Quando assisti Paulistas (2017) na mostra “Foco” do Festival Olhar de Cinema, isso um pouco antes de ver Vento Seco (2020), a minha impressão sobre Daniel Nolasco foi de que ele tentava transmitir um olhar conservador ao passo que explorava um pouco das raízes da família rural sertaneja e tradicionalista e um pouco de suas próprias raízes. Ao mesmo tempo, tive a impressão de que o documentário não chegava a lugar algum, apenas captando imagens cotidianas e aleatórias, como se ao final de não ter nada de muito especial para mostrar (além de imagens bonitas, uma coisa que ele sabe fazer e vem melhorando a cada dia) optou por juntar todo o material filmado e montar seu filme. Dada a experiência não muito boa desse primeiro encontro, foi com grande surpresa que adentrei no universo de seu segundo longa, Mr. Leather (2019). Não só o tema bem selecionado e fora da curva me impressionou mas também a linguagem brutalmente já bem desenvolvida, a forma com que coloca a câmera como observadora da ação e mistura isso com a tradicional “entrevista”, ou como consegue manipular a fotografia e a encenação em passagens que mereciam uma representação simbólica, e também a ousadia em adentrar sem amarras o fascinante universo leatherman. E se não fosse pelo fato de não ter tido a chance de ver seus curtas, pelo menos por enquanto, eu diria que não só existe uma suposta evolução no trabalho de Nolasco, mas também um domínio das linguagens variantes do contar histórias. O que antes me parecia um certo maneirismo fílmico sem muito tempero em Paulistas, se mostrou candidato a grande conhecimento de narrativas. Não muito diferente dessa grande experiência com seu segundo longa, Vento Seco, seu terceiro, me encantou profundamente. Sandro (Leandro Faria Lelo) é um funcionário comum de uma indústria de grãos, que passa os seus dias na produção rotineira e sem muita novidade, com a cabeça viajando nas experiências sexuais reais e irreais de sua vida. Vivendo um vida de carcereiro dos próprios desejos, o roteiro nunca deixa muito claro se existiu no passado um preconceito por parte dos funcionários com a sexualidade de Sandro, já que ele opta por viver sempre muito discretamente, sem muito contato com os outros empregados ou sem se deixar levar pelas vontades internas reprimidas. Dentro da fábrica sua única companhia e amizade de maior valia parece ser Paula (Renata Carvalho), que também nunca demonstra mais que o necessário conhecer a vida do colega, e passa boa parte do filme tentando convencer Sandro de assinar um documento para a melhoria dos EPIs de segurança, o que transforma a maior parte das conversas em assunto do trabalho. Essa é uma força no roteiro de Nolasco, você nunca sabe mais do que o que as imagens mostram e isso já cria por si só a expectativa de que algo que não foi dito, mas que se sabe, seja dito. Fora do trabalho, a vida de Sandro se modifica completamente, e ele deixa de ser um operário para ser um liberto. É apenas fora da empresa que todo ato imaginativo é consumado em ato. E que toda vontade reprimida pela sociedade industrial, rural e urbana se transfigura em ato de liberdade, o que é bem explorado pela locação das imagens, que deixam o mundo humano e são transferidas para o meio das árvores e a natureza: longe do olhar julgador do homem e longe do pudor esperado pela sociedade. Quando aqueles corpos finalmente podem ter o seu espaço, as vestimentas deixam de ser necessárias, a vontade da carne e natural toma conta. O chão de barro e folha se torna a melhor lençol possível. Nessa jornada, ganha um novo e grande aliado, Ricardo (Allan jacinto Santana) que compartilha da mesma frustração social que Sandro, só que diferente deste, busca fugir dessa situação e se libertar. Em uma narrativa em que sonhos e realidade se misturam em linhas quase indiscerníveis, Nolasco e seu diretor de fotografia Larry Machado tem a chance de brincar com as imagens da cidade do interior, juntando elementos da estilização completa com a utilização do neon para aumentar ainda mais essa estilização. As cores não estão presentes só no roxo, azul e rosa da cinematografia mas também na direção de arte que faz um trabalho minucioso ao escolher carros vermelhos para representar o estado de espirito dos personagens após saírem do antro repressor. Essa