"Às vezes eu desejo que não estivesse viva. Mas eu não sei como morrer. Não há nenhum botão para desligar. Não importa o quão ruim eu me sinta, meu coração não para de bater e meus olhos se abrem pela manhã"
“Preciosa” é um daqueles filmes que te fazem acreditar no poder do cinema novamente. É um daqueles filmes que por mais que você saia chorando da sala de cinema, saí feliz de lá, feliz por ver uma obra tão comovente, tão bem dirigida e com ótimos atores. Foi assim que saí da sala de cinema, aos prantos, mas, com um sorriso nos lábios... “Preciosa” é um filme duro, dolorido, cru e cruel, sem nunca soar piegas ou forçado. Um filme com uma narrativa relativamente simples, contada pela ótica da protagonista Claireece “Precious” Jones, garota de 16 anos, pobre, obesa, “analfabeta”, vítima de abuso sexual pelo pai, com uma filha com Sindrome de Down (filha de incesto) e grávida de mais um filho do pai e constantemente humilhada pela mãe frustrada e violenta. É a história dessa menina que acompanhamos... porém, não só essa história, vemos também, os pequenos delírios que Claireece “embarca” em momentos chaves no filme (situações limites de violência ou de tristeza). É desse material tão contraditório que brota a beleza de “Preciosa”; violência e lirismo. Sem fazer uso de meias palavras e meias verdades, o diretor mostra o drama da adolescentes sem nunca cair no dramalhão, nem num mero chocar por chocar, muito pelo contrário, diz a que veio logo no inicio. A cena em que a personagem é violentada pelo pai é aterrorizadora, o diretor exibe a cena entre flashes de cenas de alimentos sendo preparados para a refeição, o que só aumenta o asco que sentimos, no entanto o terror ele existe menos pelo ato sexual em si (usado de maneira sábia pela direção) do que qualquer outra coisa. “Preciosa” é assim, um filme incomodo, necessário, durante toda a exibição me perguntava “quantas crianças que eu conheço não estariam naquela mesma situação naquele momento?” e “ O que eu faço por elas?” É nessa ferida que o filme toca... como exigir um comportamento “bom” de Claireece se ela só conhece violência (física e psicológica), desamor, xingamentos e toda espécie de humilhação. E acompanhamos a menina na rua, também sendo violenta com que é “inferior” à ela, vemo-na também xingando a mãe, numa espécie de bola de neve da violência. Até que um dia a diretora do colégio expulsa-a da escola por estar novamente grávida e diz para ela se inscrever numa escola alternativa. E lá vai Preciosa para a tal escola, não sem antes se perguntar o significado da palavra “Alternativo”. Chegando na tal escola, encontra uma professora dedicada, linha dura, mas, sem perder a ternura (jamais) e ali se encontra no mundo. A professora percebe que ela é analfabeta e ensina-lhe a ler, e a incentiva a colocar no papel todas as suas mágoas, alegrias e frustrações e assim Preciosa percebe que o mundo é bem mais do que sua casa escura, com um pai e uma mãe cruel, bem mais que uma escola onde ela é só mais aluna, bem mais do que um mundo onde ela é apenas objeto de humilhação e resolve trilhar esse caminho bem mais bonito, mas, não sem antes sofrer, chorar (ela descobre que o pai tem Aids e passou pra ela) e matar freudianamente papai e mamãe e assumir as rédeas de sua vida. Confesso que poucas vezes chorei tanto vendo um filme como em “Preciosa”, chorei porque a história poderia ser real e também pelos caminhos que o cinema (quando quer) pode alcançar. Durante a exibição de “Preciosa” me peguei pensando em um outro filme, igualmente dolorido chamado “Dançando no Escuro” de Lars Von Trier. Neste filme, a protagonista (vivida com magnifico talento pela cantora Björk) também passa por inúmeras situações de humilhação e faz uso de devaneios para suportar a existência real e a crueldade do mundo. Também lembrei de Clarice Lispector e sua Macabéa, lembrei de Fellini e sua adorável Cabíria, no entanto diferente dessas personagens que citei acima, Claireece não aceita as coisas como ela são, não diz “Já que sou o jeito é ser” e tenta (ajudada por outras pessoas) trilhar um novo caminho. É desta busca real e tão humana que faz de “Preciosa” um filme imprescindível, com atuações excelentes (até Mariah Carey dá um show de interpretação como uma assistente social), com destaque para a protagonista Gabourey Sidibe, que faz com os espectadores torçam por sua Claireece e além de praticamente encarnar duas personagem (a Preciosa real e a Preciosa dos sonhos) sem nunca ser menos que brilhante. Apesar de todos os atores estarem muito bem, o filme tem uma interpretação excelente da comediante Mo’Nique, no papel de mãe severa e má. Mo’Nique constrói uma mãe tão crível que chega a ser assustadora de tão real, além de demonstrar um total domínio dos silêncio e de uma ótima expressão facial (nos momentos finais, ela coloca o filme no bolso e o leva pra casa. Num monólogo onde revela à assistente social tudo o que sabia a respeito do incesto sofrido pela filha, a atriz exibe uma maturidade cênica tão absurda que eu só consegue ficar de boca aberta pensando “que maravilhosa atriz!”. Nessa cena, ela quase nos faz esquecer das crueldades de sua personagem. Quando ela diz entre lágrimas para a assistente social “ fica ai sentada me julgando e fazendo anotações sobre quem pensa que eu sou” é como se ela dissesse ao público: Olhem para mim, eu também preciso de amor, eu também fui abusada e humilhada, eu também quero a redenção. Só que quando ela se dá conta disso é tarde demais.) Enfim, “Preciosa” é um daqueles filmes que marcam, que emocionam, que questionam e dizem a que veio. Como ficar indiferente a este filme quando Claireece diz: “O amor não fez nada por mim! O amor me bate, me estupra, me chama de animal, me faz sentir uma inútil, enfim me deixa doente.”??? Como não se emocionar com uma tentativa por parte de Claireece de mostra ao filho coisas mais bonitas e sublimes que ela mesma desconhece, mas que sabe que é bom, sabe é que por ali o outro caminho que deve trilhar.
Um ótimo exemplo de como se fazer filmes “populares” sem precisar ser “popularesco” e bobo.
"Caterpillar", do diretor japonês Koji Wakamatsu é um filme radical, bem do tipo "ame-o ou deixe-o.
O filme mostra a história de uma mulher que recebe o marido soldado que estava na guerra de volta para casa. Seria um filme feliz, se o marido não estivesse sem pernas, sem braços, quase surdo e mudo e com o rosto todo deformado.
Shigeko é a esposa do tenente Kurokawa, herói da guerra entre Japão e China, que se vê tendo que cuidar de uma marido inválido e pressionada pela cultura local, que diz que um soldado que volta da guerra naquelas condições é considerado um “Deus da Guerra”.
O filme não tem mocinhos e muito menos vilões. As pessoas são o que são, com suas contradições e possíveis belezas.
Detalhe chocante da história: o único membro que funciona perfeitamente na anatomia do soldado Kurokawa é o sexual e sua esposa Shigeko é obrigada a satisfazê-lo sexualmente falando. Sem polemizar o que por si só já é polêmico, o diretor mostra o horror no rosto da esposa. É óbvio que ela não quer transar com aquele homem sem pernas, sem braços e com o rosto todo deformado. Mas,por algum sentimento (amor ou obrigação conjugal ou pressão cultural ou todas as alternativas anteriores) acaba cedendo às investida do marido. Ele, por sua vez, acaba colocando no sexo toda a sua frustração e desejo de se sentir ainda vivo. O sexo é diário e absolutamente “forçado”. A esposa não sente nenhum prazer, exceto talvez por agora estar por cima da situação. O que mais tarde se confimará como mera aparência, porque apesar de estar praticamente invalido é o marido e não Shigeko quem é o dono da situação. Ela continua sendo um mero arremedo das vontades soberanas e “baixas” do marido. Shigeko reage como pode, às vezes explodindo em xingamentos pesados contra o marido ou batendo nele, numa repetição absurda dos sofrimento que ele mesmo no passado já lhe impôs.
É um filme chocante sim, as cenas são lentas, meio escuras e sujas, mas com uma beleza plástica arrebatadora.
A atriz Shinobu Terajima dá um show de interpretação e merecidamente foi premiada no Festival de Berlim. Sua Shigeko é minimalista, com nuances de sentimentos muito bem executados pela atriz. Não é uma personagem fácil. O martírio pelo qual passa Shigeko poderia facilmente levar a interpretação da atriz para uma redução ao papel de vítima. Mas atriz e o diretor não caem nesse engano.
As cenas de sexo entre marido “invalido” e esposa são mostradas sem medo ou fetichismo. Novamente as coisas são. A situação é aquela e pronto.
O filme é também narrado por meios de flashbacks, onde acompanhamos alguns momentos de glória na carreira do soldado Kurokawa. Esses flashbacks são de extrema importância para o final que no mínimo causa um certo estranhamento. O fim como na própria vida é feliz para uns e infeliz para os outros. "E na vida a gente tem que aprender que um nasce para sofrer, enquanto o outro ri", já cantava Tim Maia na música “Azul da Cor do Mar”. Ou então "aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar" do poema manifesto de Bertolt Brecht.
Aliás, falando em Brecht desde peças como “Os fuzis da senhora Carrar”, “Mãe Coragem e seus filhos”, “Um homem é um homem” e “Terror e Miséria no Terceiro Reich” que eu não via algo tão explicitamente contra a guerra e seus horrores.
Enfim, um filme indigesto, chocante e quase abjeto, mas extremamente necessário.
"Caterpillar" é um libelo antibelicista, e antes de tudo um excelente filme.
“Os amores imaginários” é como uma carta de amor, e como já escreveu Fernando Pessoa: “As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas.”
“Os amores imaginários” como o próprio nome já diz é um filme sobre paixões platônicas, sobre aquela sensação estranha de gostar de alguém e não saber direito se o objeto de seu desejo ou amor corresponde ao seu sentimento.
Xavier Dolan é um jovem diretor de cinema e esse é seu segundo filme. O primeiro “Eu matei minha mãe” fez sucesso em Cannes e abriu portas para ele.
Nesse segundo filme, Dolan prova que apesar da pouca idade já sabe muito bem o que quer. Os dois filmes apesar de muito diferentes entre si, guardam semelhança estéticas, o que denota que o jovem diretor já tem um estilo próprio de filmar e pensar o mundo.
Partindo sempre de premissas bem simples, seus dois filmes possuem uma embalagem muito bonita e extremamente “cult”. O que contêm dentro da embalagem é um presente simples, porém digno. Só terá acesso ao presente quem abrir a embalagem. Se tiver preguiça de desatar o nó do laço ou não quiser rasgar o papel que reveste o presente, não conseguirá enxergar o que aquela linda caixa esconde.
Assim são os dois primeiros filmes de Dolan.
Em “Eu matei minha mãe”, o tema é o relacionamento conflituoso entre uma mãe e um filho. E em “Os Amores Imaginários”, o tema é o conflito de dois amigos que gostam do mesmo homem.
Francis e Mari são dois amigos que se vêem apaixonados por Nicolas, garoto do interior que acabara de chegar à cidade grande.
O filme retrata a disputa entre Mari e Francis pelo coração de Nicolas de maneira engraçada e lúdica. Nicolas é um garoto misterioso, meio blasé, rico e cult, que não deixa claro se é gay, hetero ou bissexual, fato que instiga ainda mais a disputa entre os dois amigos.
É quase impossível assistir “Os amores imaginários” sem se identificar com a situação vivenciada por Mari e Francis. Que nunca amou alguém que atire a primeira pedra?
Sabendo dessa possível identificação do público com os personagens do filme, o diretor brinca com as possibilidades dramáticas de seu tema. É um filme mais leve que o anterior, sem dúvida, mas com a mesma inquietação juvenil que eleva a nona potência qualquer probleminha.
Em paralelo com a história principal, o diretor simula comentários reais de jovens a uma espécie de terapeuta sentimental. Esses apartes possuem a função de fazer pequenas interpretações acerca do tema amor. São breves e despretensiosos, e oscilam entre o registro cômico ou o dramático. Num deles, o mais engraçado de todos, a menina confessa que seus namoros via internet sempre dão errado. A maneira como a atriz interpreta essa personagem é maravilhoso. Ela é engraçada, sem querer sem engraçada. Suas tiradas, seus jeito de falar remetem imediatamente ao cinema do espanhol Pedro Almodóvar.
Sim, o diretor Xavier Dolan utiliza-se de várias referências ao longo do filme para contar sua fábula sobre o amor platônico. Especialmente nesse filme, a maior influência de Dolan seja o diretor François Truffaut e seu “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois”.
Também estão lá as cores berrantes da primeira fase de Pedro Almodóvar, a câmera lenta de Wong Kar-Wai, a aparente frivolidade de Sofia Coppola , aquele ar meio blasé francês de Christophe Honoré e o cinismo tragicômico de algumas tiradas de Woody Allen. Essas e outras influências e referências pululam a todo o momento da tela de cinema. Longe de soar como um arremedo desses cineastas, Xavier Dolan se apropria de cada uma dessas linguagens e faz um filme seu. É extremamente interessante acompanhar a maneira honesta como o diretor lida com tudo isso. Em nenhum momento ele esconde que admira esses artistas, muito pelo contrário, assumi a paixão e batalha para criar um estilo próprio e consegue.
Assisti ao filme na Mostra de Cinema de SP e à sala lotada reagiu bem ao novo filme do diretor.
“Os amores imaginários” de uma maneira muito particular acaba sendo um rito de passagem da “adolescência” para uma vida “adulta”.
Lá pelas tantas (e eu não vou contar o final aqui) o filme mexe com os ânimos da platéia e é impossível não tomar partido e se emocionar com algumas seqüências finais.
Para mim fica a impressão que Xavier Dolan faz um cinema autoral com temas muito íntimos e apesar de não parecer “Eu matei minha mãe” e “Os Amores imaginários” acabem sendo filmes complementares.
Se o protagonista Hubert de “Eu matei minha mãe” tem que aprender a se virar sozinho e matar psicanaliticamente sua progenitora, em “Os Amores Imaginários” coloca os protagonistas dentro de uma outra questão: Como não se machucar ao se entregar a um outro quase desconhecido, que no final corre o risco de ser mero arremedo de nossos desejos reprimidos? Pode parecer um tema mais banal que o primeiro, mas não é. Um é prolongamento do outro.
Em termos estéticos o filme é um deslumbre meio barroco e com sofisticado (e simples ao mesmo tempo) efeito de iluminação, com uma trilha sonora sensacional e com a excelente atuação da atriz Monia Chokri. Sua Mari é tragicamente engraçada, ela parece ter saído de um filme lá dos anos 50, suas roupas, seus cabelo e sobretudo sua maneira ingênua de encarar o objeto amado, tudo remete àquela época. Sua atuação é magistral, minimalista e absurdamente nuançada. O filme é dela e ninguém tasca. Xavier Dolan, que além de escrever e dirigir, também atua, se sobressai nos vôos mais dramáticos da história. E o ator Niels Schneiderm que faz Nicolas, cumpre a função de ser mero objeto do desejo dos dois. Ele não compromete o filme, mas também não vai além do normal.
Enfim, “Os Amores Imaginários” é um filme que retrata o vazio existencial de uma geração acostumada a só receber sim como resposta e que quando ganha um “não” faz beicinho e birra, mas que depois dá a volta por cima e parte para próxima, sem talvez não aprender nada com a experiência anterior. No fundo o que Xavier Dolan faz é uma analise de seu tempo, meio cínica é verdade, mas que não deixa de ser um retrato de sua época. E é justamente nesse quesito que vejo muitos pontos em comuns entre ele e Sofia Coppola, outra mestra na arte de manifestar o vazio existencial de uma geração.
Os críticos normalmente acusam os dois cineastas (Coppola e Dolan) de serem vazios e absolutamente estéticos. Mas, ora vejam, se as pessoas não são vazias e absolutamente estéticas? Cada diretor encontra sua forma particular de expurgar esse vazio. Confesso que me identifico e muito com a forma encontrada por Dolan e Coppola para trazerem a tona esses temas.
Ao final me lembrei da afirmação da autora Clarice Lispector: "Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a ultima gota. Sem nenhum medo. Não mata."
Lembrei também de Cazuza: "O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo, indo embora."
E eu dolorosamente concordo com Pessoa, com Clarice, com Cazuza, com Coppola e com Dolan.
O filme “Outubro” dos diretores Daniel Vega e Diego Vega é tristemente engraçado e engraçadamente trágico.
O filme é uma co-produção dos seguintes países: Perú, Espanha, Venezuela e conta a história de Clemente, um homem mau-humorado, dono de uma loja de penhora, que certo dia descobre em sua casa um bebê. Mais tarde saberemos que esse bebê fora deixado por uma prostituta que ele supostamente engravidou. Sem saber como lidar com aquela criança, ele “contrata” os serviços de uma vizinha, absolutamente religiosa, que é apaixonada por ele. Junto com essa história, acompanhamos algumas outras também, como os dramas dos clientes que penhoram suas coisas e depois não possuem dinheiro para pagar e a busca de Clemente pela suposta prostituta, mãe de sua “filha”, além do romance de um velho com uma senhora em estado de coma no hospital.
Sem fazer gracinhas desnecessárias para ser engraçado, os diretores conseguem extrair momentos hilariantes da história. Aqui a graça não está nas piadas e sim na ação cotidiana dos personagens. O humor aparece como antídoto para o choro. É um filme triste, sobre fracassos, sobre pessoas que ainda sonham, que ainda tem esperanças, que ainda acreditam na fé.
Clemente leva uma vida normal, durante o dia seu trabalho é se dar bem em cima das desgraças financeiras de alheios, sobrevive de pequenos empréstimos para pessoas pobres, já de noite, procura prostitutas para satisfazer suas necessidades sexuais e também beber em bares. Nada mais normal que isso.
Ao se defrontar com uma criança de colo em sua cama, seu mundo vira de cabeça para baixo, literalmente. Ele passa a não dormir mais devido ao choro constante do bebê, começa a errar nos negócios e até broxa na cama com uma puta.
Sofia é uma mulher que não casou, mas que deseja arrumar um marido, todo mês de outubro ela participa do culto do Nosso Senhor dos Milagres na tentativa de realizar seu intento.
Sofia é a mulher perfeita para cuidar da criança que Clemente arrumou e ela vê nesse novo emprego uma oportunidade para fisgar o homem.
Pouco a pouco o cotidiano desse dois personagens passa por algumas alterações. Ambos passam a experimentar sensações que são estranhas; como chegar em casa no dia de seu aniversário e ter alguém que tenha preparado um bolo, comprado presentes e chamado mais duas pessoas para a festa. Aliás essa é a cena mais sensacional de todo o filme. O mais puro retrato do fracasso que aqueles personagens poderiam chegar. Ao mesmo tempo é uma cena linda, terna, eu diria.
O filme inteiro é assim, os diretores extraem lirismo e comicidade da derrocada do ser humano. “Outubro” é o mês do ano que a vida daqueles personagens irá mudar. É uma ótima sacada. É um excelente filme. Sem experimentalismos, nem ousadias formais, mas que conta uma história que te prende e até te faz torcer por um possível romance entre os protagonistas.
“Outubro” é um filme sobre falibilidade de existir, sobre buscas, sobre lado insondável do amor e a possibilidade de existir novos caminhos esperando a gente por ai.
Recomendo!
PS: O Ator Bruno Odar dá um show no papel de Clemente. Sem utilizar de recursos cômicos babacas consegue arrancar risadas inúmeras do público, além de arrasar nos momentos mais densos da história.
Puta que pariu! O filme "O SACRIFÍCIO" de Andrei Tarkovski me deixou mudo. Mas tento escrever. Sim. O filme é inquietantemente sublime. Onde o onírico tenta capturar o real. Mas onde a verdade está?
O filme conta a história de Alexander, um pensador, que abandonou sua carreira de ator para viver num lugar afastado da civilização, com sua mulher e seu filho pequeno.
É seu aniversário, ele planta uma árvore morta ajudado por seu filho e lhe conta uma parábola de um homem que regava todo dia uma árvore morta na esperança dela florescer novamente.
O garoto está mudo, uma cirurgia na garganta impede-o de falar. Seu pai, ao contrário, fala pelos cotovelos.
O carteiro entrega uma carta onde amigos desejam feliz aniversário para Alexander.
Familiares chegam para comemorar com ele. Tudo transcorre normalmente até que uma notícia na televisão deixa todos sem reação. Uma guerra nuclear é noticiada. Silêncio. Pânico. Cada pessoa ali naquela sala reagirá de uma maneira diferente. A iminência do fim de uma maneira bastante particular provoca aqueles personagens, retirando-os de uma apatia cotidiana.
Alexander, um ateu convicto, ajoelha, chora, reza um pai nosso e implora ao Deus que tudo volte a ser como era antes. Em troca, promete abandonar tudo e todos. A partir daí, o filme ganha contornos oníricos, onde “realidade” e “sonho” se misturam de um jeito que é quase impossível discernir o que é o quê?
Tarkovski ao falar sobre “O Sacrifício” escreveu:
"O assunto que abordo neste filme é, na minha opinião, o mais crucial: a ausência de espaço para a existência espiritual, em nossa cultura. Nós ampliamos a meta das nossas realizações materiais e conduzimos experiências materialistas sem levar em conta a ameaça que é privar o homem de sua dimensão espiritual. O homem está sofrendo, mas não sabe porque. Ele sente uma ausência de harmonia e procura a sua causa."
Essa ausência, esse silêncio provoca o tédio das relações humanas. Sim. Estamos todos entediados. Nada faz sentido. Se é que algum dia fez... Buscamos uma possível esperança num consumismo exagerado, em amores utópicos fadados ao fracasso. Sim. Talvez todos estejamos fadado a esse fracasso. Somos os expulsos do paraíso.
Tarkovski de alguma maneira única remonta a história contida no livro de Gênesis, a relação entre o pai (Deus) e o garoto mudo (homem) é uma maneira possível de enxergar o filme. O lugar escolhido pelo pai para passar seus últimos dias é paradisíaco (Jardim do Éden?) os dois (pai e filho) vivem em comunhão. Desfrutando de tudo aquilo proporcionado pelo meio em que vivem. Tudo exala harmonia. Até que os outros humanos (sempre eles) rompem com essa harmonia. A aproximação da guerra nuclear que extinguiria com a humanidade é um possível canal para restabelecer aquilo tudo que foi perdido.
"Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. E disse o Senhor: Destruirei da face da terra o homem que criei, tanto o homem como o animal, os répteis e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito. " [Gênesis, capítulo 6, versículo 6-7]
Essa guerra nuclear anunciada no filme encontra eco no mito da Arca de Noé, em que Deus desiludido com a humanidade faz chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, exterminando da face da terra todas as criaturas que fez.
Alexander é esse Noé contemporâneo. Cabe a ele salvar a humanidade. Mais que Noé, o protagonista de “O Sacrifício” é uma espécie de Jesus Cristo. Para salvar a humanidade, ele tem que deixar sua vida pregressa. Abandonar tudo: casa, família, status ... A exortação de Cristo "Vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e segue-me" é colocada de uma maneira um pouco mais radical. Para salvar a humanidade, Alexander terá que ter uma noite de amor com sua misteriosa empregada chamada Maria. Quem comunica-lhe isso é o carteiro da cidade no meio da madrugada. Essa figura tragicômica é extremamente interessante. Ele lê Nietzsche e discute conceitos como o do “Eterno Retorno” e confidencia ao amigo que sente como se nunca tivesse vivido, mas sempre esperando uma vida ...
Caberá a esse personagem o papel de revelar a verdade para Alexander, ele é uma espécie de emissário (um anjo?).
No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. O papel da palavra no filme encanta, provoca o colapso, e é também responsável pela tentativa de religação do homem a Deus. Tarkovski faz um filme religioso, mas também vai além, o que ele busca é a transmutação de todos os nossos valores do cristianismo. Sendo assim, o filme se transforma num belíssimo libelo nietzschiano.
“Deixa ela entrar” é um filme esquisito, híbrido, porém cativante. É um filme sueco. É um daqueles filmes que você começa assistindo achando que não vai gostar e de repente se pega dentro da história, torcendo para o protagonista. Foi assim que aconteceu comigo...
O filme conta a história do pequeno Oskar, de apenas de 12 anos de idade, que sofre com uma certa frequência, provocações, humilhações e até espancamento na escola, sem nunca se defender deles, aceitando calado todo e qualquer tipo de “bullying”. Um belo dia, Oskar conhece Eli, garota de “mais ou menos” 12 anos (como ela mesma se apresenta) que acabou de se mudar para o apartamento ao lado do seu, ela é séria, pálida e quase nunca sorri e diz que não pode ser amiga dele. O filme é sobre amizade dos dois, em como eles tornam-se amigos, em como eles se apaixonam. Pequeno detalhe que pode fazer toda a diferença, ela é vampira, se alimenta de sangue, não pode ver a luz do sol, entre outras coisas. Ele no início não sabe que ela é vampira, vai descobrindo aos poucos, ela incentiva ele a revidar os ataques sofridos, ele revida, um dos garotos perda a audição de um dos ouvidos, por causa da paulada que Oskar desfere nele. Crimes começam a acontecer na pequena cidade, cercada de neve por todos os lados... É nesse clima de tensão que a direção segura e engenhosa de Tomas Alfredson ganha destaque. Sem nunca apelar para soluções fáceis , o diretor abre espaço para a imaginação do público, deixando com que ele (mais do que qualquer efeito criado) determine do que sentir medo. É um filme de tensão e de amor, é um filme híbrido como já disse... e é um filme sobre a adolescência, essa fase complicada em que o que mais desejamos é sentir-mo-nos pertencente à um grupo. Em “Deixa ela entrar” vários assuntos são discutidos, assuntos contraditórios, controversos e até mesmo incongruentes, no entanto, na mão de Tomas Alfredson nada fica em desarmonia, nada. Algumas cenas são violentas (principalmente as que mostram Eli atacando suas vítimas), outras são de um lirismo puro e pungente (as que revelam o crescendo do amor de Oskar e Eli). Rejeitando todo e qualquer tom fantástico, Alfredson constrói um filme seco, distanciado e belo em que a personagem Eli busca em Oskar a substituição de um antigo amor e também de um futuro “matador”, aquele que conseguirá sangue para ela se alimentar. Um dos personagens mais polêmicos do filme é Håkan, que no começo do filme se comporta como pai da pequena Eli, mas, aos poucos vemos que a relação dos dois é de amor e dependência, mais dependência do que amor. Håkan é quem mata as pessoas e rouba-lhes o sangue para alimentar Eli. Mais ou menos no começo do filme, Håkan é preso e para não ser reconhecido joga no rosto um líquido que o deforma. Sua última cena explicita até onde vai por amor à Eli, é uma cena forte e sublime ao mesmo tempo, o filme inteiro é esse jogo, violência e lirismo... Eli percebe em Oskar tudo aquilo que Håkan já fora um dia pra ela, ele envelheceu, ela não, ele morre, ela sobrevive, ela precisa de outro amado e “psicopata”; Oskar é esse cara. Quem já assistiu sabe do que eu estou falando... Enfim, um estranho e belo filme, com uma fotografia e enquadramentos geniais, uma trilha perfeita e emocionante e um ótimo filme de terror, um interessante tratado da vingança, um assustador filme de vampiro, um belo filme de amor.
