Além de serem filmados da mesma maneira, os percursos são vistos repetidamente durante o filme, obedecendo a rotina estruturada do protagonista. Todo dia o menino transita entre a escola, sua casa, as margens do Mar Cáspio, um armazém e um bar. Encontra-se certamente com o professor, a mãe e o pai nestes espaços. Seria então um filme que trabalha com a ideia de imutabilidade da vida em uma pequena aldeia no norte do Irã, certo? Errado. Essa distensão do tempo e espaço e a repetição são cruciais justamente para ressaltar as mudanças que ocorrem na narrativa. Não se tratam de eventos climáticos, mas sim acontecimentos que se interpõem nessa rotina esquematizada podendo ocorrer a qualquer momento. Justamente por isso seja aqui tão importante filmar um trajeto da maneira mais integral possível.
Não é por menos que o filme termine em um percurso, pai e filho lado a lado, retomando a vida, tentando reencontrar a normalidade depois de um simples evento, a morte.
Num filme que aborda a passagem da vida para a morte, chama a atenção o número excessivo de vezes em que personagens abrem e fecham portas, alterando a configuração visual de figura e fundos e permitindo enquadramentos dentro do enquadramento. Porém, mais do que grafismos visuais, essa repetição na misé-en-scène também reforça a constituição do mundo dos vivos como um ambiente de enclausuramento. O protagonista, que vivo, chega a quebrar uma porta a machadadas para conseguir sair, quando morto, atravessa portas sem que estas ofereçam resistência. O corpo e o ambiente são colocados como materialidades físicas limitantes, ideia transcrita na frase do cocheiro da Morte que ordena que uma alma saia do corpo dizendo: “Prisioneiro, abandone sua prisão!”.
Sjöström, interpretando o protagonista do filme, compõe um personagem de força descomunal, capaz de fugir da prisão torcendo grades de ferro e erguer sozinho uma arca de dinheiro até o sótão. Halla, a viúva, enfrenta destemidamente seu cunhado assediador, corre de seus perseguidores pelas montanhas geladas e toma a decisão de sacrificar sua pequena filha no abismo para que esta não caia na mão de seu inimigo. Estes dois seres de fibra são jogados em uma paisagem de penhascos, cascatas e nevascas.
Um filme onde a imagem flutua com o balanço do mar, nos indicando aquele mesmo impulso de Grifith em abandonar o “teatro filmado” e se colocar no centro da ação. Mas, se com o diretor americano destaca-se o domínio de decupagem e montagem, Sjöström impressiona mesmo (talvez por também ser ator) por sua compreensão do quadro cinematográfico e sua capacidade de dinamizá-lo com a encenação. Dentro de um sistema ainda tão dependente da amplitude dos gestos para se fazer compreensível, chama atenção os momentos em que se confia na sutileza para sustentar o drama. O ápice desta postura ocorre no plano em que o protagonista é mostrado de costas, sentado e imóvel diante da imensidão do mar enquanto enfrenta a miséria. Me parece um desses momentos de descoberta das potencialidades da imagem de cinema como cristalizador de uma beleza ontológica das coisas e do seres.
Sganzerla, concebendo o filme que pode explodir a qualquer momento, acaba por explodir a própria cinematografia brasileira do final da década de 60. Foge da lógica do cinema clássico: as pessoas em quadro são corpos performáticos, não personagens; não há linearidade de uma jornada com objetivo a ser alcançado, pelo contrário, o filme se rompe em tempos e espaços instantâneos. Foge da lógica do Cinema Novo: não há heroísmo entre a gente do povo em sua miséria e sofrimento, e acima de tudo, não há salvação a ser alcançada, tudo se afundou na merda e disso não se sai sem morrer. Foge também da lógica da Nouvelle Vague, mais especificamente Godard: o experimentalismo de linguagem não se dá no nível da investigação ou do engajamento político, se dá no nível de um grito subdesenvolvido que vomita os discursos digeridos. Mas, ficar apenas no que esse filme “não é” certamente é insuficiente para alcançar justamente o que ele é. Ele é uma tentativa de conversar com o grande público como o Cinema Clássico, sendo transgressor como o Cinema Novo e inovador como a Nouvelle Vague, colocando na boca dos personagens traços da vida urbana, nomes de personalidades, trabalhando com canções brasileiras e usando o estilo de locução radiofônica jornalística, meio ainda extremamente popular naquele período, sobrepostas às cenas do filme.
