, a partir de agora, ele está livre, livre para ser quem sempre foi, e mesmo que ele tenha o mesmo fim de seu antigo grupo, é preferível a ficar sozinho.
A metáfora imagética lá do início serve então para findar toda esta complexa ideia de fatos. As formigas (Pike e seu grupo), embora mais fracas, possuem união, mas mais do que isso, só funcionam juntas, e por isso conseguem derrotar o escorpião (general Mapache). Mas independemente disto tudo, sempre haverá o fogo que levará todos a danação, já que todos são produtos do mesmo meio. Cabe somente escolher entre ser as formigas unidas ou o escorpião solitário.
Vingadores: Era de Ultron
3.7 3,0K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Vingadores: Era de Ultron (2015) dá prosseguimento à evolução positiva que a Marvel vem mostrando a cada novo filme. Principalmente nos 3/4 iniciais, o filme segue num ritmo fluido, desenvolvendo personagens e tramas de uma forma muito mais superior que o seu antecessor. No entanto, chegando ao quarto final, Vingadores cai no bê-a-bá de sempre, parecendo criar um filme à parte de tudo que havia feito até então.
O primeiro - e meu principal desafeto com o primeiro filme - ponto notável encontra-se justamente em seus personagens. Em Os Vingadores (2012) tínhamos basicamente uma narrativa que permeava os conflitos de Homem de Ferro (Robert Downey Jr.) e Capitão América (Chris Evans). Talvez Hulk (Mark Ruffalo) também possa ser colocado a um nível relevante do primeiro filme, mas Viúva Negra (Scarlett Johansson), Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), e principalmente, Thor (Chris Hemsworth) tinham papeis tão secundários que pareciam nem estar no filme. Isto não seria um problema se o filme se chamasse Homem de Ferro e Capitão América, ou Homem de Ferro vs. Capitão América. O problema é que o filme contava a história de um grupo de heróis, o que no caso, ilustrava o péssimo roteiro (fator que a Marvel acerta em cheio em Guardiões da Galáxia (2014)).
Neste segundo filme, as personagens só não mais bem exploradas, como também são mais complexas. Hulk entra em crise de identidade, numa cena muito poderosa (que poderia ter sido melhor utilizada, no sentido dos humanos desconfiarem mais do papel dos heróis. No mais, o conflito interno dos heróis coube para sanar este espaço), Viúva Negra funciona bem tanto como femme-fatale, quanto como a pessoa pragmática. No começo do filme, quando o Gavião Arqueiro é o primeiro a ser ferido, logo imaginei: "Putz, de novo, para falar que não feriu ninguém, vão ferir o coitado?", mas conforme a trama se desenrola, a conflito de humanidade e endeusamento estará totalmente impregnada nele. O que nos leva ao segundo ponto: o endeusamento dos heróis. Enquanto víamos heróis quase que inabaláveis, sob os braços protetores da S.H.I.E.L.D., comentários narcisistas que aumentam ainda mais o ego das personagens e cenas de ação com personagens tão poderosos, fazendo a luta parecer mais uma dança, este segundo filme mostra um Homem de Ferro muito mais questionável (ecoando Pierce de Capitão América 2: Soldado Invernal (2014)) e um Capitão América mais incapaz. Todo este quadro ajuda a acreditar que os heróis que estamos acompanhando tenham de fato uma chance de saírem perdendo (o que de fato acontece, já que no final Mercúrio (Aaron Taylor-Johnson) morre e o grupo é desmembrado).
E o Thor? Uma boa pergunta. Se existe uma exceção a tudo isto que disse, aqui está ela. Sem contar o alívio cômico do martelo e a viagem que ele faz (cujo único propósito é o de ampliar o Universo Marvel, trazendo à cena as Gemas do Infinito), Thor não acrescenta de nada ao filme. No entanto, mesmo com toda esta evolução, um problema que existia no primeiro filme, se mantém aqui também. Embora as personagens tenham um bom desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento em conjunto é muito fraco (vemos uma relação de Homem de Ferro com Hulk, e no máximo, Capitão América. Viúva Negra tem um relacionamento muito mal desenvolvido - comentarei mais adiante - com Hulk e Gavião Negro. As melhores dinâmicas estão justamente em Hulk, Capitão América e, curiosamente, Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) para com os demais, já que ela cria conflitos interessantes com seu irmão, Capitão América, Homem de Ferro, Gavião Arqueiro e o próprio Ultron (James Spader). Por fim, o Thor é o Thor; ele está em outra realidade que não a do filme).
Além disso, temos um problema que se propagará para o final deste filme: personagens surgindo e desaparecendo em momentos chaves, sem que houvesse um desenvolvimento. Isso acontece com o Falcão (Anthony Mackie), Máquina de Combate (Don Cheadle), e principalmente, Nick Fury (Samuel L. Jackson). O final é horrível pois no momento clímax, em que temos o primeiro confronto moral da saga Vingadores, o filme escolhe uma saída fácil, ressurgindo com Nick Fury. Talvez o maior confronto moral de Vingadores recaia entre seguir fielmente os quadrinhos ou criar um desfecho factível, pois o desenvolvimento que temos até então de Nick Fury está longe de explicar este final. Muitos talvez justifiquem a entrada e saída de personagens pelo fato do Universo Marvel funcionar numa escala maior que filmes separados. A Marvel de fato criou um novo jeito de se contar uma história, mas mesmo assim, nenhum elemento que acontece em Capitão América 2: Soldado Invernal explica o final fácil que o filme escolhe. Se mesmo assim, você não tenha se convencido que este argumento não explica esse "plot-twist", darei um exemplo desta própria obra: a Viúva Negra pode se relacionar com quem ela quiser (e não é por isso que ela será uma vadia como alguns atores vem falando). O problema é que isto é um filme, e ela passa por três filmes se relacionando com três heróis diferentes, sem um desenvolvimento razoável que explique este processo. Se o argumento do Universo Marvel for utilizado para responder o porquê de Nick Fury ter salvado a pele dos nossos heróis, o mesmo deverá valer para o desenvolvimento dos relacionamentos da Viúva Negra ao decorre dos filmes.
As cenas de ação são muito boas, sempre pegando planos abertos que visam mostrar a movimentação e combates de um jeito mais realista do que sucessivos cortes e câmeras tremidas. A misé-en-scene dos combates é muito interessante, pois vai levando a câmera através dos movimentos até o novo personagem (a cena inicial ilustra isto perfeitamente). Algo que talvez possa incomodar certos telespectadores é o excesso de conteúdo em cada cena, com múltiplos combates e poderes que nos obrigam a escolher a luta que queremos seguir. Uma estratégia que o filme usa para sanar este problema é a constância nas câmeras lentas, nos dando não só mais tempo para observarmos tudo, como também a magnitude do poder destrutivo aparente nos diversos objetos destruídos que completam o enquadramento (o 3D é realmente descartável).
E enfim chegamos ao quarto final... eu já expus meu ponto sobre o Nick Fury, então me atentarei a outros aspectos. Até aqui tínhamos um quadro menos endeusado e maniqueísta (Homem de Ferro e Hulk) dos nossos heróis. Mas aí o filme faz questão de mostrar os heróis salvando civis específicos, e não uma vez só, o que ficaria subentendido diante de um conflito no meio de uma cidade. Nós já sabemos que eles são os mocinhos, o filme não precisava mostrar eles salvando pessoas enquanto Ultron tenta destruir o planeta Terra em geral. Mas o maior problema ocorre só quando começam os créditos: vemos uma grande estátua de mármore dos nossos heróis. Há jeito mais endeusante do que mostrar alguém lapidado numa escultura de mármore?
Vingadores: Era de Ultron possui cenas de ação impressionantes e uma sobriedade e profundidade de trama relevantes, mas que peca num final fraco e contraditório (com o que vinha construindo até então), marcado por personagens, embora mais complexos e desenvolvidos do que os do primeiro filme (menos o Thor, é claro), pobres em quesito de relações de grupo, sendo assim, injustificável para algo que se vende como um filme de um grupo de heróis.
Capitão América 2: O Soldado Invernal
4.0 2,6K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
No decorrer dos anos, a Marvel vem se mostrando não só boa com o entretenimento, como desenvolvendo temas e personagens muito mais complexos do que as carinhas bonitas pareçam ilustrar. De um lado temos Guardiões da Galáxia (2014) com sua pulsante naturalidade e momentos dignos de Pulp Fiction (1994), e de outro temos a sobriedade da série Demolidor (2015), com uma profundidade de temas e relatos psicológicos como nunca antes. Deste berço nasce Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Se em Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), tínhamos um protagonista caricato, numa sociedade maniqueísta, baseada no fortalecimento do nacionalismo, neste segundo filme, todas essas ideias serão diluídas.
Ao começo do filme, Steve Rogers (Chris Evans) e Sam Wilson (Anthony Mackie) parecem questionar a ideia de belicismo derivada do nacionalismo exacerbado do primeiro filme, interrogando-se de seu papel na sociedade atual e os receios vindos com a guerra. Da mesma forma, se antes víamos os mocinhos dos Estados Unidos lutando contra as forças do mal da H.Y.D.R.A., aqui vemos um conflito entre irmãos da mesma pátria (confiança é um tema bem forte dentre todas as personagens), no que antes fora o exemplo máximo de ordem e respeito, a S.H.I.E.L.D.. O momento de sua dissolução só será tão poderoso, pois contrapõe com a imponência supranacional que a instituição estampava. E se os órgãos não ilustram a ausência de maniqueísmo do filme, temos tanto um Capitão América que varia entre herói (com um museu próprio) e perseguido, como um Soldado Invernal (Sebastian Stan) confuso com sua origem ou seu propósito.
Interessante também é perceber o papel do Capitão América em todo o processo; ele não passa de um cavalo de guerra, seguindo as ordens de seus superiores, como ele mesmo se refere em certo momento do filme (embora seja ele quem comande a articulação da equipe, é Nick Fury (Samuel L. Jackson) ou Viúva Negra (Scarlett Johansson, caracterizando a perfeita femme-fatale) que possuem as informações mais privilegiadas. Em outro momento, quando Nick Fury o orienta a não confiar em ninguém, vemos um Capitão América perdido como uma criança sozinha num shopping). A ideia de um poder que controla a força bruta é importante pois mais uma vez desconstrói a ideia romantizada de um herói sem precedentes. É claro que várias dessas ideias (anti-belicismo, inteligência sobre força bruta) serão diluídas progressivamente conforme o filme passa. Mas só pela oportunidade de vermos um dos maiores símbolos de força dos quadrinhos a partir de um outro parecer é, sem dúvida, interessantíssimo.
Os aspectos técnicos também evoluíram consideravelmente desde o filme anterior (embora a série Demolidor tenha de longe a melhor direção de todas as obras da Marvel). Acredito que a cena que melhor resume essa evolução é justamente quando o Capitão América vai conversar com Pierce (Robert Redford) após Nick Fury dizer que ele não deveria confiar em ninguém. Conforme a conversa segue e Pierce vai jogando mais na ofensiva, a câmera vai se distanciando, de forma a pegar os dois cada vez mais longes um do outro, expressando cinematograficamente a desconfiança do Capitão América. Um pouco depois, temos a cena do elevador. É claro que a parada em vários andares, com cada vez mais pessoas entrando, servem para aumentar o suspense. Mas mais do que isso, esta cena expressa mais uma vez a desconfiança, já que não só o elevador vai enchendo, como a câmera faz questão de enquadrar o Capitão América através dos vultos dos demais. Detalhes como estes podem ser sentidos quando vemos o filme, mesmo que passem despercebidos, mas quando notados, a sensação acaba enaltecida. Excetuando alguns momentos em que as cenas de ação são demasiadamente tremidas e possuem muitos cortes, elas são em geral funcionais, principalmente as que o Soldado Invernal está em cena, já que temos planos mais distantes, pegando a amplitude das ótimas coreografias de luta.
Por outro lado, Capitão América 2: O Soldado Invernal falha em amarrar cenas por vezes irracionais, por vezes expositivas demais. Em relação ao primeiro ponto, a cena mais problemática é justamente a final. Ao invés do Capitão América, da Viúva Negra e afins seguirem diretamente para as plataformas aéreas e implantar os chips de forma sorrateira (o que seria possível, já que todas as missões até então, por mais difíceis que fossem, fossem feitas desse modo), vemos os heróis anunciando suas presenças, tornando a tarefa muito mais complicada (muito porque os funcionários justos da S.H.I.E.L.D. não acrescentam ao clímax da ação). Na verdade, até aqui não vejo um problema tão grande; o que não entendo é como Pierce e os integrantes da H.Y.D.R.A. simplesmente não desmentem tudo o que acabara de ser dito, pois até então, tudo parecia indicar que o Capitão América de fato era o meliante. Em relação aos diálogos expositivos, o principal problema está na cena de Zola (Toby Jones) e os milhares de computadores. Até antes disso, não sabíamos quase nada do "Projeto Insight", da existência da H.Y.D.R.A. ou dos planos de aniquilamento seletivo. É claro que para quem viu o filme anterior, Zola faz muito sentido, mas como obra separada, esta cena não se sustenta, além de ser, mais uma vez, muito expositiva.
Capitão América 2: O Soldado Invernal tem personagens complexas e psicologicamente profundas, um cuidado estético bem aparente e temas periféricos relevantes, sendo, sem dúvida, muito superior ao seu filme anterior. No entanto, o filme acaba não desenrolando a narrativa em pontos vitais de seu desenvolvimento, tendo assim, resoluções mais pobres que suas introduções.
Across the Universe
4.1 2,2K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Quem nunca ouviu "All My Loving", "Come Together" ou "All You Need Is Love"? Across the Universe (2007) não só trás uma sensação nostálgica como constrói uma narrativa embalante que será importantíssima para dar vigor e sentido às músicas. Acompanhando a história de Jude (Jim Sturgess) entramos numa orgia de referências à músicas, artistas e momentos da vida dos integrantes The Beatles (nome das personagens - Jude ("Hey Jude"), Prudence ("Dear Prudence", "She Came Through the Window", Max ("Maxwell's Silver Hammer") - ao se juntar ao grupo entrando pela janela do banheiro), Lucy ("Lucy is the Sky with Diamonds")...; artistas - Sadie (Janis Joplin), Jo-Jo (Jimi Hendrix), Max (Kurt Cobain), sem contar as aparições de Bono Vox e Joe Cocker; momentos em que Jim se assemelha ao Paul McCartney, John Lennon).
Sendo um filme minimamente arquitetado para tanto contar uma história fluida como para homenagear uma das bandas mais famosas da história, Across the Universe não se perde em nenhum dos lados. Adotando a forma de um musical, muitas vezes temos cenas em que o que vemos não é de fato um, já que as vezes ouvimos uma personagem cantando, mas não a vemos de fato mexendo a boca, como se tomasse parcela unicamente de trilha sonora. Vejo o filme em quatro partes: "o encontro", "a curtição", "o declínio" e "o reencontro". As duas partes periféricas, principalmente "o encontro", são bem casuais em qualquer filme, tendo algumas pinceladas muito interessantes. Destaco a cena em que descobrimos que Prudence (T.V. Carpio) é lésbica. A cena tem um charme no movimento da câmera, pendendo sempre para a garota: quando vemos Prudence cantando, a câmera vai girando no sentido horário. Esse movimento é tudo, menos ingênuo. Sendo o cinema baseado no movimento, esse leve inclinar se propagará imageticamente para o corte do casal, fazendo nos dirigir para a garota loira para qual ele olhava.
Se o início foi muito normal, a parte central do filme é a (que eu mais gosto) mais delirante. Começando por uma cena incrível de resignificação da música "I Want You", vemos a desumanização da figura antes sempre alegre de Max (Joe Anderson), passando pelas drogas pesadas de "I Am the Walrus", por um circo psicodélico de "Being For The Benefit of Mr. Kite" e chegando enfim à rodinha de "Because", sentimos visualmente toda a loucura que as personagens passam. Impressionante é pouco para os efeitos de saturação, maquiagem, coreografia, movimentos de câmera e edição empregados nestas cenas para intensificar as sensações. A passagem para "o declínio" com a cena de "Strawberry Fields Forever" cria contrapontos com a guerra, amor e dor impressionantes, utilizando-se de um vermelho intenso e pinceladas à la Pollock para retratar toda o sofrimento da cena.
Neste meio tempo é interessante perceber vários temas recorrentes da década de 60, 70 que permeiam o filme: temos a Guerra do Vietnã, a revolução sexual, as drogas, as questões raciais, o movimento "hippie", a ascensão do "Hare Krishna"; todos temas que de fato fizeram parte da carreira The Beatles. O mais interessante de tudo é que eles são tratados musicalmente, como se ilustrasse justamente a ideia de não-violência (paz e amor). A diretora emprega fortemente sua visão em relação às instituições (o Exército e sua desumanização, a Polícia e sua fúria, a desvirtuação de ideologias). Juntamente com os momentos de sexo e drogas, todos estes temas são tratados muitas vezes como as referências The Beatles, como se fossem prêmios a serem descobertos. Num filme em que há certo momento não sabemos se nada de fato é real, deixar as coisas em implícito é mais divertido que qualquer outra abordagem. Destaco aqui a cena do protesto no prédio de Columbia com uma perfeita sobreposição de imagens e músicas, em que Jude desacreditado da eficácia do movimento canta a música título "Across the Universe", mas que ao fim acaba se tornando "Helter Skelter", como se o amor impulsionasse esta fúria escondida.
O "reencontro" ao som de "All You Need is Love" é incrível. Cabe aqui uma análise imagética de Lucy (Evan Rachel Wood). Enquanto a vemos como a garota perfeita e feliz, os tons que a cerceiam são amarelados, transparecendo visualmente esta sensação. Conforme ela vai "conhecendo o mundo" e relacionando-se com Jude, ela vai perdendo o amarelo, ficando tão sem cor quanto Jude era no começo do filme na Inglaterra (o contraponto do Velho e do Novo Mundo intensificam a diferença de paletas das duas protagonistas). No entanto, para se reencontrarem, ambos são trazidos em táxis amarelos, como se a felicidade estivesse retornando. Por fim, uma última ideia interessante se situa justamente no título do filme. Across the Universe remete tanto à viagem que as personagens fazem através das drogas no meio do filme, à evolução de personagens sempre fazendo referências The Beatles, como também a distância que sempre dificultou o amor de Jude e Lucy: o oceano, as paletas de cores, e por fim, a rua que separa os dois prédios. Um filme nostálgico, tocante, mas o mais importante de tudo, bem contado. E que fiquemos com Lucy aos céus com seus diamantes...
Branca de Neve e os Sete Anões
3.8 711SPOILER DETECTED!!!
Embora muitos se lembrem de Branca de Neve e os Sete Anões (1937) unicamente como um marco para a história das animações, estes acabam passando despercebido por uma construção de personagens e ambientes tão poderosos, que poderiam ser muito bem vistos num filme rodado normalmente com pessoas.
A figura de Branca de Neve já fez, com toda certeza, parte da vida de muitos de nós, mas vendo-a no filme com olhos mais maduros, tenho a impressão de que ela (e o Príncipe) são na verdade as duas figuras mais desinteressantes da obra. O poder de magnetismo de Branca de Neve é de fato explorado desde os primeiros minutos do filme, sendo até mesmo impulsionador de todos os conflitos que prosseguirão, mas ao mesmo tempo que esta beleza se perpetua, cria-se uma personagem tão romantizada, que por efeito faz com que nossa identificação seja muito dificultada, pelo simples fato de ela não parecer real. Falando em romantização, é interessante perceber como Branca de Neve, mesmo em trapos, aparece em um local claro e aberto, rodeada por natureza, em contraste à Rainha num ambiente escuro e claustrofóbico (embora opulente). O tom maniqueísta é tão bem elucidado, que no primeiro momento em que Branca de Neve foge pela floresta, correndo perigo (ou pelo menos achando que corre, já que a idealização do ambiente decorre do caráter romantizado e ingênuo dela), temos um choque impactante com toda a harmonia e beleza que havíamos visto antes.
Seguindo as impressões de Branca de Neve, é nada mais justo termos um mocinho que demarque as características viris e nobres que só alguém ultra-apaixonado poderia criar. Não bastando, nos breves momentos iniciais que seguimos os passos do Príncipe, árvores largamente floridas acompanharão cada quadro em que este se encontra. Esta composição ajuda a compor a idealização contida na personagem, mas mais do que isso, servirá futuramente para um detalhe sutil e primoroso que denotará a perfeita caracterização de personagem.
Antes de conhecermos a Rainha e os Sete Anões (owwnt...), é interessante pontuar como alguns quadros são criados. Na mesma cena em que conhecemos o Príncipe, Branca de Neve termina a canção enquadrada pelo seu reflexo na água do poço. Esquadrinhando a ideia do reflexo/espelho, percebemos que ele será sempre utilizado como recurso de desejo/meta (a Rainha perguntará diversas vezes ao espelho se é a mais bela, estando somente satisfeita se a resposta for favorável). Da mesma forma que a Rainha, Branca de Neve verá seu desejo ser realizado através de um espelho d'água. No entanto, logo após que saímos deste ponto de vista, e voltamos à "realidade", Branca de Neve foge correndo do Príncipe. Esta ideia do espelho é muito poderosa e será também vital para o desfecho do filme.
Após se entender com os bichinhos, no talvez, momento mais romantizado da obra, Branca de Neve avançará para dentro da casa dos anões. É importante ressaltar a composição de cena até então, já que raios de luz e molduras de quadros compostas pela natureza traçarão um paralelo harmonioso entre a casa e a natureza. Assim que Branca de Neve abrir a porta da casa, todo o colorido se desmanchará num escuro infindável. No entanto, mais impactante do que este contraste é uma trilha sonora senão perfeita, funcional. O contraste sonoro, de pontadas bruscas e curtas no interior da casa com um tema mais arrastado e solto do exterior só intensifica o suspense do mais uma vez desconhecido (a primeira vez na entrada da floresta – natureza surrealista – é também poderosíssima, mas o contraste desta segunda vez é mais perceptível, já que Branca de Neve transita entre os dois ambientes várias vezes antes de fato entrar).
