“Antes que o mundo acabe” é mais um excelente filme produzido na região sul do Brasil.
A diretora Ana Luiza Azevedo consegue fazer um filme sobre a adolescência de uma maneira improvável, optando pelo registro impressionista e não caricatural, o resultado final é tocante.
O filme conta a história de Daniel, garoto de 15 anos, que mora numa pequena cidade gaúcha, seus amigos e sua família.
Simples assim.
Narrado sob o ponto de vista da irmã caçula de Daniel, o enredo ganha contornos quase pueris, sem entretanto cair num discurso bobo ou infantilóide.
O que acontece é exatamente o oposto, através da ótica da pequena Maria Clara, “o mundo de Daniel” fica mais interessante, pois é narrado de maneira irônica por ela.
A história de Daniel se apresenta sem pressa, calmamente, o que vai de encontro ao clima da cidade em que ele mora, pacata e rural.
Vamos a ela: Daniel é um garoto de 15 anos que namora uma garota cujo apelido é Mim, logo no começo do filme, ela pede um tempo a ele. Ele reluta, mas, concorda.
Aos poucos, ficamos sabendo que ela está gostando de Lucas, melhor amigo de Daniel.
O garoto se revolta, boicota o amigo e acaba prejudicando ele na escola e até mesmo causando sua expulsão.
Somado a esse história, Daniel começa receber envelopes de seu pai verdadeiro, que ele não conhece. Num primeiro momento, Daniel é irredutível, não quer ouvir nem falar no nome do pai, mas aos poucos começa a se interessar por ele, quando abre um dos envelopes e várias fotos “estranhas e belas” caem de lá de dentro.
Ai começa uma das partes mais interessantes do filme.
O pai de Daniel é fotógrafo e o abandonou porque saiu pelo mundo registrando lugares e pessoas exóticas, antes que a globalização acabe com a cultura do diferente.
O menino se encanta pelas fotos e pela história do pai, e é especialmente nessas cenas em que a diretora prova seu talento e habilidade nata.
Brincando com as fotos, Ana Luiza Azevedo deixa claro porque optou pelo olhar narrativo da irmã caçula; ela se identifica com a menina, ela é seu alter-ego e isso só faz engrandecer o enredo.
Aos poucos, o filho busca mais informações sobre o pai e unindo o útil ao agradável viaja a Porto Alegre para ver a exposição de fotos do seu progenitor ao lado de Lucas e Mim.
Nessa viagem com ares de aventura, o triângulo amoroso fica um pouco de escanteio e os três passeiam e brincam felizes pela cidade grande.
Até mesmo o filme “Jules e Jim” de Truffaut é usado como referência, principalmente na cena em que visitam uma feirinha de rua.
Tudo é mostrado através do olhar terno da diretora Ana Luiza, sem no entanto, cair num paternalismo que depreciaria o filme.
A grande sacada é que não há julgamento moral, os jovens são retratados pelas suas ações, o teor psicológico fica para as decisões e dúvidas que eles exibem ao longo da trama.
Uma cena especialmente me tocou, é quando Daniel se desilude com Mim e Lucas, o olhar perdido do menino, olhar de quem foi ferido em sua ética, sua dignidade é extremamente dolorido.
Na hora lembrei de Cabíria de Fellini, nem sei bem por que, mas que lembrei, lembrei.
Todos os atores estão muito bem, com personalidades bem construídas e alicerçadas.
Nesse ponto, Ana Luiza mostra que é uma ótima diretora de atores, pois consegue extrair atuações sensíveis e sem maneirismos tão característicos quando se trabalha com jovens atores, ainda mais sendo, a maioria, iniciante em cinema.
O jovem ator Pedro Tergolina encarna o protagonista Daniel de uma maneira particular, sem exageros, e consegue nos transmitir apenas por um olhar as dúvidas existenciais de seu personagem. Não é uma tarefa fácil, afinal o garoto é irritadiço em casa, leal aos amigos, apaixonado por Mim, curioso em relação ao pai, culpado em relação ao meu melhor amigo e muitas outras facetas mais...
A atriz Caroline Guedes que interpreta a irmã caçula de Daniel é um achado, espontânea sem parecer adulta, é dela a alma ingênua do filme.
A trilha sonora original é muito bonita, acompanha o enredo sem chamar mais atenção que as próprias cenas. Destaque para a música do grupo gaúcho “Apanhador Só” e também pra cena em a personagem Mim canta o clássico dos anos 80, “Beat Acelerado”, música que ganha ares de metáfora quando pensamos na condição e na dúvida que a garota está passando, apaixonado por dois meninos (“Acontece porém que eu não sei me entregar a um amor somente”.)
A fotografia é deslumbrante, sobretudo nos momentos da fértil imaginação da irmã caçula e também nos momentos em que é mostrado a história do pai.
A direção de Ana Luiza Azevedo é segura, terna e sublime, deixa espaço para os atores e a história brilharem por si só, sem a necessidade egóica de aparecer a todo custo.
A história possui uma nostalgia e uma melancolia comovente.
Enfim, sai do cinema daquele jeito que eu tanto gosto, com lágrimas nos olhos e um feliz sorriso no rosto.
O que há em comum entre cinco meninas que vivem numa cidade americana na década de 1970, um ator de meia-idade que encontra uma jovem em Tóquio, uma monarca adolescente e um ator de filmes de ação e sua filha de 11 anos de idade?
Se você respondeu que todos eles são protagonistas de filmes da diretora Sofia Coppola, a resposta é quase certa.
Mas que isso, são personagens mergulhados num vazio que nada aplaca.
Sofia Coppola é a mestra na abordagem desses tipos.
Assisti “Somewhere”, seu aclamado filme que saiu vencedor no Festival de Veneza e teve ingressos esgotados rapidamente nos Festivais do Rio e de São Paulo.
Eu fui um dos que ficou sem ingresso na Mostra de Cinema de SP esse ano.
“Somewhere” possui um roteiro bem simples. O filme conta a história de um ator de filme de ação, entediado com tudo e todos a sua volta, que acaba tendo que cuidar por uns dias de sua filha pré-adolescente.
Só isso? Sim. Aparentemente.
Sofia Coppola é adepta de um cinema sugestivo. Ela mais insinua, do que mostra. Quase nunca, a diretora é explícita, a não ser quando caçoa da mídia e das “facilidades” da vida moderna. Mesmos nessas cenas, a diretora é sutil. Pega o intento da cena quem quer. “Somewhere” começa com pouquíssimos diálogos. A primeira cena mostra um carro dando voltas e mais voltas numa pista. Cena simples, por demais. Mas, quantos subtextos são possíveis se ler ali?
Inúmeros.
Uma dessas possíveis interpretações seria o conceito de “Eterno retorno” elaborado por Friedrich Nietzsche. Segundo o filósofo alemão, o ser - humano estaria preso a um número limitado de fatos que se repetem sempre e continuarão a se repetir sempre.
Partindo desse pensamento, a vida não tem utilidade nenhuma e muito menos objetivo. Estaríamos fadados assim, a um tédio sem proporção. Eis ai o cinema praticado por Sofia Coppola.
O cara que está pilotando a Ferrari é Johnny Marco: ator de filme de ação, mulherengo, rico, famoso, pai de uma filha de 11 anos. No entanto, a diretora não entrega essas informações logo de cara. Não. O personagem é pouco a pouco revelado pelas suas ações. Johnny Marco dirige uma ferrari. Johnny Marco assiste duas dançarinas de pole dance deitado em sua cama. Johnny Marco dorme. Johnny Marco acorda. Johnny Marco fuma. Johnny Marco é observado por duas lindas garotas ao tomar “café da manhã” no hotel... E assim vai... Até aqui quase 10 minutos se passaram e ainda não ouvimos a voz de Johnny Marco. “Por que você é tão idiota?” diz a mensagem de número privado que ele recebe no celular. Próxima cena. Sofia não está interessada em grandes arrombos dramáticos. Seu cinema é mais subjetivo, interior... Onde as palavras faltam lá está Sofia para “tentar” filmar o quase infilmável. Cabe ao espectador preencher as lacunas propositais deixadas pela diretora, é ele quem vai “tentar” descobrir ou imaginar o que não foi dito ou explicitado. Esse tipo de filme exige a aquiescência (ou seria paciência) do espectador. É a sua participação ativa na composição da história quem dará sustentação ou não para tudo aquilo. Indo até mesmo além, com seus filmes Sofia força o espectador a uma reflexão sobre sua própria identidade.
“Quem é Johnny Marco?” pergunta um jornalista numa coletiva de imprensa. Corta. Próxima cena.
Apesar de o filme ter um começo, um meio e um fim pré-determinados, a história em si é o que menos importa para Sofia Coppola. Ela está interessada em filmar os instantes da vida daquele personagem. Sua história se transforma então em fragmentos. Cada cena possui um valor em si, algo pretendido pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Que dizia que cada cena tinha que contar sua própria história, sem a necessidade da outra. Essas cenas seriam independentes. Em “Somewhere” acontece algo bem próximo disso. Daí que "Somewhere" de Sofia Coppola se transforma num retrato cômico/triste/sublime/lacaniano do vazio que é a existência humana.
Cômico porque a visão arguta de Coppola sobre a fama, o tédio, o cinismo e as máscaras sociais que vestimos, são extremamente engraçadas. As cenas do pole dance de duas loiraças e gêmeas, do programa de TV italiano, e da sessão de foto de divulgação do filme, são o cúmulo do ridículo.
Triste porque sorrateiramente a diretora mostra o quão destituído de significados se torna a vida daquele personagem. Johnny Marco é um personagem trágico. Sua tragicidade advém de um ego inflado, que mesmo tendo todo o tempo do mundo não consegue nem mesmo prestar atenção em sua própria filha.
Sublime porque da cena mais banal Sofia Coppola faz brotar a epifania que estava fazendo falta no filme. Preste atenção na cena em que pai e filha tomam sol na piscina do hotel. A música e o movimento de câmera utilizado pela direção me arrancaram lágrimas.
Lacaniano porque foi Lacan quem escreveu que “a arte caracteriza-se como uma organização em torno e a partir do vazio”. Em “Somewhere” a questão da ausência é central. O Pai é ausente na vida da filha. A vida não possui nenhum significado. Para Lacan, o vazio e a falta são partes da formação do individuo como ser social. Somente pela falta é que sabemos que temos necessidade de complementação. E é daí que nasce o desejo. Outro componente importantíssimo do desenvolvimento humano e social. Em “Somewhere” essas questões estão muito bem colocadas. Johnny Marco é aquilo que vendem que ele seja. Ele é um arremedo de humano. Seus desejos são impostos por outrem. As mulheres se exibem, ele então trepa com elas. Sua agente liga ditando comportamento, ele obedece. Os jornalistas perguntam, ele tenta responder, pois sabe que se não conseguir responder, sua produtora responderá por ele. Lá pelo final do filme, a ficha do “herói” cairá e é nesses pequenos instantes que Sofia Coppola é mais Sofia Coppola do que nunca.
Será difícil eu esquecer desse filme, mas se tem uma cena que nunca esquecerei é a que Johnny é convocado pelo estúdio em que trabalha para testar sua maquiagem para um filme em que ele interpretará um velho. Sofia Coppola consegue a proeza de fazer uma cena hilariante no começo, depois extremamente depressiva, depois absurdamente paralisante e por fim nos sufoca com sua genialidade.
Durante essa cena, lembrei de um texto da Clarice Lispector em que ela escreveu que “escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.”
"As Amizades Particulares" é um filme sobre o amor ou a dor e a delícia de ser o que é...
Baseado no de Roger Peyrefitte, o filme produzido na França em 1964 é um relato da história de amor entre dois meninos: o adolescente Georges de Sarre e uma criança Alexandre Motier.
Os dois se conhecem quando Georges vai estudar num colégio católico na França, lá o pequeno Alexandre é o xodó dos padres. Sua figura absolutamente fascinante encanta a tudo e todos. Logo Georges se apaixona por Alexandre. Os dois começam uma troca intensa de cartas e poemas. O amor aqui é ingênuo, pueril, em suma sublime. No entanto, o lugar é habitado por figuras taciturnas que disseminam valores cristãos hipócritas, aos poucos esses “perus de Deus” (expressão nietzschiana) passam a ver na amizade/amor dos dois uma habitação do Mal.
De maneira sutil, o diretor Jean Delannoy nos mostra um ambiente totalmente claustrofóbico, marcado pela manipulação dos sentimentos daquelas crianças com rezas e confissões incessantes. Ora, é sabido que é por esses métodos que a Igreja Católica aliena os seus fieis. Através da confissão, os padres enredam os meninos em suas teias e conseguem o que querem deles. O filme mostra isso perfeitamente. A Cultura da Culpa e da Punição é a palavra de ordem e é um dos passos mais importantes para que o fiel se entregue de corpo e alma não a Deus, mas sim aos religiosos que pregam em seu nome.
Por debaixo dessas intenções, os religiosos possuem uma outra camada ainda mais sórdida que a primeira: DINHEIRO.
Uma pessoa culpada é uma pessoa escravizada por aquele que vier a salvá-la ou perdoá-la e terá uma dívida eterna para com a pessoa que a redimiu de seus pecados.
Prato cheio para os espertos ao contrário que habitaram, habitam e sempre habitarão a terra. Jean Delannoy não faz um filme panfletário, muito menos didático. Ele está mais interessado em contar como os afetos nascem, sobrevivem e morrem do que qualquer outra coisa. Daí que seu filme, apesar de ter sido feito em 1964, ainda é atual. Atualíssimo eu diria. Algumas cenas são de uma poesia enternecedora, algo raro no cinema praticado atualmente. O amor aqui é algo quase inalcançável e não essa bobagem que fizeram a nossa geração acreditar. Os dois meninos são felizes e sabem dessa felicidade, no entanto, se mantêm ambos, distraídos e também desesperados. Como é possível? Clarice Lispector nos deu uma pequena explicação quando escreveu que “O ato do amor contém em si um desespero que é.”.
Bingo Clarice. Bingo.
A alma do filme é o ator Didier Haudepin que interpreta o pequeno Alexandre.
Sua interpretação é tão vivaz e verdadeira que chega a assustar. Fique muito interessado em saber quais foram os métodos utilizados pelo diretor, para arrancar desse menino uma interpretação tão apaixonada e apaixonante. Afinal, ele é uma criança. Independente dos meios, o fim é excepcional. O garoto é simplesmente um achado. Também fiquei interessado em saber o que esse garoto tão talentoso fez de sua vida pós-filme. Vou procurar saber mais sobre ele.
Sobre o filme ouso dizer que Almodóvar com seu MARAVILHOSO “Má Educação” tenha assistido esse filme e até mesmo se inspirado em algumas passagens.
Ambos os filmes são trágicos e belos. . "A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão”. Bingo. Sim, Clarice. Mais uma vez.
Ao final e afinal lembrei muito da música “Consolação” do compositor Baden Powell:
“Glue” é um filme sensacional, honesto e de uma inventividade única. Contando a história de Lucas, um jovem que vive no meio do nada, o filme é muito mais que uma história de adolescente como o subtítulo nos faz crer. “Glue” acaba sendo muito mais a história de pequenos fragmentos na vida de um monte de gente do que qualquer outra coisa. Apesar de ter um protagonista definido, o filme o perde de vista às vezes. Eu explico. A câmera é a metáfora perfeita para isso que acabei de escrever. Inúmeras vezes durante o filme, ela abandona o protagonista e se fixa em outro objeto ou personagem e ali é aberta uma janela e uma possibilidade de história é contada. Às vezes o diretor opta por contá-las e outras, não. Isso é que é o mais impressiona no cinema de Alexis dos Santos. Sua habilidade e sensibilidade fílmica pululam pela tela. Não um mero “olha como eu sou genial”, mas, um apuro estético que vai de encontro às angústias e alegrias dos personagens.
Lucas é um garoto de 15 anos, seus pais se separam e reconciliam rotineiramente, tem uma irmã, toca numa banda de rock amadora e seu melhor amigo é Nacho.
Juntos, os dois se divertem, tocam, andam de bicicleta, brigam e dividem confissões sexuais. Ambos estão naquela fase em que os hormônios estão a mil. Ambos estão loucos para ter uma relação sexual (ou amorosa) com a tímida Andréa, vizinha deles.
Juntos, os três dividem a angústia de não mais ser criança e nem ser ainda adulto. O que o diretor sabiamente faz em “Glue” é filmar as pequenas alegrias, os instantes de dúvida e solidão, o tesão e o sexo desajeitado de maneira ora bem na cara dos personagens, se confundindo com ele, invadindo e atiçando, ora de maneira aberta e afastada, deixando-os respirar. Além disso, o diretor insere cenas em que os personagens em monólogos interiores fazem confissões ou abrem à guarda e se permitem ser o que são. Esses momentos são preciosos e oxigenam o roteiro de uma melancolia sutil e real. Aliás, falando em roteiro, o diretor trabalhou com um bem escasso e se inspirou em suas próprias lembranças e nas dos atores escolhidos para contar essa história. Quando os letreiros sobem, a primeira coisa que lemos é “esse filme foi improvisado por” e aparece os nomes dos atores do filme. Não era preciso saber desse detalhe para percebê-lo, pois, uma das características que mais chamam atenção no filme é a absurda naturalidade com que os atores encarnam seus papéis. Em “Glue” não há um só traço dos maneirismos que se costumam usar quando se ouve falar de cinema adolescente. Tudo em “Glue” funciona, encanta. Assisti ao filme com um sorriso nos lábios e alguma lágrima nos olhos. Adoro quando isso acontece. O diretor conseguiu captar uma atmosfera realista, sem abrir mão de contornos oníricos. Daí que “Glue” resulta numa experiência feliz, mas sem ser uma felicidade tola, vazia... Nunca. A densidade que advém principalmente das dúvidas e da sensação de vazio e de solidão está ali. À espreita. Ela é quase domada. Quase. O que mais me comoveu naqueles três adolescentes é a necessidade carnal/física/materialística que sentiam um do outro. A adolescência é aquela fase em que queremos nos desgarrar de nossa família e ganhar o mundo, testar limites, experimentar coisas e sensações, e acima de tudo, encontrar nossa turma ou a parte que nos cabe neste latifúndio. “Glue” é isso e muito mais. É também a história de uma família disfuncional que aos trancos e barrancos tenta encontrar alguma maneira de se entenderem juntos. Uma das cenas mais belas de todo o filme é a tentativa desesperada do pai de dar um pouco de alegria àquela família. É também a história de amor entre um homem e uma mulher já adultos, suas idas e vindas, perdão, brigas e possível entendimento. É a história de Andréa, a garota tímida que queria ter peitos maiores e beijar de língua. É a história de Nacho, que quase não tem história própria, mas que também tem seus mistérios. É a história de Lucas, suas músicas ouvidas com fone de ouvido, sua sexualidade latente, sua poesia ingênua, e suas tentativas de afastar o tédio de existir.
Mas, acima de tudo “Glue” é a história dessas pessoas todas juntas, tentando (con)viver, cada uma com suas aflição/alegria/tristeza/prazer individuais.
Com uma fotografia deslumbrante nos tons alaranjados de verão e uma trilha sonora poderosa, “Glue” é uma película daquelas inesquecíveis e passíveis de identificação com muitos outros filmes, tais como “Os Famosos e os Duendes da Morte” do diretor Esmir Filho, "Gummo" de Harmony Korine, “Antes que o Mundo acabe” da diretora Ana Luiza Azevedo,“E tua Mãe Também” de Alfonso Cuarón. Os atores estão excelentes. Todos. Mas os destaques absolutos são a garota Inés Efron que interpreta Andrea e Nahuel Pérez Biscayart, o protagonista Lucas. A interpretação desses dois é tão entregue que é quase possível tocá-los, de tão profundo que foi o mergulho cênico.
“Glue” é um rito de passagem. É um grito rouco de independência. É um beijo-treino na parede. Clarice Lispector em “A Hora da Estrela” escreve “a gente aceita tudo porque já beijou a parede”.
Que coisa bonita é “Beautiful Thing” do diretor Hettie McDonald.
Confesso que no começo não tava gostando muito, pensei que o filme fosse uma coisa e estava vendo outra.
Mas ai, aos poucos, fui percebendo a genialidade do diretor, através das cenas iniciais, que aparentemente não acrescentavam nada a trama que estava esperando ver, o diretor vai mostrando a nós, espectadores, o ambiente, o bairro, os apartamentos, a escola, os “amigos” do protagonista, sua mãe, o namorado de sua mãe, seus vizinhos amalucados e de repente, não mais que de repente, eu já estava totalmente dentro da história.
A história, bem, a história desse filme pode se resumir numa única frase:
A descoberta da sexualidade de jovens num subúrbio preconceituoso.
Mas, não só isso, pois o diretor da película é inteligente e não quis fazer um filme panfletário e sim um filme que conta uma história de uma maneira simples e sensível.
Jamie, o protagonista do filme, é um garoto deslocado, tímido, sua mãe trabalha em pub e deu um duro danado para sustentar o filho sozinho. Ela percebe que o filho tem algo diferente, mas não sabe bem o quê. Intui que há algo de "errado", mas não consegue identificar o que seja. É possível até mesmo identificar que ela se sinta culpada por alguma coisa também. Mas que também não se sabe o quê.
A Mãe de Jamie tem um fama não muita boa na vizinhança, tratam-na como vadia, dizem que ela já fez abortos. Ela está namorando um rapaz mais novo, que aparentemente não tem nenhuma perspectiva de vida.
Ela sustenta sozinha a casa.
Seus vizinhos são a família de Ste, amigo de seu filho, mais o pai e o irmão mais velho do garoto. São machistas e batem nele, a todo momento.
Do outro lado, mora uma hilariante figura, Leah, uma moça negra apaixonada por uma cantora chamada Mama Cass e sua mãe.
O diretor apresenta esses personagens sem nenhum julgamento, apenas mostra-os em ações diárias, não cabendo à sua direção emitir um juízo de valor.
Eis ai, um dos grandes achados do filme.
Aos poucos, a história vai ganhando corpo.
Um dia, Sandra (mãe de Jamie) encontra Ste chorando nas escadarias do prédio, ele tinha acabado de ser surrado pelo pai e pelo irmão.
Ela se sensibiliza e o leva para dormir em sua casa. No quarto de Jamie. Na mesma cama de Jamie.
E sem fazer alarde, nem erotizar, nem imbecilizar a história (como uns e outros, não é Sr Aluisio Abraches e filme de meia pataca “Do começo ao fim”), Jamie vai se apaixonando por Ste e em cenas de enorme sensibilidade e competência os meninos iniciam um "namoro".
E ai, acontecem coisas que acontecem com todo mundo que se descobre gay em uma sociedade machista. Não vou contar aqui, mas todo mundo sabe o que acontece.
O diretor sem medo de encarar essa cenas clichês, filma-as sob a ótica da descoberta.
É lindo acompanhar o desflorar de Jamie, sua excitação, seus medos, seu amor.
Não é só quem se "descobre". Todos ali de alguma maneira se descobrem.
Essa é a beleza do filme.
“Beautiful Thing” parece nos dizer que todos, absolutamente todos nós, possuímos alguma coisa que falta. É aquele vazio existencial que o psicanalista Lacan tanto falou.
“Guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo” escreveu Caio Fernando Abreu, e é por esse caminho que o filme trilha.
O diretor filma esse vazio, a falta de perspectiva, a inércia e a preguiça que dá em tentar mudar as coisas e ser feliz.
Todos ali doem, todos ali estão feridos. Uns tem marcas no corpo, outros em outros lugares. Mas, em segredo, carregam suas cicatrizes. Até um dia que não dá mais para segurar, explode coração...
É isso ai, um pequeno filme, precioso, como uma jóia rara a se descoberta em algum lugar.
Chorei, chorei muito vendo.
Chorei porque sinto que a vida poderia ser um pouquinho mais sublime, sabe?
Chorei porque temos chorado nossas feridas, mágoas e vazios em nossas camas vazias.
Chorei porque a vida pode e deve ser bonita.
Chorei porque dois humanos pode sim dançar um dança bonita e juntos numa tarde ensolarada.
Belo/dolorido filme, a trilha sonora dos garotos Jamie e Ste é dilacerante de linda e o diretor tem uma sacadas ótimas sempre que o clima está ficando muito pesado.
Destaque para a atriz que interpreta Leah, a vizinha negra e amalucada, ela rouba a cena em vários momentos.
Às vezes estava chorando pela cena anterior e na hora em que ela aparecia me pegava rindo.
Ah! Como eu amo essa sensação que só a arte verdadeira, legitima e sincera pode nos proporcionar.
Recomendo que todos assistam “Beautiful Thing”, também traduzido no Brasil como “Delicada Atração".
Produzido no ano de 1978, o filme retrata um internato de meninos menores de idade, suas dúvidas, angústias, medos, descobertas de uma maneira bem simples.
O filme é encantador, nos primeiros 15 minutos eu achei que não iria gostar muito da história, mas depois fui ficando preso ao enredo e entrando de cabeça naquilo tudo.
O internato onde os meninos estudam é um lugar cheio de regras e deveres, os professores em sua maioria são moralistas, chatos (salvo rara exceção), e o diretor é uma figura emblemática, autoritária e ególatra.
A única professora que destoa é a responsável por introduzir assuntos “espinhosos” como sexo e drogas, no entanto, sempre por um viés moralizante. Mesmo assim, é a única que parece se interessar verdadeiramente pelo o que os garotos pensam.
Vivenciando aquela que é considerada a mais difícil das fases de uma pessoa, os garotos querem mais é botar pra quebrar, experimentar tudo o que tem direito e mais um pouco.
Como são educados dentro de uma “moral cristã” e somente entre meninos, o desejo sexual naturalmente nasce entre eles mesmo ou com garotas mais velhas, onde o sexo é moeda de troca.
E nesse quesito o filme é genial. Retrata com uma dignidade absurda o comportamento daqueles meninos, sem fazer firulas ou esconder nada, mas também sem ser gratuito. Essa é a grande sacada do filme.
Na história principal, digamos assim, vemos o garoto Kim, filho do diretor da escola, se apaixonar por outro garoto, Bo, mais velho que ele.
As cenas que envolvem o desabrochar desse sentimento entre os dois são oníricas, revelando o componente do desejo através de pequenos olhares, fortuitas brincadeiras e muita curiosidade.
Em nenhum momento o filme se torna apelativo, e olha que haveria espaço pra isso.
Mas, não, tudo se encaixa perfeitamente nessa história que não é só de amor. É também, uma história de vários pequenos ritos de passagem.
É bonito ver o olhar de inocência daqueles garotos descobrindo o mundo, um mundo não tão bonito, sim, é verdade, mas o mundo deles também, aquele pedacinho de mundo que é só nosso, e ninguém pode invadir.
É desse componente de identificação que brota nossa atenção à história.
Embarcamos no filme, porque também nos já passamos por quase tudo aquilo, porque também nós já fomos tolhidos, censurados, moralizados etc etc etc.
A certa altura do enredo, o diretor pega pela segunda vez as dependências dos garotos com fotos pornográficas e decide em comunhão com a maioria dos professores, expulsar o aluno responsável pelo ato “pecaminoso”.
No momento em que o diretor da escola está comunicando aos alunos sua decisão, um deles pede pra que o professor se retire para que os alunos decidam se aceitam ou não aquela expulsão.
O diretor fica desconcertado e diz que ali ele dá às ordens. O aluno não se faz de rogado e diz para todos da classe que aqueles que não concordarem com a decisão do diretor que o acompanhem para fora da sala de aula. A maioria sai com o garoto.
É uma cena forte. Eu torcia desesperadamente pro garoto, achei a atitude dele digna, de “gente grande”. Eu, quando criança e adolescente, era exatamente como esse garoto que contrariou o professor. Eu assim como ele, queria ser revolucionário, mesmo sem saber, mesmo sem querer. Eu era, porque era da minha natureza ser assim.
Numa “assembléia”, os garotos decidem fazer algo para ajudar o amigo expulso pela direção e contam com a ajuda da única professora que votou contra, sim, é a mesma que “ouve” os alunos.
E eles vão para a “luta”, pintam cartazes, gravam entrevista com os professores que votaram contra, invadem a sala de aula onde o diretor está dando aula, conversa com os alunos sobre a situação da escola, tudo com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça.
O final do filme é um pequeno manifesto. Um soco no estômago dos moralistas de plantão.
Algumas cenas são lindas, tais como as do piquenique no bosque, remetendo ao movimento hippie, as cenas em que Bo e Kim se descobrem sexualmente, em especial a cena em que eles tomam banho juntos e também a peça de teatro que eles montam para os pais e os professores em cima dos “dez mandamentos” bíblicos.
A trilha sonora é simplesmente magnífica e pontua muito bem as idéias do filme.
Ao longo da história, fui percebendo que alguns diretores contemporâneos que tocaram nesse assunto, usaram o filme como referência. É possível notar uma semelhança com “Elephant” de Gus Van Sant, principalmente na cena em que a câmera passeia pelo quarto do garoto Kim, revelando seus gostos, suas preferências, seus ídolos, tal qual na famosa cena de “Elephant” em que um garoto, que mais tarde invadirá a escola onde estuda e matará alguns de seus colegas, toca Beethoven e a câmera percorre todo o quarto do garoto num giro de 360° graus lindíssimo. E também percebi que Almodóvar se inspirou no filme para criar seu estupendo “Má Educação”. A seqüência em que os garotos nadam num riacho, é bem parecida com a que Inácio canta “Moon River” para o padre, e sofre ali a primeira tentativa de abuso sexual.
Enfim, “Você não está sozinho” é um filme terno e delicado para se assistir com um sorriso de canto de boca e alguma lágrima nos olhos numa madrugada chuvosa de um mês de maio qualquer...
"Venha, nos encontre, nos faça desaparecer no bosque.
Ali onde se senta num tronco e tem o céu acima e se move se arrasta... livre.
Eu gosto das flores, das garotas e do vinho.
Que bonitos são as flores, os meninos, as garotas e as paisagens.
Desfaço-me de minhas roupas, me ajude, - livre.
Me liberte dos que roubam seu coração.
Me liberte daqueles que transformam a vida em algo miserável.
Raramente assisti um filme que tenha me despertado tantas sensações e pensamentos como “A Cor da Romã” do diretor Sergei Paradjanov.
O filme é uma espécie de biografia da vida e obra do trovador armênio Sayat Nova.
No entanto nas mãos do diretor (também armênio) o filme se torna uma obra-prima que “conta” essa história utilizando-se de seqüências imagéticas de forte apelo evocativo e religioso.