ideia de representar a o sentimento através das cores é muitas vezes usada de forma mais sutil, como a escolha da cor da cueca de Maicon ao sair da piscina até chuveirinho e o vestiário, um vermelho naturalista que realça um sentimento da sequência, ou são verbalizadas como no momento que Paula diz que a escolha da cor “vinho”, diz muito sobre Sandro. Dentro da experiência com a fotografia, a encenação também é elevada ao nível de ritual com Nolasco voltando ao mundo do couro apresentado Mr. Leather, com direito a presença de fantasias e do BDSM, e do bom e velho motoqueiro estilo Marlon Brando. O que mostra uma tendência nos temas abordados, criando um universo autoral e com muito vigor artístico. Acredito que não se pode falar de Vento Seco sem citar uma tendência recente do cinema nacional de explorar a vida do trabalhador comum, do operariado, do peão de fábrica em seus afazeres diários, mas que também é gente e precisa de suas histórias sendo contadas. Eu sempre penso nesses filmes, usando como exemplo o espetacular Arábia (2017), co-escrito e co-dirigido por João Dumans e Affonso Uchôa, como se fossem os soviéticos de Eisenstein, mas em que a revolução acontece de forma interna e não externa. Em que o personagem precisa passar pela jornada da aceitação mas também pela revolução reprimida. São pessoas renegadas socialmente e marginalizadas e quando não são da classe mais pobre, simplesmente se encaixam no contexto social em que vivem, sem muita relutância. Muito diferente de Cabeça de Nêgo (2020), outro filme que vi no Olhar de Cinema 2020, em que a revolução externa realmente acontece, mesmo que de forma pequena e através de estudantes de um bairro pobre, os filmes em que a revolução do espirito ocorrem também são extremamente necessários. Pois, é importante que o cinema mostre a necessidade da consciência de classe dentro de cada um. O cinema de Nolasco deve ser visto e revisto, seus temas e suas narrativas têm estilo e magia, e isso não faz com que não sejam histórias reais o suficiente, apenas diz que encontraram a pessoa certa para conta-las.
Franz Jägerstätter tornou-se um símbolo do verdadeiro herói. Não aquele que é direcionado ao campo de batalha e mata pessoas inocentes, como normalmente são exaltados os heróis de guerra. Mas um humano que não abandona sua honra, ou suas convicções, mesmo sabendo que isso pode coloca-lo em uma das jornadas mais perigosas, cruéis e desumanas já registradas. Alguém que enfrenta o pior dos inimigos, em um campo de batalha que se encontra apenas dentro de si mesmo. é a luta por defender uma ideia, e ser julgado por ela.
Questionado o filme inteiro o por que de assumir tal posição, a de não lutar em nome de uma ideologia que considera incompressível e intragável, Franz vai de encontro com os ideias proclamados por quase toda a nação (não só da Alemanha, mas da Áustria, naquele período), ele apenas responde em certo momento, um dos poucos que se abre com alguém dentro do filme, em uma conversa com o juiz interpretado por Bruno Ganz (um de seus últimos papeis, fazendo dessa vez mais um nazista), que, apenas pensa que não deve fazer o aquilo que acredita ser errado.
E para que fique bem claro para as pessoas, que Franz Jägerstätter não é um homem covarde, apenas com medo de perder a vida na guerra, o roteiro introduz logo no inicio do filme, cenas em que o protagonista é mostrado no exército, como um homem corajoso. Se isso já não fosse o bastante, o roteiro volta a afirmar esse fato, colocando em vários diálogos (e sabendo que o filme tem poucos, certamente estão lá por motivos bem demarcados) pessoas as voltas de Jägerstätter lhe cobrando satisfação, lhe dizendo que não agiria daquela forma antes de conhecer sua esposa. Aqui Malick traz mais um comentário social: sabendo que é comum que seus filmes evoquem a religiosidade, não é de se esperar menos do que uma mostra da mulher com culpada, a detentora do pecado. Sua esposa, Franziska Jägerstätter (Valerie Pachner) não é pressionada apenas pelos vizinhos e antigas amigas, mas tem de aguentar os olhares ardidos de sua sogra, que também culpa a moça pelas decisões do filho. mas não existe ninguém culpado pelas decisões de Franz, ele fez uma escolha. Talvez existam pessoas culpadas pelas decisões de todos os outros.