Finalmente conhecemos os Sete Anões (Heigh-Ho, Heigh-Ho), e a cena em que estes retornam à casa é no mínimo bela, para não dizer magnetizante. Conforme vamos conhecendo cada um mais a fundo, vamos percebendo como o trabalho de caracterização fora bem feito. Se de Branca de Neve e do Príncipe vemos beleza, em cada um dos anões vamos vendo características que não precisariam nem serem acompanhadas de seus nomes para entendermos. O Mestre embora atrapalhado impõe respeito pela idade, caracterizado no óculos que usa, Soneca possui as olheiras mais bem demarcadas. Zangado tem sobrancelhas rígidas e um nariz protuberante, e assim por diante. Talvez a caracterização mais interessante seja a de Dunga que se assemelha à tartaruga vista antes (roupas verdes grandes como se fosse um casco), e que assim como ela, sempre é deixada para trás. Todos eles são personagens bem caricatos, e a partir da hipérbole de suas ações e características físicas, os identificamos, fazendo-nos se importar com cada um deles.
Na mesma ideia, precisamos de uma vilã que nos faça odiá-la, e mais uma vez o filme acerta em cheio. Se não bastasse uma mulher com trajes e andar arrogante, que além de tudo, praticamente escraviza Branca de Neve, a Rainha passará por um processo gradativo de maldade, tanto físico quanto psicológico. Não satisfeita em mandar sem sucesso matar Branca de Neve, ela mesma decide resolver isso, transfigurando-se em uma velha baixinha enrugada, com uma verruga no nariz e olhos incisivos. O momento de sua morte é tão grandioso que não só vemos nossos heróis derrotando-a, como relâmpagos desferirem ao fundo, o brado e o poder da cena.
Mesmo morta, a Rainha consegue realizar seu feito. E se antes Branca de Neve era como se fosse uma mãe para os anões, ela será a criança coagida pelo desconhecido, e que por fim, acaba "morta" sobre o leito coberto por um vidro, numa cena em que até a vela chora em sincronia aos anões. Dito isto, é interessante perceber uma noção de falta de maternidade presente em quase todas as personagens: desde uma Branca de Neve órfã, passando pelos Sete Anões numa cabana afastada, até uma Rainha sem laços amorosos, filiais ou pelo menos, amigáveis. Concomitantemente, essa privação gerará personagens infatilizados, obstinados e ingênuos em seus pareceres a ponto da Rainha conseguir convencer Branca de Neve a comer a maçã, mesmo alertada pelos anões a não aceitar nada de estranhos (uma ideia muito parecida aparece também em O Labirinto do Fauno (2006)). Mesmo em uma animação aparentemente inocente, conceitos de abandono e amadurecimento aparecem fortes.
Um pouco antes do fim, vemos letreiros anunciando o porquê de Branca de Neve não ter sido enterrada. No entanto, o mais incrível não está nos letreiros, mas atrás deles: vemos o passar das estações (outono, inverno e primavera) através de um galho de uma árvore, e que por fim, termina nas mesmas flores que compunham a imagem do Príncipe. Os letreiros também diziam que o Príncipe chegava, mas este detalhe sutil confirma de fato a sua vinda.
Na fatídica cena, antes do Príncipe chegar, os anões colocam flores sobre o corpo de Branca de Neve, retirando o vidro de cima dela. E é aqui que retornamos ao início do comentário. Se o espelho/reflexo/vidro significava um desejo inalcançável, o tirar do vidro representa metaforicamente que este desejo agora está se tornando real: Branca de Neve ficará com o Príncipe para todo e eterno sempre.
Branca de Neve e os Sete Anões possui sim uma importância histórica, mas pelo trabalho estético e, principalmente, pela composição de personagens, torna-se mais um protagonista na maravilha que é o cinema.
Paprika
4.2 503 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Quando analisamos um filme como Paprika (2006), alguns dizem que temos que ser bem cuidadosos em não destrinchá-lo a ponto de se esquecer da temática onírica do filme, e que portanto, em algumas situações, os sonhos simplesmente não precisam fazer sentido. Por outro lado, numa expressão como o cinema em que cada minuto a mais existe justamente para construir uma coesão mais solidificada do resto da obra, podemos entender que cada inferência não seja desproposital. Se formos analisá-lo assim como um dos filmes mais bem aclamados do tema (A Origem (2010), que segundo Nolan, se inspirou neste filme) faz, parece que a saída mais propícia seja de fato racionalizar todas as imagens. No entanto, muitas das representações oníricas de A Origem se assemelham com a realidade propriamente dita, fazendo com que a confusão esteja em achar no real, o estranho. Em Paprika, quanto mais afundamos no filme, mais bizarrices parecemos presenciar. O efeito aqui é o contrário: encontrar no estranho a realidade. Dessa forma, entramos num dos primeiros - e muitos - impasses de Paprika: como entendê-lo?
Uma boa alternativa é tentar verificar o cunho psicológico do filme e das personagens. Mas antes disso, uma breve explicação da análise psicanalítica do filme: segundo Freud, o homem se divide em três regiões mentais: o ego, o id e o superego. O primeiro se resume nas facetas que são de fato mostradas por cada indivíduo. O segundo são basicamente os desejos mais primitivos do homem, como fome e sexo que só não são expressos devido ao controle que o terceiro faz. Uma figura bem ilustrativa destas três regiões de um homem é um iceberg. Sobre a água, temos uma pequena parcela do que somos, mas é sob ela que encontramos não só a maior parte do indivíduo, como também estas expressões mais irracionais do homem. Controlando nossos impulsos quando estamos acordados, é justamente quando nos embriagamos, nos drogamos, ou simplesmente sonhamos, que o subconsciente não só revisita todo o dia que tivemos, como também verbaliza nossas emoções, sensações e desejos reprimidos. Desde o detetive Kogawa Toshimi (Akio Ôtsuka), com um passado mal resolvido, até o cientista gordinho Tokita (Tôru Furuya), repreendido por sua infantilidade, fazendo com que as pessoas não o levem a sério, todas as personagens deste filme (e de um outro filme chamado vida) possuem certas desilusões. Tentando sanar tais problemas, um grupo de cientistas criará uma máquina que servirá na ajuda de consultas psiquiátricas. A partir do momento que isto cai em mãos erradas (no talvez mais desiludido de todos, já que a inconformação do mundo, pelo presidente Inui Sei-jiroh (Tôru Emori), é tão cruel quanto a dor do amor não correspondido - Osanai Morio (Kôichi Yamadera)), a forma de escapismo de todas essas pessoas, o lugar em que todos poderiam se sentir donos do mundo, acaba se tornando um pesadelo pior do que a própria vida em que vivem. Pior, acaba se mesclando a ela. Passar por um sonho é uma utopia, agora viver nele já passa a ser uma distopia.
Além da desilusão pessoal, ainda temos um outro tema fortíssimo: a repressão sexual. Começando pela personagem principal do filme, Paprika é uma persona de Chiba (Megumi Hayashibara), sendo totalmente contrária a que esta última é. Dessa forma, enquanto a primeira é mais expansiva, instintiva e sexual, a segunda já é mais reservada, racional e analítica (assim como no conflito na forma em que deveríamos analisar o filme). Sendo uma persona, Paprika pode significar todas as características que Chiba almejaria ter, mas que só conseguem ser expressas quando o id se prepondera, sendo por isso o porquê de Paprika aparecer unicamente nos sonhos, e mais do que isso, aparecer com mais constância a partir do momento em que sonho vai se misturando com realidade. Por outro lado, Paprika é também como se fosse uma femme-fatale, já que seduz todos os homens (beija Kogawa, é desejada por Osanai, acorda Shima Tora-taroh (Katsunosuke Hori), acaba com Tokita e destrói Inui). Ou seja, ao mesmo tempo que Paprika significa a repressão sexual de Chiba (já que esta precisa criar uma persona para então realizar tudo o que deseja), ela também é o libido sexual de todos os homens do filme.
Se não bastasse Tokita ainda possui o outro desejo primitivo que citei lá em cima: a fome. Dessa forma, embora nós, e as próprias personagens do filme, não o levem a sério por sua infantilidade, é justamente ele quem terá duas das representações mais características do id, sendo portanto, um dos personagens mais complexos do filme. Essa complexidade é expandida também na figura de seu grande amigo Himuro Kei (Daisuke Sakaguchi). Se pararmos para pensar, Himuro é tão infantil quanto Tokita, pelo fato de se apegar mais a bonecas do que propriamente humanos. Se pararmos para observar elementos específicos de cada cena, perceberemos que Himuro e Tokita eram na verdade grandes amigos. Mesmo que ele aparente ser o inicial antagonista, quando conhecemos seu quarto, conhecemos sutilmente várias de suas características. Primeiramente, Himuro é homossexual. Em uma das estantes de sua casa podemos ver uma revista homossexual dentro de uma caixa. Dessa forma, Himuro poderia idolatrar Tokita muito mais do que só profissionalmente, mas também sexualmente. No entanto, mais uma vez, esse detalhe é tão sutil que por si só indica metaforicamente a repressão sexual que eu comentei acima. Além disso, quando descemos com Chiba por uma escada, chegamos a um corredor repleto de desenhos bem pictóricos de várias bonecas dando mãos a robôs. Se entendermos o robô como Tokita (já que a persona dele nos sonhos é justamente um robô), vemos que a amizade deles era muito mais forte do que Osanai achava ser, quando inferiu que Himuro poderia estar querendo prejudicar Tokita.
Por fim, temos Kogawa, um estudante de cinema desiludido com a morte do seu maior ídolo e amigo que o ajudara a desenvolver seu primeiro filme. A partir de então, Kogawa repugnará toda a forma cinematográfica. Peguemos a ideia de filme. Na mesma ideia de sonho, um filme pode ser uma forma de escapismo da realidade que nos leva a um mundo tão belo e intangível que queremos ficar unicamente nele. É então uma ironia bem interessante ver Kogawa recusando a ficção do filme e aceitando a do sonho com o decorrer da narrativa.
Uma outra forma de analisarmos o filme, já de certa forma comentada nas relações entre Himuro e Tokita é a técnica, já que se pararmos para ver um cena qualquer deste filme, nos depararemos com uma explosão de cores, sons e formas. Paprika é um dos primeiros filmes a se utilizar unicamente de Vocaloid em sua trilha sonora. Se formos levar novamente para o sentido metafórico da coisa, é como se até mesmo os elementos fílmicos estivessem indicando uma surrealidade da vida, o que é bem interessante para incrementar a ideia de confusão do real e do sonho. No entanto, é sem dúvida o trabalho de cores que impressiona não só pela sua beleza estética, mas também pelo significado por trás dele. Talvez a um primeiro momento não seja perceptível, mas se analisarmos mais a fundo veremos que as cores vermelha e verde aparecem ao decorrer do filme, quase como antagonistas. Essa dicotomia aparece várias vezes entre Chiba e Paprika, com a primeira normalmente tendendo ao verde, e a segunda ao vermelho. A cena inicial em que Paprika dirigindo uma lambreta vermelha vai através de cortes se transformando na Chiba, que está dentro de um carro vermelho, retrata o papel destas cores muito bem. Como já dito antes, Paprika é libidinosa, instintiva, sendo representada pela cor vermelha de seus trajes, enquanto Chiba mais refreada, racional, denota tons verdes. Nesta mesma cena da troca da lambreta pelo carro, se repararmos que Chiba usa um batom vermelho, podemos entender que essa sexualidade embora fraca, exista nela, como se denotasse um toque do que ela gostaria de ser. Essa racionalidade diante em relação ao sonho também não é positivamente retratada já que tanto Inui quanto Osanai terão gravatas verdes, além de serem rodeados de plantas (como na estufa de Inui) como se prenunciassem o mal deles. No entanto, estas duas cores apresentam um outro papel bem interessante. Se Chiba é a pessoa real e Paprika a persona, podemos interpretar que o verde significa a realidade, enquanto Paprika remete ao sonho, ao surreal. Se pararmos para ver, no início do filme os tons dominantes eram o verde, já que ainda estávamos no mundo real. Conforme o filme vai passando, a dominância é do vermelho, como se indicasse o mundo onírico em que estávamos. Na realidade, chegando mais ao fim do filme, estas duas cores começarão a se misturar mais e mais, tendo cenas em que só teremos verde e vermelho, indicando justamente a confusão da realidade e do sonho. Em termos práticos, as cores vão se misturando, se misturando até no final, quando Inui for combatido, aparecer um céu azul, como se tivéssemos um novo mundo, uma nova perspectiva.
Finalmente, após darmos todas essas voltas chegamos ao grande fim. Se em todo o filme tínhamos uma repressão sexual, no fim, Paprika "entra" (entenda metaforicamente como sexo) em Tokita e forma um novo ser. Assim como a Starchild de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), esta garota parece prenunciar uma nova vida, um novo rumo, assim como as cores azuis. Considerando ainda que este novo ser é uma mulher, nada mais justo que diante de uma história de repressão sexual, criemos um novo mundo a partir da mulher, o símbolo máximo da fertilidade. Por outro lado, podemos interpretar que a ideia de escapismo através do sonho se perdeu a partir do momento em que tentamos utilizar-se dele como forma de sanação dos maus da realidade, já que o sono tornou-se a nova realidade. Desta forma, engolir o "vírus" deste sonho, não indicaria o prenúncio de um novo mundo, mas sim ter alcançado um nível de convivência com a realidade, por mais cruel que ela seja. Em outras palavras, é como se as personagens precisassem passar por toda essa jornada para despertarem a catarse de aprender se viver com a realidade. Liricamente isto é lindo, e o final parece de fato mostrar que, independentemente da análise do final, tudo parece estar melhor. Porém, a pergunta permanece, podemos racionalizar nossos sonhos/será que tudo está correto mesmo?
Luzes da Cidade
4.6 624 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Para um filme sobreviver por mais de 80 anos como um clássico é preciso muito mais do que uma boa história, personagens memoráveis ou metáforas/críticas impressionantes; é preciso ser único. Alguns filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) mantém-se pela sua maestria imagética e filosófica, outros como Luzes da Cidade (1931) perpetuam-se pela sua humanidade. É certo que Chaplin levara muitas pessoas ao cinema através de sua pantomima (gestual diz mais que as palavras), mas numa situação pós-crise de 29, com o cinema falado desbancando (faziam 4 anos que O cantor de Jazz (1927) fora lançado), a ousadia em manter uma obra muda parecia questionável. Felizmente, o sucesso foi estrondoso. E muito dele se dá justamente por pela pantomima. Pantomina esta, que sem dúvida, marca juntamente com os trajes, a figura antológica de Carlitos. Esta caracterização é exatamente o que dá humanidade ao filme: enquanto as falas criariam uma barreira inicial às diversas pessoas da Terra, os gestos denotam uma universalidade, pois independentemente do que é dito, a ação é igual a todos.
Embora não empregue o som na figura de Carlitos, vemos algumas experimentações muito bem empregadas, como o zumbido na voz dos políticos, criticando o vazio da fala, sendo seguido por um hino nacional que cessa repentinamente toda a confusão criada por Carlitos. Se formos analisar esta cena das estátuas, veremos uma construção muito similar a de Taxi Driver (1976), mais de 40 anos depois. Nele, vemos o político Charles Palantine discursando num enquadramento bem distante. Enquanto Luzes da Cidade mostra o vazio através dos zumbidos, Taxi Driver mostra através do distanciamento. Embora tenhamos um foco inicial nestas figuras políticas, logo descobriremos que é o transviado quem terá o papel principal na trama. Assim que o vagabundo/Travis Bickle tomar o controle da cena, o político será só mais uma figura na multidão (em Luzes da Cidade, o político aparecia inicialmente sozinho, mas depois é visto rodeado de outras pessoas, assim como em Taxi Driver, com Palantine descendo do palanque e se misturando à massa). Neste breve momento dos dois filmes, vemos quem é que de fato detém o poder na trama que veremos ao decorrer das obras. Por fim, observando as estátuas propriamente ditas (cujo nome é "Paz e Prosperidade"), vemos a personificação da sociedade: embora sobre os braços de uma estátua, uma das outras aponta uma espada para Carlitos. A estátua que representa o símbolo de paz e prosperidade só é plena se não existirem estes marginalizados. Carlitos é um adendo, um apêndice que não harmoniza com o quadro que as pessoas direitas querem dar. No decorrer do filme, veremos que é este mesmo marginalizado quem trará a paz e prosperidade para outros membros da sociedade.
Uma outra cena que reflete esse sufoco ante o marginalizado é o momento em que Carlitos observa uma vitrine e cai num elevador subterrâneo. A vitrine pode significar o reflexo da sociedade. Sendo Carlitos o reflexo da vitrine, Carlitos é a pessoa que não faz parte da sociedade, mesmo que a observe atentamente. Além disso, temos diversos planos (carros/Carlitos/vitrine/estátuas). Assim como as estátuas e a vitrine, os carros indicam a modernidade e evolução da sociedade. Dessa forma, é como se Carlitos fosse sufocado por todos os lados, e quando acha um espaço de conforto é deparado por um operário do elevador que, mais uma vez, o sufoca. Como um vagabundo, Carlitos vai vagando através de diversas figuras que serão tocadas pela sua "ingenuidade" (explicarei o porquê mais para frente), seja o bêbado ricaço (Harry Myers) ou a garota cega (Virginia Cherrill).
O primeiro contato que temos com o bêbado é ofuscado por uma lamparina forte atrás da ação. Da mesma forma, quando vemos a cega pela primeira vez (um tanto sonhadora, um tanto melancólica), temos a impressão de que ela é quase um anjo (o rosto virado, a iluminação do semblante, o enquadramento harmônico e a relação das flores à sua pessoa). Essa luz está até mesmo nos indivíduos mais ausentes da sociedade, mas por que não em Carlitos? Porque não. Na verdade ele também tem sua luz, a flor que carrega ao peito ao decorrer de todo o filme. A flor, assim como ele, é bondosa e delicada. Carlitos não é ingênuo (percebendo que a garota é não só cega quanto acha que ele é rico, Carlitos se aproveitará para se aproximar cada vez mais dela. No entanto, Carlitos não é mau. Em outras palavras, não ser ingênuo não é algo ruim, nem mesmo para a figura meiga de Carlitos, mas sim uma característica que intensifica sua humanidade, e por conseguinte, a do filme), assim como a cega também não é. A questão é simplesmente julgar bom algo que não é ingênuo (pois algo ingênuo é sempre por natureza bom), e é isso que embeleza mais ainda as personagens. Falando em julgamento, esta é outra ideia forte no filme. Todos, sem exceção, ou não veem Carlitos como ele realmente é ou o ignoram. A sociedade não só despreza sua presença, como o identifica como infrator da paz. O resto das personagens que o veem positivamente, na verdade não o veem em sua completude, já que temos uma cega, um rico que só simpatiza quando bêbado e uma mãe que nunca viu Carlitos, mas o romantiza através das palavras da filha (dessa forma podemos interpretar que a ausência das falas deste filme sirva para que o espectador entre no filme com um artifício a menos para julgar Carlitos, servindo como efeito metalinguístico). Esta ideia enfatiza ainda mais a noção de vagabundo, do sujeito que muito mais do que sem trabalho (muito porque ele acha emprego assim que precisa) e errante é um peso à sociedade.
Dentre diversas cenas recheadas de graça e fofura (como a cena divertidíssima de boxe ou da cena em que Carlitos guarda uma nota para si, mas acaba cedendo ao beijo da cega), chegamos a cena final com uma carga emocional positiva muito grande. Este contraste será fundamental como intensificador da tristeza. Após ser rechaçado pelos garotos de rua, Carlitos verá a flor, ou melhor, a luz da cidade que o guiou até este fatídico fim, e ao encontrar a agora florista e não mais cega se emociona mas se assusta com a realidade. Mais uma vez teremos a vitrine como intermédio. De dentro da vitrine temos a garota, agora como parte da sociedade. Com uma mistura de dó e escárnio em relação a Carlitos, ela vai até ele e entrega a flor/luz, só que por esta agora pertencer à sociedade é como se ela apresentasse a sociedade a ele (fato que durante todo o filme fora apresentado na verdade por ele). Não dá para se saber se o choro da garota é de arrependimento da zombaria que acabara de fazer, de carinho, de choque de realidade. E nem devemos. A única coisa que precisamos saber é que Carlitos/Chaplin enfim tocou a sociedade.
Coração Valente
4.1 1,3K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Sempre que falamos em Coração Valente (1995), um segundo filme sempre nos vem a cabeça: Gladiador (2000). Para um gênero em decadência, a segunda metade da década de 90 é fundamental para o estrondoso retorno dos épicos que por fim desencadeará o fenômeno O Senhor dos Anéis (2001-2003). Coração Valente é com certeza um filme muito mais coeso que Gladiador em vários aspectos, já que possui batalhas sempre bem filmadas, em contrapartida a uma cena inicial tremida e confusa de Gladiador, e um desenvolvimento fluido que conclui a história sem contrariar o objetivo inicial do protagonista. Embora menos coeso (eu escrevi o porquê disso em um outro comentário que linkarei ao fim deste), é Gladiador o filme que possui a história mais grandiloquente e enérgica, justamente por suas cenas estupendas no meio do filme.
Após um início sofrido, William Wallace (Mel Gibson) adulto possui uma jovialidade e leveza muito maior que qualquer guerreiro épico. Sua brutalidade e fúria são decerto imponentes, mas é sua carisma a grande responsável pela mobilização de numerosas tropas contra os ingleses. Em muitos momentos do filme me perguntava realmente se fazia sentido Wallace ser espevitado e brincalhão, já que em vários momentos de tensão, ele parecia estar brincando com a sorte. Ver ele assolado quando ele implora aos nobres por ajuda (muito ajudado pela composição dos cabelos desgrenhados que não aparecem nem quando ele está lutando) é realmente um choque à figura moleque de todo o filme. Mais do que isso, tudo que Wallace evita acaba acontecendo: ele não quer se meter em guerras, acaba liderando uma. Ele repudia toda a forma de nobreza, acaba virando Sir. Ele quer se portar e ser tratado como humano, acaba sendo idealizado numa figura tão mítica quanto próprio Deus. Essa série de desavenças cria mais uma vez uma personagem tão poderosa que a mim soou um pouco artificial. Wallace é como se fosse o próprio Jesus Cristo na Terra: não consegue fugir de seu destino, é tratado como bom por todos que estão ao seu redor, toca a alma de pessoas que estavam do outro lado do jogo só pela sua carisma, e por fim, morre sobre uma cruz como o símbolo da liberdade em Terra. Se Mel Gibson quis formar uma imagem messiânica de William Wallace, ele desmistifica a mesma ideia nos traços de bufão do mesmo, já que a imagem sagrada é sempre veiculada a uma pessoa boa, sensível, mas direita, sensata e focada. Dessa forma, Wallace é uma personagem contraditória e muito mais complexa do que parece, pois se de um lado o filme o queira mostrar como Jesus em pessoa, por outro, a índole dele acaba por ridicularizando esta ideia.