É um filme de cair o queixo, literalmente.
Assisti a película embasbacado com tamanho virtuosismo na seleção das imagens, no preciosismo dos detalhes das roupas e dos elementos cênicos e maravilhado com a dor e o lirismo das frases que abrem cada quadro.
Na época em que foi lançado no mítico ano de 1968 o filme foi acusado de não contar uma história de maneira linear, eu discordo profundamente, o filme conta uma história linear sim, acompanhamos contritos e atentos a vida e morte do poeta Sayat Nova, cada quadro abre com uma pequena introdução e uma indicação de que fase da vida do poeta será contada.
Algo muito próximo do teatro do alemão Bertolt Brecht, pois já sabemos de antemão o que assistiremos a seguir, no entanto o diretor se afasta do rigor formal e político de Brecht e parece aspirar à loucura sã do dramaturgo francês Antonin Artaud.
Aliás, tanto Artaud quanto o diretor Paradjanov tinham conhecimentos de Pintura e enfrentaram problemas com a censura e a polícia e ambos tiveram seu direto à liberdade e a criação castrados pela sociedade.
O filme “A Cor da Romã”, além disso, tem uma forte influência do Movimento Surrealista, movimento do qual Artaud era adepto.
A sucessão de imagens e o num primeiro momento ilogismo das imagens parecem ter bebido nessa fonte da obra do poeta, louco e marginal francês.
Já entre o trovador armênio Sayat Nova e o dramaturgo francês Antonin Artaud existem muitas diferenças, mas uma coincidência: ambos morreram na defesa de seus ideais.
Sayat Nova foi morto por soldados persas ao reafirmar a fé cristã, já Artaud morreu negando Deus e os valores tradicionais do cristianismo, como a moral e família.
Artaud e Sayat Nova são ambos figuras prototípicas do ser que se nega a abrir mãos de suas convicções.
O diretor também é um desses homens, foi preso sob acusações de homossexualismo, incitamento ao suicídio e tráfico de ícones, mas nunca cedeu.
“A Cor da Romã” possui um tempo cronológico relativamente curto (72 minutos) mas seu tempo mítico-mágico é outro, o diretor nos mostra o tempo como o tempo, sem se preocupar com a possível lentidão ou ilogismo das cenas.
O diretor Paradjanov assume um ponto de vista e segue nele sem fazer concessões, utilizando-se de signos híbridos para “contar” a história do trovador e consegue ir além colocando em xeque suas próprias imagens ao utilizar um tom exagerado e com inúmeras referências (pinturas, música, poesia etc), o que acaba gerando um estado confuso e hipnótico no espectador.
Assim como na teoria do teatro pós-dramatico (Hans-Thies Lehmann) tudo no filme depende de não se compreender imediatamente. É o famoso método da “atenção flutuante por igual” (“o espectador não é impelido a uma imediata assimilação do instante, mas a um dilatório armazenamento das impressões sensíveis”) usada na psicanálise e nos rituais zen’s.
O efeito de encantamento com as imagens de “A Cor da Romã” chega antes do entendimento racional.
Paradjanov faz um cinema absolutamente pessoal e encantador.
Se por acaso você for assisti-lo um dia, lembre-se dos conselhos de Clarice Lispector:
“Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca.”
Dostoiévski em seu mais famoso livro “Crime e Castigo” cria o personagem Raskólnikov, jovem sensível, erudito e sem dinheiro que formula uma teoria interessante e controversa: a do crime permitido.
Esse crime permitido, não seria “privilégio” de todo mundo, mas, somente daquelas pessoas especiais.
Raskólnikov divide a humanidade em duas possibilidades de existência: Pessoas “ordinárias” ou “extraordinárias”.
É lógico que ele próprio se incluia na categoria de pessoas extraordinárias, aquelas que até mesmo o crime seria permitido.
Dostoievski em “Crime e Castigo” cria uma obra-prima de tensão, loucura, culpa e redenção.
O diretor Christopher Nolan dirigiu em 1988 um filme chamado “Following”, na verdade esse foi seu primeiro filme.
“Following” conta a história de um jovem “escritor” londrino em crise criativa que passa a seguir pessoas para ter algum tipo de ideia interessante para seus livros.
O que no começo era apenas um hábito estranho passa aos poucos a se tornar um vício, um perigoso vício.
Numa de suas “perseguições”, é abordado por uma das “vítimas” e tudo muda.
O cara que o aborda é um “ladrão” que invade a casas das pessoas em busca de emoção e objetos intimos das “vítimas”.
O “escritor” passa então a seguir o “ladrão” em suas “invasões” (com o consentimento dele). Nesse ínterim, ele conhece e se apaixona por uma mulher loira que tem um caso com um poderoso e violento “mafioso”.
Essa é a premissa básica do filme.
Não vou contar mais porque acabaria com a surpresas das reviravoltas.
Entretanto, é extremamente interessante notar a destreza com que Nolan brinca com alguns símbolos do cinema noir, tais como a estética em preto e branco, o clima de mistério, a trilha sonora instigante, a mulher loira e as reviravoltas do gênero.
O diretor prova que conhece e muito desse tipo de cinema, e vai além, alcançando dimensões diversas.
A primeira cena do filme é arrebatadora.
Mais tarde ficamos sabendo que aquela primeira cena faz parte de um “interrogatório” que o “escritor” está respondendo.
Nessa primeira cena acompanhamos os primeiros passos do “escritor” em suas “caçadas”, e é um show a parte, a trilha sonora é perfeita e o ousado jogo de câmera do diretor nos coloca praticamente dentro do ocorrido.
“O que se segue é a minha explicação, ou melhor... é um relato do aconteceu” ouvimos o personagem dizer. Quando questionado pelo “delegado” o porquê de seguir pessoas na rua, o “escritor” questiona: “Alguma vez foi a um jogo de futebol e olhando para a multidão de repente se fixou em uma única pessoa? De repente, essa pessoa já não faz parte da multidão. Tornou-se um individuo sem mais nem menos. Tornou-se algo irresistível”.
Perfeita metáfora para o filme. Essa cena localizada logo no início é simplesmente irresistível, e Nolan sabe disso.
A partir dessa cena passamos a “seguir” a onda filme.
Muitos poderiam achar que pela primeira cena, o diretor faria um filme sobre a solidão contemporânea, mas não. O diretor faz um filme sobre pessoas “ordinárias” e "extraordinárias”. De certa forma, porém, Nolan também faz um filme sobre a solidão contemporânea... todos os personagens estão sozinhos, mesmo quando acompanhados. Há algo de desalento em cada um dos protagonistas do drama, cada um a sua maneira é solitário e cada um a sua maneira também tenta desesperadamente uma maneira de não ser mais sozinho. Vence quem for o mais resistente, o mais forte, o que resistir as intempéries da vida. Vencerá o mais esperto, aquele que sabe que o ser-humano é e sempre será sozinho.
"Cada um por si e Deus contra todos" é uma frase de Macunaíma, de Mário de Andrade, que mais perfeitamente se aplica a essa obra de Nolan.
Macunaíma (o bom brasileiro) não gosta de trabalhar e só quer se dar bem à custa dos outros, lema de todos os personagens envolvidos em “Following”.
Promovendo um interessante jogo de espelhos, nada na trama parece ser “realista”, tudo tem uma áurea dúbia, tudo pode ser como não ser.
É nesse jogo instigante entre gato e rato que o diretor constrói seu filme.
Nesse jogo de espelho leva o espectador para dentro de sua obra e nos coloca ora como detetives dessa investigação ora como cúmplices de vários crimes.
O que é real? O que é inventado?
Nolan faz algo bem próximo ao cinema do grande David Lynch (principalmente "Eraserhead"), cada pista, cada novo passo, cada reviravolta é importante. É preciso assistir atento ao filme... senão...
Outro lance importante é perceber o quanto de influências ele possui e também o quanto influenciou os diretores que vieram depois dele.
Ouso dizer que filmes como “Pi” do diretor Darren Aronofsky tiveram como referência “Following”.
Ao assistir o filme de Nolan automaticamente fui reportado para o universo soturno/estranho do pintor brasileiro Osvaldo Goeldi, seus quadros secos e incisivos mostram um pouco do universo moral das figuras que o habitam.
E também lembrei das belas e solitárias figuras do pintor norte-americano Edward Hopper.
Sim, é obvio que o diretor Nolan utilizou de muitas formas de referências e elas estão todas ali, para quem quiser e puder ver.
É incrível como até o livro que estou lendo no momento vai de encontro ao filme.
“Magnólia” da filósofa e escritora Márcia Tiburi conta a história de uma mulher diante da ausência de uma outra, ela então procura possíveis sinais, vasculha gavetas, lê e rele cartas na tentativa de personificação daquela que já não está mais ali, naquela casa em que agora ela é uma “invasora”.
Um dos meus filmes prediletos também possui essa mesma premissa.
“Casa Vazia” do diretor coreano Kim Ki-duk mostra um jovem que invade casas vazias durante a ausência de seus moradores, na tentativa de vivenciar por alguns dias o cotidiano daquelas pessoas. A diferença de “Following” para “Casa Vazia” é que no segundo filme o protagonista deixa a casa em melhor estado do que encontrou, consertando tudo o que estava estragado, como forma de pagamento.
O mais interessante de tudo isso é notar que tanto em “Crime e Castigo”, “Casa Vazia”, “Macunaíma” quanto em “Following”, os protagonistas se perdem (ou se salvam, depende do ponto de vista do freguês) em nome do amor à uma mulher.
Retorno ao mito de Adão e Eva? Pode ser, pode ser...
Incrível mesmo é perceber que o filme de Nolan tem apenas 70 minutos e que, no entanto provoca uma série de questionamentos e abre um imenso leque de informações e possibilidades.
É a prova que cinema quando é bom, não depende da durabilidade e sim de seu conteúdo.
PS: Seria o filme "Following" o precussor do TWITTER? Fica a dúvida... rs
É possível um filme falar da relação amorosa/sexual de um menino e um soldado sem ser vulgar e chocante?
SIM!
"Para um soldado perdido" é esse filme.
Produzido na Holanda (só podia ser de lá mesmo) em 1992, o filme conta a história de Jereon, um coreógrafo que em meio a um ensaio de balé relembra fatos de sua infância.
Jereon é um garoto de 12 anos que é mandado por sua mãe para uma outra cidade. Estamos em 1944, final da Segunda Guerra Mundial e o diretor Roeland Kerbosch apresenta os fatos, o novo vilarejo, os personagens e os conflitos bem calmamente. Ele não tem pressa alguma. Tanto é assim que até os primeiros 40 minutos de filme ainda a história não está inteiramente posta.
Tudo é novidade na “nova casa” de Jereon e esse rito de passagem que interessa ao diretor, muito mais do que a suposta história polêmica de seu filme.
Jereon é um garoto curioso, descobrindo o mundo e sua sexualidade. É nesse contexto que ele conhece soldado canadense Walt.
Pouco a pouco, sem forçar a barra em nenhum momento, o diretor constrói uma relação sólida entre esses dois personagens.
Ambos, Jereon e Walt, são tipos abandonados, diferentes dos outros, a diferença de idade não é percebida por vias racionais pelo espectador, talvez por não demonizar ou embelezar a relação desses dois personagens, passamos a aceitá-los com carinho.
As cenas entre os dois são ternas, existe entre aqueles personagens uma aproximação, uma amizade verdadeira e há algo de doloroso também.
O soldado Walt diz numa cena linda que não queria ser soldado, apenas o fez para agradar o pai e a mãe. O garoto interpretado com maestria/curiosidade/lirismo pelo ator mirim Maarten Smit é um achado. Talvez o filme seja tão terno, porque é o olhar dele que está impregnado em toda a ação dramática.
Confesso que a primeira metade do filme seja um pouco redundante e cansativa demais, mas a segunda parte quando começa a história dos dois o filme cresce fenomenalmente.
A fotografia é muito bonita, extremamente bucólica, remetendo muitas vezes ao estado psicológico dos personagens.
A trilha é um pouquinho melodramática demais, mas não atrapalha o contexto geral.
As interpretações são muito boas, mas são de Walt e Jereon as melhores interpretações. Walt é um personagem bastante ambíguo, parecendo carregar uma grande tristeza e também uma grande ingenuidade dentro de si. Umas das cenas mais bonitas é quando ele inesperadamente começa a imitar Jereon numa brincadeira num “campo minado”.
Em alguns momentos é possível dizer que Walt é mais criança que Jereon, e isso embaralha as noções morais do espectador médio.
Não vou contar mais, porque o final traz algumas surpresas. Inclusive as cenas que antecedem o fim são belíssimas.
Enfim, “Para um soldado perdido” trata de ritos de passagens e também nas palavras do poeta da “vida inteira que podia ter sido e que não foi."
PS: Ao tratar de dois assuntos polêmicos num mesmo filme (homossexualidade e pedofilia) diretor Roeland Kerbosch dá uma aula de como fazer isso e fazer bem ao brasileiro Aluizio Abranches com seu infame e ridículo “Do começo ao fim”.
Essa pergunta martela em minha cabeça depois de ter assistido "Boy Interrupted".
O documentário conta a história do garoto Evan Perry, que cometeu suicídio aos 15 anos de idade, pulando da janela de seu quarto. Os pais do garoto são os responsáveis pela realização do filme. Para tal empreitada, eles utilizam um vasto material de fotos e vídeo da infância e adolescência do garoto. Ambos são cineastas e possuíam o hábito de filmar a família, os passeios e as brincadeiras entre eles e os filhos. Com aproximadamente cinco anos de idade, Evan é levado ao psiquiatra pelos pais, por manifestar um comportamento dúbio e uma intensa vontade de se matar. O psiquiatra dá o diagnóstico: Evan tem um distúrbio bipolar fortíssimo e começa um tratamento com Prozac. Todos que convivem com o garoto descrevem-no como sendo sensível, amoroso, talentoso, mas que às vezes se fechava em si e ficava impenetrável. A professora de teatro revela que Evan desde pequeno dizia que queria se matar e ainda na infância escreve uma peça onde um garoto morre e os amigos e familiares lamentam sua morte. A mãe o descreve como sendo um menino adorável, mas com um humor extremamente variável e estranho. O Pai relata que o comportamento de Evan o faz lembrar de seu irmão que se suicidou aos 21 anos de idade. O meio-irmão o descreve como perfeccionista, mesmo quando ainda criança. Os amigos consideravam-no muito inteligente e engraçado. A avó não consegue entender os motivos da tristeza e da obsessão com a morte nutrida pelo neto. O psiquiatra definiu-o como sendo obsessivo e desapegado. E assim aos poucos, aos solavancos, nós (espectadores) vamos tentando construir um possível retrato de Evan. Não. Não é possível. Daí, que um misto de perplexidade, estranheza e curiosidade toma conta de nossos sentidos. Tentamos entender. Desesperadamente. Por quê? Por que Evan suicida-se aos 15 anos de idade? Todos se perguntam. Nenhuma resposta plausível.
“Eu quero um câncer” relata Evan ao psiquiatra. “Eu quero me jogar da janela” diz Evan a professora aos 5 anos de idade. “Eu quero me enforcar e vou te mostrar como faria” ele revela para sua mãe. Ainda garoto compõe e canta ao violão uma música onde diz:
“Você acha que tudo é livre. Se eu pudesse cortar meu pescoço. Ameaçar você com uma faca e dizer que você vai morrer hoje. É porque estou deprimido. Nada menos do que isso. Curioso. Furioso. Alguém me mate, por favor. Estou de joelhos. Alguém me mate, por favor. É porque estou deprimido.”
É por esses desvãos, descaminhos e precipícios que caminha o documentário. Os pais de Evan, num processo de expurgação do luto corajoso, não escondem nada, pelo contrário, buscam, escavam e se expõem de uma maneira avassaladora. Eis ai um impasse. Como reagir diante de tanta honestidade e exposição desses pais? É correto ou justo o que eles fazem? O julgamento aqui é individual. Cada um sabe exatamente onde reside o seu calcanhar de Aquiles. Para mim, o que fica é que a incompreensão do comportamento do filho é tão grande, que, para eles, pouco importa a opinião dos outros. Durante o filme, lembrei bastante do livro “Precisamos falar sobre Kevin” da escritora americana Lionel Shriver, cujo enredo conta a história de uma mãe, Eva Khatchadourian, que escreve cartas para o marido Franklin numaa tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Sim. O sentimento de não entender é o mesmo. A coragem em se expor, idem. A protagonista do livro investiga até as últimas conseqüências qual seria sua culpa no comportamento assassino do filho. Narrado de maneira epistolar, o livro é um soco no estômago. Assim é também “Boy Interrupted”. Apesar de pequenos deslizes (sobretudo a trilha sonora insistentemente piegas) o filme é relato fiel de uma alma dilacerada e desesperada por algum tipo de ajuda ou compreensão. Impossível não lembrar dos versos da poetisa portuguesa Florbela Espanca:
“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!”
Sim. Ao assistir o documentário, inúmeras referências passaram em minha cabeça. Desde o “sabe o que é mais foda? É que depois dali ó, não tem mais nada”, dito pelo garoto sem nome do livro/filme “Os Famosos e os Duendes da Morte”, passando pelos suicídios em filmes da Sofia Coppola, Gus Van Sant e Béla Tarr, até chegar ao abandono da ficção e desembocar no suicídio de escritoras como Sylvia Plath e Virginia Woolf e do garoto brasileiro Yoñlu. Isso sem falar do parentesco imediato com o documentário “A Ponte”, no qual o diretor Eric Steel passa o ano de 2004 inteiro filmando pessoas que resolvem se matar na ponte Golden Gate no EUA. Assim como “Boy Interrupted”, o documentário “A Ponte” é duro e chocante. Necessário também. Ao final, a fala da avó paterna resume bem o intento do documentário:
“Isso mostra que existe muito mais, a saber, sobre as pessoas que você ama do que você é capaz de descobrir.”
Por fim, lembrei de Albert Camus que disse que "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia".
Sim. Por mais incrível que isso possa parecer ao falar de suicídio/morte, o documentário “Boy Interrupted” é um contundente relato sobre vida.
'Winter's Bone' da diretora Debra Granik é um filme poderoso. Remonta os mitos trágicos de uma maneira contemporânea, mas sem nenhuma afetação.
Na história, acompanhamos Ree, garota de apenas 17 anos, que se vê obrigada a procurar o pai (que fugiu por problemas com a justiça) para impedir que seus dois irmãos mais novos e sua mãe doente fiquem desabrigados, pois a casa onde moram foi dada como fiança. Caso o pai dela não apareça na data estipulada eles perderam a casa.
Partindo de uma premissa dramática convencional, até novelesca, eu diria, a diretora Debra Granik consegue se “safar” de todas as armadilhas do gênero. Produzindo assim, uma obra de intenso vigor, sem, no entanto, utilizar clichês para comover o espectador.
A história é comovente por si só e a interpretação dos atores ultrapassa o mero realismo formal. O tom usado pelos atores é o hiper-real, eles não parecem mais representar algo e sim ser algo. É uma diferença sutil, mas que dentro da proposta da direção funciona de maneira limpa e digna.
Sem revelar muito do enredo, ou das personagens, a trama pouco a pouco vai se impondo por si só. Pouco ou quase nada sabemos. A diretora propositalmente nos coloca no papel de Ree, assim como a garota precisamos escavar, investigar para chegar a algum lugar. Lá pelas tantas, somos informados que talvez o pai dela já estava morto e é ai que o roteiro ganha ares trágicos.
Ao saber disso, Ree se torna uma Antígona contemporânea. Na obra do dramaturgo grego Sófocles, Antígona se nega a cumprir às ordens do Rei Creonte que diz que Polinices, morto num duelo com o próprio irmão Etéocles, não receberia nenhuma espécie de enterro, pelo contrário, teria seu corpo jogado a esmo para que os animais o dilacerassem, para que isso servisse de exemplo para todos aqueles que fossem contra a autoridade do Rei de Tebas. Antígona se nega a cumprir essa ordem. Enterra o irmão. Creonte condena-a a uma morte lenta numa caverna.
Em 'Winter's Bone' vemos a mesma obstinação de Antígona em Ree, ela se nega a ficar quieta como sugerem todos os personagens que ela vai atrás numa tentativa insana de montar o quebra-cabeça do desaparecimento de seu pai.
A motivação de Ree, diferentemente da de Antígona não é a honra de seu familiar, mas, sim, a sobrevivência de sua família. O que só torna o enredo mais humanizado. Ree é uma figura trágica, sofre em seu corpo as agruras que seriam imposta a outrem e em nenhum momento foge de sua própria ruína. Ree é ameaçada, humilhada, apanha, perde dentes, sangra por dentro e por fora, mas não desiste. Pelo contrário, em toda sua “via crúcis” parece sair elevada em sua grandeza humana. Sim, Ree é uma estóica. Sofre seus infortúnios de maneira austera. Ela parece estar consciente de sua própria tragicidade. A atriz Jennifer Lawrence que faz Ree é sensacional. Seus traços finos e gestual quase ingênuo só fazem realçar o sentido trágico da personagem. Jennifer é um achado, consegue dar conta de todas as emoções e sensações da personagem de uma maneira assustadora. Aliás, todo o elenco (sem exceção) é excelente. Debra Granik se mostra aqui uma expert em dirigir atores e conseguir extrair deles interpretações muito acima da média. Com muito pouco ou quase nada, a diretora consegue criar climas preciosos, ora de ternura, ora de extrema violência e suspense. Preste atenção numa cena em que umas das personagens segura uma serra elétrica. Debra Granik é tão genial que sabe brincar com nossos instintos assassinos e ou sanguinolentos sem nunca precisar de fato cair no estereótipo dos filmes de violência ou suspense. Some-se à isso o filme tem uma fotografia deslumbrante, de encher os olhos mesmo e uma trilha que apesar de pontuar a ação dramática não enfia goela abaixo do espectador uma emoção pré-fabricada ou falsa. Aqui o jogo é limpo e as regras são claras. Eis ai a beleza desse filme. O filme começa e termina com canções de "ninar" que dizem muito sobre o filme. Preste atenção!
”Winter's Boné” é uma adaptação do romance homônimo de Daniel Woodrell escrito em 2006 e já ganhou vários prêmios importantes por ai. Inclusive é considerado pelos críticos como um dos fortes concorrentes ao Oscar de 2011. Seja por esse motivo ou não, se eu fosse você assistiria 'Winter's Bone' correndo.
Confesso que quando fui assistir o filme "Kick-Ass" no cinema estava sem muita expectativa.
Nem tinha lido nada sobre um filme, mas um amigo lá no twitter (que tem o mesmo gosto cinematográfico que eu) disse que era muito bom e lá fui eu assistir.
O filme conta a história de Dave Lizewski, um garoto nerd, que um dia tem um ideia mirabolante: comprar uma roupa de super-herói e sair à caça de alguém para defender.
Dave é um típico adolescente nerd (americano), estudioso, feioso, desengonçado e viciado em internet e em masturbação.
Partindo dessa apresentação do personagem principal, o diretor Matthew Vaughn vai aos poucos construindo o seu enredo.
Dave perdeu a mãe e aprende que tudo continua e está absurdamente entediado com sua vidinha e “resolve” virar super-herói, mas, antes faz uns treinamentos hilários na frente do espelho vestindo o que seria sua fantasia de herói, uma roupa verde e com riscas amarelas. O treinamento se estende para a rua e numa tarde qualquer aparece sua chance, bandidos estão assaltando um carro e ele resolver intervir. Os bandidos riem. O garoto não se dá por vencido e enfrenta-os. Acaba levando uma facada na barriga e enquanto foge é atropelado por um carro. Tudo é filmado com extrema violência e realidade, mas o humor negro que perpassa o filme todo não deixa com que o filme se torne gratuito. Enquanto Dave se recupera no hospital, somos apresentados a mais dois personagens: um pai e um filha. O pai ensina a menina de 11 anos de idade como suportar um tiro. Ele atira nela. Ela voa longe. Mas suporta.
É desse componente esdrúxulo que brota o encantamento dessa película.
Dave sai do hospital e não desiste de sua missão de se tornar um herói.
Num golpe de destino, ele se mete numa enrascada com bandidos violentos e a cena da briga entre eles acaba sendo filmada e cai no Youtube.
Dave vestido de Kick-Ass vira um sucesso, roupas iguais à dele são vendidas, quadrinhos são feitos com seu nome, festa e tudo mais.
Era tudo o que Dave sonhava, mas falta algo e além do mais ficamos sabendo que o garoto se meteu numa enorme enrascada e está jurado de morte.
Aos poucos, o diretor também insere na trama, uma garota linda e popular por quem Dave se apaixona. Ela se aproxima dele por achar que Dave é gay e seu sonho sempre foi ter um amigo gay. (Olha o esdrúxulo ai de novo).
O filme é bem complexo e tem várias reviravoltas, mas o que impressiona realmente é como o diretor Mattew Vaughn dá conta de todas as nuances propostas pelo enredo.
Kick-Ass é um filme ousado e extremamente perigoso, por se tratar de um filme hibrido que possui várias linguagens e todas elas convivendo em harmonia durante a execução do projeto.
O filme possuiu cenas cômicas, trágicas, densas, tensas, violentas, bizarras, românticas e tudo isso embalado por uma pegada pop, com visual de quadrinhos e trilha sonora altamente competente.
Durante o filme, ficamos sabendo que o Pai e a Menina que vemos logo no começo são “heróis” de verdade e os dois tem como missão, vingar a morte da mãe. Por isso, então do treinamento e do tom por vezes amargo da história.
Chega a ser sintomático que numa cena aparentemente desnecessária no início do filme, os alunos e Dave estejam lendo a peça “Hamlet” de William Shakespeare.
Pra quem já leu essa obra-prima do bardo, sabe que a trágica história de Hamlet possui como tema principal a dúvida entre vingar ou não a morte do seu pai morto por interesse por seu tio.
“Hamlet” é sem sombra de dúvida a melhor e maior obra sobre a vingança já escrita na dramaturgia mundial e é obvio que Kick-Ass bebe nessa fonte.
Com muita idas e vindas, com um ritmo alucinante/engraçado/violento/trágico/triste o diretor estreante na condução de longa metragem consegue conceber um filme extremamente atual, sem ser ingênuo, bobo ou apelativo.
É um filme pop sim, e isso não é nenhum demérito, muito pelo contrário, engrandece a genialidade e sensibilidade de Matthew Vaughn na coordenação dos trabalhos.
Os atores estão todos ótimos, Nicolas Cage como Big Daddy está excelente, irônico e trágico na medida certa. O jovem ator Aaron Johnson que interpreta o protagonista Dave é muito bom também, consegue segurar a onda de uma personagem com várias caras; nerd, apaixonado, herói etc etc. Mas o filme não seria o mesmo sem o talento e o brilho de Chlöe Moretz, uma pequena grande atriz que simplesmente arrasa durante todo o tempo em que aparece. O filme é dela e isso tem que ser falado, sim. Carismática, engraçada, debochada e dramática quando preciso, a atriz mirim dá um show e nos encanta e faz com que nós, espectadores, torçamos por sua personagem.
O filme tem seqüências ótimas de ação e adrenalina, orquestradas com uma precisão cirúrgica pela direção, a trilha por vezes irônica que embala as cenas ajuda a compor um clima de estranhamento tal qual o pretendido por Bertolt Brecht.
Enfim, “Kick-Ass” é um filme divertido e trágico, com reflexões contemporâneas interessantes (inclusive tem uma crítica mordaz endereçada aos reality shows e os limites cada vez mais esgarçados dos seus realizadores) e é também um excelente retrato da juventude atual, que sabe, sente e percebe que existe um problema, um vazio existencial, mas, não sabe como resolver isso tudo.
Se você quer ainda mais um motivo para correr para a sala de cinema e se deliciar, rir, chorar, se emocionar com esse filme, então lá vai: “Kick-Ass” é o “Kill Bill” do século XXI e o diretor Matthew Vaughn é Quentin Tarantino.
"Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros"
Caio Fernando Abreu
"À Ma soeur" é um filme sobre a tragédia de carregar um corpo. Seus desejos, suas culpas e suas mortes.
Não conhecia o cinema da diretora francesa Catherine Breillat, mas confesso que esse filme me deixou encantado. Especialmente pela maneira realista como a cineasta trata suas imagens e personagens, sem, no entanto se deixar levar por um mero registro documental dos fatos. Não, Catherine Breillat faz cinema. Um cinema poderoso, forte, ousado e pungente. É um filme urgente em seus temas e personas.
O filme conta a história de duas irmãs, uma é linda e sedutora, a outra (dois anos mais jovem que a primeira) é gordinha, solitária e desbocada. A diretora foca seu olhar aguçado e perspicaz na relação de amor, ódio, inveja e proteção entre as duas. Logo nas primeiras cenas, as duas estão passeando pela cidade (é feriado e a família toda viajou para uma casa no campo). O passeio aparentemente inocente ganha contornos outros, quando já cansadas de andar, as duas resolvem parar numa lanchonete. O local está cheio, sem mesas vagas. Um jovem diz para as duas se sentarem à mesa com ele. Elas sentam. Fazem seus pedidos. O jogo de sedução entre a irmã mais velha e o jovem tem início. A mais nova toma sua banana split. O jovem e a irmã mais velha se beijam. No caminho de volta pra casa, o moço dá carona para as duas. Mas, a irmã mais velha diz para a mais nova ir andando para a casa e esperá-la no portão, para que seus pais não desconfiem de nada. A irmã mais nova consente.
Elena tem quinze anos e sabe que sua beleza desperta a atenção dos homens.
Anais tem doze anos e é extremamente consciente do mundo, das relações entre homens e mulheres e sofre calada sem ter com quem dividir sua “solidão”.
A primeira cena já dá a dimensão poética de Anais. Nessa cena de abertura, a menina entoa uma espécie de lamento mental: “Estou ficando tão entediada. Toda a minha a vida, todos os dias e noites. Estou ficando tão entediada. Se ao menos eu pudesse achar vivo ou morto um homem... um corpo... um animal, eu não me incomodo... só para sonhar...”.