"Gerry" de Gus Van Sant é uma experiência poética/cinematográfica única. Beira o surreal e alcança o sublime. Genial!
A cena de abertura é deslumbrante, mostra um carro dirigido por dois homens numa estrada desértica, ao fundo uma trilha emocionante de Arvo Pärt. Essa cena por si só já engrandece e valida todo o filme.
Mas o diretor nos dá mais, muito mais.
A trama (na verdade, um fiapo de trama) conta a história de dois jovens aparentemente perdidos num deserto e que tentam voltar. Gus Van Sant não explica nada. Nem os porquês da perdição e muito menos para onde eles tentam voltar.
Em outras palavras, o filme não tem aquilo que os críticos de cinema (e de teatro também) e o publico exigem dos filmes: que ele faça sentido, ou que tenha um começo, um meio e um fim predeterminado (como nos ensinou os gregos, sempre eles) ou em outras palavras que tenha eixo dramático.
Não. “Gerry” não tem nada disso. Os diálogos são poucos, e quase mal falados, e as cenas não parecem “fazer sentido”.
É cinema lispectoriano: “ou toca ou não toca”.
Para quem entra no filme, o diretor oferece cenas antológicas e deslumbrantemente lindas. É impossível enumerá-las. Uma é melhor que a outra. Mas vou destacar uma só, pelo preciosismo e ao mesmo tempo simplicidade com que Van Sant executa-a: a cena magistral consiste num longo plano seqüência em que o diretor filma os dois jovens andando. Só isso? Sim. Só isso. O sublime está na maneira como o diretor filma a cena. É de arrepiar. É de cair o queixo. E gemer baixinho de alegria.
Durante o filme fiquei pensando na peça “Esperando Godot” do dramaturgo irlandês Samuel Beckett que retrata uma situação-limite parecida: num tempo e lugar indefinidos, dois personagens esperam o tal Godot do título. Quem são eles? Quem é Godot? Que lugar é aquele? Nada é explicado pelo autor. Pelo contrário, os diálogos são surreais e beiram o grotesco. Assim como “Gerry”, o enredo da peça é uma mera desculpa para que o autor discuta e repercuta uma visão cruel/realista de mundo: nada faz sentido e quase nunca temos algo relevante para fazer. O que se sucede então? Gus Van Sant e Beckett respondem: esperamos. O que ou quem? Nem isso sabemos.
Sim. O filme é existencialista. Mas não um existencialismo de palavras ou pedante. Não. Algo palpável e materializado na própria cena e encarnada nos personagens.
Os personagens estão perdidos. Mas a humanidade também está. Os personagens querem voltar. A humanidade também quer voltar. Mas ninguém sabe para onde? Mais lacaniano impossível hein? Sim. Para o psicanalista Lacan, sofremos porque não temos para onde voltar. É exatamente isso que o filme de Gus Van Sant retrata.
Os dois atores Matt Damon e Casey Affleck estão soberbos. Sim. Os dois. Impossível classificar qual o melhor? Ambos estão excelentes e traduzem em silêncio o desamparo que é viver.
Durante o filme disse para o meu amigo que estava assistindo o filme comigo que era nítido a influência do cineasta húngaro Béla Tarr. Dito e feito. Ao final do filme, Gus Van Sant homenageia Tarr com um agradecimento no final.
Sim. Estão lá os longos e maravilhosos planos seqüências do húngaro, assim como uma visão pessimista do mundo e seus habitantes.
Gus Van Sant filma aqui e quase sempre o apocalipse diário à que somos obrigados a participar. Esqueça os quatro cavaleiros bíblicos, os sete selos, as sete taças, as sete igrejas, o cordeiro, o anticristo ou a besta... Esqueça tudo isso.
Em “Gerry” o que verdadeiramente anuncia o fim é a paisagem natural e encantadora. Há beleza na morte. Há morte na beleza. Ou tudo pode ser apenas um miragem.
O que verdadeiramente não é uma miragem é a beleza e a genialidade desse filme.
Ou pensando melhor, “Gerry” é uma miragem. SIM. É um oásis em meio ao deserto que é o cinema atual. “Gerry” é um lugar agradável entre outros que não o são.
O filme conta a história de uma cidadezinha pacata que certo dia recebe a visita de um espetáculo anunciado como “fantástico”. Os habitantes se agitam. Prevêem mau agouro. Mas János, o mais jovem morador do povoado é o primeiro a pagar para ver o tal espetáculo. Ao entrar numa “cabine”, ele dá de cara com uma enorme Baleia empalhada. Fica então, fascinado e ao mesmo tempo assustado com a visão. Ele é o protagonista do filme. János é um espécie de faz-tudo do vilarejo. Cuida dos parentes, diverte os bêbados, entrega jornais, e também é chamado para conciliar algumas questões familiares. Somos apresentado à János, logo na primeira seqüência do filme. Aliás, excepcional. O Bar está pra fechar e János dá uma aula sobre eclipse solar para os bêbados. Ele utiliza os próprios freqüentadores do bar como “atores”: um é sol, o outro a terra e mais outro é a lua. Depois da “aula”, o dono do bar manda todos embora e é exatamente aqui que temos contato com algo que János repetirá quase o filme todo: andar. Inúmeras vezes e em diferentes situações o diretor filma János andando ou correndo. Todas essas cenas são deslumbrantes, tamanho grau de perfeição que o diretor alcança filmando tais seqüências. János corre pra cá e pra lá. E ao longo do filme vai se tornando peça fundamental nos desdobramentos do roteiro. A simples presença da baleia e de um convidado especial põe as certezas dos habitantes do povoado em cheque. O convidado especial é alguém que atende pelo nome de “O Príncipe”. Ele é o responsável pelo caos que se instaura em que cada cidade que passa. “O Príncipe” nunca aparece no filme. Não o vemos, só o ouvimos. E suas “simples” palavras despertam a ira de todos. “O Príncipe” acredita que somente através da destruição será possível recomeçarmos. Aos poucos, um verdadeiro exército começa a levar adiante as ideias dele e a balbúrdia começa. Não vou descrever o que se sucede. Mas existe uma cena de pouco mais de dez minutos que é assustadoramente maravilhosa. Béla Tarr consegue atingir um hibrido de violência com poesia que fiquei... sei lá como eu fiquei... falta palavra pra descrever. Sério. É uma das cenas mais poderosas que já vi.
A construção rítmica, a consciência temporal permeia todo o filme. A primeira parte propositalmente mais calma contrasta com a segunda parte, mais agitada e caótica. Essa sabedoria do tempo fílmico é admirável. Poucos dominam com a maestria que Tarr demonstra aqui essa arte da manipulação do tempo agora do drama.
Tarr subverte e redimensiona os critérios clássicos daquilo que se convenciona chamar de tensão. Seu minimalismo e rigor estético não nos oferecem a catástrofe como espetáculo, nos moldes do cinema hollywoodiano, mas, como algo de imponderável, nos moldes da tragédia grega. Tarr lida com os fenômenos de temporalidade de uma maneira única, sua câmera perscruta tudo e todos, numa investigação minuciosa da realidade que se apresenta. Por trás de uma aparente inação, a câmera de Tarr está quase sempre em movimento, em busca de algo pra filmar. Há no cinema deste diretor húngaro algo que o teórico teatral alemão Hans-Thies Lehmann denominou como essencial para as artes tidas como pós-dramáticas (e eu ouso dizer que Béla Tarr é um deles) : uma relação concreta e complexa entre o tempo da encenação e o tempo da ficção, e não sua fusão. Ora, o que Tarr faz é exatamente isso. Ele explicita de maneira radical as várias camadas temporais contidas no ato de filmar. Obra de gênio mesmo.
"Werckmeister Harmóniák” tem muito da teoria niilista do filosofo alemão Nietzsche, que acreditava que somente através da destruição de todos os valores morais do homem seria possível alcançar um estado de transmutação desses mesmos valores. Nietzsche dizia que "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". Longe de parecer um ideal pessimista, o que Nietzsche escreveu é um difícil chamado a todos aqueles que anseiam por um mundo melhor.
Mas, talvez não estejamos tão preparados assim para lidarmos com nosso próprio lixo. Fato que Tarr filma brilhantemente bem numa cena que é um verdadeiro muro em plena boca do estômago. O final do filme só confirma o talento do diretor em unir o valor estético ao concreto da ação dramática.
Enfim, "Werckmeister Harmóniák” é uma obra-prima, como poucas. E Béla Tarr é um dos maiores diretores que eu já vi. Simples assim? Entendeu? Agora, dá um jeito e assiste esse filme, ouviu bem?
"Danação" do diretor húngaro Béla Tarr é uma obra-prima sobre a humanidade, a solidão, o amor, a melancolia, a chuva e a música.
Fazendo uso de deslumbrantes planos seqüências, o diretor provoca no espectador algo de estranho, sublime e ao mesmo tempo assustador. Sua fotografia num preto e branco esmaecido, quase desmaiado, aliado a um poética errática, ousada e filmando personagens sorumbáticos, deixa bem claro qual é a proposta de Béla Tarr. Ele não faz cinema,mas, hipnose.
É impossível fica indiferente à maneira peculiar com que o diretor enxerga o mundo e seus personagens. Nada passa despercebido pelos olhos/câmera do diretor. Até o detalhe mais vulgar aqui é exposto com sensibilidade única. Uma simples parede sendo molhada pela chuva pode então se transformar numa das mais belas cenas do cinema mundial. Simples assim. Num plano seqüência arrepiante e uma trilha linda, o diretor filma rostos à espera sabe-se lá de quê ou de quem. O ser humano em “Danação” é desesperançado, lembra um trecho de uma poesia de Florbela Espanca:
“Estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade...sei lá de quê!”
Com suas imagens encharcadas de lirismo e melancolia, Tarr vai desenhando/pintando/brincando com cada bloco de cenas. O diretor parece querer capturar o real, para tanto esgarça o tempo cronológico e filma as múltiplas possibilidades do tempo como tempo. Um tempo que é poético e humano, ao mesmo “tempo”. Há beleza na tristeza. Sim. Há na tristeza uma vontade de alegria, e é isso que faz dela mais bela que a própria alegria pura e simples. Clarice Lispector em seu livro “A Hora da Estrela” escreve:
"Se a moça soubesse que a minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada”.
Essa frase seria um belo resumo sobre o filme “Danação”.
Sim. Os personagens tentam desesperadamente. Erram. Buscam. Escavam. Procuram. Acham que acham. Não acham. Tentam novamente. Falam. Falam. Silenciam. Calam.
Essa busca por aquilo que não têm nome permeia o filme. A câmera do diretor assume contornos outros quando percebemos que ela também está à procura de algo ou alguém. Inúmeras vezes a câmera perde os protagonistas de vista e se dêtem intrigada diante de uma outra cena cotidiana ou não. Durante toda a película lembrei de Henri Cartier-Bresson, um dos maiores gênios dessa arte chamada fotografia. Bresson fotografava aquilo que ele denominava de o momento decisivo, aquela átimo de segundo em que tudo parece estar no lugar certo. Assim é "Danação". Apesar de extremamente marcado, a leveza com que a câmera perambula e investiga os ambientes, as coisas e os personagens que retrata dá essa dimensão de “momento decisivo” pretendido por Bresson. Daí que as imagens expressas pelo filme possuem uma força, uma autenticidade arrebatada e arrebatadora. As cenas são tratadas como jóias, lapidadas e estudadas ao extremo, mas com um quê de improviso/imprevisto/real.
A cena de abertura é de cair o queixo. O movimento lento da câmera que filma uma paisagem quase desértica e que pouco a pouco vai revelando um homem de costas fumando e observando a paisagem lá fora dá a noção exata do que pretende o diretor. Linda abertura.
A trama é um fiapo de história, na verdade, é uma desculpa de Béla Tarr para nos brindar com cenas antológicas.
O protagonista é Karrer, um homem apaixonado pela cantora de um bar local chamado “Titanik”. Ela despeja sobre o público já embriagado e nostálgico, uma canção triste:
♫ Está acabado. Fim. Não haverá outro. Não será bom. Outra vez. Nunca mais. Talvez nunca mais. É como um pesadelo, tudo isso. Talvez. Onde haverá alguém novo. De onde ele virá. Se vier. Ou não virá. Nunca mais? Talvez nunca mais. Aceite-me ou deixe-me. É tudo o que tem. Que se pode fazer? ♫
Karrer é um espécie de “O Lobo da Estepe” do escritor Herman Hesse. Em comum entre Harry Haller e Karrer há a mesma necessidade de transcendência, o fracasso dessa busca e também a aceitação de um processo destrutivo da personalidade num homem maduro. O “Titanik Bar” do filme acaba sendo uma espécie de “Teatro Mágico” do livro de Hesse. No filme a entrada não é somente para raros, mas, somente para fodidos.
O “Titanik Bar” também me remeteu imediatamente a cena do filme “Cidade dos Sonhos” de David Lynch que se passa no “Clube Silêncio”. É possível afirmar que Lynch tenha se inspirado em “Danação” para compor a mágica cena passada no tal clube. Assim como é possível afirmar também que Béla Tarr tenha se inspirado em “Veludo Azul” para compor as cenas do “Titanik Bar”. Como também pode ser possível que isso seja só invenção da minha cabeça cinéfila. Pode ser. Ou não. Como diria Caetano.
O fato é que cada cena de “Danação” é antológica e ontológica. Sim. Ao mesmo tempo? Sim. Ao mesmo tempo. Os atores parecem estar num transe que remete ao pretendido pelo diretor francês Antonin Artaud. Uma encenação cruel da realidade, que almejava restituir a magia e o poder do delírio às artes. Artaud queria um teatro fervoroso, catártico, mas não a la Aristóteles. Não. Uma catarse epidêmica.
Assim é “Danação”. Exatamente assim. Um passo adiante também.
Impossível esquecer suas cenas, seus personagens, suas falas, seus silêncios, suas músicas insistentemente repetidas. Impossível esquecer a cena em que Karrer briga com um cão e se torna um deles. O homem como coisa. O homem como bicho. O instinto como destino. O destino como tragédia. E aquela náusea sartreana que fica em nossa garganta após os créditos do filme.
EXCEPCIONAL!
E a Adão Deus disse: “Porque escutaste a voz de tua esposa e foste comer da árvore a respeito da qual te ordenei, dizendo: ‘Não deves comer dela’, maldito é o solo por tua causa. Em dor comerás dos seus produtos todos os dias da tua vida. E ele fará brotar para ti espinhos e abrolhos, e terás de comer a vegetação do campo. No suor do teu rosto comerás pão, até que voltes ao solo, pois dele foste tomado. Porque tu és pó e ao pó voltarás.”
Fui assistir “127 horas” do diretor Danny Boyle no cinema. Não fui esperando muita coisa e talvez por isso, tenha me surpreendido.
O filme não chega a ser excepcional, mas também não decepciona, muito pelo contrário.
“127” é entretenimento e dos bons. Não há nenhuma mal nisso. Tudo funciona corretamente. Nada parece estar fora do lugar. O roteiro é competente. A direção, segura. James Franco dá um show como ator. A fotografia é deslumbrante. A trilha coloca o espectador dentro da ação, sem forçar a barra. É um filme correto. E assim o é, quando tenta ser ousado, utilizando uma fragmentação da tela para tensionar o que já por si só é tenso. O maior trunfo do filme é tornar interessante a história de um homem preso a uma pedra no meio do nada. O que poderia resultar num filme chato e sem atrativo. Não é o que ocorre. Danny Boyle coloca em prática, ideias muito criativas. Soluções inteligentes que prendem a atenção do espectador. Tudo isso sem soar didático. É um feito e tanto. Em se tratando de um filme “blockbuster”, isso por si só já seria digno de comemoração. Mas não é só. O filme tem momentos interessantíssimos. Principalmente quando o personagem principal já não suporta mais o tédio e a tensão daquela situação e sua imaginação voa longe. Tudo poderia ter sido diferente. Sim. Será mesmo? Não sei não. O fato é que parece que aquela pedra esperava por aquele personagem. Ele mesmo chega a verbalizar isso. Outro aspecto positivo do filme é a abordagem realista do drama. Opção que se mostra acertada durante quase que o filme todo. James Franco está ótimo. Sua angústia e sua vontade de viver estão latentes na composição do papel. Ele não exagera em nenhum momento. Assim como o filme. Como já disse, é um filme correto e um ótimo entretenimento. E ah! Tem “Sigur Rós” na trilha sonora.
Os minutos iniciais do desenho “Wall-E” é coisa de gênio. Após um prólogo onde uma música alegre apresenta o filme, vemos um pequeno robô recolhendo lixo.
Sem trilha sonora alguma e fazendo uso de uma fotografia em tons ocre e ferrugem, vemos um lugar totalmente devastado, sujo e feio. O pequeno robô prossegue recolhendo lixo. Repetidamente.
Quando encontra algo inusitado ou do seu interesse, o robô guarda o objeto e leva para “casa”. Sua única companhia é uma barata, que o segue por onde quer que ele vá. O que chama a atenção logo de cara é o contraste entre o espaço gigantesco e o tamanho do robô. Somado a isso, a absoluta humanidade transmitida pelos “olhos” do robô de nome Wall-E. Seus olhos são tristes, porém, vivazes. Outro detalhe que chama a atenção de quem assiste é a maneira engraçada com a qual Wall-E se relaciona com os objetos que encontra pelo caminho. Sem possuir os termos comparativos dos humanos, ele chega a descartar uma jóia lindíssima para ficar com a pequenina caixa azul do anel. Tudo o que Wall-E acha de interessante, ele leva para sua “casa”, cataloga o objeto e os guarda. Seu nível organizacional é impressionante. Quando não consegue discernir em qual categoria colocar um determinado objeto, ele se vale de um minucioso método comparativo e enfim acha um lugar. Essas cenas são determinantes para nossa identificação com o pequeno robô e com o próprio filme. Ao colocar em cena, objetos que nós (espectadores) já sabemos de antemão o que seja e Wall-E não, o diretor Andrew Stanton nos questiona: Afinal, para que serve um objeto caro, mas sem utilidade prática num mundo inabitado?
Sim. Nós sabemos que uma jóia é bem mais valiosa que a caixinha que a guarda, mas como o robô desconhece o valor material dos objetos, sua escolha entre o que vale a pena de ser conservado é totalmente diferente e racional. Brecht em sua vivência teatral formulou a técnica da desfamiliarização, que consiste numa maneira particular de ver e conceber o mundo e tudo aquilo que o rodeia. Essa ideia não é original de Brecht, mas encontra numa Alemanha Pós-Guerra, o trampolim perfeito para a sua prática. Brecht crítica em sua teoria, a visão de mundo capitalista, onde os objetos que possuímos determinam nossa relação com os outros e todo o entorno. Relações mercantis. Sim. Quanto vale ou é por quilo? Sim. Então, Brecht orienta seus atores para um teatro em que o estranho, o diferente, o não usual seja o norte do trabalho. Com essa técnica espera fazer com que o publico questione o que veja no palco, para que possa se questionar na “vida real”. O que Brecht quer dizer é que num mundo totalmente esquemático, onde os objetos são moedas de troca, o próprio ser – humano vira ele mesmo, uma mercadoria.
No filme “Wall-E” essa ideia fica clara na apresentação de um espécie de cruzeiro intergaláctico para humanos onde o locutor vende uma viagem de diversão sem fim, onde tudo é automatizado e os humanos viverão eternamente deitados em confortáveis cadeiras onde todos os seus desejos serão atendidos prontamente.
O robô não presta muita atenção nesse comercial, pois sua paixão mesmo é assistir sempre a mesma cena do musical "Hello, Dolly", estrelado por Barbra Streisand e Walter Matthau. Sua fixação é tamanha, que ele tenta repetir os gestos dos atores do musical e sonha em encontrar uma parceira para a dança.
Não demora muito e a provável parceira de Wall-E surge. Ela é “Eva”, robô completamente diferente dele. Eva é de última geração, enquanto Wall-E é quase um ferro velho. Wall-E se apaixonará por Eva. Eva se apaixonará por Wall-E e quando o desenho está prestes a virar um filme de amor entre robôs, o roteiro avança e descobrimos que Eva possui uma missão: encontrar algum tipo de vida que faça com que os humanos que abandonaram a Terra há cerca de 700 anos possam repovoá-la. Wall-E ao levar Eva para dentro de sua “casa” apresenta alguns dos objetos que encontrou em suas andanças. Como um macho orgulhoso, Wall-E quer mostrar para a fêmea que ele também tem seu valor. É nesse momento então que o robô mostra a Eva algo que ele não sabe direito o que é. Eva fica impressionada. Ela sabe do que se trata aquilo que Wall-E lhe mostra. É uma planta. Exatamente aquilo que Eva precisa para executar sua missão. Depois disso, o roteiro tem uma mudança brusca e vira um desenho animado convencional. Mas isso não tira o brilho de um filme extremamente inteligente e emocionante. Apesar de possuir uma mensagem ecológica, o filme não é chatinho, nem pedante. Muito pelo contrário, é animação e das boas, sendo os maiores destaques sua fotografia maravilhosa e a trilha sonora genial.
Recomendo.
PS: Os créditos finais é um show a parte. De fazer babar quem aprecia pintura, história da arte e a própria evolução da computação gráfica. GENIAL!
“Rosetta” dos irmãos Dardenne é um filme excelente. Provocativo. Atual. Austero. Que exprime a dor de existir.
Contando a história de uma garota que sonha em encontrar um emprego de verdade, o filme mostra uma realidade desconfortável, que é expressa tanto pela história da menina, quanto pela forma com que os Dardenne filmam.
A câmera quase sempre na mão, inquieta, perscruta os personagens. É um cinema encarnado. Minimalista. Seco. Cru. Cruel.
Os diretores do filme não perdem tempo contando uma historinha para boi dormir. Não. É cinema em sua mais alta acepção. Os personagens não são explicados. Eles agem. Conhecemos quem eles são, através daquilo que é mostrado pela câmera invasiva e hostil da direção.
Essa prática remete ao “Gestus Social”, termo trabalhado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, em que a leitura dos personagens se daria muito mais pelas dimensões físicas do que psicológicas. O modo como os personagens agem, se vestem, comem, pensam, falam, calam... tudo isso é gesto em Brecht. Sim. E é assim também em “Rosetta”. A crítica social surge no filme não como uma bandeira a ser levantada, mas como algo a ser notado, algo que existe e tem que deixar de existir. Sim. O filme não termina quando acaba. O incômodo provocado pelo que é mostrado não deve abandonar o espectador. Deve ficar com ele. Como algo que deve ser mudado em sua própria realidade. Quantas Rosetta’s existem por ai? Quantas conhecemos? O que nós fazemos por ela?
O cineasta português Pedro Costa certa vez escreveu:
“Para mim, a função primeira do cinema é nos fazer perceber que alguma coisa não está justa. Não há aqui distinção entre ficção e documentário. O cinema, no primeiro momento em que foi visto e filmado, buscou mostrar algo que não era justo. O primeiro
filme mostrava uma fábrica, as pessoas que deixavam a fábrica. Era semelhante a uma fotografia, que é também algo muito próximo do nosso mundo. É como tirarmos uma fotografia como prova de algo que vimos, alguma coisa que não está em nosso pensamento, mas à nossa frente, algo da realidade.”
O cinema dos Dardenne é isso. Sim. Alguma coisa não está justa. Rosetta sabe disso. Sua vida é miserável. Sua mãe é bêbada e promíscua. Seu pai nem é citado. Ela mora num trailer. Sua água é constantemente cortada. Ela é sempre demitida dos empregos. Mas não esmorece. Sai sempre em busca dos seus objetivos. Tenta internar a mãe numa clinica de recuperação. Tenta se estabilizar no novo emprego. Tenta. Tenta. Tenta. Mas não consegue. Está fadada ao fracasso. Coitada! Não! O diretor em nenhum momento tenta nos fazer sentir piedade dela. A frieza e realismo emanado pelo filme impedem a comiseração. Sobra a indignação. A revolta. Sim. Rosetta é revoltada. Ela e nós sabemos que o mundo não é humano. Algo deu errado. Alguma coisa não está justa. “Revolto-me, logo existo”, escreveu Albert Camus. Sim. É preciso se revoltar contra essa existência vazia de significado. É preciso se revoltar frente a uma vida mecanizada. De certa forma, “A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforo” do diretor finlandês Aki Kaurismäki (um dos últimos filmes que vi e comentei aqui no blog) guarda semelhanças com “Rosetta”. Sim. O enredo é quase parecido, porém, a manifestação da revolta encontrada por cada uma das protagonistas é bem diferente. Rosetta é bem mais resistente que Íris, a protagonista do longa finlandês. Sim. Enquanto Íris se vinga de todos aqueles que já a humilharam um dia na vida, Rosetta deseja apenas um emprego, anseia a normalidade. Rosetta quer ser igual a todos. Ela não medirá esforços para isso. “Primeiro a barriga, depois a moral”, ironizou Brecht. Sim. Numa sociedade toda feita contra ela, Rosetta precisa ser esperta, ao longo do filme acompanhamos a modificação do pensamento da menina. Ela que desejava alcançar um emprego de maneira digna, aprenderá que as coisas não são bem assim. Não. Subir alguns degraus na vida, exige certa dose de “imoralidade”. Rosetta aprenderá a lição. Mas qual o preço que ela irá pagar?