Uma outra ideia forte em Coração Valente é justamente o papel do coração/amor na tomada de decisões de cada indivíduo. Educado a seguir a mente/racionalidade, Wallace se vê apaixonado por uma mulher desde sua infância. Quando esta é por fim assassinada, todo o cuidado para evitar brigas desnecessárias some, e Wallace não se inicia um motim como faz um assassinato em massa. Por sinal, esta é uma das cenas mais bem filmadas do filme, já que toda a sensação de tensão é espelhada nas câmeras distantes e desfocadas que pegam relances e silhuetas de Wallace. Neste momento, aquela figura brincalhona não existe, assim como sua moral, que é suprimida pelo seu amor. Se a cena inicial idealizava um amor infantil (pegue a cena da prima nocte deles. O jogo de luzes e sombra criam uma ideia de eternidade e sutileza ainda maior do que já tinha sido apresentada na tela), a mesma garota morre sem rodeios. Ela é capturada, degolada de uma forma bruta, simples e cruel. Ao fim da cena é interessante ver que toda a nobreza e poder representada no vermelho das roupas dos ingleses é transposta no sangue dos mesmos sobre o corpo dos camponeses enfurecidos. Essa ideia de amor se preponderando sobre a moral estará presente também quando um dos camponeses mata à sangue-frio o molestador de sua esposa, logo após o primeiro dia de casamento e na figura da princesa francesa (Sophie Marceau) que se abdica das convenções da nobreza, ajudando o selvagem amado. Ainda do título, coração pode significar o porquê da luta destes camponeses: coragem. Wallace cita muitas vezes essa ideia e não é por menos. Enquanto os nobres lutam por maior reconhecimento, mais influência ou mais poder, os camponeses lutam porque querem ser donos de si mesmos, porque lutam com o coração (Robert Bruce (Angus Macfadyen) é a representação dessa dualidade, já que ele nunca sabe se deve lutar pelos seus princípios ou pela sua nobreza). Tanto é isso que em uma cena, dois camponeses discutem que a trégua deve ser discutida pelos nobres, porque são eles quem fazem a política.
Em suma, Coração Valente é um filme com a representação de um protagonista dúbio (se formos levar em conta a verossimilhança, a romantização vai bem além, mas analisei aqui a história em relação à produção artística), um jogo de câmeras competente (em um momento do filme quando o exército inglês cerca os camponeses, aqueles aparecem grandes na tela, como se refletisse a sensação de dominador e dominado do momento. Mas há um joguinho incrível, pois quem aparecerá ainda mais acima é justamente Wallace e seus companheiros, como se indicasse que a superioridade do exército inglês - entenda por nobreza - é ilusória, e que os escoceses são de fato os mandantes da região), um desenvolvimento narrativo fluido, sem altos e baixos e personagens periféricos que se questionam a todo momento de seu papel no reinado. Coração Valente foi na verdade o apelido vinculado a Robert Bruce, e se formos analisar o seu desenvolvimento, veremos que sua índole é ainda mais contraditória que a de Wallace. Talvez a maior dualidade seja: Robert Bruce é produto de um legado (famílias que passam seus símbolos de nobreza e poder hereditariamente) ou de uma nação (luta popular pela liberdade)? Não há cena melhor para representar isso que não seja a de Robert Bruce fechando a porta para o pai (cof, cof, O Poderoso Chefão (1972)), num símbolo de afastamento e negação a tudo o que o pai foi, e o que ele mesmo poderia ser.
Gladiador: http://filmow.com/comentarios/5342120/
Gladiador
4.2 1,7K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Gladiador (2000) é repleto de imagens fortes que não só dão vida ao filme, como ajudam a reforçar a sensação das cenas. Além disso, ele possui um desenvolvimento de personagens muito interessante e demarcado. No entanto, ao criar um início tão fraco quanto o final (por motivos diferentes que explicarei nas seguintes linhas), Gladiador acaba sendo um filme que não consegue expor em completude todo seu potencial.
O filme abre com um Maximus (Russel Crowe) imponente, grandioso e temível, andando diante de suas tropas como Kirk Douglas andou em Glória Feita de Sangue (1957). O prenúncio da guerra é algo a ser sempre bem trabalhado, porque não só faz parte do filme, como cria todo um ambiente de tensão para a guerra. Até aí, Gladiador vai muito bem, já que não só a sensação é criada como a estratégia de cercamento das tropas bárbaras é muito bem explícita a nós, sem que nem seja comentada na tela (em cinema, melhor do que dizer o que vai fazer, é fazer). Criada toda esta tensão, esperamos uma guerra gloriosa e grandiosa, mas a única coisa que vemos é um conflito filmado todo por câmeras tremidas, em que confundimos quem de fato é quem, e quem está tomando a ofensiva no momento. A movimentação da câmera é tão brusca que foi só quando a guerra se findou que pude ter certeza que as tropas romanas haviam ganhado. Gladiador é feito de duas parcelas: ação e narrativa, e esta primeira cena quebra totalmente a primeira parte. A boa notícia é que a ação ficará muito boa daqui para a frente.
Após a batalha vencida na Germânia, Maximus será recebido como um herói para o imperador Marcus Aurélio (Richard Harris), mostrando desde início sua predileção por este em detrimento ao próprio filho. O interessante é perceber quão inseguro Maximus é, mesmo sendo o mais temido general do exército romano, já que pondera entre voltar para a família e defender o império, mas mais do que isso, na cena em que ele fala pela primeira vez com Lucille (Connie Nielsen), visto que ela chama por ele três vezes, e Maximus nas três atende, fala duas palavras e se afasta. Em poucos minutos, podemos ver que toda aquela fortaleza é na verdade bem domesticável, e isso é muito importante para a trama como um todo, pois em certo momento, Maximus terá que definir qual é o propósito dele. No caso, salvar o império das mãos de um tirano, e isso tudo, por um sentimento muito importante para todas as personagens do filme: a honra. A honra, principalmente em momentos históricos (analisarei o filme como obra de arte, pois sei que muitos fatos ilustrados no filme não possuem nenhuma relação com a vida real) como o visto em questão, é tão forte quanto o amor, ou a paternidade, já que ela fará com que homens tornem-se pessoas totalmente diferentes das que eram, com único propósito de manter a palavra. Maximus não é o primeiro a demonstrar isso, mas sim Marcus Aurélio, já que ele mesmo em seu leito de morte, preocupa-se com a sucessão do trono. É pela honra de Próximo (Oliver Reed) a Marcus Aurélio, que este abdicará das riquezas em prol de um bem maior. É pela honra que o mesmo Próximo, além de Marcus Aurélio, Lucille e Graco (Derek Jacobi) acreditarão na palavra de Maximus, e que por conseguinte, depositarão todas as forças a fim de verem Commodus (Joaquin Phoenix) fora do trono. No entanto, ao mesmo tempo que temos a honra, temos a noção de eternidade, visto que tanto Commodus quanto o Senado queiram deixar um legado, um nome, uma figura que reverberá por décadas. Essa noção inicia-se logo na imagem de Roma, já que a todo momento, as personagens a identificam como um sonho, um poder inabalável, o que será inteiramente passada aos governantes dela. É nessa lógica que temos um embate entre Cassius (David Hemmings) e Graco, em que o primeiro que manter uma aparência a fim de obter sucesso e criar esse legado, enquanto que o segundo é a própria pessoa que é. Essa noção se prepondera em Commodus também: "Se eles não me respeitam, como eles podem me amar?”. O que é ilustrado é a incessante busca por reconhecimento, por louvor. Estas duas ideias serão muito fortes, regendo as ações das personagens por todo o filme.
Uma parte interessante a se analisar é como as imagens em cenas específicas parecem enfatizar ainda mais a mensagem passada naquele momento. Na cena em que Maximus descobre o fim que sua família tomou, acompanhamos Maximus caindo de joelhos, à medida que a câmera começa a subir de forma a mostrar somente os pés de sua família. Nesta cena, ao mesmo tempo que descobrimos isso, Maximus se encontra inferiorizado, simplesmente pelo fato da câmera o pegar de cima para baixo, deixando-o menor. Uma outra cena muito boa, agora em aspectos de ação também, é justamente a primeira luta no Coliseu. A câmera entra pegando-os de baixo, aumentando assim as suas figuras. Assim que os lutadores de biga entram, os gladiadores são pegos de longe, como se fossem figuras pequenas diante do poder que acabara de entrar. À medida que os gladiadores começam a ganhar a luta, a câmera vai se aproximando, nesta ideia de engrandecê-los. Quando Commodus entra na arena após a vitória dos gladiadores, Maximus vira as costas ao imperador. Não bastando, quando Commodus pede ao povo para se aquietar, indicando que ele decidirá o destino de Maximus, o povo não se cala. Nesta breve cena temos a nítida sensação do poder de Commodus. Na segunda batalha no Coliseu, essa mesma ideia será utilizada, já que ao Commodus tentar se utilizar de seu fracasso e do sucesso de Maximus, este acaba agindo de uma forma inesperada para a situação (poupar o gladiador), causando maior furor do povo. Mais uma vez, o imperador não consegue mandar sobre o povo. Analisando a personagem de Lucille, temos um momento em que as falas denotam o interesse dela: quando Cícero (Tommy Flanagan) a avisa que Maximus se encontrará com Graco, o primeiro argumento dele para falar com ela é que ele serviu Marcus Aurélio, o pai dela. Ela parece não ligar. Mas é quando ele fala que serviu Maximus que ela de fato gostará de falar com ele. Nesta pequena cena, entendemos que Lucille tem um afinco tão grande por Maximus, que subjuga até mesmo o seu pai. Falando em Maximus e Lucille, a segunda vez que eles se encontrarão demarcará a total mudança da personalidade deste, já que diferentemente da domesticação espelhada no primeiro encontro, dessa vez, Maximus se mostrará um homem bem mais agressivo e bruto, raivoso de sua situação.
Uma outra estética muito interessante em Gladiador se dá no papel das cores no filme, especificamente do vermelho e do azul. Enquanto o vermelho representa uma certa força, brutalidade, o azul representa a política. Esta força aparece nas roupas vermelhas que Maximus usa enquanto general. Ela aparece também nas primeiras vezes em que aparece como gladiador, mas é a cor vermelha que aparece em Marcus Aurélio a ideia mais interessante acerca desta cor. Marcus Aurélio foi o imperador de Roma, a instância de maior representatividade política do império. Em seu leito de morte, Marcus Aurélio veste roupas vermelhas, englobado num quarto com cores muito quentes. Dessa forma, Marcus Aurélio embora preocupado em escolher o sucessor do seu trono parece demonstrar que a política não funciona, já que acredita que grande parte dela está corrupta. Já o azul aparece principalmente nos trajes dos senadores e de Commodus. À medida que Maximus começa a definir seu propósito de matar Commodus, seus trajes começam a ficar mais azulados, chegando ao ponto de ficarem totalmente azuis na conversa com Graco. Da mesma forma, quando Commodus vê que seu poder se esvaiu, ele tem uma grande parcela da roupa em vermelho, até chegarmos a cena final. Na cena final, Commodus entra na arena como um Deus, branco até os pés, como se fosse a pureza em pessoa, pronto para livrar o povo dos males do mundo. No entanto, o que vemos são pétalas vermelhas caindo sobre sua cabeça. Além disso, temos um chão totalmente coberto pelas mesmas pétalas. É como se um subconsciente dissesse que Commodus está tentando utilizar-se unicamente da força para atingir seus propósitos. Quando ele morre, ainda vemos sangue saindo de seu corpo. Num enquadramento final, vemos Commodus caído num campo repleto de pétalas vermelhas. Commodus perdeu seu poder político, e tenta se reconciliar usando unicamente da força, só que diferentemente do Maximus do começo do filme, Commodus não tem a pureza (que ele quer refletir em suas roupas) que aquele tinha. Commodus queria fazer da morte de Maximus um espetáculo. No final, quem se tornou o espetáculo foi ele mesmo. Desa forma, em dois momentos distintos do filme, critica-se tanto a política quanto a força. O ideal é o balanço. Até aqui, tudo anda muito bem; até aqui...
A partir deste momento, teremos uma série de cenas que tentam endeusar Maximus mais do que ele já havia sido. Lucille vem abraçar Maximus e fala uma frase para endeusar ainda mais Maximus. O filme acaba com uma trilha sonora magnífica (um dos melhores trabalhos de Hans Zimmer), se não fosse para evocar uma sensação de melodrama ainda maior. Em todo o filme, Maximus quis tirar Commodus do poder e cumprir com honra o que havia prometido a Marcus Aurélio. Maximus em nenhum momento quis obter um reconhecimento, criar um legado. Se ele quisesse, qual é a diferença entre ele e as pessoas que ele combateu? Nenhuma. Os objetivos no final eram o mesmo, somente a forma de conseguir era diferente. É claro que Maximus não viu nada dessa glorificação a sua pessoa, já que ele morreu. Mas o filme, não podia ter criado essa imagem por completude de obra. Com isso, além de Gladiador tem um final extremamente melodramático e excessivo, o filme ainda contraria tudo o que Maximus representou no filme. Sendo assim, Gladiador quebra a segunda parcela importante no filme: a narrativa. Só que dessa vez, de um jeito estrondoso.
O Sentido da Vida
4.0 327 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
THE CRIMSON PERMANENT ASSURANCE
O filme abre com um curta muito bem filmado e pontual, ilustrando a luta de velhinhos em Londres a fim de se desvencilharem de jovens e novos empresários no ramo de contabilidade. Numa cena divertidíssima, todos os velhinhos se rebelam, e vestidos de piratas, avançam com seu prédio/embarcação para uma metrópole. Metaforicamente, é como se os velhinhos fossem o antigo sistema financeiro que embora consigam conter os primeiros esforços de um novo sistema financeiro, acabam caindo à amplitude que essa nova estrutura toma. Podemos também relacionar os velhinhos com o país Inglaterra: com o final da sedimentação do capitalismo, os EUA acabam tomando o posto que antes pertencia à Europa. Mimeticamente, o que está sendo retratado é justamente estas últimas investidas do Velho Mundo de manter seu poderio inicial sobre o Novo Mundo; o que dá errado. Analisando econômica ou politicamente, o fato é que estas é uma das cenas mais bem filmadas em todo o filme, já que a noção de superioridade está totalmente inserida no posicionamento das câmeras, já que em momentos que os velhinhos estão no controle, vemos câmeras pegando os mesmos de baixo para cima, como se aumentássemos a figura deles, da mesma forma que os engravatados acanhados são pegos de cima para baixo, em tom de inferioridade.
O MILAGRE DO NASCIMENTO (PARTE I)
Após uma cena inicial estupenda, passaremos por uma primeira metade ainda melhor do que já visto anteriormente: os médicos mais interessados em aparecerem bem para seu chefe e para os jornais, executam um procedimento de parto como se a criança fosse só mais uma, ironizando totalmente a noção do título da esquete. Nessa mesma esquete ainda teremos uma frase final magnífica:
"- É um menino ou uma menina?"
"- Eu acho que está um pouco cedo para começar a impor papeis, não acha?"
O MILAGRE DO NASCIMENTO - PARTE 2: O TERCEIRO MUNDO
Em poucos segundos, seremos transpostos para uma das esquetes mais hilárias do filme, em que milhares de crianças cantam como se estivessem num musical da Disney. A alegria, a coreografia, as cores se refere a uma música sobre sêmen. Sêmen! É nesta esquete em que teremos a primeira crítica à religião, que ao impor dogmas, acaba cegando a natureza e individualidade dos seres humanos. E nesta esquete também que temos um dos principais embates da humanidade (que não à toa estão justamente na esquete do Milagre do Nascimento): religião e ciência. De um lado, a religião com a forma a agir em relação à prática sexual, e de outro, a ciência ao inventar uma das maiores revoluções sexuais de todos os tempos, a camisinha.
CRESCIMENTO E APRENDIZADO (PARTE II)
A discussão sobre sexo se prepondera também sobre esta esquete, em que uma turma totalmente ingênua em relação ao sexo, faz com que o professor tenha que ilustrar um coito de fato. O interessante a se pensar desta esquete é justamente a forma como o ensino é tratado nas escolas: vários professores acabam trazendo experiências científicas impalpáveis à realidade dos alunos. Da mesma forma, se o mundo desconhece o sexo em razões práticas, ou mesmo, se tivéssemos um mundo dominado pela religião, aulas como estas não seriam tão longínquas de nossa realidade, afinal, é parte da vida e do aprendizado.
LUTANDO ENTRE SI (PARTE III)
Ainda na primeira metade do filme, temos uma crítica fervorosa à guerra e à honra. Em um dos momentos, um dos oficiais fala que levaria um raio se o exército não fosse importante para a civilização; e, ele acaba tomando. Logo em seguida, um oficial acaba marchando sobre o campo sozinho, porque a sua honra, a cegueira que o Estado impõe a combatentes o faz marchar (esse mundo fechado pode ser relacionado com a religião na esquete do musical sobre sêmen). Mas é de fato a última parte da esquete que temos a parte mais ácida em relação a esse arco, já que vemos oficiais sossegados enquanto o batalhão é destroçado por nativos. A honra, que é tão difundida pelo Estado, e pelos oficiais, já que eles são os exemplos a serem seguidos, é totalmente desfeita. Enquanto oficiais andam calmamente pela batalha, o resto do batalhão é destroçado. A ideia não é que um exército é forte unido, que as estratégias só são realizáveis com todos juntos? Então, essa honra não existe. Ao final desta esquete temos uma das primeiras cenas não-coesas do filme: uma discussão longa com dois homens vestidos de tigre em questão da perna roubada. Para mim, esta cena além de tirar todo o clima sarcástico em relação ao exército e aos oficiais, ainda cria uma discussão incoerente com o que veio antes e o que viria a seguir no filme.
O MEIO DO FILME
Este é um momento bem divertido do filme, porque vemos que além de Monty Python brincar com vários ramos da vida, ele ainda brinca com o que é fazer cinema, parando no meio do filme para dizer que está no meio do filme. O momento em si é totalmente surreal, já que somos postos a procurar um peixe que não existe, ao mesmo tempo que três figuras bizarras aparecem a nossa frente. E o pior, nós ficamos de fato procurando o peixe (atrás do sofá, na tromba do elefante). O divertido é que Monty Python brinca com a nossa atenção, já que a sala da mulher que fala que estamos no meio do filme está, tem um vaso com uma mão segurando as flores. Se formos levar a uma instância maior: quantas coisas acontecem ao nosso redor que nem percebemos, que é de fato uma discussão que será levantada mais a frente no filme.
MEIA IDADE (PARTE IV)
Aqui, dois adultos decidem ir a um restaurante que oferece assuntos a se falar. A reflexão desta esquete tangencia justamente o rigor e desumanização das pessoas, já que as mesmas não conseguem nem ao mesmo iniciar uma conversa, fazendo com que esta seja o prato principal da noite. Mais uma vez, levada a uma instância maior, esta esquete representa justamente a falta de comunicação entre os seres humanos (Dr. Fantástico (1964) é um ótimo filme sobre o tema, e uma ótima comédia-sarcástica também). A falta de comunicação que faz com que se iniciem guerras, que cria filhos atrás de filhos e que impede dois seres humanos de iniciarem uma conversa saudável num jantar.
TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS VIVOS (PARTE V)
O Sentido da Vida, embora cometa um deslize ou outro, anda perfeito, pelo menos até aqui. Nas três seguintes esquetes teremos situações totalmente destoantes do resto do filme, tanto como obra, como por nível de argumentação da crítica. Na primeira esquete, dois enfermeiros entram na casa de um sujeito a fim de retirarem o fígado, detalhe, com este vivo. A parte mais engraçada da esquete é quando um sujeito que parece muito com um Willy Wonka da Fantástica Fábrica de Chocolate, sai de uma geladeira e passa por uma série de surrealidades a fim de explicar a insignificância do ser humano em relação ao tamanho do universo. A cena na verdade é bem divertida, além de criar uma metáfora da criação do universo com uma mulher muito interessante, se não tivesse como intuito fazer a mulher querer doar seu fígado também. Eu, sinceramente, não vi graça em enfermeiros retirando um fígado de um homem vivo a força. Será que eles estavam querendo criticar as pessoas que não leem direito as coisas em que se metem, mas até aí, o homem mesmo grita que estava escrito que o fígado seria doado assim que ele morresse. Será que ele estava querendo criticar o trabalho desses enfermeiros, que assim como os primeiros parteiros do filme não se importavam com o ser humano? Eu não vi essa crítica lá, além dessa ser uma profissão de muito respeito, já que se trata em salvar vidas. Para mim, a cena foi articulada de um jeito espalhafatoso para tirar risos. Não deu muito certo...
ANOS DE OUTONO (PARTE VI) / O SENTIDO DA VIDA (PARTE VI-B)
Mas nada, repito, nada é mais espalhafatoso do que a cena que viria a seguir. Nada! Após ouvirmos uma música totalmente sem sentido para a situação sobre pênis, vemos um cara vomitando, e vomitando, e vomitando. Gente, o que aconteceu com aquelas cenas divertidas e sarcásticas da nossa realidade que estavam no começo do filme? Será que Monty Python chegou a um momento em que eles simplesmente cansaram do que estavam fazendo e decidiram enfim nos impor a rir pelo grotesco? No começo da cena, eu imaginei que Monty Python criticaria os ricos que chegam até mesmo a vomitar para conseguir comer os diversos requintes da culinária, enquanto outros nem o que comer têm, mas me enganei totalmente. Não vejo sentido nessa esquete, não acho essa esquete engraçada, e muito menos equiparada com as que a precederam. A parte B dessa esquete já é bem mais engraçada, já que cria-se todo um suspense a fim de descobrirmos o sentido da vida, e no fim, após andarmos muito (mais uma brincadeira com o fazer cinema, já que sempre quando temos uma cena assim, somos logo cortados para o destino sem rodeios), acabamos não descobrindo nada. Eu achei a cena engraçada porque ela se mostra bem despretensiosa no final do seu desenrolar. Mas no mais, não a vejo como um grande complemento à narrativa.