A menina repetirá esse mesmo lamento em cenas chaves do filme. A mais dolorida delas é quando toda sua família se “diverte” na beira da piscina e ela está sozinha nadando dentro d’água... ela canta o mesmo lamento com pequenas modificações e beija os pilares da piscina, numa repetição pueril das seduções de sua irmã. É uma cena triste e ao mesmo tempo engraçada. E a diretora e atriz conseguem transmitir o tom exato da angústia da garota. A irmã mais velha também está angustiada, pois Fernando (o jovem que ela seduziu na lanchonete) deseja transar com ela. Ela hesita. Daqui para frente, não vou revelar mais o enredo, pois estragaria a surpresa de quem assiste. Mas digo que Catherine Breillat consegue fazer um filmaço com um enredo aparentemente simples. O segredo está no absoluto domínio com que a diretora filma os personagens e a atenção com que mostra os corpos das personagens, sobretudo Elena e Fernando, optando por não esconder nada, a diretora mostra tudo, sem cair num fetichismo banal. Consciente disso, consegue mesclar tesão e tensão em suas longas cenas, com destaque especial para a cena em que Elena recebe Fernando em seu quarto e Anais vê toda a encenação do amor e do sexo.
Durante o filme fiquei lembrando do conto da escritora Clarice Lispector chamado “A Descoberta do Mundo” em que uma garotinha de 13 anos descobre através de uma amiga como nascem os filhos. Ela não sabia e fingia que sabia. As duas estão na rua, andando. A menina então apressadamente revela o mistério da vida ali mesmo na esquina. “Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.”
Ao final do conto, Clarice escreve: “Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar um flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita.”
Não... em “À Ma Soeur” a vida não é bonita. Ao final e afinal o filme se torna muito mais que um mero rito de passagem de duas garotas para a fase adulta... RECOMENDO!
Lukas Moodysson é um diretor sueco dos mais interessantes. Seus filmes (e com esse de agora, eu já vi todos) são absolutamente singulares e diferentes. É um diretor que não se copia a si mesmo. "Fucking Åmål" é a prova disso.
Contando a história de Agnes e Elin, duas garotas que moram numa cidadezinha pacata da Suécia, o diretor conta a história da adolescência de um modo geral.
Agnes é uma garota reservada, culta e estranha. Elin é o seu exato oposto, linda, falante e popular. Quando o filme começa, já somos informados logo de cara que Agnes é apaixonada por Elin e é lógico que a garota nem sabe quem ela é. É uma paixão platônica e Agnes sofre muito com esse sentimento.
O filme não força nenhuma situação, muito pelo contrário, pois o enredo parece correr solto, fluído e até mesmo descolado, em suma, algo bem juvenil. Estão lá, a escola, os pais, as brincadeiras, o bullying, os namoricos, o álcool, o sexo, os ícones pop e, sobretudo, as dúvidas que todo jovem passa nessa fase da vida.
O grande trunfo de Moodysson é mostrar isso tudo de maneira limpa e simples. Ele não faz rodeios e nem cai em didatismo e muito menos trata o adolescente como um ser idiotizado típico de filmes americanos que passam na Sessão da Tarde. Não. Essa não é a opção estética da direção. O filme é cru. A textura das imagens deixa isso bastante claro.
Daí que as histórias pessoais de Agnes e Elin se cruzam num dia inesperado. Elin está farta daquela vida onde nada acontece, ela tem desejos e vontades que não condizem com aquela cidade que quando as coisas legais da Capital chegam lá já estão fora de moda. Agnes obrigada pela mãe, dá uma festa de aniversário. Òbvio que ninguém aparece. Ela não tem amigos. Excetuando uma menina paraplégica, que ela desdenha. Sem ter para onde ir, Elin aparece na festa com a irmã. Elas bebem um pouco e quando já estão quase para irem embora, a irmã faz uma aposta com a outra, de que se ela beijar Agnes na boca ela lhe dará uma quantia em dinheiro. Elin topa e beija Agnes e vai embora. Agnes fica lá com a boca toda manchada de batom vermelho de Elin. A cena é ótima. Sofrida, engraçada e sublime ao mesmo tempo. No caminho para uma outra festa, Elin quer voltar e se desculpar com Agnes, mas a irmã tira essa ideia da cabeça dela. Ao chegarem na festa, mais do mesmo. Pegação, bebidas e papo fútil. Após ser cantada por um garoto e passar mal, Elin vai até a casa de Agnes para conversar sobre o ocorrido. E é desse movimento contrário que surge o inesperado. Primeiro uma amizade e um interesse mútuo e pouco a pouco uma possível paixão. Moodysson nunca entrega o óbvio ao espectador e a cena do beijo entre as duas garotas é muitíssimo bem trabalhada. A trilha sonora é um achado, como a preciosidade utilizada nessa cena do beijo. O efeito de estranhamento brechtiano está ali o tempo todo. A cena é romântica, mas também é atrapalhada, boba, ingênua e engraçada. Ao final daquela noite, Elin promete ligar para Agnes e adivinhem... Ela não liga. E ainda se enrola ao contar a história pra a irmã e se vê obrigada a começar um namoro com um garoto para não cair em contradição.
Elin entra em parafuso e não sabe como lidar com a descoberta de uma sexualidade que nem ela mesma sabia que poderia sentir. Mas Moodysson foge de todo e qualquer simplificação babaca do tema. Não força um sofrimento caricatural e muito menos, uma aceitação pueril. Não. Elin apesar de todo o clichê é uma garota inteligente que deseja fugir daquele futuro que a maioria esmagadora das mulheres de sua cidade terá: casar, engravidar, cuidar do filho e da casa e blá blá blá. Não. Ela quer mais. Mas o quê? Agnes deseja apenas ser feliz no agora. Seu pai conta-lhe que quando tinha a idade dela também passou pelos mesmos problemas e que quando participou de uma festa da escola 25 anos depois percebeu que o cara mais popular da escola não tinha dado em nada, que as gostosonas da turma tinha embarangado e etc... mas a garota não compra muito essa história do pai não. Ela quer o agora. Não o futuro. Agnes sabe o que quer. Elin não.
O filme é um rito de passagem. É a descoberta de nós mesmos. Dos nossos desejos. Vontades. É muito mais que um filme sobre garotas lésbicas. Isso é apenas um dos temas. Nem é o mais importante. O importante ali é construção de uma identidade. O autoconhecimento daquelas meninas. A decisão de Elin e Agnes se dá numa cena genial. Moodysson é simples, direto e requintado ao mesmo tempo. É uma ótima sacada, onde não há espaço para uma problemática tão comum em filmes com esse tema. E o que dizer da última cena? Ou a anti-cena? A não-cena. Pois é o diretor não faz concessão nem em sua derradeira cena. Ponto pra ele. Aliás, todos os pontos pra ele.
Hoje de madrugada assisti o filme "50%" do diretor Jonathan Levine. É um bom filme sobre um tema difícil e pesado, mas a abordagem do câncer é atenuada pela direção. Mas está longe de ser uma leveza acorvadada e comercial. A graça surge aqui em momentos absolutamente inesperados. E o drama também. O fato é que o riso e a lágrima convivem juntos e bem. Um filme gracioso, que caminha num limiar bastante perigoso. Às vezes parece que vai cair numa bobagem atroz, às vezes quase cai num sentimentalismo patético, mas logo retoma a vontade inicial de se discutir a doença sob uma outra ótica. Gostei. Não é um filme grandioso, mas também não é um entretenimento barato. Acima de tudo, o filme revela o quanto somos despreparados para a vida. Essa que é sempre mais urgente e quase sempre é deixada de lado.
"MARY E MAX" é uma composição no qual é possível encontrar em meio à imperfeição humana um pouquinho de sublime que seja.
O filme utiliza-se de técnica de desenho em stop-motion para contar a história de Mary, uma garotinha de 8 anos, que mora na Austrália e que tem os olhos da cor das poças de lama e uma marca de nascença da cor de cocô. Sua mãe é alcoólatra e seu pai trabalha muito. A menina não possui amigos e é constantemente humilhada na escola.
Max é um senhor ranzinza e problemático que mora em Nova York, que sonha em ter amigos e adora comer sanduíches de chocolate.
Um belo dia, Mary tem uma ideia de escrever para alguém de outro país para perguntar como os bebês nascem por lá?
A correspondência entre os dois começa a dar um sentido para a existência vazia de ambos e é possível dizer que até ficam mais felizes.
Mas, alguma coisa sempre falta.
A história toda é conta de maneira narrativa por um narrador onisciente que é um dos grandes achados do filme. Cabe a esse narrador dar um sentido às emoções desses dois personagens, além de situar a nós (espectadores) o que está se passando na cabeça dos personagens.
O longa é contado quase que exclusivamente de maneira epistolar; são as cartas trocadas entre Mary e Max que dão densidade ao roteiro e “apresentam” melhor essas duas personagens.
É enternecedor acompanhar os questionamentos pueris de Mary e é angustiante ver o desespero de Max em tentar não decepcioná-la.
Ao longo do filme, ficamos sabendo que Max tem uma doença chamada de Síndrome de Asperger que interfere diretamente no relacionamento interpessoal e no da comunicação.
A cada carta de Mary, Max entra em parafuso e até que em uma delas Mary pergunta sobre o amor e Max não agüenta e é internado com diagnóstico de depressão e fica 8 meses internado.
Mary acha que o amigo recém-conquistado não gosta mais dela e queima todas as cartas que ele lhe enviara.
Quando saí da clínica Max tenta evitar escrever para Mary, mas o sentimento de amizade entre os dois é mais forte e eles voltam a trocar cartas.
Daí em diante, o enredo ganha bastante agilidade e uma porção de fatos acontecem na vida de ambos... não posso contar mais nada, pois corro o risco de estragar a surpresa de quem ainda não viu.
Digo, no entanto, que é um belo filme... os contrastes entre as cores quentes do lugar onde Mary mora e o cinzento de Nova York de Max ganham significados outros, muito além da mera caricatura.
Apesar de ser um desenho, é um filme forte, adulto, tratando de temas como solidão, depressão, suicídio, bullying, alcoolismo e relações familiares e sociais. No entanto, não é um filme pesado, muito pelo contrário, sua verve lúdica impede que o filme caia num fatalismo bobo. Sim, o fatalismo está presente, principalmente nas cenas em que Mary (já mais velha) vai se tornando um retrato fantasmagórico de tudo o que mais odiava em sua mãe. É uma das cenas mais dolorosas no meu ponto de vista... ver Mary se transformando naquilo tudo que não compreendia em sua mãe é muito triste.
Com “Mary e Max”, o diretor Adam Elliot consegue algo bastante difícil: utilizar-se de personagens caricaturais, sem, no entanto, cair numa representação banal deles.
A caricatura é usada a favor do filme, como mecanismo de possível distanciamento num primeiro momento, para pouco a pouco ir mostrando que somos muitos mais parecidos com aqueles personagens do que supúnhamos no começo.
É um técnica brechtiana, eu diria, e por falar em Brecht, o filme tem muito do teatro épico do dramaturgo alemão, especialmente no tratamento dado ao narrador da história e também do uso do estranhamento inicial nos personagens principais.
Adam Elliot faz um filme pessimista, sim, mas não derrotista. É um filme que parece nos dizer: sim, fracassamos como seres-humanos, mas, podemos tentar ainda extrair algo de bom nessa balbúrdia toda. O famoso “já que estou no inferno, abraço o capeta”.
É justamente esse sentimento que faz com que Mary e Max não se percam num desengano suicida. Aos poucos vão descobrindo que as pessoas são o que são e que todos têm um ou mais “motivos” para ser como são.
Aos poucos Mary e Max vão se aceitando como indivíduos e nesse processo árduo de individuação vão aprendendo a aceitar os outros também.
Pode parecer clichê, no entanto não é...
Talvez seja essa a busca incessante do humano, talvez seja esse o motivo do vazio (lacaniano) que nada, nem ninguém aplacam, talvez seja essa a ideia de possível felicidade que tanto buscamos. Talvez... talvez...
“Mary e Max” é um filme que vai na contramão dessa sociedade normativa que estamos vivendo: onde temos que ser saudáveis, legais, ter dinheiro, amantes, status, o melhor corpo, a melhor roupa, o melhor carro, o melhor emprego, a melhor casa e a PIOR VIDA.
“Mary e Max” é um filme que mostra como uma sociedade capitalista se deteriora a olhos vistos... uma sociedade totalmente voltada para a cultura (evocada por Guy Debord) do parecer ter. Hoje todos aparentamos algo, mas, raramente somos algo.
É nesse contexto absolutamente massacrante que a animação se insere.
O final pode até parecer pessimista aos menos insensíveis... Mas não é. Muito pelo contrário. No meu ponto de vista, “Mary e Max” é uma linda ode ao ser-humano.
O que leva crianças e adolescentes a serem violentos?
Dois filmes parecem responder à essa questão.
São eles “A Fita Branca” de Michael Haneke e “Gummo” de Harmony Korine.
O primeiro é alemão e lançado recentemente e o outro é um filme americano de 1997.
“A Fita Branca” é um filme austero, todo em preto e branco, sisudo, com uma fotografia deslumbrante, beirando o documental às vezes.
Já “Gummo” é um filme estranho, dark, niilista, retratando sem meias palavras o vazio existencial de nossas vidas.
Ambos refletem sobre a violência juvenil.
No filme de Haneke é possível responder que a repressão imposta pelos adultos deflagra a maldade dos menores.
Já em “Gummo” não há repressão, muito pelo contrário, os adultos são mostrados no filme como “crianças grandes”, se comportando de igual pra igual com os jovens, assim chega a soar sintomático que uma das personagens (a avó de um dos jovens) esteja em estado letárgico, sem falar, nem andar e sobrevivendo com a ajuda de aparelhos.
Se não há repressão, de onde vem o deflagrador de tamanha violência ou perdição?
Talvez no seu oposto, a liberdade excessiva.
Jovens criados sem nenhum tipo de educação nem familiar nem escolar, que se acham donos do mundo.
“A Fita Branca” e “Gummo” são filmes parecidos, mas absolutamente diferentes, juntos fornecem algumas pistas importantes para a análise de um tema controverso; o mal e nosso comportamento em sociedade.
Em “A Fita Branca”, o vilarejo é um lugar pacato e religioso, já em “Gummo” vemos uma cidade de Xenia, em Ohio, um lugar imundo devastado por um tornado que matou muita gente, até famílias inteiras.
O lugar como metáfora para os habitantes, isso é sintomático nos dois filmes.
A cor branca é outro ponto em comum entre os dois filmes.
No filme de Haneke o branco é mostrado como símbolo de pureza, em “Gummo” como exclusão, pois somos jogados dentro do padrão de vida dos “White Trash” ou Lixo Branco, em outras palavras pessoas brancas excluídas pela sociedade, pessoas de baixa renda.
Jung escreveu que sem aceitarmos nossa Sombra seremos indivíduos pela metade, Freud formulou toda uma teoria complexa à respeito dos mecanismos de defesa e liberação de desejos recônditos que habitam nossa inconsciente...
Parece que ambos (Freud e Jung) estão mais atuais do que nunca, a violência antes caseira e familiar ou então abafada e velada tem adentrado nossas casas e mentes através de noticiários televisivos onde a violência é mostrada, re-mostrada até a exaustão, e essa mesma exaustão ocasiona a banalização do mal.
O Mal nunca é banal, e está ai o agente complicador de uma sociedade que se deteriora cada dia mais, em busca de ideais utópicos tanto de beleza quanto de consumo.
E quem não é belo e magro como as modelos que estampam as capas de revistas? E quem não tem o carro do ano como o jogador analfabeto do time de futebol?
O que essas pessoas fazem? Como lidar com a frustração de não ser o melhor, o mais bonito, o mais gostoso?
Para quem lida bem consigo mesmo e com sua imagem a resposta é fácil (e não será dada aqui.).
Mas e pra quem não tem uma boa relação consigo mesmo e com sua imagem?
Como agüentar o tranco de existir?
Agora imagine tudo isso numa idade em que a pessoa está em formação e teremos o combustível ideal para todo ato de perversidade e violência.
É desse material tão retratado em outros filmes, que o diretor de “Gummo” extrai seqüências antológicas, brincando sempre com o duo violência/lirismo acompanhamos atento o rito de passagem daqueles meninos e meninas.
É um triste relato, algumas cenas são extremamente controversas, a que mais me chamou a atenção é aquela em que os meninos depois de venderem os coelhos vão transar com uma prostituta.
A primeira cena mostra o maior deles entrando no quarto da tal prostituta e não vemos nem ouvimos nada, a câmera fica parada do lado de fora, na segunda vez o menino menor entra no quarto da prostituta e ai, vemos que ela é uma menina portadora de Síndrome de Down, e está vestida com vestido de boneca e maquiagem exagerada.
Ela se apresenta e pede para cheirar a mão do menino e diz que a mão dele cheira cereja e que é feminina, ela pede pra ler a mão do menino, ele consente, ela diz que ele vai ser milionário e que sua esposa morrerá num incêndio, o menino retruca que não tem esposa, ela então diz que ele vai ter, mas que não será ela.
Uma cena linda, que beira o sublime e que me fez lembrei de “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, na cena em que Macabéa visita a cartomante Madama Carlota e ela lhe diz coisas boas e a nordestina então se sente grávida de futuro.
Outro ponto interessante do filme são os “depoimentos” que os jovens dão durante o filme, fazendo uso de câmera amadora com imagem granulada o diretor filma os atores falando texto ora olhando para a lente, outra vezes faz uso da voz off enquanto mostra o cotidiano deles, o relato mais forte vem do protagonista que diz:
“Mundo querido, tenho uma confusão em minha cabeça por todos os lados do meu cérebro. Eu tento, tento fazer algo neste mundo de merda, mas penso que é um erro desde sempre. Não sinto culpa por querer me matar... já tentei antes. Eu trabalho desde os 13 anos... Viver nunca foi difícil pra mim, mas é que tudo está ficando ruim e sem graça... morrer, morrer, morrer.”
E no momento seguinte o menino mais novo diz:
"A vida é bela. Realmente é. Cheia de beleza e ilusão. Viver é genial. Se não fosse por isso, estaria morto."
É o momento chave do filme, onde os personagens ambos amigos, ambos violentos dizem em palavras o que realmente sentem.
O filme é cheio desses depoimentos e dessa necessidade quase que redentora de falar, de colocar pra fora aquilo que está sufocado dentro do individuo.
O diretor sabiamente faz do espectador um psicanalista daqueles personagens, ouvimos, ouvimos, vemos muita coisa... Mas assim como na psicanálise não podemos curá-los... Infelizmente.
“No dia 23 de dezembro de 1993, Maximilien B., um estudante de 19 anos matou três pessoas num banco em Viena. Pouco depois, ele se matou com um tiro na própria cabeça.”
É dessa maneira que o cineasta Michael Haneke começa seu filme intitulado “71 fragmentos de uma cronologia do acaso".
Fazendo uso de uma técnica jornalística chamada “pirâmide invertida”, o diretor austríaco coloca logo na abertura de seu filme, o ápice da notícia.
Nesse procedimento ensinado nas faculdades de jornalismo, o objetivo é chamar a atenção do leitor para que ele continue com a leitura e busque maiores informações sobre o ocorrido ou então vire a página.
Se o leitor opta por continuar a ler a notícia, os parágrafos a seguir, trazem informações relevantes para o entendimento do fato. Ainda segundo as normas jornalísticas, as outras informações devem sempre estar em ordem decrescente de importância.
Michael Haneke utiliza-se desse procedimento para subvertê-lo logo mais.
O relato apresentado aqui é frio e distanciado. Haneke filma o ser humano alienado pelo cotidiano, em ações repetitivas e quase instintivas, sem a menor relevância para a história (aparentemente).
O filme mostra personagens destacados da realidade. São pessoas e situações banais, mas sublinhadas pela caneta marca-texto poderosíssima do cineasta.
Aos solavancos e digressões temporais, vamos conhecendo os personagens principais da história: um menino que fugiu de casa e de país e vaga sem rumo pela cidade, um velho que fala ao telefone enquanto vê TV, um casal que procura uma criança para adoção, um bebe doente e pais desesperados e um jovem estudante que treina obsessivamente ping-pong para um campeonato.
Esses personagens são apresentados em cenas distanciadas, onde o diretor apenas filma-os em sua rotina. Haneke consegue o improvável: com suas cenas frias, ele eletriza o espectador. Há uma aura de mistério em cada fragmento. Como se cada um desses pedaços possuíssem, se desmembrados, significância próprias. Há uma espécie de liturgia nas ações físicas dos personagens hanekianos. O hábito realmente não faz o monge. Mas Haneke prova que do habitual pode sair o extraordinário.
Para conseguir tal intento, o diretor brinca com o os conceitos clássicos das tragédias. O “Ágon” brota do diálogo ruidoso entre o que é mostrado e o que o espectador imagina ou fabula. Pois já sabendo do desfecho trágico pelo “Tirésias” contemporâneo (os jornais escritos ou falados), o espectador vive a agonia da espera. Ele sabe o que vai acontecer, mas não sabe como vai acontecer. Haneke é um legitimo manipulador e brinca com sua platéia. Ora pendendo para os instintos sádicos do público, ora puxando mais pro lado masoquista de quem o assiste.
Numa entrevista dada ao Jornal Folha de SP do começo de 2010, Haneke declarou: “O cinema é a arte da manipulação. Isso é algo que não devemos esquecer nem quando fazemos um filme nem quando o assistimos. O que sempre quis é que meus filmes sugerissem uma dúvida sobre a realidade que mostram.”
E é justamente nesse embate entre o que é mostrado e a dúvida que fica nas entrelinhas que surge os momentos mais geniais de toda a filmografia do diretor.
Haneke produz um cinema incômodo, pois cutuca aquilo que varremos para debaixo do tapete: nosso instinto cruel e sem explicação. Haneke não faz tratados sociológicos, não responde nada. Apenas aponta, pontua e cutuca o vazio de uma sociedade hipócrita e letárgica. Os personagens de Haneke parecem estar dopados ou anestesiados. Como se realmente fossem figuras saídas de uma tragédia grega, parecem aceitar seus destinos sem maiores questionamentos. Sim, há o sofrimento. Mas um sofrer estóico, digno. Choram calados, solitários. E aqui o sofrimento não escolhe classe econômica, idade, etnia ou credo.
“Meu Deus, que os jovens vivam mais e que tenham saúde. E que eu viva mais e que tenha saúde e que Marie seja mais feliz e que me ajude melhor e com mais felicidade e que eu não pegue uma doença fatal e que não venha a Terceira Grande Guerra ou uma catástrofe nuclear, nem na minha vida nem na vida de nossos filhos e ajude a todos os que sofrem nesse mundo e eu te agradeço, Senhor, amém.”
Essa é a oração que um senhor faz todos os dias quando acorda. O mesmo que quando diz “eu te amo” para a esposa num jantar cotidiano recebe um “O que você tem? Está bêbado ou o quê?”. A maneira encontrada pelo diretor para solucionar o impasse é assustadora.
Outras cenas chamam a atenção como o momento em que o garoto que fugiu de casa observa o movimento no metro e passa perto das seduções de um mundo capitalista. Estão lá as máquinas de tirar foto, de coca-cola, de sorvete Cornetto, de cafés e achocolatados, até chegar numa imensa banca de revistas e se deparar com uma prateleira com inúmeros gibis e revistas. O garoto vai girando a prateleira e a câmera de Haneke vai mostrando o que ele está vendo: gibis do Garfield, revistas pornográficas, de luta livre, do pato Donald. Ele olha para um lado. Olha pro lado. E rouba uma delas. Nesse pequena cena, Haneke coloca conceitos caros aos pensadores Guy Debord e Jean Baudrillard.
“Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” - ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio.”
Esse trecho retirado do livro “À sombra das maiorias silenciosas” do Baudrillard ajuda a mensurar o cinema praticado por Haneke, assim como esse trecho retirado do livro “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord:
“O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é *o que aparece é bom, o que é bom aparece*. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência”.
Haneke é um hábil manipulador desses conceitos. Sabe que o público é um viciado em fortes emoções e brinca com isso. Vivemos numa sociedade espetacularizada, que tenta através da violência aparecer de alguma maneira. No filme, isso fica claro, quando o diretor mostra insistentemente imagens de programas jornalísticos com matérias de guerras e ataques terroristas. Essas matérias são as responsáveis por disseminar o medo numa população já amendrontada por noções familiares hipócritas, pela religião e sua culpa e pelo medo de perder o emprego ou de dizer eu te amo ao outro.
Sobra até espaço para uma matéria com o astro pop Michael Jackson, respondendo as acusações de pedofilia. O que um astro como Michael Jackson estaria fazendo ali no meio dessas cenas? Talvez o diretor queira nos responder que o vazio de quem é visto é o mesmo vazio de quem vê. Inexistem os limites entre um e outro. Um silencia o outro. Um serve ao outro. Sem ídolos a sociedade do espetáculo falece. Sem fãs não existem ídolos.
E é nesse ponto nevrálgico que o diretor foca sua câmera. Um mundo vazio de significado forma pessoas sorumbáticas, some-se a isso os apelos de uma mídia inescrupulosa alardeia que somente possuindo aquilo que é vendido por ela, encontraremos uma possível felicidade. Compramos. Somos felizes num curto período de tempo. A tristeza bate de novo. Compramos mais e mais. E assim o circulo vicioso não tem fim. Até que num dia aparentemente normal “explodimos” tudo. Até que um dia, ao entrar num banco lotado, atiramos contra tudo e todos e depois estouramos os nossos miolos. Quem está a salvo?
"Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago!" [Clarice Lispector]
Logo de cara, digo: Sou fã do John Cameron Mitchell, diretor de dois filmes excepcionais.
Também logo de saída, vou dizendo: Estava ansioso demais para assistir “Rabbit Hole”, seu terceiro filme. Quando vi o trailer entrei em choque. Tudo era muito diferente de suas obras anteriores: o musical deslumbrante/triste "Hedwig and the Angry Inch", que ele além de dirigir e escrever o roteiro, é também o protagonista do filme e sua obra-prima chamada “ShortBus”, filme tão magistral que sou incapaz de escrever uma só linha sobre ele.
Tendo Nicole Kidman como protagonista, o filme conta a história de um casal que perde um filho de quatro anos de idade num acidente. Optando por não entregar tudo de mão beijada, o diretor prefere trilhar o caminho mais árduo nesse tipo de produção. Abrindo mão de criar uma falsa identificação no espectador sobra espaço para construir personagens de carne e osso e não meros arremedos ficcionais.
Confesso que achei essa opção do diretor extremamente arriscada e no começo me senti desconfortável com a história. O roteiro não andava. Parecia que algo segurava a história de prosseguir. Foi quando percebi que esse aparente “andar em círculos” do roteiro era proposital. Os personagens não sabem como lidar com a perda e estão perdidos. Genialmente, Mitchell personifica o estado psicológico dos personagens em seu roteiro. Não vou negar, é um filme lento, onde percebemos o tempo todo, certo segurar as emoções e pouco a pouco John Cameron Mitchell vai se mostrando o cara certo para esse filme. Seus outros dois filmes são espalhafatosos, rococó, barroco com linguagem underground, ousada, com cenas de sexo explícito e ótimas atuações. Então, nesse novo filme, assim como os personagens, a direção também precisa se segurar. E o filme começa a ganhar contornos mais profundos e belos. Sutilmente, o diretor vai revelando mais e mais detalhes do acidente. Ficamos sabendo assim que o filho do casal Rebecca e Howie morreu atropelado na frente de casa, quando correu atrás do cachorro que correu atrás de um esquilo. Para lidar com a perda, o casal passa a freqüentar reuniões onde pais que perderam seus filhos repartem essa dor imensurável. Ao ouvir uma mãe dizendo que Deus levou seu filho, pois precisava de outro anjo ao seu lado, Rebecca não agüenta e pergunta: “Por que ele não fez outro anjo então? Afinal de contas ele é Deus! Por que ele simplesmente não criou mais um anjo?”.
Rebecca não tem a muleta da religião como acalanto para o seu desespero. Sua mãe que também perdeu um filho (em circunstâncias que nesse momento ainda não sabemos quais foram) confronta a filha: “Não está sempre certa, sabe? E se existir um Deus?”. Rebecca retruca: “Então eu direi que ELE é um canalha sádico.” A mãe então interrompe a conversa. Rebecca numa tréplica crudelíssima diz: “Não me admira que você goste d’Ele. ELE se parece com papai.”
E assim sempre segurando e soltando a linha de uma vez, Mitchell vai formatando um drama extremamente pequeno, que chega quase a nos escapar por vezes.
Impossível assistir “Rabbit Hole” e não lembrar de duas outras obras que também falam do luto de perder um filho. A primeira delas é “O Anticristo” do diretor dinamarquês Lars Von Trier. Só que enquanto Lars é psicanalítico, Mitchell é psicológico. Pode até parecer que é a mesma coisa, mas quem assistiu aos dois filmes sabe do que eu estou falando. “O Anticristo” é uma obra severa sobre o luto e os meandros depressivos que uma mãe entra ao se sentir culpada pela morte do filho. Extremamente cruel, Lars chafurda seus personagens num abismo sem saída, num buraco negro d’alma. Mitchell está mais interessado em mostrar as tenuidades dessa privação tão repentina. A outra obra é “O Quarto do Filho” filme do diretor italiano Nanni Moretti, uma obra poderosa que retrata as conseqüências da perda trágica de um filho na vida do psicanalista Giovanni. Nesse filme italiano assim como em “Rabbit Hole” o foco central está mais em como os afetos são alterados pela tragédia do que na própria tragédia em si. “O Quarto do Filho” é um filme comovente e brilhante.
Essas três obras juntas ( “Rabbit Hole”, “Anticristo” e "O Quarto do Filho”) produzem um ótimo material sobre o ser-humano e a sensação de vazio que nada aplaca.
Numa das cenas mais pungentes do filme “Rabbit Hole”, Rebecca coloca no porão todos os objetos que a faz lembrar de seu filho morto. Observa as caixas e pergunta à mãe: “Isso nunca desaparece?”. A resposta dada pela mãe é uma das coisas mais sensações e reais que já vi. É uma cena arrebatada e arrebatadora. O filme é construído assim, de momentos luz/sombra, de pequenos clarões e trovoadas. Quase nunca há o temporal. Quase nunca. Mas ele está lá, ameaçando cair a qualquer momento e encharcar tudo o que aparecer pela frente.
Nicole Kidman assistiu “Rabbit Hole” do dramaturgo David Lindsay-Abaire no circuito off-Broadway e comprou os direitos da peça e convidou John Cameron Mitchell para conduzir os trabalhos. Essa escolha dela chamou muita atenção, pois Mitchell não é um diretor conhecido em Hollywood e seus filmes anteriores não tinham absolutamente nada a ver com a proposta desse novo roteiro. Ele aceitou e a escolha se mostrou extremamente acertada.