Numa cidade toda feita contra ela, o amor, a amizade, o respeito é quase impossível. Utópico. As pessoas precisam sobreviver. De qualquer jeito. De qualquer maneira.
Numa das cenas mais duras de todo o filme, Rosetta vai desejar a morte do amigo/quase namoradinho para conseguir o lugar dele numa pequena venda de rua. Ele é o único cara que a trata de maneira diferente. Ele hospeda-a em sua casa, quando ela está brigada com a mãe. Dá comida, cerveja para ela. Tenta ensiná-la a dançar. Mas não dá pra retribuir tudo isso. A Vida é mais urgente. A sociedade do consumo exige que Rosetta passe por cima de tudo isso para conseguir o tão sonhado emprego.
Aliás, toda a seqüência passada na pequena habitação de Riquet é extremamente dolorida. Sim. O rapaz é igualmente pobre. Mas mora numa casa. Não num trailer. Ele tem comida. Tem cerveja. Já foi campeão de ginástica solo. E toca bateria numa banda. Tudo tão pouco. Mas ele tem uma vida melhor que a dela. Ela nem ao menos sabe dançar. Ele tenta ensiná-la. Ela não consegue aprender. É desengonçada, dura demais. A cena da dança é quase lírica. Quase alegre. De repente, não mais que repente, a dor no estômago que acompanha a garota quase sempre, ataca de novo. “Eu desprezo as pessoas que são incapazes de sentir o seu estomago” disse Galileu Galilei da peça de Brecht. Rosetta , então, pega suas coisas e sai. Mas esquece das botas e volta. Ela não quer voltar para a casa e encontrar a mãe bêbada. Ele cede a casa novamente para ela. Arruma um canto para ela dormir. Ela tenta dormir. Antes de cair no sono, Rosetta conversa consigo mesma. Numa quase oração. Num quase desespero.
“Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não vai cair na rotina. Eu não vou cair na rotina. Boa Noite. Boa Noite.”
Na hora me lembrei de Macabéa do livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector afirmando para si mesma ao acordar: “sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola.”
Também lembrei da conversa consigo mesmo de Fabiano em “Vidas Secas” do grande Graciliano Ramos:
“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.”
Sim. Rosetta também é um bicho. Só que diferentemente de Fabiano que deseja conquistar horizontes maiores na capital, Rosetta deseja apenas ser uma menina ocupada em guardar as coisas dos outros.
"Não sei se gostei do livro, sabe? A história é boa, mas em alguns momentos, ela se desvia. Não conta o que eu gostaria que me contasse. Entendo que talvez seja a ideia mas não poderia deixar lacunas... Mas senti que está faltando algo. Não sei. É desses livros que não sei se devo recomendar ou não. Você gostou não é?"
Esse texto dito lá pro final é a mais pura definição do filme. "Ausente" é um filme de suspense psicológico. É um filme sobre a descoberta da sexualidade. É um filme sobre a paixão de Martin (garoto de 16 anos) por seu professor de natação. É filme feito de silêncios, ausências, lacunas e algum devaneio. Interessantíssimo.
O cinema do turco Nuri Bilge Ceylan me inquieta, me provoca, digo isso porque acabei de ver “Longínquo”, filme dele que ganhou a Palma de Ouro de Melhor Direção no Festival de Cannes em 2002.
Já tinha assistido “3 Macacos” do mesmo diretor e sentido a mesmíssima sensação.
O filme conta a história quase banal de dois primos que moravam num mesmo povoado. Um deles, o mais velho, emigra antes, o outro, mais jovem, emigra tempo depois. Num ato generoso do primeiro, o segundo fica hospedado na casa do amigo.
Ele chega dizendo que vai procurar emprego e promete ficar apenas uma semana hospedado ali. Os dias passam e ele não consegue emprego.
Essa é a história. Mais banal impossível. No entanto, Nuri transforma essa convivência forçada em uma importante metáfora; como nos comportamos diante daquilo que nos força a olhar num espelho inconveniente, ou de quem já fomos e não queremos ser, ou de quem somos e sonhamos em ser.
Com um proposta absolutamente minimalista, o diretor turco apresenta com muita calma e desenvoltura esses dois personagens.
Sem forçar a barra ou lançar mão de qualquer artifício bobo, Nuri deixa espaço para que os próprios personagens ajam e nessa ação se apresentem ao espectador.
O filme quase que inteiro funciona dentro dessa premissa, durante pouco mais de um hora, os personagens são apresentados, para que somente no final do filme o conflito estoure e tudo venha a tona.
É uma proposta ousada, sem dúvida, mas, quando o diretor nos coloca o conflito final, ficamos embasbacados por tamanho talento e desenvoltura no fazer cinematográfico.
Confesso que no decorrer do filme, fiquei um pouco incomodado por tamanha lentidão na apresentação como um todo, porém, ao tomar conhecimento do que Nuri queria fazer, fui obrigado a tirar meu chapéu para ele e dizer muito obrigado por nos apresentar algo tão profundo, tão questionador e tão atual.
O diretor é daqueles talentos que poderíamos classificá-lo de pós-dramático, já que a essência de suas histórias se encontra mais no entorno e nas lacunas deixadas propositalmente ao longo do caminho, do que na estrutura aristotélica do drama convencional.
É justamente daí que brota todo o esplendor da cinematografia desse diretor impar... ao dar espaço para os personagens, Nuri dá espaço para que nós (espectadores) construamos junto com os atores, essa possível história.
Brincando, por vezes, com nossa necessidade de drama, o diretor apresenta algumas cenas de alta tensão, forçando a ideia de um final trágico.
Ficamos em estágio de suspensão acompanhado a obra, ora torcendo por um ora sentindo piedade de outro, e nessa brincadeira o diretor nos conquista.
Algumas cenas são de uma beleza e crueldade raramente vista no panorama cinematográfico mundial, Nuri eleva a nível de personagem um simples rato, que atormenta o fotógrafo. Ele constrói inúmeras armadilhas para o tal bicho, mas, nenhuma surte efeito, muito pelo contrário, quem cai nelas é o próprio.
Certa noite, o desempregado ouve uns grunhidos e vai ver do que se trata.
A cena é chocante e sublime, além de provocativa e sintomática.
Não vou descrevê-la, pois seria reduzi-la.
Outras cenas, possuem um quase tom cômico, propiciado pelo confronto entre as personalidades ambíguas dos dois personagens.
Outras são doloridas, por expor nossa miserabilidade e solidão.
O conflito principal se dá pela exposição das personas, enquanto um quer estar ativo e participar das coisas do mundo, o outro quer apenas contemplar no silêncio de sua casa o passar do tempo.
Enfim, um belo tratado sobre a solidão e a incomunicabilidade dos humanos.
PS: Numa entrevista o diretor quando questionado do por que de usar sempre tão poucos diálogos em seus filmes, ele respondeu:
Porque acho que os rostos e os corpos dizem mais que as palavras. Na vida, a maioria das pessoas mente. As palavras são na maior parte dos casos um paravento e não um vector de verdade, servem mais para camuflar do que para revelar. Não acredito muito no que as pessoas dizem, mas acredito muito no que não dizem. O que elas calam tem muito mais informação. Os olhares, os gestos, as expressões, as posturas mentem menos do que as palavras.
Uma experiência cinematográfica da mais alta qualidade.
Foi o filme “3 MACACOS” do diretor Nuri Bilge Ceylan, que me propiciou esse encontro supremo com o cinema.
Ganhador do Cannes de Melhor Diretor do ano passado, o filme é cinema em seu estado mais puro e latente.
Filmado com extrema habilidade por Nuri, o drama me cativou logo na primeira cena em que acompanhamos um homem dirigindo um carro na madrugada. Ele está com sono. A estrada está escura. Só o barulho do motor do carro o acompanha. O diretor filma primeiro o homem de dentro do carro. Logo depois, filma o carro andando pela estrada. Apenas a luz do farol do carro ilumina a estrada. O diretor opta por filmá-la de longe. O efeito da luz do carro desaparecendo ao longo da estrada é encantador. Corta.
Um outro carro ilumina um corpo morto na estrada, ao fundo um homem sai correndo e se esconde. Pronto, está dada a premissa do filme.
O homem que dirige com sono na estrada e atropela e mata o outro, é Servet, um político. Para evitar que a morte do tal homem prejudique sua carreira, logo agora que é candidato a um importante cargo político, Servet suborna seu motorista, Eyüp, para que ele assuma a culpa pelo acidente e seja preso em seu lugar. Eyüp nada diz. Servet promete uma grande soma de dinheiro à sua família em troca desse “favor”.
Eyüp aceita. Assim o filme “começa”.
O diretor centra fogo então na vida da família de Eyüp, que é composta pela mãe e por um filho. Os dois passam quase o tempo todo dormindo e aparentam não ter uma grande existência. Eles parecem vagar pelo espaço. O lugar onde moram é uma espécie de apartamento sinistro que os oprime. O filho não trabalha, não estuda, a mãe quer cobrar algo dele, mas, não tem muita moral para fazê-lo. O filho diz à mãe que eles poderiam usar o dinheiro que o pai irá ganhar para comprar um carro. A mãe acata a decisão e vai até Servet pedir um adiantamento.
Sem mostrar os momentos chaves do filme e contando sempre com a aquiescência do espectador, o filme segue. A mãe seduzida pelo comovente desabafo do político (em um momento frágil por ter perdido a eleição para seu inimigo) começa a ter um caso com o homem que colocou seu marido na cadeia. O filho descobre.
Sim. O enredo numa primeira leitura pode até parecer novelesco, no entanto, em nenhum momento o diretor cai na facilidade do gênero.
Nuri está mais interessado em “mostrar” seu enredo através da existência dos próprios personagens e também pela belíssima e opressiva fotografia, que é um caso a parte, e a trilha sonora que parece captar cada ruído e elevando-a à nível de um dos personagens principais da história.
É justamente ai que o diretor prova domínio do seu ofício, todos os elementos contam a história daqueles personagens, tudo, absolutamente tudo, é importante.
Em vez da supremacia do diálogo, o que assistimos atentos é um filme que redimensiona cada elemento no ato de contar uma história: luz, som, figurino, cenário, música etc. Tudo é importante. O toque do celular da mãe usado em muitas cenas no filme dá a dimensão do vazio existencial daquela mulher, que delega a musica daquele celular os pequenos instantes de uma alegria esvaziada ou sem sentido.
O filme nunca é menos que genial.
A fotografia e a iluminação são de cair o queixo; alternado momentos de penumbra e claridade, materializa em imagem o estado de espírito dos personagens.
É impossível assistir ao filme e não lembrar de Alexander Sokurov com suas pinturas em forma de imagens cinematográficas.
O diretor brinca o tempo todo com a fábula japonesa dos 3 macacos.
Um deles cobre os olhos com as mãos, o outro cobre as orelhas, o terceiro a boca. A imagem original está esculpida num templo japonês e é a materialização de um provérbio do Japão, segundo o qual não se deve ver o mal, ouvir o mal, falar o mal – se ninguém visse o mal alheio, nem o escutasse, nem falasse dele, a humanidade viveria em harmonia.
O filme diz exatamente o oposto, ao não ver o mal, em ouvir o mal, nem falar o mal, os personagens tornam-se hipócritas, não dividem nada que não seja restos de um cotidiano infame e culpas imbecilizadas e desejos reprimidos.
Trabalhando com a temática nietzschiana do “Eterno Retorno”, o diretor prova que mesmo que não vendo, não ouvindo e nem falando do mal, ele não deixa de existir.
Enfim, um filme perturbador e sensacional que deve ser visto, escutado e comentado.
“La Zona” é um daqueles filmes que te deixam com um nó na garganta e a cabeça em parafuso. Um filme provocativo sem ser gratuito e partidário. Rodrigo Plá, apesar da pouca experiência, demonstra maturidade e uma visão aguçada da realidade que o cerca e acima de tudo nos brinda com talento em arranjar tudo isso num filme urgente. Cena após cena vemos o crescente do vazio existencial daquelas pessoas que o filme retrata, o diretor não julga suas personagens, apenas mostra-as, dispondo-as da melhor maneira para podermos analisá-las com calma e imparcialidade. É daí, desse “mostrar” que surge a maior virtude do filme, pois ao mesmo tempo em que todos estão certos (e tem suas motivações para agirem como agem) todos também estão errados. Em seus melhores momento Rodrigo Plá me faz lembrar de Bertolt Brecht e seu teatro épico, onde o espectador sai de sua posição de mero observador, para se tonar ator (no sentido daquele que atua, que age) e retirar daquilo que assiste algo que o incomode a ponto de se sentir impelido a agir. Brecht foi um dramaturgo que melhor colocou em cena as contradições da Sociedade Alemã e Rodrigo Plá segue o legado deixado por Brecht (isso fica muito claro na escolha da música final, numa tradução perfeita do tal falado Efeito de Estranhamento Brechtiano) expondo sem hipocrisia um Mexico quase-brasileiro. Fale de sua vila e falarás do mundo. O diretor joga com o espectador abertamente, seu jogo desde o início é claro e é assim mesmo que tem que ser, já chega de sermos iludidos pela tal “arte da representação”.
A Arte é uma realidade, não tem que representar nada, ela simplesmente é. No final do filme resta a indignação de uma sociedade que se deteriora e da qual todos nós fazemos parte e estamos chafurdados nessa lama até o pescoço.
O que fazer?
É exatamente a pergunta que o filme nos faz a todo instante.
O filme nos coloca na posição dos alunos omissos da classe de Joosep, é uma das muitas sacadas geniais do filme.
Somos aqueles meninos e aquelas meninas que nada fazem por Joosep, somos aqueles alunos e acompanhamos calados a violência sofrida pelo garoto.
É isso o que mais incomoda em todo o filme, essa posição passiva que assumimos frente aos problemas dos outros. O diretor esfrega em nossas caras nossa própria omissão cena após cena.
“The Klass” é um fotograma de uma sociedade que vive em estado de sítio, todos os personagens vivem acuados de alguma maneira. A sociedade de consumo de alguma maneira equilibrou as distâncias existentes entre as classes sociais, utilizando-se de um mecanismo cruel que engendra o ser - humano numa roda que é quase impossível sair.
A sociedade atual vive uma nova forma de fascismo, todas as nossas relações são pautadas pelo poder. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, essa parece ser a palavra de ordem. Todo o contexto social de “The Klass” é opressor. A escola onde os garotos estudam é absolutamente tirânica, punitiva, não há qualquer espécie de tentativa de aproximação dos alunos para com as aulas que estão tendo. O ensino é de cima para baixo, me lembrei de Estamira no documentário brasileiro homônimo dizendo "Na escola não se aprende, se copia". Pura verdade. A família é outro componente que contribui para o clima opressivo; as cobranças dos familiares e o excesso de proteção geram uma instabilidade e uma angústia no jovem. A internet e os mecanismos de comunicação como celulares ou papeizinhos trocados durante a aula contribuem para o clima de tensão. Some-se a isso a própria insegurança da adolescência, uma fase intermediaria que nem se é adulto nem se é mais criança. Além disso, a necessidade vital de pertencer a um grupo é bastante latente nessa fase; em nome desse suposto “pertencimento” se faz coisas abomináveis. O uso de bebidas e drogas e a utilização do sexo como ato subversivo são a cereja do bolo dessa nefasta receita.
Isso sem falar na apropriação dos desejos desses jovens por uma mídia inescrupulosa que é a responsável por determinar quem é quem nesse jogo.
Cada peça desse quebra-cabeça social está perfeitamente colocada em “The Klass”, o que poderia resultar num filme panfletário e didático, não ocorre em nenhum momento. O filme é cinema puro. As opções estéticas do diretor não deixam com que o filme vire um manifesto barato. Cortes de câmara, trilha sonora, fotografia e acima de tudo a muito boa direção de atores tão jovens tudo corrobora para a excelência do filme . Todo o elenco está muito bem. O diretor consegue algo muito difícil em se tratando de filme adolescente; atuações verdadeiras e homogêneas. A edição do filme apesar de ser ágil não o torna um arremedo de videoclipe, muito pelo contrário, cabe a edição o papel de realçar e redimensionar o que está sendo visto.
O filme é dividido em sete capítulos e todos possuem um título que já adianta mais ou menos o que iremos ver a seguir. Essa opção é herdada do dramaturgo alemão Bertolt Brecht e seu teatro épico. Ouso dizer que todo o filme é bastante”epicizado”, pois logo de cara já é possível sacar qual será o final. Foi Brecht quem notou que a dramaturgia “dramática” já não dava mais conta de mostrar um mundo absolutamente novo, galgado em relações de mercado e falsificadas, de trabalho alienado e estafante e da sua conseqüência maior que é o isolamento do indivíduo. Para isso, foi necessário inventar uma “nova dramaturgia” e desse “movimento” surgiu grandes autores como Beckett, Ionesco, Brecht, Arthur Miller, Thornton Wilder, Sarah Kane.
É dessa nova organização social que o filme “The Klass” trata. Seria uma espécie de “drama de confinamento” como escreveu o teórico Peter Szondi em seu fabuloso livro “Teoria do Drama Moderno".
Sim, é um filme de confinamento, da opressão que dois jovens sofrem num regime escolar e familiar fascistas.
O que mais me chocou no filme, não foi às cenas de violência, mas sim o cinismo que assumimos perante o sofrimento dos outros e indo mais além, a utilização da violência como forma de dominação e diversão.
O filme é tão genial que lá pelas tantas concordamos com o pai de Joosep quando ele incita o filho a revidar a violência sofrida. Torci muito para que o garoto revidasse os ataques. Mas ele não reage. Muito pelo contrário, aceita estoicamente a violência de seus “amigos”. Essa passividade deixa os “líderes da gangue” cada vez mais irritados e a dose de violência e humilhação é ampliada cena após cena.
É interessante notar como ninguém faz nada, as professoras e diretora do colégio não estão nem um pouco interessadas em se interar da história, querem apenas punir os culpados, como forma de exemplo. Os familiares parecem perceber que algo não vai bem, mas não tomam nenhuma providência e quando tomam prejudicam mais do que ajudam. Joosep só tem Kaspar como possível amparo e é muito bonito acompanhar o amadurecimento da relação deles. Cabe aos dois atores (Pärt Uusberg e Vallo Kirs) o trabalho de composição de personagem mais complicado. O ator Vallo Kirs, interprete de Kaspar, consegue uma interpretação soberba, seus olhares indignados e a compreensão de que é uma injustiça o que estão fazendo com Joosep é algo notável.
O final de “The Klass” me remeteu muito ao final de “Dogville” de Lars Von Trier, guardadas às devidas proporções o epílogo é bem parecido.
“The Klass” é baseado em fatos reais e nisso guarda semelhanças com o documentário “Tiros em Columbine” de Michael Moore e “Elephant” de Gus Van Sant. No entanto, sem o tom documental (manipulador) do primeiro e a sublimidade do segundo. Como já disse é um filme mais direto. É um soco em plena boca do estômago. É um filme angustiante, pois parece não haver saída para Joosep, ninguém (a exceção de Kaspar) parece entendê-lo ou se preocupar verdadeiramente com ele. O exemplo mais crasso é a maneira como o pai dele lida com a situação. Numa das cenas mais desagradáveis de todo o filme, o pai bate em Joosep, querendo ensiná-lo como revidar corretamente a violência. O pai dá um soco em pleno peito do filho. Ele cai ao chão. O pai observa descrente o filho. O filho chora. O pai fica penalizado, mas não sabe o que fazer. O pai vai embora. O filho continua chorando no chão.
Sim, é um filme violento e cruel e o final não menos violento e cruel.
Senti a mesma coisa que senti no final de “Dogville”. De certa forma, o final é extremamente provocativo. De alguma forma, o diretor parece nos aproximar do que ansiava o pai de Joosep. De forma certeira, queríamos que Joosep revidasse a violência sofrida. De certa forma, nem nós (espectadores) entendíamos Joosep. Apesar de ser um final previsível, não é menos genial. Fica para nós (espectadores) apenas um sentimento de perplexidade e de incompreensão diante do ocorrido.
O escritor e filósofo francês Albert Camus escreveu uma peça teatral (fantástica) chamada “Estado de Sítio” e cria uma das frases mais definitivas de nossos tempos:
"NÃO DÁ PARA SER FELIZ SEM FAZER MAL AOS OUTROS. É A JUSTIÇA DESSA TERRA."
Com essa frase Camus resumi milhares e milhares de teses sociais que possamos vir a ler. É da natureza humana essa necessidade de ser dar à custa dos outros. O que o sistema capitalista fez foi só potencializar essa característica, elevando essa “qualidade” a um nível de existência. Ou se vive conforme as regras impostas pela “roda viva” ou se é excluído, humilhado, violentado. Simples assim. Ou alguém ousaria discordar?
Esse filme me causou tamanho grau de aturdimento que sinceramente não sei por onde começar.
Bom, começo dizendo que nunca havia assistido filme de zumbi.
Sim, "Otto; or Up with Dead People" conta a história de um adolescente que perambula pelas ruas, sem destino.
Sim, ele é um zumbi.
O modo como ele anda, a roupa que ele veste, os olhos, a sujeira, tudo parece contar essa história.
Sim, ele é Otto.
Já tinha lido na época do lançamento do filme, uma matéria na Folha de SP e me lembro que tinha ficado interessado, mas, logo o esqueci.
Só voltei a lembrar desse filme, quando um amigo no twitter, me disse que era já tinha assistido e que era um bom filme.
Ao que me parece o filme não foi lançado em DVD no Brasil e consegui baixa-lo na net.
Pesquisando sobre o diretor Bruce La Bruce no google, descobri que além de cineasta, é também escritor, fotógrafo e ator de filme pornô.
Certamente não precisava saber disso, para saber disso. Seu filme é extremamente bem dirigido, com diálogos inteligentes, tiradas engraçadíssimas e cruel/triste/dark, o filme possui uma fotografia que ora é assustadoramente real ora é sublime e onírica e o filme possui seqüências pornográficas “chocantes”.
Vamos ao enredo:
Otto é um zumbi que não se lembra de nada de sua vida pregressa, ele vaga pelas ruas até ser descoberto pela diretora underground Medea, que está buscando um ator que pareça um zumbi para seu filme chamado “Up With Dead People”.
O filme definido por ela mesma como um “político-porno-zumbi-épico” está inconcluso, devido à falta de interesse dos patrocinadores na temática explorada na película.
Medea acha que Otto está interpretando um zumbi o tempo todo, ela não acredita que ele seja realmente um deles.
Ela combina um salário, ele aceita, pois a vida nas ruas está complicada e ela ordena que Fritz Fritze, o astro de seus filmes, dê abrigo ao rapaz e que Adolf (câmera-man) siga-o por todo e qualquer lugar que o jovem vá.
Esse é o enredo básico do filme. Porém, o diretor aprofunda os questionamentos situando o espectador em uma complexa trama, no qual, os zumbis depois de serem exterminados várias vezes, voltam mais inteligentes e dessa vez só atacando homossexuais.
Após ter apresentado as duas ideias e os dois “filmes” que correm em concumitância, o diretor fica livre para brincar com o espectador.
O filme é um achado, inteligente, polêmico, engraçado, político, pornográfico, aterrorizante e belo, com umas trilhas sonoras mais maravilhosas que já ouvi.
Só pra constar, a trilha tem duas músicas da dupla “Cocorosie” e uma da banda “Antony and the johnsons”.
Utilizada quase que o tempo todo pelo diretor durante o filme, a trilha sonora é um personagem importantíssimo no contexto geral, cabe à ela situar o espectador dentro da cabeça confusa de Otto, cada lembrança dele possui uma música tema, às vezes, as músicas se misturam, interrompendo uma à outra, intercalada pelo delírios imagéticos do personagem.
Confesso que me identifiquei com a trilha, é abusada, contemporânea, lírica-cruel-irritante-amendrontadora-engraçada. O modo como ela é executada no filme também me chamou a atenção. Não é uma execução quadrada, acadêmica, não. É cortada do nada, sem explicação e depois volta e sai de novo, chegando a até mesmo interromper o dialogo numa cena muito bonita perto do fim do filme.
As trilhas sonoras dos meus espetáculos também são assim... detesto coisinha quadrada.
A fotografia é primorosa e envolve quase que a totalidade de gama de cores existentes, vai desde o preto e branco, passando pelo colorido e até pelas cores estouradas por programas de computador. O efeito da fotografia é devastador.
Logo no começo do filme, tem uma cena linda, em que Medea está esperando sua “esposa” Hella.
Hella é atriz de filme mudo e toda vez em que ela aparece a tela fica misteriosamente naquele preto e branco dos filmes mudos de Charles Chaplin. O diálogo protagonizado pelas duas é mostrado em forma falada quando mostra Medea e em forma de balões (de filmes mudos). Toda vez, que Hella aparece no filme, sua música tema é tocada e a tela (somente onde ela está) fica em preto e branco.
É uma das muitas sacadas inteligentes do filme.
O roteiro é engenhoso e dá conta da megalomania do diretor em contar essa balburdiosa história.
Algumas seqüências são hilárias, principalmente as que envolvem Medea. Ela é um arremedo de todos os diretores cult’s do cinema. É falastrona, quer aparecer mais que os atores, é ególatra e deliciosamente sagaz. A maneira como ela dirige os atores é puro deleite para quem é ator ou trabalha com artes. Seus discursos politizados ao extremo, cheio de clichês do gênero é impagável. Rolei de rir quando ela proferiu: "Lázaro foi o primeiro zumbi. Jesus foi o segundo. Por acaso, Otto esta achando que é o espírito santo numa nova divina trindade?"