MORTE (PARTE VII)
Esta esquete começa de um jeito repulsivo, com mais uma vez, não acrescentando em nada à narrativa, em que um homem decide como prefere morrer, escolhendo então fugir de mulheres nuas, caindo por fim num caixão. O final dessa parte comenta que o cara era machista e tudo mais, sem se dar conta (ou se dando conta, sendo assim proposital) que ao mostrar isso, de um jeito irônico, o filme por si só também está sendo machista. Qual é de fato a necessidade disto para o filme? A cena animada das folhas é muito mais significativa do que esta. Mais uma vez, Monty Python tenta nos fazer rir por situações grotescas. Depois de uma série de erros, O Sentido da Vida consegue por fim retornar aos eixos (é claro que não na mesma maestria inicial, mas volta), mostrando um diálogo bem divertido de um conceito bem antigo, principalmente na Idade Média: o encontro com a Morte. Repare que até mesmos os elementos (a cabana, a decoração) parecem remeter a uma época da Idade Média, com o detalhe de que os presentes estão vestidos de uma forma bem moderna, além de possuírem carros. Este contraponto entre antigo (Morte) e o moderno (pessoas modernas) é de fato bem cômico, pois o encontro com a Morte, acaba de fato sendo um encontro, pois os indivíduos parecem nem se importar com a presença dela até o momento em que eles são avisados que morrerão. A Morte, embora imponente e assustadora parece não ter o domínio da situação, sendo até mesmo perguntada o porquê dessas pessoas terem morrido. A banalização dos costumes é algo demarcado pelo desenvolvimento da sociedade, e ela é de fato muito engraçada ao ser apresentada justamente em relação à Morte. O mais divertido ainda é o lugar onde estas pessoas vão parar, que no caso, é a mesma recepção daquele casal que não sabia sobre o que conversar. Juntando todas as pontas, temos um pessimismo enorme em relação à humanidade, pois se de um lado temos uma alta filosofia e teologia a respeito do que viria a ser a morte, no filme, vemos ela banalizada, assim como a Morte (morte é diferente de Morte), como se fosse só mais uma passagem da vida. Além disso, a religião que tem um papel até mais importante no que é morrer do que a filosofia é mais uma vez banalizada quando descobrimos que todo dia é Natal. Se o Natal que é uma data importante para a religião (cristã, no caso), e no Céu vemos uma banalização do que é Natal, é como se esse final banalizasse também a religião. Por fim, o que quero dizer, é que é como se tudo o que acabássemos de ver nos minutos anteriores fosse banal. Como se nada tivesse sentido, já que a vida é um caminho sem volta, simplesmente para ser vivido. Mais nada.
FINAL DO FILME
Dessa forma, quando voltamos a moça do meio do filme, concluímos de fato essa ideia de banalização, pois a resposta do sentido da vida está numa carta de um programa de televisão, com os dizeres de, adivinhe só, coisas banais e casuais. Sem perder o momento, o final ainda brinca mais uma vez com o que é fazer filme, dizendo que eles têm que colocar um pênis para tirarem as pessoas da frente da TV a fim de irem no cinema verem coisas que a censura televisiva não deixa.
Monty Python - O Sentido da Vida (1983) é um filme afiadíssimo, sarcástico e cru, mas que acaba se perdendo em pequenos pedaços da trama ao cair em piadas grotescas e espalhafatosas demais (até mesmo para os parâmetros de Monty Python).
Os Fantasmas Se Divertem
3.9 1,7K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Beetlejuice (1988) é um filme divertido, despretensioso e pulsante. Seguindo o mesmo visual que empregaria em A Noiva Cadáver (2005), Tim Burton consegue criar um mundo dos mortos colorido, embora burocrático; surreal, embora mundano. Uma das experiências mais divertidas deste filme é descobrir como cada um dos indivíduos chegou nesse mundo dos mortos: afogados, decapitados, suicídios, queimados. Embora se trate de milhares de formas de morte, não nos enojamos ou surpreendemos em nenhum momento, pelo contrário, rimos. Nos dois filmes citados, temos um mundo dos mortos muito mais agradável que o dos humanos, seja pela paleta de cores sempre vívidas e fortes em contraste a um tom seco e rígido do mundo dos vivos, ou por cenários inclinados e labirínticos que dão um tom de mais casualidade do que a perfeição humana. A ridicularização do que é o mundo dos mortos é tamanha que os humanos a querem utilizar como meio de distração e entretenimento. Em Beetlejuice, embora tenhamos personagens insatisfeitos com suas realidades (Lydia (Winona Ryder) com o mundo apático e ostensivo dos humanos, e Adam (Alec Baldwin) e Barbara (Geena Davis) com um mundo novo e desconhecido dos mortos), as maiores lamentações e caricaturas parecem vir do mundo dos humanos, já que nenhum adulto do filme parece se importar com outra coisa que não seja dinheiro (até mesmo a corretora de imóveis chata do início (Annie McEnroe) é assim). Mas mais do que isso, o fato do mundo dos mortos ser algo como uma extensão do mundo dos vivos (o que em Noiva Cadáver é uma quebra/passagem), já que os mortos mantém-se no mesmo núcleo de convivência que viviam antes de morrerem, indica toda uma passagem de costumes do mundo dos vivos para o mundo dos mortos (toda a burocracia, filas imensuráveis, códigos), como se a vida não deixasse nem a morte descansar em paz. Uma frase de Adam dá uma falsa ilusão do que é estar morto, na lógica deste filme: "Não precisamos mais nos preocupar com isso, estamos mortos!" Todo o desenrolar do filme indica que essa ideia não era de todo verdadeira, e conclui de fato esta ideia que vim desenvolvendo.
O mais divertido é a ideia/metáfora da maquete: a função básica de uma maquete é simular a vida real. Se transpormos para a ideia geral do filme, o mundo dos mortos parece mais como um simulacro do mundo dos vivos, uma maquete. Ou será que não é o contrário? O mundo dos vivos é que na verdade é uma maquete do que virá no mundo dos mortos. Se for assim, a ideia animada e excitante do que é a morte nos filmes de Tim Burton meio que se desfaz. Outra ideia que ajuda a incrementar esta ideia de maquete é justamente o papel do exorcista no filme. Além de termos o habitual exorcismo de fantasmas, temos o bio-exorcismo, com Betelgeuse (Michael Keaton). Disto, decorre a ideia da negação do outro mundo, como se ambos estivessem ávidos por reconhecimento, por afirmar seu espaço natural no meio. Qual é de fato o melhor mundo, o mais divertido, o mais conveniente? Fica a questão. No mais, temos um filme divertidíssimo, num ritmo incansável e dinâmico.
Selma: Uma Luta Pela Igualdade
4.2 794SPOILER DETECTED!!!
Selma (2014) é uma cine-biografia concisa, sentimental, mas mais importante do que estas coisas, humana. Diferentemente de filmes como A Teoria de Tudo (2014) e Sniper Americano (2014), Selma não cai num endeusamento da figura em questão. Muito pelo contrário, temos uma visão mais completa do ser humano que Martin Luther King Jr. (David Oyelowo, trazendo uma figura que sempre fora retratada forte e imponente, como além de tudo, insegura. As cenas em que vemos King se pronunciando são de fato bem imponentes, mas é quando estamos dentro da casa, presenciando discussões com sua mulher (Carmen Ejogo), que vemos que embora incisivo, King era um homem indefeso e preocupado) foi.
A proximidade de King com Deus é um elemento narrativo muito interessante, pois sabendo de sua história, King é quase como se fosse a personificação de Deus para seu povo. No entanto, como disse acima, sendo a fragilidade uma das principais características de King retratadas no filme, o endeusamento se torna mais belo, justamente por podermos identificar empatia em sua humanidade. King é um homem como todos nós, que lutou e conquistou de pequenos em pequenos passos o direito intrínseco a qualquer ser humano numa sociedade moderna: a igualdade jurídica. E repare que eu disse jurídica, pois em mentes racistas nunca haverá um equiparamento. Numa sociedade como a americana, assuntos como este serão sempre um soco no estômago, já que os EUA foram um dos precursores a defender as chamadas liberdades civis (o interessante é notar como a história se repete: os ingleses exigem a Magna Carta ao governo, assegurando maior liberdade à população. Meio século mais tarde, serão os americanos a reivindicar posse de suas terras baseados nos mesmos direitos. Quase dois séculos depois, os americanos serão os tiranos da liberdade racial, travando uma das batalhas mais ferrenhas acerca do racismo - o divertido é que uma cena de discussão entre King e o presidente dos EUA (Tom Wilkinson), temos um quadro de George Washington, como se enfatizasse ainda mais essa noção luta pela liberdade que ficara no passado). É por isso que sempre que histórias de liberdade racial são trazidas ao cinema, as opiniões se dividem em dois polos bem definidos: os indivíduos que enaltecem que mais e mais histórias sobre a injustiça social sejam trazidas à tona a fim de exporem a voz de um povo sempre calado e aqueles que cansados de verem histórias de submissão, de brancos que ajudam negros a saírem de sua condição de inferioridade (vide Histórias Cruzadas (2011)), ou de imagens que façam brancos sentirem culpa e dó de seu passado, defendem histórias casuais vistas no "cinema branco" (o mais próximo que temos disto são os diversos filmes com Denzel Washington sobre máfias, dramas ou mesmo, futuros apocalípticos). Peguemos Histórias Cruzadas por exemplo: aqui temos a história de boas e injustiçadas empregadas que diante de um mundo totalmente branco, necessitam da ajuda de uma Messias branca para tirá-las de sua condição. O problema deste filme é justamente o maniqueísmo enraizado em todas as personagens do filme: os brancos são maus, e por isso, devem acabar mal. Os negros são bons, por isso devem acabar bem. Comparemos agora Histórias Cruzadas com Fruitvale Station (2013). Neste filme, embora tenhamos um personagem que injustiçado pela condição em que nasceu, não é justamente um perfeito cidadão, na verdade, ele faz coisas fora da lei, tem amigos maloqueiros e uma família desestruturada. A complexidade deste personagem é bem maior que as das empregadas de Histórias Cruzadas, mas que fique claro um coisa: quando digo que uma personagem deve fugir deste maniqueísmo não quero dizer que o negro precisa ser um porra-louca total para ser um personagem digno. Quando digo isto quero dizer que a personagem deve ser unicamente humana, afinal, humanos não são santos. Selma, por toda a história e espiritualidade de Martin Luther King Jr. poderia acabar num filme horrivelmente maniqueísta, mas ele não o é (embora ele não seja maniqueísta, uma coisa que me incomodou consideravelmente no filme foi a forma caricatural e ridícula em que os políticos são retratados. Se você tirasse o terno e a pompa, eles pareceriam palhaços, e isso me irritou um pouco). Se não bastasse a personalidade insegura e tensa de King ainda temos em plano de fundo vários grupos negros que não concordavam com as posturas de King (Malcolm X, grupos estudantis, líderes locais). King deu muito certo como poderia ter dado muito errado. A diversificação das facetas deixa a narrativa muito mais interessante.
Além disto, o trabalho técnico do filme contribui e muito para que o sentimentalismo da cena seja ainda maior. Este sentimentalismo não é recorrente, nem exagerado quando aparece, mas é por aparecer em poucas vezes que a sensação causada é bem maior (pegue um filme de terror por exemplo. Se até o assassino de fato agir nós formos tomando pequenos sustos, o susto final não seria tão impactante se esses pequenos sustos fossem, na verdade, unicamente suspense. A analogia é a mesma). Uma cena em especial me comoveu bastante. Ela é rápida, porém efetiva. Quando os negros de Selma se reúnem para fazer um protesto noturno, somos postos frente à frente com uma represália intensa. Contra uma luz forte e incisiva, policiais ao surpreenderem o grupo, começam a bater indiscriminadamente com seus cassetetes contra os negros da área. O detalhe técnico é que não vemos os negros serem espancados, mas sim as sombras deles sofrendo angustiadamente a violência. Se não se tratasse de uma cena tão brutal, a composição de luzes e sombra seria uma obra à parte, já que mesmo com uma luz forte não conseguimos ver os alvos em questão. Essa mesma ideia será utilizada na represália na ponte, com a luz sendo substituída pela fumaça. Metaforicamente, os negros são tão obscuros/esquecidos nesta sociedade que não conseguimos nem ao mesmo vê-los sendo agredidos. O tom pastel recorrente em todo filme que poderia retratar um ambiente agradável passa a ser mais como um inferno, como se esse alaranjado fosse um inferno na Terra para estes negros (se formos reparar bem, quando temos a cena das 4 garotas na Igreja, a saturação avermelhada/alaranjada é ainda mais aparente, enfatizando ainda mais essa sensação de claustrofobia). Uma edição de som consistente ainda aumenta a figura monstruosa da polícia que ao invés de proteger os negros, acaba amedrontando-os.
Selma é um filme com uma atuação principal maravilhosa (ainda não entendo o que o Bradley Cooper está fazendo lá...), que não se preocupa em dar rodeios a fim de endeusar ou criar sentimentalismos desnecessários à trama. Criando um traçado justo e direto de um dos momentos mais importantes da luta dos direitos raciais dos EUA, Selma ainda se preocupa em manter a lenda sob o conteúdo, criando um protagonista humano em lugar de salvador.
Gremlins
3.5 861 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Gremlins (1984) abre com um clima noir, em que ouvimos um voice-over de um pai procurando um presente de Natal para o filho. Entre fumaças e luzes vermelhas agressivas, nosso personagem anda por Chinatown como se tivesse à procura de um criminoso. A trilha sonora (um trabalho esplêndido de Jerry Goldsmith, que além de nos proporcionar um dos temas mais famosos do cinema ainda soube cadenciar momentos de tensão e suavidade, como por exemplo com os temas natalinos em tons mais fúnebres, ou na cena de perseguição entre Billy e Listra (chefe dos Gremlins), em que quando este último está na tela, ouvimos uma trilha de bem mais suspense daquela que ouvimos quando Billy está em seu encalço), que até começa agradável, se transforma misteriosa e tensa, assim que nosso personagem diz que contará uma história que ninguém possui igual. Ao entrarmos num estabelecimento de um beco qualquer (com várias luzes vermelhas também), Randall Peltzer (Hoyt Axton) logo se mostra um charlatão, vendendo bugigangas que mais quebram do que funcionam, quando não explodem. O interessante é que embora ele venda coisas misteriosas e "inovadoras", ele se interessará da mesma forma por algo impalpável em seu mundo, um Mogwai. De uma forma muito bem construída (muito por conta dos aspectos técnicos que citei), Gremlins começa de uma forma misteriosa e instigante que fará com que nosso interesse se perpetue pelos próximos minutos.
Nas próximas cenas, conheceremos vários dos principais personagens do filme de uma forma bem natalina, e totalmente contrária a da ideia inicial do filme: Billy (Zach Galligan), o protagonista infantil, Kate (Phoebe Cates), a garota pronta para beijar Billy e Murray Futterman (Dick Miller), o bêbado paranoico. Sem contar também, os adultos "normais" e maus que só se importam com dinheiro (até mesmo Randall é assim, querendo transformar os Gremlins em dinheiro). Todos estes, personagens bem caricatos do melhor que os anos 80 pode nos oferecer (não estou criticando, muito porque eu amo os anos 80). São indicadas três regras que não se pode quebrar (que é óbvio que serão quebradas de uma forma ou de outra), bichinhos fofíssimos que acabam se tornando em criaturas horrendas e confusão, muita confusão. Ok, até aqui o filme não parece nada de mais, do que simplesmente uma diversão de fim de tarde (o que cumpre muito bem também). No entanto, existem detalhes narrativos e metáforas que enriquecem muito a simples história de monstros que atacam uma vila pacata.
A primeira, e mais óbvia, é justamente a ideia que nos é passada ao fim do filme: os seres humanos não estão preparados para os presentes que nos são dados: foi assim com o Fogo do Olimpo, foi assim com o Paraíso de Deus e foi assim com os Gremlins. Nós, humanos, querendo ou não, somos competitivos, sedentos por mais, por ter. Pegue por exemplo a Sra. Deagle (Polly Holliday): ela aluga casas para várias pessoas da cidade, possui outra bem luxuosa e mesmo assim não consegue soltar um sorriso no Natal (não lembra o avarento protagonista de A Christmas Carol)? Tudo bem, eu concordo que o filme romantiza demais o que é Natal, mesmo em cenas que vão contra o espírito natalino (não dá uma dó danada de Kate quando conhecemos a sua história? É, bem, agora que ela contou, ela já pode beijar Billy. Nada como o Natal sarando feridas), mas o interessante é notar a simbologia (não a religiosa, mas sim a vulgar) natalina: uma época em que pratica-se o bem, em que presenteamos nossos queridos. É muito interessante que a humanidade seja presenteada com uma dádiva (como o chinês diz) exatamente no Natal. E o mais divertido é a dádiva/loucura tomando conta da cidade, justamente na época de Natal. (Pô, mais aí você vai me perguntar: isso não é quebrar a romantização do Natal? Sim, se o final não fosse aquele em que a família fica feliz embora a cidade inteira esteja debaixo de fogo. Afinal, é Natal - eu só queria dizer que eu gosto sim do Natal, só estou dizendo que a romantização do Natal no filme é grande, não que isso seja algo negativo para ele). Uma segunda ideia interessante recai justamente à pessoa do bêbado que vê e imagina coisas. Atire a primeira pedra quem nunca viu uma figura dessas na rua. Vai que de fato aconteça o que este cara falou por toda sua vida. E agora? Nós só caracterizamos algo ou alguém de louco, sabendo da conjuntura atual do mundo. Não imaginamos que exista alienígenas, porque de fato, nunca vimos um. Não acreditamos no Papai Noel, porque nunca falamos com um. Mas e se eles existirem, e nós só não tivemos o tempo ou a felicidade de encontrarmos. Será que os loucos são realmente loucos então? Imaginar estas possibilidades pode parecer coisa de louco (opa, mas não é?), mas é a partir de loucos que o mundo virou o que ele é hoje (pegue Hitler ou George W. Bush por exemplo). O mais interessante é que tem uma cena em específico que esta ideia é bem presente: quando Kate está saindo do bar e se depara com um dos Gremlins com uma arma, ficamos num impasse, até que este atira, acertando um quadro de um avião que parece se assemelhar com um da Segunda Guerra Mundial. O engraçado é que minutos atrás, Futterman dizia que os inimigos haviam plantado Gremlins nos aviões de guerra. A metáfora do tiro no quadro é sem dúvida muito interessante.
Por fim, a última, mas a mais interessante metáfora se dá justamente na figura dos Gremlins. O que são Gremlins? Bichinhos fofinhos que tornam-se monstros se alimentados depois da meia-noite (só uma reflexão minha babaca: se alimentarmos depois da meia-noite, será antes da meia-noite do dia seguinte, mas ok, pára, sem racionalizar a magia do cinema :P ). Resposta correta, mas tentemos achar uma ideia mais profunda por trás desses monstrinhos. Para isso, vamos as 3 restrições impostas sobre eles. O que são elas? Regras que restringem Billy de fazer certas coisas com os Gremlins. Lá em cima disse que Billy é bem infatilizado. Repare, o garoto deve ter mais de 18 anos e recebe de presente de Natal um bichinho felpudo e fofinho como mascote. E ainda lhe dão regras de como proceder com ele. Billy é representado como uma criança. Uma criança que não pode fazer isso e aquilo, justamente como os Gremlins. Se Gremlin está para Billy, e Billy está para criança, logo Gremlin está para criança. A criança que precisa obedecer uma série de regras de convivência, mas que aos poucos vai descobrindo que a vida é muito mais do que o conforto da casa dos seus pais, e começa a desobedecer algumas coisas. Com estas desobediências, ela vai conhecendo o mundo, e formando a pessoa que ela será daqui a alguns anos. Esta criança vai então se transformando, se metamorfizando. Bingo! Os Gremlins são metaforicamente crianças que vão aos poucos se tornando adolescentes. Não existe cena melhor que a do bar para representar isto: Gremlins/adolescentes fumando, bebendo, jogando, conquistando parceiros, brigando, tudo num tom festeiro e contagiante. Troque os Gremlins que estão ali por jovens dos anos 80, não parece vários outros filmes da mesma década? Se formos levar por esse lado, a frase final de Randall toma um significado totalmente diferente: "Confira seus armários, olhe debaixo da cama, porque você nunca sabe quando um Gremlin está na sua casa." As crianças amadurecem, tornando-se adolescentes quando menos se espera, e quando isso acontecer, a vida nunca será mais a mesma.
Obs.: embora adolescentes, "eu vou, eu vou, eu vou para casa, eu vou..."
Leviatã
3.8 299SPOILER DETECTED!!!
Se tem uma cena que resume Leviatã (2014), esta cena é justamente quando Roma (Sergey Pokhodaev) pergunta aos amigos de sua madrasta o motivo de eles quererem a sua guarda: "Vocês me querem pelo dinheiro, não é." Leviatã é aquele tipo de filme que você entra pensando que a vida é horrível e sai dele, pensando que horrível é pouco. Em poucos mais de 2 horas somos apresentados a diversas histórias entrecruzadas que nos fazem refletir sobre o poder efetivo das instituições e dos próprios conhecidos em nossas vidas.