Nicole Kidman tem aqui uma interpretação magistral, dificílima, pois sua personagem cala a dor da perda quase que o tempo todo. Obrigatoriamente sua atuação tinha que ser mais contida, o que poderia ser um desastre, visto que nesse tipo de personagem o ator corre o risco de ser demasiado interno e só ele sentir as cenas e não saber como passar esses sentimentos para o público. Não é o que acontece aqui. Nicole dá um show, algo no nível de suas grandes personagens como nos filmes “As Horas”, “Dogville” e “Birth”.
A atriz Dianne Wiest que interpreta a mãe de Rebecca faz o contraponto ideal da filha. Rivalizando com ela em algumas das melhores cenas do filme. Assim como a ótima Sandra Oh, que interpreta uma das mulheres das reuniões de pais que perderam seus filhos freqüentados pelo casal protagonista. De maneira gradativa, Mitchell mostra nesses três perfis, as diferentes formas de lidar com um mesmo trauma. Isso é um dos aspectos que mais chamam a atenção no modo como conduziu a direção das atrizes.
O filme é de Nicole Kidman, muito se disse sobre o trabalho do ator que interpreta o marido dela no filme, Aaron Eckhart. Ouvi comentário de que ele teria engulido a atriz em cena. Eu discordo. Acho que o ator Aaron Eckhart é apenas correto. Só. A alma do filme é de Nicole, sinto muito. Seu papel é mais difícil. Ela cala. Ele estoura. Assistam a cena em que a personagem de Nicole está fazendo compras num supermercado e por acaso vê uma mãe negando doce ao filho insistente. Só uma grande atriz como ela pode interpretar a cena daquela maneira. Excepcional. Outra grande cena é a da revelação do acidente. Aliás, um dos pontos altos do filme.
O filme tem muito de Alice de Lewis Carrol. Lá pelas tantas tem uma discussão interessante sobre universos paralelos e Rebecca arremata: "Essa é apenas a versão triste de nós".
Toda a seqüência final é de uma grandiosidade na pequenez. Maravilhoso. Lembrei-me do quase final de “A Hora da Estrela” quando o autor Rodrigo S.M (na verdade, Clarice Lispector) ao ver a protagonista Macabéa atropelada escreve: “Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida”.
Assim é “Rabbit Hole”.
“Mas há a vida que e é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.” {Clarice Lispector}
John Cameron Mitchell além de escrever o roteiro, dirigir, é também o protagonista do filme.
“Hedwing” é todo contado em flashbacks e números musicais. A personagem principal é um transexual perfomático. O filme tem uma cena de abertura de tirar o fôlego, Hedwig canta e dança uma música sobre sua vida. A cena é hipnótica.
Aos pouco, o enredo vai se encarregando de contar a história dessa personagem.
Hedwing na verdade é Hansel, um garoto alemão, abandonado pelo pai, criado apenas pela mãe comunista ferrenha. Os dois habitam a parte oriental do Muro de Berlim. Hansel passa as tarde ouvindo música americana. Sua mãe não gosta nem um pouco e o reprime. Quando adolescente conhece Luther, que lhe propõe casamento. Sonhando em viver fora daquele mundo, ele aceita. Mas, tem que fazer uma operação de troca de sexo e assumir o registro de identidade de sua mãe. A cirurgia dá errado e ele fica com uma cicatriz e um pequeno pedaço de pênis, aproximadamente 1 centímetro. Hansel e Luther se casam. E nada daquilo que fora sonhado pelo rapaz acontece. Após um ano, Luther abandona Hansel. Nesse mesmo dia, o muro de Berlim é derrubado. Sem ter como sobreviver começa a trabalhar como babá e forma uma banda só com esposas de militares coreanos. Numa das casas em que trabalha como babá, conhece Tommy, rapaz tímido, católico e fã de banda de rock. Apaixona-se por ele e o ensina tudo sobre a profissão, compõe músicas juntos e iniciam um namoro. Um belo dia, ele também lhe dá um pé na bunda e vira um astro do rock com as canções que compuseram juntos, sem nem ao menos lhe dar algum tipo de crédito. Sentindo humilhada e roubada, Hedwing vai de cidade em cidade, onde o agora Tommy Gnosis (nome que ela colocou nele) se apresenta, numa tentativa de provar que ela é a estrela do rock.
A história é relativamente simples e é contada por meio de números musicais e efeitos de animação deslumbrantes. Os shows de Hedwing são poderosos, quentes, ela se entrega ao público como Cristo se entregou pelos humanos. È lindo ver a maneira como ela vive no palco. As músicas são um show a parte. Ora engraçadas, ora comoventes, os números musicais são o ponto alto do filme.
John Cameron Mitchell concebe uma Hedwing numa atuação simplesmente soberba. O diretor, ator e roteirista dá conta de todos os meandros da encenação de tão complexa personagem. Ele não se perde em nenhuma cena. Sabe exatamente o tom e o que fazer em cada fragmento do filme. Sua interpretação não é menos hipnótica do que a da própria personagem principal. Hedwing é ousada, apaixonada, apaixonante, impulsiva, frágil, guerreira, sensível, misteriosa, desvairada, extremamente humana.
“Hedwing” é a história do não pertencimento e do não merecimento. A personagem não se sente nem homem, nem mulher, é traída por todo mundo que se aproxima dela, é criativa e também insegura. Acompanhar a história de Hedwing é extremamente doloroso e divertido ao mesmo tempo. A história apesar de bastante trágica, não é monótona, a vivacidade de Hedwing não deixa.
A bem da verdade Hedwing era uma figura única, a frente de seu tempo, durante todo o filme uma frase de Friedrich Nietzsche martelou em minha cabeça: “ALGUNS NASCEM PÓSTUMOS”.
Essa frase definiu Hedwing tanto personagem quanto filme para mim.
Sua busca não é pelo sucesso, ou pelo glamour ou dinheiro e sim pela completude.
Durante a escrita desse texto, um amigo postou uma frase no twitter bastante pertinente também: "Preciso de uma coisa nova. De alguma coisa que possa, talvez, não ter sucesso" (Arne Lygre).
A canção do filme “A Origem do amor” é um verdadeiro deslumbre e reconta a história do Mito do Andrógino contada no livro "O Banquete" de Platão: houve uma época em que existiam três formas de humano: macho, fêmea e o andrógino. Os andróginos eram considerados “superiores”, quase iguais aos deuses. A ideia de androgenia correspondia a ideia de felicidade, completude. No entanto, essa “felicidade” despertou a inveja de Zeus, que os dividiu em dois: ‘Vou cortar cada um deles pela metade. Assim ficarão mais fracos, e ao mesmo tempo terão mais para nos oferecer, já que seu número terá aumentado. Andarão eretos sobre suas duas pernas’. Desde então, esses humanos seriam obrigados a vagar em busca de suas metades.
O filme trata dessa busca, desse vazio que nada nem ninguém aplaca.
Apesar de todo glitter, purpurina, perucas, maquiagens é um filme sobre a solidão. Apesar de toda a alegria é um filme triste.
Hedwing é um filme sobre a miserável condição errática do ser humano.
"Anticristo" o novo filme do dinamarquês Lars von Trier foi acusado de misógino, apelativo e excessivamente violento na época de seu lançamento.
O filme começa com um Prólogo todo filmado em preto e branco e em câmera lenta que é uma das cenas mais lindas já filmadas na história do cinema. Vemos uma casal transando e uma criança dentro de um berço, tudo ao som de uma ária “Lascia ch'io pianga” e num take ousado e belo mostra em primeiro plano uma vagina sendo penetrada por um pênis, para logo depois mostrar o filho pequeno caindo do alto do prédio. Lars recria em filme a tão falada cena primária freudiana, na qual o filho vê os pais transando. Enfim, só pelo excelente prólogo “já vale o ingresso”. Torturada pela culpa a personagem “Ela” vivida com coragem, desprendimento e talento pela cantora Charlotte Gainsbourg entra num tortuoso processo de depressão e seu marido vivido com não menos coragem, desprendimento e talento por Willem Dafoe, que é um psicanalista, decide fazer com que Ela enfrente seus piores medo e possa sair desse processo depressivo. Numa conversa Ela revela para Ele que teme uma floresta chamada Éden e é ali que o enredo do filme quase inteiro se passa e ambos partem para lá, acreditando que encontrarão respostas para a dor e o luto.
Aos poucos ficamos sabendo algumas coisas que fazem com que ela tema o local; uma vez quando estavam lá ela ouviu o filho chorando e não conseguia localizá-lo e também por ser ali o local onde Ela não conseguiu acabar uma tese no qual escreve que natureza é má “é igual a satanás” e a mulher seria a personificação dessa maldade. Fazendo uso da chamada psicoterapia cognitiva ela pouco a pouco se cura de sua depressão e nesse ínterim Ele acaba descobrindo cadernos e fotos do filho deles no sótão Nessas fotos, vemos que Ela colocava sapatos invertidos no pé do próprio filho para impedí-lo de andar, Ele então confronta-a com as fotos e Ela pira novamente, só que desta vez transferindo para a figura dele todo o seu ódio. Com requintes de crueldade e extremamente bem filmado o diretor mostra ela fazendo um buraco na perna dele e colocando um peso de metal ali, impossibilitando-o também de andar. Dessa parte pra final, Lars mantêm o espectador em suspensão, tirando-lhe o ar, com seqüências extremamente cruas e fortes, auto-mutilação, masturbação, sexo desenfreado, animais que representam três mendigos e muita tensão. Lars não é e nem nunca será um diretor palatável, fácil, para “sentir” o filme é necessário ter conhecimentos bíblicos, pois muitas passagens possuem essa inspiração, tais como a do Jardim do Éden, a da raposa “que veio pra matar, roubar e destruir” falando que o Caos Reina, a própria questão da Mulher que é seduzida pela serpente e come a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal e oferece ao homem, espalhando assim sobre a terra as sementes do pecado. Além disso, Lars utiliza os conhecimentos psicanalíticos e sobretudo freudiano para explicar que numa sociedade cristã e hipócrita, a relação sexual vem sempre impregnada de culpa e de morte.
O escritor Nelson Rodrigues já tão bem tinha entendido esses ensinamentos e agora vem Lars e mostra que também entende do riscado. Num comportamento que ora tende pro depressivo ora pro sexualizado, Ela tenta fugir de si mesma e de sua natureza e Ele permanece apenas como objeto do desejo ou de ira dela. Em seu novo filme Lars também prova que conhece muito de Nietzsche e do livro de nome homônimo ao filme “O Anticristo” escrito em 1888, nesse livro manifesto o autor alemão diz que a ética cristão é uma moral de gente vil e fraca que deturpou a natureza humana e transformou tudo que em nós era bom e forte em algo mau. Em sua próprias palavras "o doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos". No filme de Lars vemos todas essas influências e muitas mais em variados momentos do filme. Muitos acusaram o filme de pessimista, mas não consigo enxergá-lo assim, muito pelo contrário, parece que o diretor quer nos dizer que somente através da transmutações de nosso valores poderemos um dia nos entendermos a nós mesmos e aos outros. Enfim, um belíssimo e doloroso filme com atuações soberbas e uma direção absolutamente segura, apesar do diretor viver dizendo que não sabia direito o que estava filmando.
Sim. O mundo vai acabar. Não. Não há motivos para lamentações.
Em “Melancolia”, novo filme do diretor dinamarquês Lars Von Trier, esse é começo, o meio e o fim.
Sim. “Melancolia” é um imenso prólogo. De antemão já sabemos tudo o que irá acontecer. Logo nos minutos iniciais, o diretor coloca uma sucessão de cenas que contam ao espectador o que eles verão nos próximos 130 minutos. Isso de maneira nenhuma tira o efeito do filme. Muito pelo contrário. A expectativa da catástrofe iminente provoca no espectador um misto de curiosidade e precipitação. Durante aproximadamente 10 minutos, vemos um prenúncio do fim. A trilha sonora de Richard Wagner retirada da ópera “Tristão e Isolda” anunciam mortes, tragédias, mas também alguma beleza. Sim. A personagem principal Justine vê beleza no fim do mundo. Quando a história “começa” Justine está se casando. A imagem da limosine luxuosa empacada no meio da floresta é mais um aviso de que algo não vai dar certo. Os noivos abandonam o carro e seguem a pé até o castelo onde a festa será realizada. Claire, irmã de Justine, organizou toda a festa. John, o marido de Claire bancou-a e faz questão de alardear a pequena fortuna que custou a festa. Já na cerimônia de casamento, a conduta brincalhona do pai encontra contraponto perfeito na aspereza da mãe. Em seu “discurso” para a filha, a mãe deixa claro que não acredita em casamentos. O constrangimento é geral. Justine que até então estava interpretando muito bem, mergulha num estado depressivo. Por algum motivo que não sabemos bem qual é, aquele marido lindo, educado, e carinhoso não a faz feliz. Tudo desanda. Realmente nada vai dar certo. Uma pequena estrela vermelha no céu chama a atenção de Justine. O marido de Claire, um especialista nisso, explica o que seria aquilo. A festa prossegue. Justine se recusa a fazer sexo com o marido, foge para o meio do campo, faz sexo com um desconhecido. O noivo desprezado vai embora. O casamento acaba. Justine não conseguiu interpretar bem o papel de esposa feliz. Exatamente o oposto de sua irmã Claire: Casada, com um filho pequeno e aparentemente feliz. Fim do primeiro ato.
Quando o segundo ato se inicia, Justine está em crise de depressão e procura abrigo na casa da irmã. O marido é contra, alegando que ela não é uma boa referência para o filho deles. Justine só quer saber de dormir. Não come, não se diverte. Nada. Pequenos comentários sobre o planeta Melancolia que está se aproximando da terra começam a pipocar. Claire entra em desespero. O Marido diz que não há motivos para isso, pois os cientistas alegam que o planeta não atingirá a terra. O filho do casal procura informações sobre o tal planeta na internet. Estranhos acontecimentos ocorrem. Os cavalos ficam arredios. A luz acaba. O planeta se aproxima. O fim do mundo também. Claire que até então mantinha uma postura digna, desespera-se. Os papéis se invertem. É Justine quem está segura agora. O fim do mundo não a ameaça. Pelo contrário. Parece consolá-la. Neste possível fim, Justine finalmente encontra seu lugar no mundo.
Lars Von Trier prova mais uma vez seu talento raro para a direção de atores, o elenco inteiro está soberbo.
John Hurt e Charlotte Rampling dão um show como os pais de Claire e Justine, em suas cenas do casamento fica claro que não existe papel pequeno e sim atores ruins. Rampling constrói uma mãe tão amarga (e lúcida ao mesmo tempo) que chega a impressionar. Mas o filme é sem sombra de dúvida de Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg. Sim. Lars Von Trier sabe dirigir atrizes como nenhum outro diretor atual. É público e notório que para tanto, o diretor se utiliza de métodos nada convencionais para extrair tai interpretações. Sim. O diretor dinamarquês Carl Th. Dreyer é uma influência grande na condução dos trabalhos. Seus métodos de direção de atrizes são parecidos. O fato é que Dunst tem em “Melancolia” o seu melhor desempenho como atriz. Seus silêncios e sua desistência de tudo não é meramente um trabalho exterior, mas, sim, um desabrochar de alma. É bonito ver sua entrega nesse trabalho.
Justine existe. Ela é palpável na tela. No entanto, Charlote Gainsbourg tem (para mim) o melhor desempenho. Sua firmeza no primeiro ato e seu conseqüente desmoronar no segundo provocam uma verdadeira catarse no espectador. Sim. Um misto de horror e piedade nos invade a alma. O desespero demonstrado pela atriz é um trabalho formidável. São nos pequenos gestos e nas expressões faciais que a atriz demonstra uma maturidade surpreendente. O mundo está acabando, mas ela ainda está presa às convenções. Seu último pedido para a irmã é constrangedoramente brega. Seu desejo de salvação também.
Lars coloca em atrito dois modos de enxergar o mundo. Mas não dá a resposta ao espectador. Pois apesar de tudo, o fim para todos será o mesmo.
O final é deslumbrante, catártico como há muito tempo não se via no cinema.
O contraste entre o castelo e a cabana mágica elaborada por Justine é a concretização perfeita das ideias do diretor.
Enquanto o letreiro subia, fiquei pensando num poema de Bertolt Brecht que diz:
“Também o céu às vezes desmorona E as estrelas caem sobre a terra Esmagando-a com todos nós. Isto pode ser amanhã.”
"Happiness" do diretor norte-americano Todd Solondz é um retrato rigoroso e vigoroso de uma sociedade "doente" que busca “desculpas” como grana e prazer sexual para aplacar o vazio de suas vidas.
Solondz cutuca a ferida “americana” e expõe os mecanismos alienatórios dessa mesma sociedade, nos mostrando personagens quase a beira da caricatura, no entanto o talento do diretor em arquitetar excelentes diálogos e pungentes cenas, não deixa que o tom seja apenas o de escárnio, o que acabaria por torná-lo um filme menor.
Estamos diante de um grande filme, as primeiras cenas de apresentação do enredo e das personagens são absolutamente geniais. Uma cena melhor que a outra.
A seqüência de abertura é um exemplo disso: Violinos tocando. Um homem e uma mulher estão num restaurante “chique”. o dialogo sugere que ela está dando um pé na bunda dele. Ele parece não estar ligando muito. Ela tenta se explicar. Ele continua impassível. Após um tempo, ele chora. Assoa o nariz no guardanapo. Bebe um gole de água. Pega um presente e entrega para ela. Ela abre. É uma reprodução de uma obra de arte folheada a ouro quarenta quilates. Ela fica muito feliz. Ele pega o presente de volta e diz que aquele presente não é dela e sim de quem o ama de verdade do jeito que ele é e que aquele presente é apenas para ela saber o que esta perdendo ao largá-lo. Violinos voltam a tocar e filme começa...
Próxima cena: Um homem está diante de seu analista confessando que tem problemas com sexo e que é tarado em sua vizinha, mas não tem coragem de se aproximar dela. O analista mentalmente está pensando em coisas que tem que fazer depois daquela consulta. O homem segue falando, falando, falando...
Próxima cena: A tal vizinha gostosa entra em cena. Ela e o homem “problemático” tomam o mesmo elevador. Ele não toma nenhuma atitude em relação a ela. Silêncio.
Próxima cena: O homem “problemático” procura nomes na lista telefônica para passar trotes eróticos.
Próxima cena: A moça da 1° cena retorna. Conhecemos sua família. Ela é uma loser. Mora de favor na casa da irmã. É uma artista. Sua irmã confessa que todos da família achavam que ela era fadada ao fracasso, mas que agora vêem uma possível esperança pra ela.
Próxima Cena: Música Incidental calma tocando. Um homem anda calmamente num parque. Ele está com uma metralhadora. Ele metralha todo mundo do parque. Ele é o analista do homem problemático.
E assim cena após cena Solondz compõe um filme mosaico em que pouco a pouco, os personagens vão se cruzando e construindo um painel bastante realista de uma sociedade que se deteriora cada dia mais.
O filme nos apresenta personagens no limiar de uma consciência culpada. Os personagens de Solondz sabem que são considerados “doentios”, mas não encontram maneiras de sair desse circulo vicioso. Ouso dizer que talvez nem mesmo queiram se libertar do que sentem.
Todos fingem ser algo que não são. Todos tentam aparentar uma utópica felicidade. Todos vivem para os outros, esquecendo-se de si mesmos.
Até mesmo as crianças não escapam desse doloroso processo massacrante.
O filho do analista bombardeia o pai de perguntas sobre sexo, sempre se comparando com seus “amiguinhos” da escola, que sempre são melhores que ele.
O amigo do filho do analista é considerado “gay” pelo próprio pai, que para curá-lo dessa “doença” deseja contratar uma profissional do sexo para ensiná-lo algumas coisinhas. Detalhe: o garoto tem apenas 11 anos.
Um belo dia, o garoto considerado “gay” dorme na casa do filho do analista. O analista é pedófilo e dá algo para toda família dormir para abusar impunemente do garotinho.
Usando um método de escamotear de nossas mazelas, o diretor coloca a possível vítima numa situação engraçada. O menino não gosta do “lanchinho” que o analista faz. Todos comem. Todos dormem. Menos a vítima. Os métodos utilizados pelo analista para fazer dormir o menino são hilários. É uma cena cruel. O garoto será abusado sexualmente pelo analista. E nós (espectadores) compactuamos com o abuso. O diretor nos coloca diante de uma sinuca de bico. Sim, nós rimos das artimanhas do pedófilo e agora?
É essa a sensação de desconforto que permeia o filme todo e parece ser a impressão que o diretor quer nos causar.
Há algo de Nelson Rodrigues no cinema de Todd Solondz. Assim como nas peças do escritor brasileiro, o diretor norte-americano faz obras “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir tifo e malária na platéia”.
É arte na vertente do desagradável, assim como Nelson Rodrigues, Antonin Artaud, Lars Von Trier, Sarah Kane.
O que é a cena em que o filho pergunta ao pai se ele realmente abusou de seu coleguinha de escola? É uma cena angustiante, extremamente bem filmada e interpretada. Os dois atores estão sensacionais e olha que o garoto deve ter apenas uns onze ou doze anos. É sem sombra de dúvida, a melhor cena do filme. Aliás, o filme só é feito de melhores cenas. Em nenhum momento o diretor perde o fio da meada ou o vigor das cenas e olha que estamos falando de uma filme de mais de duas horas.
Todos os atores estão soberbos. O que assistimos são interpretações sensíveis de um elenco poderoso. Todd Solondz prova mais uma vez que é um diretor de ator, que sabe como poucos conduzir os atores até o magistral, o repugnante e o sublime.
Como esquecer da cena em que Joy canta uma música que diz “Parece que as coisas que eu quis na minha vida, eu nunca consegui. Então não me surpreendo que viver só me deixa triste. Felicidade, onde está você? Procurei você por tanto tempo.”
Falando nisso, Joy é a personagem que menos interpreta esse estado de felicidade, enquanto todos os outros vivem de aparência, ela personifica uma outra coisa. Há em seu olhar algo de desamparo, que nos faz sentir vontade de pegá-la no colo e cantar uma canção de ninar para ela.
O diretor é tão genial que subverte tudo. Sentimos mais piedade por Joy do que pelos outros. O que devia ser ao contrário. De alguma maneira Joy se salva por ter um auto-conhecimento de que o ser-humano faliu há muito tempo. Há algo de Macabéa de Clarice Lispector nela. Há uma inocência pisada no trabalho da atriz Jane Adams que é comovente.
Com seu “Happiness”, o diretor parece nos dizer que felicidade é só um conceito e quanto mais o buscamos, mais distante de nós estará.
Num texto de Clarice Lispector (sim, novamente ela) chamado “Por não estarem distraídos”, a escritora dá o salto dialético ao escrever: “Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.”
Bem, é isso então...
“Happiness” é um filme necessário para se entender o processo civilizatório de uma sociedade que fracassou. É um filme amargo, com uma temática explicita e severa. É um filme com uma trilha sonora alegre e cínica. É um filme com uma fotografia quase de comercial de margarina (mais aqui esse efeito é utilizado como crítica).
"Palindromes" do diretor Todd Solondz é um conto de fadas pós-dramático desesperançado e cruel.
Cinema sem rodeios e floreios, Solondz coloca o dedo na ferida exposta e cutuca-a sem dó nem piedade.
Com “Palindromes” o diretor nos propõe uma pergunta: O ser humano faliu?
Com “Palindromes” o diretor responde: Sim.
Seu filme é uma tentativa de explicar os porquês dessa afirmação. Sim, é um filme absolutamente manipulador. Todo filme é manipulador.
Foi o grande cineasta austríaco Michael Haneke quem disse que "o cinema é a arte da manipulação. Isso é algo que não devemos esquecer nem quando fazemos um filme nem quando o assistimos”.
Bom, dito isto, digo que com “Palindromes” essa lição é levada a ferro e fogo.
Solondz nos mostra a história de uma menina chamada AVIVA e num primeiro momento essa história é bem convencional.
Vamos a ela:
Uma adolescente engravida. Seus pais entram em desespero. Exigem que ela aborte. Ela reluta. Acaba concordando. O aborto é realizado. Algo dá errado. Ela nunca mais poderá ter filho. A menina não fica sabendo disso. Revoltada, foge de casa e ai o filme “começa”.
A maneira encontrada por Solondz para contar essa história é bem interessante: sete atrizes interpretam Aviva. Sete atrizes completamente diferentes umas das outras. Esse efeito tem algo do "O Sistema Coringa" do dramaturgo Augusto Boal. Método do qual, vários atores interpretam o mesmo personagem desde que vista a máscara correspondente. A máscara em “Palindromes” é a própria narrativa; absurda, crua, cruel e contemporânea.
Esse efeito de utilizar atrizes diferentes para se contar essa história dá um aspecto estranho e distanciado à narrativa. Passado o estranhamento inicial, essa “novidade” ganha força e é reforçada pela ótima escolha das atrizes que interpretam a protagonista. Pra falar a verdade, são seis atrizes e um ator, mas o ator é tão andrógino que não dá muito pra perceber não.
Após sair de casa e cair no mundo, o filme se torna um road-movie, Aviva encontra pelo caminho uma série de personagens esquisitos. Esse desfile de “bizarrices” é o jeito encontrado por Solondz de dizer que pessoas diferentes do que é comumente aceito como nornal irão sempre se fuder na vida. Pronto. É um filme direto. Solondz não dá esperança. Não há saída. O filme é um retrato de uma cultura ocidental cristã; está ali o capitalismo e suas mazelas, a religião e sua alienação, o sexo e sua culpa e muitas outras coisas. Não é um filme palatável. Não mesmo. Ainda para complicar toda essa história, o diretor utiliza-se de uma ironia tresloucada em algumas cenas. Exemplo disso é a cena em que Aviva, garota de 13 anos de idade, é “abusada” por um homem bem mais velho. Nessa seqüência o diretor coloca uma música incidental engraçada e os movimentos sexuais são robotizados. O efeito de desfamilirização proposto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht é colocado de maneira perfeita. Como espectador, essa cena me causou uma estranhíssima sensação. Mas, afinal é isso mesmo que o diretor queria. Já alertei logo no inicio do texto que o filme era manipulador e nada sutil.
Num dos capítulos da história intitulado “Mama Sunshine” (que é sem sombra de dúvida o melhor de todo o filme), Aviva está perdida numa floresta, perto de um lago. Um garotinho aparece e a salva. Ele leva-a até sua casa e apresenta para Aviva a tão falada Mama Sunshine. Mama Sunshine é uma mulher bondosa e cristã que adota crianças com “problemas” físicos e mentais e é ferrenhamente contra o aborto. Mama Sunshine adota Aviva (que nessa cena é interpretada por uma atriz obesa e negra). Os “filhos” de Mama Sunshine são cantores de uma banda gospel (imagine uma boy band gospel... essa é a banda dos filhos dela), e convidam Aviva para fazer parte daquilo também. As cenas da cantoria são extremamente engraçadas e críticas. Solondz explicita de maneira radical o processo de mercantilização de Jesus Cristo e a utilização da culpa como forma de controle. Aliás, toda essa parte do filme é extremamente hipócrita. Sharon Wilkins (uma atriz adulta, obesa e negra) é a melhor interpretação do filme. Sua Aviva é ingênua, curiosa e absolutamente crível. É um trabalho maravilhoso de composição. Trabalho de ator mesmo.
“Palindromes” retoma um tema de filme anterior do mesmo diretor (“Bem vindo à casa de boneca”), Aviva é prima de Dawn (garota humilhada do outro filme do diretor). “Palindromes” começa com uma “missa”, no qual ficamos sabendo que Dawn cometeu suicídio. Esse é o prólogo do filme e também sua obsessão. Parece que essa á a única saída viável para os párias da humanidade.
A grande questão que Solondz nos impõe é extremamente cruel: Já que essas pessoas estão fadadas ao fracasso e ao suicídio, não seria melhor que elas fossem abortadas antes de nascer?????????????????????????????????????
Ao longo do filme, o tom vai ficando mais contundente, lá peças tantas o diretor coloca na boca de um acusado de pedofilia um quase monólogo assustador:
“As pessoas sempre terminam do jeito que começam. Ninguém nunca muda. Acham que mudam, mas não mudam. Se for do tipo deprimida agora, vai ser sempre assim.”
Mais pra frente ainda proclama: “Não há livre arbítrio. Não tenho escolha a não se escolher o que escolho. Fazer o que faço. Vive como vivo. No fim, somos apenas robôs programados arbitrariamente pelo código genético da natureza”.
Aviva então pergunta: “Mas não há nenhuma esperança?”
“Palindromes” é assim. Como se fosse um soco em plena boca do estômago.
Aviva tem algo da ingenuidade comovente de Macabéa de Clarice Lispector e de Cabíria do Fellini.
O diretor Todd Solondz porém é mais radical que Lispector e Fellini, numa entrevista afirmou:
"Eu penso que, num nível profundamente humano, todos nós precisamos acreditar que estamos fazendo a coisa certa, e travando um combate justo e que mesmo que você esteja matando médicos que praticam abortos, você faz isso por achar que está salvando milhões de bebês que ainda não nasceram. Existe uma lógica em ação em tudo isso. Não é apenas uma coleção de casos problemáticos".
Já numa outra entrevista fez a seguinte provocação: “A família, microcosmo da sociedade, é o meio onde são geradas as neuroses e os falsos valores sociais. A cada história pela qual me interesso mesclo um pouco de tristeza, um pouco de humor e um pouco de ironia. Inteligência, humor e tristeza é uma grande combinação.”
Bom, se você quiser ver um “Alice no Pais dos HORRORES”, te recomendo esse filme.
Antes Que o Mundo Acabe
3.5 354TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Antes que o mundo acabe” é mais um excelente filme produzido na região sul do Brasil.
A diretora Ana Luiza Azevedo consegue fazer um filme sobre a adolescência de uma maneira improvável, optando pelo registro impressionista e não caricatural, o resultado final é tocante.
O filme conta a história de Daniel, garoto de 15 anos, que mora numa pequena cidade gaúcha, seus amigos e sua família.
Simples assim.
Narrado sob o ponto de vista da irmã caçula de Daniel, o enredo ganha contornos quase pueris, sem entretanto cair num discurso bobo ou infantilóide.
O que acontece é exatamente o oposto, através da ótica da pequena Maria Clara, “o mundo de Daniel” fica mais interessante, pois é narrado de maneira irônica por ela.
