“Casa Grande”, filme estreia de ficção de Fellipe Barbosa, compõe um retrato, assim como em “Que horas ela volta?”, da alta burguesia brasileira e de seus conhecidos discursos conservadores e inconscientemente preconceituosos. Além de expor em ótimos diálogos essa classe, “Casa Grande” observa o protagonista, o adolescente Jean (Thales Cavalcanti), que se descobre pertencente a esse espaço quando sua bolha social é atingida por uma crise financeira que desestabiliza o conforto dessa família. Vendo-se como um produto inevitável desse meio rodeado pelo pai neoliberal e a mãe asséptica, Jean passa a descobrir as grandezas e complexidades de um mundo invisibilizado para ele e a ensaiar sua autonomia no mundo.
Ingmar Bergman escreveu o argumento de Persona (1966) durante o tempo em que esteve internado na clínica Sophia, recuperando-se de uma pneumonia dupla. Naquele momento, ele também se dizia atolado com o bombardeio que chegava ao seu gabinete quando chefiava o Teatro Nacional. Este que, pela situação precária em que se encontrava, demandava-lhe muito mais do que um processo artístico. Apesar da experiência com o teatro ter lhe promovido uma maturidade acelerada, segundo ele, no livro Imagens (1990), estava ali passando por uma crise: “encontrava-me, portanto, na clínica Sophia e fui reconhecendo, pouco a pouco, que minha atividade como diretor de teatro se tornara um obstáculo à minha criatividade. Tinha posto os motores a funcionar ao máximo, e os motores avançariam a carroceria” (BERGMAN, 1990). Diante dessa sensação mecânica e fútil, Bergman se volta ao cinema para entregar novamente suas angústias. Na pele de suas personagens — Vogler e Alma, Bergman se projeta e parece questionar, em Persona, a multiplicidade de faces que nos habitam e a inútil procura por aquela mais tangível. Nesse seu filme, Persona, é evidente o anseio de Bergman em retomar seu cinema. Logo na primeira cena, enquadra um projetor de películas — objeto de grande afeto para o diretor — e passamos a ver diversas imagens, a princípio, desconexas; já indicando uma aproximação maior com a natureza das imagens do que com uma narrativa restringida puramente a um enredo clássico. Ainda em seu livro Imagens, Bergman observa que, pela primeira vez em sua carreira, foi importante não se preocupar com “o fato de o resultado vir a ser ou não do gosto do público. O evangelho segundo o qual se devia ser sempre inteligível e que me haviam metido na cabeça nos tempos em que trabalhava como escravo de roteiro para a Svensk Filmindustri, pude finalmente mandá-lo para o diabo” (idem). E completa dizendo que, em Persona e Gritos e Sussurros, “fui o mais longe que pude quanto à técnica narrativa. Isto é, com total liberdade toco em segredos para os quais não existem palavras e que só a cinematografia pode patentear” (idem). Diante disso, encontramos aqui uma obra prima que trata não somente de suas personagens ou do Bergman em si, mas também, do olhar que se direciona às imagens, ao cinema. “A questão que se põe é se a arte tem possibilidade de continuar a existir sem ser uma atividade do tempo de lazer” (idem), finaliza. Portanto, com esse filme, Bergman parece dar um salto em sua filmografia. Se antes, em seus enredos e constante monólogos, sempre estiveram presentes os questionamentos de uma alma aflita; em Persona, isso se volta majoritariamente à forma. Há uma busca pelo tátil, por aquilo que se encontra mais na imagem do que na palavra. Esse ponto talvez seja central para o desenvolvimento desse filme. Uma atenção à imagem, seja a nossa própria, a do outro ou a imagem plástica: é possível tocar o real a partir da forma? No início do filme, na cena em que vemos um garoto em um ambiente incerto, este abandona o livro e suas palavras para contemplar as imagens dos rostos das personagens que surgem a sua frente. Ali, estende a sua mão como se procurasse alcançar, através do toque, as imagens, como se fossem, elas mesmas, o real. Ao decorrer do filme, as mãos continuam a demonstrar essa procura pelo toque verdadeiro, para além da persona. Voltando o olhar para essa palavra que dá título à obra, persona era a máscara que os atores do teatro grego utilizavam para interpretar seus papéis. De acordo com a etimologia, persona significa soar através de — nessas máscaras haviam um orifício na região da boca que permitia a passagem da voz, mas, por outro lado, continuavam a omitir a face real. Nesse sentido, pensemos, por exemplo, na personagem Elisabeth Vogler (Liv Ullmann). Após anos interpretando diversos papéis no teatro, de repente, decide não mais falar. Essa personagem, podemos dizer, representa a tentativa de, ao omitir a voz que dá vida a essas máscaras, dar a ver uma imagem mais próxima de si — do mesmo modo, podemos perceber um paralelo da personagem de Liv com o próprio Bergman e sua relação, como abordamos no início, com a pausa no teatro e a busca pela imagem através do cinema. Ao lado de Vogler — para não se restringir ao dizer dentro —, está a personagem Alma (Bibi Anderson), a enfermeira designada a cuidar dessa atriz, com a qual desenvolve, a princípio, uma relação oposta, mas que passa cada vez mais a aproximar as personagens, a ponto de as fundirem. Para Bergman (1990), Alma, confrontada pelo silêncio do outro, passa a voltar a voz para si, procurando a sua própria pessoa e a se conhecer. Em determinado momento, no qual Alma relata sobre ações aparentemente contraditórias que cometeu no passado, ela diz: “nada disso se encaixa ou faz sentido. É possível ser duas pessoas ao mesmo tempo? ”, ao passo que, ouvindo o choro de Alma, Vogler a toca, sorrindo, como se visualizasse a verdadeira face da outra. Já em outra cena, quando Alma lê uma carta, na qual Vogler a analisa, a linha tênue que as dividia entre paciente e enfermeira termina por se dissolver. E então, a medida em que o filme avança, presenciamos a profunda experiência que Bergman constrói através da mise-en-scène, da fotografia, da iluminação, dos figurinos, dos diálogos; elementos que emergem na própria imagem a alma das personagens como uma só, diluindo suas personas. Aqui, é como se ambas fossem o espelho uma da outra. Antes de terminarmos essa passagem por Persona, atentemo-nos para o que diz respeito à forma. Aqui, o filme parece ser, ele mesmo, uma persona que se desenvolve juntamente com as personagens. Constantemente, ele rompe com um estado de imersão, com a ilusão, com o disfarce de si mesmo, para voltar a atenção para aquilo que, em essência, o cinema é: imagem e som. Desde as primeiras cenas, que se chocam e não se aglutinam como numa linha narrativa; passando por diálogos onde não há contra plano, mas uma quebra da quarta parede; por sons dissonantes; por iluminações emocionais; a até mesmo a interrupção do filme quando a película é queimada — nessa cena específica (figura abaixo), a fita, como que tomada pelo horror ao ver em imagem, por trás do véu, uma persona maligna da personagem Alma, queima-se —, vemos o filme olhar para si mesmo. Bergman, em Persona, consegue unir em uma única obra o olhar a si mesmo, a seus personagens, às imagens e ao próprio fazer cinema. Traçando um paralelo novamente com a personagem de Liv Ullmann, que diante das imagens é tomada por uma força inexplicável, finalizo com o que Bergman escreve em seu livro (1990): “minha arte não pode assimilar, transformar ou esquecer aquele garoto de uma certa fotografia nem o homem que se queima pela fé que professa”.
A partir de uma pesquisa de seu pai, professor e escritor Joaquim Maná, Zezinho Yube continua a investigar os grafismos tradicionais das mulheres Huni Kui, procurando conhecer e fortalecer seu povo e sua cultura indígena. Oriundo do “Vídeo nas Aldeias”, projeto extremamente importante no empoderamento das imagens dos povos indígenas por e para si próprios, “As voltas do Kene” é um documentário com o que se tem de mais potente neste gênero. Mais do que o registro de um tempo e um espaço, esse filme se estende em um passado presente na esperança de que o meio retratado resista às opressões externas e, também, internas. Aqui, estamos diante de um documentário em processo, aberto e transparentemente direcionado pelas realidades e complexidades de um povo indígena — brutalmente expropriado de voz, imagem e espaço.