Ora, Franz é um camponês que não entende nada de política, que passa todo o seu tempo dedicado a família. Mas ele cresceu cercado por judeus e outras raças, ele os vê como as pessoas normais que são, ou que até aquele momento, antes do ideal nazista assumir proporções inquestionáveis na Europa, o eram. Mas como lutar sozinho, contra uma nação inteira?
Todo o tempo, por onde Franz passa, vários personagens lhe perguntam quase em súplica: "Você me julga?", "Você se acha melhor que eu?". Ele sempre responde que não julga ninguém, não guarda rancor de ninguém e não acredita ser melhor que qualquer outro. Apenas que, não concorda em jurar lealdade ao Führer. Apesar disso, apesar de estar consciente de suas posições e se manter firme nestas, ele esta em uma luta interna gigantesca. Em suas conversas com divino (normalmente em off, como Terrence Malick costuma utilizar) ele sempre está a procura de uma resposta. Espera que Deus lhe diga algo, lhe mostre como agir, que Deus escolha por ele. É justiça ou injustiça? Esses atos são condenáveis? Estou errado em defender essa posição que é intrínseca a mim?
Como o homem religioso que é, Jägerstätter encontra ainda outra barreira, se até mesmo a igreja concorda com esses atos, a santa igreja, imponente estrutura - que Malick habilmente faz questão de engrandecer e enaltecer o poder mostrando planos que contemplam tudo de baixo, sempre captando toda a arquitetura monumental dos salões, que deixam os personagens sufocados nos cantos, sempre humildes, sempre contestados e julgados. invariavelmente reprimidos, mas sempre acolhidos. - Se até mesmo essa organização celeste apoia o facínora de Hitler, quem é Jägerstätter? o que os atos indesejáveis e rebeldes de "uma vida oculta", de um trabalhador rural, tem de mais verdadeiros e mais honrados que aquilo que todo o resto, até mesmo os poderosos acreditam? Afinal de contas esse é o tema do filme, estes humanos que durante a historia, não só na Europa na primeira metade do século XX, mas em todo o mundo, não se deixaram empalidecer perante as ideologias totalitárias dos regimes governantes de seus períodos sangrentos.
Talvez um dos poucos e principais pecados de Malick ao contar essa história, seja, de forma surpreendente, a beleza que ele costuma extrair dos acontecimentos. Se ao mesmo tempo que as imagens lindas da cinematografia assinada por Jörg Widmer contrastam perfeitamente em certos momentos, mostrando a beleza e paz da vida dos Jägerstätter antes da guerra e a tristeza e sobriedade depois que ela começa e um pouco mais adiante, enquanto ele está preso. Terrence Malick deixa de explorar nos atos o sofrimento do protagonista, para manter uma coerência visual de beleza que ele costuma ver no mundo. É claro que a contemplação e a presença da natureza é uma das assinaturas do diretor, e algo que funciona perfeitamente bem em certos momentos (como em seu Árvore da Vida, um dos meus filmes preferidos) mas que ao serem usadas constantemente e até mesmo impedindo a imersão visual naquele sofrimento necessário do personagem, é sim um problema. Um problema que impede que nos conectemos com o Franz, um homem que sofre muito, mas sempre internamente. Cabe ao talentoso August Diehl sempre expressar os sentimentos no olhar e em sua postura, em sua quietude, já que ele quase nunca fala.
Ao assistir, lembrei em vários momentos de Silêncio, do Scorsese. Em Silêncio, o personagem de Andrew Garfield sofre o filme todo por defender sua posição e seus ideais, aquilo que acredita ser certo, algo parecido aqui, apesar dos temas diferentes (mas a fé sempre presente). A diferença é que, Scorsese é sempre hábil em colocar em choque o sofrimento interno do personagem, e aquilo de mais terrível que acontece no externo: decapitações, pessoas sendo queimadas vivas, afogadas, pregadas na cruz.