A história de Daniel se apresenta sem pressa, calmamente, o que vai de encontro ao clima da cidade em que ele mora, pacata e rural.
Vamos a ela: Daniel é um garoto de 15 anos que namora uma garota cujo apelido é Mim, logo no começo do filme, ela pede um tempo a ele. Ele reluta, mas, concorda.
Aos poucos, ficamos sabendo que ela está gostando de Lucas, melhor amigo de Daniel.
O garoto se revolta, boicota o amigo e acaba prejudicando ele na escola e até mesmo causando sua expulsão.
Somado a esse história, Daniel começa receber envelopes de seu pai verdadeiro, que ele não conhece. Num primeiro momento, Daniel é irredutível, não quer ouvir nem falar no nome do pai, mas aos poucos começa a se interessar por ele, quando abre um dos envelopes e várias fotos “estranhas e belas” caem de lá de dentro.
Ai começa uma das partes mais interessantes do filme.
O pai de Daniel é fotógrafo e o abandonou porque saiu pelo mundo registrando lugares e pessoas exóticas, antes que a globalização acabe com a cultura do diferente.
O menino se encanta pelas fotos e pela história do pai, e é especialmente nessas cenas em que a diretora prova seu talento e habilidade nata.
Brincando com as fotos, Ana Luiza Azevedo deixa claro porque optou pelo olhar narrativo da irmã caçula; ela se identifica com a menina, ela é seu alter-ego e isso só faz engrandecer o enredo.
Aos poucos, o filho busca mais informações sobre o pai e unindo o útil ao agradável viaja a Porto Alegre para ver a exposição de fotos do seu progenitor ao lado de Lucas e Mim.
Nessa viagem com ares de aventura, o triângulo amoroso fica um pouco de escanteio e os três passeiam e brincam felizes pela cidade grande.
Até mesmo o filme “Jules e Jim” de Truffaut é usado como referência, principalmente na cena em que visitam uma feirinha de rua.
Tudo é mostrado através do olhar terno da diretora Ana Luiza, sem no entanto, cair num paternalismo que depreciaria o filme.
A grande sacada é que não há julgamento moral, os jovens são retratados pelas suas ações, o teor psicológico fica para as decisões e dúvidas que eles exibem ao longo da trama.
Uma cena especialmente me tocou, é quando Daniel se desilude com Mim e Lucas, o olhar perdido do menino, olhar de quem foi ferido em sua ética, sua dignidade é extremamente dolorido.
Na hora lembrei de Cabíria de Fellini, nem sei bem por que, mas que lembrei, lembrei.
Todos os atores estão muito bem, com personalidades bem construídas e alicerçadas.
Nesse ponto, Ana Luiza mostra que é uma ótima diretora de atores, pois consegue extrair atuações sensíveis e sem maneirismos tão característicos quando se trabalha com jovens atores, ainda mais sendo, a maioria, iniciante em cinema.
O jovem ator Pedro Tergolina encarna o protagonista Daniel de uma maneira particular, sem exageros, e consegue nos transmitir apenas por um olhar as dúvidas existenciais de seu personagem. Não é uma tarefa fácil, afinal o garoto é irritadiço em casa, leal aos amigos, apaixonado por Mim, curioso em relação ao pai, culpado em relação ao meu melhor amigo e muitas outras facetas mais...
A atriz Caroline Guedes que interpreta a irmã caçula de Daniel é um achado, espontânea sem parecer adulta, é dela a alma ingênua do filme.
A trilha sonora original é muito bonita, acompanha o enredo sem chamar mais atenção que as próprias cenas. Destaque para a música do grupo gaúcho “Apanhador Só” e também pra cena em a personagem Mim canta o clássico dos anos 80, “Beat Acelerado”, música que ganha ares de metáfora quando pensamos na condição e na dúvida que a garota está passando, apaixonado por dois meninos (“Acontece porém que eu não sei me entregar a um amor somente”.)
A fotografia é deslumbrante, sobretudo nos momentos da fértil imaginação da irmã caçula e também nos momentos em que é mostrado a história do pai.
A direção de Ana Luiza Azevedo é segura, terna e sublime, deixa espaço para os atores e a história brilharem por si só, sem a necessidade egóica de aparecer a todo custo.
A história possui uma nostalgia e uma melancolia comovente.
Enfim, sai do cinema daquele jeito que eu tanto gosto, com lágrimas nos olhos e um feliz sorriso no rosto.
Um Lugar Qualquer
3.3 810 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O que há em comum entre cinco meninas que vivem numa cidade americana na década de 1970, um ator de meia-idade que encontra uma jovem em Tóquio, uma monarca adolescente e um ator de filmes de ação e sua filha de 11 anos de idade?
Se você respondeu que todos eles são protagonistas de filmes da diretora Sofia Coppola, a resposta é quase certa.
Mas que isso, são personagens mergulhados num vazio que nada aplaca.
Sofia Coppola é a mestra na abordagem desses tipos.
Assisti “Somewhere”, seu aclamado filme que saiu vencedor no Festival de Veneza e teve ingressos esgotados rapidamente nos Festivais do Rio e de São Paulo.
Eu fui um dos que ficou sem ingresso na Mostra de Cinema de SP esse ano.
“Somewhere” possui um roteiro bem simples. O filme conta a história de um ator de filme de ação, entediado com tudo e todos a sua volta, que acaba tendo que cuidar por uns dias de sua filha pré-adolescente.
Só isso? Sim. Aparentemente.
Sofia Coppola é adepta de um cinema sugestivo. Ela mais insinua, do que mostra. Quase nunca, a diretora é explícita, a não ser quando caçoa da mídia e das “facilidades” da vida moderna. Mesmos nessas cenas, a diretora é sutil. Pega o intento da cena quem quer. “Somewhere” começa com pouquíssimos diálogos. A primeira cena mostra um carro dando voltas e mais voltas numa pista. Cena simples, por demais. Mas, quantos subtextos são possíveis se ler ali?
Inúmeros.
Uma dessas possíveis interpretações seria o conceito de “Eterno retorno” elaborado por Friedrich Nietzsche. Segundo o filósofo alemão, o ser - humano estaria preso a um número limitado de fatos que se repetem sempre e continuarão a se repetir sempre.
Partindo desse pensamento, a vida não tem utilidade nenhuma e muito menos objetivo. Estaríamos fadados assim, a um tédio sem proporção. Eis ai o cinema praticado por Sofia Coppola.
O cara que está pilotando a Ferrari é Johnny Marco: ator de filme de ação, mulherengo, rico, famoso, pai de uma filha de 11 anos. No entanto, a diretora não entrega essas informações logo de cara. Não. O personagem é pouco a pouco revelado pelas suas ações. Johnny Marco dirige uma ferrari. Johnny Marco assiste duas dançarinas de pole dance deitado em sua cama. Johnny Marco dorme. Johnny Marco acorda. Johnny Marco fuma. Johnny Marco é observado por duas lindas garotas ao tomar “café da manhã” no hotel... E assim vai... Até aqui quase 10 minutos se passaram e ainda não ouvimos a voz de Johnny Marco. “Por que você é tão idiota?” diz a mensagem de número privado que ele recebe no celular. Próxima cena. Sofia não está interessada em grandes arrombos dramáticos. Seu cinema é mais subjetivo, interior... Onde as palavras faltam lá está Sofia para “tentar” filmar o quase infilmável. Cabe ao espectador preencher as lacunas propositais deixadas pela diretora, é ele quem vai “tentar” descobrir ou imaginar o que não foi dito ou explicitado. Esse tipo de filme exige a aquiescência (ou seria paciência) do espectador. É a sua participação ativa na composição da história quem dará sustentação ou não para tudo aquilo. Indo até mesmo além, com seus filmes Sofia força o espectador a uma reflexão sobre sua própria identidade.
“Quem é Johnny Marco?” pergunta um jornalista numa coletiva de imprensa. Corta. Próxima cena.
Apesar de o filme ter um começo, um meio e um fim pré-determinados, a história em si é o que menos importa para Sofia Coppola. Ela está interessada em filmar os instantes da vida daquele personagem. Sua história se transforma então em fragmentos. Cada cena possui um valor em si, algo pretendido pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Que dizia que cada cena tinha que contar sua própria história, sem a necessidade da outra. Essas cenas seriam independentes. Em “Somewhere” acontece algo bem próximo disso. Daí que "Somewhere" de Sofia Coppola se transforma num retrato cômico/triste/sublime/lacaniano do vazio que é a existência humana.
Cômico porque a visão arguta de Coppola sobre a fama, o tédio, o cinismo e as máscaras sociais que vestimos, são extremamente engraçadas. As cenas do pole dance de duas loiraças e gêmeas, do programa de TV italiano, e da sessão de foto de divulgação do filme, são o cúmulo do ridículo.
Triste porque sorrateiramente a diretora mostra o quão destituído de significados se torna a vida daquele personagem. Johnny Marco é um personagem trágico. Sua tragicidade advém de um ego inflado, que mesmo tendo todo o tempo do mundo não consegue nem mesmo prestar atenção em sua própria filha.
Sublime porque da cena mais banal Sofia Coppola faz brotar a epifania que estava fazendo falta no filme. Preste atenção na cena em que pai e filha tomam sol na piscina do hotel. A música e o movimento de câmera utilizado pela direção me arrancaram lágrimas.
Lacaniano porque foi Lacan quem escreveu que “a arte caracteriza-se como uma organização em torno e a partir do vazio”. Em “Somewhere” a questão da ausência é central. O Pai é ausente na vida da filha. A vida não possui nenhum significado. Para Lacan, o vazio e a falta são partes da formação do individuo como ser social. Somente pela falta é que sabemos que temos necessidade de complementação. E é daí que nasce o desejo. Outro componente importantíssimo do desenvolvimento humano e social. Em “Somewhere” essas questões estão muito bem colocadas. Johnny Marco é aquilo que vendem que ele seja. Ele é um arremedo de humano. Seus desejos são impostos por outrem. As mulheres se exibem, ele então trepa com elas. Sua agente liga ditando comportamento, ele obedece. Os jornalistas perguntam, ele tenta responder, pois sabe que se não conseguir responder, sua produtora responderá por ele. Lá pelo final do filme, a ficha do “herói” cairá e é nesses pequenos instantes que Sofia Coppola é mais Sofia Coppola do que nunca.
Será difícil eu esquecer desse filme, mas se tem uma cena que nunca esquecerei é a que Johnny é convocado pelo estúdio em que trabalha para testar sua maquiagem para um filme em que ele interpretará um velho. Sofia Coppola consegue a proeza de fazer uma cena hilariante no começo, depois extremamente depressiva, depois absurdamente paralisante e por fim nos sufoca com sua genialidade.
Durante essa cena, lembrei de um texto da Clarice Lispector em que ela escreveu que “escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.”
RECOMENDO!
As Amizades Particulares
4.1 115TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"As Amizades Particulares" é um filme sobre o amor ou a dor e a delícia de ser o que é...
Baseado no de Roger Peyrefitte, o filme produzido na França em 1964 é um relato da história de amor entre dois meninos: o adolescente Georges de Sarre e uma criança Alexandre Motier.
Os dois se conhecem quando Georges vai estudar num colégio católico na França, lá o pequeno Alexandre é o xodó dos padres. Sua figura absolutamente fascinante encanta a tudo e todos. Logo Georges se apaixona por Alexandre. Os dois começam uma troca intensa de cartas e poemas. O amor aqui é ingênuo, pueril, em suma sublime. No entanto, o lugar é habitado por figuras taciturnas que disseminam valores cristãos hipócritas, aos poucos esses “perus de Deus” (expressão nietzschiana) passam a ver na amizade/amor dos dois uma habitação do Mal.
De maneira sutil, o diretor Jean Delannoy nos mostra um ambiente totalmente claustrofóbico, marcado pela manipulação dos sentimentos daquelas crianças com rezas e confissões incessantes. Ora, é sabido que é por esses métodos que a Igreja Católica aliena os seus fieis. Através da confissão, os padres enredam os meninos em suas teias e conseguem o que querem deles. O filme mostra isso perfeitamente. A Cultura da Culpa e da Punição é a palavra de ordem e é um dos passos mais importantes para que o fiel se entregue de corpo e alma não a Deus, mas sim aos religiosos que pregam em seu nome.
Por debaixo dessas intenções, os religiosos possuem uma outra camada ainda mais sórdida que a primeira: DINHEIRO.
Uma pessoa culpada é uma pessoa escravizada por aquele que vier a salvá-la ou perdoá-la e terá uma dívida eterna para com a pessoa que a redimiu de seus pecados.
Prato cheio para os espertos ao contrário que habitaram, habitam e sempre habitarão a terra. Jean Delannoy não faz um filme panfletário, muito menos didático. Ele está mais interessado em contar como os afetos nascem, sobrevivem e morrem do que qualquer outra coisa. Daí que seu filme, apesar de ter sido feito em 1964, ainda é atual. Atualíssimo eu diria. Algumas cenas são de uma poesia enternecedora, algo raro no cinema praticado atualmente. O amor aqui é algo quase inalcançável e não essa bobagem que fizeram a nossa geração acreditar. Os dois meninos são felizes e sabem dessa felicidade, no entanto, se mantêm ambos, distraídos e também desesperados. Como é possível? Clarice Lispector nos deu uma pequena explicação quando escreveu que “O ato do amor contém em si um desespero que é.”.
Bingo Clarice. Bingo.
A alma do filme é o ator Didier Haudepin que interpreta o pequeno Alexandre.
Sua interpretação é tão vivaz e verdadeira que chega a assustar. Fique muito interessado em saber quais foram os métodos utilizados pelo diretor, para arrancar desse menino uma interpretação tão apaixonada e apaixonante. Afinal, ele é uma criança. Independente dos meios, o fim é excepcional. O garoto é simplesmente um achado. Também fiquei interessado em saber o que esse garoto tão talentoso fez de sua vida pós-filme. Vou procurar saber mais sobre ele.
Sobre o filme ouso dizer que Almodóvar com seu MARAVILHOSO “Má Educação” tenha assistido esse filme e até mesmo se inspirado em algumas passagens.
Ambos os filmes são trágicos e belos. . "A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão”. Bingo. Sim, Clarice. Mais uma vez.
Ao final e afinal lembrei muito da música “Consolação” do compositor Baden Powell:
“Se não tivesse o amor?
Se não tivesse essa dor?
E se não tivesse o sofrer?
E se não tivesse o chorar?
Melhor era tudo se acabar.
Eu amei, amei demais.
O que eu sofri por causa do amor
Ninguém sofreu
Eu chorei, perdi a paz
Mas o que eu sei
É que ninguém nunca teve mais
Mais do que eu.”
Glue
3.5 63TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Glue” é um filme sensacional, honesto e de uma inventividade única. Contando a história de Lucas, um jovem que vive no meio do nada, o filme é muito mais que uma história de adolescente como o subtítulo nos faz crer. “Glue” acaba sendo muito mais a história de pequenos fragmentos na vida de um monte de gente do que qualquer outra coisa. Apesar de ter um protagonista definido, o filme o perde de vista às vezes. Eu explico. A câmera é a metáfora perfeita para isso que acabei de escrever. Inúmeras vezes durante o filme, ela abandona o protagonista e se fixa em outro objeto ou personagem e ali é aberta uma janela e uma possibilidade de história é contada. Às vezes o diretor opta por contá-las e outras, não. Isso é que é o mais impressiona no cinema de Alexis dos Santos. Sua habilidade e sensibilidade fílmica pululam pela tela. Não um mero “olha como eu sou genial”, mas, um apuro estético que vai de encontro às angústias e alegrias dos personagens.
Lucas é um garoto de 15 anos, seus pais se separam e reconciliam rotineiramente, tem uma irmã, toca numa banda de rock amadora e seu melhor amigo é Nacho.
Juntos, os dois se divertem, tocam, andam de bicicleta, brigam e dividem confissões sexuais. Ambos estão naquela fase em que os hormônios estão a mil. Ambos estão loucos para ter uma relação sexual (ou amorosa) com a tímida Andréa, vizinha deles.
Juntos, os três dividem a angústia de não mais ser criança e nem ser ainda adulto. O que o diretor sabiamente faz em “Glue” é filmar as pequenas alegrias, os instantes de dúvida e solidão, o tesão e o sexo desajeitado de maneira ora bem na cara dos personagens, se confundindo com ele, invadindo e atiçando, ora de maneira aberta e afastada, deixando-os respirar. Além disso, o diretor insere cenas em que os personagens em monólogos interiores fazem confissões ou abrem à guarda e se permitem ser o que são. Esses momentos são preciosos e oxigenam o roteiro de uma melancolia sutil e real. Aliás, falando em roteiro, o diretor trabalhou com um bem escasso e se inspirou em suas próprias lembranças e nas dos atores escolhidos para contar essa história. Quando os letreiros sobem, a primeira coisa que lemos é “esse filme foi improvisado por” e aparece os nomes dos atores do filme. Não era preciso saber desse detalhe para percebê-lo, pois, uma das características que mais chamam atenção no filme é a absurda naturalidade com que os atores encarnam seus papéis. Em “Glue” não há um só traço dos maneirismos que se costumam usar quando se ouve falar de cinema adolescente. Tudo em “Glue” funciona, encanta. Assisti ao filme com um sorriso nos lábios e alguma lágrima nos olhos. Adoro quando isso acontece. O diretor conseguiu captar uma atmosfera realista, sem abrir mão de contornos oníricos. Daí que “Glue” resulta numa experiência feliz, mas sem ser uma felicidade tola, vazia... Nunca. A densidade que advém principalmente das dúvidas e da sensação de vazio e de solidão está ali. À espreita. Ela é quase domada. Quase. O que mais me comoveu naqueles três adolescentes é a necessidade carnal/física/materialística que sentiam um do outro. A adolescência é aquela fase em que queremos nos desgarrar de nossa família e ganhar o mundo, testar limites, experimentar coisas e sensações, e acima de tudo, encontrar nossa turma ou a parte que nos cabe neste latifúndio. “Glue” é isso e muito mais. É também a história de uma família disfuncional que aos trancos e barrancos tenta encontrar alguma maneira de se entenderem juntos. Uma das cenas mais belas de todo o filme é a tentativa desesperada do pai de dar um pouco de alegria àquela família. É também a história de amor entre um homem e uma mulher já adultos, suas idas e vindas, perdão, brigas e possível entendimento. É a história de Andréa, a garota tímida que queria ter peitos maiores e beijar de língua. É a história de Nacho, que quase não tem história própria, mas que também tem seus mistérios. É a história de Lucas, suas músicas ouvidas com fone de ouvido, sua sexualidade latente, sua poesia ingênua, e suas tentativas de afastar o tédio de existir.
Mas, acima de tudo “Glue” é a história dessas pessoas todas juntas, tentando (con)viver, cada uma com suas aflição/alegria/tristeza/prazer individuais.
Com uma fotografia deslumbrante nos tons alaranjados de verão e uma trilha sonora poderosa, “Glue” é uma película daquelas inesquecíveis e passíveis de identificação com muitos outros filmes, tais como “Os Famosos e os Duendes da Morte” do diretor Esmir Filho, "Gummo" de Harmony Korine, “Antes que o Mundo acabe” da diretora Ana Luiza Azevedo,“E tua Mãe Também” de Alfonso Cuarón. Os atores estão excelentes. Todos. Mas os destaques absolutos são a garota Inés Efron que interpreta Andrea e Nahuel Pérez Biscayart, o protagonista Lucas. A interpretação desses dois é tão entregue que é quase possível tocá-los, de tão profundo que foi o mergulho cênico.
“Glue” é um rito de passagem. É um grito rouco de independência. É um beijo-treino na parede. Clarice Lispector em “A Hora da Estrela” escreve “a gente aceita tudo porque já beijou a parede”.
Delicada Atração
4.0 373 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Que coisa bonita é “Beautiful Thing” do diretor Hettie McDonald.
Confesso que no começo não tava gostando muito, pensei que o filme fosse uma coisa e estava vendo outra.
Mas ai, aos poucos, fui percebendo a genialidade do diretor, através das cenas iniciais, que aparentemente não acrescentavam nada a trama que estava esperando ver, o diretor vai mostrando a nós, espectadores, o ambiente, o bairro, os apartamentos, a escola, os “amigos” do protagonista, sua mãe, o namorado de sua mãe, seus vizinhos amalucados e de repente, não mais que de repente, eu já estava totalmente dentro da história.
A história, bem, a história desse filme pode se resumir numa única frase:
A descoberta da sexualidade de jovens num subúrbio preconceituoso.
Mas, não só isso, pois o diretor da película é inteligente e não quis fazer um filme panfletário e sim um filme que conta uma história de uma maneira simples e sensível.
Jamie, o protagonista do filme, é um garoto deslocado, tímido, sua mãe trabalha em pub e deu um duro danado para sustentar o filho sozinho. Ela percebe que o filho tem algo diferente, mas não sabe bem o quê. Intui que há algo de "errado", mas não consegue identificar o que seja. É possível até mesmo identificar que ela se sinta culpada por alguma coisa também. Mas que também não se sabe o quê.
A Mãe de Jamie tem um fama não muita boa na vizinhança, tratam-na como vadia, dizem que ela já fez abortos. Ela está namorando um rapaz mais novo, que aparentemente não tem nenhuma perspectiva de vida.
Ela sustenta sozinha a casa.
Seus vizinhos são a família de Ste, amigo de seu filho, mais o pai e o irmão mais velho do garoto. São machistas e batem nele, a todo momento.
Do outro lado, mora uma hilariante figura, Leah, uma moça negra apaixonada por uma cantora chamada Mama Cass e sua mãe.
O diretor apresenta esses personagens sem nenhum julgamento, apenas mostra-os em ações diárias, não cabendo à sua direção emitir um juízo de valor.
Eis ai, um dos grandes achados do filme.
Aos poucos, a história vai ganhando corpo.
Um dia, Sandra (mãe de Jamie) encontra Ste chorando nas escadarias do prédio, ele tinha acabado de ser surrado pelo pai e pelo irmão.
Ela se sensibiliza e o leva para dormir em sua casa. No quarto de Jamie. Na mesma cama de Jamie.
E sem fazer alarde, nem erotizar, nem imbecilizar a história (como uns e outros, não é Sr Aluisio Abraches e filme de meia pataca “Do começo ao fim”), Jamie vai se apaixonando por Ste e em cenas de enorme sensibilidade e competência os meninos iniciam um "namoro".
E ai, acontecem coisas que acontecem com todo mundo que se descobre gay em uma sociedade machista. Não vou contar aqui, mas todo mundo sabe o que acontece.
O diretor sem medo de encarar essa cenas clichês, filma-as sob a ótica da descoberta.
É lindo acompanhar o desflorar de Jamie, sua excitação, seus medos, seu amor.
Não é só quem se "descobre". Todos ali de alguma maneira se descobrem.
Essa é a beleza do filme.
“Beautiful Thing” parece nos dizer que todos, absolutamente todos nós, possuímos alguma coisa que falta. É aquele vazio existencial que o psicanalista Lacan tanto falou.
“Guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo” escreveu Caio Fernando Abreu, e é por esse caminho que o filme trilha.
O diretor filma esse vazio, a falta de perspectiva, a inércia e a preguiça que dá em tentar mudar as coisas e ser feliz.
Todos ali doem, todos ali estão feridos. Uns tem marcas no corpo, outros em outros lugares. Mas, em segredo, carregam suas cicatrizes. Até um dia que não dá mais para segurar, explode coração...
É isso ai, um pequeno filme, precioso, como uma jóia rara a se descoberta em algum lugar.
Chorei, chorei muito vendo.
Chorei porque sinto que a vida poderia ser um pouquinho mais sublime, sabe?
Chorei porque temos chorado nossas feridas, mágoas e vazios em nossas camas vazias.
Chorei porque a vida pode e deve ser bonita.
Chorei porque dois humanos pode sim dançar um dança bonita e juntos numa tarde ensolarada.
Belo/dolorido filme, a trilha sonora dos garotos Jamie e Ste é dilacerante de linda e o diretor tem uma sacadas ótimas sempre que o clima está ficando muito pesado.
Destaque para a atriz que interpreta Leah, a vizinha negra e amalucada, ela rouba a cena em vários momentos.
Às vezes estava chorando pela cena anterior e na hora em que ela aparecia me pegava rindo.
Ah! Como eu amo essa sensação que só a arte verdadeira, legitima e sincera pode nos proporcionar.
Recomendo que todos assistam “Beautiful Thing”, também traduzido no Brasil como “Delicada Atração".
Você Não Está Sozinho
3.8 120TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Produzido no ano de 1978, o filme retrata um internato de meninos menores de idade, suas dúvidas, angústias, medos, descobertas de uma maneira bem simples.
O filme é encantador, nos primeiros 15 minutos eu achei que não iria gostar muito da história, mas depois fui ficando preso ao enredo e entrando de cabeça naquilo tudo.
O internato onde os meninos estudam é um lugar cheio de regras e deveres, os professores em sua maioria são moralistas, chatos (salvo rara exceção), e o diretor é uma figura emblemática, autoritária e ególatra.
A única professora que destoa é a responsável por introduzir assuntos “espinhosos” como sexo e drogas, no entanto, sempre por um viés moralizante. Mesmo assim, é a única que parece se interessar verdadeiramente pelo o que os garotos pensam.
Vivenciando aquela que é considerada a mais difícil das fases de uma pessoa, os garotos querem mais é botar pra quebrar, experimentar tudo o que tem direito e mais um pouco.
Como são educados dentro de uma “moral cristã” e somente entre meninos, o desejo sexual naturalmente nasce entre eles mesmo ou com garotas mais velhas, onde o sexo é moeda de troca.
E nesse quesito o filme é genial. Retrata com uma dignidade absurda o comportamento daqueles meninos, sem fazer firulas ou esconder nada, mas também sem ser gratuito. Essa é a grande sacada do filme.
Na história principal, digamos assim, vemos o garoto Kim, filho do diretor da escola, se apaixonar por outro garoto, Bo, mais velho que ele.
As cenas que envolvem o desabrochar desse sentimento entre os dois são oníricas, revelando o componente do desejo através de pequenos olhares, fortuitas brincadeiras e muita curiosidade.
Em nenhum momento o filme se torna apelativo, e olha que haveria espaço pra isso.
Mas, não, tudo se encaixa perfeitamente nessa história que não é só de amor. É também, uma história de vários pequenos ritos de passagem.
É bonito ver o olhar de inocência daqueles garotos descobrindo o mundo, um mundo não tão bonito, sim, é verdade, mas o mundo deles também, aquele pedacinho de mundo que é só nosso, e ninguém pode invadir.
É desse componente de identificação que brota nossa atenção à história.
Embarcamos no filme, porque também nos já passamos por quase tudo aquilo, porque também nós já fomos tolhidos, censurados, moralizados etc etc etc.
A certa altura do enredo, o diretor pega pela segunda vez as dependências dos garotos com fotos pornográficas e decide em comunhão com a maioria dos professores, expulsar o aluno responsável pelo ato “pecaminoso”.
No momento em que o diretor da escola está comunicando aos alunos sua decisão, um deles pede pra que o professor se retire para que os alunos decidam se aceitam ou não aquela expulsão.
O diretor fica desconcertado e diz que ali ele dá às ordens. O aluno não se faz de rogado e diz para todos da classe que aqueles que não concordarem com a decisão do diretor que o acompanhem para fora da sala de aula. A maioria sai com o garoto.
É uma cena forte. Eu torcia desesperadamente pro garoto, achei a atitude dele digna, de “gente grande”. Eu, quando criança e adolescente, era exatamente como esse garoto que contrariou o professor. Eu assim como ele, queria ser revolucionário, mesmo sem saber, mesmo sem querer. Eu era, porque era da minha natureza ser assim.
Numa “assembléia”, os garotos decidem fazer algo para ajudar o amigo expulso pela direção e contam com a ajuda da única professora que votou contra, sim, é a mesma que “ouve” os alunos.
E eles vão para a “luta”, pintam cartazes, gravam entrevista com os professores que votaram contra, invadem a sala de aula onde o diretor está dando aula, conversa com os alunos sobre a situação da escola, tudo com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça.
O final do filme é um pequeno manifesto. Um soco no estômago dos moralistas de plantão.
Algumas cenas são lindas, tais como as do piquenique no bosque, remetendo ao movimento hippie, as cenas em que Bo e Kim se descobrem sexualmente, em especial a cena em que eles tomam banho juntos e também a peça de teatro que eles montam para os pais e os professores em cima dos “dez mandamentos” bíblicos.
A trilha sonora é simplesmente magnífica e pontua muito bem as idéias do filme.
Ao longo da história, fui percebendo que alguns diretores contemporâneos que tocaram nesse assunto, usaram o filme como referência. É possível notar uma semelhança com “Elephant” de Gus Van Sant, principalmente na cena em que a câmera passeia pelo quarto do garoto Kim, revelando seus gostos, suas preferências, seus ídolos, tal qual na famosa cena de “Elephant” em que um garoto, que mais tarde invadirá a escola onde estuda e matará alguns de seus colegas, toca Beethoven e a câmera percorre todo o quarto do garoto num giro de 360° graus lindíssimo. E também percebi que Almodóvar se inspirou no filme para criar seu estupendo “Má Educação”. A seqüência em que os garotos nadam num riacho, é bem parecida com a que Inácio canta “Moon River” para o padre, e sofre ali a primeira tentativa de abuso sexual.
Enfim, “Você não está sozinho” é um filme terno e delicado para se assistir com um sorriso de canto de boca e alguma lágrima nos olhos numa madrugada chuvosa de um mês de maio qualquer...
"Venha, nos encontre, nos faça desaparecer no bosque.
Ali onde se senta num tronco e tem o céu acima e se move se arrasta... livre.
Eu gosto das flores, das garotas e do vinho.
Que bonitos são as flores, os meninos, as garotas e as paisagens.
Desfaço-me de minhas roupas, me ajude, - livre.
Me liberte dos que roubam seu coração.
Me liberte daqueles que transformam a vida em algo miserável.
Me liberte dos que me afundam."
A Cor da Romã
4.1 133TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Raramente assisti um filme que tenha me despertado tantas sensações e pensamentos como “A Cor da Romã” do diretor Sergei Paradjanov.
O filme é uma espécie de biografia da vida e obra do trovador armênio Sayat Nova.
No entanto nas mãos do diretor (também armênio) o filme se torna uma obra-prima que “conta” essa história utilizando-se de seqüências imagéticas de forte apelo evocativo e religioso.
É um filme de cair o queixo, literalmente.