Impossível chegar perto, com essas poucas linhas de texto, do frenesi atingido na sequência em que os atores descem a ladeira do morro. Enquanto atuam gritando, contando causos e pendurando-se nas cercas, os moradores riem, as crianças se assustam, os cães partem pra cima. Uma cena potente, que jamais existiria se partisse do esquema de concepção pela mise-en-scène. Sem controle prévio sobre o que está no quadro, tais quais os eventos desencadeados no mundo registrado, a imagem captada também é decidida ali no momento com o percorrer da câmera.
O grito é novamente um elemento de destaque. Os personagens de Sganzerla têm uma força que precisa sair pelos gritos, pelo corpo que se debate, que corre, há uma urgência a ser comunicada e que revela “as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido”, como ele mesmo diz em seu Manifesto "Cinema Fora da Lei". Sônia Silk, mais uma protagonista de Ignez, é uma mulher que se convulsiona recebendo incorporações de espíritos. Me parece que a convulsão é o estado natural desse corpo subdesenvolvido, que não é dono de si, sempre está dominado pelas forças externas. Sganzerla joga seus atores gritando na rua, correndo pelas favelas. O interessante é que nestes jogos cênicos, sempre resvala o olhar circundante do povo sobre as ações. Sganzerla faz cinema híbrido, querendo ou não. Se, esses fulanos não se tivessem vontade ou não tivessem condições de irem até uma sala de cinema ver um filme dele, eram obrigados a testemunhar nas ruas a performance dos atores. Sganzerla tem um propósito trabalhado pela construção ficcional dos atores, que são jogados no palco do mundo. Ele filma essas peças, numa imagem onde se vê a concepção e a recepção, sua visão crítica e o olhar do público que lhe interessa sobre o processo.
“Eu sou simplesmente uma mulher do século XXI, sou um demônio antiocidental, eu cheguei antes. Por isso sou errada assim. Um demônio antiocidental. Uma rata!” HELENA RAINHA DA PORRA TODA.
Karine está maravilhosa. É uma obra de muita simplicidade, vi boa parte do filme com um riso no rosto, mas daí chega aquele final com um soco de vida real. O filme me cativou demais, além de ser uma fonte de inspiração para produzir cinema com baixo orçamento.
Um bom exemplo de como a utilização ou não de uma elipse pode intensificar o drama. Antes de saber que foi abandonada pelo marido, vemos Violeta e seu filho descendo pelo elevador apenas por poucos segundos, um pouco antes de chegarem ao térreo. Mais adiante no filme, quando ela já recebeu a notícia que a desestrutura, somos obrigados a ver ela dentro do mesmo elevador, desde o momento em que entra até o final, cena que é ainda mais incômoda graças aos ruídos do elevador. Assim, o tempo se alonga em compasso com o desespero da personagem.
Na primeira parte do filme, há uma sensação de transferência do poder de manipulação sobre o universo diegético do cineasta para os próprios personagens, que parecem selecionar e direcionar o que aparece na tela, expondo diretamente como se relacionam com o ambiente que os cercam. Já na segunda parte, o filme quebra esse antropocentrismo da forma, desfazendo a ilusão de controle detida pelos personagens. Se antes eles dominavam o ambiente, agora, pelo contrário, é o ambiente que os domina. A interação dos personagens entre si e com o espectador fica mais distante, tirando-os de um nível de segurança e jogando-os em vulnerabilidade. O exterior é imprevisível por si só, daí a impossibilidade de ter algum absoluto poder de condução sobre ele.
Yang Yang é um garotinho que começa a tirar fotografias que possam ajudar as pessoas a verem o pedaço de realidade que não enxergam. É com o mesmo espírito que Edward Yang faz de Yi Yi um filme que expande nosso campo de visão, dissolvendo a vida de seus personagens entre os reflexos da cidade. P.S.: LINDO DEMAIS E CHOREI BASTANTE NO FINAL.