O filme é cheio de referências e elas estão todas lá, para quem tiver suporte para captá-las. É possível ver ecos de Gus Van Sant e seus adolescentes vazios, de Larry Clark e seus adolescentes que buscam o sexo como uma maneira de expurgar o vazio que sentem, do filme “Má Educação” do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e sua maneira de mostrar o filme dentro do filme e a conseqüente união em um só filme e... inúmeras outras... tem até uma cena cuja brilhante fotografia nos remete a uma tela de Monet.
"Otto; or Up with Dead People" é um filme forte, incômodo e pesado, com cenas de antropofagia (para ficar mais chique, do que meramente dizer gente comendo gente literalmente), canibalismo com animais, seqüências realistas de sexo homossexual, cujo orifício utilizado para penetração não é o anus, nem tampouco a boca (imaginem caros amigos onde fica o buraco?), violência extremada contra homossexuais, sadismo, sangue, muito sangue e um sentimento de vazio que nada aplaca.
"Otto; or Up with Dead People” é também um filme bonito, com cenas lindas do garoto vagando por Berlim e por incrível que possa parecer, uma das seqüências mais sublimes, é quando Otto ao voltar ao mundo dos vivos, sente fome e encontra um coelho morto na estrada e o devora. O diretor sabe o que está fazendo, ele está no comando dessa empreitada e sua mão forte, porém inteligente, está em todas as cenas do filme, desde as mais forte, até as mais sublimes.
"Otto; or Up with Dead People” é um daqueles filmes que eu classificaria de pós-dramáticos, movimento artístico catalogado pelo alemão Hans-Thies Lehmann para denominar todo pensamento que venha após o dramaturgo Bertolt Brecht.
Para tanto, Lehmann qualifica uma série de ideias ou projetos que misturem linguagem e que dêem a cada elemento do fazer teatral, o mesmo peso. Ele, de certa forma, retira a supremacia da palavra, do texto e a dissemina para todos as outras funções do “drama”; luz, trilha sonora, atuação, direção, cenário, figurinos, platéia e crítica.
Lehmann faz um agrupamento dos pensadores da arte que não mais banalizem o espectador, muito pelo contrário, exigindo dele uma postura ativa e atuante dentro do espetáculo. Cabe ao espectador a construção da fábula que está diante de seus olhos, é ele quem estabelecerá os critérios (baseados em seu próprio pensar e sentir) de aceitação ou não da obra.
Ora, isto posto, só posso dizer que nesse filme, o diretor Bruce La Bruce foi o mais pós-dramático possível, estabelecendo com o espectador uma cumplicidade única e também, às vezes, rompendo com os padrões já estabelecidos entre ambos e balburdiando com a cabeça do público.
Paro por aqui. Apenas escreverei só mais uma linha só.
"Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas" do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul é um filme transcendental, tanto em sua linguagem quanto em sua história. É um filme lento, silencioso e angustiante.
Tio Boonmee está doente e vai se refugiar uns dias em sua fazenda, levando consigo sua irmã e uma espécie de enfermeiro. Numa noite em que estão jantando, o espírito de sua mulher morta há muito tempo materializa-se na mesa. Logo em seguida, o filho que há muito estava desaparecido reaparece agora transmutado num macaco de olhos vermelhos.
Dito assim pode parecer engraçado ou surreal demais, mas não é. O diretor consegue extrair dessa cena aparentemente mística um realismo assustador. Nada é forçado e cada coisa tem o tempo certo para acontecer. Juro que essa cena em especifico me causou sensações diversas: senti medo, piedade, horror, curiosidade, vontade de chorar, tudo ao mesmo tempo, tamanho o grau de aturdimento que o diretor e a cena nos causa. Ainda na mesa de jantar, a mulher morta agradece as palavras de conforto que a irmã e o marido lhe ofertaram pós sua morte. O filho conta que certa vez tirou uma foto e ficou encantado com o tipo de macaco que por acaso achou. Decidido, sai de casa e busca encontrar esses macacos e se tornar um deles. A conversa ocorre de maneira civilizada e sem fetichismo. É uma cena poderosa. Talvez a mais poderosa de todo o filme. Boonmee, talvez pela presença dessas “estranhas” figuras, pressente que seu fim está próximo, faz seu “testamento” e morre numa caverna.
Dito assim pode parecer chato ou entendiante demais, mas não é. O cinema de Weerasethakul é enigmático e absurdamente envolvente, partindo sempre do “estranho” como metódo narrativo, o tailandês faz um cinema sensorial e imagético. Suas cenas são minimalistas, pouco ou quase nada acontece no campo do palpável, mas há algo nas entrelinhas que alcança o sublime quase sempre.
É um filme para se ver, ouvir e sentir com as portas da percepção abertas... quem assim o fizer será recompensado com uma das narrativas mais originais que se tem notícia.
PS: Poderia falar muito mais sobre o filme, algumas cenas e frases são geniais, mas acabaria por reduzir o filme de alguma maneira.
Partindo de um fato real, o diretor nos apresenta um filme absolutamente rigoroso em sua estética que brinca o tempo todo com valores dicotômicos, como claridade e escuridão e sujeira e limpeza.
O protagonista do filme é Bobby Sands, voluntário do Exército Republicano Irlandês (I.R.A) e membro eleito do Parlamento inglês que liderou uma greve de fome como forma possível de luta a fim de serem atendidas as suas reivindicações pela “dama de ferro” Margaret Tatcher. Bobby e seus companheiros do I.R.A lutavam pela libertação da Irlanda do Norte da ocupação exercida pelo ingleses.
Steve McQueen não perde tempo em explicações didáticas, a linguagem utilizada pelo diretor cumpre essa função. Seu filme apesar de extremamente violento é poético. A poética brota aqui do estabelecimento logo de cara das regras do jogo. O filme começa mostrando a rotina de um agente da área de segurança máxima da “Maze Prison”. Tudo em seu cotidiano é milimetricamente calculado. Tudo é rotina. Ele foi programado para agir assim. Não pensa, age. Age de acordo com as vontades de seus superiores. O contraste é dado pelo personagem de Bobby, revolucionário que reivindica o direito ao seu próprio corpo. A liberdade aqui é tátil. O filme então se coloca entre esses dois personagens, entre essas duas maneiras de encarar o mundo: conservador x libertário. Quase em seu final, uma outra figura é acrescentada ao filme e também ao pensamento concretizado em estética: um padre.
A conversa entre Bobby e o padre é mostrada de longe, câmera parada. A linguagem novamente utilizada como forma de apreender o mundo. A conversa que dura mais de vinte minutos é um diálogo adulto entre renúncia da vida por motivações religiosas (no caso do padre) e a tentativa de luta que pode desembocar em várias mortes (no caso de Bobby). Qual a forma correta de conduta?
Sim. Em “Hunger” temos personagens em situações opostas, mas a estética utilizada pela direção se dá entre deslocamentos. Os personagens todos gravitam em torno da “Dama de Ferro”. Mas em termos presenciais, ela é uma personagem ausente. No entanto, é por ela ou contra ela que se luta. Muitas vezes sem nem mesmo entender os porquês. Ao espectador que é jogado nesse verdadeiro ringue de silêncio e violência é negado uma historização dos fatos. A história se impõe pelo trânsito da câmera pelas cenas. Os personagens não são explicáveis. Eles são. Suas ações denotam quem eles são. E o corpo humano é mostrado como refúgio último e também imagem de sua própria agonia e falibilidade. Assim como na obra de Valére Novarina o que assistimos em “Hunger” é a “decomposição do homem”. Por isso é notável a entrega do ator Michael Fassbender ao filme. A decadência corporal a que ele se submeteu para interpretar Bobby em seus momentos finais é assustadoramente real. Ali os limites entre arte e realidade são questionados. O corpo esquelético é ao mesmo tempo do ator e do personagem. O personagem realmente existiu. Sim. Ele vai morrer. Sim. Ele morreu. Em seu próprio nome. Dono do próprio corpo. Em busca de uma liberdade. Utópica. Ingênua. Mas necessária.
TEM SPOILER NO TEXTO INTEIRO, SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA.
Bom, fui assistir “A Pele que Habito” do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Fui numa tentativa de “fazer as pazes” com este diretor que já tanto adorei. Seus dois últimos filmes (“Volver” e “Abraços Partidos”) foram decepcionantes. Pois bem, dito isso preciso dizer também que SE VOCÊ NÃO ASSISTIU AO FILME NÃO LEIA ESSE TEXTO.
A primeira parte de “A Pele que Habito” é extremamente didática e chata. Almodóvar cria um enredo interessante, mas peca por esmiúça-lo inteiro ao público. Ele opta por explicar passo a passo da tal trama. Não só explicá-la, mas também mostrá-la. Sempre didaticamente. Como se dizesse: “Olhem como sou genial!” ou então “Xiiiii, se eu não explicar tudinho, vocês não entenderão”.
Ok Almodóvar esse é um caminho, mas você já foi mais audacioso, não?
Até compreendo que a necessidade atual de se falar com todos os públicos promova esse tipo de ataque à inteligência do espectador, mas tudo bem... Prossigamos.
Lá pelas tantas, depois de um começo modorrento, o filme começa a engrenar. Quando Almodóvar é Almodóvar não tem como errar. E isso se dá quando um estranho personagem irrompe a tela. Sim. Um homem fantasiado de tigre. Coube a ele me despertar desse começo tedioso. É ele quem balburdia com as certezas absolutas daqueles personagens e eu diria até do próprio Almodóvar. O inusitado da fantasia provoca um estranhamento interessante: Mas por que um tigre? Oras, porque um tigre é um predador silencioso, consegue se aproximar de sua vítima sem ser notado. E é exatamente isso que o personagem faz. Ao balburdiar em termos ficcionais com o filme, ele coloca em xeque o tom sério utilizado pela direção até então... A partir daí, o filme ganha contornos mais interessantes. Não vou perder tempo explicando o enredo do filme. Se você está me lendo é porque já o assistiu, então...
Aos poucos, Almodóvar vai acrescentando camadas e mais camadas nas ações fílmicas, e é ai que ele cresce. A revelação de como as tramas do homem vestido de tigre, da mulher que habita uma sala onde tudo que ela faz é gravado, do médico e da mulher que cuida da casa é muito boa. O flashback aqui é utilizado de forma épica. A narração da mulher que cuida daquela casa é lúcida, apesar de emocionada. A outra mulher só ouve, perplexa. A tomada da consciência se dá entre os personagens e o público, ao mesmo tempo. Enfim, mais Almodóvar impossível. Esse é um belíssimo momento do filme. Direção, atrizes e texto em perfeita sintonia. O canto da criança enquanto brinca de casinha é o prenúncio da tragédia. Alguém vai morrer. E Almodóvar nunca brinca com o espectador aleatoriamente. Sim. Alguém morre mesmo. O filme então retrocede no tempo e vemos como tudo chegou até aquela situação. Incomoda-me a maneira como Almodóvar tratou o sexo nesse filme. A visão é extremamente machista. Como se a mulher fosse uma eterna possível vítima de estupro. E o homem um eterno tigre que se aproxima silencioso. É interessante notar que o cara que estupra a filha do médico é um moço que trabalha no brechó. Sua função é justamente vestir manequins na loja de sua mãe. Nesse filme, a mulher é esse manequim de uma suposta loja. O gesto que o garoto que estupra faz na garota estuprada ao vesti-la é idêntico ao de quando ele veste o manequim na loja. O Pai descobre a filha estuprada no meio do jardim. O pai vê o suposto estuprador indo embora de moto. O pai quer vingança. E o que ele faz? Ele seqüestra o garoto e faz uma vaginoplastia nele e o transforma numa mulher. Mas não uma mulher qualquer. Não. Ele transforma o estuprador de sua filha numa cópia fiel de sua esposa falecida. Aqui a situação é olho por olho, dente por dente. A punição para o estuprador é virar mulher e sofrer novos abusos sexuais. Acho essa lógica extremamente perigosa. E bem machista. Almodóvar que já criou mulheres maravilhosas no cinema, nesse filme cria um único personagem interessante; o personagem do médico. Só. Todos os demais personagens gravitam em torno dele. Almodóvar não permite que os outros personagens alcem vôo próprio. Não. Quanto aos personagens femininos a coisa é bem definida. O papel é sempre de submissão. Tanto a filha, quanto a esposa, passando pela empregada e até mesmo a mãe do garoto que “vira” garota são personagens que vivem em função do macho. É uma opção. É uma visão de mundo. E não percebi a coisa como uma crítica ao modelo falido de uma sociedade. Não. É apenas uma opção estética, eu diria, para aumentar a dimensão psicológica do papel do médico. O jogo aqui se dá entre homens. Mais especificadamente entre o pai e o estuprador de sua filha. A terceira parte do filme mostra como o garoto reage a mudança de sexo e a prisão domiciliar que o médico lhe impõe. A arte e a prática da yoga salvam o garoto da loucura. A artista plástica Louise Bourgeois é evocada. A arte como garantia de sanidade. Quem conhece a obra deslumbrante dessa artista genial logo reconhece a inspiração, mesmo antes do cineasta mostrar rapidamente o garoto lendo um livro dela. Eu respiro. Sim. O filme também. Esse ponto lúdico do filme amplia a dimensão psicológica do médico e não do garoto. A obra de Bourgeois é quase que toda dedicada ao seu pai, representado no filme pelo papel do médico. Pai aqui não no sentido biológico, mas um quase Deus. Ou aquele que dá a vida a alguém. Bourgeois viveu o tempo todo em peleja com esse pai imenso que castrava tudo e todos. Em sua arte, matou-o em sua obra mais famosa chamada “A Destruição do Pai”. Sim. Caberá ao garoto/garota matar esse pai. Dessa vez no plano real. Só a arte não dá conta... O ressentimento é grande demais. A tragédia espreita. Sim. Alguém irá morrer. Não só o médico. A empregada que aparece na hora errada também. O garoto/garota agora está livre. Está mesmo? Ele vai em busca de seu passado e Almodóvar tem a sabedoria de não levar o filme até o ponto de tê-lo que transformar em algo cômico. Os risinhos irônicos (e imbecil) dos espectadores no momento em que o filho vai contar quem é para sua mãe é interrompido pela tela escura e pelos créditos finais. Sim. Almodóvar não faz uma concessão ao óbvio e isso é um ponto bastante interessante.
Ao final do filme fiquei ali sentado ouvindo aquela trilha sonora maravilhosa que acentuava o tom misterioso do filme. Ali entre o terror e o esdrúxulo. Exatamente igual ao filme. Não fiz as pazes completa com Almodóvar, mas pelo menos não foi uma experiência decepcionante como das outras duas vezes.
“Tetro”, filme dirigido por Francis Ford Coppola é uma experiência cinematográfica única. É simplesmente um dos melhores filmes que já vi.
Centrando seu roteiro em relações familiares arruinadas pela vaidade, inveja, desejo de poder e algum possível amor, Coppola faz um filme que transcende isso tudo e fala da beleza de nos entendermos juntos.
Contando a história de Bennie, garoto de 17 e irmão por parte de pai de Angelo, um escritor fracassado que mudou de nome. Como se ao mudar de nome fosse possível mudar sua história. Não. Não é possível. Bennie aparece como uma espécie de fantasma do mal para lembrar Angelo, que agora atende pelo nome de Tetro, de seu passado e conseqüentemente de suas piores mazelas. Tetro é um homem atormentado por vários fantasmas, o principal deles é o próprio pai, maestro famoso e figura excêntrica que chama para si toda a genialidade da família e massacra todos em volta com demonstrações infantis de poder. Além dessa sombra e fardo da figura paterna, Tetro também é atormentado pela culpa no acidente de sua mãe, famosa cantora de ópera, que acabou matando-a. Tetro fugiu de casa, numa esperança desesperada de se conhecer e encontrar seu lugar no mundo, que até aqui sempre fora de seu pai. Antes de fugir, escreve uma carta para o irmão prometendo voltar para levá-lo consigo. Tetro não cumpre a promessa. Bennie anos mais tarde, repete a fuga do irmão e vem para cobrar o afeto prometido e não cumprido. Tetro, agora casado Miranda, não gosta nada da presença do irmão, mas acaba cedendo e ai o filme começa. Bennie é tímido e virgem. Tetro é temperamental, já foi considerado uma promessa no meio literário, mas que não vingou. Sobrevive de fazer iluminação de peças num teatro local e perturbar a normalidade com sua simples presença.
Um dia, ao fuçar as coisas do irmão, Bennie acaba encontrando fragmentos textuais de Tetro. Os textos são escritos em códigos e de trás para frente. O irmão mais novo então traduz os textos de Tetro. A peça é um sucesso e Tetro então terá que lidar com a fama e o poder. Tudo aquilo que mais teme.
Francis Ford Coppola faz com esse filme o seu “Dogville” particular. Tetro, o personagem é uma espécie de Grace do filme de Lars Von Trier. Ambos fogem do poderio de uma figura paterna castradora e se refugiam em pequenos vilarejos e por fim são confrontados com seu próprios demônios. A diferença é que enquanto “Dogville” é cru e cruel, “Tetro” é apaixonado e sublime.
Filmado quase que inteiramente num deslumbrante tom de preto e branco, “Tetro” é acima de tudo uma obra de arte sobre o amor. Mas, não só entre seres humanos, e sim amor ao próprio ato de filmar. Embalados por canções pungentes e belíssimas cenas de teatro, ópera e dança “Tetro” é um filme híbrido. E é justamente nesse mistura de linguagens que Coppola alcança resultados surpreendentes. Apelando também para a literatura e para “chocantes” flashbacks coloridos, Coppola faz um filme contemporâneo aos 72 anos de idade e disse que escreveu o roteiro desse grande filme há mais de 40 anos atrás. Não é pouco.
Tetro”, no entanto, não é um filme estético, não é um experimento. É cinema com C maiúsculo. Aqui a estética surge com transmudação da história contada e se torna uma engenhosa metalinguagem do enredo. É possível também evocar "Carta ao Pai" do Kafka aqui e ali para exemplificar o tormento que é para Tetro lidar com o paterno.
"Da tua poltrona, tu regias o mundo. Tua opinião era certa, qualquer outra disparatada, extravagante, meschugge, anormal."
E as influências não param por ai... há uma pitada de Almodóvar 1° fase na maneira irônica com que Coppola filma os bastidores do mundo artístico e até mesmo na relação amorosa e passional entre o dono do bar/teatro e sua mulher. Há ecos de Fellini na exposição rica dos tipos em cena e naquela tristeza que Fellini sabia capturar com tanta poesia. E também há em Bennie, o quase marinheiro algo de Tennessee Williams. Mas esse filme não seria o mesmo sem a influência maior do cinema da filha do diretor: Sofia Coppola. O pai da cineasta disse em entrevista que aprendeu com a filha a fazer filmes intimistas. Com "Tetro" é possível dizer que ele aprendeu a lição direitinho.
Os dois atores principais são o novato Alden Ehrenreich e o sempre estupendo Vincent Gallo. Gallo dá um show, alternando momento de extrema rispidez com doçura, é um personagem atormentado, mas, sem maneirismos desse tipo de personagem. Alden Ehrenreich é uma gratíssima surpresa. Caso raro daquele tipo de ator que a câmera ama logo de cara. Sabe, tipo Marlon Brando, Gael Garcia Bernal, Louis Garrel? Pois é, assim é Alden Ehrenreich. Ele é um arraso. Sua interpretação do garoto do interior que aos poucos se deixa transformar pelo sucesso é digna de muitos prêmios. É um deleite acompanhar suas cenas, é tão bom assistir uma interpretação apaixonada e entregue como a desse ator Alden Ehrenreich. Ele é a alma do filme. Sua inocência e logo depois seu deslumbre são os eixos dramaturgicos do roteiro.
Filmado numa Buenos Aires mítica, "Tetro" é um filme atemporal. Aliás, como todo bom cinema deveria ser.
O filme “A Vida dos Peixes” do diretor chileno Matías Bize é sutil, minimalista, pequeno, mas tão grandioso que chega a assustar.
O enredo conta a história de dois personagens que se amaram e se perderam. Andrés é um jornalista que trabalha na sessão de turismo, sua função é ir de lugar em lugar numa tentativa de desvendar os roteiros turísticos e publicar em jornais e revistas. Beatriz é sua antiga namorada. Eles se separaram há dez anos. A festa de aniversário de um dos muitos amigos em comum é o cenário do reencontro dos dois.
O filme todo se passa numa única noite e num único cenário.
Quando o filme começa sabemos quase nada da vida dos protagonistas, aos poucos e através de diálogos engenhosamente simples e banais, o diretor remonta a história de amor de Andrés e Beatriz.
Apesar de no ínicio nada sabermos, é possível notar na composição do personagem Andrés, uma tristeza latente, exteriorizada no corpo, nos gestos, nos olhares. Há nesse personagem e nos outros também, uma nostalgia do passado, daquilo que já foi, que já não é mais. Os personagens parecem ter parado num tempo que nós (espectadores) ainda não sabemos exatamente qual é?
Andrés parece não se sentir muito a vontade voltando no tempo, de volta para o passado. Há ali uma nostalgia de um futuro que não foi. Sim. Algo que poderia ter sido. Parece que tudo falhou. Tudo deu errado. Andrés perambula pela casa, numa ânsia de querer capturar algo que lhe faça pertencer. Talvez, algo que lhe faça ficar. Ao ver Beatriz na festa, pronto, tudo vem à tona... os medos, o vazio, o amor, o passado, o futuro, o presente. Na primeira conversa depois de dez anos de separação, o que fica explícito é que a distância entre ambos parece imensa. Sim. A distância dos que se conhecem demais. Aquele sinal interno que nos avisa quando estamos frente a frente com alguém que gostamos demais e estamos brigados: Cuidado! Perigo! Ameaça!
Sim. É perigoso lidar com quem amamos. Sobretudo se queremos aparentar que já não mais amamos e que agora estamos ótimos. De uma maneira delicada, o roteiro avança e pouco a pouco vamos sabemos mais da história dos dois.
Beatriz está casada, é mãe de gêmeos e tenta continuar vivendo.
Andrés, apesar de viver num ritmo alucinante está estagnado. Não evoluiu. Parece ter ficado preso às reminiscências de sua juventude. Há informações aqui e acolá que nos fazem entender um pouco mais da personalidade introspectiva dele. Mas não vou revelar aqui.
Durante o filme fiquei pensando numa frase do escritor Caio Fernando Abreu:
"Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros."
Sim. O aspecto mais fabuloso de todo o filme é exatamente a maneira terna com que o diretor filma seus personagens. Sim. Os traumas, as quedas, os medos, os choros estão ali, impregnados nos corpos dos personagens. O que poderia ser apenas um simples filminho de amor torna-se poderoso, por essa razão. Os diálogos são preciosos, mas é nos momentos de silêncio que o filme cresce e ganha maior densidade.
Impossível não pensar em Caio Fernando Abreu vendo esse filme. Várias e várias frases dele passaram pela minha cabeça....
"Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora... Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço."
" Tenho medo de já ter perdido muito tempo. Tenho medo que seja cada vez mais difícil. Tenho medo de endurecer, de me fechar, de me encarapaçar dentro de uma solidão -escudo".
Além de Caio Fernando Abreu, “A Vida dos Peixes” também me remeteu ao cinema de Sofia Coppola e seus personagens entediados, Miranda July e sua volúpia pelo amor, Wong Kar-Wai e seu preciosismo ao retratar os apaixonados e o frescor e jovialidade de Xavier Dolan. Embora as referências pululem aqui e acolá, o filme é genial.
“A Vida dos Peixes” mexe com nossas expectativas, com nossos desejos... querendo ou não, nos projetamos naqueles dois personagens, torcemos por eles, queremos que eles voltem a ficar juntos, que voltem a se feliz... Mas será que ainda há tempo?
Ao final lembrei da “Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz” e que Maria Bethânia declamou no meio de um de seus shows:
“Quanto a mim... O amor passou. Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e embora na vida adulta sigam outras feições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.”
O filme é realmente simples e de certa forma trágico, pois logo no início já é possível "prever" o final. Só que a genialidade de James Grey reside na maneira como ele dirige e encaminha a história e na esplendorosa trilha sonora que é realmente um achado, ópera, fado e até música brasileira. Joaquin Phoenix simplesmente consegue uma das melhores atuações masculinas do cinema. Sua verdade, sua entrega ao papel é admirável. Quem é ou já conviveu com alguém que seja bipolar sabe o quão profundo ele mergulhou em sua interpretação. Os olhares vazios, a alegria efusiva, o caminhar na corda bamba sem rede que é viver tudo ali é mostrado.
Também fiquei impressionado com o trabalho da mediana atriz Gwyneth Paltrow, que aqui neste filme demonstra uma atuação segura e bem construída, cheia de nuances e intenções. Além disso o filme possui ótimas sacadas,
mas a melhor de todas é o olhar que Paltrow lança aos espectadores no momento em que sua personagem se deixa levar pela ilusão do amor que não se sente e num outro momento o mesmo olhar como quem pede consentimento ao público para se continuar que Phoenix lança ao público no instante final.
Ao final não saí da sala com um nó na garganta, saí da sala com lágrimas escorrendo pelo meu rosto e a sensação de ter assistido um belo filme.
Preciosa: Uma História de Esperança
4.0 2,0K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Às vezes eu desejo que não estivesse viva. Mas eu não sei como morrer. Não há nenhum botão para desligar. Não importa o quão ruim eu me sinta, meu coração não para de bater e meus olhos se abrem pela manhã"
“Preciosa” é um daqueles filmes que te fazem acreditar no poder do cinema novamente.
É um daqueles filmes que por mais que você saia chorando da sala de cinema, saí feliz de lá, feliz por ver uma obra tão comovente, tão bem dirigida e com ótimos atores.
Foi assim que saí da sala de cinema, aos prantos, mas, com um sorriso nos lábios...