Assisti a película embasbacado com tamanho virtuosismo na seleção das imagens, no preciosismo dos detalhes das roupas e dos elementos cênicos e maravilhado com a dor e o lirismo das frases que abrem cada quadro.
Na época em que foi lançado no mítico ano de 1968 o filme foi acusado de não contar uma história de maneira linear, eu discordo profundamente, o filme conta uma história linear sim, acompanhamos contritos e atentos a vida e morte do poeta Sayat Nova, cada quadro abre com uma pequena introdução e uma indicação de que fase da vida do poeta será contada.
Algo muito próximo do teatro do alemão Bertolt Brecht, pois já sabemos de antemão o que assistiremos a seguir, no entanto o diretor se afasta do rigor formal e político de Brecht e parece aspirar à loucura sã do dramaturgo francês Antonin Artaud.
Aliás, tanto Artaud quanto o diretor Paradjanov tinham conhecimentos de Pintura e enfrentaram problemas com a censura e a polícia e ambos tiveram seu direto à liberdade e a criação castrados pela sociedade.
O filme “A Cor da Romã”, além disso, tem uma forte influência do Movimento Surrealista, movimento do qual Artaud era adepto.
A sucessão de imagens e o num primeiro momento ilogismo das imagens parecem ter bebido nessa fonte da obra do poeta, louco e marginal francês.
Já entre o trovador armênio Sayat Nova e o dramaturgo francês Antonin Artaud existem muitas diferenças, mas uma coincidência: ambos morreram na defesa de seus ideais.
Sayat Nova foi morto por soldados persas ao reafirmar a fé cristã, já Artaud morreu negando Deus e os valores tradicionais do cristianismo, como a moral e família.
Artaud e Sayat Nova são ambos figuras prototípicas do ser que se nega a abrir mãos de suas convicções.
O diretor também é um desses homens, foi preso sob acusações de homossexualismo, incitamento ao suicídio e tráfico de ícones, mas nunca cedeu.
“A Cor da Romã” possui um tempo cronológico relativamente curto (72 minutos) mas seu tempo mítico-mágico é outro, o diretor nos mostra o tempo como o tempo, sem se preocupar com a possível lentidão ou ilogismo das cenas.
O diretor Paradjanov assume um ponto de vista e segue nele sem fazer concessões, utilizando-se de signos híbridos para “contar” a história do trovador e consegue ir além colocando em xeque suas próprias imagens ao utilizar um tom exagerado e com inúmeras referências (pinturas, música, poesia etc), o que acaba gerando um estado confuso e hipnótico no espectador.
Assim como na teoria do teatro pós-dramatico (Hans-Thies Lehmann) tudo no filme depende de não se compreender imediatamente. É o famoso método da “atenção flutuante por igual” (“o espectador não é impelido a uma imediata assimilação do instante, mas a um dilatório armazenamento das impressões sensíveis”) usada na psicanálise e nos rituais zen’s.
O efeito de encantamento com as imagens de “A Cor da Romã” chega antes do entendimento racional.
Paradjanov faz um cinema absolutamente pessoal e encantador.
Se por acaso você for assisti-lo um dia, lembre-se dos conselhos de Clarice Lispector:
“Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca.”
Following
4.0 302 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Dostoiévski em seu mais famoso livro “Crime e Castigo” cria o personagem Raskólnikov, jovem sensível, erudito e sem dinheiro que formula uma teoria interessante e controversa: a do crime permitido.
Esse crime permitido, não seria “privilégio” de todo mundo, mas, somente daquelas pessoas especiais.
Raskólnikov divide a humanidade em duas possibilidades de existência: Pessoas “ordinárias” ou “extraordinárias”.
É lógico que ele próprio se incluia na categoria de pessoas extraordinárias, aquelas que até mesmo o crime seria permitido.
Dostoievski em “Crime e Castigo” cria uma obra-prima de tensão, loucura, culpa e redenção.
O diretor Christopher Nolan dirigiu em 1988 um filme chamado “Following”, na verdade esse foi seu primeiro filme.
“Following” conta a história de um jovem “escritor” londrino em crise criativa que passa a seguir pessoas para ter algum tipo de ideia interessante para seus livros.
O que no começo era apenas um hábito estranho passa aos poucos a se tornar um vício, um perigoso vício.
Numa de suas “perseguições”, é abordado por uma das “vítimas” e tudo muda.
O cara que o aborda é um “ladrão” que invade a casas das pessoas em busca de emoção e objetos intimos das “vítimas”.
O “escritor” passa então a seguir o “ladrão” em suas “invasões” (com o consentimento dele). Nesse ínterim, ele conhece e se apaixona por uma mulher loira que tem um caso com um poderoso e violento “mafioso”.
Essa é a premissa básica do filme.
Não vou contar mais porque acabaria com a surpresas das reviravoltas.
Entretanto, é extremamente interessante notar a destreza com que Nolan brinca com alguns símbolos do cinema noir, tais como a estética em preto e branco, o clima de mistério, a trilha sonora instigante, a mulher loira e as reviravoltas do gênero.
O diretor prova que conhece e muito desse tipo de cinema, e vai além, alcançando dimensões diversas.
A primeira cena do filme é arrebatadora.
Mais tarde ficamos sabendo que aquela primeira cena faz parte de um “interrogatório” que o “escritor” está respondendo.
Nessa primeira cena acompanhamos os primeiros passos do “escritor” em suas “caçadas”, e é um show a parte, a trilha sonora é perfeita e o ousado jogo de câmera do diretor nos coloca praticamente dentro do ocorrido.
“O que se segue é a minha explicação, ou melhor... é um relato do aconteceu” ouvimos o personagem dizer. Quando questionado pelo “delegado” o porquê de seguir pessoas na rua, o “escritor” questiona: “Alguma vez foi a um jogo de futebol e olhando para a multidão de repente se fixou em uma única pessoa? De repente, essa pessoa já não faz parte da multidão. Tornou-se um individuo sem mais nem menos. Tornou-se algo irresistível”.
Perfeita metáfora para o filme. Essa cena localizada logo no início é simplesmente irresistível, e Nolan sabe disso.
A partir dessa cena passamos a “seguir” a onda filme.
Muitos poderiam achar que pela primeira cena, o diretor faria um filme sobre a solidão contemporânea, mas não. O diretor faz um filme sobre pessoas “ordinárias” e "extraordinárias”. De certa forma, porém, Nolan também faz um filme sobre a solidão contemporânea... todos os personagens estão sozinhos, mesmo quando acompanhados. Há algo de desalento em cada um dos protagonistas do drama, cada um a sua maneira é solitário e cada um a sua maneira também tenta desesperadamente uma maneira de não ser mais sozinho. Vence quem for o mais resistente, o mais forte, o que resistir as intempéries da vida. Vencerá o mais esperto, aquele que sabe que o ser-humano é e sempre será sozinho.
"Cada um por si e Deus contra todos" é uma frase de Macunaíma, de Mário de Andrade, que mais perfeitamente se aplica a essa obra de Nolan.
Macunaíma (o bom brasileiro) não gosta de trabalhar e só quer se dar bem à custa dos outros, lema de todos os personagens envolvidos em “Following”.
Promovendo um interessante jogo de espelhos, nada na trama parece ser “realista”, tudo tem uma áurea dúbia, tudo pode ser como não ser.
É nesse jogo instigante entre gato e rato que o diretor constrói seu filme.
Nesse jogo de espelho leva o espectador para dentro de sua obra e nos coloca ora como detetives dessa investigação ora como cúmplices de vários crimes.
O que é real? O que é inventado?
Nolan faz algo bem próximo ao cinema do grande David Lynch (principalmente "Eraserhead"), cada pista, cada novo passo, cada reviravolta é importante. É preciso assistir atento ao filme... senão...
Outro lance importante é perceber o quanto de influências ele possui e também o quanto influenciou os diretores que vieram depois dele.
Ouso dizer que filmes como “Pi” do diretor Darren Aronofsky tiveram como referência “Following”.
Ao assistir o filme de Nolan automaticamente fui reportado para o universo soturno/estranho do pintor brasileiro Osvaldo Goeldi, seus quadros secos e incisivos mostram um pouco do universo moral das figuras que o habitam.
E também lembrei das belas e solitárias figuras do pintor norte-americano Edward Hopper.
Sim, é obvio que o diretor Nolan utilizou de muitas formas de referências e elas estão todas ali, para quem quiser e puder ver.
É incrível como até o livro que estou lendo no momento vai de encontro ao filme.
“Magnólia” da filósofa e escritora Márcia Tiburi conta a história de uma mulher diante da ausência de uma outra, ela então procura possíveis sinais, vasculha gavetas, lê e rele cartas na tentativa de personificação daquela que já não está mais ali, naquela casa em que agora ela é uma “invasora”.
Um dos meus filmes prediletos também possui essa mesma premissa.
“Casa Vazia” do diretor coreano Kim Ki-duk mostra um jovem que invade casas vazias durante a ausência de seus moradores, na tentativa de vivenciar por alguns dias o cotidiano daquelas pessoas. A diferença de “Following” para “Casa Vazia” é que no segundo filme o protagonista deixa a casa em melhor estado do que encontrou, consertando tudo o que estava estragado, como forma de pagamento.
O mais interessante de tudo isso é notar que tanto em “Crime e Castigo”, “Casa Vazia”, “Macunaíma” quanto em “Following”, os protagonistas se perdem (ou se salvam, depende do ponto de vista do freguês) em nome do amor à uma mulher.
Retorno ao mito de Adão e Eva? Pode ser, pode ser...
Incrível mesmo é perceber que o filme de Nolan tem apenas 70 minutos e que, no entanto provoca uma série de questionamentos e abre um imenso leque de informações e possibilidades.
É a prova que cinema quando é bom, não depende da durabilidade e sim de seu conteúdo.
PS: Seria o filme "Following" o precussor do TWITTER? Fica a dúvida... rs
Para um Soldado Perdido
3.6 77TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
É possível um filme falar da relação amorosa/sexual de um menino e um soldado sem ser vulgar e chocante?
SIM!
"Para um soldado perdido" é esse filme.
Produzido na Holanda (só podia ser de lá mesmo) em 1992, o filme conta a história de Jereon, um coreógrafo que em meio a um ensaio de balé relembra fatos de sua infância.
Jereon é um garoto de 12 anos que é mandado por sua mãe para uma outra cidade. Estamos em 1944, final da Segunda Guerra Mundial e o diretor Roeland Kerbosch apresenta os fatos, o novo vilarejo, os personagens e os conflitos bem calmamente. Ele não tem pressa alguma. Tanto é assim que até os primeiros 40 minutos de filme ainda a história não está inteiramente posta.
Tudo é novidade na “nova casa” de Jereon e esse rito de passagem que interessa ao diretor, muito mais do que a suposta história polêmica de seu filme.
Jereon é um garoto curioso, descobrindo o mundo e sua sexualidade. É nesse contexto que ele conhece soldado canadense Walt.
Pouco a pouco, sem forçar a barra em nenhum momento, o diretor constrói uma relação sólida entre esses dois personagens.
Ambos, Jereon e Walt, são tipos abandonados, diferentes dos outros, a diferença de idade não é percebida por vias racionais pelo espectador, talvez por não demonizar ou embelezar a relação desses dois personagens, passamos a aceitá-los com carinho.
As cenas entre os dois são ternas, existe entre aqueles personagens uma aproximação, uma amizade verdadeira e há algo de doloroso também.
O soldado Walt diz numa cena linda que não queria ser soldado, apenas o fez para agradar o pai e a mãe. O garoto interpretado com maestria/curiosidade/lirismo pelo ator mirim Maarten Smit é um achado. Talvez o filme seja tão terno, porque é o olhar dele que está impregnado em toda a ação dramática.
Confesso que a primeira metade do filme seja um pouco redundante e cansativa demais, mas a segunda parte quando começa a história dos dois o filme cresce fenomenalmente.
A fotografia é muito bonita, extremamente bucólica, remetendo muitas vezes ao estado psicológico dos personagens.
A trilha é um pouquinho melodramática demais, mas não atrapalha o contexto geral.
As interpretações são muito boas, mas são de Walt e Jereon as melhores interpretações. Walt é um personagem bastante ambíguo, parecendo carregar uma grande tristeza e também uma grande ingenuidade dentro de si. Umas das cenas mais bonitas é quando ele inesperadamente começa a imitar Jereon numa brincadeira num “campo minado”.
Em alguns momentos é possível dizer que Walt é mais criança que Jereon, e isso embaralha as noções morais do espectador médio.
Não vou contar mais, porque o final traz algumas surpresas. Inclusive as cenas que antecedem o fim são belíssimas.
Enfim, “Para um soldado perdido” trata de ritos de passagens e também nas palavras do poeta da “vida inteira que podia ter sido e que não foi."
PS: Ao tratar de dois assuntos polêmicos num mesmo filme (homossexualidade e pedofilia) diretor Roeland Kerbosch dá uma aula de como fazer isso e fazer bem ao brasileiro Aluizio Abranches com seu infame e ridículo “Do começo ao fim”.
Garoto Interrompido
4.4 298TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Por que a morte nos assusta e nos fascina tanto?
Essa pergunta martela em minha cabeça depois de ter assistido "Boy Interrupted".
O documentário conta a história do garoto Evan Perry, que cometeu suicídio aos 15 anos de idade, pulando da janela de seu quarto. Os pais do garoto são os responsáveis pela realização do filme. Para tal empreitada, eles utilizam um vasto material de fotos e vídeo da infância e adolescência do garoto. Ambos são cineastas e possuíam o hábito de filmar a família, os passeios e as brincadeiras entre eles e os filhos. Com aproximadamente cinco anos de idade, Evan é levado ao psiquiatra pelos pais, por manifestar um comportamento dúbio e uma intensa vontade de se matar. O psiquiatra dá o diagnóstico: Evan tem um distúrbio bipolar fortíssimo e começa um tratamento com Prozac. Todos que convivem com o garoto descrevem-no como sendo sensível, amoroso, talentoso, mas que às vezes se fechava em si e ficava impenetrável. A professora de teatro revela que Evan desde pequeno dizia que queria se matar e ainda na infância escreve uma peça onde um garoto morre e os amigos e familiares lamentam sua morte. A mãe o descreve como sendo um menino adorável, mas com um humor extremamente variável e estranho. O Pai relata que o comportamento de Evan o faz lembrar de seu irmão que se suicidou aos 21 anos de idade. O meio-irmão o descreve como perfeccionista, mesmo quando ainda criança. Os amigos consideravam-no muito inteligente e engraçado. A avó não consegue entender os motivos da tristeza e da obsessão com a morte nutrida pelo neto. O psiquiatra definiu-o como sendo obsessivo e desapegado. E assim aos poucos, aos solavancos, nós (espectadores) vamos tentando construir um possível retrato de Evan. Não. Não é possível. Daí, que um misto de perplexidade, estranheza e curiosidade toma conta de nossos sentidos. Tentamos entender. Desesperadamente. Por quê? Por que Evan suicida-se aos 15 anos de idade? Todos se perguntam. Nenhuma resposta plausível.
“Eu quero um câncer” relata Evan ao psiquiatra. “Eu quero me jogar da janela” diz Evan a professora aos 5 anos de idade. “Eu quero me enforcar e vou te mostrar como faria” ele revela para sua mãe. Ainda garoto compõe e canta ao violão uma música onde diz:
“Você acha que tudo é livre. Se eu pudesse cortar meu pescoço. Ameaçar você com uma faca e dizer que você vai morrer hoje. É porque estou deprimido. Nada menos do que isso. Curioso. Furioso. Alguém me mate, por favor. Estou de joelhos. Alguém me mate, por favor. É porque estou deprimido.”
É por esses desvãos, descaminhos e precipícios que caminha o documentário. Os pais de Evan, num processo de expurgação do luto corajoso, não escondem nada, pelo contrário, buscam, escavam e se expõem de uma maneira avassaladora. Eis ai um impasse. Como reagir diante de tanta honestidade e exposição desses pais? É correto ou justo o que eles fazem? O julgamento aqui é individual. Cada um sabe exatamente onde reside o seu calcanhar de Aquiles. Para mim, o que fica é que a incompreensão do comportamento do filho é tão grande, que, para eles, pouco importa a opinião dos outros. Durante o filme, lembrei bastante do livro “Precisamos falar sobre Kevin” da escritora americana Lionel Shriver, cujo enredo conta a história de uma mãe, Eva Khatchadourian, que escreve cartas para o marido Franklin numaa tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Sim. O sentimento de não entender é o mesmo. A coragem em se expor, idem. A protagonista do livro investiga até as últimas conseqüências qual seria sua culpa no comportamento assassino do filho. Narrado de maneira epistolar, o livro é um soco no estômago. Assim é também “Boy Interrupted”. Apesar de pequenos deslizes (sobretudo a trilha sonora insistentemente piegas) o filme é relato fiel de uma alma dilacerada e desesperada por algum tipo de ajuda ou compreensão. Impossível não lembrar dos versos da poetisa portuguesa Florbela Espanca:
“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!”
Sim. Ao assistir o documentário, inúmeras referências passaram em minha cabeça. Desde o “sabe o que é mais foda? É que depois dali ó, não tem mais nada”, dito pelo garoto sem nome do livro/filme “Os Famosos e os Duendes da Morte”, passando pelos suicídios em filmes da Sofia Coppola, Gus Van Sant e Béla Tarr, até chegar ao abandono da ficção e desembocar no suicídio de escritoras como Sylvia Plath e Virginia Woolf e do garoto brasileiro Yoñlu. Isso sem falar do parentesco imediato com o documentário “A Ponte”, no qual o diretor Eric Steel passa o ano de 2004 inteiro filmando pessoas que resolvem se matar na ponte Golden Gate no EUA. Assim como “Boy Interrupted”, o documentário “A Ponte” é duro e chocante. Necessário também. Ao final, a fala da avó paterna resume bem o intento do documentário:
“Isso mostra que existe muito mais, a saber, sobre as pessoas que você ama do que você é capaz de descobrir.”
Por fim, lembrei de Albert Camus que disse que "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia".
Sim. Por mais incrível que isso possa parecer ao falar de suicídio/morte, o documentário “Boy Interrupted” é um contundente relato sobre vida.
Inverno da Alma
3.5 938TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
'Winter's Bone' da diretora Debra Granik é um filme poderoso. Remonta os mitos trágicos de uma maneira contemporânea, mas sem nenhuma afetação.
Na história, acompanhamos Ree, garota de apenas 17 anos, que se vê obrigada a procurar o pai (que fugiu por problemas com a justiça) para impedir que seus dois irmãos mais novos e sua mãe doente fiquem desabrigados, pois a casa onde moram foi dada como fiança. Caso o pai dela não apareça na data estipulada eles perderam a casa.
Partindo de uma premissa dramática convencional, até novelesca, eu diria, a diretora Debra Granik consegue se “safar” de todas as armadilhas do gênero. Produzindo assim, uma obra de intenso vigor, sem, no entanto, utilizar clichês para comover o espectador.
A história é comovente por si só e a interpretação dos atores ultrapassa o mero realismo formal. O tom usado pelos atores é o hiper-real, eles não parecem mais representar algo e sim ser algo. É uma diferença sutil, mas que dentro da proposta da direção funciona de maneira limpa e digna.
Sem revelar muito do enredo, ou das personagens, a trama pouco a pouco vai se impondo por si só. Pouco ou quase nada sabemos. A diretora propositalmente nos coloca no papel de Ree, assim como a garota precisamos escavar, investigar para chegar a algum lugar. Lá pelas tantas, somos informados que talvez o pai dela já estava morto e é ai que o roteiro ganha ares trágicos.
Ao saber disso, Ree se torna uma Antígona contemporânea. Na obra do dramaturgo grego Sófocles, Antígona se nega a cumprir às ordens do Rei Creonte que diz que Polinices, morto num duelo com o próprio irmão Etéocles, não receberia nenhuma espécie de enterro, pelo contrário, teria seu corpo jogado a esmo para que os animais o dilacerassem, para que isso servisse de exemplo para todos aqueles que fossem contra a autoridade do Rei de Tebas. Antígona se nega a cumprir essa ordem. Enterra o irmão. Creonte condena-a a uma morte lenta numa caverna.
Em 'Winter's Bone' vemos a mesma obstinação de Antígona em Ree, ela se nega a ficar quieta como sugerem todos os personagens que ela vai atrás numa tentativa insana de montar o quebra-cabeça do desaparecimento de seu pai.
A motivação de Ree, diferentemente da de Antígona não é a honra de seu familiar, mas, sim, a sobrevivência de sua família. O que só torna o enredo mais humanizado. Ree é uma figura trágica, sofre em seu corpo as agruras que seriam imposta a outrem e em nenhum momento foge de sua própria ruína. Ree é ameaçada, humilhada, apanha, perde dentes, sangra por dentro e por fora, mas não desiste. Pelo contrário, em toda sua “via crúcis” parece sair elevada em sua grandeza humana. Sim, Ree é uma estóica. Sofre seus infortúnios de maneira austera. Ela parece estar consciente de sua própria tragicidade. A atriz Jennifer Lawrence que faz Ree é sensacional. Seus traços finos e gestual quase ingênuo só fazem realçar o sentido trágico da personagem. Jennifer é um achado, consegue dar conta de todas as emoções e sensações da personagem de uma maneira assustadora. Aliás, todo o elenco (sem exceção) é excelente. Debra Granik se mostra aqui uma expert em dirigir atores e conseguir extrair deles interpretações muito acima da média. Com muito pouco ou quase nada, a diretora consegue criar climas preciosos, ora de ternura, ora de extrema violência e suspense. Preste atenção numa cena em que umas das personagens segura uma serra elétrica. Debra Granik é tão genial que sabe brincar com nossos instintos assassinos e ou sanguinolentos sem nunca precisar de fato cair no estereótipo dos filmes de violência ou suspense. Some-se à isso o filme tem uma fotografia deslumbrante, de encher os olhos mesmo e uma trilha que apesar de pontuar a ação dramática não enfia goela abaixo do espectador uma emoção pré-fabricada ou falsa. Aqui o jogo é limpo e as regras são claras. Eis ai a beleza desse filme. O filme começa e termina com canções de "ninar" que dizem muito sobre o filme. Preste atenção!
”Winter's Boné” é uma adaptação do romance homônimo de Daniel Woodrell escrito em 2006 e já ganhou vários prêmios importantes por ai. Inclusive é considerado pelos críticos como um dos fortes concorrentes ao Oscar de 2011. Seja por esse motivo ou não, se eu fosse você assistiria 'Winter's Bone' correndo.
Kick-Ass: Quebrando Tudo
3.9 2,8K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Confesso que quando fui assistir o filme "Kick-Ass" no cinema estava sem muita expectativa.
Nem tinha lido nada sobre um filme, mas um amigo lá no twitter (que tem o mesmo gosto cinematográfico que eu) disse que era muito bom e lá fui eu assistir.
O filme conta a história de Dave Lizewski, um garoto nerd, que um dia tem um ideia mirabolante: comprar uma roupa de super-herói e sair à caça de alguém para defender.
Dave é um típico adolescente nerd (americano), estudioso, feioso, desengonçado e viciado em internet e em masturbação.
Partindo dessa apresentação do personagem principal, o diretor Matthew Vaughn vai aos poucos construindo o seu enredo.
Dave perdeu a mãe e aprende que tudo continua e está absurdamente entediado com sua vidinha e “resolve” virar super-herói, mas, antes faz uns treinamentos hilários na frente do espelho vestindo o que seria sua fantasia de herói, uma roupa verde e com riscas amarelas. O treinamento se estende para a rua e numa tarde qualquer aparece sua chance, bandidos estão assaltando um carro e ele resolver intervir. Os bandidos riem. O garoto não se dá por vencido e enfrenta-os. Acaba levando uma facada na barriga e enquanto foge é atropelado por um carro. Tudo é filmado com extrema violência e realidade, mas o humor negro que perpassa o filme todo não deixa com que o filme se torne gratuito. Enquanto Dave se recupera no hospital, somos apresentados a mais dois personagens: um pai e um filha. O pai ensina a menina de 11 anos de idade como suportar um tiro. Ele atira nela. Ela voa longe. Mas suporta.
É desse componente esdrúxulo que brota o encantamento dessa película.
Dave sai do hospital e não desiste de sua missão de se tornar um herói.
Num golpe de destino, ele se mete numa enrascada com bandidos violentos e a cena da briga entre eles acaba sendo filmada e cai no Youtube.
Dave vestido de Kick-Ass vira um sucesso, roupas iguais à dele são vendidas, quadrinhos são feitos com seu nome, festa e tudo mais.
Era tudo o que Dave sonhava, mas falta algo e além do mais ficamos sabendo que o garoto se meteu numa enorme enrascada e está jurado de morte.
Aos poucos, o diretor também insere na trama, uma garota linda e popular por quem Dave se apaixona. Ela se aproxima dele por achar que Dave é gay e seu sonho sempre foi ter um amigo gay. (Olha o esdrúxulo ai de novo).
O filme é bem complexo e tem várias reviravoltas, mas o que impressiona realmente é como o diretor Mattew Vaughn dá conta de todas as nuances propostas pelo enredo.
Kick-Ass é um filme ousado e extremamente perigoso, por se tratar de um filme hibrido que possui várias linguagens e todas elas convivendo em harmonia durante a execução do projeto.
O filme possuiu cenas cômicas, trágicas, densas, tensas, violentas, bizarras, românticas e tudo isso embalado por uma pegada pop, com visual de quadrinhos e trilha sonora altamente competente.
Durante o filme, ficamos sabendo que o Pai e a Menina que vemos logo no começo são “heróis” de verdade e os dois tem como missão, vingar a morte da mãe. Por isso, então do treinamento e do tom por vezes amargo da história.
Chega a ser sintomático que numa cena aparentemente desnecessária no início do filme, os alunos e Dave estejam lendo a peça “Hamlet” de William Shakespeare.
Pra quem já leu essa obra-prima do bardo, sabe que a trágica história de Hamlet possui como tema principal a dúvida entre vingar ou não a morte do seu pai morto por interesse por seu tio.
“Hamlet” é sem sombra de dúvida a melhor e maior obra sobre a vingança já escrita na dramaturgia mundial e é obvio que Kick-Ass bebe nessa fonte.
Com muita idas e vindas, com um ritmo alucinante/engraçado/violento/trágico/triste o diretor estreante na condução de longa metragem consegue conceber um filme extremamente atual, sem ser ingênuo, bobo ou apelativo.
É um filme pop sim, e isso não é nenhum demérito, muito pelo contrário, engrandece a genialidade e sensibilidade de Matthew Vaughn na coordenação dos trabalhos.
Os atores estão todos ótimos, Nicolas Cage como Big Daddy está excelente, irônico e trágico na medida certa. O jovem ator Aaron Johnson que interpreta o protagonista Dave é muito bom também, consegue segurar a onda de uma personagem com várias caras; nerd, apaixonado, herói etc etc. Mas o filme não seria o mesmo sem o talento e o brilho de Chlöe Moretz, uma pequena grande atriz que simplesmente arrasa durante todo o tempo em que aparece. O filme é dela e isso tem que ser falado, sim. Carismática, engraçada, debochada e dramática quando preciso, a atriz mirim dá um show e nos encanta e faz com que nós, espectadores, torçamos por sua personagem.
O filme tem seqüências ótimas de ação e adrenalina, orquestradas com uma precisão cirúrgica pela direção, a trilha por vezes irônica que embala as cenas ajuda a compor um clima de estranhamento tal qual o pretendido por Bertolt Brecht.
Enfim, “Kick-Ass” é um filme divertido e trágico, com reflexões contemporâneas interessantes (inclusive tem uma crítica mordaz endereçada aos reality shows e os limites cada vez mais esgarçados dos seus realizadores) e é também um excelente retrato da juventude atual, que sabe, sente e percebe que existe um problema, um vazio existencial, mas, não sabe como resolver isso tudo.
Se você quer ainda mais um motivo para correr para a sala de cinema e se deliciar, rir, chorar, se emocionar com esse filme, então lá vai: “Kick-Ass” é o “Kill Bill” do século XXI e o diretor Matthew Vaughn é Quentin Tarantino.
Para Minha Irmã
3.3 111TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros"
Caio Fernando Abreu
"À Ma soeur" é um filme sobre a tragédia de carregar um corpo. Seus desejos, suas culpas e suas mortes.
Não conhecia o cinema da diretora francesa Catherine Breillat, mas confesso que esse filme me deixou encantado. Especialmente pela maneira realista como a cineasta trata suas imagens e personagens, sem, no entanto se deixar levar por um mero registro documental dos fatos. Não, Catherine Breillat faz cinema. Um cinema poderoso, forte, ousado e pungente. É um filme urgente em seus temas e personas.
O filme conta a história de duas irmãs, uma é linda e sedutora, a outra (dois anos mais jovem que a primeira) é gordinha, solitária e desbocada. A diretora foca seu olhar aguçado e perspicaz na relação de amor, ódio, inveja e proteção entre as duas. Logo nas primeiras cenas, as duas estão passeando pela cidade (é feriado e a família toda viajou para uma casa no campo). O passeio aparentemente inocente ganha contornos outros, quando já cansadas de andar, as duas resolvem parar numa lanchonete. O local está cheio, sem mesas vagas. Um jovem diz para as duas se sentarem à mesa com ele. Elas sentam. Fazem seus pedidos. O jogo de sedução entre a irmã mais velha e o jovem tem início. A mais nova toma sua banana split. O jovem e a irmã mais velha se beijam. No caminho de volta pra casa, o moço dá carona para as duas. Mas, a irmã mais velha diz para a mais nova ir andando para a casa e esperá-la no portão, para que seus pais não desconfiem de nada. A irmã mais nova consente.
Elena tem quinze anos e sabe que sua beleza desperta a atenção dos homens.
Anais tem doze anos e é extremamente consciente do mundo, das relações entre homens e mulheres e sofre calada sem ter com quem dividir sua “solidão”.
A primeira cena já dá a dimensão poética de Anais. Nessa cena de abertura, a menina entoa uma espécie de lamento mental: “Estou ficando tão entediada. Toda a minha a vida, todos os dias e noites. Estou ficando tão entediada. Se ao menos eu pudesse achar vivo ou morto um homem... um corpo... um animal, eu não me incomodo... só para sonhar...”.