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A Simple Event
4.2 2Além de serem filmados da mesma maneira, os percursos são vistos repetidamente durante o filme, obedecendo a rotina estruturada do protagonista. Todo dia o menino transita entre a escola, sua casa, as margens do Mar Cáspio, um armazém e um bar. Encontra-se certamente com o professor, a mãe e o pai nestes espaços. Seria então um filme que trabalha com a ideia de imutabilidade da vida em uma pequena aldeia no norte do Irã, certo? Errado. Essa distensão do tempo e espaço e a repetição são cruciais justamente para ressaltar as mudanças que ocorrem na narrativa. Não se tratam de eventos climáticos, mas sim acontecimentos que se interpõem nessa rotina esquematizada podendo ocorrer a qualquer momento. Justamente por isso seja aqui tão importante filmar um trajeto da maneira mais integral possível.
Não é por menos que o filme termine em um percurso, pai e filho lado a lado, retomando a vida, tentando reencontrar a normalidade depois de um simples evento, a morte.
A Carruagem Fantasma
4.3 116Num filme que aborda a passagem da vida para a morte, chama a atenção o número excessivo de vezes em que personagens abrem e fecham portas, alterando a configuração visual de figura e fundos e permitindo enquadramentos dentro do enquadramento. Porém, mais do que grafismos visuais, essa repetição na misé-en-scène também reforça a constituição do mundo dos vivos como um ambiente de enclausuramento. O protagonista, que vivo, chega a quebrar uma porta a machadadas para conseguir sair, quando morto, atravessa portas sem que estas ofereçam resistência. O corpo e o ambiente são colocados como materialidades físicas limitantes, ideia transcrita na frase do cocheiro da Morte que ordena que uma alma saia do corpo dizendo: “Prisioneiro, abandone sua prisão!”.
O Fora-da-lei e Sua Mulher
4.0 7Sjöström, interpretando o protagonista do filme, compõe um personagem de força descomunal, capaz de fugir da prisão torcendo grades de ferro e erguer sozinho uma arca de dinheiro até o sótão. Halla, a viúva, enfrenta destemidamente seu cunhado assediador, corre de seus perseguidores pelas montanhas geladas e toma a decisão de sacrificar sua pequena filha no abismo para que esta não caia na mão de seu inimigo. Estes dois seres de fibra são jogados em uma paisagem de penhascos, cascatas e nevascas.
A força humana sucumbe e os dois morrem congelados, restando no plano final a paisagem vazia da natureza em sua força imutável.
Terje Vigen
4.2 9Um filme onde a imagem flutua com o balanço do mar, nos indicando aquele mesmo impulso de Grifith em abandonar o “teatro filmado” e se colocar no centro da ação. Mas, se com o diretor americano destaca-se o domínio de decupagem e montagem, Sjöström impressiona mesmo (talvez por também ser ator) por sua compreensão do quadro cinematográfico e sua capacidade de dinamizá-lo com a encenação.
Dentro de um sistema ainda tão dependente da amplitude dos gestos para se fazer compreensível, chama atenção os momentos em que se confia na sutileza para sustentar o drama. O ápice desta postura ocorre no plano em que o protagonista é mostrado de costas, sentado e imóvel diante da imensidão do mar enquanto enfrenta a miséria. Me parece um desses momentos de descoberta das potencialidades da imagem de cinema como cristalizador de uma beleza ontológica das coisas e do seres.
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 264 Assista AgoraSganzerla, concebendo o filme que pode explodir a qualquer momento, acaba por explodir a própria cinematografia brasileira do final da década de 60.
Foge da lógica do cinema clássico: as pessoas em quadro são corpos performáticos, não personagens; não há linearidade de uma jornada com objetivo a ser alcançado, pelo contrário, o filme se rompe em tempos e espaços instantâneos. Foge da lógica do Cinema Novo: não há heroísmo entre a gente do povo em sua miséria e sofrimento, e acima de tudo, não há salvação a ser alcançada, tudo se afundou na merda e disso não se sai sem morrer. Foge também da lógica da Nouvelle Vague, mais especificamente Godard: o experimentalismo de linguagem não se dá no nível da investigação ou do engajamento político, se dá no nível de um grito subdesenvolvido que vomita os discursos digeridos.
Mas, ficar apenas no que esse filme “não é” certamente é insuficiente para alcançar justamente o que ele é. Ele é uma tentativa de conversar com o grande público como o Cinema Clássico, sendo transgressor como o Cinema Novo e inovador como a Nouvelle Vague, colocando na boca dos personagens traços da vida urbana, nomes de personalidades, trabalhando com canções brasileiras e usando o estilo de locução radiofônica jornalística, meio ainda extremamente popular naquele período, sobrepostas às cenas do filme.