“O Lagosta”, escrito e dirigido por Yorgos Lanthimos, passa-se em uma sociedade na qual as pessoas não podem ser solteiras, caso contrário, são transformadas em animais. Em uma obra grandiosamente original, Lanthimos cria uma sátira aguda sobre relacionamentos, seus rituais e comportamentos artificiais em um mundo sem gradações e subjetividade – ainda por cima, diretamente ligada à nossa visão estreita sobre amor. Aqui, os atores e os planos arranjam-se sob uma monotonia enquanto o roteiro e a montagem nos conduzem por cenas e diálogos maravilhosamente cômicos e únicos. Além disso, destaque para a inserção de uma história de amor não menos original entre os protagonistas (Colin Farrell e Rachel Weisz)
Marília Rocha, cineasta mineira, realiza com “A cidade onde envelheço” uma obra que atravessa o conturbado centro urbano de modo delicado e intimista. Aqui, o filme se deixa acontecer, confiando em suas personagens que fluem como em uma dança dentro de um pequeno apartamento. As questões que surgem entre duas estrangeiras (Francisca Manuel e Elizabete Francisca), que se deparam em Belo Horizonte – uma que vem, outra que vai –, estão dispersas nos diálogos, nos gestos e nos encontros da cidade. Assim como sua obra anterior, o documentário “a falta que me faz”, e outros filmes recentes mineiros, Rocha constrói um cinema que parece descobrir a potencialidade em dias e lugares supostamente comuns. Como escreve Lucas Nunes (texto disponível em nosso blog): “É assim, uma experiência bastante mineira de sentir o Cinema: é a Arte do encontro e da sutileza. Uma Arte que sabe achar isso no cotidiano deixando que este se desvele como lhe convém.”
“Moonlight”, dirigido e escrito por Barry Jenkins, é um estudo de personagem profundamente humano, terno e verdadeiro. A obra constrói-se sob a existência de um homem negro que habita o subúrbio de Miami desde a sua infância até a idade adulta, passando por contextos que moldam o seu ser. Dificilmente nos encontramos com filmes como “Moonlight”, que retiram o véu tão imageticamente construído e adotado superficialmente como verdade sobre temas como tráfico de drogas, sexualidade, masculinidade, negritude e opressão. Sem encostar em nenhum ponto gasto pelo gênero dramático ou adotar um tópico específico para trabalhar o personagem, o diretor permite que ele próprio nos conduza por seus sentimentos e complexidades através de escolhas visuais e sonoras conscientes – por exemplo, o som do mar, o consolo do vento, o silêncio nos diálogos, os cortes precisos, os olhares presentes, a agitação ora pulsante ora sólida da câmera -, todos esses elementos e outros trabalhados sob um olhar compassivo e translúcido. Enfim, “Moonlight” é uma experiência que a muito merecíamos ter. Destaque também para as atuações do elenco, em especial para os atores que interpretam o protagonista (Hibbert, Sanders e Rhodes). Indicado como melhor filme para o Oscar 2017.
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Gravado no final do penúltimo dia de gravação, Últimas Conversas — assim como outros que pude ver depois — é criado no ato, no raro olho no olho. Coutinho demonstra que seu documentário é resultado de uma relação entre ele e o outro. Basicamente, uma câmera e duas cadeiras dão conta do recado.
Crítica completa no blog do Medium: "Fale de Cinema"
Fui muito feliz com esse filme, que me fez refletir na metalinguagem o tanto que também me fez rir. Valeu, Jorge Furtado, por esse carinho e despretensão séria que você tem com seu cinema. Lavou meu olho aqui com esse prazer que é fazer cinema por gente de verdade.
Não acho que tenha uma obra atual que pinte melhor toda essa nossa cena brasileira do que "Aquarius", seja a sociedade, o indivíduo ou ambos, nos seus traços mais suaves aos mais rasgantes e secos, Kleber pinta uma das coisas mais belas desse nosso cinema brasileiro, tão nosso. Este filme é tiro, tiro pra tudo quanto é lado! Acertou meu coração em cheio.
Assistir a um blockbuster e poder pensar sobre ele depois, é sempre bom. Por mais que Nerve tenha o entretenimento como porta-bandeira (o que por si só não quer dizer ruim), ele consegue se valer dessa forma clássica para narrar seu tema e posicionar, de certa forma, sua crítica. Quero dizer, nada melhor do que querer se discutir a alienação dos jovens na internet do que nos colocando pra praticamente jogar juntos num ritmo intenso e beber desse entretenimento que é próprio desses filmes. Nerve, por exemplo, inicia-se com a tela do computador da protagonista projetada diretamente na tela do cinema, o que nos aproxima dessa realidade tão conhecida por nós e já de início nos diz que também somos todos suscetíveis à sedução do meio virtual. Mas não se trata só da virtualidade, pelo contrário, o longa nos apresenta na prática essa linha tênue, ou praticamente a ausência dela, do que é real e virtual, ou melhor, na potencialidade que o virtual tem em ser real e interferir bruscamente em nossas vidas. Apesar dos clichês americanos já tanto vistos sobre jovens e momentos que tentam colocar nos diálogos aquilo que já está sendo mostrado, achei que as camadas de Nerve e seu diálogo com nossa contemporaneidade fazem dele um filme que valha a pena sair um pouco da tela do celular ou do computador. Além disso, alguns pontos como a bela iluminação neon do filme, que nos mostra essa realidade alterada, ou o simples fato do filme não esconder suas marcas ao mostrar o Facebook, a Apple etc., sem substituir por genéricos falsos, colabora para toda a verossimilhança necessária a esse filme.