Desde a abertura, com um clima pouco hospitalar no ar, somos bombardeados de imagens sobre uma cidade pacata e fria (fato ressaltado no tom fúnebre e lento de cada uma das paisagens que nos são apresentadas). Somos apresentados a Kolya (Aleksey Serebryakov), uma granada prestes a explodir no primeiro sinal de descontentamento. Um homem muito apegado à rotina e ao bucolismo do distanciamento da cidade. Vadim (Roman Madyanov), um político importante da região cisma com a propriedade de Kolya, tentando se apossar dela a qualquer custo. Este, tem como único e último recurso, seu irmão, Dmitri (Vladimir Vdovichenkov), advogado da cidade grande que criará uma barreira inicialmente eficaz contra Vadim. Neste meio ainda temos Lilya (Elena Lyadova), uma mulher misteriosa, com ares sempre preocupados e frágeis, que vista entre a fúria do marido, o desacato de um filho que não é seu, tenta se apoiar na primeira pessoa que mais lhe dá atenção: Dmitri. O desenrolar destes acontecimentos, embora lento, se mostrará catastrófico e claustrofóbico para todas as partes (o que é ressaltado pelos planos mais fechados que substituem em grandes-angulares do começo do filme, como se cada personagem estivesse em sufoco). Será que o motivo de Dmitri ter vindo é porquê ele queria de fato ajudar o irmão, ou será que ele veio para se encontrar com Lilya? Lilya de fato se suicidou, não aguentando a pressão que os fatos lhe impuseram ou ela na verdade fora assassinada? E se de fato, ela tenha sido assassinada, quem teria feito isso? Estas são alguns exemplos de perguntas que podem ser feitas da narrativa, embora todas sem respostas. E isso é proposital. Se a ideia é retratar uma sociedade corrupta (e por corrupta entenda, corrupta em todos os planos, não só politicamente), nada melhor do que expor todos os enlaces das histórias com algumas omissões, para que nos questionemos se a corrupção é maior que a vista. Fazendo essa analogia para a vida real, é como se os corruptos omitissem seus atos a fim de que as pessoas não suspeitem dela, mesmo que já suspeitem. O mistério, a lentidão são escolhas fundamentais para aumentar o suspense dos atos das personagens, e portanto a suposta corrupção.
Um ponto forte do filme é retratar as instituições fragilizadas, ou mesmo ridicularizadas. Temos por exemplo, uma família totalmente desestruturada pelo adultério de Lilya. Mas se pararmos para pensar melhor, a família já era um tanto desestruturada, já que víamos um filho que não se dava bem com a madrasta, e esta, totalmente desiludida da situação em que se encontra. Temos também um político irascível e tempestuoso, mas que a todo momento precisa escutar conselhos de um bispo. Este, por sua vez, é um sujeito bem caricato de uma pessoa que vive totalmente para a religião, como se tudo fosse resolvido pelas mesmas palavras: "Deus quis". É claro que um indivíduo como ele, acredita de fato que tudo se origina da palavra de Deus, mas a verbalização desta crença soa muitas vezes ridícula, já que a solução de qualquer problema de Vadim se resume no mesmo argumento reformulado. Se formos pegar todos os discursos deste homem e englobá-los em somente um, parece que na verdade temos um único discurso sempre. Um homem como Vadim, que não dá ouvidos a ninguém, ouvir exatamente o mesmo sermão parece contrariar a pessoa intolerante que ele é. Em certo momento do filme, Dmitri diz que Moscou embora seja grande, ainda assim tem as coisas bem interligadas. Se num microcosmo como este, temos tantos problemas como estes, porque numa metrópole como Moscou os problemas também não podem coexistir. O diretor deste filme é com certeza cético quanto a qualquer instituição religiosa e política (vemos um quadro de Putin associado ao irascível Vadim, ao mesmo tempo que Lênin figura como uma das pessoas a ser acertada por tiros). À essa altura, acho que falar que o filme é pessimista seja um pleonasmo. O número de infortúnios é tão grande que no final é melhor ficar preso numa cela, fora do mundo, do que de fato vivê-lo (é claro que a prisão também é uma instituição interligada ao governo, mas quero somente a ideia do enclausuramento).
Querer ter a propriedade ou a mulher do outro a toda custa são características que denotam uma sentimento de inveja. E não é a toa que o nome do filme seja Leviatã, já que na passagem bíblica, esse monstro representava justamente a inveja. No entanto, muitos anos mais tarde, um sujeito chamado Thomas Hobbes escreverá um livro que diz respeito à sociedade e o governo homônimo a esta fera. Neste livro, Hobbes discute a definição de contrato social, teoria que explica a formação de um governo em que os homens dentre outras coisas abrem mão de sua liberdade para que um comandante absoluto (no caso de Hobbes) governe a sociedade para o bem da mesma. Como dito acima, o filme é bem pessimista e cético política e socialmente. Dando ao filme o nome de Leviatã, Andrei Zvyagintsev ilustra aonde este contrato social nos levou. Vivemos numa sociedade deturpada em que o governo que deveria propiciar as mesmas condições a todos, por ser corrupto, faz com que homens invejem outros homens, desestruturando toda a estabilidade que o contrato social buscava. Leviatã (filme) consegue então pontuar questões humanas (inveja) e políticas (contrato social) baseado num comum religioso (Bíblia). Se não bastasse, Lilya é encontrada no mar (local onde o monstro das águas vive), Roma chora suas angústias perto de um esqueleto de um animal marítimo, sem contar que a Kolya descobre a traição perto de uma cachoeira (água). Após presenciarmos cada uma destas histórias, o filme finaliza com as mesmas imagens do início dele. Em primeiro plano, encaramos as referências ao mar/água de uma forma mais tensa do que já era, no entanto, a ideia mais sutil é ainda mais aterradora: terminamos o filme com as imagens que vemos no começo, como se fechássemos um ciclo. A tendência de um ciclo é se repetir. E se repetir. E se repetir...
Os Bons Companheiros
4.4 1,2K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Que Martin Scorsese foi, e sempre será um dos maiores diretores de todos os tempos, todos sabemos. O mais interessante é quando vemos os filmes de um mesmo diretor e começamos a achar padrões muito bem arquitetados em vários de seus filmes. Os Bons Companheiros (1990) é mais um dos filmes de Scorsese que segue a estrutura ascensão-declínio de uma forma muito bem estruturada (Touro Indomável (1980), Os Infiltrados (2006), O Lobo de Wall Street (2013), e até mesmo A Invenção de Hugo Cabret (2012) - retratando a parte miserável da vida de um dos primeiros cineastas do mundo).
Seguindo a vida de Henry Hill (Ray Liotta), vivenciaremos três décadas de subidas e descidas de um integrante ativo da máfia. Sem contar a cena inicial do carro, a primeira imagem que temos do filme são as dos olhos incisivos de Henry. E se seguirmos o ditado popular: "os olhos são as janelas da alma e o espelho do mundo" podemos logo perceber que o futuro deste garoto aguarda grandes momentos. Deste começo só queria que mais uma imagem ficasse guardada para o final deste comentário: os olhos verdes (quase os de Scarlett O'hara, a.k.a. Elizabeth Taylor).
Nos minutos seguintes, teremos várias imagens de como a máfia funcionava, os milhares de nomes que Scorsese faz questão de mencionar (como se cada integrante fosse importante para a corporação, como uma família). Vemos o prestígio que Henry por cada mafioso, como se cada um deles fosse um Batman ou um Homem-Aranha para uma criança. Um monólogo extenso sobre como os mafiosos levam uma vida bem mais fácil e lucrativa que a de um cidadão comum. Veremos todo o avanço de Henry na vida de uma máfia, passando de um "garçom" a um dos mais influentes indivíduos, simplesmente por se relacionar com os certos contatos e possuir o "dom" para o ofício. Alguns anos depois já podemos ver um Henry crescido, com alta-estima dentro da máfia, sendo um dos integrantes mais jovens de todo o esquema. Esta ascensão é tanto narrativamente muito bem construída a partir de cenas bem pontuais (como a perda da "virgindade" = ir preso), como também é esteticamente bem arquitetada. Na cena em que Henry decide finalmente sair decentemente com Karen (Lorraine Bracco), temos uma sutileza imagética muito boa. Enquanto Henry percorre os corredores e salões que levaram até o salão principal, além de vermos Henry distribuindo dinheiro assim como James (Robert DeNiro) pouco antes fazia, vemos um enorme plano-sequência de todo este caminho, como se fôssemos meros coadjuvantes no meio do reino dele. Se não bastasse isto, ainda temos a forte presença de uma cor em específico: o vermelho. As paredes são vermelhas, os ternos dos garços são vermelhos, as caixas são vermelhas, em suma, tudo por que passamos naquele corredor é vermelho; até mesmo a luz ambiente do salão de jantar. Essa cor não é posta por mero acaso, já que mais para a frente, ela aparecerá bem forte no carro do vizinho que tenta se aproveitar de Karen e nas cenas em que os três mafiosos enterram e desenterram um outro mafioso. Em todas estas cenas, temos uma ideia em comum: a ascensão de Henry. Essa cor é justamente este poder, respeito e luz que Henry possui em todo seu processo de ascensão. O último momento em que isto aparece bem fortemente é justamente quando os três estão desenterrando o mafioso, em que vemos uma luz bem forte ofuscando todo o semblante (preocupado) de Henry. Analogamente à narrativa, é a partir deste desenterro que Henry começa a decair, e portanto, a cor vermelha, começará a cair da mesma maneira (eu concordo que Henry ainda participará de um grande roubo, mas se compararmos a influência que Henry tinha antes do episódio do desenterro do mafioso e depois, Henry parecerá ser só mais um mafioso dentro do conjunto, começando a ter problemas com a mulher e companheiros).
Ao mesmo tempo que visualizamos estas mudanças visuais, percebemos um desenvolvimento das personagens muito interessante. Tommy (Joe Pesci) continua explosivo, irascível embora veja que grandes acontecimentos começam a surgir, o que em James já é pouco diferente, já que embora ele nunca perca sua compostura, os sinais de preocupação são expressos em sua maneira sutil de querer controlar cada ação, desde a distribuição do dinheiro até o movimento dos companheiros. Henry e Karen terão evoluções muito semelhantes, e considerando que em alguns momentos, não só Henry aparecerá em voice-over (o que a primeiro momento me incomodou bastante, mas que com o tempo foi tomando uma impressão totalmente diferente), mas Karen também, isto é algo bem importante para igualá-los ainda mais (embora o mundo refletido no filme seja machista. O que quero dizer é que seguindo a lógica de que a máfia é uma família, o contrário, sendo incisivamente expresso na figura de Karen, acaba se tornando parte da máfia). Ambos, desesperados com a situação que o rumo da vida deles os está levando começam a se perder no mundo das drogas. Henry ao começo do filme afirma que só vai preso quem quer, ou melhor, quem quer deixar a mulher, que é exatamente o que acaba acontecendo com ele. Embora a prisão dele não seja por espontânea vontade, a ideia continua, já que a traição dele será recorrente até mesmo antes disso. E diga-se de passagem, traição carnal, já que vemos que ele não tem nenhuma intenção com as amantes dele que não seja sexo (a entrada de Henry, James e Paul (Paul Sorvino) na casa da primeira amante a fim de discutirem o problema que Karen está se tornando explicita essa ideia muito bem, já que o único que nem a beija é justamente Henry). Ao mesmo tempo, Karen que se inconformava com as mulheres dos mafiosos se importarem unicamente com banalidades, produtos e fofocas acabará ao fim se tornando a mesma mulher que repudiava.
Se a ascensão de Henry finda, a cor vermelha também começa a desaparecer, como disse acima, mas o mais interessante disto é que Scorsese apimenta ainda mais esta ideia imagética, colocando outra cor no lugar do vermelho que significará exatamente o oposto do que esta cor significa: o verde. À medida que Henry começa a afundar ainda mais, a cor verde começa a aparecer tão fortemente que as vezes chega a ocupar mais da metade da tela. E eu vou selecionar uma cena em específico para analisar e pontuar não só o uso desta cor, mas como de várias técnicas que incorporam mais ainda ao filme; a cena que eu particularmente acho a mais interessante e bem feita do filme (e não, não é a cena do "funny" do Pesci, embora ela seja bem engraçada): a cena que precede a prisão dos integrantes da máfia na lanchonete. A cena começa com uma câmera subjetiva trêmula se aproximando da mesa em que James já se encontrava. Esse andar preocupado não só dá mais tensão a cena como um todo como engradece a pessoa ou objeto que está no fim do caminho. Se repararmos nos arredores, percebemos que existe um caminhão verde enorme cobrindo quase a visão de todas as janelas. Utilizando-se da ideia do declínio, a sensação de fraqueza de Henry é ainda mais acentuada. Com o andar da conversa, Henry percebe que o trabalho que James propõe acabará sendo seu último trabalho, e aí temos um dos efeitos mais impressionantes do cinema, quando bem usados (e aqui é!): o Dolly Zoom (vou colocar um link na descrição de um vídeo que mostra o que é esta técnica). Esta técnica é usada normalmente em situações de fraqueza para engradecer ou diminuir alguém (Touro Indomável (1980)), oníricas (Poltergeist (1982) e O Abismo do Medo (2005)) ou mesmo em situações de catarse (Tubarão (1975)). E é nesta última categoria em que se encontra a Dolly Zoom de Os Bons Companheiros. É quando Henry descobre que James não é mais seu amigo que a câmera começa a se distorcer. Por fim, ao final desta cena a câmera começa a se distanciar da mesa, como se as relações que existiam na máfia fossem agora tão pequenas que a aproximação (tanto pessoal quanto estética) fossem ínfimas. Logo após isso, Henry, sem prognóstico de futuro, e prestes a ser morto, entregará todos os seus antigos companheiros para se salvar de uma condenação. Nesta cena Henry também se encontra de verde, e logo após isso, a câmera focará a nova casa em que ele morará, mas também em grande parte, o gramado verde dela, como se dissesse que o tempo de máfia de Henry chegou ao fim. Nesse meio tempo, teremos outros trabalhos técnicos muito interessantes. Primeiramente, a trilha sonora sempre embalada em ritmos alucinantes e festivos, quando do momento da prisão, a trilha que começava a aumentar, quando Henry decide voltar para buscar o chapéu da mulher, cessa bruscamente, assim que a câmera foca um policial apontando uma arma a Henry. Mas a técnica mais interessante é quando o monólogo de Henry, antes em voice-over acaba se mesclando com a fala do mesmo. Se o voice-over significava uma certa onisciência/onipotência de Henry sobre tudo que acontecia na história, com essa mescla, Henry é agora um sujeito normal, sem nenhuma característica especial, como que se reforçasse o fato de ele viver uma vida simples e justa na casinha mostrada.
Dito tudo isto, queria por fim levantar o título do filme: Os Bons Companheiros (similar ao título em inglês). Numa máfia, será que existe de fato o sentimento de família, irmandade que tantos mafiosos querem mostrar ou essa sensação é só uma máscara de interesse, como se a partir do momento que alguém corre perigo, o bom companheiro é aquele que salva a própria pele? O conflito entre uma ideia romantizada que quer ser passada com a realidade bruta que vemos. Henry, quando jovem, tinha certamente uma imagem romantizada do que viria a ser um mafioso, e seus olhos curiosos pontuavam muito bem isso. Mas será que os seus olhos verdes (declínio como aspecto negativo, logo, realidade) representam a janela da alma (a idealização de Henry) ou o espelho do mundo (a realidade da máfia)?
- Dolly Zoom: https://vimeo.com/84548119 (3:40 temos a cena de Os Bons Companheiros que contém esta técnica)
Touro Indomável
4.2 708 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Touro Indomável (1980) não é um filme para ser visto. Touro Indomável é um filme para ser visto e revisto infindáveis vezes. A história de Jake La Motta (Robert DeNiro), um boxeador habilidoso vive uma vida em que tudo é resolvido na base da força bruta, ou pelo menos, ele acha que é. Enquanto em outras mãos o filme poderia ter se tornado uma homenagem acalorada a este ótimo lutador ou uma crítica ferrenha a pessoa horrível que ele foi, nas mãos de Martin Scorsese, seguimos a vida de Jake como ela é. Cabe a nós ponderar se as imagens mostradas enfatizam um homem vitorioso, ou um monstro avassalador. Logo que abrimos o filme, veremos um dos enquadramentos mais bonitos e significativos para o filme, já que este resumirá tudo o que será mostrado acerca da vida deste homem (considero este o único momento do filme que vemos a vida de Jake por outra pessoa que não seja Jake), mas eu voltarei a comentar sobre isto mais a frente.
Muito parecido em questão de lógica, mais de 30 anos depois, com Lobo de Wall Street (2013), já que vemos um homem ascender rapidamente, da mesma forma que cai em perdição. Após um monólogo de um homem gordo e desfigurado que posteriormente assimilaremos a pessoa de Jake La Motta no futuro, somos logo cortados para uma cena de luta. Nestes poucos segundos, Touro Indomável já nos mostrou o destino de Jake, mas em uma camada metafórica, mostrou também que a vida é algo muito sutil; em um momento podemos ser o alvo de holofotes e discussões e em outro, um velho chato e repetitivo. Com um mise-en-scène impecável logo nos primeiros minutos vemos a condição de cada um na luta. Após ouvirmos o sinal do intervalo, uma câmera veloz se aproxima de Jake, como se este corresse contra o tempo para vencer, enquanto segundos depois veremos a mesma câmera bem mais devagar se aproximando do adversário, mais tranquilo com a vitória encaminhada. Só por este leve movimento de câmera percebemos quem está com o poder no momento. Estes movimentos de câmera acompanharão cada luta de Jake de formas diferentes, não somente aumentando a tensão de cada cena, como ilustrando a sensação de Jake em cada luta. Mais ao final do filme, quando vemos a luta de Jake contra Sugar Ray Robinson (Johnny Barnes) estas mesmas câmeras serão de vital importância para mostrar mais uma vez quem está controlando a luta, já que vemos uma Dolly Zoom (vou colocar um link na descrição de um vídeo que mostra o que é esta técnica) incrível em Robinson até este parece muito maior do que era, sem contar a fumaça e os holofotes atrás que quase nos cegam. Após uma série de cortes rápidos, ainda somos levados por uma câmera que começa no tórax de Robinson e vai parar na luva, a representação da força no boxe que o destruirá completamente. Cada quadro desta cena ajuda a enfatizar ainda mais a sensação de frenesi, clausura e fraqueza de Jake na situação. Para completar ainda temos uma fotografia em P&B que remete à época dos filmes de máfia, como se algo ou alguém fosse ilegal, perigoso ou inesperado (tanto que o único momento em que temos imagens coloridas é quando tudo está estável e agradável, e os dois irmãos se casam e criam filhos. Sem contar as lutas que vão o levando ao estrelato em cortes rápidos com estas imagens alegres). De fato, a atmosfera, o mercado de apostas deste esporte e, principalmente o próprio Jake La Motta são figuras representativas dessa desvirtuosidade.
O mundo do boxe é retratado quase como que a Nova York de Taxi Driver (1976): sujeitos ambiciosos e amorais que fazem de tudo para que tal competidor esteja no ápice, ou contrário. Jake, no entanto, não está somente enojado com o que vê, como simplesmente luta contra cada um dos que lhe impõe uma barreira. A moral de Jake não é a de que todos são miseráveis e que ele é o salvador deles já que não há ninguém que possa salvá-los. Jake está tão no sistema quanto Travis Bickle está, a diferença é que ele vê os demais como inferiores, não ligando quem seja ou como seja, contanto que não seja melhor do que ele. Jake não liga para competidores, juízes, mulheres (desde o primeiro momento em que ele se encontra com Vickie (Cathy Moriarty), nós sabemos que ele conseguirá o que quer com ela, e que a relação entre eles estará fadada à perdição, assim como a relação de Jake com a ex), filhos (em algumas cenas, as cenas de afeto que ele tem para com eles é pegar as crianças e tratá-las como se fossem brinquedos, pegando e empurrando para lá e para cá) e família. Jake é tão baixo como qualquer um dos outros apostadores, e nisto fica a primeira reflexão. Será que vale a pena deixar o esporte nas mãos de quem tem dinheiro, e acabar tornando tudo uma burocracia, ou deixar nas mãos de homens como Jake, criando monstros que embora também procurem o dinheiro, sejam brutos e megalomaníacos a ponto de quererem resolver a vida como se estivessem num ringue de luta? Uma questão que inicialmente me deixou um tanto intrigado, mas que depois me conteve bem é justamente o papel da mulher neste filme. As mulheres deste filme, desde a ex-mulher de Jake até Vickie, todas parecem se subjugar diante dos homens do filme. E é o que de fato acontece, já que tanto Jake quanto Joey (Joe Pesci) maltratam suas mulheres, tratando como se fosse cargas que pudessem ser descartadas (até mesmo a tiros) quando estas os enchesse o saco. Um primeiro argumento contra a visão machista do filme é a de que o machismo está em Jake e em seu mundo, e não no filme, mas as vezes acho que este é um argumento fraco, já que muitas vezes, os realizadores das obras ao tratarem de assuntos problemáticos como estes, acabam impondo sua visão ao filme em detalhes sutis. Como disse no começo deste comentário, Martin Scorsese mostra o que Jake é sem inclinações, então de certa forma, se posicionar moralmente é um pouco complicado. Mas se formos analisar a personagem de Vickie mais a fundo, podemos retirar alguns detalhes importantes.
Vickie é uma ninfeta. Aos seus 15 anos, é cortejada por todos os homens da região, e embora não seja direta na resposta, sabemos que ela não é a garota mais pura do mundo. E é justamente nesta malícia que está a beleza e a complexidade de Vickie. Quando Jack começa a suspeitar inicialmente da infidelidade de Vickie, logo assimilamos à característica controladora e machista dele, nos pondo quase que imediatamente a Vickie. Quando enfim descobrimos que ela estava traindo o marido, percebemos que a mulher indefesa e fraca que achávamos que Vickie era, na verdade era uma faceta (sim, nada tira o fato de Vickie ser maltratada, o que quero dizer é que Vickie não é uma mulher conformada, mas na verdade bem forte). A traição dela cria uma personagem feminina muito mais forte do que aparentemente achávamos (o que não tira o fato do universo da história ainda ser bem machista).