Mas entendo o que Terrence tentou buscar aqui. Ele tentou mostrar, como em seus filmes mais recentes, que apesar de todo o mau existente no mundo, este é belo. O mundo é um lugar bom de se viver. Apesar de todas as atrocidades e sofrimentos perpetuados por gerações, sempre vai existir pessoas para você amar. Pessoas que amem você. Sempre existe a família e a natureza, a criação divina, para te manter feliz. Isso é lindo, mas não funciona em todas as histórias, e nesse caso pode atrapalhar um pouco a imersão do público em uma história irreparavelmente triste.
Tirando essa falha de Uma Vida Oculta, o filme é um espetáculo. Como os filmes do diretor costumam ser. Uma fotografia invejável, exploração de momentos de pura simplicidade, atos de grandeza escondidos, trilha sonora que eleva a ode a vida proposto por Malick, mesmo que este mundo tenha um histórico de atrocidades e carregue em sua história manchas sombrias, como casos como a vida de homens como Franz Jägerstätter, que lutaram sozinhos por um mundo que acreditavam ser o melhor.
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O Ladrão de Bagdá
3.9 37 Assista AgoraPostei "O Ladrão de Bagdá" no Youtube, em 1080p e legendado.
link:
https://www.youtube.com/watch?v=l3CCOAeGXNI
O Cantor de Jazz
3.4 70 Assista AgoraPostei o O Cantor de Jazz no meu canal, em 1080p.
https://www.youtube.com/watch?v=TXa9sFbjqLQ&t=1202s
Os Espiões
3.8 12Postei Os Espiões no meu canal, em 1080p.
https://www.youtube.com/watch?v=aTY6lI3QQYY&t=181s
Suspeita
3.7 110 Assista AgoraPostei Suspeita no meu canal, em 1080p.
https://www.youtube.com/watch?v=AJ45-mxQd70&t=3800s
O Pensionista
3.9 80 Assista AgoraPostei O Pensionista (O Inquilino) no meu canal, em 1080p.
https://www.youtube.com/watch?v=jIqnPxg8_aw
A Mulher na Lua
4.2 19Postei A Mulher na Lua no meu canal, em 1080p.
https://youtu.be/sCeoYWsFZs8
Corações Em Luta
3.5 3Postei Corações em Luta no meu canal, com qualidade 1080p.
https://youtu.be/2ahKd6TrGi0
Interlúdio
4.0 269 Assista AgoraPostei Interlúdio no meu canal, com qualidade 1080p.
https://youtu.be/DiXXS1ttEes
A Vingança de Kriemhilde
4.2 13Postei ambas as partes de Os Nibelungos em meu canal, com qualidade 1080p.
Parte 1:
https://youtu.be/31n7t9S2K5s
Parte 2:
https://youtu.be/NWHo0DRTwfc
Os Nibelungos Parte 1 - A Morte de Siegfried
4.3 24Postei ambas as partes de Os Nibelungos em meu canal, com qualidade 1080p.
Parte 1:
https://youtu.be/31n7t9S2K5s
Parte 2:
https://youtu.be/NWHo0DRTwfc
Vento Seco
3.2 89Quando assisti Paulistas (2017) na mostra “Foco” do Festival Olhar de Cinema, isso um pouco antes de ver Vento Seco (2020), a minha impressão sobre Daniel Nolasco foi de que ele tentava transmitir um olhar conservador ao passo que explorava um pouco das raízes da família rural sertaneja e tradicionalista e um pouco de suas próprias raízes. Ao mesmo tempo, tive a impressão de que o documentário não chegava a lugar algum, apenas captando imagens cotidianas e aleatórias, como se ao final de não ter nada de muito especial para mostrar (além de imagens bonitas, uma coisa que ele sabe fazer e vem melhorando a cada dia) optou por juntar todo o material filmado e montar seu filme.