Na década de 30, quando o cinema brasileiro estava nos seus primórdios, foi produzido o primeiro e único filme do cineasta Mário Peixoto, Limite. Sua singularidade se estende também ao seu tema, considerado poético, a sua narrativa não linear e a marcante fotografia do Edgar Brasil em um cinema ainda muito precário, mas que o experimentalismo e as trucagens da produção constroem um filme considerado um dos melhores do nosso cinema até hoje. Limite apresenta três personagens que se encontram à deriva em um pequeno bote no meio do oceano sem ter para onde se moverem. A partir disso, o filme retorna à vida de cada um desses personagens, revelando as condições em comum que os posicionam nesse mesmo espaço, que de nada tem a ver com o fato de terem, em algo ponto especifico da trama, se conhecido e embarcado em uma barca propriamente dita. O sentido desse meio ao qual dividem encontra-se no campo alegórico e metafórico, no qual esse espaço representa a condição dos personagens que estão no limite de suas existências, sem rumo ou direção, cercados por um mar infinito que não os levará a lugar nenhum. Em um período no qual o surgimento do som já se instaurava e permanecia a eterna luta entre a nossa produção contra à crescente indústria hollywoodiana, Mário Peixoto pega a contramão e produz um filme mudo, poético, de temática reflexiva e de fraco apelo popular, sobressaindo em sua singularidade e experimentalismo. Nesta breve análise, busca-se voltar o olhar para esse cinema inicial brasileiro, discutindo alguns pontos que revelam a capacidade de uma pequena equipe com poucos recursos em se valer da linguagem cinematográfica para construir esse belo filme que é Limite. O longa-metragem tem início com algumas cenas que não necessariamente possuem relação puramente narrativa uma com as outras, mas que simbologicamente nos remete a alguma coisa outra. Cada plano possui uma longa duração e são alternados por meio de fusões entre essas imagens, elevando o aspecto dramático dessas cenas. Aqui, o filme já se apresenta com um caráter poético. Nessas cenas, vemos urubus sob uma carniça; em outra, uma mulher que nos dirige o olhar com um braço acorrentado a sua frente e, em seguida, um plano-detalhe nos olhos da personagem e a vastidão do mar. O tema do filme começa a ser indicado logo nesse início, sugerindo-nos imagens de morte e aprisionamento, ideias vinculadas aos limites da condição humana. Logo após, inicia-se uma longa sequência na qual vemos um barco à deriva com três personagens completamente resignados em relação à vida, como mencionado anteriormente. Na maioria dos planos, eles são mostrados em um ângulo plongée, enfatizando a situação de pequenez na qual eles se encontram. Além disso, a fotografia em preto e branco, posiciona-os à meia-luz, deixando os seus rostos cobertos por sombras em muitas das cenas. Todos esses elementos remetem a situação subjetiva dos personagens, assim como o próprio espaço - a barca ilhada na imensidão do mar - que se apresenta mais como um reflexo de seus estados subjetivos do que como algo estritamente objetivo. Esse espaço será retomado diversas vezes durante todo o filme mesmo que, em termos gerais, quase nenhuma ação seja desenvolvida nele e não possuindo ligação direta com as narrativas que nos é contada ao decorrer do longa - a não ser os próprios personagens que permanecem os mesmos. Isso porque, retomando o caráter poético, o filme valoriza a expressão de seu tema acima da narrativa - não menos importante -, que é justamente o que esse espaço representa: a situação de limite a qual beira a vida. Todavia, o filme recorre a narrativas paralelas que nos revelam mais sobre a vida desses personagens, justificando quais foram os acontecimentos que os conduziram a tal situação. Dessa forma, nos é mostrada, basicamente, uma mulher que fugiu de uma prisão, outra que fugiu de seu marido, e um homem que foi separado de sua amante. Nesse caso, tratando-se de um filme mudo e experimental, Peixoto opta por não utilizar praticamente nenhum intertítulo - comum em filmes mudos que ajudava a situar o espectador em relação ao que se estava sendo mostrado na tela -, procurando assim suscitar as ideias e emoções do filme através de outros meios. Nele, por exemplo, a câmera, com seus movimentos e enquadramentos, torna-se uma importante chave para a condução e compreensão deste. Na primeira narrativa apresentada, temos uma sequência inicial que apresenta as grades de uma prisão com uma das mulheres que as segura fortemente, em seguida, a câmera executa um traveling até a fechadura de entrada da prisão na qual vemos apenas a mão de um homem destrancando-a. O homem entra e a câmera permanece ao lado de fora da porta, posicionando-se na altura do chão. Algum tempo se passa e, então, vemos os pés da mulher em um salto alto saindo da cadeia e os pés do homem acompanhando-a. Quando os pés dela tentam partir em uma direção, a partida é interrompida e, em um movimento repentino de câmera, revela-se as mãos do homem segurando o braço da mulher, impedindo que ela parta. Ainda enquadrando as mãos, a mulher se rebate, usando-as contra ele até se soltar e seguir caminho. Vemos, portanto, que, mesmo sem utilizar nenhum intertítulo ou até mesmo mostrar as expressões faciais dos personagens, conseguimos compreender e sentir, através dos gestos e movimentos de câmera, a ideia de fuga na qual o homem que a ajudou parece esperar alguma recompensa da mulher, que não lhe corresponde. O fato de não serem revelados os rostos, a câmera permanecer um tempo do lado de fora, o movimento ágil da câmera na mão em direção às mãos dos personagens quando ela consegue se soltar, tudo isso corrobora para essa compreensão. Além disso, para esclarecer essa informação de uma outra maneira, há uma cena na qual enquadra-se uma notícia de jornal que diz respeito à essa fuga. Novamente, o cineasta recorre a elementos do próprio contexto do filme, sem necessidade de intertítulos, para revelar algo. Em outra sequência da mesma narrativa, acompanhamos a fugitiva caminhando por uma longa estrada de terra que parece, assim como a vida desses personagens, não levar a lugar algum. Novamente, a câmera assume um papel importante para indicar uma sensação errante dos personagem ao qual acompanha. Nessa estrada, a personagem se detém e, de repente, vira-se para uma outra direção, saindo do enquadramento. Apesar disso, a câmera continua a seguir o mesmo caminho, revelando certa autonomia - aqui, ela chama atenção para si mesma. Depois de alguns instantes, ela se interrompe e passa a buscar a personagem a qual perdera até encontrá-la presa em uma cerca. Portanto, podemos dizer que a câmera nessa sequência revela um ponto ao qual a personagem não consegue atravessar mesmo já estando livre, reforçando até mesmo a dificuldade de mantê-la dentro dos limites do filme. Além disso, a câmera desempenha uma certa instabilidade em seus movimentos, dialogando com o posição subjetiva da personagem. Por fim, há uma última sequência dessa narrativa na qual observamos a mesma personagem em uma sala de costura. Aqui, não há movimentos de câmera instáveis como antes, transmitindo-nos uma sensação de imobilidade. Desse modo, Peixoto enfatiza essa questão estabelecendo uma ideia contrastiva através de uma transição por fusão de uma imagem da roda de um trem em movimento com a roda da máquina de costura. Além disso, um outro elemento nesta sequência reforça algo a mais sobre a condição limitante da natureza humana quando a personagem olha para a janela no teto desta sala e esta nos remete a mesma janela que é mostrada anteriormente na prisão, sugerindo o estado subjetivo ao qual ela se encontra: a impossibilidade de se viver em liberdade em meio a suas angústias. Aproxima-se também, no final desta sequência, desse limite entre a vida e morte, ao se enquadrar uma tesoura afiada em plano-detalhe na qual a personagem detém-se, refletindo sobre ela. Na narrativa da segunda personagem, mostra-se uma mulher que, ao encontrar seu marido quando chega em casa, decide partir sem nem mesmo fazer as malas. Nesta sequência, continuamos a observar a grande desenvoltura de Peixoto em prevalecer a capacidade de mostrar ao invés de dizer através da linguagem cinematográfica, elucidando um filme onde somente as imagens conduzem-no quase completamente. Vemos, assim, a personagem chegando ao pé de uma escada onde no topo encontra-se um homem encostado. Em seguida, duas cenas em plano-detalhe dos anéis nos dedos de ambos nos mostram que eles são casados. Ao avistá-lo, a mulher interrompe seu movimento, sendo mostrada em um plano plongée, reforçando sua posição inferior diante do marido. Diante disso, ela hesita subir essa grande escadaria, demonstrando sua negação em continuar seu esforço para alcançar o marido. Sendo assim, sem avançar um degrau sequer, sai pelo porta ao qual acabara de entrar, deixando-o. Em seguida, nessa mesma narrativa, acompanhamos a personagem andando a esmo, assim como vimos na narrativa anterior. Em um certo ponto, a câmera toma novamente um outro rumo e enquadra um dente-de-leão. De acordo com os estudos de simbologia, esse signo está relacionado com ideias de liberdade e esperança. Portanto, novamente, o cineasta parece estabelecer um contraste em relação à personagem, que se encontra livre, porém, sem direção. Desse modo, a personagem chega ao pico de um pedra, em seu limite, ao qual é mostrado também o limite entre a terra e o mar. Ao mesmo tempo, revela-se a expressão facial de desespero da personagem frente a essa situação, reforçada através de um movimento de câmera descoordenado, que passa a girar diversas vezes. Nesse momento, assim como nas outras narrativas, todos os pontos da trama, orquestrados pelos