“Preciosa” é um filme duro, dolorido, cru e cruel, sem nunca soar piegas ou forçado. Um filme com uma narrativa relativamente simples, contada pela ótica da protagonista Claireece “Precious” Jones, garota de 16 anos, pobre, obesa, “analfabeta”, vítima de abuso sexual pelo pai, com uma filha com Sindrome de Down (filha de incesto) e grávida de mais um filho do pai e constantemente humilhada pela mãe frustrada e violenta.
É a história dessa menina que acompanhamos... porém, não só essa história, vemos também, os pequenos delírios que Claireece “embarca” em momentos chaves no filme (situações limites de violência ou de tristeza).
É desse material tão contraditório que brota a beleza de “Preciosa”; violência e lirismo.
Sem fazer uso de meias palavras e meias verdades, o diretor mostra o drama da adolescentes sem nunca cair no dramalhão, nem num mero chocar por chocar, muito pelo contrário, diz a que veio logo no inicio.
A cena em que a personagem é violentada pelo pai é aterrorizadora, o diretor exibe a cena entre flashes de cenas de alimentos sendo preparados para a refeição, o que só aumenta o asco que sentimos, no entanto o terror ele existe menos pelo ato sexual em si (usado de maneira sábia pela direção) do que qualquer outra coisa.
“Preciosa” é assim, um filme incomodo, necessário, durante toda a exibição me perguntava “quantas crianças que eu conheço não estariam naquela mesma situação naquele momento?” e “ O que eu faço por elas?”
É nessa ferida que o filme toca... como exigir um comportamento “bom” de Claireece se ela só conhece violência (física e psicológica), desamor, xingamentos e toda espécie de humilhação.
E acompanhamos a menina na rua, também sendo violenta com que é “inferior” à ela, vemo-na também xingando a mãe, numa espécie de bola de neve da violência.
Até que um dia a diretora do colégio expulsa-a da escola por estar novamente grávida e diz para ela se inscrever numa escola alternativa.
E lá vai Preciosa para a tal escola, não sem antes se perguntar o significado da palavra “Alternativo”.
Chegando na tal escola, encontra uma professora dedicada, linha dura, mas, sem perder a ternura (jamais) e ali se encontra no mundo.
A professora percebe que ela é analfabeta e ensina-lhe a ler, e a incentiva a colocar no papel todas as suas mágoas, alegrias e frustrações e assim Preciosa percebe que o mundo é bem mais do que sua casa escura, com um pai e uma mãe cruel, bem mais que uma escola onde ela é só mais aluna, bem mais do que um mundo onde ela é apenas objeto de humilhação e resolve trilhar esse caminho bem mais bonito, mas, não sem antes sofrer, chorar (ela descobre que o pai tem Aids e passou pra ela) e matar freudianamente papai e mamãe e assumir as rédeas de sua vida.
Confesso que poucas vezes chorei tanto vendo um filme como em “Preciosa”, chorei porque a história poderia ser real e também pelos caminhos que o cinema (quando quer) pode alcançar.
Durante a exibição de “Preciosa” me peguei pensando em um outro filme, igualmente dolorido chamado “Dançando no Escuro” de Lars Von Trier.
Neste filme, a protagonista (vivida com magnifico talento pela cantora Björk) também passa por inúmeras situações de humilhação e faz uso de devaneios para suportar a existência real e a crueldade do mundo.
Também lembrei de Clarice Lispector e sua Macabéa, lembrei de Fellini e sua adorável Cabíria, no entanto diferente dessas personagens que citei acima, Claireece não aceita as coisas como ela são, não diz “Já que sou o jeito é ser” e tenta (ajudada por outras pessoas) trilhar um novo caminho.
É desta busca real e tão humana que faz de “Preciosa” um filme imprescindível, com atuações excelentes (até Mariah Carey dá um show de interpretação como uma assistente social), com destaque para a protagonista Gabourey Sidibe, que faz com os espectadores torçam por sua Claireece e além de praticamente encarnar duas personagem (a Preciosa real e a Preciosa dos sonhos) sem nunca ser menos que brilhante.
Apesar de todos os atores estarem muito bem, o filme tem uma interpretação excelente da comediante Mo’Nique, no papel de mãe severa e má.
Mo’Nique constrói uma mãe tão crível que chega a ser assustadora de tão real, além de demonstrar um total domínio dos silêncio e de uma ótima expressão facial (nos momentos finais, ela coloca o filme no bolso e o leva pra casa. Num monólogo onde revela à assistente social tudo o que sabia a respeito do incesto sofrido pela filha, a atriz exibe uma maturidade cênica tão absurda que eu só consegue ficar de boca aberta pensando “que maravilhosa atriz!”. Nessa cena, ela quase nos faz esquecer das crueldades de sua personagem. Quando ela diz entre lágrimas para a assistente social “ fica ai sentada me julgando e fazendo anotações sobre quem pensa que eu sou” é como se ela dissesse ao público: Olhem para mim, eu também preciso de amor, eu também fui abusada e humilhada, eu também quero a redenção. Só que quando ela se dá conta disso é tarde demais.)
Enfim, “Preciosa” é um daqueles filmes que marcam, que emocionam, que questionam e dizem a que veio.
Como ficar indiferente a este filme quando Claireece diz: “O amor não fez nada por mim! O amor me bate, me estupra, me chama de animal, me faz sentir uma inútil, enfim me deixa doente.”???
Como não se emocionar com uma tentativa por parte de Claireece de mostra ao filho coisas mais bonitas e sublimes que ela mesma desconhece, mas que sabe que é bom, sabe é que por ali o outro caminho que deve trilhar.
Um ótimo exemplo de como se fazer filmes “populares” sem precisar ser “popularesco” e bobo.
Caterpillar
3.5 3TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Caterpillar", do diretor japonês Koji Wakamatsu é um filme radical, bem do tipo "ame-o ou deixe-o.
O filme mostra a história de uma mulher que recebe o marido soldado que estava na guerra de volta para casa. Seria um filme feliz, se o marido não estivesse sem pernas, sem braços, quase surdo e mudo e com o rosto todo deformado.
Shigeko é a esposa do tenente Kurokawa, herói da guerra entre Japão e China, que se vê tendo que cuidar de uma marido inválido e pressionada pela cultura local, que diz que um soldado que volta da guerra naquelas condições é considerado um “Deus da Guerra”.
O filme não tem mocinhos e muito menos vilões. As pessoas são o que são, com suas contradições e possíveis belezas.
Detalhe chocante da história: o único membro que funciona perfeitamente na anatomia do soldado Kurokawa é o sexual e sua esposa Shigeko é obrigada a satisfazê-lo sexualmente falando. Sem polemizar o que por si só já é polêmico, o diretor mostra o horror no rosto da esposa. É óbvio que ela não quer transar com aquele homem sem pernas, sem braços e com o rosto todo deformado. Mas,por algum sentimento (amor ou obrigação conjugal ou pressão cultural ou todas as alternativas anteriores) acaba cedendo às investida do marido. Ele, por sua vez, acaba colocando no sexo toda a sua frustração e desejo de se sentir ainda vivo. O sexo é diário e absolutamente “forçado”. A esposa não sente nenhum prazer, exceto talvez por agora estar por cima da situação. O que mais tarde se confimará como mera aparência, porque apesar de estar praticamente invalido é o marido e não Shigeko quem é o dono da situação. Ela continua sendo um mero arremedo das vontades soberanas e “baixas” do marido. Shigeko reage como pode, às vezes explodindo em xingamentos pesados contra o marido ou batendo nele, numa repetição absurda dos sofrimento que ele mesmo no passado já lhe impôs.
É um filme chocante sim, as cenas são lentas, meio escuras e sujas, mas com uma beleza plástica arrebatadora.
A atriz Shinobu Terajima dá um show de interpretação e merecidamente foi premiada no Festival de Berlim. Sua Shigeko é minimalista, com nuances de sentimentos muito bem executados pela atriz. Não é uma personagem fácil. O martírio pelo qual passa Shigeko poderia facilmente levar a interpretação da atriz para uma redução ao papel de vítima. Mas atriz e o diretor não caem nesse engano.
As cenas de sexo entre marido “invalido” e esposa são mostradas sem medo ou fetichismo. Novamente as coisas são. A situação é aquela e pronto.
O filme é também narrado por meios de flashbacks, onde acompanhamos alguns momentos de glória na carreira do soldado Kurokawa. Esses flashbacks são de extrema importância para o final que no mínimo causa um certo estranhamento. O fim como na própria vida é feliz para uns e infeliz para os outros. "E na vida a gente tem que aprender que um nasce para sofrer, enquanto o outro ri", já cantava Tim Maia na música “Azul da Cor do Mar”. Ou então "aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar" do poema manifesto de Bertolt Brecht.
Aliás, falando em Brecht desde peças como “Os fuzis da senhora Carrar”, “Mãe Coragem e seus filhos”, “Um homem é um homem” e “Terror e Miséria no Terceiro Reich” que eu não via algo tão explicitamente contra a guerra e seus horrores.
Enfim, um filme indigesto, chocante e quase abjeto, mas extremamente necessário.
"Caterpillar" é um libelo antibelicista, e antes de tudo um excelente filme.
Amores Imaginários
3.8 1,5KTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Os amores imaginários” é como uma carta de amor, e como já escreveu Fernando Pessoa: “As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas.”
“Os amores imaginários” como o próprio nome já diz é um filme sobre paixões platônicas, sobre aquela sensação estranha de gostar de alguém e não saber direito se o objeto de seu desejo ou amor corresponde ao seu sentimento.
Xavier Dolan é um jovem diretor de cinema e esse é seu segundo filme. O primeiro “Eu matei minha mãe” fez sucesso em Cannes e abriu portas para ele.
Nesse segundo filme, Dolan prova que apesar da pouca idade já sabe muito bem o que quer. Os dois filmes apesar de muito diferentes entre si, guardam semelhança estéticas, o que denota que o jovem diretor já tem um estilo próprio de filmar e pensar o mundo.
Partindo sempre de premissas bem simples, seus dois filmes possuem uma embalagem muito bonita e extremamente “cult”. O que contêm dentro da embalagem é um presente simples, porém digno. Só terá acesso ao presente quem abrir a embalagem. Se tiver preguiça de desatar o nó do laço ou não quiser rasgar o papel que reveste o presente, não conseguirá enxergar o que aquela linda caixa esconde.
Assim são os dois primeiros filmes de Dolan.
Em “Eu matei minha mãe”, o tema é o relacionamento conflituoso entre uma mãe e um filho. E em “Os Amores Imaginários”, o tema é o conflito de dois amigos que gostam do mesmo homem.
Francis e Mari são dois amigos que se vêem apaixonados por Nicolas, garoto do interior que acabara de chegar à cidade grande.
O filme retrata a disputa entre Mari e Francis pelo coração de Nicolas de maneira engraçada e lúdica. Nicolas é um garoto misterioso, meio blasé, rico e cult, que não deixa claro se é gay, hetero ou bissexual, fato que instiga ainda mais a disputa entre os dois amigos.
É quase impossível assistir “Os amores imaginários” sem se identificar com a situação vivenciada por Mari e Francis. Que nunca amou alguém que atire a primeira pedra?
Sabendo dessa possível identificação do público com os personagens do filme, o diretor brinca com as possibilidades dramáticas de seu tema. É um filme mais leve que o anterior, sem dúvida, mas com a mesma inquietação juvenil que eleva a nona potência qualquer probleminha.
Em paralelo com a história principal, o diretor simula comentários reais de jovens a uma espécie de terapeuta sentimental. Esses apartes possuem a função de fazer pequenas interpretações acerca do tema amor. São breves e despretensiosos, e oscilam entre o registro cômico ou o dramático. Num deles, o mais engraçado de todos, a menina confessa que seus namoros via internet sempre dão errado. A maneira como a atriz interpreta essa personagem é maravilhoso. Ela é engraçada, sem querer sem engraçada. Suas tiradas, seus jeito de falar remetem imediatamente ao cinema do espanhol Pedro Almodóvar.
Sim, o diretor Xavier Dolan utiliza-se de várias referências ao longo do filme para contar sua fábula sobre o amor platônico. Especialmente nesse filme, a maior influência de Dolan seja o diretor François Truffaut e seu “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois”.
Também estão lá as cores berrantes da primeira fase de Pedro Almodóvar, a câmera lenta de Wong Kar-Wai, a aparente frivolidade de Sofia Coppola , aquele ar meio blasé francês de Christophe Honoré e o cinismo tragicômico de algumas tiradas de Woody Allen. Essas e outras influências e referências pululam a todo o momento da tela de cinema. Longe de soar como um arremedo desses cineastas, Xavier Dolan se apropria de cada uma dessas linguagens e faz um filme seu. É extremamente interessante acompanhar a maneira honesta como o diretor lida com tudo isso. Em nenhum momento ele esconde que admira esses artistas, muito pelo contrário, assumi a paixão e batalha para criar um estilo próprio e consegue.
Assisti ao filme na Mostra de Cinema de SP e à sala lotada reagiu bem ao novo filme do diretor.
“Os amores imaginários” de uma maneira muito particular acaba sendo um rito de passagem da “adolescência” para uma vida “adulta”.
Lá pelas tantas (e eu não vou contar o final aqui) o filme mexe com os ânimos da platéia e é impossível não tomar partido e se emocionar com algumas seqüências finais.
Para mim fica a impressão que Xavier Dolan faz um cinema autoral com temas muito íntimos e apesar de não parecer “Eu matei minha mãe” e “Os Amores imaginários” acabem sendo filmes complementares.
Se o protagonista Hubert de “Eu matei minha mãe” tem que aprender a se virar sozinho e matar psicanaliticamente sua progenitora, em “Os Amores Imaginários” coloca os protagonistas dentro de uma outra questão: Como não se machucar ao se entregar a um outro quase desconhecido, que no final corre o risco de ser mero arremedo de nossos desejos reprimidos? Pode parecer um tema mais banal que o primeiro, mas não é. Um é prolongamento do outro.
Em termos estéticos o filme é um deslumbre meio barroco e com sofisticado (e simples ao mesmo tempo) efeito de iluminação, com uma trilha sonora sensacional e com a excelente atuação da atriz Monia Chokri. Sua Mari é tragicamente engraçada, ela parece ter saído de um filme lá dos anos 50, suas roupas, seus cabelo e sobretudo sua maneira ingênua de encarar o objeto amado, tudo remete àquela época. Sua atuação é magistral, minimalista e absurdamente nuançada. O filme é dela e ninguém tasca. Xavier Dolan, que além de escrever e dirigir, também atua, se sobressai nos vôos mais dramáticos da história. E o ator Niels Schneiderm que faz Nicolas, cumpre a função de ser mero objeto do desejo dos dois. Ele não compromete o filme, mas também não vai além do normal.
Enfim, “Os Amores Imaginários” é um filme que retrata o vazio existencial de uma geração acostumada a só receber sim como resposta e que quando ganha um “não” faz beicinho e birra, mas que depois dá a volta por cima e parte para próxima, sem talvez não aprender nada com a experiência anterior. No fundo o que Xavier Dolan faz é uma analise de seu tempo, meio cínica é verdade, mas que não deixa de ser um retrato de sua época. E é justamente nesse quesito que vejo muitos pontos em comuns entre ele e Sofia Coppola, outra mestra na arte de manifestar o vazio existencial de uma geração.
Os críticos normalmente acusam os dois cineastas (Coppola e Dolan) de serem vazios e absolutamente estéticos. Mas, ora vejam, se as pessoas não são vazias e absolutamente estéticas? Cada diretor encontra sua forma particular de expurgar esse vazio. Confesso que me identifico e muito com a forma encontrada por Dolan e Coppola para trazerem a tona esses temas.
Ao final me lembrei da afirmação da autora Clarice Lispector: "Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a ultima gota. Sem nenhum medo. Não mata."
Lembrei também de Cazuza: "O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo, indo embora."
E eu dolorosamente concordo com Pessoa, com Clarice, com Cazuza, com Coppola e com Dolan.
Outubro
3.3 14 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O filme “Outubro” dos diretores Daniel Vega e Diego Vega é tristemente engraçado e engraçadamente trágico.
O filme é uma co-produção dos seguintes países: Perú, Espanha, Venezuela e conta a história de Clemente, um homem mau-humorado, dono de uma loja de penhora, que certo dia descobre em sua casa um bebê. Mais tarde saberemos que esse bebê fora deixado por uma prostituta que ele supostamente engravidou. Sem saber como lidar com aquela criança, ele “contrata” os serviços de uma vizinha, absolutamente religiosa, que é apaixonada por ele. Junto com essa história, acompanhamos algumas outras também, como os dramas dos clientes que penhoram suas coisas e depois não possuem dinheiro para pagar e a busca de Clemente pela suposta prostituta, mãe de sua “filha”, além do romance de um velho com uma senhora em estado de coma no hospital.
Sem fazer gracinhas desnecessárias para ser engraçado, os diretores conseguem extrair momentos hilariantes da história. Aqui a graça não está nas piadas e sim na ação cotidiana dos personagens. O humor aparece como antídoto para o choro. É um filme triste, sobre fracassos, sobre pessoas que ainda sonham, que ainda tem esperanças, que ainda acreditam na fé.
Clemente leva uma vida normal, durante o dia seu trabalho é se dar bem em cima das desgraças financeiras de alheios, sobrevive de pequenos empréstimos para pessoas pobres, já de noite, procura prostitutas para satisfazer suas necessidades sexuais e também beber em bares. Nada mais normal que isso.
Ao se defrontar com uma criança de colo em sua cama, seu mundo vira de cabeça para baixo, literalmente. Ele passa a não dormir mais devido ao choro constante do bebê, começa a errar nos negócios e até broxa na cama com uma puta.
Sofia é uma mulher que não casou, mas que deseja arrumar um marido, todo mês de outubro ela participa do culto do Nosso Senhor dos Milagres na tentativa de realizar seu intento.
Sofia é a mulher perfeita para cuidar da criança que Clemente arrumou e ela vê nesse novo emprego uma oportunidade para fisgar o homem.
Pouco a pouco o cotidiano desse dois personagens passa por algumas alterações. Ambos passam a experimentar sensações que são estranhas; como chegar em casa no dia de seu aniversário e ter alguém que tenha preparado um bolo, comprado presentes e chamado mais duas pessoas para a festa. Aliás essa é a cena mais sensacional de todo o filme. O mais puro retrato do fracasso que aqueles personagens poderiam chegar. Ao mesmo tempo é uma cena linda, terna, eu diria.
O filme inteiro é assim, os diretores extraem lirismo e comicidade da derrocada do ser humano. “Outubro” é o mês do ano que a vida daqueles personagens irá mudar. É uma ótima sacada. É um excelente filme. Sem experimentalismos, nem ousadias formais, mas que conta uma história que te prende e até te faz torcer por um possível romance entre os protagonistas.
“Outubro” é um filme sobre falibilidade de existir, sobre buscas, sobre lado insondável do amor e a possibilidade de existir novos caminhos esperando a gente por ai.
Recomendo!
PS: O Ator Bruno Odar dá um show no papel de Clemente. Sem utilizar de recursos cômicos babacas consegue arrancar risadas inúmeras do público, além de arrasar nos momentos mais densos da história.
O Sacrifício
4.3 148TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Puta que pariu! O filme "O SACRIFÍCIO" de Andrei Tarkovski me deixou mudo. Mas tento escrever. Sim. O filme é inquietantemente sublime. Onde o onírico tenta capturar o real. Mas onde a verdade está?
O filme conta a história de Alexander, um pensador, que abandonou sua carreira de ator para viver num lugar afastado da civilização, com sua mulher e seu filho pequeno.
É seu aniversário, ele planta uma árvore morta ajudado por seu filho e lhe conta uma parábola de um homem que regava todo dia uma árvore morta na esperança dela florescer novamente.
O garoto está mudo, uma cirurgia na garganta impede-o de falar. Seu pai, ao contrário, fala pelos cotovelos.
O carteiro entrega uma carta onde amigos desejam feliz aniversário para Alexander.
Familiares chegam para comemorar com ele. Tudo transcorre normalmente até que uma notícia na televisão deixa todos sem reação. Uma guerra nuclear é noticiada. Silêncio. Pânico. Cada pessoa ali naquela sala reagirá de uma maneira diferente. A iminência do fim de uma maneira bastante particular provoca aqueles personagens, retirando-os de uma apatia cotidiana.
Alexander, um ateu convicto, ajoelha, chora, reza um pai nosso e implora ao Deus que tudo volte a ser como era antes. Em troca, promete abandonar tudo e todos. A partir daí, o filme ganha contornos oníricos, onde “realidade” e “sonho” se misturam de um jeito que é quase impossível discernir o que é o quê?
Tarkovski ao falar sobre “O Sacrifício” escreveu:
"O assunto que abordo neste filme é, na minha opinião, o mais crucial: a ausência de espaço para a existência espiritual, em nossa cultura. Nós ampliamos a meta das nossas realizações materiais e conduzimos experiências materialistas sem levar em conta a ameaça que é privar o homem de sua dimensão espiritual. O homem está sofrendo, mas não sabe porque. Ele sente uma ausência de harmonia e procura a sua causa."
Essa ausência, esse silêncio provoca o tédio das relações humanas. Sim. Estamos todos entediados. Nada faz sentido. Se é que algum dia fez... Buscamos uma possível esperança num consumismo exagerado, em amores utópicos fadados ao fracasso. Sim. Talvez todos estejamos fadado a esse fracasso. Somos os expulsos do paraíso.
Tarkovski de alguma maneira única remonta a história contida no livro de Gênesis, a relação entre o pai (Deus) e o garoto mudo (homem) é uma maneira possível de enxergar o filme. O lugar escolhido pelo pai para passar seus últimos dias é paradisíaco (Jardim do Éden?) os dois (pai e filho) vivem em comunhão. Desfrutando de tudo aquilo proporcionado pelo meio em que vivem. Tudo exala harmonia. Até que os outros humanos (sempre eles) rompem com essa harmonia. A aproximação da guerra nuclear que extinguiria com a humanidade é um possível canal para restabelecer aquilo tudo que foi perdido.
"Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. E disse o Senhor: Destruirei da face da terra o homem que criei, tanto o homem como o animal, os répteis e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito. " [Gênesis, capítulo 6, versículo 6-7]
Essa guerra nuclear anunciada no filme encontra eco no mito da Arca de Noé, em que Deus desiludido com a humanidade faz chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, exterminando da face da terra todas as criaturas que fez.
Alexander é esse Noé contemporâneo. Cabe a ele salvar a humanidade. Mais que Noé, o protagonista de “O Sacrifício” é uma espécie de Jesus Cristo. Para salvar a humanidade, ele tem que deixar sua vida pregressa. Abandonar tudo: casa, família, status ... A exortação de Cristo "Vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e segue-me" é colocada de uma maneira um pouco mais radical. Para salvar a humanidade, Alexander terá que ter uma noite de amor com sua misteriosa empregada chamada Maria. Quem comunica-lhe isso é o carteiro da cidade no meio da madrugada. Essa figura tragicômica é extremamente interessante. Ele lê Nietzsche e discute conceitos como o do “Eterno Retorno” e confidencia ao amigo que sente como se nunca tivesse vivido, mas sempre esperando uma vida ...
Caberá a esse personagem o papel de revelar a verdade para Alexander, ele é uma espécie de emissário (um anjo?).
No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. O papel da palavra no filme encanta, provoca o colapso, e é também responsável pela tentativa de religação do homem a Deus. Tarkovski faz um filme religioso, mas também vai além, o que ele busca é a transmutação de todos os nossos valores do cristianismo. Sendo assim, o filme se transforma num belíssimo libelo nietzschiano.
Deixa Ela Entrar
4.0 1,6KTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Deixa ela entrar” é um filme esquisito, híbrido, porém cativante. É um filme sueco.
É um daqueles filmes que você começa assistindo achando que não vai gostar e de repente se pega dentro da história, torcendo para o protagonista.
Foi assim que aconteceu comigo...
O filme conta a história do pequeno Oskar, de apenas de 12 anos de idade, que sofre com uma certa frequência, provocações, humilhações e até espancamento na escola, sem nunca se defender deles, aceitando calado todo e qualquer tipo de “bullying”.
Um belo dia, Oskar conhece Eli, garota de “mais ou menos” 12 anos (como ela mesma se apresenta) que acabou de se mudar para o apartamento ao lado do seu, ela é séria, pálida e quase nunca sorri e diz que não pode ser amiga dele.
O filme é sobre amizade dos dois, em como eles tornam-se amigos, em como eles se apaixonam.
Pequeno detalhe que pode fazer toda a diferença, ela é vampira, se alimenta de sangue, não pode ver a luz do sol, entre outras coisas.
Ele no início não sabe que ela é vampira, vai descobrindo aos poucos, ela incentiva ele a revidar os ataques sofridos, ele revida, um dos garotos perda a audição de um dos ouvidos, por causa da paulada que Oskar desfere nele.
Crimes começam a acontecer na pequena cidade, cercada de neve por todos os lados...
É nesse clima de tensão que a direção segura e engenhosa de Tomas Alfredson ganha destaque.
Sem nunca apelar para soluções fáceis , o diretor abre espaço para a imaginação do público, deixando com que ele (mais do que qualquer efeito criado) determine do que sentir medo.
É um filme de tensão e de amor, é um filme híbrido como já disse... e é um filme sobre a adolescência, essa fase complicada em que o que mais desejamos é sentir-mo-nos pertencente à um grupo.
Em “Deixa ela entrar” vários assuntos são discutidos, assuntos contraditórios, controversos e até mesmo incongruentes, no entanto, na mão de Tomas Alfredson nada fica em desarmonia, nada.
Algumas cenas são violentas (principalmente as que mostram Eli atacando suas vítimas), outras são de um lirismo puro e pungente (as que revelam o crescendo do amor de Oskar e Eli).
Rejeitando todo e qualquer tom fantástico, Alfredson constrói um filme seco, distanciado e belo em que a personagem Eli busca em Oskar a substituição de um antigo amor e também de um futuro “matador”, aquele que conseguirá sangue para ela se alimentar.
Um dos personagens mais polêmicos do filme é Håkan, que no começo do filme se comporta como pai da pequena Eli, mas, aos poucos vemos que a relação dos dois é de amor e dependência, mais dependência do que amor.