Sem Essa, Aranha!
4.0 63“Ai, que fome... Ai que dor de barriga.”
Impossível chegar perto, com essas poucas linhas de texto, do frenesi atingido na sequência em que os atores descem a ladeira do morro. Enquanto atuam gritando, contando causos e pendurando-se nas cercas, os moradores riem, as crianças se assustam, os cães partem pra cima. Uma cena potente, que jamais existiria se partisse do esquema de concepção pela mise-en-scène. Sem controle prévio sobre o que está no quadro, tais quais os eventos desencadeados no mundo registrado, a imagem captada também é decidida ali no momento com o percorrer da câmera.
Copacabana Mon Amour
3.9 77O grito é novamente um elemento de destaque. Os personagens de Sganzerla têm uma força que precisa sair pelos gritos, pelo corpo que se debate, que corre, há uma urgência a ser comunicada e que revela “as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido”, como ele mesmo diz em seu Manifesto "Cinema Fora da Lei". Sônia Silk, mais uma protagonista de Ignez, é uma mulher que se convulsiona recebendo incorporações de espíritos. Me parece que a convulsão é o estado natural desse corpo subdesenvolvido, que não é dono de si, sempre está dominado pelas forças externas.
Sganzerla joga seus atores gritando na rua, correndo pelas favelas. O interessante é que nestes jogos cênicos, sempre resvala o olhar circundante do povo sobre as ações. Sganzerla faz cinema híbrido, querendo ou não. Se, esses fulanos não se tivessem vontade ou não tivessem condições de irem até uma sala de cinema ver um filme dele, eram obrigados a testemunhar nas ruas a performance dos atores. Sganzerla tem um propósito trabalhado pela construção ficcional dos atores, que são jogados no palco do mundo. Ele filma essas peças, numa imagem onde se vê a concepção e a recepção, sua visão crítica e o olhar do público que lhe interessa sobre o processo.
A Mulher de Todos
3.9 68“Eu sou simplesmente uma mulher do século XXI, sou um demônio antiocidental, eu cheguei antes. Por isso sou errada assim. Um demônio antiocidental. Uma rata!” HELENA RAINHA DA PORRA TODA.
Amarelo Manga
3.8 542 Assista Agora"Eu quero que todo mundo vá tomar no cú."
Riscado
3.8 78 Assista AgoraKarine está maravilhosa. É uma obra de muita simplicidade, vi boa parte do filme com um riso no rosto, mas daí chega aquele final com um soco de vida real. O filme me cativou demais, além de ser uma fonte de inspiração para produzir cinema com baixo orçamento.
O Abismo Prateado
3.3 214 Assista AgoraUm bom exemplo de como a utilização ou não de uma elipse pode intensificar o drama. Antes de saber que foi abandonada pelo marido, vemos Violeta e seu filho descendo pelo elevador apenas por poucos segundos, um pouco antes de chegarem ao térreo. Mais adiante no filme, quando ela já recebeu a notícia que a desestrutura, somos obrigados a ver ela dentro do mesmo elevador, desde o momento em que entra até o final, cena que é ainda mais incômoda graças aos ruídos do elevador. Assim, o tempo se alonga em compasso com o desespero da personagem.
A Margem
4.0 28Na primeira parte do filme, há uma sensação de transferência do poder de manipulação sobre o universo diegético do cineasta para os próprios personagens, que parecem selecionar e direcionar o que aparece na tela, expondo diretamente como se relacionam com o ambiente que os cercam.
Já na segunda parte, o filme quebra esse antropocentrismo da forma, desfazendo a ilusão de controle detida pelos personagens. Se antes eles dominavam o ambiente, agora, pelo contrário, é o ambiente que os domina. A interação dos personagens entre si e com o espectador fica mais distante, tirando-os de um nível de segurança e jogando-os em vulnerabilidade. O exterior é imprevisível por si só, daí a impossibilidade de ter algum absoluto poder de condução sobre ele.
As Coisas Simples da Vida
4.3 120Yang Yang é um garotinho que começa a tirar fotografias que possam ajudar as pessoas a verem o pedaço de realidade que não enxergam. É com o mesmo espírito que Edward Yang faz de Yi Yi um filme que expande nosso campo de visão, dissolvendo a vida de seus personagens entre os reflexos da cidade. P.S.: LINDO DEMAIS E CHOREI BASTANTE NO FINAL.