espaços, caminham sempre para o seu limite até não haver mais alternativas. Na última narrativa, é retomado o último personagem dessa barca, um homem que parece vagar pelas ruas depois de ter perdido o seu amor. No início da primeira sequência, o diretor adota um outro objeto símbolo dentro do filme para também situar o estado subjetivo do personagem. Trata-se de uma ferradura, conhecida como um símbolo da sorte, ao qual o homem se depara no meio do seu caminho e a joga para trás com desdém. Logo após, ele entra em um cinema no qual está sendo exibido um filme de comédia e, neste momento, provoca um outro contraste: diversos planos-detalhes em rostos sorridentes que chocam com o semblante sério desse personagem. Sendo assim, enfatiza-se a apatia e o distanciamento do homem perante ao mundo e seu estado crítico de espírito. Mais a frente na narrativa, apresenta-se, retomando a questão do uso de gestos, o personagem de mão dadas com seu possível par romântico. Nesse trecho, outro elemento passa a ser mais explorado de forma a assumir um papel metafórico que caminha juntamente com o estado dos personagens: a natureza. Em um primeiro instante, no qual se retrata o casal ainda junto, são mostradas cenas praticamente bucólicas, onde a natureza aparenta-se tranquila. No momento em que aparece, enquadrando somente as pernas, o casal entrando em um lago do qual ela sai carregada por ele, o tom dessas imagens se transforma à medida que a música se tenciona também, e a natureza (todas as plantas do ambiente) torna-se inquieta e enfurecida ao ser fortemente arrastada à mercê do vento. Isso indica as mudanças que logo são reveladas no destino desse casal, que, por algum motivo não específico (provavelmente uma pneumonia), não podem se ver mais. Depois disso, esse homem passa a perseguir outro homem ao qual parece querer se explicar, porém, sem nunca o alcançar. Nessa última sequência dessa narrativa, os movimentos da câmera passam a acompanhar a intensidade da natureza e do homem, realizando rápidos movimentos com a câmera na mão, reforçando a instabilidade novamente, chegando a borrar algumas dessas cenas. É interessante notar como a posição da câmera que, no início desta narrativa, posicionava-se praticamente no chão, passando uma ideia de grandeza a respeito do homem, ao final da sequência, adota um ângulo acima do homem, praticamente perpendicular em relação ao chão. Todos esses elementos corroboram para levar também esse personagem ao seu limite, fazendo-o cair por terra. Durante todo o longa-metragem, as sequências que se passam na barca surgem entremeando as narrativas que foram discutidas, mantendo praticamente o mesmo tom e ritmo discutido ao início desta análise. Porém, algumas sequências revelam, por exemplo, a comida se esgotando e a água entrando na barca. Sendo assim, esse espaço principal da trama, assim como todas as outras narrativas, caminha para o seu limite final. Aqui, vemos o personagem masculino saltando ao mar para tentar buscar algo que avistou, mas não volta; uma das mulheres que morre dentre da barca e, por último, uma mulher que se mantém firme em uma última tábua de madeira que restou dali. Dessa vez, o mar é o grande elemento da natureza utilizado para expressar metaforicamente toda essa conturbação final na qual os limites são alcançados em seu ápice. Nessa sequência final, apresenta-se um mar violento por quase dez minutos. Para finalizar, o filme volta a apresentar a mesma cena inicial na qual há uma mulher com braços acorrentados, relembrando seu próprio tema e reforçando a ideia de aprisionamento perante a vida, terminando-o ciclicamente, prolongando essa condição exatamente como um ciclo fechado. Limite é um filme que, como discutimos nesta leitura, soube se adequar brilhantemente as condições do cinema brasileiros da época, conseguindo se destacar do seus contemporâneos por sua singularidade no tema e na forma de se utilizar, tratando-se de um cinema mudo, de diversos elementos para, criativamente e de modo experimental, criar esse grande longa-metragem do início do nosso cinema.
Apesar do filme não me parecer tão criativo e bonito imageticamente quanto o seu vizinho "Mommy" (Xavier Dolan), "De Cabeça Erguida" lida bem com o mesmo tema de delinquência juvenil. Fiquei pensando em como esses dois filmes apresentam personagens na mesma situação e apesar de ambos irem bem, prefiro o do primeiro. Resumidamente, em "Mommy", Xavier nos coloca dentro da pele de todos os envolvidos nesse mundo dilatado que um "delinquente" implode em si e explode no outro, pelo modo como se vale das imagens, do ritmo das cenas, do movimento selvagem da câmera (quando necessário), das cores, até mesmo do modo como utiliza a moldura/dimensão da imagem na tela. Tudo isso nos puxa pra esse mundo do personagem tão importante quando se pretende mostrar a história deste. Porém, mesmo que "De cabeça erguida" siga um caminho mais clássico e observador, carrega também um olhar válido sobre o mesmo tema. Esse olhar, felizmente, condiz com a natureza do personagem Malody que, mesmo que compartilhe das características de um "delinquente" como o de "Mommy", mantêm-se, diferentemente deste, distante e mais contido afetuosamente perante ao outro. O interessante ao decorrer do longa, ao meu ver, fica na evolução sutil do personagem nessa abertura ao outro que, mesmo na instabilidade que sua natureza lhe confere, é crescente. Pontuando algumas coisas, apesar das boas atuações, os personagens secundários me pareceram apenas satisfatórios na trama com um ou outro aspecto interessante, e não atingem maiores complexidades como os personagens de "Mommy", por exemplo. Achei uma boa a sacada de músicas clássicas alternadas com outras mais frenéticas (mesmo que poucas), que ajudam a perceber mais os opostos emocionais de Malody. As cenas pontuadas em que Malody está sozinho e percebemos mais de sua sensibilidade, as quais não fazem avançar diretamente na narrativa, mas são sensíveis o bastante para que possamos entender um pouco mais do personagem e sua personalidade. E, por último e, principalmente, a cena inicial e final que me fizeram muito bem pela criatividade e que mais me fizeram aproximar do personagem. Nessa primeira cena, quando nos é apresentado o personagem quando criança, a diretora nos delonga somente sobre as expressões desta no meio de uma discussão, as quais já revelam a situação confusa e os problemas educacionais e familiares que o filme sugere. E a cena final, na qual caminhamos juntamente com Malody e seu filho (dando a ideia de ciclo), sem cortes de planos, como prevalece no restante do filme, dando-nos uma sensação de estabilidade, onde acompanhamos pela primeira vez o caminho da sala da juíza, tão frequentada ao longo dos anos pelo personagem, até a saída na rua - vulgo liberdade.
A câmera estática, a iluminação natural e a falta de decupagem dentro dos planos em si, revelam como esse duro filme mexicano encaixa forma e conteúdo perfeitamente, nos entregando duramente o sentimento do longa. Esses fatores "técnicos" arranjados assim não apenas contam o enredo do filme, mas constroem um espaço-tempo para o espectador dentro da narrativa, melhor dizendo, nos dão tempo e espaço físico dentro das cenas para que também estejamos ali, compartilhando a densidade do filme. No início do filme, vemos pai e filha viajando de carro para se mudarem de cidade depois que Lúcia (esposa e mãe) falece. Aqui, a inércia dessa câmera, os longos planos, os poucos diálogos, já nos mostra que apesar do avanço físico que eles fazem, seus corpos ainda permanecem. Nessa primeira parte, temos a adaptação dessa nova formação familiar lentamente, o pai iniciando um novo trabalho e a filha se integrando bem aos novos colegas de classe. Porém, novamente, os fatores da forma que estamos falando não nos deixa seguir e avançar, o ritmo permanece e a sensação de incômodo também. Apesar do filme nos dizer que a vida segue depois de Lúcia, ele nos mostra o contrário. Até que a tensão começa a se revelar num segundo momento quando Lúcia passa a sofrer bullying de seus mesmos colegas constantemente e, agora tomando outra forma, os mesmos elementos - a câmera estática, a iluminação natural e a falta de decupagem dos planos - nos defrontam com duras cenas na qual nos sentimos tão impotentes quanto a personagem. A falta de decupagem nos planos nos aproximam do olhar de quem presencia de perto e, portanto, o espectador inerte assiste todo o plano, vagando o olhar para onde quiser, quase avançando dentro do filme mas, obviamente, pela própria natureza distante deste, nada podendo fazer. Por fim, forma e conteúdo bem alinhadas desde o início vão se tornando mais claras entre si, e entendemos, por exemplo, a influência que um ser um humano pode fazer em outro, em como até os personagens mais sóbrios são deixados à deriva quando os nós se desatam. O título, ao meu ver, está aí para nos lembrar disso, que depois que um ser nos cruza, uma corda se forma. E cordas se rompem.
Casa Grande
3.5 576 Assista Agora“Casa Grande”, filme estreia de ficção de Fellipe Barbosa, compõe um retrato, assim como em “Que horas ela volta?”, da alta burguesia brasileira e de seus conhecidos discursos conservadores e inconscientemente preconceituosos. Além de expor em ótimos diálogos essa classe, “Casa Grande” observa o protagonista, o adolescente Jean (Thales Cavalcanti), que se descobre pertencente a esse espaço quando sua bolha social é atingida por uma crise financeira que desestabiliza o conforto dessa família. Vendo-se como um produto inevitável desse meio rodeado pelo pai neoliberal e a mãe asséptica, Jean passa a descobrir as grandezas e complexidades de um mundo invisibilizado para ele e a ensaiar sua autonomia no mundo.