Após se afastar dos ringues, numa situação já bem precária do que um dia já fora, Jake acaba abrindo um bar requintado onde pode viver e abusar da vida como sempre quis: sem ninguém para mandá-lo. O mais engraçado é como Jake enfim entrará em cana. O fato de ele ser preso pela luxúria que tem com a garota menor de idade ecoa fortemente com o início do filme. Se no começo da trama, Jake era um homem que achava que conseguia tudo, agressivamente ou não, vemos que esta renovação do "poder" o levou à impotência. Tentando utilizar-se do cinturão de campeão para sanar sua sentença, Jake acaba metaforicamente toda a glória que um dia quis, ao mesmo tempo que leva a representação da sua vitória a se tornar cifras de dinheiro (não era o que os apostadores queriam desde o começo?). O poder que ele acha que tem não é nada. Ele pode ter sido alguém em algum momento da vida, mas este tipo de poder que motiva Jake a continuar não é suficiente para mantê-lo eternamente em glória. Após ser finalmente deixado pela mulher, perder a guarda dos filhos, não conseguir se reconciliar com o irmão e acabar sozinho na vida (não era isso que ele queria desde o começo?), Jake vai a um sarau recitar grandes nomes. Retornando ao monólogo inicial, Jake fala de seus pesares passados, cita homens como Marlon Brando, em On the Waterfront (1954) que são miseráveis na vida porque são maus e desaventurados. Admite que está na fossa, mas não admite que a culpa seja sua, ou que sua índole tenha afastado alguma coisa, culpando um tal de Charlie. Ou seja, ao final, Jake continua sendo megalomaníaco ("Quem manda sou eu"). Jake se acha tão bom, que não quer ser comparados a homens como Marlon Brando do filme supracitado, Jake quer se juntar aos maiores, como Shakespeare. Mesmo depois de toda a decadência, Jake continua se achando o maioral. Martin Scorsese ilustra a vida de Jake do ponto de vista de Jake. Dessa forma, Jake não se acha um perdedor, mas somos nós que percebemos ao fim do filme, que Jake é um homem horrível, megalomaníaco e fracassado. E esta é a beleza do filme, olhar a partir dos olhos de um cara que não tem olhos bons. E tudo isto nos faz voltar a cena inicial do filme, em que víamos um enquadramento maravilhoso do ringue cercando Jake. Este enquadramento quer dizer justamente tudo que vínhamos comentando até aqui: um homem que se acha grande, indomável/furioso (como diz o título em inglês, embora eu goste bastante do título em português), dono de si, mas que se visto por outros olhos, está enclausurado pela mesma grandeza que acha que tem; as barras existem por conta de sua própria característica. Sendo assim, é como se ele mesmo se prendesse: as barras indomáveis.
- Dolly Zoom: https://vimeo.com/84548119 (1:33 temos a cena de Touro Indomável que contém esta técnica)
Ida
3.7 439SPOILER DETECTED!!!!
Ida (2013) é um filme frio e direto da vida de uma quase freira judia em que nada visto na tela precisa de rodeios. Desde o tom fúnebre do P&B até à edição, nada é posto mais do que o necessário. E é nisto em que está beleza (ou melhor, a tristeza) do filme, a vida pacata e sem gosto dos seres humanos.
Prestes a declarar seus votos, Anna (Agata Trzebuchowska) é sugerida a passar um tempo com Wanda (Agata Kulesza) a fim de que passe os últimos dias em convívio do seu único laço de sangue vivo da família. Casta e pura, mas com um semblante sempre emblemático, visto nos olhos sempre atentos e incisivos, Anna então vai ao encontro de Wanda, encontrando uma mulher totalmente diferente do que ela é. Ao entrar na casa, vemos uma mulher cansada, fumante, com um homem sobre a cama e bebidas por toda a casa, em suma, tudo o que Anna não é. O processo de descobrimento e afloramento de Anna não é belo nem demorado, mas sim uma série de imagens tempestuosas que a levarão ser quem é. Após descobrir quem de fato é, Anna/Ida decide encontrar o resto de seus pais, judeus na Segunda Guerra Mundial. Com pouco mais de 15 anos do fim da guerra, as consequências desta ainda são estrondosas não somente para as famílias dos sobreviventes, mas para toda uma população desolada pelos horrores por quais tiveram que se submeter para sobreviverem (como matar outras famílias). Wanda, diferentemente do seu passado, em que condenava com poder inimigos do Estado, se vê agora uma mulher insegura e traumatizada com a perda do filho e dos familiares, que personifica de uma forma estranha todo o carinho por qual tinha por estes em Ida, fato bem ilustrado ao fim da vida dela, em que ela comenta do cabelo ruivo de Ida. Com a guerra, laços e afetos são abalados, de forma a criar uma comunidade pesarosa e vigilante sobre tudo o que acontece aos arredores.
Toda essa sensação de vigilância e enclausuramento é muito bem composta nos aspectos técnicos deste filme. Em diversos momentos do filme, enquadramentos amplos ou capturando grandes partes do teto parecem enclausurar as personagens, como se quase as sufocasse, já que em várias destas cenas conseguimos mal ver a cabeça dos indivíduos (no começo do filme temos um quadro de Ida e suas amigas arrumando a estátua de Jesus Cristo sobre um altar, e o enquadramento dela é estupendo, já que estas ficam no canto inferior, quase suprimidas pelo frio e pela Igreja aos fundos, como se a religião suprimisse a liberdade destas). Em ambientes fechados, ainda temos paredes e colunas sempre parecendo tampar os ambientes em que as personagens se situam, numa sensação não só claustrofóbica, mas de privacidade, como se o assunto destes indivíduos não coubesse a nós (isso acontece por exemplo, quando o filho do homem que manteve os pais de Ida durante a guerra se encontra com ela a fim de acertar o que fariam as seguir, ou mesmo na dança de Ida e do saxofonista (Dawid Ogrodnik). Ambas cenas bem pessoais a Ida, mas de certa forma agressivas a ela, já que no primeiro caso o mesmo homem que concordou em levá-la ao túmulo de seus pais, na verdade os matou, e no segundo caso, pelo fato de ela estar experimentando algo novo, nunca antes visto pela mesma). Por fim, ainda temos uma edição maravilhosa das cenas que funcionam muito bem como agravantes da sensação crua e seca do filme. Em vários momentos, o filme corta em situações pontuais que ficaram muito bem subentendidas para o prosseguimento do filme. Essa estratégia além de reduzir consideravelmente o tempo do filme (1h20min), faz com que tudo seja muito mais bruto do que já é (isso acontece por exemplo quando a tia pergunta a uma pessoa se alguém sabe onde o homem que matou seus pais morava. Quando alguém responde com uma outra pessoa sabe, nós somos cortados diretos para o homem na cama do hospital, já que não é necessário termos uma outra conversa em que só veríamos Wanda perguntar a mesma coisa. A cena pode ser subentendida. Isso acontece também quando vemos um guincho recolhendo um carro, e logo após, Wanda na polícia).
Quando Ida enfim retorna para a Igreja a fim de finalmente fazer seus votos, Ida despreparada e chorosa clama que ainda não está preparada, precisando passar por um momento catártico, em que ela se submete aos prazeres da carne, se assemelhando muito à forma como Wanda realizava as mesmas coisas. Ao final de tudo, Ida percebe que nada destas coisas de fato lhe satisfaria, ou melhor, nada teria um prognóstico de futuro melhor do que o da vida que antes tinha, como expressa na pergunta de Ida ao saxofonista: "O que faremos depois disso (casar, ter filhos e uma casa)?" Ele não tem a resposta. Ida então decide voltar à vida que antes tinha, numa câmera final trêmula que destoa de todo o filme. Ida é uma pessoa mais ciente da vida, uma pessoa diferente. Se antes a vida sufocava Ida, Ida agora determinada, é que faz o que quer dela; o ambiente já não é mais um problema, como os enquadramentos antes mostravam. O filme é sim pessimista, já que afirma que a vida mundana não é só indigna, mas também não válida de se viver.
Ida é um filme maravilhoso em sua estética, direto em sua mensagem (pessimista, mas direta), mas que sinto que poderia ter explorado um pouco mais no conflito entre ser judia e católica, não que o foco mundo X castidade já não seja muito forte, e que como pano de fundo ainda caracteriza toda uma sociedade reprimida pelo o que foi a guerra.
Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo
3.3 809 Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Foxcatcher (2014) é o filme indicado ao Oscar que segue uma onda totalmente diferente de filmes dinâmicos e rápidos como Whiplash (2014), O Abutre (2014), Interestelar (2014), e principalmente Sniper Americano (2014) tendendo a uma narrativa mais arrastada e minuciosa dos acontecimentos que levarão a uma brutalidade tamanha que destoa totalmente do ritmo lento empregado ao resto do filme, causando de fato um choque, como o subtítulo pretende incitar.
Conhecemos a família dos Schultz, homens dispostos a dar raça e determinação a fim de que consigam conquistar as trabalhosas medalhas olímpicas em luta greco-romana. Enquanto, Mark (Channing Tatum) aparece como um homem solitário, bruto e anti-sociável, seu irmão, Dave (Mark Ruffalo), um homem mais carinhoso e atencioso já se porta como um homem de família, que preza não só por esta, mas também bem fortemente por Mark. Essa dissonância de personalidades será fundamental para que a sensação de raiva de Mark por Dave seja mais enfática. Após acompanharmos um dia normal de treinos, Mark é requerido pelo ricaço John Du Pont (Steve Carell) para que treine em sua mansão, com tudo custeado e organizado. Por estar desprendido de qualquer vínculo pessoal, Mark, diferentemente de Dave, parte para a majestosa mansão de Du Pont com a certeza de que está fazendo uma escolha certeira pelo seu próprio bem e pelo bem da nação americana. Em primeira vista, essa parece de fato ser uma ótima escolha, muito pelo trabalho visual empregado na cena, em que nos situamos numa casa impecavelmente arrumada e simétrica, repleta de tons vermelhos (esta será uma cor importante para a análise, guarde ela) agradáveis por todos os aposentos. Embora criemos toda uma imagem de Du Pont através do telefone, do helicóptero ou da própria mansão, a chegada deste é simples e casual. O problema é que esta figura consoladora e motivadora que vemos no homem que se importa em vir até o chalé de Mark para ver se o mesmo se encontra acomodado, se tornará aos poucos uma figura tirânica e problemática, e se a construção há pouco, fora muito bem utilizada para formar uma ideia positiva de Du Pont, não posso afirmar o mesmo em relação a esta desconstrução.
O filme, como já disse, tem um ritmo bem lento, chegando a possuir momentos em que sentimos que essa elongação não é de todo necessária. Mas ao mesmo tempo que tempos cenas como estas, me pareceu que o desenvolvimento da figura má de Du Pont não é muito bem construída, pois não vemos de fato muitos embates entre Mark e Du Pont, enquanto tivemos várias cenas em que se enaltecia a figura de Du Pont, como no abraço encalorado de Mark após da vitória ou no discurso positivo diante de ricaços. A meu ver, Du Pont começa a decair moralmente quando na viagem de helicóptero, ele apresenta a cocaína a Mark. O foco deste começa a cair vertiginosamente, passando de um homem determinado a um outro narcisista. O que quero dizer é que para mim, Mark transforma-se numa figura tão imoral quanto Du Pont, enquanto o filme tenta demonizar somente este último, a partir de imagens frias nos laços familiares com a mãe, numa expressão desgostosa por todos os cômodos que o vemos. Essa construção nos faz sentir pena de Mark, o que ao meu ver não parece muito sensato, já que a marginalização de Mark é tão grande quanto a de Du Pont. O resultado disto é que Du Pont exige que Dave substitua o lugar de Mark a qualquer custo, e é aí que todas as ideias que Du Pont tinha impregnado à cabeça de Mark vão à tona.
No primeiro arco do filme, Du Pont coloca Mark contra seu irmão, muitas vezes o menorizando, a fim de fazê-lo com que se esforçasse mais para superar Dave. Ao mesmo tempo que ele desfazia este vínculo, Du Pont criava uma ideia de dever com a nação, muito mais importante do que qualquer coisa, o que chamamos de patriotismo, e é aqui que ele destoa completamente de Sniper Americano. Primeiramente, queria dizer que não sou contra o patriotismo, só não acho moral utilizar-se desta noção para justificar violência e terror, como é amplamente divulgado em Sniper Americano. No primeiro arco deste filme, temos uma ampla divulgação de patriotismo desde a palestra de Mark no colégio até nos vídeos que contavam a história da família de Du Pont, no entanto, a partir daí, a ideia de patriotismo será totalmente quebrada, totalmente. O patriotismo que motivou Mark a chegar até onde chegou personificado na figura de Du Pont passará a ser motivo de desgosto e nojo. O patriotismo de Du Pont o levará a assassinar Dave. A ideia de pátria é totalmente desmitificada por imagens cruas e frias relacionadas as personagens mais patriotas do começo do filme. Além disso, aquela cor vermelha reconfortante do começo do filme passará a ser opressiva, ou melhor, sempre foi opressiva, desde aquela sala, a questão é que não encarávamos desta forma. A cor vermelha estará presente em grande parte dos uniformes dos adversários de Mark, no chão das Olimpíadas oprimindo Mark, assim como estará na roupa sempre ajeitada e completamente vermelha da mãe de Du Pont, oprimindo o filho. Mas é ao final do filme que esta cor terá um papel muito forte: o sangue de Dave. O sangue de Dave é a representação máxima da opressão, no caso, a opressão do patriotismo em um indivíduo, que o faz lutar pelo conjunto, e que caso não o siga, seja peça descartável (assassinato). Esta ideia de opressão é ainda enfatizada por uma trilha sonora muitas vezes dissonante, como se sofrêssemos para escutar o que acontece ao redor. Este detalhe técnico ajuda muito para enaltecer a ideia progressiva de tensão, já que esse artifício é progressivamente usado com o decorrer do filme e a desmitificação das personagens.
Foxcatcher é um filme tecnicamente muito bem feito, estupendamente bem interpretado, com pinceladas psicológicas bem incisivas, mas com um ritmo lento em cenas que não precisavam se alongar demais e um desenvolvimento raso da mudança da índole das personagens, principalmente no meio do filme, que compromete em parte a dimensão do conflito.
A Teoria de Tudo
4.1 3,4K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
A Teoria de Tudo (2014) podia ser um filme bem criativo, questionador e emocionante, mas por tentar abordar muitas facetas do astrofísico Stephen Hawking (Eddie Redmayne, numa atuação magistral que vai desde o jeito tortuoso de andar até a inclinação compulsiva da face), acaba se perdendo num filme genérico sobre tudo e nada. A primeira ideia que vem a mente quando se trata de Stephen Hawking é justamente acerca de sua inteligência e descobertas no campo científico, descobertas que achei que seriam muito mais abordadas neste filme. Não vejo problema em tentar dar uma outra cara à história de Hawking, só acho que seria preferível não falar de assuntos científicos ao invés de ficar na rasa profundidade do assunto. Em diversos momentos do filme, temos leves pontuações sobre suas descobertas, explicadas de forma incompleta e pomposa a fim de dar mais veracidade às afirmações. Um exemplo perfeito disso é quando Hawking vai dar uma palestra após o sucesso do livro: sem contar o fato de ele estar falando a velocidade mil (nós sabemos como o equipamento funciona, mas mais uma vez, de forma bem superficial) para poder-se criar um maior sentimentalismo nas palavras, Hawking ainda responde as questões de uma forma também superficial (quando o senhor pergunta sobre a crença de Hawking em Deus, ele responde que enquanto tivermos esperança ainda teremos vida. Esperança no quê? Cadê a resposta em relação a Deus? A cena é totalmente arquitetada a fim de causa emoção em massa. Você não se sensibiliza por o que Hawking fala, você se sensibiliza pelo devaneio que ele tem com a caneta ao cair ao chão). Além disso, o filme não nos dá nenhuma profundidade a mais senão a necessária para nos sensibilizarmos. Em diversos momentos do filme, eu me perguntava se aquilo era de fato emocionante, porque ao decorrer de todas as duas horas do filme, entram e saem personagens secundários, que servem para fomentar a situação presente e somem como se nada tivesse acontecido. Você não consegue criar nenhum vínculo emotivo com nenhuma das personagens ao redor de Stephen, sem contar é claro, Jane (Felicity Jones). Stephen cria filhos que não tem nenhuma importância no filme senão serem parte da história de Stephen. Stephen tem amigos cujo único papel é ser amigo de Stephen. Isso faz com que uma hora nos cansemos de tanta veneração a Stephen. Sim, o cara é demais, o cara é impressionante, mas o filme podia se chamar Stephen é Tudo que daria na mesma.
Além disso, o filme se fundamenta sobre um roteiro/direção bem conservadora no sentido de a cada novo momento ele tentar nos sensibilizar mais ainda ao invés de tentar pontuar questões que nos façam pensar, e por conseguinte, nos fazer emocionar de um modo diferente, mas também efetivo, que complementasse o resto das sensações. Sendo assim, toda vez que a religião é citada, ou Stephen lança um sorriso, como se o ceticismo dele não valesse de nada, ou Jane fala de ciência, ciência, ciência, e depois afirma que ainda existe a religião (e isso acontece exatamente igual na relação de Jane e Jonathan (Charlie Cox), já que não sabemos de fato quando algo aconteceu, quando algo não aconteceu). Por não questionar nem de um lado nem de outro, mas tentar mostrar os dois lados, A Teoria de Tudo não anda ideologicamente, porque parece que embora o filme siga adiante, ficamos parados no mesmo lugar. Talvez a ideia mais inovadora do filme seja a estética dele, com cores por vezes pastéis, por vezes frias em enquadramentos um tanto difusos. O problema é que não faz sentido o filme criar toda uma estética se ele não faz sentido para a trama, ou pior, não nos cria sensações diferentes a cada novo quadro. A minha única sensação o filme todo era que eu estava num sonho, porque passávamos por cenas belas, por cenas tristes em filtros tão diferentes que o que era mostrado na tela me parecia muito surreal. E este é o maior problema do filme. Por tentar humanizar demais a história de Stephen Hawking, entramos numa espécie de sonho em que o nosso único intuito, é venerá-lo. Mais uma vez, o cara é fantástico, mas qual é o sentido de se criar um filme que só aumente ainda mais a pessoa que alguém já é? Propaganda? Eu pensava que esta era uma história sobre sentimentos, e não sobre um mito, um ídolo que não possui mais nada a ser acrescentado. Se não bastasse essa idolatria, ainda existe uma cena que me incomodou profundamente neste sentido de desenvolver outras personagens que não seja Stephen Hawking. Quando Jane vai encontrar o médico, após saber da condição do marido, ela inicia uma conversa em francês, passando posteriormente para o inglês, como se quisesse afirmar que Jane existe nesse filme, e que ela faz outra coisa além de cuidar do marido, afinal, ela estudou outras línguas na universidade.
A Teoria de Tudo é um filme emocionante, por vezes até demais da conta, com atuações impecáveis vindas do casal principal, mas que peca em tentar criar um sentimentalismo desnecessário, se perdendo no que falar, e como falar.
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
3.8 3,4K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
Poucos são os filmes que te fazem viver uma experiência, nos alocando num espaço quase palpável de tão real, tendo como única consequência, nos fazer sair extasiado do cinema. Boyhood (2014) é com certeza uma experiência marcante, O Abutre (2014) transborda realidade crítica e Whiplash (2014) sem dúvidas nos leva ao total sufoco, mas é Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014) - que é tão importante quanto o título principal - que consegue mesclar todas essas sensações em um único filme (Quem quiser ler somente a minha interpretação do final do filme, siga até o último parágrafo, mas digo que o comentário por completo está repleto de pontuações de que me utilizarei no final).
A primeiros olhos, Birdman parece ser só mais um título de herói (o que não significa que é ruim, já que Guardiões da Galáxia (2014) conseguiu ser um dos mais inovativos do gênero, por exemplo), mas é ao ler o próprio subtítulo que vemos que não é nada assim. Após algumas imagens iniciais, somos apresentados a Riggan Thomson (Michael Keaton), um ator decadente que viveu seus anos de glória sob a figura de Birdman, o herói fictício que iniciou a onda de super-heróis que viríamos a ter hoje em dia (a colocação de que Michael Keaton tenha de fato interpretado Batman (1989) e posteriormente Batman - O Retorno (1992) não é só muito justa, como abre alas a uma nova camada de análise do filme: a realidade fora do filme, que virei a discutir mais à frente. Uma outra curiosidade é que o ano de 1992 é não só o ano em que Keaton se despede do papel de Batman, como também de Birdman neste filme). Em poucos minutos, vamos conhecendo cada uma das personagens do filme: Jake (Zach Galifianakis, numa interpretação bem diferente do que estamos habituados na série Se Beber, Não Case (2009-2013)) como um produtor meticuloso, mas impetuoso quando necessário, Sam (Emma Stone) como uma jovem desinteressada na vida que acabara de retornar de uma clínica de reabilitação, Lesley (Naomi Watts) como uma atriz desesperada tanto emocionalmente quanto pelo sucesso e Mike (Edward Norton) como um ator de muito habilidoso, mas também bem desequilibrado e complicado de se trabalhar. E o que todos esses indivíduos almejam se resume em uma única palavra: reconhecimento. A palavra reconhecimento remete a ideia de reconhecer, sendo assim, independentemente da amplitude, o importante é que haja um alvo. Dessa forma, o reconhecimento pode ser tanto ser reconhecido como não só como um ator de sucesso, mas também respeito (coisas bem diferentes), como ser reconhecido (receber mais atenção) do seu próprio pai. Na sociedade altamente competitiva e tecnológica que vivemos hoje, essa noção de reconhecimento se perde muitas vezes em 'likes', como muitas vezes pontuadas no filme (como na cena em que Sam diz que seu pai não é famoso por não ter contas em algumas redes sociais). Como eu disse, a amplitude do reconhecimento varia de pessoa para pessoa, mas será que é realmente efetivo se expor a milhares de pessoas numa rede social a fim de buscar mais prestígio, ou o simples reconhecimento de um núcleo menor já é o bastante? A resposta é única e verdadeira para cada um de nós. Talvez pior do que o reconhecimento seja a obstinação pelo mesmo. Riggan se recusa a usar qualquer um destes meios, mas é o primeiro a querer mais enfoque, da mesma forma que Sam mesmo com as redes sociais é um ninguém ao mundo. Mais uma vez recorremos ao subtítulo do filme: A Inesperada Virtude da Ignorância. Pessoas obstinadas sabem muito bem os objetivos delas, ou seja, são totalmente cientes do que os permeia, mas as vezes são as ignorantes que conseguem o mesmo resultado sem a mínima ideia de como chegarão até ali. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o patriarca da família afirma em um momento que ser ignorante é uma benção, já que se começasse a conhecer, não poderia parar mais. Conhecer é sem dúvida algo majestoso, mas é ao mesmo tempo, aterrador. Saber que algo pode te machucar te impede de seguir o momento com mais naturalidade. É claro que este saber permite viver por mais tempo, o que não quer dizer, que você viverá feliz. Todos as personagens de Birdman são obstinadas, e sendo obstinadas, farão de tudo para alcançar essa felicidade, o que para alguém que é obstinado, pode estar sempre bem distante. Riggan quer ser mais do que alguém de sucesso, ele quer ser respeitado, o problema é que nem ele mesmo consegue se respeitar, já que a imagem de Birdman, seu passado de sucesso, o atormenta a cada novo passo que ele decide dar. A obstinação dele é tamanha que Riggan não somente precisa fazer uma peça de sucesso, como também suprimir um alter-ego que o perturba. Essa dualidade é por si só impressionante, pois de um lado temos Riggan depois de anos do sucesso de Birdman, lutando para ser alguém desmitificado do papel do super-herói, enquanto que por dentro, temos a ideia de alguém que não consegue se livrar deste papel, como se Riggan e Birdman fossem uma pessoa só. Como o psicológico (o interno) manda no físico (o externo), é como se Birdman fosse até maior que Riggan, como de fato é, por exemplo na cena das explosões. Ao inserimos a ideia do espelho, que será muito importante para o desfecho do filme, a metáfora fica ainda mais bela, já que o espelho é não somente o que queremos ver de nós (pegue por exemplo a anorexia, o que vemos no espelho não é o real, mas é o que achamos que vemos de nós) como também a representação visual do que temos por dentro, denotando uma dualidade psicológica muito incisiva a Riggan (para quem gosta disto, procure por Cisne Negro (2010) e O Homem Duplicado (2013)). Ok, Riggan é obstinado, bipolar e fracassado, o que mais falta? Um péssimo indivíduo para se lidar com pessoas. E o pior é que ainda conseguimos torcer para esse cara ter o sucesso que de fato procura. Riggan é um pai terrível, um marido terrível e um namorado terrível. Em nenhum momento até ele de fato conseguir o sucesso que tanto almeja, vemos uma única cena de afeto com alguma das pessoas ao redor. É claro que ninguém é santo, já que a própria ex-mulher dele entra no camarim toda sorridente quando percebe que o ex-marido pode ser importante mais uma vez, contrastando com o semblante inexpressivo da primeira vez que conhecemos ela.