A menina repetirá esse mesmo lamento em cenas chaves do filme. A mais dolorida delas é quando toda sua família se “diverte” na beira da piscina e ela está sozinha nadando dentro d’água... ela canta o mesmo lamento com pequenas modificações e beija os pilares da piscina, numa repetição pueril das seduções de sua irmã. É uma cena triste e ao mesmo tempo engraçada. E a diretora e atriz conseguem transmitir o tom exato da angústia da garota. A irmã mais velha também está angustiada, pois Fernando (o jovem que ela seduziu na lanchonete) deseja transar com ela. Ela hesita. Daqui para frente, não vou revelar mais o enredo, pois estragaria a surpresa de quem assiste. Mas digo que Catherine Breillat consegue fazer um filmaço com um enredo aparentemente simples. O segredo está no absoluto domínio com que a diretora filma os personagens e a atenção com que mostra os corpos das personagens, sobretudo Elena e Fernando, optando por não esconder nada, a diretora mostra tudo, sem cair num fetichismo banal. Consciente disso, consegue mesclar tesão e tensão em suas longas cenas, com destaque especial para a cena em que Elena recebe Fernando em seu quarto e Anais vê toda a encenação do amor e do sexo.
Durante o filme fiquei lembrando do conto da escritora Clarice Lispector chamado “A Descoberta do Mundo” em que uma garotinha de 13 anos descobre através de uma amiga como nascem os filhos. Ela não sabia e fingia que sabia. As duas estão na rua, andando. A menina então apressadamente revela o mistério da vida ali mesmo na esquina. “Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.”
Ao final do conto, Clarice escreve: “Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar um flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita.”
Não... em “À Ma Soeur” a vida não é bonita. Ao final e afinal o filme se torna muito mais que um mero rito de passagem de duas garotas para a fase adulta... RECOMENDO!
Amigas de Colégio
3.4 216TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Lukas Moodysson é um diretor sueco dos mais interessantes. Seus filmes (e com esse de agora, eu já vi todos) são absolutamente singulares e diferentes. É um diretor que não se copia a si mesmo. "Fucking Åmål" é a prova disso.
Contando a história de Agnes e Elin, duas garotas que moram numa cidadezinha pacata da Suécia, o diretor conta a história da adolescência de um modo geral.
Agnes é uma garota reservada, culta e estranha. Elin é o seu exato oposto, linda, falante e popular. Quando o filme começa, já somos informados logo de cara que Agnes é apaixonada por Elin e é lógico que a garota nem sabe quem ela é. É uma paixão platônica e Agnes sofre muito com esse sentimento.
O filme não força nenhuma situação, muito pelo contrário, pois o enredo parece correr solto, fluído e até mesmo descolado, em suma, algo bem juvenil. Estão lá, a escola, os pais, as brincadeiras, o bullying, os namoricos, o álcool, o sexo, os ícones pop e, sobretudo, as dúvidas que todo jovem passa nessa fase da vida.
O grande trunfo de Moodysson é mostrar isso tudo de maneira limpa e simples. Ele não faz rodeios e nem cai em didatismo e muito menos trata o adolescente como um ser idiotizado típico de filmes americanos que passam na Sessão da Tarde. Não. Essa não é a opção estética da direção. O filme é cru. A textura das imagens deixa isso bastante claro.
Daí que as histórias pessoais de Agnes e Elin se cruzam num dia inesperado. Elin está farta daquela vida onde nada acontece, ela tem desejos e vontades que não condizem com aquela cidade que quando as coisas legais da Capital chegam lá já estão fora de moda. Agnes obrigada pela mãe, dá uma festa de aniversário. Òbvio que ninguém aparece. Ela não tem amigos. Excetuando uma menina paraplégica, que ela desdenha. Sem ter para onde ir, Elin aparece na festa com a irmã. Elas bebem um pouco e quando já estão quase para irem embora, a irmã faz uma aposta com a outra, de que se ela beijar Agnes na boca ela lhe dará uma quantia em dinheiro. Elin topa e beija Agnes e vai embora. Agnes fica lá com a boca toda manchada de batom vermelho de Elin. A cena é ótima. Sofrida, engraçada e sublime ao mesmo tempo. No caminho para uma outra festa, Elin quer voltar e se desculpar com Agnes, mas a irmã tira essa ideia da cabeça dela. Ao chegarem na festa, mais do mesmo. Pegação, bebidas e papo fútil. Após ser cantada por um garoto e passar mal, Elin vai até a casa de Agnes para conversar sobre o ocorrido. E é desse movimento contrário que surge o inesperado. Primeiro uma amizade e um interesse mútuo e pouco a pouco uma possível paixão. Moodysson nunca entrega o óbvio ao espectador e a cena do beijo entre as duas garotas é muitíssimo bem trabalhada. A trilha sonora é um achado, como a preciosidade utilizada nessa cena do beijo. O efeito de estranhamento brechtiano está ali o tempo todo. A cena é romântica, mas também é atrapalhada, boba, ingênua e engraçada. Ao final daquela noite, Elin promete ligar para Agnes e adivinhem... Ela não liga. E ainda se enrola ao contar a história pra a irmã e se vê obrigada a começar um namoro com um garoto para não cair em contradição.
Elin entra em parafuso e não sabe como lidar com a descoberta de uma sexualidade que nem ela mesma sabia que poderia sentir. Mas Moodysson foge de todo e qualquer simplificação babaca do tema. Não força um sofrimento caricatural e muito menos, uma aceitação pueril. Não. Elin apesar de todo o clichê é uma garota inteligente que deseja fugir daquele futuro que a maioria esmagadora das mulheres de sua cidade terá: casar, engravidar, cuidar do filho e da casa e blá blá blá. Não. Ela quer mais. Mas o quê? Agnes deseja apenas ser feliz no agora. Seu pai conta-lhe que quando tinha a idade dela também passou pelos mesmos problemas e que quando participou de uma festa da escola 25 anos depois percebeu que o cara mais popular da escola não tinha dado em nada, que as gostosonas da turma tinha embarangado e etc... mas a garota não compra muito essa história do pai não. Ela quer o agora. Não o futuro. Agnes sabe o que quer. Elin não.
O filme é um rito de passagem. É a descoberta de nós mesmos. Dos nossos desejos. Vontades. É muito mais que um filme sobre garotas lésbicas. Isso é apenas um dos temas. Nem é o mais importante. O importante ali é construção de uma identidade. O autoconhecimento daquelas meninas. A decisão de Elin e Agnes se dá numa cena genial. Moodysson é simples, direto e requintado ao mesmo tempo. É uma ótima sacada, onde não há espaço para uma problemática tão comum em filmes com esse tema. E o que dizer da última cena? Ou a anti-cena? A não-cena. Pois é o diretor não faz concessão nem em sua derradeira cena. Ponto pra ele. Aliás, todos os pontos pra ele.
50%
3.9 2,2K Assista AgoraHoje de madrugada assisti o filme "50%" do diretor Jonathan Levine. É um bom filme sobre um tema difícil e pesado, mas a abordagem do câncer é atenuada pela direção. Mas está longe de ser uma leveza acorvadada e comercial. A graça surge aqui em momentos absolutamente inesperados. E o drama também. O fato é que o riso e a lágrima convivem juntos e bem. Um filme gracioso, que caminha num limiar bastante perigoso. Às vezes parece que vai cair numa bobagem atroz, às vezes quase cai num sentimentalismo patético, mas logo retoma a vontade inicial de se discutir a doença sob uma outra ótica. Gostei. Não é um filme grandioso, mas também não é um entretenimento barato. Acima de tudo, o filme revela o quanto somos despreparados para a vida. Essa que é sempre mais urgente e quase sempre é deixada de lado.
Mary e Max: Uma Amizade Diferente
4.5 2,4KTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"MARY E MAX" é uma composição no qual é possível encontrar em meio à imperfeição humana um pouquinho de sublime que seja.
O filme utiliza-se de técnica de desenho em stop-motion para contar a história de Mary, uma garotinha de 8 anos, que mora na Austrália e que tem os olhos da cor das poças de lama e uma marca de nascença da cor de cocô. Sua mãe é alcoólatra e seu pai trabalha muito. A menina não possui amigos e é constantemente humilhada na escola.
Max é um senhor ranzinza e problemático que mora em Nova York, que sonha em ter amigos e adora comer sanduíches de chocolate.
Um belo dia, Mary tem uma ideia de escrever para alguém de outro país para perguntar como os bebês nascem por lá?
A correspondência entre os dois começa a dar um sentido para a existência vazia de ambos e é possível dizer que até ficam mais felizes.
Mas, alguma coisa sempre falta.
A história toda é conta de maneira narrativa por um narrador onisciente que é um dos grandes achados do filme. Cabe a esse narrador dar um sentido às emoções desses dois personagens, além de situar a nós (espectadores) o que está se passando na cabeça dos personagens.
O longa é contado quase que exclusivamente de maneira epistolar; são as cartas trocadas entre Mary e Max que dão densidade ao roteiro e “apresentam” melhor essas duas personagens.
É enternecedor acompanhar os questionamentos pueris de Mary e é angustiante ver o desespero de Max em tentar não decepcioná-la.
Ao longo do filme, ficamos sabendo que Max tem uma doença chamada de Síndrome de Asperger que interfere diretamente no relacionamento interpessoal e no da comunicação.
A cada carta de Mary, Max entra em parafuso e até que em uma delas Mary pergunta sobre o amor e Max não agüenta e é internado com diagnóstico de depressão e fica 8 meses internado.
Mary acha que o amigo recém-conquistado não gosta mais dela e queima todas as cartas que ele lhe enviara.
Quando saí da clínica Max tenta evitar escrever para Mary, mas o sentimento de amizade entre os dois é mais forte e eles voltam a trocar cartas.
Daí em diante, o enredo ganha bastante agilidade e uma porção de fatos acontecem na vida de ambos... não posso contar mais nada, pois corro o risco de estragar a surpresa de quem ainda não viu.
Digo, no entanto, que é um belo filme... os contrastes entre as cores quentes do lugar onde Mary mora e o cinzento de Nova York de Max ganham significados outros, muito além da mera caricatura.
Apesar de ser um desenho, é um filme forte, adulto, tratando de temas como solidão, depressão, suicídio, bullying, alcoolismo e relações familiares e sociais. No entanto, não é um filme pesado, muito pelo contrário, sua verve lúdica impede que o filme caia num fatalismo bobo. Sim, o fatalismo está presente, principalmente nas cenas em que Mary (já mais velha) vai se tornando um retrato fantasmagórico de tudo o que mais odiava em sua mãe. É uma das cenas mais dolorosas no meu ponto de vista... ver Mary se transformando naquilo tudo que não compreendia em sua mãe é muito triste.
Com “Mary e Max”, o diretor Adam Elliot consegue algo bastante difícil: utilizar-se de personagens caricaturais, sem, no entanto, cair numa representação banal deles.
A caricatura é usada a favor do filme, como mecanismo de possível distanciamento num primeiro momento, para pouco a pouco ir mostrando que somos muitos mais parecidos com aqueles personagens do que supúnhamos no começo.
É um técnica brechtiana, eu diria, e por falar em Brecht, o filme tem muito do teatro épico do dramaturgo alemão, especialmente no tratamento dado ao narrador da história e também do uso do estranhamento inicial nos personagens principais.
Adam Elliot faz um filme pessimista, sim, mas não derrotista. É um filme que parece nos dizer: sim, fracassamos como seres-humanos, mas, podemos tentar ainda extrair algo de bom nessa balbúrdia toda. O famoso “já que estou no inferno, abraço o capeta”.
É justamente esse sentimento que faz com que Mary e Max não se percam num desengano suicida. Aos poucos vão descobrindo que as pessoas são o que são e que todos têm um ou mais “motivos” para ser como são.
Aos poucos Mary e Max vão se aceitando como indivíduos e nesse processo árduo de individuação vão aprendendo a aceitar os outros também.
Pode parecer clichê, no entanto não é...
Talvez seja essa a busca incessante do humano, talvez seja esse o motivo do vazio (lacaniano) que nada, nem ninguém aplacam, talvez seja essa a ideia de possível felicidade que tanto buscamos. Talvez... talvez...
“Mary e Max” é um filme que vai na contramão dessa sociedade normativa que estamos vivendo: onde temos que ser saudáveis, legais, ter dinheiro, amantes, status, o melhor corpo, a melhor roupa, o melhor carro, o melhor emprego, a melhor casa e a PIOR VIDA.
“Mary e Max” é um filme que mostra como uma sociedade capitalista se deteriora a olhos vistos... uma sociedade totalmente voltada para a cultura (evocada por Guy Debord) do parecer ter. Hoje todos aparentamos algo, mas, raramente somos algo.
É nesse contexto absolutamente massacrante que a animação se insere.
O final pode até parecer pessimista aos menos insensíveis... Mas não é. Muito pelo contrário. No meu ponto de vista, “Mary e Max” é uma linda ode ao ser-humano.
Vidas sem Destino
3.7 659TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O que leva crianças e adolescentes a serem violentos?
Dois filmes parecem responder à essa questão.
São eles “A Fita Branca” de Michael Haneke e “Gummo” de Harmony Korine.
O primeiro é alemão e lançado recentemente e o outro é um filme americano de 1997.
“A Fita Branca” é um filme austero, todo em preto e branco, sisudo, com uma fotografia deslumbrante, beirando o documental às vezes.
Já “Gummo” é um filme estranho, dark, niilista, retratando sem meias palavras o vazio existencial de nossas vidas.
Ambos refletem sobre a violência juvenil.
No filme de Haneke é possível responder que a repressão imposta pelos adultos deflagra a maldade dos menores.
Já em “Gummo” não há repressão, muito pelo contrário, os adultos são mostrados no filme como “crianças grandes”, se comportando de igual pra igual com os jovens, assim chega a soar sintomático que uma das personagens (a avó de um dos jovens) esteja em estado letárgico, sem falar, nem andar e sobrevivendo com a ajuda de aparelhos.
Se não há repressão, de onde vem o deflagrador de tamanha violência ou perdição?
Talvez no seu oposto, a liberdade excessiva.
Jovens criados sem nenhum tipo de educação nem familiar nem escolar, que se acham donos do mundo.
“A Fita Branca” e “Gummo” são filmes parecidos, mas absolutamente diferentes, juntos fornecem algumas pistas importantes para a análise de um tema controverso; o mal e nosso comportamento em sociedade.
Em “A Fita Branca”, o vilarejo é um lugar pacato e religioso, já em “Gummo” vemos uma cidade de Xenia, em Ohio, um lugar imundo devastado por um tornado que matou muita gente, até famílias inteiras.
O lugar como metáfora para os habitantes, isso é sintomático nos dois filmes.
A cor branca é outro ponto em comum entre os dois filmes.
No filme de Haneke o branco é mostrado como símbolo de pureza, em “Gummo” como exclusão, pois somos jogados dentro do padrão de vida dos “White Trash” ou Lixo Branco, em outras palavras pessoas brancas excluídas pela sociedade, pessoas de baixa renda.
Jung escreveu que sem aceitarmos nossa Sombra seremos indivíduos pela metade, Freud formulou toda uma teoria complexa à respeito dos mecanismos de defesa e liberação de desejos recônditos que habitam nossa inconsciente...
Parece que ambos (Freud e Jung) estão mais atuais do que nunca, a violência antes caseira e familiar ou então abafada e velada tem adentrado nossas casas e mentes através de noticiários televisivos onde a violência é mostrada, re-mostrada até a exaustão, e essa mesma exaustão ocasiona a banalização do mal.
O Mal nunca é banal, e está ai o agente complicador de uma sociedade que se deteriora cada dia mais, em busca de ideais utópicos tanto de beleza quanto de consumo.
E quem não é belo e magro como as modelos que estampam as capas de revistas? E quem não tem o carro do ano como o jogador analfabeto do time de futebol?
O que essas pessoas fazem? Como lidar com a frustração de não ser o melhor, o mais bonito, o mais gostoso?
Para quem lida bem consigo mesmo e com sua imagem a resposta é fácil (e não será dada aqui.).
Mas e pra quem não tem uma boa relação consigo mesmo e com sua imagem?
Como agüentar o tranco de existir?
Agora imagine tudo isso numa idade em que a pessoa está em formação e teremos o combustível ideal para todo ato de perversidade e violência.
É desse material tão retratado em outros filmes, que o diretor de “Gummo” extrai seqüências antológicas, brincando sempre com o duo violência/lirismo acompanhamos atento o rito de passagem daqueles meninos e meninas.
É um triste relato, algumas cenas são extremamente controversas, a que mais me chamou a atenção é aquela em que os meninos depois de venderem os coelhos vão transar com uma prostituta.
A primeira cena mostra o maior deles entrando no quarto da tal prostituta e não vemos nem ouvimos nada, a câmera fica parada do lado de fora, na segunda vez o menino menor entra no quarto da prostituta e ai, vemos que ela é uma menina portadora de Síndrome de Down, e está vestida com vestido de boneca e maquiagem exagerada.
Ela se apresenta e pede para cheirar a mão do menino e diz que a mão dele cheira cereja e que é feminina, ela pede pra ler a mão do menino, ele consente, ela diz que ele vai ser milionário e que sua esposa morrerá num incêndio, o menino retruca que não tem esposa, ela então diz que ele vai ter, mas que não será ela.
Uma cena linda, que beira o sublime e que me fez lembrei de “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, na cena em que Macabéa visita a cartomante Madama Carlota e ela lhe diz coisas boas e a nordestina então se sente grávida de futuro.
Outro ponto interessante do filme são os “depoimentos” que os jovens dão durante o filme, fazendo uso de câmera amadora com imagem granulada o diretor filma os atores falando texto ora olhando para a lente, outra vezes faz uso da voz off enquanto mostra o cotidiano deles, o relato mais forte vem do protagonista que diz:
“Mundo querido, tenho uma confusão em minha cabeça por todos os lados do meu cérebro. Eu tento, tento fazer algo neste mundo de merda, mas penso que é um erro desde sempre. Não sinto culpa por querer me matar... já tentei antes. Eu trabalho desde os 13 anos... Viver nunca foi difícil pra mim, mas é que tudo está ficando ruim e sem graça... morrer, morrer, morrer.”
E no momento seguinte o menino mais novo diz:
"A vida é bela. Realmente é. Cheia de beleza e ilusão. Viver é genial. Se não fosse por isso, estaria morto."
É o momento chave do filme, onde os personagens ambos amigos, ambos violentos dizem em palavras o que realmente sentem.
O filme é cheio desses depoimentos e dessa necessidade quase que redentora de falar, de colocar pra fora aquilo que está sufocado dentro do individuo.
O diretor sabiamente faz do espectador um psicanalista daqueles personagens, ouvimos, ouvimos, vemos muita coisa... Mas assim como na psicanálise não podemos curá-los... Infelizmente.
71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso
3.7 74TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“No dia 23 de dezembro de 1993, Maximilien B., um estudante de 19 anos matou três pessoas num banco em Viena. Pouco depois, ele se matou com um tiro na própria cabeça.”
É dessa maneira que o cineasta Michael Haneke começa seu filme intitulado “71 fragmentos de uma cronologia do acaso".
Fazendo uso de uma técnica jornalística chamada “pirâmide invertida”, o diretor austríaco coloca logo na abertura de seu filme, o ápice da notícia.
Nesse procedimento ensinado nas faculdades de jornalismo, o objetivo é chamar a atenção do leitor para que ele continue com a leitura e busque maiores informações sobre o ocorrido ou então vire a página.
Se o leitor opta por continuar a ler a notícia, os parágrafos a seguir, trazem informações relevantes para o entendimento do fato. Ainda segundo as normas jornalísticas, as outras informações devem sempre estar em ordem decrescente de importância.
Michael Haneke utiliza-se desse procedimento para subvertê-lo logo mais.
O relato apresentado aqui é frio e distanciado. Haneke filma o ser humano alienado pelo cotidiano, em ações repetitivas e quase instintivas, sem a menor relevância para a história (aparentemente).
O filme mostra personagens destacados da realidade. São pessoas e situações banais, mas sublinhadas pela caneta marca-texto poderosíssima do cineasta.
Aos solavancos e digressões temporais, vamos conhecendo os personagens principais da história: um menino que fugiu de casa e de país e vaga sem rumo pela cidade, um velho que fala ao telefone enquanto vê TV, um casal que procura uma criança para adoção, um bebe doente e pais desesperados e um jovem estudante que treina obsessivamente ping-pong para um campeonato.
Esses personagens são apresentados em cenas distanciadas, onde o diretor apenas filma-os em sua rotina. Haneke consegue o improvável: com suas cenas frias, ele eletriza o espectador. Há uma aura de mistério em cada fragmento. Como se cada um desses pedaços possuíssem, se desmembrados, significância próprias. Há uma espécie de liturgia nas ações físicas dos personagens hanekianos. O hábito realmente não faz o monge. Mas Haneke prova que do habitual pode sair o extraordinário.
Para conseguir tal intento, o diretor brinca com o os conceitos clássicos das tragédias. O “Ágon” brota do diálogo ruidoso entre o que é mostrado e o que o espectador imagina ou fabula. Pois já sabendo do desfecho trágico pelo “Tirésias” contemporâneo (os jornais escritos ou falados), o espectador vive a agonia da espera. Ele sabe o que vai acontecer, mas não sabe como vai acontecer. Haneke é um legitimo manipulador e brinca com sua platéia. Ora pendendo para os instintos sádicos do público, ora puxando mais pro lado masoquista de quem o assiste.
Numa entrevista dada ao Jornal Folha de SP do começo de 2010, Haneke declarou: “O cinema é a arte da manipulação. Isso é algo que não devemos esquecer nem quando fazemos um filme nem quando o assistimos. O que sempre quis é que meus filmes sugerissem uma dúvida sobre a realidade que mostram.”
E é justamente nesse embate entre o que é mostrado e a dúvida que fica nas entrelinhas que surge os momentos mais geniais de toda a filmografia do diretor.
Haneke produz um cinema incômodo, pois cutuca aquilo que varremos para debaixo do tapete: nosso instinto cruel e sem explicação. Haneke não faz tratados sociológicos, não responde nada. Apenas aponta, pontua e cutuca o vazio de uma sociedade hipócrita e letárgica. Os personagens de Haneke parecem estar dopados ou anestesiados. Como se realmente fossem figuras saídas de uma tragédia grega, parecem aceitar seus destinos sem maiores questionamentos. Sim, há o sofrimento. Mas um sofrer estóico, digno. Choram calados, solitários. E aqui o sofrimento não escolhe classe econômica, idade, etnia ou credo.
“Meu Deus, que os jovens vivam mais e que tenham saúde. E que eu viva mais e que tenha saúde e que Marie seja mais feliz e que me ajude melhor e com mais felicidade e que eu não pegue uma doença fatal e que não venha a Terceira Grande Guerra ou uma catástrofe nuclear, nem na minha vida nem na vida de nossos filhos e ajude a todos os que sofrem nesse mundo e eu te agradeço, Senhor, amém.”
Essa é a oração que um senhor faz todos os dias quando acorda. O mesmo que quando diz “eu te amo” para a esposa num jantar cotidiano recebe um “O que você tem? Está bêbado ou o quê?”. A maneira encontrada pelo diretor para solucionar o impasse é assustadora.
Outras cenas chamam a atenção como o momento em que o garoto que fugiu de casa observa o movimento no metro e passa perto das seduções de um mundo capitalista. Estão lá as máquinas de tirar foto, de coca-cola, de sorvete Cornetto, de cafés e achocolatados, até chegar numa imensa banca de revistas e se deparar com uma prateleira com inúmeros gibis e revistas. O garoto vai girando a prateleira e a câmera de Haneke vai mostrando o que ele está vendo: gibis do Garfield, revistas pornográficas, de luta livre, do pato Donald. Ele olha para um lado. Olha pro lado. E rouba uma delas. Nesse pequena cena, Haneke coloca conceitos caros aos pensadores Guy Debord e Jean Baudrillard.
“Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” - ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio.”
Esse trecho retirado do livro “À sombra das maiorias silenciosas” do Baudrillard ajuda a mensurar o cinema praticado por Haneke, assim como esse trecho retirado do livro “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord:
“O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é *o que aparece é bom, o que é bom aparece*. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência”.
Haneke é um hábil manipulador desses conceitos. Sabe que o público é um viciado em fortes emoções e brinca com isso. Vivemos numa sociedade espetacularizada, que tenta através da violência aparecer de alguma maneira. No filme, isso fica claro, quando o diretor mostra insistentemente imagens de programas jornalísticos com matérias de guerras e ataques terroristas. Essas matérias são as responsáveis por disseminar o medo numa população já amendrontada por noções familiares hipócritas, pela religião e sua culpa e pelo medo de perder o emprego ou de dizer eu te amo ao outro.
Sobra até espaço para uma matéria com o astro pop Michael Jackson, respondendo as acusações de pedofilia. O que um astro como Michael Jackson estaria fazendo ali no meio dessas cenas? Talvez o diretor queira nos responder que o vazio de quem é visto é o mesmo vazio de quem vê. Inexistem os limites entre um e outro. Um silencia o outro. Um serve ao outro. Sem ídolos a sociedade do espetáculo falece. Sem fãs não existem ídolos.
E é nesse ponto nevrálgico que o diretor foca sua câmera. Um mundo vazio de significado forma pessoas sorumbáticas, some-se a isso os apelos de uma mídia inescrupulosa alardeia que somente possuindo aquilo que é vendido por ela, encontraremos uma possível felicidade. Compramos. Somos felizes num curto período de tempo. A tristeza bate de novo. Compramos mais e mais. E assim o circulo vicioso não tem fim. Até que num dia aparentemente normal “explodimos” tudo. Até que um dia, ao entrar num banco lotado, atiramos contra tudo e todos e depois estouramos os nossos miolos. Quem está a salvo?
"Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago!" [Clarice Lispector]
Reencontrando a Felicidade
3.5 622TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Logo de cara, digo: Sou fã do John Cameron Mitchell, diretor de dois filmes excepcionais.
Também logo de saída, vou dizendo: Estava ansioso demais para assistir “Rabbit Hole”, seu terceiro filme. Quando vi o trailer entrei em choque. Tudo era muito diferente de suas obras anteriores: o musical deslumbrante/triste "Hedwig and the Angry Inch", que ele além de dirigir e escrever o roteiro, é também o protagonista do filme e sua obra-prima chamada “ShortBus”, filme tão magistral que sou incapaz de escrever uma só linha sobre ele.
Tendo Nicole Kidman como protagonista, o filme conta a história de um casal que perde um filho de quatro anos de idade num acidente. Optando por não entregar tudo de mão beijada, o diretor prefere trilhar o caminho mais árduo nesse tipo de produção. Abrindo mão de criar uma falsa identificação no espectador sobra espaço para construir personagens de carne e osso e não meros arremedos ficcionais.
Confesso que achei essa opção do diretor extremamente arriscada e no começo me senti desconfortável com a história. O roteiro não andava. Parecia que algo segurava a história de prosseguir. Foi quando percebi que esse aparente “andar em círculos” do roteiro era proposital. Os personagens não sabem como lidar com a perda e estão perdidos. Genialmente, Mitchell personifica o estado psicológico dos personagens em seu roteiro. Não vou negar, é um filme lento, onde percebemos o tempo todo, certo segurar as emoções e pouco a pouco John Cameron Mitchell vai se mostrando o cara certo para esse filme. Seus outros dois filmes são espalhafatosos, rococó, barroco com linguagem underground, ousada, com cenas de sexo explícito e ótimas atuações. Então, nesse novo filme, assim como os personagens, a direção também precisa se segurar. E o filme começa a ganhar contornos mais profundos e belos. Sutilmente, o diretor vai revelando mais e mais detalhes do acidente. Ficamos sabendo assim que o filho do casal Rebecca e Howie morreu atropelado na frente de casa, quando correu atrás do cachorro que correu atrás de um esquilo. Para lidar com a perda, o casal passa a freqüentar reuniões onde pais que perderam seus filhos repartem essa dor imensurável. Ao ouvir uma mãe dizendo que Deus levou seu filho, pois precisava de outro anjo ao seu lado, Rebecca não agüenta e pergunta: “Por que ele não fez outro anjo então? Afinal de contas ele é Deus! Por que ele simplesmente não criou mais um anjo?”.
Rebecca não tem a muleta da religião como acalanto para o seu desespero. Sua mãe que também perdeu um filho (em circunstâncias que nesse momento ainda não sabemos quais foram) confronta a filha: “Não está sempre certa, sabe? E se existir um Deus?”. Rebecca retruca: “Então eu direi que ELE é um canalha sádico.” A mãe então interrompe a conversa. Rebecca numa tréplica crudelíssima diz: “Não me admira que você goste d’Ele. ELE se parece com papai.”
E assim sempre segurando e soltando a linha de uma vez, Mitchell vai formatando um drama extremamente pequeno, que chega quase a nos escapar por vezes.
Impossível assistir “Rabbit Hole” e não lembrar de duas outras obras que também falam do luto de perder um filho. A primeira delas é “O Anticristo” do diretor dinamarquês Lars Von Trier. Só que enquanto Lars é psicanalítico, Mitchell é psicológico. Pode até parecer que é a mesma coisa, mas quem assistiu aos dois filmes sabe do que eu estou falando. “O Anticristo” é uma obra severa sobre o luto e os meandros depressivos que uma mãe entra ao se sentir culpada pela morte do filho. Extremamente cruel, Lars chafurda seus personagens num abismo sem saída, num buraco negro d’alma. Mitchell está mais interessado em mostrar as tenuidades dessa privação tão repentina. A outra obra é “O Quarto do Filho” filme do diretor italiano Nanni Moretti, uma obra poderosa que retrata as conseqüências da perda trágica de um filho na vida do psicanalista Giovanni. Nesse filme italiano assim como em “Rabbit Hole” o foco central está mais em como os afetos são alterados pela tragédia do que na própria tragédia em si. “O Quarto do Filho” é um filme comovente e brilhante.
Essas três obras juntas ( “Rabbit Hole”, “Anticristo” e "O Quarto do Filho”) produzem um ótimo material sobre o ser-humano e a sensação de vazio que nada aplaca.
Numa das cenas mais pungentes do filme “Rabbit Hole”, Rebecca coloca no porão todos os objetos que a faz lembrar de seu filho morto. Observa as caixas e pergunta à mãe: “Isso nunca desaparece?”. A resposta dada pela mãe é uma das coisas mais sensações e reais que já vi. É uma cena arrebatada e arrebatadora. O filme é construído assim, de momentos luz/sombra, de pequenos clarões e trovoadas. Quase nunca há o temporal. Quase nunca. Mas ele está lá, ameaçando cair a qualquer momento e encharcar tudo o que aparecer pela frente.