Dada a experiência não muito boa desse primeiro encontro, foi com grande surpresa que adentrei no universo de seu segundo longa, Mr. Leather (2019). Não só o tema bem selecionado e fora da curva me impressionou mas também a linguagem brutalmente já bem desenvolvida, a forma com que coloca a câmera como observadora da ação e mistura isso com a tradicional “entrevista”, ou como consegue manipular a fotografia e a encenação em passagens que mereciam uma representação simbólica, e também a ousadia em adentrar sem amarras o fascinante universo leatherman. E se não fosse pelo fato de não ter tido a chance de ver seus curtas, pelo menos por enquanto, eu diria que não só existe uma suposta evolução no trabalho de Nolasco, mas também um domínio das linguagens variantes do contar histórias. O que antes me parecia um certo maneirismo fílmico sem muito tempero em Paulistas, se mostrou candidato a grande conhecimento de narrativas.
Não muito diferente dessa grande experiência com seu segundo longa, Vento Seco, seu terceiro, me encantou profundamente.
Sandro (Leandro Faria Lelo) é um funcionário comum de uma indústria de grãos, que passa os seus dias na produção rotineira e sem muita novidade, com a cabeça viajando nas experiências sexuais reais e irreais de sua vida. Vivendo um vida de carcereiro dos próprios desejos, o roteiro nunca deixa muito claro se existiu no passado um preconceito por parte dos funcionários com a sexualidade de Sandro, já que ele opta por viver sempre muito discretamente, sem muito contato com os outros empregados ou sem se deixar levar pelas vontades internas reprimidas. Dentro da fábrica sua única companhia e amizade de maior valia parece ser Paula (Renata Carvalho), que também nunca demonstra mais que o necessário conhecer a vida do colega, e passa boa parte do filme tentando convencer Sandro de assinar um documento para a melhoria dos EPIs de segurança, o que transforma a maior parte das conversas em assunto do trabalho. Essa é uma força no roteiro de Nolasco, você nunca sabe mais do que o que as imagens mostram e isso já cria por si só a expectativa de que algo que não foi dito, mas que se sabe, seja dito.
Fora do trabalho, a vida de Sandro se modifica completamente, e ele deixa de ser um operário para ser um liberto. É apenas fora da empresa que todo ato imaginativo é consumado em ato. E que toda vontade reprimida pela sociedade industrial, rural e urbana se transfigura em ato de liberdade, o que é bem explorado pela locação das imagens, que deixam o mundo humano e são transferidas para o meio das árvores e a natureza: longe do olhar julgador do homem e longe do pudor esperado pela sociedade. Quando aqueles corpos finalmente podem ter o seu espaço, as vestimentas deixam de ser necessárias, a vontade da carne e natural toma conta. O chão de barro e folha se torna a melhor lençol possível.
Nessa jornada, ganha um novo e grande aliado, Ricardo (Allan jacinto Santana) que compartilha da mesma frustração social que Sandro, só que diferente deste, busca fugir dessa situação e se libertar.
Em uma narrativa em que sonhos e realidade se misturam em linhas quase indiscerníveis, Nolasco e seu diretor de fotografia Larry Machado tem a chance de brincar com as imagens da cidade do interior, juntando elementos da estilização completa com a utilização do neon para aumentar ainda mais essa estilização. As cores não estão presentes só no roxo, azul e rosa da cinematografia mas também na direção de arte que faz um trabalho minucioso ao escolher carros vermelhos para representar o estado de espirito dos personagens após saírem do antro repressor. Essa ideia de representar a o sentimento através das cores é muitas vezes usada de forma mais sutil, como a escolha da cor da cueca de Maicon ao sair da piscina até chuveirinho e o vestiário, um vermelho naturalista que realça um sentimento da sequência, ou são verbalizadas como no momento que Paula diz que a escolha da cor “vinho”, diz muito sobre Sandro.
Dentro da experiência com a fotografia, a encenação também é elevada ao nível de ritual com Nolasco voltando ao mundo do couro apresentado Mr. Leather, com direito a presença de fantasias e do BDSM, e do bom e velho motoqueiro estilo Marlon Brando. O que mostra uma tendência nos temas abordados, criando um universo autoral e com muito vigor artístico.