Birdman ainda insere pontadas muito sarcásticas ao vários ramos da produção teatral/cinematográfica, satirizando por exemplo a atuação de Jeremy Renner em Guerra ao Terror (2008) ou Justin Bieber. As pontadas vão desde a máquina copiadora do cinema hollywoodiano em que vemos todo ano saírem mais e mais filmes genéricos, com a mesma estrutura e inovação dos anteriores, passando por fãs que não respeitam a privacidade de seus artistas, assim como um jornalismo barato (que inicialmente é representado na figura de uma jornalista sensacionalista que confunde nomes e faz perguntas idiotas, passando a ser um jornalismo voraz por catástrofes, no caso, a tentativa de suicídio) até ao papel da crítica (representada no caso por uma mulher fria e calculista, mas que na verdade se baseia em questões pessoais para assinar seu trabalho). O mais divertido de todas essas críticas é que elas são em sua maioria, sarcásticas (super-heróis dançando ridiculamente, explosões, monstros e armamentos aparecendo de uma forma tão brusca que a cena fica cômica, uma mulher dizendo que vai ferrar com a peça só porque não gosta de Riggan, como se fosse uma criança), trazendo um alívio cômico para uma realidade de fato presente em nossa sociedade (uma das melhores formas de se criticar algo é banalizando o mesmo, e Relatos Selvagens (2014) e Dr. Fantástico (1964) são duas obras que fazem isso muito bem). Uma ideia também bem forte vem verbalizada no que Mike diz: o único local em que ele é verdadeiro é nos palcos, enfatizando ainda mais aquela ideia do duplo Riggan/Birdman. Quem é o verdadeiro? As vezes, os atores acabam entrando tanto no papel que já não sabem mais o que é falso e o que é realidade (Heath Ledger com o Coringa), outras vezes, um personagem fica tão estigmatizado que quando o vemos novamente, não é o ator, mas sim o personagem (Harry Potter, Frodo). E aqui voltamos lá para o começo do comentário: reconhecimento. Esses artistas buscam tanto reconhecimento dos demais que muitas vezes não consegue nem ao menos se reconhecer sozinhos. Expandindo isso para todas as pessoas, identidade é uma palavra muito forte, já que sempre queremos ser alguém que vemos na televisão, ou algum jogador que vimos jogar, nunca estamos satisfeitos com nós mesmos. Aceitamos a identidade, o cabelo espetado, o vestido pomposo em detrimento do nosso próprio ser. Sendo assim, talvez não temos um duplicado, mas na verdade, vários, e isso é mais aterrador do que parece.
Se não bastasse um protagonista complexo e críticas para lá de incisivas, o filme ainda tem uma estética totalmente diferente, lembrando em muitos momentos a escolhas de filmes da Nouvelle Vague (movimento fílmico francês que prezava por mais sutilezas estéticas e suas alterações pré-estabelecidas), como a do controle da trilha sonora (na cena em que temos o voo de Riggan/Birdman, a trilha para e prossegue em momentos muitos bruscos, como se denotasse uma artificialidade ao momento, mas que por si só, é incrível: um filme em que o protagonista controla o que tá acontecendo em várias camadas - cof, cof, Curtindo a Vida Adoidado (1986)). A escolha de um plano-sequência por praticamente todo o filme é em si bem ousada, mas ela não seria boa se não fizesse sentido ao filme. Mas, ela faz. A sensação que temos no filme inteiro é que de fato estamos andando junto com cada uma das personagens pelos corredores, passando por luzes vermelhas e azuis como se as sensações fossem de clausura, desconforto, como se não tivéssemos somente física mais também psicologicamente presos aos problemas de cada personagem. A sensação que tive em todo o filme é que eu era um cara do backstage que acompanhava a vida de cada um, sedento para que a cada nova virada de câmera eu presenciasse algo totalmente diferente do que eu havia visto em outra personagem. Esses movimentos criam então tensão e turbulência para um ambiente já repleto de desavenças. Além disso temos uma trilha composta quase que unicamente por percussão, aumentando e desacelerando a cada estado de espírito da personagem em questão. A brincadeira do que acontece em filmes e por trás deles é tanta que chegamos até mesmo a ver a fonte da trilha sonora em um momento, como se de fato mostrasse que estamos na produção de algo (já que uma trilha sonora só é considerada trilha se só os espectadores conseguirem escutá-la, mas podemos por outro lado, imaginar que o baterista seja parte da imaginação da cabeça de Riggan).
Para quem já viu outros filmes desse ótimo diretor (Alejandro Gonzalez Iñarritu. Para quem quiser ler um pouco mais sobre as características do cinema de Iñarritu, eu escrevi um comentário sobre o filme Biutiful (2010) em que contraponho várias ideias recorrentes na filmografia deste diretor. Colocarei o link ao fim do comentário) é surpreendente ver como a estrutura narrativa se distancia a primeiros olhos dos filmes predecessores (personagens de diferentes realidades que se unem por um objeto/sentimento em comum). No entanto, para aqueles que chegaram até aqui, vocês se lembrarão que no início do meu comentário, citei a busca de reconhecimento através da obstinação de cada um. Sendo assim, embora a relação estrutural não seja tão aparente como a dos demais filmes, ela está sim presente em uma camada diferente de análise. Outra marca forte em toda a obra de Iñarritu é o forte pessimismo, que aqui está mais do que presente na figura de toda uma indústria de entretenimento que se preocupa mais em obter dinheiro do que prestígio, presente também em personagens problemáticos que não conseguem se situar no meio em que vivem, em um protagonista sarcástico, mas ao mesmo tempo, atordoado.
Por fim, chegamos ao fatídico fim. Totalmente transtornado, Riggan tentar se suicidar à frente de centenas de pessoas. Queria fazer uma pausa breve aqui. Após deste ato, a câmera enquadra a plateia aplaudindo o ato, aplaudindo o fato de Riggan ter tentando se matar. É claro que a plateia não sabe que isso de fato aconteceu, mas nós sabemos. Em outra camada de análise podemos ver o papel da plateia. A plateia que aplaude por violência, explosões e anomalias, a plateia que aplaude por uma morte de fato. Uma plateia que não sabe o que quer, mas sabe que não quer o leve. Da mesma forma que a plateia aplaudiu um estupro alguns minutos atrás, ela aplaude um suicídio. Se pararmos para pensar nisso, qual é de fato o papel da plateia, ou melhor, o que aceitamos e o que não aceitamos? Mas voltando ao fim, assim que Riggan tenta se suicidar, vemos o primeiro corte de todo o filme. Sendo este o primeiro corte do filme, é de se supor que ele não foi por mero acaso, tendo um papel bem importante para os minutos seguintes do filme. Seguindo a análise que fiz, em que eu dizia que o plano-sequência era de certa forma uma certeza da realidade que presenciávamos, como se estivéssemos quase que num backstage, vendo o que cada personagem fazia, o primeiro corte pode significar o próprio corte da realidade. Sendo assim, toda esta cena depois do tiro, pode ser na verdade um sonho. Riggan tendo morrido ou não, pode estar imaginando que todo o sucesso que ele tanto almejava fosse na verdade um sonho, explicando o fato ao final do filme de ele conseguir voar, expresso no semblante de felicidade da filha. Nessa primeira interpretação, temos um final bem pessimista, porque Riggan não conseguiu nada do que ele de fato queria: ser respeitado. Numa outra interpretação, Riggan de fato acertou o próprio nariz, foi internado e sobreviveu, alcançando todo o sucesso e respeito que queria. Riggan inicialmente com uma máscara que encobre o nariz, e posteriormente com o próprio nariz, parece se assemelhar muito com Birdman, até que ele mesmo vê que Birdman está no reflexo do espelho. Mas só no reflexo. Aquela ideia que comentei nos parágrafos anteriores, do eu e do duplicado, da luta por identidade, embora tendo parecido estar desfeita (já que Riggan conseguiu um outro papel de sucesso que não seja o de Birdman), continua mais forte do que nunca, porque se Birdman era o sinônimo de sucesso, enquanto Riggan de fracasso, ao alcançar este sucesso, Riggan agora é tão famoso como Birdman, sendo assim, Birdman e Riggan são mais a mesma pessoa do que nunca. Mas se toda essa dicotomia e loucura se passava somente na cabeça de Riggan (como enfatizado na cena do espelho) porque quando Sam chega ao quarto, ao olhar para o alto ela sorri? Com o sucesso de Riggan, ele é agora quem passa a ser o sinônimo de sucesso, e não mais Birdman. Se os poderes de Birdman eram a representação de sucesso, embora irreais, agora que Riggan detém o sucesso, ele é o irreal, ou seja, Birdman e os poderes passam a ser o verdadeiro. O que Sam vê é o sucesso que Riggan agora detém metaforizado no voo de Birdman. Esta outra interpretação embora mais feliz também contém um tom de detrimento, já que mesmo com o sucesso, Riggan ainda não consegue se desprender de Birdman, precisando se afirmar sobre ele para se identificar como alguém neste mundo.
Biutiful: http://filmow.com/comentarios/4947156/
O Jogo da Imitação
4.3 3,0K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
O Jogo da Imitação (2014) é um ótimo exemplo de filme de guerra que não se fundamenta na guerra propriamente dita. Sendo mais preciso ainda, praticamente todas as imagens que se passam no campo de batalha não possuem nenhuma glorificação da guerra, elas são na verdade bem cruas e frias do que algo horroroso como uma guerra pode ser (várias cenas aéreas de bombardeios, feridos dos campos de batalha amputados, e uma cena que eu acho muito significativa imagética mas também para uma ideia que direi mais a frente: o tanque de guerra esmagando o capacete de guerra).
O primeiro contato que temos do filme se dá num monólogo do próprio Alan Turing (Benedict Cumberbatch, numa atuação muito tocante, alterando-se de um cara arrogante para outro inseguro em frações de segundo. O interessante é perceber os trejeitos de Benedict nestas duas situações, principalmente quando ele está inseguro. Vemos um indivíduo tremendo os mínimos pontos - especialmente os lábios -, como se fosse difícil conter o temor, além de Benedict ficar arrumando o cabelo, numa tentativa de esconder essa fraqueza) em que a primeiro momento parece se dirigir a nós (o que pode ser perfeitamente cabível, já que nós como espectadores, não estamos no controle da história), mas que mais ao final pode ser entendida como referida ao investigador. Assim, somos enfim apresentados a Alan de uma maneira um tanto quanto suspeita, já que acompanhamos uma investigação policial a sua casa. Lá conhecemos um homem bem arrogante e seguro do que está fazendo. Segurança esta, apresentada nos minutos seguintes, concedendo um emprego a ele, num passado próximo. Aqui temos um outro artifício utilizado muito bem ao decorrer de todo o filme, com exceção de um momento: a não-linearidade da história. Em determinado momento da história, quando precisamos concluir uma ideia de uma forma mais clara, ou mesmo para acrescentar mais informações ao que já temos, o filme muda temporalmente. E estas passagens são tão sutis, que os momentos antes representados ficam mais fortes com a confirmação num passado do mesmo (por exemplo, quando descobrimos que ele é homossexual, se tivéssemos ficado só na descoberta, não saberíamos quão profundo foi este fato em sua vida). A minha única exceção de como isto é mal usado, não é nem pela cena em si, mas pelo detalhe de como ele se situa no tempo em uma ocorrência. As três vezes que somos situados num novo espaço-temporal, aparecem os dizeres na tela do ano e local em que estamos. Se a estrutura coesiva do filme fosse boa (e é, em todos momentos), esses dizeres não precisariam ser mais apresentados daí em diante, já que a cena se construiria de forma que conseguíssemos descobrir em que momento do tempo estamos, o problema é que esses dizeres aparecem em mais um momento: quando voltamos novamente da época da II Guerra Mundial para o presente. Não entendi o porquê de ele ter mostrado novamente os dizeres, porque para mim estava claro de que estávamos no presente. É um detalhe desimportante, mas que incomoda.
Tirando-se esta exceção (que comparativamente não é nada), o filme recairá sobre um mar de acertos que fará a história muito mais interessante daqui para a frente, como por exemplo uma ótima montagem de cena, no momento em que todos os estudiosos se reúnem pela primeira vez, para se inteirarem da situação. O posicionamento de cada personagem nesta cena é maravilhoso, não simplesmente por equilíbrio de cena, mas também por introdução da índole de cada um. Enquanto um grupo de estudiosos logo se aproxima quando o Comandante Denniston (Charles Dance) coloca algo sobre a mesa, Alan espera os mais afoitos se desvencilharem para então tomar partido. É só quando Alan diz o que queria é que Hugh Alexander (Matthew Goode) se pronuncia de uma forma bem dona de si. Só nesta cena, vemos a hierarquia intelectual de importância de cada matemático na situação. Essa mesma cena se repetirá quando Alan finalmente tomar conta do desenvolvimento, só que agora o bloco inicial de afoitos terá ainda Hugh, enquanto Alan recosta mais ao lado.
O que deixa O Jogo da Imitação mais interessante é que o filme não se trata somente de um filme de drama, de um filme biográfico, ou mesmo de um filme de guerra. O filme é tudo isso sim, mas além disso, ele ainda consegue permear questões sociais, morais e psicológicas. A ideia mais óbvia que o filme apresenta é como um herói da nação passa a ser considerado um tirano quando sabido de sua homossexualidade. As lutas por direitos sexuais é algo muito recente, e mesmo hoje, ainda sofre muitas retaliações. Imagine quantos homossexuais tiveram que viver grande parte da vida como Alan, reclusos em sua sombra, temendo serem executados por um simples gosto pessoal. Numa sociedade ainda muito regrada pela religião, ser homossexual é como ser um espião contra o governo. Essa analogia torna-se ainda mais forte quando Alan descobre que seu companheiro de trabalho é o espião através de uma passagem da Bíblia. Irônico tanto por conta da mensagem espiã ser transmitida por algo religioso - lembrando novamente que religião e estado ainda eram coisas bem fortes na Inglaterra -, como se indiretamente tentasse se questionar o próprio governo, como também a descoberta desta passagem ser a barreira do companheiro contar ou não sobre sua natureza. Neste caso, a Bíblia personificada em John Cairncross (Allen Leech) seria a representação da religião, e consequentemente, do governo na vida de Alan. Uma segunda reflexão do filme se relaciona totalmente com esta primeira: máquinas são iguais as pessoas? Em certo momento do filme, Alan responde que elas nunca serão, pois elas pensam diferente, mas ressalta que nós humanos também pensamos diferente um dos outros. Nessa lógica, se os humanos pensam diferentes, mas mesmo assim, aceitamos uns aos outros, porque não aceitar um homossexual, já que seu pensamento sexual é uma das únicas coisas que os diferenciam das demais pessoas? Nesta mesma analogia, traçamos o perfil das máquinas. É fato que com as guerras mundiais, muitas tecnologias são desenvolvidas, e que cada vez mais, as guerras são muito em parte definidas pelas mesmas. Após o término das guerras, muitas destas tecnologias são transpostas para a vida comum (vide o GPS), além de termos muitas outras sendo desenvolvidas a cada dia. A pergunta que fica é a seguinte: será que algum dia, as máquinas serão tão auto-suficientes, que poderemos classificá-las como humanas? Ou pior do que isso, será que essas máquinas poderão tomar o nosso lugar na Terra (um Exterminador do Futuro way of life)? O discurso de Alan acerca disso pode ser de alguém que viu as máquinas crescerem, mas é sem dúvida um discurso medonho (uma máquina que pode resolver tudo). O filme traça várias imagens que pontuam muito bem isto também: logo no começo do filme, o barulho das tropas nos campos de guerra se assemelha ao barulho do trem andando sobre os trilhos. Logo no começo deste comentário me referi ao capacete sendo amassado pelo tanque de guerra. Estas duas imagens mostram uma única coisa, a substituição do homem em suas antigas tarefas. É claro que ambos, tanto o trem como o tanque são controlados por humanos, mas imaginando que este seja só o começo do desenvolvimento das máquinas, e retomando o discurso de Alan, as imagens são na verdade bem brutas. Será que de fato elas serão humanas? (Ela (2013) é um bom filme para refletir sobre isso). Nestas duas ideias citadas, ainda existe um outro objeto que as engloba: Christopher (máquina). Alan foi homossexual, sendo assim, não podendo gerar filhos, o carinho que Alan tem por Christopher (máquina) é quase como a de um pai, protegendo-o quando estava prestes a ser desligado, direcionando todos os esforços para que a Christopher funcione da melhor forma possível. Antes de chegarmos ao fim do filme, Christopher poderia ser a representação do bebê que Alan nunca terá, reforçando ainda mais a humanização das máquinas. A ideia é muito válida, pois mesmo depois de descobrimos que Christopher era na verdade o nome de seu melhor amigo de infância (Jack Bannon), e que pelo qual, ele teve uma paixão secreta, a ideia de amigo/amante ainda reverbera a humanização da máquina.
Além destas duas ideias, temos outras duas que são também muito presentes no filme: feminismo e Deus. A primeira é mais simples, e é sem mistério, atribuída totalmente a Joan Clarke (Keira Knightley). Desde a primeira vez que somos apresentados a Joan, logo percebemos que de fraco ela não tem nada. Quando questionada se de fato fora ela que completara todas as cruzadas, vemos logo qual era o papel convencional da mulher na sociedade: não pensar, agir, de preferência em casa. Historicamente, sabemos que as mulheres tiveram uma importância social bem maior com a chegada das guerras, já que com os homens indo ao campo de batalha, as mulheres tinham que preencher os cargos antes masculinos. Essa imersão gerará futuramente vários movimentos sociais em busca de direito feminino. No entanto, mesmo que as mulheres começassem a preencher os cargos masculinos, sabemos que cargos de administração e ciência ainda eram majoritariamente masculinos. Joan, assim como Alan, é uma mulher a frente de seu tempo, e é muito bonito (mesmo que a vida de Joan não tenha sido de fato assim; eu não li a respeito) ver como ela batalha para conseguir o posto dominado por homens, sempre se equiparando aos homens da época. A segunda ideia é bem complexa, não por ela ter uma explicação complicada, mas porque ela está contida em várias perspectivas do filme. A mais aparente é uma que já citei no parágrafo acima: a ideia da religião conjuntamente importante com o estado na tomada de decisão de seus cidadãos e o conflito com o homossexualismo, mas a ideia de Deus aparece também, assim que Alan resolve Enigma. Agora que Alan sabe todos os movimentos dos alemães, quem deverá ser poupado e quem deverá ser morto em vista da vitória na guerra? Perderemos irmãos para ganhar a guerra? (O Resgate do Soldado Ryan (1998) não gostou desta sentença) Esta é uma ideia muito complicada porque implica em controle. Muitas pessoas procuram uma instância superior que dite e salve todas as pessoas da face da Terra. Mas será que de fato queremos ser controlados? Parar para pensar nisso é algo complicado, porque o contrato social que criou os governos que conhecemos hoje, foi de fato uma determinação de controle, mesmo que à mercê dos cidadãos. Quando um ser humano se vê diante de tamanho controle, as decisões ficam difíceis, pois o objetivo é salvar o maior número de vidas ou salvar qualquer um que consegue ser salvo? (Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008), especificamente na cena do barco é um ótimo exercício deste pensamento). Alan profere uma frase muito interessante a respeito disso tudo: "Eu era Deus? Não, porque Deus não ganhou a guerra. Nós ganhamos." Será que o que ele está dizendo se refere ao fato de Deus ter escolhido salvar qualquer um que pudesse ser salvo, ou será que ele diz que se ele fosse Deus, não haveria guerra, ao invés de ter ganhado a guerra (perceba que ganhar algo implica o fato de esse algo ter existido). Desta última frase, temos uma ideia anti-guerra muito interessante. Diferentemente de outros filmes deste ano (cof, cof, American Sniper (2014)), O Jogo da Imitação parece questionar essa guerra. Não vemos cenas de guerra de fato, o que presenciamos dela é sempre algo frio e cruel. Não sabemos o motivo de Alan querer ter acabado a guerra: se era para ver a guerra vencida, ou acabada (vencer significa ter um certo orgulho. Acabada remete a ideia de cessar estes horrores). Há outra frase muito interessante a respeito disso, também proferida por Alan: "Nós não estamos lutando contra os alemães, mas sim contra o relógio", como se ilustrasse a ideia de querer evitar mais mortes. É ao final do filme que vemos um Alan retraído, quase que não se aguentando em pé, com Joan espantada com a condição do amigo, e que ao fundo, ouvimos um relógio. Alan estava lutando contra o relógio. Relógio igual a mais mortes. Se o relógio está batendo em sua casa, isso pode significar que ele estaria prestes a morrer. Na vida normal, será que todos também lutamos contra o relógio? Eu não gosto de pensar assim, porque parece que lutar contra ele, significa que estamos perdendo nosso tempo com as coisas que fazemos, quando na verdade, tudo o que fazemos é na realidade, algo. Sendo assim, não estamos lutando contra o relógio, mas estamos vivendo com o relógio. O Jogo da Imitação é muito mais que um drama, é muito mais que uma biografia, é uma reflexão socio-moral da vida. Rodeado de interpretações espetaculares e edições maravilhosas, este filme é com certeza um dos melhores do ano.