Håkan é quem mata as pessoas e rouba-lhes o sangue para alimentar Eli.
Mais ou menos no começo do filme, Håkan é preso e para não ser reconhecido joga no rosto um líquido que o deforma.
Sua última cena explicita até onde vai por amor à Eli, é uma cena forte e sublime ao mesmo tempo, o filme inteiro é esse jogo, violência e lirismo...
Eli percebe em Oskar tudo aquilo que Håkan já fora um dia pra ela, ele envelheceu, ela não, ele morre, ela sobrevive, ela precisa de outro amado e “psicopata”; Oskar é esse cara.
Quem já assistiu sabe do que eu estou falando...
Enfim, um estranho e belo filme, com uma fotografia e enquadramentos geniais, uma trilha perfeita e emocionante e um ótimo filme de terror, um interessante tratado da vingança, um assustador filme de vampiro, um belo filme de amor.
Gerry
3.3 92TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
"Gerry" de Gus Van Sant é uma experiência poética/cinematográfica única. Beira o surreal e alcança o sublime. Genial!
A cena de abertura é deslumbrante, mostra um carro dirigido por dois homens numa estrada desértica, ao fundo uma trilha emocionante de Arvo Pärt. Essa cena por si só já engrandece e valida todo o filme.
Mas o diretor nos dá mais, muito mais.
A trama (na verdade, um fiapo de trama) conta a história de dois jovens aparentemente perdidos num deserto e que tentam voltar. Gus Van Sant não explica nada. Nem os porquês da perdição e muito menos para onde eles tentam voltar.
Em outras palavras, o filme não tem aquilo que os críticos de cinema (e de teatro também) e o publico exigem dos filmes: que ele faça sentido, ou que tenha um começo, um meio e um fim predeterminado (como nos ensinou os gregos, sempre eles) ou em outras palavras que tenha eixo dramático.
Não. “Gerry” não tem nada disso. Os diálogos são poucos, e quase mal falados, e as cenas não parecem “fazer sentido”.
É cinema lispectoriano: “ou toca ou não toca”.
Para quem entra no filme, o diretor oferece cenas antológicas e deslumbrantemente lindas. É impossível enumerá-las. Uma é melhor que a outra. Mas vou destacar uma só, pelo preciosismo e ao mesmo tempo simplicidade com que Van Sant executa-a: a cena magistral consiste num longo plano seqüência em que o diretor filma os dois jovens andando. Só isso? Sim. Só isso. O sublime está na maneira como o diretor filma a cena. É de arrepiar. É de cair o queixo. E gemer baixinho de alegria.
Durante o filme fiquei pensando na peça “Esperando Godot” do dramaturgo irlandês Samuel Beckett que retrata uma situação-limite parecida: num tempo e lugar indefinidos, dois personagens esperam o tal Godot do título. Quem são eles? Quem é Godot? Que lugar é aquele? Nada é explicado pelo autor. Pelo contrário, os diálogos são surreais e beiram o grotesco. Assim como “Gerry”, o enredo da peça é uma mera desculpa para que o autor discuta e repercuta uma visão cruel/realista de mundo: nada faz sentido e quase nunca temos algo relevante para fazer. O que se sucede então? Gus Van Sant e Beckett respondem: esperamos. O que ou quem? Nem isso sabemos.
Sim. O filme é existencialista. Mas não um existencialismo de palavras ou pedante. Não. Algo palpável e materializado na própria cena e encarnada nos personagens.
Os personagens estão perdidos. Mas a humanidade também está. Os personagens querem voltar. A humanidade também quer voltar. Mas ninguém sabe para onde? Mais lacaniano impossível hein? Sim. Para o psicanalista Lacan, sofremos porque não temos para onde voltar. É exatamente isso que o filme de Gus Van Sant retrata.
Os dois atores Matt Damon e Casey Affleck estão soberbos. Sim. Os dois. Impossível classificar qual o melhor? Ambos estão excelentes e traduzem em silêncio o desamparo que é viver.
Durante o filme disse para o meu amigo que estava assistindo o filme comigo que era nítido a influência do cineasta húngaro Béla Tarr. Dito e feito. Ao final do filme, Gus Van Sant homenageia Tarr com um agradecimento no final.
Sim. Estão lá os longos e maravilhosos planos seqüências do húngaro, assim como uma visão pessimista do mundo e seus habitantes.
Gus Van Sant filma aqui e quase sempre o apocalipse diário à que somos obrigados a participar. Esqueça os quatro cavaleiros bíblicos, os sete selos, as sete taças, as sete igrejas, o cordeiro, o anticristo ou a besta... Esqueça tudo isso.
Em “Gerry” o que verdadeiramente anuncia o fim é a paisagem natural e encantadora. Há beleza na morte. Há morte na beleza. Ou tudo pode ser apenas um miragem.
O que verdadeiramente não é uma miragem é a beleza e a genialidade desse filme.
Ou pensando melhor, “Gerry” é uma miragem. SIM. É um oásis em meio ao deserto que é o cinema atual. “Gerry” é um lugar agradável entre outros que não o são.
BRAVO!
As Harmonias de Werckmeister
4.3 94TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Fiquei completamente aturdido quando vi "Werckmeister Harmóniák”.
Não sei se conseguirei defini-lo bem, mas sei, e isso sei muito bem, que é uma das coisas mais sensacionais que já assisti em toda minha vida.
Sublime, caótico, poético, virulento, apocalíptico, genial, soberbo, magistral.
SIM. Tudo ao mesmo tempo. E ainda é pouco.
O filme conta a história de uma cidadezinha pacata que certo dia recebe a visita de um espetáculo anunciado como “fantástico”. Os habitantes se agitam. Prevêem mau agouro. Mas János, o mais jovem morador do povoado é o primeiro a pagar para ver o tal espetáculo. Ao entrar numa “cabine”, ele dá de cara com uma enorme Baleia empalhada. Fica então, fascinado e ao mesmo tempo assustado com a visão. Ele é o protagonista do filme. János é um espécie de faz-tudo do vilarejo. Cuida dos parentes, diverte os bêbados, entrega jornais, e também é chamado para conciliar algumas questões familiares. Somos apresentado à János, logo na primeira seqüência do filme. Aliás, excepcional. O Bar está pra fechar e János dá uma aula sobre eclipse solar para os bêbados. Ele utiliza os próprios freqüentadores do bar como “atores”: um é sol, o outro a terra e mais outro é a lua. Depois da “aula”, o dono do bar manda todos embora e é exatamente aqui que temos contato com algo que János repetirá quase o filme todo: andar. Inúmeras vezes e em diferentes situações o diretor filma János andando ou correndo. Todas essas cenas são deslumbrantes, tamanho grau de perfeição que o diretor alcança filmando tais seqüências. János corre pra cá e pra lá. E ao longo do filme vai se tornando peça fundamental nos desdobramentos do roteiro. A simples presença da baleia e de um convidado especial põe as certezas dos habitantes do povoado em cheque. O convidado especial é alguém que atende pelo nome de “O Príncipe”. Ele é o responsável pelo caos que se instaura em que cada cidade que passa. “O Príncipe” nunca aparece no filme. Não o vemos, só o ouvimos. E suas “simples” palavras despertam a ira de todos. “O Príncipe” acredita que somente através da destruição será possível recomeçarmos. Aos poucos, um verdadeiro exército começa a levar adiante as ideias dele e a balbúrdia começa. Não vou descrever o que se sucede. Mas existe uma cena de pouco mais de dez minutos que é assustadoramente maravilhosa. Béla Tarr consegue atingir um hibrido de violência com poesia que fiquei... sei lá como eu fiquei... falta palavra pra descrever. Sério. É uma das cenas mais poderosas que já vi.
A construção rítmica, a consciência temporal permeia todo o filme. A primeira parte propositalmente mais calma contrasta com a segunda parte, mais agitada e caótica. Essa sabedoria do tempo fílmico é admirável. Poucos dominam com a maestria que Tarr demonstra aqui essa arte da manipulação do tempo agora do drama.
Tarr subverte e redimensiona os critérios clássicos daquilo que se convenciona chamar de tensão. Seu minimalismo e rigor estético não nos oferecem a catástrofe como espetáculo, nos moldes do cinema hollywoodiano, mas, como algo de imponderável, nos moldes da tragédia grega. Tarr lida com os fenômenos de temporalidade de uma maneira única, sua câmera perscruta tudo e todos, numa investigação minuciosa da realidade que se apresenta. Por trás de uma aparente inação, a câmera de Tarr está quase sempre em movimento, em busca de algo pra filmar. Há no cinema deste diretor húngaro algo que o teórico teatral alemão Hans-Thies Lehmann denominou como essencial para as artes tidas como pós-dramáticas (e eu ouso dizer que Béla Tarr é um deles) : uma relação concreta e complexa entre o tempo da encenação e o tempo da ficção, e não sua fusão. Ora, o que Tarr faz é exatamente isso. Ele explicita de maneira radical as várias camadas temporais contidas no ato de filmar. Obra de gênio mesmo.
"Werckmeister Harmóniák” tem muito da teoria niilista do filosofo alemão Nietzsche, que acreditava que somente através da destruição de todos os valores morais do homem seria possível alcançar um estado de transmutação desses mesmos valores. Nietzsche dizia que "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". Longe de parecer um ideal pessimista, o que Nietzsche escreveu é um difícil chamado a todos aqueles que anseiam por um mundo melhor.
Mas, talvez não estejamos tão preparados assim para lidarmos com nosso próprio lixo. Fato que Tarr filma brilhantemente bem numa cena que é um verdadeiro muro em plena boca do estômago. O final do filme só confirma o talento do diretor em unir o valor estético ao concreto da ação dramática.
Enfim, "Werckmeister Harmóniák” é uma obra-prima, como poucas. E Béla Tarr é um dos maiores diretores que eu já vi. Simples assim? Entendeu? Agora, dá um jeito e assiste esse filme, ouviu bem?
Danação
4.1 51"Danação" do diretor húngaro Béla Tarr é uma obra-prima sobre a humanidade, a solidão, o amor, a melancolia, a chuva e a música.
Fazendo uso de deslumbrantes planos seqüências, o diretor provoca no espectador algo de estranho, sublime e ao mesmo tempo assustador. Sua fotografia num preto e branco esmaecido, quase desmaiado, aliado a um poética errática, ousada e filmando personagens sorumbáticos, deixa bem claro qual é a proposta de Béla Tarr. Ele não faz cinema,mas, hipnose.
É impossível fica indiferente à maneira peculiar com que o diretor enxerga o mundo e seus personagens. Nada passa despercebido pelos olhos/câmera do diretor. Até o detalhe mais vulgar aqui é exposto com sensibilidade única. Uma simples parede sendo molhada pela chuva pode então se transformar numa das mais belas cenas do cinema mundial. Simples assim. Num plano seqüência arrepiante e uma trilha linda, o diretor filma rostos à espera sabe-se lá de quê ou de quem. O ser humano em “Danação” é desesperançado, lembra um trecho de uma poesia de Florbela Espanca:
“Estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade...sei lá de quê!”
Com suas imagens encharcadas de lirismo e melancolia, Tarr vai desenhando/pintando/brincando com cada bloco de cenas. O diretor parece querer capturar o real, para tanto esgarça o tempo cronológico e filma as múltiplas possibilidades do tempo como tempo. Um tempo que é poético e humano, ao mesmo “tempo”. Há beleza na tristeza. Sim. Há na tristeza uma vontade de alegria, e é isso que faz dela mais bela que a própria alegria pura e simples. Clarice Lispector em seu livro “A Hora da Estrela” escreve:
"Se a moça soubesse que a minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada”.
Essa frase seria um belo resumo sobre o filme “Danação”.
Sim. Os personagens tentam desesperadamente. Erram. Buscam. Escavam. Procuram. Acham que acham. Não acham. Tentam novamente. Falam. Falam. Silenciam. Calam.
Essa busca por aquilo que não têm nome permeia o filme. A câmera do diretor assume contornos outros quando percebemos que ela também está à procura de algo ou alguém. Inúmeras vezes a câmera perde os protagonistas de vista e se dêtem intrigada diante de uma outra cena cotidiana ou não. Durante toda a película lembrei de Henri Cartier-Bresson, um dos maiores gênios dessa arte chamada fotografia. Bresson fotografava aquilo que ele denominava de o momento decisivo, aquela átimo de segundo em que tudo parece estar no lugar certo. Assim é "Danação". Apesar de extremamente marcado, a leveza com que a câmera perambula e investiga os ambientes, as coisas e os personagens que retrata dá essa dimensão de “momento decisivo” pretendido por Bresson. Daí que as imagens expressas pelo filme possuem uma força, uma autenticidade arrebatada e arrebatadora. As cenas são tratadas como jóias, lapidadas e estudadas ao extremo, mas com um quê de improviso/imprevisto/real.
A cena de abertura é de cair o queixo. O movimento lento da câmera que filma uma paisagem quase desértica e que pouco a pouco vai revelando um homem de costas fumando e observando a paisagem lá fora dá a noção exata do que pretende o diretor. Linda abertura.
A trama é um fiapo de história, na verdade, é uma desculpa de Béla Tarr para nos brindar com cenas antológicas.
O protagonista é Karrer, um homem apaixonado pela cantora de um bar local chamado “Titanik”. Ela despeja sobre o público já embriagado e nostálgico, uma canção triste:
♫ Está acabado. Fim. Não haverá outro. Não será bom. Outra vez. Nunca mais. Talvez nunca mais. É como um pesadelo, tudo isso. Talvez. Onde haverá alguém novo. De onde ele virá. Se vier. Ou não virá. Nunca mais? Talvez nunca mais. Aceite-me ou deixe-me. É tudo o que tem. Que se pode fazer? ♫
Karrer é um espécie de “O Lobo da Estepe” do escritor Herman Hesse. Em comum entre Harry Haller e Karrer há a mesma necessidade de transcendência, o fracasso dessa busca e também a aceitação de um processo destrutivo da personalidade num homem maduro. O “Titanik Bar” do filme acaba sendo uma espécie de “Teatro Mágico” do livro de Hesse. No filme a entrada não é somente para raros, mas, somente para fodidos.
O “Titanik Bar” também me remeteu imediatamente a cena do filme “Cidade dos Sonhos” de David Lynch que se passa no “Clube Silêncio”. É possível afirmar que Lynch tenha se inspirado em “Danação” para compor a mágica cena passada no tal clube. Assim como é possível afirmar também que Béla Tarr tenha se inspirado em “Veludo Azul” para compor as cenas do “Titanik Bar”. Como também pode ser possível que isso seja só invenção da minha cabeça cinéfila. Pode ser. Ou não. Como diria Caetano.
O fato é que cada cena de “Danação” é antológica e ontológica. Sim. Ao mesmo tempo? Sim. Ao mesmo tempo. Os atores parecem estar num transe que remete ao pretendido pelo diretor francês Antonin Artaud. Uma encenação cruel da realidade, que almejava restituir a magia e o poder do delírio às artes. Artaud queria um teatro fervoroso, catártico, mas não a la Aristóteles. Não. Uma catarse epidêmica.
Assim é “Danação”. Exatamente assim. Um passo adiante também.
Impossível esquecer suas cenas, seus personagens, suas falas, seus silêncios, suas músicas insistentemente repetidas. Impossível esquecer a cena em que Karrer briga com um cão e se torna um deles. O homem como coisa. O homem como bicho. O instinto como destino. O destino como tragédia. E aquela náusea sartreana que fica em nossa garganta após os créditos do filme.
EXCEPCIONAL!
E a Adão Deus disse: “Porque escutaste a voz de tua esposa e foste comer da árvore a respeito da qual te ordenei, dizendo: ‘Não deves comer dela’, maldito é o solo por tua causa. Em dor comerás dos seus produtos todos os dias da tua vida. E ele fará brotar para ti espinhos e abrolhos, e terás de comer a vegetação do campo. No suor do teu rosto comerás pão, até que voltes ao solo, pois dele foste tomado. Porque tu és pó e ao pó voltarás.”
[ Gênesis capítulo 3, versículo 17- 19 ]
127 Horas
3.8 3,1K Assista AgoraFui assistir “127 horas” do diretor Danny Boyle no cinema. Não fui esperando muita coisa e talvez por isso, tenha me surpreendido.
O filme não chega a ser excepcional, mas também não decepciona, muito pelo contrário.
“127” é entretenimento e dos bons. Não há nenhuma mal nisso. Tudo funciona corretamente. Nada parece estar fora do lugar. O roteiro é competente. A direção, segura. James Franco dá um show como ator. A fotografia é deslumbrante. A trilha coloca o espectador dentro da ação, sem forçar a barra. É um filme correto. E assim o é, quando tenta ser ousado, utilizando uma fragmentação da tela para tensionar o que já por si só é tenso. O maior trunfo do filme é tornar interessante a história de um homem preso a uma pedra no meio do nada. O que poderia resultar num filme chato e sem atrativo. Não é o que ocorre. Danny Boyle coloca em prática, ideias muito criativas. Soluções inteligentes que prendem a atenção do espectador. Tudo isso sem soar didático. É um feito e tanto. Em se tratando de um filme “blockbuster”, isso por si só já seria digno de comemoração. Mas não é só. O filme tem momentos interessantíssimos. Principalmente quando o personagem principal já não suporta mais o tédio e a tensão daquela situação e sua imaginação voa longe. Tudo poderia ter sido diferente. Sim. Será mesmo? Não sei não. O fato é que parece que aquela pedra esperava por aquele personagem. Ele mesmo chega a verbalizar isso. Outro aspecto positivo do filme é a abordagem realista do drama. Opção que se mostra acertada durante quase que o filme todo. James Franco está ótimo. Sua angústia e sua vontade de viver estão latentes na composição do papel. Ele não exagera em nenhum momento. Assim como o filme. Como já disse, é um filme correto e um ótimo entretenimento. E ah! Tem “Sigur Rós” na trilha sonora.
WALL·E
4.3 2,9K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Os minutos iniciais do desenho “Wall-E” é coisa de gênio. Após um prólogo onde uma música alegre apresenta o filme, vemos um pequeno robô recolhendo lixo.
Sem trilha sonora alguma e fazendo uso de uma fotografia em tons ocre e ferrugem, vemos um lugar totalmente devastado, sujo e feio. O pequeno robô prossegue recolhendo lixo. Repetidamente.
Quando encontra algo inusitado ou do seu interesse, o robô guarda o objeto e leva para “casa”. Sua única companhia é uma barata, que o segue por onde quer que ele vá. O que chama a atenção logo de cara é o contraste entre o espaço gigantesco e o tamanho do robô. Somado a isso, a absoluta humanidade transmitida pelos “olhos” do robô de nome Wall-E. Seus olhos são tristes, porém, vivazes. Outro detalhe que chama a atenção de quem assiste é a maneira engraçada com a qual Wall-E se relaciona com os objetos que encontra pelo caminho. Sem possuir os termos comparativos dos humanos, ele chega a descartar uma jóia lindíssima para ficar com a pequenina caixa azul do anel. Tudo o que Wall-E acha de interessante, ele leva para sua “casa”, cataloga o objeto e os guarda. Seu nível organizacional é impressionante. Quando não consegue discernir em qual categoria colocar um determinado objeto, ele se vale de um minucioso método comparativo e enfim acha um lugar. Essas cenas são determinantes para nossa identificação com o pequeno robô e com o próprio filme. Ao colocar em cena, objetos que nós (espectadores) já sabemos de antemão o que seja e Wall-E não, o diretor Andrew Stanton nos questiona: Afinal, para que serve um objeto caro, mas sem utilidade prática num mundo inabitado?
Sim. Nós sabemos que uma jóia é bem mais valiosa que a caixinha que a guarda, mas como o robô desconhece o valor material dos objetos, sua escolha entre o que vale a pena de ser conservado é totalmente diferente e racional. Brecht em sua vivência teatral formulou a técnica da desfamiliarização, que consiste numa maneira particular de ver e conceber o mundo e tudo aquilo que o rodeia. Essa ideia não é original de Brecht, mas encontra numa Alemanha Pós-Guerra, o trampolim perfeito para a sua prática. Brecht crítica em sua teoria, a visão de mundo capitalista, onde os objetos que possuímos determinam nossa relação com os outros e todo o entorno. Relações mercantis. Sim. Quanto vale ou é por quilo? Sim. Então, Brecht orienta seus atores para um teatro em que o estranho, o diferente, o não usual seja o norte do trabalho. Com essa técnica espera fazer com que o publico questione o que veja no palco, para que possa se questionar na “vida real”. O que Brecht quer dizer é que num mundo totalmente esquemático, onde os objetos são moedas de troca, o próprio ser – humano vira ele mesmo, uma mercadoria.
No filme “Wall-E” essa ideia fica clara na apresentação de um espécie de cruzeiro intergaláctico para humanos onde o locutor vende uma viagem de diversão sem fim, onde tudo é automatizado e os humanos viverão eternamente deitados em confortáveis cadeiras onde todos os seus desejos serão atendidos prontamente.
O robô não presta muita atenção nesse comercial, pois sua paixão mesmo é assistir sempre a mesma cena do musical "Hello, Dolly", estrelado por Barbra Streisand e Walter Matthau. Sua fixação é tamanha, que ele tenta repetir os gestos dos atores do musical e sonha em encontrar uma parceira para a dança.
Não demora muito e a provável parceira de Wall-E surge. Ela é “Eva”, robô completamente diferente dele. Eva é de última geração, enquanto Wall-E é quase um ferro velho. Wall-E se apaixonará por Eva. Eva se apaixonará por Wall-E e quando o desenho está prestes a virar um filme de amor entre robôs, o roteiro avança e descobrimos que Eva possui uma missão: encontrar algum tipo de vida que faça com que os humanos que abandonaram a Terra há cerca de 700 anos possam repovoá-la. Wall-E ao levar Eva para dentro de sua “casa” apresenta alguns dos objetos que encontrou em suas andanças. Como um macho orgulhoso, Wall-E quer mostrar para a fêmea que ele também tem seu valor. É nesse momento então que o robô mostra a Eva algo que ele não sabe direito o que é. Eva fica impressionada. Ela sabe do que se trata aquilo que Wall-E lhe mostra. É uma planta. Exatamente aquilo que Eva precisa para executar sua missão. Depois disso, o roteiro tem uma mudança brusca e vira um desenho animado convencional. Mas isso não tira o brilho de um filme extremamente inteligente e emocionante. Apesar de possuir uma mensagem ecológica, o filme não é chatinho, nem pedante. Muito pelo contrário, é animação e das boas, sendo os maiores destaques sua fotografia maravilhosa e a trilha sonora genial.
Recomendo.
PS: Os créditos finais é um show a parte. De fazer babar quem aprecia pintura, história da arte e a própria evolução da computação gráfica. GENIAL!
Rosetta
3.9 76TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
“Rosetta” dos irmãos Dardenne é um filme excelente. Provocativo. Atual. Austero. Que exprime a dor de existir.
Contando a história de uma garota que sonha em encontrar um emprego de verdade, o filme mostra uma realidade desconfortável, que é expressa tanto pela história da menina, quanto pela forma com que os Dardenne filmam.
A câmera quase sempre na mão, inquieta, perscruta os personagens. É um cinema encarnado. Minimalista. Seco. Cru. Cruel.
Os diretores do filme não perdem tempo contando uma historinha para boi dormir. Não. É cinema em sua mais alta acepção. Os personagens não são explicados. Eles agem. Conhecemos quem eles são, através daquilo que é mostrado pela câmera invasiva e hostil da direção.
Essa prática remete ao “Gestus Social”, termo trabalhado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, em que a leitura dos personagens se daria muito mais pelas dimensões físicas do que psicológicas. O modo como os personagens agem, se vestem, comem, pensam, falam, calam... tudo isso é gesto em Brecht. Sim. E é assim também em “Rosetta”. A crítica social surge no filme não como uma bandeira a ser levantada, mas como algo a ser notado, algo que existe e tem que deixar de existir. Sim. O filme não termina quando acaba. O incômodo provocado pelo que é mostrado não deve abandonar o espectador. Deve ficar com ele. Como algo que deve ser mudado em sua própria realidade. Quantas Rosetta’s existem por ai? Quantas conhecemos? O que nós fazemos por ela?
O cineasta português Pedro Costa certa vez escreveu:
“Para mim, a função primeira do cinema é nos fazer perceber que alguma coisa não está justa. Não há aqui distinção entre ficção e documentário. O cinema, no primeiro momento em que foi visto e filmado, buscou mostrar algo que não era justo. O primeiro
filme mostrava uma fábrica, as pessoas que deixavam a fábrica. Era semelhante a uma fotografia, que é também algo muito próximo do nosso mundo. É como tirarmos uma fotografia como prova de algo que vimos, alguma coisa que não está em nosso pensamento, mas à nossa frente, algo da realidade.”
O cinema dos Dardenne é isso. Sim. Alguma coisa não está justa. Rosetta sabe disso. Sua vida é miserável. Sua mãe é bêbada e promíscua. Seu pai nem é citado. Ela mora num trailer. Sua água é constantemente cortada. Ela é sempre demitida dos empregos. Mas não esmorece. Sai sempre em busca dos seus objetivos. Tenta internar a mãe numa clinica de recuperação. Tenta se estabilizar no novo emprego. Tenta. Tenta. Tenta. Mas não consegue. Está fadada ao fracasso. Coitada! Não! O diretor em nenhum momento tenta nos fazer sentir piedade dela. A frieza e realismo emanado pelo filme impedem a comiseração. Sobra a indignação. A revolta. Sim. Rosetta é revoltada. Ela e nós sabemos que o mundo não é humano. Algo deu errado. Alguma coisa não está justa. “Revolto-me, logo existo”, escreveu Albert Camus. Sim. É preciso se revoltar contra essa existência vazia de significado. É preciso se revoltar frente a uma vida mecanizada. De certa forma, “A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforo” do diretor finlandês Aki Kaurismäki (um dos últimos filmes que vi e comentei aqui no blog) guarda semelhanças com “Rosetta”. Sim. O enredo é quase parecido, porém, a manifestação da revolta encontrada por cada uma das protagonistas é bem diferente. Rosetta é bem mais resistente que Íris, a protagonista do longa finlandês. Sim. Enquanto Íris se vinga de todos aqueles que já a humilharam um dia na vida, Rosetta deseja apenas um emprego, anseia a normalidade. Rosetta quer ser igual a todos. Ela não medirá esforços para isso. “Primeiro a barriga, depois a moral”, ironizou Brecht. Sim. Numa sociedade toda feita contra ela, Rosetta precisa ser esperta, ao longo do filme acompanhamos a modificação do pensamento da menina. Ela que desejava alcançar um emprego de maneira digna, aprenderá que as coisas não são bem assim. Não. Subir alguns degraus na vida, exige certa dose de “imoralidade”. Rosetta aprenderá a lição. Mas qual o preço que ela irá pagar?