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Quando Duas Mulheres Pecam
4.4 1,1K Assista AgoraIngmar Bergman escreveu o argumento de Persona (1966) durante o tempo em que esteve internado na clínica Sophia, recuperando-se de uma pneumonia dupla. Naquele momento, ele também se dizia atolado com o bombardeio que chegava ao seu gabinete quando chefiava o Teatro Nacional. Este que, pela situação precária em que se encontrava, demandava-lhe muito mais do que um processo artístico. Apesar da experiência com o teatro ter lhe promovido uma maturidade acelerada, segundo ele, no livro Imagens (1990), estava ali passando por uma crise: “encontrava-me, portanto, na clínica Sophia e fui reconhecendo, pouco a pouco, que minha atividade como diretor de teatro se tornara um obstáculo à minha criatividade. Tinha posto os motores a funcionar ao máximo, e os motores avançariam a carroceria” (BERGMAN, 1990). Diante dessa sensação mecânica e fútil, Bergman se volta ao cinema para entregar novamente suas angústias. Na pele de suas personagens — Vogler e Alma, Bergman se projeta e parece questionar, em Persona, a multiplicidade de faces que nos habitam e a inútil procura por aquela mais tangível.
Nesse seu filme, Persona, é evidente o anseio de Bergman em retomar seu cinema. Logo na primeira cena, enquadra um projetor de películas — objeto de grande afeto para o diretor — e passamos a ver diversas imagens, a princípio, desconexas; já indicando uma aproximação maior com a natureza das imagens do que com uma narrativa restringida puramente a um enredo clássico. Ainda em seu livro Imagens, Bergman observa que, pela primeira vez em sua carreira, foi importante não se preocupar com “o fato de o resultado vir a ser ou não do gosto do público. O evangelho segundo o qual se devia ser sempre inteligível e que me haviam metido na cabeça nos tempos em que trabalhava como escravo de roteiro para a Svensk Filmindustri, pude finalmente mandá-lo para o diabo” (idem). E completa dizendo que, em Persona e Gritos e Sussurros, “fui o mais longe que pude quanto à técnica narrativa. Isto é, com total liberdade toco em segredos para os quais não existem palavras e que só a cinematografia pode patentear” (idem). Diante disso, encontramos aqui uma obra prima que trata não somente de suas personagens ou do Bergman em si, mas também, do olhar que se direciona às imagens, ao cinema. “A questão que se põe é se a arte tem possibilidade de continuar a existir sem ser uma atividade do tempo de lazer” (idem), finaliza.
Portanto, com esse filme, Bergman parece dar um salto em sua filmografia. Se antes, em seus enredos e constante monólogos, sempre estiveram presentes os questionamentos de uma alma aflita; em Persona, isso se volta majoritariamente à forma. Há uma busca pelo tátil, por aquilo que se encontra mais na imagem do que na palavra. Esse ponto talvez seja central para o desenvolvimento desse filme. Uma atenção à imagem, seja a nossa própria, a do outro ou a imagem plástica: é possível tocar o real a partir da forma? No início do filme, na cena em que vemos um garoto em um ambiente incerto, este abandona o livro e suas palavras para contemplar as imagens dos rostos das personagens que surgem a sua frente. Ali, estende a sua mão como se procurasse alcançar, através do toque, as imagens, como se fossem, elas mesmas, o real. Ao decorrer do filme, as mãos continuam a demonstrar essa procura pelo toque verdadeiro, para além da persona.
Voltando o olhar para essa palavra que dá título à obra, persona era a máscara que os atores do teatro grego utilizavam para interpretar seus papéis. De acordo com a etimologia, persona significa soar através de — nessas máscaras haviam um orifício na região da boca que permitia a passagem da voz, mas, por outro lado, continuavam a omitir a face real. Nesse sentido, pensemos, por exemplo, na personagem Elisabeth Vogler (Liv Ullmann). Após anos interpretando diversos papéis no teatro, de repente, decide não mais falar. Essa personagem, podemos dizer, representa a tentativa de, ao omitir a voz que dá vida a essas máscaras, dar a ver uma imagem mais próxima de si — do mesmo modo, podemos perceber um paralelo da personagem de Liv com o próprio Bergman e sua relação, como abordamos no início, com a pausa no teatro e a busca pela imagem através do cinema.
Ao lado de Vogler — para não se restringir ao dizer dentro —, está a personagem Alma (Bibi Anderson), a enfermeira designada a cuidar dessa atriz, com a qual desenvolve, a princípio, uma relação oposta, mas que passa cada vez mais a aproximar as personagens, a ponto de as fundirem. Para Bergman (1990), Alma, confrontada pelo silêncio do outro, passa a voltar a voz para si, procurando a sua própria pessoa e a se conhecer. Em determinado momento, no qual Alma relata sobre ações aparentemente contraditórias que cometeu no passado, ela diz: “nada disso se encaixa ou faz sentido. É possível ser duas pessoas ao mesmo tempo? ”, ao passo que, ouvindo o choro de Alma, Vogler a toca, sorrindo, como se visualizasse a verdadeira face da outra. Já em outra cena, quando Alma lê uma carta, na qual Vogler a analisa, a linha tênue que as dividia entre paciente e enfermeira termina por se dissolver. E então, a medida em que o filme avança, presenciamos a profunda experiência que Bergman constrói através da mise-en-scène, da fotografia, da iluminação, dos figurinos, dos diálogos; elementos que emergem na própria imagem a alma das personagens como uma só, diluindo suas personas. Aqui, é como se ambas fossem o espelho uma da outra.
Antes de terminarmos essa passagem por Persona, atentemo-nos para o que diz respeito à forma. Aqui, o filme parece ser, ele mesmo, uma persona que se desenvolve juntamente com as personagens. Constantemente, ele rompe com um estado de imersão, com a ilusão, com o disfarce de si mesmo, para voltar a atenção para aquilo que, em essência, o cinema é: imagem e som. Desde as primeiras cenas, que se chocam e não se aglutinam como numa linha narrativa; passando por diálogos onde não há contra plano, mas uma quebra da quarta parede; por sons dissonantes; por iluminações emocionais; a até mesmo a interrupção do filme quando a película é queimada — nessa cena específica (figura abaixo), a fita, como que tomada pelo horror ao ver em imagem, por trás do véu, uma persona maligna da personagem Alma, queima-se —, vemos o filme olhar para si mesmo. Bergman, em Persona, consegue unir em uma única obra o olhar a si mesmo, a seus personagens, às imagens e ao próprio fazer cinema. Traçando um paralelo novamente com a personagem de Liv Ullmann, que diante das imagens é tomada por uma força inexplicável, finalizo com o que Bergman escreve em seu livro (1990): “minha arte não pode assimilar, transformar ou esquecer aquele garoto de uma certa fotografia nem o homem que se queima pela fé que professa”.
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Kene Yuxi, as Voltas do Kene
4.3 3A partir de uma pesquisa de seu pai, professor e escritor Joaquim Maná, Zezinho Yube continua a investigar os grafismos tradicionais das mulheres Huni Kui, procurando conhecer e fortalecer seu povo e sua cultura indígena. Oriundo do “Vídeo nas Aldeias”, projeto extremamente importante no empoderamento das imagens dos povos indígenas por e para si próprios, “As voltas do Kene” é um documentário com o que se tem de mais potente neste gênero. Mais do que o registro de um tempo e um espaço, esse filme se estende em um passado presente na esperança de que o meio retratado resista às opressões externas e, também, internas. Aqui, estamos diante de um documentário em processo, aberto e transparentemente direcionado pelas realidades e complexidades de um povo indígena — brutalmente expropriado de voz, imagem e espaço.