Livre
3.8 1,2K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!
(Onde que a atuação da Laura Dern está melhor do que a atuação de qualquer uma das coadjuvantes de Garota Exemplar?)
Livre (2014) é um filme que possui todos os bons conceitos de um On the Road, uma fotografia impecável (para mim este é um dos únicos gêneros em que câmeras contra a luz podem ser utilizados sem muita discrição. Sem contar que a mudança de ambientes cria contrapontos visuais que só embelezam ainda mais o filme como um todo), um trilha sonora, de preferência folk, que combina perfeitamente com uma viagem espiritual e um visual lindo (como se cada lapso de memória fosse um belo momento), no entanto, Livre peca num de seus traços mais fundamentais, no desenvolvimento coeso de uma narrativa. Repare que eu disse "coeso", ou seja, se formos analisar a narração como um todo, ela se encaixa muito bem, mas em pontos particulares, as ideias não são articuladas de um modo que nos interessemos pelo que está acontecendo no filme. Confesso que durante a primeira metade do filme me atentei bastante aos aspectos técnicos do filme, já que meu interesse pela história só foi crescer quando grande parte dos 'flashbacks' já estavam estabelecidos. Essa construção de interesse é bem equilibrada, o problema é que ela pende muito na primeira metade do filme para uma personagem que não mostra nenhuma profundidade emocional que nos faça querer saber o porquê de toda esta provação. É claro que na realidade, muitas pessoas se isolam do mundo por motivos diversos, muitas vezes mesmo sem um motivo aparente. A diferença é que isto é um filme, devendo ser portanto, permeado de momentos de interesse, ou pelo completo inverso, vários momentos que por si só constroem personagens pelos quais temos afeição de ver se desenvolverem (vide Boyhood (2014)). O problema é que a primeira metade do filme não tem nem um, nem outro.
Muitas pessoas compararam logo de cara, este filme com Na Natureza Selvagem (2007), dirigido por Sean Penn, ciente do fato dos dois filmes serem On the Roads, em que personagens deslocados da sociedade se isolam do mundo procurando respostas para suas vidas. Em Livre isso pode até ser verdade, já que depois dos milhares de infortúnios que conhecemos com os 'flashbacks', vemos uma personagem tentando sanar e reconciliar a vida que tinha antes da perda da mãe. Na Natureza Selvagem já recai sobre um lado de mais auto-conhecimento, as vezes até mesmo num tom de repulsa à humanidade, preferindo uma sintonia com a natureza, o que imagens (sem 'flashbacks') dão uma perfeita conexão para o desenvolvimento de John McCandless, Não digo que o motivo de Cheryl (Reese Witherspoon, numa interpretação muito bem construída em detalhes como o esforço na respiração em situações sufocantes, como a da cena que abre o filme) seja inferior ao de McCandless. São duas abordagens diferentes para a provação que viriam a ter, a diferença é que Livre não constrói a ideia de Cheryl tão bem quanto Na Natureza Selvagem faz de McCandless.
Em contrapartida a construção um tanto desfalcada de 'flashbacks', temos uma outra ideia sempre muito forte e apreensiva construída ao decorrer de todo o filme: a mulher no mundo atual. Como já é de saber, o mundo continua sendo machista e tudo mais, levará algum tempo até que consigamos sanar esse problema, e mesmo longe da sociedade a situação não é diferente. Sendo assim, toda figura masculina se apresenta de um modo suspeito à Cheryl, desde o dono do trator até o cara com quem ela de fato transa posteriormente. Como repetido várias e várias vezes no filme, mulheres não são comuns nestes tipos de atividades, e muitos dos homens ao verem uma, se aproveitarão desta fragilidade aparente delas. O mais interessante (e principalmente na segunda metade do filme, quando conhecemos o passado dela) é como o filme constrói as várias facetas do homem em toda a vida de Cheryl. Quando pequena, o contato masculino vinha da brutalidade do pai alcoólatra que surrava esporadicamente sua mãe. Quando da perda de sua mãe, Cheryl passará por uma vida carnal, em que ela rodará por vários homens com único desejo sexual. E por fim, na natureza, Cheryl presenciará vários e vários homens que mesmo que não tenham uma má índole, se apresentam como desconhecidos perigosos. Dessa forma, o filme aborda de uma maneira sutil, mas incisiva a vida de uma mulher num mundo machista, que independentemente de onde esteja, continue sofrendo de medos que não deveria passar. Agora vai uma suposição minha: talvez os suspiros de sufoco que Reese dá ao decorrer de todo o filme, possam ser entendidos como gemidos, revelando esse teor sexual, como se transparecesse esse medo que cerceia todo esse trajeto de vida dela.
Quanto aos aspectos técnicos, senti um ótimo trabalho no que o Oscar chamaria de Mixagem de Som (que seria como os sons são compostos na cena, ou seja, se o som X está mais alto do que Y, porque X é mais importante na cena ou se não haverá som, entre outros), já que em vários momentos de contemplação por parte de Cheryl, ouvimos um som dissonante como se fosse um eco da mente, ou quando passamos por algum 'flashback', vemos passagens bem claras e interessantes de passagem de tempo, ou mesmo aquela cena bem interessante em que Cheryl e o irmão matam o cavalo e o som do tiro se confunde com um trovão, e ao mesmo tempo indicasse o pesadelo que Cheryl teve no momento. Como disse mais acima, o meu interesse pela história no começo do filme não era grande, então consegui reparar mais detalhes em relação a esse comecinho, e uma coisa que me irritou bastante foi o fato de literalmente o começo inteiro do filme, a câmera não parar de tremer. Não era algo insuportável como o que acontece em Guerra ao Terror (2008), mas era no mínimo incomodante, pois não fazia o menor sentido a câmera estar tremendo, sem contar que fazia com que o filme ficasse ainda mais desinteressante do que a história já estava.
Por fim, gostaria de expressar um pouco de minha revolta com o final do filme. Quando chegamos na fatídica "Ponte dos Deuses", soltamos aquele suspiro de alívio, o problema é que mesmo depois disso, Cheryl entra em voz-off falando de todo o resto da vida dela, como tudo deu certo, falando frases motivantes, e tudo mais. Caramba! O mais interessante que o filme tinha a dar se perdeu nesses pequenos minutos finais. A pergunta que sempre fica para mim ao ver estes filmes é sempre a mesma: será que depois de tudo isto, a pessoa consegue achar o que procurava? O silêncio é a melhor resposta, já que na vida, ninguém sabe o que é melhor para gente, justamente porque vivemos uma coisa de cada vez. Só temos a capacidade de classificar em melhor ou pior quando comparamos duas ou mais coisas. Não, Livre acaba com uma mensagem que quebra toda a ideia de provação e desconforto que Cheryl vinha passando, e define que enfim ela conseguiu o que queria, e que o que ela queria era se estabelecer numa família e ter filhos. Enfim, o filme segue muito bem do meio até aqui, mas são justamente em dois pontos cruciais do filme, que temos imagens e ideias um tanto decepcionantes. No mais, "HEYAAAAHHHEYAHHHEEEYAAAHHEY I SAY HEY What's going on?"
Whiplash: Em Busca da Perfeição
4.4 4,1K Assista AgoraSPOILER DETECTED!!!!
Não tem como ver esse filme e não relacionar Terence Fletcher (J. K. Simmons) com o sargento Hartman (R. Lee Ermey) de Nascido para Matar (1987). O jeito bruto, visceral e inconsequente de agir, de uma forma que acaba até mesmo desumanizando seus pupilos. O olhar sempre fixo em cada um dos músicos, quando não para a própria tela (embora eu não me recorde de ele ter olhado diretamente para a câmera, sempre há alguma inclinação). Os estouros frequentes, o linguajar preconceituoso e calunioso. Tudo, cada movimento, cada respiração nos faz odiar Fletcher, assim como Hartman, da cabeça aos pés. Assim que o filme começa, temos um quadro um tanto quanto disforme do personagem que viríamos a acompanhar o filme inteiro. A câmera não parecendo enquadrá-lo direito, começa a se aproximar de Neiman (Miles Teller) conforme a batida da percussão se acentua. A situação é tão estranha que parece que estamos espiando o que o jovem está fazendo, mas de uma forma analítica, já que a aproximação flui de um jeito leve. O que de fato descobrimos é que esta câmera que acompanhávamos é na verdade o próprio Fletcher observando o esforço do garoto, o que se pegarmos o filme no geral faz muito sentido, já que este é justamente o cara que analisará minuciosamente cada batida de Neiman. Além disso, no final da cena, Fletcher acaba voltando à sala, o que nos faz imaginar que ele dará alguma chance a Neiman, o que é totalmente quebrado pelo simples fato de ele ter retornado para pegar a jaqueta. Estas quebras de expectativas serão marcas que ocorrerão em todo o filme também. Sendo assim, este breve início não só nos faz entrar no clima do filme, como também nos dá pinceladas importantes do que o filme se tornará.
O divertido no decorrer de todo o filme é ver cenas em que tudo ocorre bem, seguidas de outra em que nada dá certo, como se fosse uma música, com seus altos e baixos. Dessa forma, vemos Neiman entrando para a companhia, saindo com Nicole (Melissa Benoist, que em seus poucos momentos de filme, consegue dar uma vivacidade meiga a um protagonista obstinado), seguido de total sufoco para conseguir acertar o que Fletcher quer, e preferindo se afastar da mesma Nicole para seguir adiante. Depois ele conseguindo retomar o posto de primeiro baterista e ser convocado para o concurso, mas que acaba tomando medidas desproporcionais no simples fato de conseguir chegar até o lugar. Até o fim do filme está mesma lógica se repetirá várias e várias vezes, assim como vimos no começo do filme quando Fletcher retorna para pegar a jaqueta. Essas pulsões de energias, assimilando com as batidas da bateria podem lembrar algo muito importante para todos nós: o coração. O coração bate forte quando encontramos uma pessoa que de fato nos sintamos atraídos, o coração bate fraco quando estamos num jantar familiar, o coração bate forte quando estamos no primeiro dia de aula, o coração bate fraco quando estamos andando pela rua, o coração bate forte quando somos postos diante de uma condição desumana de esforço, várias e várias vezes. Whiplash (2014) é um filme sobre pulsões, um filme que mostra os altos e baixos da vida de um músico, mas que poderia ser muito bem a de um escritor (como a do pai de Neiman), ou a de um diretor (como a do próprio diretor deste filme - Damien Chazelle). Essas pulsões de fato nos fazem vivos, pois imagine uma vida constante, sem nada a se surpreender ou temer. Isso só tiraria basicamente o nosso princípio humano, e a escolha da história ser a de um músico foi muito feliz, já que no cinema além do visual, o som é, sem dúvida, um dos maiores amplificadores de emoções (vide um filme de terror ou ação com as diversas explosões de sons). Com esta escolha ficamos ainda mais imersos nestas pulsões da vida, fazendo com que nós também entremos mais profundamente no filme.
Ao mesmo tempo que temos essas pulsões, temos um outro processo totalmente contraditório que citei lá acima: a desumanização de Neiman. No começo do filme, vemos um cara que não sabe muito bem se relacionar visualmente com outras pessoas, tímido, choroso, mas obstinado a conseguir ser o melhor. A partir do momento que ele entra em contato com Fletcher, Neiman começa a se tornar um Fletcher para as pessoas ao seu redor, tornando-se um cara bruto à mesa de família, rebaixando seus irmãos em represália ao que dizem de sua profissão. Neiman algumas vezes se utiliza do mesmo linguajar que Fletcher usava com ele para seus companheiros de companhia. A pessoa ingênua que Neiman se perde, a ponto de ele ser o único dos três, na cena em que Fletcher os põe incessavelmente à prova, raivoso a tocar a bateria, enquanto os outros já submissos a realidade, tocavam com olhares ausentes a situação. Assim como Nascido para Matar,
em que a desumanização de Pyle o leva a matar Hartman e posteriormente a se suicidar, se assemelhando as brutalidades que este cometia com aquele
Obs.: este foi um dos trailers mais incríveis que eu vi ano passado. Mesmo se vocês já viram o filme, confiram: https://www.youtube.com/watch?v=BjyCGE32Xdo
Tangerinas
4.3 243SPOILER DETECTED!!!!
Estar numa situação de guerra nunca é algo agradável. Independente de onde estamos, a guerra sempre funciona da mesma forma, dois lados combatendo entre si até a morte de um deles. Todo o patriotismo, honra e companheirismo são postos à prova. Cada combatente é incentivado a aniquilar o maior número de vidas em prol de uma melhor promoção futura, de melhor prestígio social. O estado te toma como um herói, um salvador da nação. No entanto, por baixo de todo esse brilhantismo, reside a dor, o sofrimento, os horrores da guerra. A guerra não é nada daquele glamour todo que os governantes querem denotar. São homens, pais, irmãos e filhos lutando lado a lado por interesses que muitas vezes não são os seus contra outros homens, pais, irmãos e filhos. A destruição se alastra, os resultados da guerra, embora favoráveis ao estado são de total rebaixamento mental. Ex-combatentes ficam loucos, traumatizados com toda a experiência. É neste contexto que Tangerines (2013) se baseia. Logo nos somos apresentados a um velho senhor, de nome Ivo (Lembit Ulfsak) que diante de tanta miséria preferiu permanecer na terra por um motivo desconhecido. Já seu amigo, Margus (Elmo Nüganen) tenta com suas últimas forças lucrar um pouco na condição já desastrosa em que se encontra. Juntos, os dois passarão por experiências que irão muito além do que simplesmente colher tangerinas e montar caixas. Estamos poucos anos após 1992, considerando a idade dos dois senhores, é muito possível que os mesmos já tenham combatido na Segunda Guerra Mundial. Reviver todos os horrores passados na guerra não deve ser algo prazeroso para um veterano de guerra. Tudo isto é só suposição, mas este fato poderia muito bem explicar a fuga imediata da guerra, mas Ivo e Margus permaneceram. Isso pode explicar também a receptividade com que tiveram com os feridos, imaginando anos atrás, eles na mesma situação. O fato é que independente disto, alguma mágoa enorme se apoderou de Ivo, de forma que ele se mantivesse nesta terra, resgatando os dois combatentes.
É com o desenrolar do filme, que vemos que existem embates em diversas áreas entre os dois resgatados: orgulho (ambos perderam irmãos nesta micro-guerra), cultural (quando Ahmed (Giorgi Nakashidze) cita a música ou mesmo a comida), religioso (cristão e muçulmano). No entanto, ambos possuem algo que até mesmo espanta Margus: honra. A honra que os impede de matar um ao outro dentro da casa de seu salvador. Se formos reparar, honra é um ato muito recorrente em obras de guerra, mesmo que ela seja uma palavra muito perigosa. Utilizando-se deste discurso, os estados motivaram milhares de combatentes a lutar pela sua nação - a honra de defender seu território -, ao mesmo tempo que a honra seja a única barreira que impede o homem de soltar seu espírito animal, como no caso de Ahmed e Niko (Misha Meskhi). Essa dualidade da honra é importante neste filme, pois como disse acima, agora transcrevendo para o filme, ela motivou os dois lados a se digladiarem, ao mesmo tempo que vai ampliando horizontes entre Ahmed e Ivo, a ponto dos dois se tornarem companheiros na "mesma guerra". Um detalhe interessante que permeia todo o filme é a tensão retratada nele de uma forma sutil: em diversos momentos do filme, temos várias cenas que parecem quebrar a tensão do momento. Citarei três: quando Ahmed diz que assim que Niko sair de casa, ele o matará, se ele colocar a cabeça para fora ele o matará, Ivo o pergunta se ele pelo menos pode mijar para fora de casa. Em outro momento, quando todos perguntam onde está Ivo, e este responde que está mijando, fazendo todos caírem na gargalhada. E uma última vez, quando Ivo descobre que Niko era um ator de uma companhia de teatro, e começando a imitar Ahmed sério aplaudindo Niko da plateia, os dois caem na gargalhada também. Mas se vocês se lembrarem um pouco melhor, se lembrarão que segundos depois de cada uma destas cenas, algo tenso acontece. Na primeira, Niko arremessa o copo em Ahmed. No segundo momento, bombas acertam a casa de Margus. E no último, aparecem os chechenos que levará à morte de Niko e Margus. Parece que o cômico, mesmo que presente no filme, é sempre sufocado pelo estado de guerra, como se estivesse sempre para alertar aonde estavam. E isso é genial, já que o cômico, o rir, um detalhe que nos faz mais humanos é sempre efêmero; a guerra suprime. Esta ideia é metaforicamente uma representação do próprio sufocamento das pessoas num estado como este. Só para completar a ideia de tensão, temos um detalhe técnico, também sutil, que evidencia esta sensação. Na grande maioria do filme, mesmo quando estamos em cena em que Ivo vai simplesmente andar pelo campo de tangerinas, a câmera sempre o acompanha deslizando para os lados. A câmera nunca está estática, focando as personagens da cena. O mais divertido é que esse leve deslize sempre vai para o lado em que as personagens logo após acabarem a cena vão se movimentar, o que dá um dinamismo, e uma melhor movimentação da câmera, dando movimentos mais bruscos só quando necessário (o que é algo que eu particularmente não gosto em Guerra ao Terror (2008), em que temos a câmera sempre tremendo, tirando a sensação que poderia ser mais enfática em cenas mais tensas, caso tremesse somente nestas cenas em específico).
Citei a pouco que Niko era um ator antes da guerra, e que Ahmed bateria palmas de um jeito mecânico. Nisso, podemos tirar algumas ideias dos dois combatentes no estado psicológico. Aparentemente, Niko é mais alegre, mais voltado às artes, com mais cultura (detalhe que ele sempre deixará claro entre eles: que Ahmed não lê), enquanto, Ahmed leva a vida de um jeito mais sério, mais rígido. Estes detalhes são novamente, só suposições, mas a ideia é clara, a imagem que temos tanto de Ahmed quanto de Niko no filme é muito semelhante; homens frios, numa situação delicada. Disso tiramos mais uma ideia da guerra: esta pasteuriza os indivíduos, tira a individualidade deles. São como disse acima, homens, pais, irmãos e filhos lutando contra outros homens, pais, irmãos e filhos. Não vemos a individualidade aqui, e de fato é isso que acontece na guerra: os homens não estão lutando por João, Lucas ou Pedro, eles lutam pela nação, um coletivo, se ausentando de seu indivíduo. A fala de Ahmed evidencia isso ainda mais, já que ele sempre fala "nós" ao invés de "eu acho isso" ("Nós costumamos respeitar os mais velhos", "Nós respeitamos as outras crenças").
Uma última analogia interessante a se fazer que para mim é a mais forte, se dá no contraste de duas cenas: a primeira é aquela em que um grupo de chechenos vêm à casa de Ivo para cumprimentar tanto Ahmed, quanto Niko (ou seja, ele teve que se disfarçar), com a cena em que outros chechenos não acreditam que Ahmed é também outro checheno, causando todas as seguintes mortes. Essas duas cenas ilustram uma ideia que Kubrick em Medo e Desejo (1953) já havia muito bem pontuado (embora ele repudie o filme, vai saber por quê): a ideia de que combatentes lutam com seus similares, de uma forma em que um nem sabe se o outro é de fato amigo, ou inimigo. Nestas duas cenas de Tangerines, vemos essa mesma ideia muito bem demarcada: no primeiro caso, o georgiano se passa por um checheno e tudo fica bem. Na outra, cria-se um desentendimento entre dois indivíduos da mesma nação, causando todo pandemônio. Ivo, pontua isso no final do filme: "Faz diferença quem ataca quem?" Numa guerra, tudo é estrondoso, é horrível, mas mais do que tudo, babaca, para não se usar termo pior. Os horrores são tantos, que ninguém sabe quem luta com quem e por o que. A tristeza é tanta que a glória que alguns tentam achar não passa perto da devastação. Tangerines é sobre isso, o terror da guerra até mesmo num vilarejo minúsculo (perceba que em nenhum momento saímos dessa região para de fato ver o que acontece fora. O externo chega a esta vila - as bombas, os combatentes, os carros), e se pararmos para pensar que só neste lugar tivemos tudo isso, eu nem sei se quero imaginar o que está para fora disto.
Por fim, por que o filme se chamar Tangerines (mexericas, na tradução)? Como Margus mesmo diz, é a luta contra suas mexericas. Faz de fato diferença se a denominação é "Guerra das Mexericas", "Guerra pela Abecásia" ou "Guerra ao Terror"? Eu acho que não.
Obs.: agora totalmente fora do universo deste filme: por alguma razão eu fiquei o filme inteiro lembrando de O Poderoso Chefão. Sei lá, mexericas, laranjas, mortes, devaneios.