Numa cidade toda feita contra ela, o amor, a amizade, o respeito é quase impossível. Utópico. As pessoas precisam sobreviver. De qualquer jeito. De qualquer maneira.
Numa das cenas mais duras de todo o filme, Rosetta vai desejar a morte do amigo/quase namoradinho para conseguir o lugar dele numa pequena venda de rua. Ele é o único cara que a trata de maneira diferente. Ele hospeda-a em sua casa, quando ela está brigada com a mãe. Dá comida, cerveja para ela. Tenta ensiná-la a dançar. Mas não dá pra retribuir tudo isso. A Vida é mais urgente. A sociedade do consumo exige que Rosetta passe por cima de tudo isso para conseguir o tão sonhado emprego.
Aliás, toda a seqüência passada na pequena habitação de Riquet é extremamente dolorida. Sim. O rapaz é igualmente pobre. Mas mora numa casa. Não num trailer. Ele tem comida. Tem cerveja. Já foi campeão de ginástica solo. E toca bateria numa banda. Tudo tão pouco. Mas ele tem uma vida melhor que a dela. Ela nem ao menos sabe dançar. Ele tenta ensiná-la. Ela não consegue aprender. É desengonçada, dura demais. A cena da dança é quase lírica. Quase alegre. De repente, não mais que repente, a dor no estômago que acompanha a garota quase sempre, ataca de novo. “Eu desprezo as pessoas que são incapazes de sentir o seu estomago” disse Galileu Galilei da peça de Brecht. Rosetta , então, pega suas coisas e sai. Mas esquece das botas e volta. Ela não quer voltar para a casa e encontrar a mãe bêbada. Ele cede a casa novamente para ela. Arruma um canto para ela dormir. Ela tenta dormir. Antes de cair no sono, Rosetta conversa consigo mesma. Numa quase oração. Num quase desespero.
“Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não vai cair na rotina. Eu não vou cair na rotina. Boa Noite. Boa Noite.”
Na hora me lembrei de Macabéa do livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector afirmando para si mesma ao acordar: “sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola.”
Também lembrei da conversa consigo mesmo de Fabiano em “Vidas Secas” do grande Graciliano Ramos:
“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.”
Sim. Rosetta também é um bicho. Só que diferentemente de Fabiano que deseja conquistar horizontes maiores na capital, Rosetta deseja apenas ser uma menina ocupada em guardar as coisas dos outros.
Ausente
2.9 94"Não sei se gostei do livro, sabe? A história é boa, mas em alguns momentos, ela se desvia. Não conta o que eu gostaria que me contasse. Entendo que talvez seja a ideia mas não poderia deixar lacunas... Mas senti que está faltando algo. Não sei.
É desses livros que não sei se devo recomendar ou não. Você gostou não é?"
Esse texto dito lá pro final é a mais pura definição do filme.
"Ausente" é um filme de suspense psicológico. É um filme sobre a descoberta da sexualidade. É um filme sobre a paixão de Martin (garoto de 16 anos) por seu professor de natação. É filme feito de silêncios, ausências, lacunas e algum devaneio.
Interessantíssimo.
Distante
3.7 32TEM SPOILER, SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
O cinema do turco Nuri Bilge Ceylan me inquieta, me provoca, digo isso porque acabei de ver “Longínquo”, filme dele que ganhou a Palma de Ouro de Melhor Direção no Festival de Cannes em 2002.
Já tinha assistido “3 Macacos” do mesmo diretor e sentido a mesmíssima sensação.
O filme conta a história quase banal de dois primos que moravam num mesmo povoado. Um deles, o mais velho, emigra antes, o outro, mais jovem, emigra tempo depois. Num ato generoso do primeiro, o segundo fica hospedado na casa do amigo.
Ele chega dizendo que vai procurar emprego e promete ficar apenas uma semana hospedado ali. Os dias passam e ele não consegue emprego.
Essa é a história. Mais banal impossível. No entanto, Nuri transforma essa convivência forçada em uma importante metáfora; como nos comportamos diante daquilo que nos força a olhar num espelho inconveniente, ou de quem já fomos e não queremos ser, ou de quem somos e sonhamos em ser.
Com um proposta absolutamente minimalista, o diretor turco apresenta com muita calma e desenvoltura esses dois personagens.
Sem forçar a barra ou lançar mão de qualquer artifício bobo, Nuri deixa espaço para que os próprios personagens ajam e nessa ação se apresentem ao espectador.
O filme quase que inteiro funciona dentro dessa premissa, durante pouco mais de um hora, os personagens são apresentados, para que somente no final do filme o conflito estoure e tudo venha a tona.
É uma proposta ousada, sem dúvida, mas, quando o diretor nos coloca o conflito final, ficamos embasbacados por tamanho talento e desenvoltura no fazer cinematográfico.
Confesso que no decorrer do filme, fiquei um pouco incomodado por tamanha lentidão na apresentação como um todo, porém, ao tomar conhecimento do que Nuri queria fazer, fui obrigado a tirar meu chapéu para ele e dizer muito obrigado por nos apresentar algo tão profundo, tão questionador e tão atual.
O diretor é daqueles talentos que poderíamos classificá-lo de pós-dramático, já que a essência de suas histórias se encontra mais no entorno e nas lacunas deixadas propositalmente ao longo do caminho, do que na estrutura aristotélica do drama convencional.
É justamente daí que brota todo o esplendor da cinematografia desse diretor impar... ao dar espaço para os personagens, Nuri dá espaço para que nós (espectadores) construamos junto com os atores, essa possível história.
Brincando, por vezes, com nossa necessidade de drama, o diretor apresenta algumas cenas de alta tensão, forçando a ideia de um final trágico.
Ficamos em estágio de suspensão acompanhado a obra, ora torcendo por um ora sentindo piedade de outro, e nessa brincadeira o diretor nos conquista.
Algumas cenas são de uma beleza e crueldade raramente vista no panorama cinematográfico mundial, Nuri eleva a nível de personagem um simples rato, que atormenta o fotógrafo. Ele constrói inúmeras armadilhas para o tal bicho, mas, nenhuma surte efeito, muito pelo contrário, quem cai nelas é o próprio.
Certa noite, o desempregado ouve uns grunhidos e vai ver do que se trata.
A cena é chocante e sublime, além de provocativa e sintomática.
Não vou descrevê-la, pois seria reduzi-la.
Outras cenas, possuem um quase tom cômico, propiciado pelo confronto entre as personalidades ambíguas dos dois personagens.
Outras são doloridas, por expor nossa miserabilidade e solidão.
O conflito principal se dá pela exposição das personas, enquanto um quer estar ativo e participar das coisas do mundo, o outro quer apenas contemplar no silêncio de sua casa o passar do tempo.
Enfim, um belo tratado sobre a solidão e a incomunicabilidade dos humanos.
PS: Numa entrevista o diretor quando questionado do por que de usar sempre tão poucos diálogos em seus filmes, ele respondeu:
Porque acho que os rostos e os corpos dizem mais que as palavras. Na vida, a maioria das pessoas mente. As palavras são na maior parte dos casos um paravento e não um vector de verdade, servem mais para camuflar do que para revelar. Não acredito muito no que as pessoas dizem, mas acredito muito no que não dizem. O que elas calam tem muito mais informação. Os olhares, os gestos, as expressões, as posturas mentem menos do que as palavras.
3 Macacos
3.6 39TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Uma experiência cinematográfica da mais alta qualidade.
Foi o filme “3 MACACOS” do diretor Nuri Bilge Ceylan, que me propiciou esse encontro supremo com o cinema.
Ganhador do Cannes de Melhor Diretor do ano passado, o filme é cinema em seu estado mais puro e latente.
Filmado com extrema habilidade por Nuri, o drama me cativou logo na primeira cena em que acompanhamos um homem dirigindo um carro na madrugada. Ele está com sono. A estrada está escura. Só o barulho do motor do carro o acompanha. O diretor filma primeiro o homem de dentro do carro. Logo depois, filma o carro andando pela estrada. Apenas a luz do farol do carro ilumina a estrada. O diretor opta por filmá-la de longe. O efeito da luz do carro desaparecendo ao longo da estrada é encantador. Corta.
Um outro carro ilumina um corpo morto na estrada, ao fundo um homem sai correndo e se esconde. Pronto, está dada a premissa do filme.
O homem que dirige com sono na estrada e atropela e mata o outro, é Servet, um político. Para evitar que a morte do tal homem prejudique sua carreira, logo agora que é candidato a um importante cargo político, Servet suborna seu motorista, Eyüp, para que ele assuma a culpa pelo acidente e seja preso em seu lugar. Eyüp nada diz. Servet promete uma grande soma de dinheiro à sua família em troca desse “favor”.
Eyüp aceita. Assim o filme “começa”.
O diretor centra fogo então na vida da família de Eyüp, que é composta pela mãe e por um filho. Os dois passam quase o tempo todo dormindo e aparentam não ter uma grande existência. Eles parecem vagar pelo espaço. O lugar onde moram é uma espécie de apartamento sinistro que os oprime. O filho não trabalha, não estuda, a mãe quer cobrar algo dele, mas, não tem muita moral para fazê-lo. O filho diz à mãe que eles poderiam usar o dinheiro que o pai irá ganhar para comprar um carro. A mãe acata a decisão e vai até Servet pedir um adiantamento.
Sem mostrar os momentos chaves do filme e contando sempre com a aquiescência do espectador, o filme segue. A mãe seduzida pelo comovente desabafo do político (em um momento frágil por ter perdido a eleição para seu inimigo) começa a ter um caso com o homem que colocou seu marido na cadeia. O filho descobre.
Sim. O enredo numa primeira leitura pode até parecer novelesco, no entanto, em nenhum momento o diretor cai na facilidade do gênero.
Nuri está mais interessado em “mostrar” seu enredo através da existência dos próprios personagens e também pela belíssima e opressiva fotografia, que é um caso a parte, e a trilha sonora que parece captar cada ruído e elevando-a à nível de um dos personagens principais da história.
É justamente ai que o diretor prova domínio do seu ofício, todos os elementos contam a história daqueles personagens, tudo, absolutamente tudo, é importante.
Em vez da supremacia do diálogo, o que assistimos atentos é um filme que redimensiona cada elemento no ato de contar uma história: luz, som, figurino, cenário, música etc. Tudo é importante. O toque do celular da mãe usado em muitas cenas no filme dá a dimensão do vazio existencial daquela mulher, que delega a musica daquele celular os pequenos instantes de uma alegria esvaziada ou sem sentido.
O filme nunca é menos que genial.
A fotografia e a iluminação são de cair o queixo; alternado momentos de penumbra e claridade, materializa em imagem o estado de espírito dos personagens.
É impossível assistir ao filme e não lembrar de Alexander Sokurov com suas pinturas em forma de imagens cinematográficas.
O diretor brinca o tempo todo com a fábula japonesa dos 3 macacos.
Um deles cobre os olhos com as mãos, o outro cobre as orelhas, o terceiro a boca. A imagem original está esculpida num templo japonês e é a materialização de um provérbio do Japão, segundo o qual não se deve ver o mal, ouvir o mal, falar o mal – se ninguém visse o mal alheio, nem o escutasse, nem falasse dele, a humanidade viveria em harmonia.
O filme diz exatamente o oposto, ao não ver o mal, em ouvir o mal, nem falar o mal, os personagens tornam-se hipócritas, não dividem nada que não seja restos de um cotidiano infame e culpas imbecilizadas e desejos reprimidos.
Trabalhando com a temática nietzschiana do “Eterno Retorno”, o diretor prova que mesmo que não vendo, não ouvindo e nem falando do mal, ele não deixa de existir.
Enfim, um filme perturbador e sensacional que deve ser visto, escutado e comentado.
Zona do Crime
3.8 30“La Zona” é um daqueles filmes que te deixam com um nó na garganta e a cabeça em parafuso. Um filme provocativo sem ser gratuito e partidário.
Rodrigo Plá, apesar da pouca experiência, demonstra maturidade e uma visão aguçada da realidade que o cerca e acima de tudo nos brinda com talento em arranjar tudo isso num filme urgente.
Cena após cena vemos o crescente do vazio existencial daquelas pessoas que o filme retrata, o diretor não julga suas personagens, apenas mostra-as, dispondo-as da melhor maneira para podermos analisá-las com calma e imparcialidade.
É daí, desse “mostrar” que surge a maior virtude do filme, pois ao mesmo tempo em que todos estão certos (e tem suas motivações para agirem como agem) todos também estão errados.
Em seus melhores momento Rodrigo Plá me faz lembrar de Bertolt Brecht e seu teatro épico, onde o espectador sai de sua posição de mero observador, para se tonar ator (no sentido daquele que atua, que age) e retirar daquilo que assiste algo que o incomode a ponto de se sentir impelido a agir.
Brecht foi um dramaturgo que melhor colocou em cena as contradições da Sociedade Alemã e Rodrigo Plá segue o legado deixado por Brecht (isso fica muito claro na escolha da música final, numa tradução perfeita do tal falado Efeito de Estranhamento Brechtiano) expondo sem hipocrisia um Mexico quase-brasileiro. Fale de sua vila e falarás do mundo.
O diretor joga com o espectador abertamente, seu jogo desde o início é claro e é assim mesmo que tem que ser, já chega de sermos iludidos pela tal “arte da representação”.
A Arte é uma realidade, não tem que representar nada, ela simplesmente é.
No final do filme resta a indignação de uma sociedade que se deteriora e da qual todos nós fazemos parte e estamos chafurdados nessa lama até o pescoço.
O que fazer?
É exatamente a pergunta que o filme nos faz a todo instante.
The Class
4.1 177TEM SPOILER! Se não viu o filme, não leia!
O filme nos coloca na posição dos alunos omissos da classe de Joosep, é uma das muitas sacadas geniais do filme.
Somos aqueles meninos e aquelas meninas que nada fazem por Joosep, somos aqueles alunos e acompanhamos calados a violência sofrida pelo garoto.
É isso o que mais incomoda em todo o filme, essa posição passiva que assumimos frente aos problemas dos outros. O diretor esfrega em nossas caras nossa própria omissão cena após cena.
“The Klass” é um fotograma de uma sociedade que vive em estado de sítio, todos os personagens vivem acuados de alguma maneira. A sociedade de consumo de alguma maneira equilibrou as distâncias existentes entre as classes sociais, utilizando-se de um mecanismo cruel que engendra o ser - humano numa roda que é quase impossível sair.
A sociedade atual vive uma nova forma de fascismo, todas as nossas relações são pautadas pelo poder. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, essa parece ser a palavra de ordem. Todo o contexto social de “The Klass” é opressor. A escola onde os garotos estudam é absolutamente tirânica, punitiva, não há qualquer espécie de tentativa de aproximação dos alunos para com as aulas que estão tendo. O ensino é de cima para baixo, me lembrei de Estamira no documentário brasileiro homônimo dizendo "Na escola não se aprende, se copia". Pura verdade. A família é outro componente que contribui para o clima opressivo; as cobranças dos familiares e o excesso de proteção geram uma instabilidade e uma angústia no jovem. A internet e os mecanismos de comunicação como celulares ou papeizinhos trocados durante a aula contribuem para o clima de tensão. Some-se a isso a própria insegurança da adolescência, uma fase intermediaria que nem se é adulto nem se é mais criança. Além disso, a necessidade vital de pertencer a um grupo é bastante latente nessa fase; em nome desse suposto “pertencimento” se faz coisas abomináveis. O uso de bebidas e drogas e a utilização do sexo como ato subversivo são a cereja do bolo dessa nefasta receita.
Isso sem falar na apropriação dos desejos desses jovens por uma mídia inescrupulosa que é a responsável por determinar quem é quem nesse jogo.
Cada peça desse quebra-cabeça social está perfeitamente colocada em “The Klass”, o que poderia resultar num filme panfletário e didático, não ocorre em nenhum momento. O filme é cinema puro. As opções estéticas do diretor não deixam com que o filme vire um manifesto barato. Cortes de câmara, trilha sonora, fotografia e acima de tudo a muito boa direção de atores tão jovens tudo corrobora para a excelência do filme . Todo o elenco está muito bem. O diretor consegue algo muito difícil em se tratando de filme adolescente; atuações verdadeiras e homogêneas. A edição do filme apesar de ser ágil não o torna um arremedo de videoclipe, muito pelo contrário, cabe a edição o papel de realçar e redimensionar o que está sendo visto.
O filme é dividido em sete capítulos e todos possuem um título que já adianta mais ou menos o que iremos ver a seguir. Essa opção é herdada do dramaturgo alemão Bertolt Brecht e seu teatro épico. Ouso dizer que todo o filme é bastante”epicizado”, pois logo de cara já é possível sacar qual será o final. Foi Brecht quem notou que a dramaturgia “dramática” já não dava mais conta de mostrar um mundo absolutamente novo, galgado em relações de mercado e falsificadas, de trabalho alienado e estafante e da sua conseqüência maior que é o isolamento do indivíduo. Para isso, foi necessário inventar uma “nova dramaturgia” e desse “movimento” surgiu grandes autores como Beckett, Ionesco, Brecht, Arthur Miller, Thornton Wilder, Sarah Kane.
É dessa nova organização social que o filme “The Klass” trata. Seria uma espécie de “drama de confinamento” como escreveu o teórico Peter Szondi em seu fabuloso livro “Teoria do Drama Moderno".
Sim, é um filme de confinamento, da opressão que dois jovens sofrem num regime escolar e familiar fascistas.
O que mais me chocou no filme, não foi às cenas de violência, mas sim o cinismo que assumimos perante o sofrimento dos outros e indo mais além, a utilização da violência como forma de dominação e diversão.
O filme é tão genial que lá pelas tantas concordamos com o pai de Joosep quando ele incita o filho a revidar a violência sofrida. Torci muito para que o garoto revidasse os ataques. Mas ele não reage. Muito pelo contrário, aceita estoicamente a violência de seus “amigos”. Essa passividade deixa os “líderes da gangue” cada vez mais irritados e a dose de violência e humilhação é ampliada cena após cena.
É interessante notar como ninguém faz nada, as professoras e diretora do colégio não estão nem um pouco interessadas em se interar da história, querem apenas punir os culpados, como forma de exemplo. Os familiares parecem perceber que algo não vai bem, mas não tomam nenhuma providência e quando tomam prejudicam mais do que ajudam. Joosep só tem Kaspar como possível amparo e é muito bonito acompanhar o amadurecimento da relação deles. Cabe aos dois atores (Pärt Uusberg e Vallo Kirs) o trabalho de composição de personagem mais complicado. O ator Vallo Kirs, interprete de Kaspar, consegue uma interpretação soberba, seus olhares indignados e a compreensão de que é uma injustiça o que estão fazendo com Joosep é algo notável.
O final de “The Klass” me remeteu muito ao final de “Dogville” de Lars Von Trier, guardadas às devidas proporções o epílogo é bem parecido.
“The Klass” é baseado em fatos reais e nisso guarda semelhanças com o documentário “Tiros em Columbine” de Michael Moore e “Elephant” de Gus Van Sant. No entanto, sem o tom documental (manipulador) do primeiro e a sublimidade do segundo. Como já disse é um filme mais direto. É um soco em plena boca do estômago. É um filme angustiante, pois parece não haver saída para Joosep, ninguém (a exceção de Kaspar) parece entendê-lo ou se preocupar verdadeiramente com ele. O exemplo mais crasso é a maneira como o pai dele lida com a situação. Numa das cenas mais desagradáveis de todo o filme, o pai bate em Joosep, querendo ensiná-lo como revidar corretamente a violência. O pai dá um soco em pleno peito do filho. Ele cai ao chão. O pai observa descrente o filho. O filho chora. O pai fica penalizado, mas não sabe o que fazer. O pai vai embora. O filho continua chorando no chão.
Sim, é um filme violento e cruel e o final não menos violento e cruel.
Senti a mesma coisa que senti no final de “Dogville”. De certa forma, o final é extremamente provocativo. De alguma forma, o diretor parece nos aproximar do que ansiava o pai de Joosep. De forma certeira, queríamos que Joosep revidasse a violência sofrida. De certa forma, nem nós (espectadores) entendíamos Joosep. Apesar de ser um final previsível, não é menos genial. Fica para nós (espectadores) apenas um sentimento de perplexidade e de incompreensão diante do ocorrido.
O escritor e filósofo francês Albert Camus escreveu uma peça teatral (fantástica) chamada “Estado de Sítio” e cria uma das frases mais definitivas de nossos tempos:
"NÃO DÁ PARA SER FELIZ SEM FAZER MAL AOS OUTROS. É A JUSTIÇA DESSA TERRA."
Com essa frase Camus resumi milhares e milhares de teses sociais que possamos vir a ler. É da natureza humana essa necessidade de ser dar à custa dos outros. O que o sistema capitalista fez foi só potencializar essa característica, elevando essa “qualidade” a um nível de existência. Ou se vive conforme as regras impostas pela “roda viva” ou se é excluído, humilhado, violentado. Simples assim. Ou alguém ousaria discordar?
Otto; ou Viva Gente Morta
3.3 78TEM SPOILER. Se não assistiu, não leia!
Esse filme me causou tamanho grau de aturdimento que sinceramente não sei por onde começar.
Bom, começo dizendo que nunca havia assistido filme de zumbi.
Sim, "Otto; or Up with Dead People" conta a história de um adolescente que perambula pelas ruas, sem destino.
Sim, ele é um zumbi.
O modo como ele anda, a roupa que ele veste, os olhos, a sujeira, tudo parece contar essa história.
Sim, ele é Otto.
Já tinha lido na época do lançamento do filme, uma matéria na Folha de SP e me lembro que tinha ficado interessado, mas, logo o esqueci.
Só voltei a lembrar desse filme, quando um amigo no twitter, me disse que era já tinha assistido e que era um bom filme.
Ao que me parece o filme não foi lançado em DVD no Brasil e consegui baixa-lo na net.
Pesquisando sobre o diretor Bruce La Bruce no google, descobri que além de cineasta, é também escritor, fotógrafo e ator de filme pornô.
Certamente não precisava saber disso, para saber disso. Seu filme é extremamente bem dirigido, com diálogos inteligentes, tiradas engraçadíssimas e cruel/triste/dark, o filme possui uma fotografia que ora é assustadoramente real ora é sublime e onírica e o filme possui seqüências pornográficas “chocantes”.
Vamos ao enredo:
Otto é um zumbi que não se lembra de nada de sua vida pregressa, ele vaga pelas ruas até ser descoberto pela diretora underground Medea, que está buscando um ator que pareça um zumbi para seu filme chamado “Up With Dead People”.
O filme definido por ela mesma como um “político-porno-zumbi-épico” está inconcluso, devido à falta de interesse dos patrocinadores na temática explorada na película.
Medea acha que Otto está interpretando um zumbi o tempo todo, ela não acredita que ele seja realmente um deles.
Ela combina um salário, ele aceita, pois a vida nas ruas está complicada e ela ordena que Fritz Fritze, o astro de seus filmes, dê abrigo ao rapaz e que Adolf (câmera-man) siga-o por todo e qualquer lugar que o jovem vá.
Esse é o enredo básico do filme. Porém, o diretor aprofunda os questionamentos situando o espectador em uma complexa trama, no qual, os zumbis depois de serem exterminados várias vezes, voltam mais inteligentes e dessa vez só atacando homossexuais.
Após ter apresentado as duas ideias e os dois “filmes” que correm em concumitância, o diretor fica livre para brincar com o espectador.
O filme é um achado, inteligente, polêmico, engraçado, político, pornográfico, aterrorizante e belo, com umas trilhas sonoras mais maravilhosas que já ouvi.
Só pra constar, a trilha tem duas músicas da dupla “Cocorosie” e uma da banda “Antony and the johnsons”.
Utilizada quase que o tempo todo pelo diretor durante o filme, a trilha sonora é um personagem importantíssimo no contexto geral, cabe à ela situar o espectador dentro da cabeça confusa de Otto, cada lembrança dele possui uma música tema, às vezes, as músicas se misturam, interrompendo uma à outra, intercalada pelo delírios imagéticos do personagem.
Confesso que me identifiquei com a trilha, é abusada, contemporânea, lírica-cruel-irritante-amendrontadora-engraçada. O modo como ela é executada no filme também me chamou a atenção. Não é uma execução quadrada, acadêmica, não. É cortada do nada, sem explicação e depois volta e sai de novo, chegando a até mesmo interromper o dialogo numa cena muito bonita perto do fim do filme.
As trilhas sonoras dos meus espetáculos também são assim... detesto coisinha quadrada.
A fotografia é primorosa e envolve quase que a totalidade de gama de cores existentes, vai desde o preto e branco, passando pelo colorido e até pelas cores estouradas por programas de computador. O efeito da fotografia é devastador.
Logo no começo do filme, tem uma cena linda, em que Medea está esperando sua “esposa” Hella.
Hella é atriz de filme mudo e toda vez em que ela aparece a tela fica misteriosamente naquele preto e branco dos filmes mudos de Charles Chaplin. O diálogo protagonizado pelas duas é mostrado em forma falada quando mostra Medea e em forma de balões (de filmes mudos). Toda vez, que Hella aparece no filme, sua música tema é tocada e a tela (somente onde ela está) fica em preto e branco.
É uma das muitas sacadas inteligentes do filme.
O roteiro é engenhoso e dá conta da megalomania do diretor em contar essa balburdiosa história.