Nicole Kidman assistiu “Rabbit Hole” do dramaturgo David Lindsay-Abaire no circuito off-Broadway e comprou os direitos da peça e convidou John Cameron Mitchell para conduzir os trabalhos. Essa escolha dela chamou muita atenção, pois Mitchell não é um diretor conhecido em Hollywood e seus filmes anteriores não tinham absolutamente nada a ver com a proposta desse novo roteiro. Ele aceitou e a escolha se mostrou extremamente acertada.
Nicole Kidman tem aqui uma interpretação magistral, dificílima, pois sua personagem cala a dor da perda quase que o tempo todo. Obrigatoriamente sua atuação tinha que ser mais contida, o que poderia ser um desastre, visto que nesse tipo de personagem o ator corre o risco de ser demasiado interno e só ele sentir as cenas e não saber como passar esses sentimentos para o público. Não é o que acontece aqui. Nicole dá um show, algo no nível de suas grandes personagens como nos filmes “As Horas”, “Dogville” e “Birth”.
A atriz Dianne Wiest que interpreta a mãe de Rebecca faz o contraponto ideal da filha. Rivalizando com ela em algumas das melhores cenas do filme. Assim como a ótima Sandra Oh, que interpreta uma das mulheres das reuniões de pais que perderam seus filhos freqüentados pelo casal protagonista. De maneira gradativa, Mitchell mostra nesses três perfis, as diferentes formas de lidar com um mesmo trauma. Isso é um dos aspectos que mais chamam a atenção no modo como conduziu a direção das atrizes.
O filme é de Nicole Kidman, muito se disse sobre o trabalho do ator que interpreta o marido dela no filme, Aaron Eckhart. Ouvi comentário de que ele teria engulido a atriz em cena. Eu discordo. Acho que o ator Aaron Eckhart é apenas correto. Só. A alma do filme é de Nicole, sinto muito. Seu papel é mais difícil. Ela cala. Ele estoura. Assistam a cena em que a personagem de Nicole está fazendo compras num supermercado e por acaso vê uma mãe negando doce ao filho insistente. Só uma grande atriz como ela pode interpretar a cena daquela maneira. Excepcional. Outra grande cena é a da revelação do acidente. Aliás, um dos pontos altos do filme.
O filme tem muito de Alice de Lewis Carrol. Lá pelas tantas tem uma discussão interessante sobre universos paralelos e Rebecca arremata: "Essa é apenas a versão triste de nós".
Toda a seqüência final é de uma grandiosidade na pequenez. Maravilhoso. Lembrei-me do quase final de “A Hora da Estrela” quando o autor Rodrigo S.M (na verdade, Clarice Lispector) ao ver a protagonista Macabéa atropelada escreve: “Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida”.
Assim é “Rabbit Hole”.
“Mas há a vida que e é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.” {Clarice Lispector}
Hedwig: Rock, Amor e Traição
4.2 256TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Já digo logo de cara: O FILME É SENSACIONAL.
John Cameron Mitchell além de escrever o roteiro, dirigir, é também o protagonista do filme.
“Hedwing” é todo contado em flashbacks e números musicais. A personagem principal é um transexual perfomático. O filme tem uma cena de abertura de tirar o fôlego, Hedwig canta e dança uma música sobre sua vida. A cena é hipnótica.
Aos pouco, o enredo vai se encarregando de contar a história dessa personagem.
Hedwing na verdade é Hansel, um garoto alemão, abandonado pelo pai, criado apenas pela mãe comunista ferrenha. Os dois habitam a parte oriental do Muro de Berlim. Hansel passa as tarde ouvindo música americana. Sua mãe não gosta nem um pouco e o reprime. Quando adolescente conhece Luther, que lhe propõe casamento. Sonhando em viver fora daquele mundo, ele aceita. Mas, tem que fazer uma operação de troca de sexo e assumir o registro de identidade de sua mãe. A cirurgia dá errado e ele fica com uma cicatriz e um pequeno pedaço de pênis, aproximadamente 1 centímetro. Hansel e Luther se casam. E nada daquilo que fora sonhado pelo rapaz acontece. Após um ano, Luther abandona Hansel. Nesse mesmo dia, o muro de Berlim é derrubado. Sem ter como sobreviver começa a trabalhar como babá e forma uma banda só com esposas de militares coreanos. Numa das casas em que trabalha como babá, conhece Tommy, rapaz tímido, católico e fã de banda de rock. Apaixona-se por ele e o ensina tudo sobre a profissão, compõe músicas juntos e iniciam um namoro. Um belo dia, ele também lhe dá um pé na bunda e vira um astro do rock com as canções que compuseram juntos, sem nem ao menos lhe dar algum tipo de crédito. Sentindo humilhada e roubada, Hedwing vai de cidade em cidade, onde o agora Tommy Gnosis (nome que ela colocou nele) se apresenta, numa tentativa de provar que ela é a estrela do rock.
A história é relativamente simples e é contada por meio de números musicais e efeitos de animação deslumbrantes. Os shows de Hedwing são poderosos, quentes, ela se entrega ao público como Cristo se entregou pelos humanos. È lindo ver a maneira como ela vive no palco. As músicas são um show a parte. Ora engraçadas, ora comoventes, os números musicais são o ponto alto do filme.
John Cameron Mitchell concebe uma Hedwing numa atuação simplesmente soberba. O diretor, ator e roteirista dá conta de todos os meandros da encenação de tão complexa personagem. Ele não se perde em nenhuma cena. Sabe exatamente o tom e o que fazer em cada fragmento do filme. Sua interpretação não é menos hipnótica do que a da própria personagem principal. Hedwing é ousada, apaixonada, apaixonante, impulsiva, frágil, guerreira, sensível, misteriosa, desvairada, extremamente humana.
“Hedwing” é a história do não pertencimento e do não merecimento. A personagem não se sente nem homem, nem mulher, é traída por todo mundo que se aproxima dela, é criativa e também insegura. Acompanhar a história de Hedwing é extremamente doloroso e divertido ao mesmo tempo. A história apesar de bastante trágica, não é monótona, a vivacidade de Hedwing não deixa.
A bem da verdade Hedwing era uma figura única, a frente de seu tempo, durante todo o filme uma frase de Friedrich Nietzsche martelou em minha cabeça: “ALGUNS NASCEM PÓSTUMOS”.
Essa frase definiu Hedwing tanto personagem quanto filme para mim.
Sua busca não é pelo sucesso, ou pelo glamour ou dinheiro e sim pela completude.
Durante a escrita desse texto, um amigo postou uma frase no twitter bastante pertinente também: "Preciso de uma coisa nova. De alguma coisa que possa, talvez, não ter sucesso" (Arne Lygre).
A canção do filme “A Origem do amor” é um verdadeiro deslumbre e reconta a história do Mito do Andrógino contada no livro "O Banquete" de Platão: houve uma época em que existiam três formas de humano: macho, fêmea e o andrógino. Os andróginos eram considerados “superiores”, quase iguais aos deuses. A ideia de androgenia correspondia a ideia de felicidade, completude. No entanto, essa “felicidade” despertou a inveja de Zeus, que os dividiu em dois: ‘Vou cortar cada um deles pela metade. Assim ficarão mais fracos, e ao mesmo tempo terão mais para nos oferecer, já que seu número terá aumentado. Andarão eretos sobre suas duas pernas’. Desde então, esses humanos seriam obrigados a vagar em busca de suas metades.
O filme trata dessa busca, desse vazio que nada nem ninguém aplaca.
Apesar de todo glitter, purpurina, perucas, maquiagens é um filme sobre a solidão. Apesar de toda a alegria é um filme triste.
Hedwing é um filme sobre a miserável condição errática do ser humano.
Anticristo
3.5 2,2K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Anticristo" o novo filme do dinamarquês Lars von Trier foi acusado de misógino, apelativo e excessivamente violento na época de seu lançamento.
O filme começa com um Prólogo todo filmado em preto e branco e em câmera lenta que é uma das cenas mais lindas já filmadas na história do cinema.
Vemos uma casal transando e uma criança dentro de um berço, tudo ao som de uma ária “Lascia ch'io pianga” e num take ousado e belo mostra em primeiro plano uma vagina sendo penetrada por um pênis, para logo depois mostrar o filho pequeno caindo do alto do prédio.
Lars recria em filme a tão falada cena primária freudiana, na qual o filho vê os pais transando.
Enfim, só pelo excelente prólogo “já vale o ingresso”.
Torturada pela culpa a personagem “Ela” vivida com coragem, desprendimento e talento pela cantora Charlotte Gainsbourg entra num tortuoso processo de depressão e seu marido vivido com não menos coragem, desprendimento e talento por Willem Dafoe, que é um psicanalista, decide fazer com que Ela enfrente seus piores medo e possa sair desse processo depressivo.
Numa conversa Ela revela para Ele que teme uma floresta chamada Éden e é ali que o enredo do filme quase inteiro se passa e ambos partem para lá, acreditando que encontrarão respostas para a dor e o luto.
Aos poucos ficamos sabendo algumas coisas que fazem com que ela tema o local; uma vez quando estavam lá ela ouviu o filho chorando e não conseguia localizá-lo e também por ser ali o local onde Ela não conseguiu acabar uma tese no qual escreve que natureza é má “é igual a satanás” e a mulher seria a personificação dessa maldade.
Fazendo uso da chamada psicoterapia cognitiva ela pouco a pouco se cura de sua depressão e nesse ínterim Ele acaba descobrindo cadernos e fotos do filho deles no sótão
Nessas fotos, vemos que Ela colocava sapatos invertidos no pé do próprio filho para impedí-lo de andar, Ele então confronta-a com as fotos e Ela pira novamente, só que desta vez transferindo para a figura dele todo o seu ódio.
Com requintes de crueldade e extremamente bem filmado o diretor mostra ela fazendo um buraco na perna dele e colocando um peso de metal ali, impossibilitando-o também de andar.
Dessa parte pra final, Lars mantêm o espectador em suspensão, tirando-lhe o ar, com seqüências extremamente cruas e fortes, auto-mutilação, masturbação, sexo desenfreado, animais que representam três mendigos e muita tensão.
Lars não é e nem nunca será um diretor palatável, fácil, para “sentir” o filme é necessário ter conhecimentos bíblicos, pois muitas passagens possuem essa inspiração, tais como a do Jardim do Éden, a da raposa “que veio pra matar, roubar e destruir” falando que o Caos Reina, a própria questão da Mulher que é seduzida pela serpente e come a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal e oferece ao homem, espalhando assim sobre a terra as sementes do pecado.
Além disso, Lars utiliza os conhecimentos psicanalíticos e sobretudo freudiano para explicar que numa sociedade cristã e hipócrita, a relação sexual vem sempre impregnada de culpa e de morte.
O escritor Nelson Rodrigues já tão bem tinha entendido esses ensinamentos e agora vem Lars e mostra que também entende do riscado.
Num comportamento que ora tende pro depressivo ora pro sexualizado, Ela tenta fugir de si mesma e de sua natureza e Ele permanece apenas como objeto do desejo ou de ira dela.
Em seu novo filme Lars também prova que conhece muito de Nietzsche e do livro de nome homônimo ao filme “O Anticristo” escrito em 1888, nesse livro manifesto o autor alemão diz que a ética cristão é uma moral de gente vil e fraca que deturpou a natureza humana e transformou tudo que em nós era bom e forte em algo mau.
Em sua próprias palavras "o doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos".
No filme de Lars vemos todas essas influências e muitas mais em variados momentos do filme.
Muitos acusaram o filme de pessimista, mas não consigo enxergá-lo assim, muito pelo contrário, parece que o diretor quer nos dizer que somente através da transmutações de nosso valores poderemos um dia nos entendermos a nós mesmos e aos outros.
Enfim, um belíssimo e doloroso filme com atuações soberbas e uma direção absolutamente segura, apesar do diretor viver dizendo que não sabia direito o que estava filmando.
Melancolia
3.8 3,1K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Sim. O mundo vai acabar. Não. Não há motivos para lamentações.
Em “Melancolia”, novo filme do diretor dinamarquês Lars Von Trier, esse é começo, o meio e o fim.
Sim. “Melancolia” é um imenso prólogo. De antemão já sabemos tudo o que irá acontecer. Logo nos minutos iniciais, o diretor coloca uma sucessão de cenas que contam ao espectador o que eles verão nos próximos 130 minutos. Isso de maneira nenhuma tira o efeito do filme. Muito pelo contrário. A expectativa da catástrofe iminente provoca no espectador um misto de curiosidade e precipitação. Durante aproximadamente 10 minutos, vemos um prenúncio do fim. A trilha sonora de Richard Wagner retirada da ópera “Tristão e Isolda” anunciam mortes, tragédias, mas também alguma beleza. Sim. A personagem principal Justine vê beleza no fim do mundo. Quando a história “começa” Justine está se casando. A imagem da limosine luxuosa empacada no meio da floresta é mais um aviso de que algo não vai dar certo. Os noivos abandonam o carro e seguem a pé até o castelo onde a festa será realizada. Claire, irmã de Justine, organizou toda a festa. John, o marido de Claire bancou-a e faz questão de alardear a pequena fortuna que custou a festa. Já na cerimônia de casamento, a conduta brincalhona do pai encontra contraponto perfeito na aspereza da mãe. Em seu “discurso” para a filha, a mãe deixa claro que não acredita em casamentos. O constrangimento é geral. Justine que até então estava interpretando muito bem, mergulha num estado depressivo. Por algum motivo que não sabemos bem qual é, aquele marido lindo, educado, e carinhoso não a faz feliz. Tudo desanda. Realmente nada vai dar certo. Uma pequena estrela vermelha no céu chama a atenção de Justine. O marido de Claire, um especialista nisso, explica o que seria aquilo. A festa prossegue. Justine se recusa a fazer sexo com o marido, foge para o meio do campo, faz sexo com um desconhecido. O noivo desprezado vai embora. O casamento acaba. Justine não conseguiu interpretar bem o papel de esposa feliz. Exatamente o oposto de sua irmã Claire: Casada, com um filho pequeno e aparentemente feliz. Fim do primeiro ato.
Quando o segundo ato se inicia, Justine está em crise de depressão e procura abrigo na casa da irmã. O marido é contra, alegando que ela não é uma boa referência para o filho deles. Justine só quer saber de dormir. Não come, não se diverte. Nada. Pequenos comentários sobre o planeta Melancolia que está se aproximando da terra começam a pipocar. Claire entra em desespero. O Marido diz que não há motivos para isso, pois os cientistas alegam que o planeta não atingirá a terra. O filho do casal procura informações sobre o tal planeta na internet. Estranhos acontecimentos ocorrem. Os cavalos ficam arredios. A luz acaba. O planeta se aproxima. O fim do mundo também. Claire que até então mantinha uma postura digna, desespera-se. Os papéis se invertem. É Justine quem está segura agora. O fim do mundo não a ameaça. Pelo contrário. Parece consolá-la. Neste possível fim, Justine finalmente encontra seu lugar no mundo.
Lars Von Trier prova mais uma vez seu talento raro para a direção de atores, o elenco inteiro está soberbo.
John Hurt e Charlotte Rampling dão um show como os pais de Claire e Justine, em suas cenas do casamento fica claro que não existe papel pequeno e sim atores ruins. Rampling constrói uma mãe tão amarga (e lúcida ao mesmo tempo) que chega a impressionar. Mas o filme é sem sombra de dúvida de Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg. Sim. Lars Von Trier sabe dirigir atrizes como nenhum outro diretor atual. É público e notório que para tanto, o diretor se utiliza de métodos nada convencionais para extrair tai interpretações. Sim. O diretor dinamarquês Carl Th. Dreyer é uma influência grande na condução dos trabalhos. Seus métodos de direção de atrizes são parecidos. O fato é que Dunst tem em “Melancolia” o seu melhor desempenho como atriz. Seus silêncios e sua desistência de tudo não é meramente um trabalho exterior, mas, sim, um desabrochar de alma. É bonito ver sua entrega nesse trabalho.
Justine existe. Ela é palpável na tela. No entanto, Charlote Gainsbourg tem (para mim) o melhor desempenho. Sua firmeza no primeiro ato e seu conseqüente desmoronar no segundo provocam uma verdadeira catarse no espectador. Sim. Um misto de horror e piedade nos invade a alma. O desespero demonstrado pela atriz é um trabalho formidável. São nos pequenos gestos e nas expressões faciais que a atriz demonstra uma maturidade surpreendente. O mundo está acabando, mas ela ainda está presa às convenções. Seu último pedido para a irmã é constrangedoramente brega. Seu desejo de salvação também.
Lars coloca em atrito dois modos de enxergar o mundo. Mas não dá a resposta ao espectador. Pois apesar de tudo, o fim para todos será o mesmo.
O final é deslumbrante, catártico como há muito tempo não se via no cinema.
O contraste entre o castelo e a cabana mágica elaborada por Justine é a concretização perfeita das ideias do diretor.
Enquanto o letreiro subia, fiquei pensando num poema de Bertolt Brecht que diz:
“Também o céu às vezes desmorona
E as estrelas caem sobre a terra
Esmagando-a com todos nós.
Isto pode ser amanhã.”
Felicidade
4.1 377TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Happiness" do diretor norte-americano Todd Solondz é um retrato rigoroso e vigoroso de uma sociedade "doente" que busca “desculpas” como grana e prazer sexual para aplacar o vazio de suas vidas.
Solondz cutuca a ferida “americana” e expõe os mecanismos alienatórios dessa mesma sociedade, nos mostrando personagens quase a beira da caricatura, no entanto o talento do diretor em arquitetar excelentes diálogos e pungentes cenas, não deixa que o tom seja apenas o de escárnio, o que acabaria por torná-lo um filme menor.
Estamos diante de um grande filme, as primeiras cenas de apresentação do enredo e das personagens são absolutamente geniais. Uma cena melhor que a outra.
A seqüência de abertura é um exemplo disso: Violinos tocando. Um homem e uma mulher estão num restaurante “chique”. o dialogo sugere que ela está dando um pé na bunda dele. Ele parece não estar ligando muito. Ela tenta se explicar. Ele continua impassível. Após um tempo, ele chora. Assoa o nariz no guardanapo. Bebe um gole de água. Pega um presente e entrega para ela. Ela abre. É uma reprodução de uma obra de arte folheada a ouro quarenta quilates. Ela fica muito feliz. Ele pega o presente de volta e diz que aquele presente não é dela e sim de quem o ama de verdade do jeito que ele é e que aquele presente é apenas para ela saber o que esta perdendo ao largá-lo. Violinos voltam a tocar e filme começa...
Próxima cena: Um homem está diante de seu analista confessando que tem problemas com sexo e que é tarado em sua vizinha, mas não tem coragem de se aproximar dela. O analista mentalmente está pensando em coisas que tem que fazer depois daquela consulta. O homem segue falando, falando, falando...
Próxima cena: A tal vizinha gostosa entra em cena. Ela e o homem “problemático” tomam o mesmo elevador. Ele não toma nenhuma atitude em relação a ela. Silêncio.
Próxima cena: O homem “problemático” procura nomes na lista telefônica para passar trotes eróticos.
Próxima cena: A moça da 1° cena retorna. Conhecemos sua família. Ela é uma loser. Mora de favor na casa da irmã. É uma artista. Sua irmã confessa que todos da família achavam que ela era fadada ao fracasso, mas que agora vêem uma possível esperança pra ela.
Próxima Cena: Música Incidental calma tocando. Um homem anda calmamente num parque. Ele está com uma metralhadora. Ele metralha todo mundo do parque. Ele é o analista do homem problemático.
E assim cena após cena Solondz compõe um filme mosaico em que pouco a pouco, os personagens vão se cruzando e construindo um painel bastante realista de uma sociedade que se deteriora cada dia mais.
O filme nos apresenta personagens no limiar de uma consciência culpada. Os personagens de Solondz sabem que são considerados “doentios”, mas não encontram maneiras de sair desse circulo vicioso. Ouso dizer que talvez nem mesmo queiram se libertar do que sentem.
Todos fingem ser algo que não são. Todos tentam aparentar uma utópica felicidade. Todos vivem para os outros, esquecendo-se de si mesmos.
Até mesmo as crianças não escapam desse doloroso processo massacrante.
O filho do analista bombardeia o pai de perguntas sobre sexo, sempre se comparando com seus “amiguinhos” da escola, que sempre são melhores que ele.
O amigo do filho do analista é considerado “gay” pelo próprio pai, que para curá-lo dessa “doença” deseja contratar uma profissional do sexo para ensiná-lo algumas coisinhas. Detalhe: o garoto tem apenas 11 anos.
Um belo dia, o garoto considerado “gay” dorme na casa do filho do analista. O analista é pedófilo e dá algo para toda família dormir para abusar impunemente do garotinho.
Usando um método de escamotear de nossas mazelas, o diretor coloca a possível vítima numa situação engraçada. O menino não gosta do “lanchinho” que o analista faz. Todos comem. Todos dormem. Menos a vítima. Os métodos utilizados pelo analista para fazer dormir o menino são hilários. É uma cena cruel. O garoto será abusado sexualmente pelo analista. E nós (espectadores) compactuamos com o abuso. O diretor nos coloca diante de uma sinuca de bico. Sim, nós rimos das artimanhas do pedófilo e agora?
É essa a sensação de desconforto que permeia o filme todo e parece ser a impressão que o diretor quer nos causar.
Há algo de Nelson Rodrigues no cinema de Todd Solondz. Assim como nas peças do escritor brasileiro, o diretor norte-americano faz obras “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir tifo e malária na platéia”.
É arte na vertente do desagradável, assim como Nelson Rodrigues, Antonin Artaud, Lars Von Trier, Sarah Kane.
O que é a cena em que o filho pergunta ao pai se ele realmente abusou de seu coleguinha de escola? É uma cena angustiante, extremamente bem filmada e interpretada. Os dois atores estão sensacionais e olha que o garoto deve ter apenas uns onze ou doze anos. É sem sombra de dúvida, a melhor cena do filme. Aliás, o filme só é feito de melhores cenas. Em nenhum momento o diretor perde o fio da meada ou o vigor das cenas e olha que estamos falando de uma filme de mais de duas horas.
Todos os atores estão soberbos. O que assistimos são interpretações sensíveis de um elenco poderoso. Todd Solondz prova mais uma vez que é um diretor de ator, que sabe como poucos conduzir os atores até o magistral, o repugnante e o sublime.
Como esquecer da cena em que Joy canta uma música que diz “Parece que as coisas que eu quis na minha vida, eu nunca consegui. Então não me surpreendo que viver só me deixa triste. Felicidade, onde está você? Procurei você por tanto tempo.”
Falando nisso, Joy é a personagem que menos interpreta esse estado de felicidade, enquanto todos os outros vivem de aparência, ela personifica uma outra coisa. Há em seu olhar algo de desamparo, que nos faz sentir vontade de pegá-la no colo e cantar uma canção de ninar para ela.
O diretor é tão genial que subverte tudo. Sentimos mais piedade por Joy do que pelos outros. O que devia ser ao contrário. De alguma maneira Joy se salva por ter um auto-conhecimento de que o ser-humano faliu há muito tempo. Há algo de Macabéa de Clarice Lispector nela. Há uma inocência pisada no trabalho da atriz Jane Adams que é comovente.
Com seu “Happiness”, o diretor parece nos dizer que felicidade é só um conceito e quanto mais o buscamos, mais distante de nós estará.
Num texto de Clarice Lispector (sim, novamente ela) chamado “Por não estarem distraídos”, a escritora dá o salto dialético ao escrever: “Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.”
Bem, é isso então...
“Happiness” é um filme necessário para se entender o processo civilizatório de uma sociedade que fracassou. É um filme amargo, com uma temática explicita e severa. É um filme com uma trilha sonora alegre e cínica. É um filme com uma fotografia quase de comercial de margarina (mais aqui esse efeito é utilizado como crítica).
É um filme que você tem que assistir!
Palíndromos
3.8 81TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Serei direto assim como o diretor e filme:
"Palindromes" do diretor Todd Solondz é um conto de fadas pós-dramático desesperançado e cruel.
Cinema sem rodeios e floreios, Solondz coloca o dedo na ferida exposta e cutuca-a sem dó nem piedade.
Com “Palindromes” o diretor nos propõe uma pergunta: O ser humano faliu?
Com “Palindromes” o diretor responde: Sim.
Seu filme é uma tentativa de explicar os porquês dessa afirmação. Sim, é um filme absolutamente manipulador. Todo filme é manipulador.
Foi o grande cineasta austríaco Michael Haneke quem disse que "o cinema é a arte da manipulação. Isso é algo que não devemos esquecer nem quando fazemos um filme nem quando o assistimos”.
Bom, dito isto, digo que com “Palindromes” essa lição é levada a ferro e fogo.
Solondz nos mostra a história de uma menina chamada AVIVA e num primeiro momento essa história é bem convencional.
Vamos a ela:
Uma adolescente engravida. Seus pais entram em desespero. Exigem que ela aborte. Ela reluta. Acaba concordando. O aborto é realizado. Algo dá errado. Ela nunca mais poderá ter filho. A menina não fica sabendo disso. Revoltada, foge de casa e ai o filme “começa”.
A maneira encontrada por Solondz para contar essa história é bem interessante: sete atrizes interpretam Aviva. Sete atrizes completamente diferentes umas das outras. Esse efeito tem algo do "O Sistema Coringa" do dramaturgo Augusto Boal. Método do qual, vários atores interpretam o mesmo personagem desde que vista a máscara correspondente. A máscara em “Palindromes” é a própria narrativa; absurda, crua, cruel e contemporânea.
Esse efeito de utilizar atrizes diferentes para se contar essa história dá um aspecto estranho e distanciado à narrativa. Passado o estranhamento inicial, essa “novidade” ganha força e é reforçada pela ótima escolha das atrizes que interpretam a protagonista. Pra falar a verdade, são seis atrizes e um ator, mas o ator é tão andrógino que não dá muito pra perceber não.
Após sair de casa e cair no mundo, o filme se torna um road-movie, Aviva encontra pelo caminho uma série de personagens esquisitos. Esse desfile de “bizarrices” é o jeito encontrado por Solondz de dizer que pessoas diferentes do que é comumente aceito como nornal irão sempre se fuder na vida. Pronto. É um filme direto. Solondz não dá esperança. Não há saída. O filme é um retrato de uma cultura ocidental cristã; está ali o capitalismo e suas mazelas, a religião e sua alienação, o sexo e sua culpa e muitas outras coisas. Não é um filme palatável. Não mesmo. Ainda para complicar toda essa história, o diretor utiliza-se de uma ironia tresloucada em algumas cenas. Exemplo disso é a cena em que Aviva, garota de 13 anos de idade, é “abusada” por um homem bem mais velho. Nessa seqüência o diretor coloca uma música incidental engraçada e os movimentos sexuais são robotizados. O efeito de desfamilirização proposto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht é colocado de maneira perfeita. Como espectador, essa cena me causou uma estranhíssima sensação. Mas, afinal é isso mesmo que o diretor queria. Já alertei logo no inicio do texto que o filme era manipulador e nada sutil.
Num dos capítulos da história intitulado “Mama Sunshine” (que é sem sombra de dúvida o melhor de todo o filme), Aviva está perdida numa floresta, perto de um lago. Um garotinho aparece e a salva. Ele leva-a até sua casa e apresenta para Aviva a tão falada Mama Sunshine. Mama Sunshine é uma mulher bondosa e cristã que adota crianças com “problemas” físicos e mentais e é ferrenhamente contra o aborto. Mama Sunshine adota Aviva (que nessa cena é interpretada por uma atriz obesa e negra). Os “filhos” de Mama Sunshine são cantores de uma banda gospel (imagine uma boy band gospel... essa é a banda dos filhos dela), e convidam Aviva para fazer parte daquilo também. As cenas da cantoria são extremamente engraçadas e críticas. Solondz explicita de maneira radical o processo de mercantilização de Jesus Cristo e a utilização da culpa como forma de controle. Aliás, toda essa parte do filme é extremamente hipócrita. Sharon Wilkins (uma atriz adulta, obesa e negra) é a melhor interpretação do filme. Sua Aviva é ingênua, curiosa e absolutamente crível. É um trabalho maravilhoso de composição. Trabalho de ator mesmo.
“Palindromes” retoma um tema de filme anterior do mesmo diretor (“Bem vindo à casa de boneca”), Aviva é prima de Dawn (garota humilhada do outro filme do diretor). “Palindromes” começa com uma “missa”, no qual ficamos sabendo que Dawn cometeu suicídio. Esse é o prólogo do filme e também sua obsessão. Parece que essa á a única saída viável para os párias da humanidade.
A grande questão que Solondz nos impõe é extremamente cruel: Já que essas pessoas estão fadadas ao fracasso e ao suicídio, não seria melhor que elas fossem abortadas antes de nascer?????????????????????????????????????
Ao longo do filme, o tom vai ficando mais contundente, lá peças tantas o diretor coloca na boca de um acusado de pedofilia um quase monólogo assustador:
“As pessoas sempre terminam do jeito que começam. Ninguém nunca muda. Acham que mudam, mas não mudam. Se for do tipo deprimida agora, vai ser sempre assim.”
Mais pra frente ainda proclama: “Não há livre arbítrio. Não tenho escolha a não se escolher o que escolho. Fazer o que faço. Vive como vivo. No fim, somos apenas robôs programados arbitrariamente pelo código genético da natureza”.
Aviva então pergunta: “Mas não há nenhuma esperança?”
“Palindromes” é assim. Como se fosse um soco em plena boca do estômago.
Aviva tem algo da ingenuidade comovente de Macabéa de Clarice Lispector e de Cabíria do Fellini.
O diretor Todd Solondz porém é mais radical que Lispector e Fellini, numa entrevista afirmou:
"Eu penso que, num nível profundamente humano, todos nós precisamos acreditar que estamos fazendo a coisa certa, e travando um combate justo e que mesmo que você esteja matando médicos que praticam abortos, você faz isso por achar que está salvando milhões de bebês que ainda não nasceram. Existe uma lógica em ação em tudo isso. Não é apenas uma coleção de casos problemáticos".
Já numa outra entrevista fez a seguinte provocação: “A família, microcosmo da sociedade, é o meio onde são geradas as neuroses e os falsos valores sociais. A cada história pela qual me interesso mesclo um pouco de tristeza, um pouco de humor e um pouco de ironia. Inteligência, humor e tristeza é uma grande combinação.”
Bom, se você quiser ver um “Alice no Pais dos HORRORES”, te recomendo esse filme.