O Lagosta
3.8 1,4K Assista Agora“O Lagosta”, escrito e dirigido por Yorgos Lanthimos, passa-se em uma sociedade na qual as pessoas não podem ser solteiras, caso contrário, são transformadas em animais. Em uma obra grandiosamente original, Lanthimos cria uma sátira aguda sobre relacionamentos, seus rituais e comportamentos artificiais em um mundo sem gradações e subjetividade – ainda por cima, diretamente ligada à nossa visão estreita sobre amor. Aqui, os atores e os planos arranjam-se sob uma monotonia enquanto o roteiro e a montagem nos conduzem por cenas e diálogos maravilhosamente cômicos e únicos. Além disso, destaque para a inserção de uma história de amor não menos original entre os protagonistas (Colin Farrell e Rachel Weisz)
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A Cidade Onde Envelheço
3.6 130 Assista AgoraMarília Rocha, cineasta mineira, realiza com “A cidade onde envelheço” uma obra que atravessa o conturbado centro urbano de modo delicado e intimista. Aqui, o filme se deixa acontecer, confiando em suas personagens que fluem como em uma dança dentro de um pequeno apartamento. As questões que surgem entre duas estrangeiras (Francisca Manuel e Elizabete Francisca), que se deparam em Belo Horizonte – uma que vem, outra que vai –, estão dispersas nos diálogos, nos gestos e nos encontros da cidade. Assim como sua obra anterior, o documentário “a falta que me faz”, e outros filmes recentes mineiros, Rocha constrói um cinema que parece descobrir a potencialidade em dias e lugares supostamente comuns. Como escreve Lucas Nunes (texto disponível em nosso blog): “É assim, uma experiência bastante mineira de sentir o Cinema: é a Arte do encontro e da sutileza. Uma Arte que sabe achar isso no cotidiano deixando que este se desvele como lhe convém.”
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Moonlight: Sob a Luz do Luar
4.1 2,4K Assista Agora“Moonlight”, dirigido e escrito por Barry Jenkins, é um estudo de personagem profundamente humano, terno e verdadeiro. A obra constrói-se sob a existência de um homem negro que habita o subúrbio de Miami desde a sua infância até a idade adulta, passando por contextos que moldam o seu ser. Dificilmente nos encontramos com filmes como “Moonlight”, que retiram o véu tão imageticamente construído e adotado superficialmente como verdade sobre temas como tráfico de drogas, sexualidade, masculinidade, negritude e opressão. Sem encostar em nenhum ponto gasto pelo gênero dramático ou adotar um tópico específico para trabalhar o personagem, o diretor permite que ele próprio nos conduza por seus sentimentos e complexidades através de escolhas visuais e sonoras conscientes – por exemplo, o som do mar, o consolo do vento, o silêncio nos diálogos, os cortes precisos, os olhares presentes, a agitação ora pulsante ora sólida da câmera -, todos esses elementos e outros trabalhados sob um olhar compassivo e translúcido. Enfim, “Moonlight” é uma experiência que a muito merecíamos ter. Destaque também para as atuações do elenco, em especial para os atores que interpretam o protagonista (Hibbert, Sanders e Rhodes). Indicado como melhor filme para o Oscar 2017.
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Últimas Conversas
4.2 108Gravado no final do penúltimo dia de gravação, Últimas Conversas — assim como outros que pude ver depois — é criado no ato, no raro olho no olho. Coutinho demonstra que seu documentário é resultado de uma relação entre ele e o outro. Basicamente, uma câmera e duas cadeiras dão conta do recado.
Crítica completa no blog do Medium: "Fale de Cinema"
Saneamento Básico, O Filme
3.7 708 Assista AgoraFui muito feliz com esse filme, que me fez refletir na metalinguagem o tanto que também me fez rir. Valeu, Jorge Furtado, por esse carinho e despretensão séria que você tem com seu cinema. Lavou meu olho aqui com esse prazer que é fazer cinema por gente de verdade.
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraNão acho que tenha uma obra atual que pinte melhor toda essa nossa cena brasileira do que "Aquarius", seja a sociedade, o indivíduo ou ambos, nos seus traços mais suaves aos mais rasgantes e secos, Kleber pinta uma das coisas mais belas desse nosso cinema brasileiro, tão nosso. Este filme é tiro, tiro pra tudo quanto é lado! Acertou meu coração em cheio.
Nerve: Um Jogo Sem Regras
3.3 1,2K Assista AgoraAssistir a um blockbuster e poder pensar sobre ele depois, é sempre bom. Por mais que Nerve tenha o entretenimento como porta-bandeira (o que por si só não quer dizer ruim), ele consegue se valer dessa forma clássica para narrar seu tema e posicionar, de certa forma, sua crítica. Quero dizer, nada melhor do que querer se discutir a alienação dos jovens na internet do que nos colocando pra praticamente jogar juntos num ritmo intenso e beber desse entretenimento que é próprio desses filmes. Nerve, por exemplo, inicia-se com a tela do computador da protagonista projetada diretamente na tela do cinema, o que nos aproxima dessa realidade tão conhecida por nós e já de início nos diz que também somos todos suscetíveis à sedução do meio virtual. Mas não se trata só da virtualidade, pelo contrário, o longa nos apresenta na prática essa linha tênue, ou praticamente a ausência dela, do que é real e virtual, ou melhor, na potencialidade que o virtual tem em ser real e interferir bruscamente em nossas vidas. Apesar dos clichês americanos já tanto vistos sobre jovens e momentos que tentam colocar nos diálogos aquilo que já está sendo mostrado, achei que as camadas de Nerve e seu diálogo com nossa contemporaneidade fazem dele um filme que valha a pena sair um pouco da tela do celular ou do computador. Além disso, alguns pontos como a bela iluminação neon do filme, que nos mostra essa realidade alterada, ou o simples fato do filme não esconder suas marcas ao mostrar o Facebook, a Apple etc., sem substituir por genéricos falsos, colabora para toda a verossimilhança necessária a esse filme.
Limite
4.0 166 Assista AgoraNos Limites do Cinema Brasileiro
Na década de 30, quando o cinema brasileiro estava nos seus primórdios, foi produzido o primeiro e único filme do cineasta Mário Peixoto, Limite. Sua singularidade se estende também ao seu tema, considerado poético, a sua narrativa não linear e a marcante fotografia do Edgar Brasil em um cinema ainda muito precário, mas que o experimentalismo e as trucagens da produção constroem um filme considerado um dos melhores do nosso cinema até hoje.
Limite apresenta três personagens que se encontram à deriva em um pequeno bote no meio do oceano sem ter para onde se moverem. A partir disso, o filme retorna à vida de cada um desses personagens, revelando as condições em comum que os posicionam nesse mesmo espaço, que de nada tem a ver com o fato de terem, em algo ponto especifico da trama, se conhecido e embarcado em uma barca propriamente dita. O sentido desse meio ao qual dividem encontra-se no campo alegórico e metafórico, no qual esse espaço representa a condição dos personagens que estão no limite de suas existências, sem rumo ou direção, cercados por um mar infinito que não os levará a lugar nenhum.
Em um período no qual o surgimento do som já se instaurava e permanecia a eterna luta entre a nossa produção contra à crescente indústria hollywoodiana, Mário Peixoto pega a contramão e produz um filme mudo, poético, de temática reflexiva e de fraco apelo popular, sobressaindo em sua singularidade e experimentalismo. Nesta breve análise, busca-se voltar o olhar para esse cinema inicial brasileiro, discutindo alguns pontos que revelam a capacidade de uma pequena equipe com poucos recursos em se valer da linguagem cinematográfica para construir esse belo filme que é Limite.
O longa-metragem tem início com algumas cenas que não necessariamente possuem relação puramente narrativa uma com as outras, mas que simbologicamente nos remete a alguma coisa outra. Cada plano possui uma longa duração e são alternados por meio de fusões entre essas imagens, elevando o aspecto dramático dessas cenas. Aqui, o filme já se apresenta com um caráter poético. Nessas cenas, vemos urubus sob uma carniça; em outra, uma mulher que nos dirige o olhar com um braço acorrentado a sua frente e, em seguida, um plano-detalhe nos olhos da personagem e a vastidão do mar. O tema do filme começa a ser indicado logo nesse início, sugerindo-nos imagens de morte e aprisionamento, ideias vinculadas aos limites da condição humana.