Algumas seqüências são hilárias, principalmente as que envolvem Medea. Ela é um arremedo de todos os diretores cult’s do cinema. É falastrona, quer aparecer mais que os atores, é ególatra e deliciosamente sagaz. A maneira como ela dirige os atores é puro deleite para quem é ator ou trabalha com artes. Seus discursos politizados ao extremo, cheio de clichês do gênero é impagável. Rolei de rir quando ela proferiu: "Lázaro foi o primeiro zumbi. Jesus foi o segundo. Por acaso, Otto esta achando que é o espírito santo numa nova divina trindade?"
O filme é cheio de referências e elas estão todas lá, para quem tiver suporte para captá-las. É possível ver ecos de Gus Van Sant e seus adolescentes vazios, de Larry Clark e seus adolescentes que buscam o sexo como uma maneira de expurgar o vazio que sentem, do filme “Má Educação” do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e sua maneira de mostrar o filme dentro do filme e a conseqüente união em um só filme e... inúmeras outras... tem até uma cena cuja brilhante fotografia nos remete a uma tela de Monet.
"Otto; or Up with Dead People" é um filme forte, incômodo e pesado, com cenas de antropofagia (para ficar mais chique, do que meramente dizer gente comendo gente literalmente), canibalismo com animais, seqüências realistas de sexo homossexual, cujo orifício utilizado para penetração não é o anus, nem tampouco a boca (imaginem caros amigos onde fica o buraco?), violência extremada contra homossexuais, sadismo, sangue, muito sangue e um sentimento de vazio que nada aplaca.
"Otto; or Up with Dead People” é também um filme bonito, com cenas lindas do garoto vagando por Berlim e por incrível que possa parecer, uma das seqüências mais sublimes, é quando Otto ao voltar ao mundo dos vivos, sente fome e encontra um coelho morto na estrada e o devora. O diretor sabe o que está fazendo, ele está no comando dessa empreitada e sua mão forte, porém inteligente, está em todas as cenas do filme, desde as mais forte, até as mais sublimes.
"Otto; or Up with Dead People” é um daqueles filmes que eu classificaria de pós-dramáticos, movimento artístico catalogado pelo alemão Hans-Thies Lehmann para denominar todo pensamento que venha após o dramaturgo Bertolt Brecht.
Para tanto, Lehmann qualifica uma série de ideias ou projetos que misturem linguagem e que dêem a cada elemento do fazer teatral, o mesmo peso. Ele, de certa forma, retira a supremacia da palavra, do texto e a dissemina para todos as outras funções do “drama”; luz, trilha sonora, atuação, direção, cenário, figurinos, platéia e crítica.
Lehmann faz um agrupamento dos pensadores da arte que não mais banalizem o espectador, muito pelo contrário, exigindo dele uma postura ativa e atuante dentro do espetáculo. Cabe ao espectador a construção da fábula que está diante de seus olhos, é ele quem estabelecerá os critérios (baseados em seu próprio pensar e sentir) de aceitação ou não da obra.
Ora, isto posto, só posso dizer que nesse filme, o diretor Bruce La Bruce foi o mais pós-dramático possível, estabelecendo com o espectador uma cumplicidade única e também, às vezes, rompendo com os padrões já estabelecidos entre ambos e balburdiando com a cabeça do público.
Paro por aqui. Apenas escreverei só mais uma linha só.
É um filme contemporâneo e genial.
Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas
3.6 196"Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas" do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul é um filme transcendental, tanto em sua linguagem quanto em sua história. É um filme lento, silencioso e angustiante.
Tio Boonmee está doente e vai se refugiar uns dias em sua fazenda, levando consigo sua irmã e uma espécie de enfermeiro. Numa noite em que estão jantando, o espírito de sua mulher morta há muito tempo materializa-se na mesa. Logo em seguida, o filho que há muito estava desaparecido reaparece agora transmutado num macaco de olhos vermelhos.
Dito assim pode parecer engraçado ou surreal demais, mas não é. O diretor consegue extrair dessa cena aparentemente mística um realismo assustador. Nada é forçado e cada coisa tem o tempo certo para acontecer. Juro que essa cena em especifico me causou sensações diversas: senti medo, piedade, horror, curiosidade, vontade de chorar, tudo ao mesmo tempo, tamanho o grau de aturdimento que o diretor e a cena nos causa. Ainda na mesa de jantar, a mulher morta agradece as palavras de conforto que a irmã e o marido lhe ofertaram pós sua morte. O filho conta que certa vez tirou uma foto e ficou encantado com o tipo de macaco que por acaso achou. Decidido, sai de casa e busca encontrar esses macacos e se tornar um deles. A conversa ocorre de maneira civilizada e sem fetichismo. É uma cena poderosa. Talvez a mais poderosa de todo o filme. Boonmee, talvez pela presença dessas “estranhas” figuras, pressente que seu fim está próximo, faz seu “testamento” e morre numa caverna.
Dito assim pode parecer chato ou entendiante demais, mas não é. O cinema de Weerasethakul é enigmático e absurdamente envolvente, partindo sempre do “estranho” como metódo narrativo, o tailandês faz um cinema sensorial e imagético. Suas cenas são minimalistas, pouco ou quase nada acontece no campo do palpável, mas há algo nas entrelinhas que alcança o sublime quase sempre.
É um filme para se ver, ouvir e sentir com as portas da percepção abertas... quem assim o fizer será recompensado com uma das narrativas mais originais que se tem notícia.
PS: Poderia falar muito mais sobre o filme, algumas cenas e frases são geniais, mas acabaria por reduzir o filme de alguma maneira.
Fome
4.0 310Filme brilhante, feito de silêncio e fúria.
Partindo de um fato real, o diretor nos apresenta um filme absolutamente rigoroso em sua estética que brinca o tempo todo com valores dicotômicos, como claridade e escuridão e sujeira e limpeza.
O protagonista do filme é Bobby Sands, voluntário do Exército Republicano Irlandês (I.R.A) e membro eleito do Parlamento inglês que liderou uma greve de fome como forma possível de luta a fim de serem atendidas as suas reivindicações pela “dama de ferro” Margaret Tatcher. Bobby e seus companheiros do I.R.A lutavam pela libertação da Irlanda do Norte da ocupação exercida pelo ingleses.
Steve McQueen não perde tempo em explicações didáticas, a linguagem utilizada pelo diretor cumpre essa função. Seu filme apesar de extremamente violento é poético. A poética brota aqui do estabelecimento logo de cara das regras do jogo. O filme começa mostrando a rotina de um agente da área de segurança máxima da “Maze Prison”. Tudo em seu cotidiano é milimetricamente calculado. Tudo é rotina. Ele foi programado para agir assim. Não pensa, age. Age de acordo com as vontades de seus superiores. O contraste é dado pelo personagem de Bobby, revolucionário que reivindica o direito ao seu próprio corpo. A liberdade aqui é tátil. O filme então se coloca entre esses dois personagens, entre essas duas maneiras de encarar o mundo: conservador x libertário. Quase em seu final, uma outra figura é acrescentada ao filme e também ao pensamento concretizado em estética: um padre.
A conversa entre Bobby e o padre é mostrada de longe, câmera parada. A linguagem novamente utilizada como forma de apreender o mundo. A conversa que dura mais de vinte minutos é um diálogo adulto entre renúncia da vida por motivações religiosas (no caso do padre) e a tentativa de luta que pode desembocar em várias mortes (no caso de Bobby). Qual a forma correta de conduta?
Sim. Em “Hunger” temos personagens em situações opostas, mas a estética utilizada pela direção se dá entre deslocamentos. Os personagens todos gravitam em torno da “Dama de Ferro”. Mas em termos presenciais, ela é uma personagem ausente. No entanto, é por ela ou contra ela que se luta. Muitas vezes sem nem mesmo entender os porquês. Ao espectador que é jogado nesse verdadeiro ringue de silêncio e violência é negado uma historização dos fatos. A história se impõe pelo trânsito da câmera pelas cenas. Os personagens não são explicáveis. Eles são. Suas ações denotam quem eles são. E o corpo humano é mostrado como refúgio último e também imagem de sua própria agonia e falibilidade. Assim como na obra de Valére Novarina o que assistimos em “Hunger” é a “decomposição do homem”. Por isso é notável a entrega do ator Michael Fassbender ao filme. A decadência corporal a que ele se submeteu para interpretar Bobby em seus momentos finais é assustadoramente real. Ali os limites entre arte e realidade são questionados. O corpo esquelético é ao mesmo tempo do ator e do personagem. O personagem realmente existiu. Sim. Ele vai morrer. Sim. Ele morreu. Em seu próprio nome. Dono do próprio corpo. Em busca de uma liberdade. Utópica. Ingênua. Mas necessária.
A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista AgoraTEM SPOILER NO TEXTO INTEIRO, SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA.
Bom, fui assistir “A Pele que Habito” do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Fui numa tentativa de “fazer as pazes” com este diretor que já tanto adorei. Seus dois últimos filmes (“Volver” e “Abraços Partidos”) foram decepcionantes. Pois bem, dito isso preciso dizer também que SE VOCÊ NÃO ASSISTIU AO FILME NÃO LEIA ESSE TEXTO.
A primeira parte de “A Pele que Habito” é extremamente didática e chata. Almodóvar cria um enredo interessante, mas peca por esmiúça-lo inteiro ao público. Ele opta por explicar passo a passo da tal trama. Não só explicá-la, mas também mostrá-la. Sempre didaticamente. Como se dizesse: “Olhem como sou genial!” ou então “Xiiiii, se eu não explicar tudinho, vocês não entenderão”.
Ok Almodóvar esse é um caminho, mas você já foi mais audacioso, não?
Até compreendo que a necessidade atual de se falar com todos os públicos promova esse tipo de ataque à inteligência do espectador, mas tudo bem... Prossigamos.
Lá pelas tantas, depois de um começo modorrento, o filme começa a engrenar. Quando Almodóvar é Almodóvar não tem como errar. E isso se dá quando um estranho personagem irrompe a tela. Sim. Um homem fantasiado de tigre. Coube a ele me despertar desse começo tedioso. É ele quem balburdia com as certezas absolutas daqueles personagens e eu diria até do próprio Almodóvar. O inusitado da fantasia provoca um estranhamento interessante: Mas por que um tigre? Oras, porque um tigre é um predador silencioso, consegue se aproximar de sua vítima sem ser notado. E é exatamente isso que o personagem faz. Ao balburdiar em termos ficcionais com o filme, ele coloca em xeque o tom sério utilizado pela direção até então... A partir daí, o filme ganha contornos mais interessantes. Não vou perder tempo explicando o enredo do filme. Se você está me lendo é porque já o assistiu, então...
Aos poucos, Almodóvar vai acrescentando camadas e mais camadas nas ações fílmicas, e é ai que ele cresce. A revelação de como as tramas do homem vestido de tigre, da mulher que habita uma sala onde tudo que ela faz é gravado, do médico e da mulher que cuida da casa é muito boa. O flashback aqui é utilizado de forma épica. A narração da mulher que cuida daquela casa é lúcida, apesar de emocionada. A outra mulher só ouve, perplexa. A tomada da consciência se dá entre os personagens e o público, ao mesmo tempo. Enfim, mais Almodóvar impossível. Esse é um belíssimo momento do filme. Direção, atrizes e texto em perfeita sintonia. O canto da criança enquanto brinca de casinha é o prenúncio da tragédia. Alguém vai morrer. E Almodóvar nunca brinca com o espectador aleatoriamente. Sim. Alguém morre mesmo. O filme então retrocede no tempo e vemos como tudo chegou até aquela situação. Incomoda-me a maneira como Almodóvar tratou o sexo nesse filme. A visão é extremamente machista. Como se a mulher fosse uma eterna possível vítima de estupro. E o homem um eterno tigre que se aproxima silencioso. É interessante notar que o cara que estupra a filha do médico é um moço que trabalha no brechó. Sua função é justamente vestir manequins na loja de sua mãe. Nesse filme, a mulher é esse manequim de uma suposta loja. O gesto que o garoto que estupra faz na garota estuprada ao vesti-la é idêntico ao de quando ele veste o manequim na loja. O Pai descobre a filha estuprada no meio do jardim. O pai vê o suposto estuprador indo embora de moto. O pai quer vingança. E o que ele faz? Ele seqüestra o garoto e faz uma vaginoplastia nele e o transforma numa mulher. Mas não uma mulher qualquer. Não. Ele transforma o estuprador de sua filha numa cópia fiel de sua esposa falecida. Aqui a situação é olho por olho, dente por dente. A punição para o estuprador é virar mulher e sofrer novos abusos sexuais. Acho essa lógica extremamente perigosa. E bem machista. Almodóvar que já criou mulheres maravilhosas no cinema, nesse filme cria um único personagem interessante; o personagem do médico. Só. Todos os demais personagens gravitam em torno dele. Almodóvar não permite que os outros personagens alcem vôo próprio. Não. Quanto aos personagens femininos a coisa é bem definida. O papel é sempre de submissão. Tanto a filha, quanto a esposa, passando pela empregada e até mesmo a mãe do garoto que “vira” garota são personagens que vivem em função do macho. É uma opção. É uma visão de mundo. E não percebi a coisa como uma crítica ao modelo falido de uma sociedade. Não. É apenas uma opção estética, eu diria, para aumentar a dimensão psicológica do papel do médico. O jogo aqui se dá entre homens. Mais especificadamente entre o pai e o estuprador de sua filha. A terceira parte do filme mostra como o garoto reage a mudança de sexo e a prisão domiciliar que o médico lhe impõe. A arte e a prática da yoga salvam o garoto da loucura. A artista plástica Louise Bourgeois é evocada. A arte como garantia de sanidade. Quem conhece a obra deslumbrante dessa artista genial logo reconhece a inspiração, mesmo antes do cineasta mostrar rapidamente o garoto lendo um livro dela. Eu respiro. Sim. O filme também. Esse ponto lúdico do filme amplia a dimensão psicológica do médico e não do garoto. A obra de Bourgeois é quase que toda dedicada ao seu pai, representado no filme pelo papel do médico. Pai aqui não no sentido biológico, mas um quase Deus. Ou aquele que dá a vida a alguém. Bourgeois viveu o tempo todo em peleja com esse pai imenso que castrava tudo e todos. Em sua arte, matou-o em sua obra mais famosa chamada “A Destruição do Pai”. Sim. Caberá ao garoto/garota matar esse pai. Dessa vez no plano real. Só a arte não dá conta... O ressentimento é grande demais. A tragédia espreita. Sim. Alguém irá morrer. Não só o médico. A empregada que aparece na hora errada também. O garoto/garota agora está livre. Está mesmo? Ele vai em busca de seu passado e Almodóvar tem a sabedoria de não levar o filme até o ponto de tê-lo que transformar em algo cômico. Os risinhos irônicos (e imbecil) dos espectadores no momento em que o filho vai contar quem é para sua mãe é interrompido pela tela escura e pelos créditos finais. Sim. Almodóvar não faz uma concessão ao óbvio e isso é um ponto bastante interessante.
Ao final do filme fiquei ali sentado ouvindo aquela trilha sonora maravilhosa que acentuava o tom misterioso do filme. Ali entre o terror e o esdrúxulo. Exatamente igual ao filme. Não fiz as pazes completa com Almodóvar, mas pelo menos não foi uma experiência decepcionante como das outras duas vezes.
Tetro
4.0 207“Tetro”, filme dirigido por Francis Ford Coppola é uma experiência cinematográfica única. É simplesmente um dos melhores filmes que já vi.
Centrando seu roteiro em relações familiares arruinadas pela vaidade, inveja, desejo de poder e algum possível amor, Coppola faz um filme que transcende isso tudo e fala da beleza de nos entendermos juntos.
Contando a história de Bennie, garoto de 17 e irmão por parte de pai de Angelo, um escritor fracassado que mudou de nome.
Como se ao mudar de nome fosse possível mudar sua história. Não. Não é possível.
Bennie aparece como uma espécie de fantasma do mal para lembrar Angelo, que agora atende pelo nome de Tetro, de seu passado e conseqüentemente de suas piores mazelas.
Tetro é um homem atormentado por vários fantasmas, o principal deles é o próprio pai, maestro famoso e figura excêntrica que chama para si toda a genialidade da família e massacra todos em volta com demonstrações infantis de poder.
Além dessa sombra e fardo da figura paterna, Tetro também é atormentado pela culpa no acidente de sua mãe, famosa cantora de ópera, que acabou matando-a.
Tetro fugiu de casa, numa esperança desesperada de se conhecer e encontrar seu lugar no mundo, que até aqui sempre fora de seu pai. Antes de fugir, escreve uma carta para o irmão prometendo voltar para levá-lo consigo.
Tetro não cumpre a promessa.
Bennie anos mais tarde, repete a fuga do irmão e vem para cobrar o afeto prometido e não cumprido.
Tetro, agora casado Miranda, não gosta nada da presença do irmão, mas acaba cedendo e ai o filme começa.
Bennie é tímido e virgem. Tetro é temperamental, já foi considerado uma promessa no meio literário, mas que não vingou. Sobrevive de fazer iluminação de peças num teatro local e perturbar a normalidade com sua simples presença.
Um dia, ao fuçar as coisas do irmão, Bennie acaba encontrando fragmentos textuais de Tetro. Os textos são escritos em códigos e de trás para frente. O irmão mais novo então traduz os textos de Tetro. A peça é um sucesso e Tetro então terá que lidar com a fama e o poder. Tudo aquilo que mais teme.
Francis Ford Coppola faz com esse filme o seu “Dogville” particular. Tetro, o personagem é uma espécie de Grace do filme de Lars Von Trier. Ambos fogem do poderio de uma figura paterna castradora e se refugiam em pequenos vilarejos e por fim são confrontados com seu próprios demônios.
A diferença é que enquanto “Dogville” é cru e cruel, “Tetro” é apaixonado e sublime.
Filmado quase que inteiramente num deslumbrante tom de preto e branco, “Tetro” é acima de tudo uma obra de arte sobre o amor. Mas, não só entre seres humanos, e sim amor ao próprio ato de filmar. Embalados por canções pungentes e belíssimas cenas de teatro, ópera e dança “Tetro” é um filme híbrido. E é justamente nesse mistura de linguagens que Coppola alcança resultados surpreendentes. Apelando também para a literatura e para “chocantes” flashbacks coloridos, Coppola faz um filme contemporâneo aos 72 anos de idade e disse que escreveu o roteiro desse grande filme há mais de 40 anos atrás. Não é pouco.
Tetro”, no entanto, não é um filme estético, não é um experimento. É cinema com C maiúsculo. Aqui a estética surge com transmudação da história contada e se torna uma engenhosa metalinguagem do enredo.
É possível também evocar "Carta ao Pai" do Kafka aqui e ali para exemplificar o tormento que é para Tetro lidar com o paterno.
"Da tua poltrona, tu regias o mundo. Tua opinião era certa, qualquer outra disparatada, extravagante, meschugge, anormal."
E as influências não param por ai... há uma pitada de Almodóvar 1° fase na maneira irônica com que Coppola filma os bastidores do mundo artístico e até mesmo na relação amorosa e passional entre o dono do bar/teatro e sua mulher. Há ecos de Fellini na exposição rica dos tipos em cena e naquela tristeza que Fellini sabia capturar com tanta poesia. E também há em Bennie, o quase marinheiro algo de Tennessee Williams. Mas esse filme não seria o mesmo sem a influência maior do cinema da filha do diretor: Sofia Coppola. O pai da cineasta disse em entrevista que aprendeu com a filha a fazer filmes intimistas. Com "Tetro" é possível dizer que ele aprendeu a lição direitinho.
Os dois atores principais são o novato Alden Ehrenreich e o sempre estupendo Vincent Gallo. Gallo dá um show, alternando momento de extrema rispidez com doçura, é um personagem atormentado, mas, sem maneirismos desse tipo de personagem. Alden Ehrenreich é uma gratíssima surpresa. Caso raro daquele tipo de ator que a câmera ama logo de cara. Sabe, tipo Marlon Brando, Gael Garcia Bernal, Louis Garrel? Pois é, assim é Alden Ehrenreich. Ele é um arraso. Sua interpretação do garoto do interior que aos poucos se deixa transformar pelo sucesso é digna de muitos prêmios. É um deleite acompanhar suas cenas, é tão bom assistir uma interpretação apaixonada e entregue como a desse ator Alden Ehrenreich. Ele é a alma do filme. Sua inocência e logo depois seu deslumbre são os eixos dramaturgicos do roteiro.
Filmado numa Buenos Aires mítica, "Tetro" é um filme atemporal. Aliás, como todo bom cinema deveria ser.
Um dos filmes mais deslumbrantes do século.
A Vida dos Peixes
3.6 69O filme “A Vida dos Peixes” do diretor chileno Matías Bize é sutil, minimalista, pequeno, mas tão grandioso que chega a assustar.
O enredo conta a história de dois personagens que se amaram e se perderam. Andrés é um jornalista que trabalha na sessão de turismo, sua função é ir de lugar em lugar numa tentativa de desvendar os roteiros turísticos e publicar em jornais e revistas. Beatriz é sua antiga namorada. Eles se separaram há dez anos. A festa de aniversário de um dos muitos amigos em comum é o cenário do reencontro dos dois.
O filme todo se passa numa única noite e num único cenário.
Quando o filme começa sabemos quase nada da vida dos protagonistas, aos poucos e através de diálogos engenhosamente simples e banais, o diretor remonta a história de amor de Andrés e Beatriz.
Apesar de no ínicio nada sabermos, é possível notar na composição do personagem Andrés, uma tristeza latente, exteriorizada no corpo, nos gestos, nos olhares. Há nesse personagem e nos outros também, uma nostalgia do passado, daquilo que já foi, que já não é mais. Os personagens parecem ter parado num tempo que nós (espectadores) ainda não sabemos exatamente qual é?
Andrés parece não se sentir muito a vontade voltando no tempo, de volta para o passado. Há ali uma nostalgia de um futuro que não foi. Sim. Algo que poderia ter sido. Parece que tudo falhou. Tudo deu errado. Andrés perambula pela casa, numa ânsia de querer capturar algo que lhe faça pertencer. Talvez, algo que lhe faça ficar. Ao ver Beatriz na festa, pronto, tudo vem à tona... os medos, o vazio, o amor, o passado, o futuro, o presente. Na primeira conversa depois de dez anos de separação, o que fica explícito é que a distância entre ambos parece imensa. Sim. A distância dos que se conhecem demais. Aquele sinal interno que nos avisa quando estamos frente a frente com alguém que gostamos demais e estamos brigados: Cuidado! Perigo! Ameaça!
Sim. É perigoso lidar com quem amamos. Sobretudo se queremos aparentar que já não mais amamos e que agora estamos ótimos. De uma maneira delicada, o roteiro avança e pouco a pouco vamos sabemos mais da história dos dois.
Beatriz está casada, é mãe de gêmeos e tenta continuar vivendo.
Andrés, apesar de viver num ritmo alucinante está estagnado. Não evoluiu. Parece ter ficado preso às reminiscências de sua juventude. Há informações aqui e acolá que nos fazem entender um pouco mais da personalidade introspectiva dele. Mas não vou revelar aqui.
Durante o filme fiquei pensando numa frase do escritor Caio Fernando Abreu:
"Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros."
Sim. O aspecto mais fabuloso de todo o filme é exatamente a maneira terna com que o diretor filma seus personagens. Sim. Os traumas, as quedas, os medos, os choros estão ali, impregnados nos corpos dos personagens. O que poderia ser apenas um simples filminho de amor torna-se poderoso, por essa razão. Os diálogos são preciosos, mas é nos momentos de silêncio que o filme cresce e ganha maior densidade.
Impossível não pensar em Caio Fernando Abreu vendo esse filme. Várias e várias frases dele passaram pela minha cabeça....
"Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora... Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço."
" Tenho medo de já ter perdido muito tempo. Tenho medo que seja cada vez mais difícil. Tenho medo de endurecer, de me fechar, de me encarapaçar dentro de uma solidão -escudo".
Além de Caio Fernando Abreu, “A Vida dos Peixes” também me remeteu ao cinema de Sofia Coppola e seus personagens entediados, Miranda July e sua volúpia pelo amor, Wong Kar-Wai e seu preciosismo ao retratar os apaixonados e o frescor e jovialidade de Xavier Dolan. Embora as referências pululem aqui e acolá, o filme é genial.
“A Vida dos Peixes” mexe com nossas expectativas, com nossos desejos... querendo ou não, nos projetamos naqueles dois personagens, torcemos por eles, queremos que eles voltem a ficar juntos, que voltem a se feliz... Mas será que ainda há tempo?
Ao final lembrei da “Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz” e que Maria Bethânia declamou no meio de um de seus shows:
“Quanto a mim... O amor passou. Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e embora na vida adulta sigam outras feições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.”
Amantes
3.5 340O filme é realmente simples e de certa forma trágico, pois logo no início já é possível "prever" o final. Só que a genialidade de James Grey reside na maneira como ele dirige e encaminha a história e na esplendorosa trilha sonora que é realmente um achado, ópera, fado e até música brasileira. Joaquin Phoenix simplesmente consegue uma das melhores atuações masculinas do cinema. Sua verdade, sua entrega ao papel é admirável. Quem é ou já conviveu com alguém que seja bipolar sabe o quão profundo ele mergulhou em sua interpretação. Os olhares vazios, a alegria efusiva, o caminhar na corda bamba sem rede que é viver tudo ali é mostrado.
Também fiquei impressionado com o trabalho da mediana atriz Gwyneth Paltrow, que aqui neste filme demonstra uma atuação segura e bem construída, cheia de nuances e intenções. Além disso o filme possui ótimas sacadas,
mas a melhor de todas é o olhar que Paltrow lança aos espectadores no momento em que sua personagem se deixa levar pela ilusão do amor que não se sente e num outro momento o mesmo olhar como quem pede consentimento ao público para se continuar que Phoenix lança ao público no instante final.
Ao final não saí da sala com um nó na garganta, saí da sala com lágrimas escorrendo pelo meu rosto e a sensação de ter assistido um belo filme.