Acredito que não se pode falar de Vento Seco sem citar uma tendência recente do cinema nacional de explorar a vida do trabalhador comum, do operariado, do peão de fábrica em seus afazeres diários, mas que também é gente e precisa de suas histórias sendo contadas. Eu sempre penso nesses filmes, usando como exemplo o espetacular Arábia (2017), co-escrito e co-dirigido por João Dumans e Affonso Uchôa, como se fossem os soviéticos de Eisenstein, mas em que a revolução acontece de forma interna e não externa. Em que o personagem precisa passar pela jornada da aceitação mas também pela revolução reprimida. São pessoas renegadas socialmente e marginalizadas e quando não são da classe mais pobre, simplesmente se encaixam no contexto social em que vivem, sem muita relutância.
Muito diferente de Cabeça de Nêgo (2020), outro filme que vi no Olhar de Cinema 2020, em que a revolução externa realmente acontece, mesmo que de forma pequena e através de estudantes de um bairro pobre, os filmes em que a revolução do espirito ocorrem também são extremamente necessários. Pois, é importante que o cinema mostre a necessidade da consciência de classe dentro de cada um.
O cinema de Nolasco deve ser visto e revisto, seus temas e suas narrativas têm estilo e magia, e isso não faz com que não sejam histórias reais o suficiente, apenas diz que encontraram a pessoa certa para conta-las.
Uma Vida Oculta
3.9 154Franz Jägerstätter tornou-se um símbolo do verdadeiro herói. Não aquele que é direcionado ao campo de batalha e mata pessoas inocentes, como normalmente são exaltados os heróis de guerra. Mas um humano que não abandona sua honra, ou suas convicções, mesmo sabendo que isso pode coloca-lo em uma das jornadas mais perigosas, cruéis e desumanas já registradas. Alguém que enfrenta o pior dos inimigos, em um campo de batalha que se encontra apenas dentro de si mesmo. é a luta por defender uma ideia, e ser julgado por ela.
Questionado o filme inteiro o por que de assumir tal posição, a de não lutar em nome de uma ideologia que considera incompressível e intragável, Franz vai de encontro com os ideias proclamados por quase toda a nação (não só da Alemanha, mas da Áustria, naquele período), ele apenas responde em certo momento, um dos poucos que se abre com alguém dentro do filme, em uma conversa com o juiz interpretado por Bruno Ganz (um de seus últimos papeis, fazendo dessa vez mais um nazista), que, apenas pensa que não deve fazer o aquilo que acredita ser errado.
E para que fique bem claro para as pessoas, que Franz Jägerstätter não é um homem covarde, apenas com medo de perder a vida na guerra, o roteiro introduz logo no inicio do filme, cenas em que o protagonista é mostrado no exército, como um homem corajoso. Se isso já não fosse o bastante, o roteiro volta a afirmar esse fato, colocando em vários diálogos (e sabendo que o filme tem poucos, certamente estão lá por motivos bem demarcados) pessoas as voltas de Jägerstätter lhe cobrando satisfação, lhe dizendo que não agiria daquela forma antes de conhecer sua esposa. Aqui Malick traz mais um comentário social: sabendo que é comum que seus filmes evoquem a religiosidade, não é de se esperar menos do que uma mostra da mulher com culpada, a detentora do pecado. Sua esposa, Franziska Jägerstätter (Valerie Pachner) não é pressionada apenas pelos vizinhos e antigas amigas, mas tem de aguentar os olhares ardidos de sua sogra, que também culpa a moça pelas decisões do filho. mas não existe ninguém culpado pelas decisões de Franz, ele fez uma escolha. Talvez existam pessoas culpadas pelas decisões de todos os outros.
Ora, Franz é um camponês que não entende nada de política, que passa todo o seu tempo dedicado a família. Mas ele cresceu cercado por judeus e outras raças, ele os vê como as pessoas normais que são, ou que até aquele momento, antes do ideal nazista assumir proporções inquestionáveis na Europa, o eram. Mas como lutar sozinho, contra uma nação inteira?
Todo o tempo, por onde Franz passa, vários personagens lhe perguntam quase em súplica: "Você me julga?", "Você se acha melhor que eu?". Ele sempre responde que não julga ninguém, não guarda rancor de ninguém e não acredita ser melhor que qualquer outro. Apenas que, não concorda em jurar lealdade ao Führer. Apesar disso, apesar de estar consciente de suas posições e se manter firme nestas, ele esta em uma luta interna gigantesca. Em suas conversas com divino (normalmente em off, como Terrence Malick costuma utilizar) ele sempre está a procura de uma resposta. Espera que Deus lhe diga algo, lhe mostre como agir, que Deus escolha por ele. É justiça ou injustiça? Esses atos são condenáveis? Estou errado em defender essa posição que é intrínseca a mim?