Logo após, inicia-se uma longa sequência na qual vemos um barco à deriva com três personagens completamente resignados em relação à vida, como mencionado anteriormente. Na maioria dos planos, eles são mostrados em um ângulo plongée, enfatizando a situação de pequenez na qual eles se encontram. Além disso, a fotografia em preto e branco, posiciona-os à meia-luz, deixando os seus rostos cobertos por sombras em muitas das cenas. Todos esses elementos remetem a situação subjetiva dos personagens, assim como o próprio espaço - a barca ilhada na imensidão do mar - que se apresenta mais como um reflexo de seus estados subjetivos do que como algo estritamente objetivo.
Esse espaço será retomado diversas vezes durante todo o filme mesmo que, em termos gerais, quase nenhuma ação seja desenvolvida nele e não possuindo ligação direta com as narrativas que nos é contada ao decorrer do longa - a não ser os próprios personagens que permanecem os mesmos. Isso porque, retomando o caráter poético, o filme valoriza a expressão de seu tema acima da narrativa - não menos importante -, que é justamente o que esse espaço representa: a situação de limite a qual beira a vida.
Todavia, o filme recorre a narrativas paralelas que nos revelam mais sobre a vida desses personagens, justificando quais foram os acontecimentos que os conduziram a tal situação. Dessa forma, nos é mostrada, basicamente, uma mulher que fugiu de uma prisão, outra que fugiu de seu marido, e um homem que foi separado de sua amante. Nesse caso, tratando-se de um filme mudo e experimental, Peixoto opta por não utilizar praticamente nenhum intertítulo - comum em filmes mudos que ajudava a situar o espectador em relação ao que se estava sendo mostrado na tela -, procurando assim suscitar as ideias e emoções do filme através de outros meios. Nele, por exemplo, a câmera, com seus movimentos e enquadramentos, torna-se uma importante chave para a condução e compreensão deste.
Na primeira narrativa apresentada, temos uma sequência inicial que apresenta as grades de uma prisão com uma das mulheres que as segura fortemente, em seguida, a câmera executa um traveling até a fechadura de entrada da prisão na qual vemos apenas a mão de um homem destrancando-a. O homem entra e a câmera permanece ao lado de fora da porta, posicionando-se na altura do chão. Algum tempo se passa e, então, vemos os pés da mulher em um salto alto saindo da cadeia e os pés do homem acompanhando-a. Quando os pés dela tentam partir em uma direção, a partida é interrompida e, em um movimento repentino de câmera, revela-se as mãos do homem segurando o braço da mulher, impedindo que ela parta. Ainda enquadrando as mãos, a mulher se rebate, usando-as contra ele até se soltar e seguir caminho. Vemos, portanto, que, mesmo sem utilizar nenhum intertítulo ou até mesmo mostrar as expressões faciais dos personagens, conseguimos compreender e sentir, através dos gestos e movimentos de câmera, a ideia de fuga na qual o homem que a ajudou parece esperar alguma recompensa da mulher, que não lhe corresponde. O fato de não serem revelados os rostos, a câmera permanecer um tempo do lado de fora, o movimento ágil da câmera na mão em direção às mãos dos personagens quando ela consegue se soltar, tudo isso corrobora para essa compreensão. Além disso, para esclarecer essa informação de uma outra maneira, há uma cena na qual enquadra-se uma notícia de jornal que diz respeito à essa fuga. Novamente, o cineasta recorre a elementos do próprio contexto do filme, sem necessidade de intertítulos, para revelar algo.
Em outra sequência da mesma narrativa, acompanhamos a fugitiva caminhando por uma longa estrada de terra que parece, assim como a vida desses personagens, não levar a lugar algum. Novamente, a câmera assume um papel importante para indicar uma sensação errante dos personagem ao qual acompanha. Nessa estrada, a personagem se detém e, de repente, vira-se para uma outra direção, saindo do enquadramento. Apesar disso, a câmera continua a seguir o mesmo caminho, revelando certa autonomia - aqui, ela chama atenção para si mesma. Depois de alguns instantes, ela se interrompe e passa a buscar a personagem a qual perdera até encontrá-la presa em uma cerca. Portanto, podemos dizer que a câmera nessa sequência revela um ponto ao qual a personagem não consegue atravessar mesmo já estando livre, reforçando até mesmo a dificuldade de mantê-la dentro dos limites do filme. Além disso, a câmera desempenha uma certa instabilidade em seus movimentos, dialogando com o posição subjetiva da personagem.
Por fim, há uma última sequência dessa narrativa na qual observamos a mesma personagem em uma sala de costura. Aqui, não há movimentos de câmera instáveis como antes, transmitindo-nos uma sensação de imobilidade. Desse modo, Peixoto enfatiza essa questão estabelecendo uma ideia contrastiva através de uma transição por fusão de uma imagem da roda de um trem em movimento com a roda da máquina de costura. Além disso, um outro elemento nesta sequência reforça algo a mais sobre a condição limitante da natureza humana quando a personagem olha para a janela no teto desta sala e esta nos remete a mesma janela que é mostrada anteriormente na prisão, sugerindo o estado subjetivo ao qual ela se encontra: a impossibilidade de se viver em liberdade em meio a suas angústias. Aproxima-se também, no final desta sequência, desse limite entre a vida e morte, ao se enquadrar uma tesoura afiada em plano-detalhe na qual a personagem detém-se, refletindo sobre ela.
Na narrativa da segunda personagem, mostra-se uma mulher que, ao encontrar seu marido quando chega em casa, decide partir sem nem mesmo fazer as malas. Nesta sequência, continuamos a observar a grande desenvoltura de Peixoto em prevalecer a capacidade de mostrar ao invés de dizer através da linguagem cinematográfica, elucidando um filme onde somente as imagens conduzem-no quase completamente. Vemos, assim, a personagem chegando ao pé de uma escada onde no topo encontra-se um homem encostado. Em seguida, duas cenas em plano-detalhe dos anéis nos dedos de ambos nos mostram que eles são casados. Ao avistá-lo, a mulher interrompe seu movimento, sendo mostrada em um plano plongée, reforçando sua posição inferior diante do marido. Diante disso, ela hesita subir essa grande escadaria, demonstrando sua negação em continuar seu esforço para alcançar o marido. Sendo assim, sem avançar um degrau sequer, sai pelo porta ao qual acabara de entrar, deixando-o.
Em seguida, nessa mesma narrativa, acompanhamos a personagem andando a esmo, assim como vimos na narrativa anterior. Em um certo ponto, a câmera toma novamente um outro rumo e enquadra um dente-de-leão. De acordo com os estudos de simbologia, esse signo está relacionado com ideias de liberdade e esperança. Portanto, novamente, o cineasta parece estabelecer um contraste em relação à personagem, que se encontra livre, porém, sem direção. Desse modo, a personagem chega ao pico de um pedra, em seu limite, ao qual é mostrado também o limite entre a terra e o mar. Ao mesmo tempo, revela-se a expressão facial de desespero da personagem frente a essa situação, reforçada através de um movimento de câmera descoordenado, que passa a girar diversas vezes. Nesse momento, assim como nas outras narrativas, todos os pontos da trama, orquestrados pelos espaços, caminham sempre para o seu limite até não haver mais alternativas.