Como o homem religioso que é, Jägerstätter encontra ainda outra barreira, se até mesmo a igreja concorda com esses atos, a santa igreja, imponente estrutura - que Malick habilmente faz questão de engrandecer e enaltecer o poder mostrando planos que contemplam tudo de baixo, sempre captando toda a arquitetura monumental dos salões, que deixam os personagens sufocados nos cantos, sempre humildes, sempre contestados e julgados. invariavelmente reprimidos, mas sempre acolhidos. - Se até mesmo essa organização celeste apoia o facínora de Hitler, quem é Jägerstätter? o que os atos indesejáveis e rebeldes de "uma vida oculta", de um trabalhador rural, tem de mais verdadeiros e mais honrados que aquilo que todo o resto, até mesmo os poderosos acreditam? Afinal de contas esse é o tema do filme, estes humanos que durante a historia, não só na Europa na primeira metade do século XX, mas em todo o mundo, não se deixaram empalidecer perante as ideologias totalitárias dos regimes governantes de seus períodos sangrentos.
Talvez um dos poucos e principais pecados de Malick ao contar essa história, seja, de forma surpreendente, a beleza que ele costuma extrair dos acontecimentos. Se ao mesmo tempo que as imagens lindas da cinematografia assinada por Jörg Widmer contrastam perfeitamente em certos momentos, mostrando a beleza e paz da vida dos Jägerstätter antes da guerra e a tristeza e sobriedade depois que ela começa e um pouco mais adiante, enquanto ele está preso. Terrence Malick deixa de explorar nos atos o sofrimento do protagonista, para manter uma coerência visual de beleza que ele costuma ver no mundo. É claro que a contemplação e a presença da natureza é uma das assinaturas do diretor, e algo que funciona perfeitamente bem em certos momentos (como em seu Árvore da Vida, um dos meus filmes preferidos) mas que ao serem usadas constantemente e até mesmo impedindo a imersão visual naquele sofrimento necessário do personagem, é sim um problema. Um problema que impede que nos conectemos com o Franz, um homem que sofre muito, mas sempre internamente. Cabe ao talentoso August Diehl sempre expressar os sentimentos no olhar e em sua postura, em sua quietude, já que ele quase nunca fala.
Ao assistir, lembrei em vários momentos de Silêncio, do Scorsese. Em Silêncio, o personagem de Andrew Garfield sofre o filme todo por defender sua posição e seus ideais, aquilo que acredita ser certo, algo parecido aqui, apesar dos temas diferentes (mas a fé sempre presente). A diferença é que, Scorsese é sempre hábil em colocar em choque o sofrimento interno do personagem, e aquilo de mais terrível que acontece no externo: decapitações, pessoas sendo queimadas vivas, afogadas, pregadas na cruz.
Mas entendo o que Terrence tentou buscar aqui. Ele tentou mostrar, como em seus filmes mais recentes, que apesar de todo o mau existente no mundo, este é belo. O mundo é um lugar bom de se viver. Apesar de todas as atrocidades e sofrimentos perpetuados por gerações, sempre vai existir pessoas para você amar. Pessoas que amem você. Sempre existe a família e a natureza, a criação divina, para te manter feliz. Isso é lindo, mas não funciona em todas as histórias, e nesse caso pode atrapalhar um pouco a imersão do público em uma história irreparavelmente triste.
Tirando essa falha de Uma Vida Oculta, o filme é um espetáculo. Como os filmes do diretor costumam ser. Uma fotografia invejável, exploração de momentos de pura simplicidade, atos de grandeza escondidos, trilha sonora que eleva a ode a vida proposto por Malick, mesmo que este mundo tenha um histórico de atrocidades e carregue em sua história manchas sombrias, como casos como a vida de homens como Franz Jägerstätter, que lutaram sozinhos por um mundo que acreditavam ser o melhor.