Na última narrativa, é retomado o último personagem dessa barca, um homem que parece vagar pelas ruas depois de ter perdido o seu amor. No início da primeira sequência, o diretor adota um outro objeto símbolo dentro do filme para também situar o estado subjetivo do personagem. Trata-se de uma ferradura, conhecida como um símbolo da sorte, ao qual o homem se depara no meio do seu caminho e a joga para trás com desdém. Logo após, ele entra em um cinema no qual está sendo exibido um filme de comédia e, neste momento, provoca um outro contraste: diversos planos-detalhes em rostos sorridentes que chocam com o semblante sério desse personagem. Sendo assim, enfatiza-se a apatia e o distanciamento do homem perante ao mundo e seu estado crítico de espírito. Mais a frente na narrativa, apresenta-se, retomando a questão do uso de gestos, o personagem de mão dadas com seu possível par romântico. Nesse trecho, outro elemento passa a ser mais explorado de forma a assumir um papel metafórico que caminha juntamente com o estado dos personagens: a natureza. Em um primeiro instante, no qual se retrata o casal ainda junto, são mostradas cenas praticamente bucólicas, onde a natureza aparenta-se tranquila. No momento em que aparece, enquadrando somente as pernas, o casal entrando em um lago do qual ela sai carregada por ele, o tom dessas imagens se transforma à medida que a música se tenciona também, e a natureza (todas as plantas do ambiente) torna-se inquieta e enfurecida ao ser fortemente arrastada à mercê do vento. Isso indica as mudanças que logo são reveladas no destino desse casal, que, por algum motivo não específico (provavelmente uma pneumonia), não podem se ver mais. Depois disso, esse homem passa a perseguir outro homem ao qual parece querer se explicar, porém, sem nunca o alcançar. Nessa última sequência dessa narrativa, os movimentos da câmera passam a acompanhar a intensidade da natureza e do homem, realizando rápidos movimentos com a câmera na mão, reforçando a instabilidade novamente, chegando a borrar algumas dessas cenas. É interessante notar como a posição da câmera que, no início desta narrativa, posicionava-se praticamente no chão, passando uma ideia de grandeza a respeito do homem, ao final da sequência, adota um ângulo acima do homem, praticamente perpendicular em relação ao chão. Todos esses elementos corroboram para levar também esse personagem ao seu limite, fazendo-o cair por terra.
Durante todo o longa-metragem, as sequências que se passam na barca surgem entremeando as narrativas que foram discutidas, mantendo praticamente o mesmo tom e ritmo discutido ao início desta análise. Porém, algumas sequências revelam, por exemplo, a comida se esgotando e a água entrando na barca. Sendo assim, esse espaço principal da trama, assim como todas as outras narrativas, caminha para o seu limite final. Aqui, vemos o personagem masculino saltando ao mar para tentar buscar algo que avistou, mas não volta; uma das mulheres que morre dentre da barca e, por último, uma mulher que se mantém firme em uma última tábua de madeira que restou dali. Dessa vez, o mar é o grande elemento da natureza utilizado para expressar metaforicamente toda essa conturbação final na qual os limites são alcançados em seu ápice. Nessa sequência final, apresenta-se um mar violento por quase dez minutos. Para finalizar, o filme volta a apresentar a mesma cena inicial na qual há uma mulher com braços acorrentados, relembrando seu próprio tema e reforçando a ideia de aprisionamento perante a vida, terminando-o ciclicamente, prolongando essa condição exatamente como um ciclo fechado.
Limite é um filme que, como discutimos nesta leitura, soube se adequar brilhantemente as condições do cinema brasileiros da época, conseguindo se destacar do seus contemporâneos por sua singularidade no tema e na forma de se utilizar, tratando-se de um cinema mudo, de diversos elementos para, criativamente e de modo experimental, criar esse grande longa-metragem do início do nosso cinema.
De Cabeça Erguida
3.7 59 Assista AgoraApesar do filme não me parecer tão criativo e bonito imageticamente quanto o seu vizinho "Mommy" (Xavier Dolan), "De Cabeça Erguida" lida bem com o mesmo tema de delinquência juvenil. Fiquei pensando em como esses dois filmes apresentam personagens na mesma situação e apesar de ambos irem bem, prefiro o do primeiro. Resumidamente, em "Mommy", Xavier nos coloca dentro da pele de todos os envolvidos nesse mundo dilatado que um "delinquente" implode em si e explode no outro, pelo modo como se vale das imagens, do ritmo das cenas, do movimento selvagem da câmera (quando necessário), das cores, até mesmo do modo como utiliza a moldura/dimensão da imagem na tela. Tudo isso nos puxa pra esse mundo do personagem tão importante quando se pretende mostrar a história deste. Porém, mesmo que "De cabeça erguida" siga um caminho mais clássico e observador, carrega também um olhar válido sobre o mesmo tema. Esse olhar, felizmente, condiz com a natureza do personagem Malody que, mesmo que compartilhe das características de um "delinquente" como o de "Mommy", mantêm-se, diferentemente deste, distante e mais contido afetuosamente perante ao outro. O interessante ao decorrer do longa, ao meu ver, fica na evolução sutil do personagem nessa abertura ao outro que, mesmo na instabilidade que sua natureza lhe confere, é crescente. Pontuando algumas coisas, apesar das boas atuações, os personagens secundários me pareceram apenas satisfatórios na trama com um ou outro aspecto interessante, e não atingem maiores complexidades como os personagens de "Mommy", por exemplo. Achei uma boa a sacada de músicas clássicas alternadas com outras mais frenéticas (mesmo que poucas), que ajudam a perceber mais os opostos emocionais de Malody. As cenas pontuadas em que Malody está sozinho e percebemos mais de sua sensibilidade, as quais não fazem avançar diretamente na narrativa, mas são sensíveis o bastante para que possamos entender um pouco mais do personagem e sua personalidade. E, por último e, principalmente, a cena inicial e final que me fizeram muito bem pela criatividade e que mais me fizeram aproximar do personagem. Nessa primeira cena, quando nos é apresentado o personagem quando criança, a diretora nos delonga somente sobre as expressões desta no meio de uma discussão, as quais já revelam a situação confusa e os problemas educacionais e familiares que o filme sugere. E a cena final, na qual caminhamos juntamente com Malody e seu filho (dando a ideia de ciclo), sem cortes de planos, como prevalece no restante do filme, dando-nos uma sensação de estabilidade, onde acompanhamos pela primeira vez o caminho da sala da juíza, tão frequentada ao longo dos anos pelo personagem, até a saída na rua - vulgo liberdade.
Depois de Lúcia
3.8 1,1K Assista AgoraA câmera estática, a iluminação natural e a falta de decupagem dentro dos planos em si, revelam como esse duro filme mexicano encaixa forma e conteúdo perfeitamente, nos entregando duramente o sentimento do longa. Esses fatores "técnicos" arranjados assim não apenas contam o enredo do filme, mas constroem um espaço-tempo para o espectador dentro da narrativa, melhor dizendo, nos dão tempo e espaço físico dentro das cenas para que também estejamos ali, compartilhando a densidade do filme. No início do filme, vemos pai e filha viajando de carro para se mudarem de cidade depois que Lúcia (esposa e mãe) falece. Aqui, a inércia dessa câmera, os longos planos, os poucos diálogos, já nos mostra que apesar do avanço físico que eles fazem, seus corpos ainda permanecem. Nessa primeira parte, temos a adaptação dessa nova formação familiar lentamente, o pai iniciando um novo trabalho e a filha se integrando bem aos novos colegas de classe. Porém, novamente, os fatores da forma que estamos falando não nos deixa seguir e avançar, o ritmo permanece e a sensação de incômodo também. Apesar do filme nos dizer que a vida segue depois de Lúcia, ele nos mostra o contrário. Até que a tensão começa a se revelar num segundo momento quando Lúcia passa a sofrer bullying de seus mesmos colegas constantemente e, agora tomando outra forma, os mesmos elementos - a câmera estática, a iluminação natural e a falta de decupagem dos planos - nos defrontam com duras cenas na qual nos sentimos tão impotentes quanto a personagem. A falta de decupagem nos planos nos aproximam do olhar de quem presencia de perto e, portanto, o espectador inerte assiste todo o plano, vagando o olhar para onde quiser, quase avançando dentro do filme mas, obviamente, pela própria natureza distante deste, nada podendo fazer. Por fim, forma e conteúdo bem alinhadas desde o início vão se tornando mais claras entre si, e entendemos, por exemplo, a influência que um ser um humano pode fazer em outro, em como até os personagens mais sóbrios são deixados à deriva quando os nós se desatam. O título, ao meu ver, está aí para nos lembrar disso, que depois que um ser nos cruza, uma corda se forma. E cordas se rompem.