"Dolce" é um doloroso estudo do humano. Através das lamentações de uma velha senhora japonesa é possível entender as nossas próprias dores. Sokurov não faz filme, nem documentário, nem poesia, ele ultrapassa tudo isso. Sim.
"SHIT YEAR" do diretor Cam Archer é um doloroso ajustes de contas com o passado de uma atriz que decide se aposentar e se isolar do mundo. É a história de alguém que viveu atráves de suas personagens. Quase sem lembranças próprias. É um filme triste. Em preto e branco. Fragmentado. Melancólico. Com pitadas de surrealismo. É a história de uma mulher solitária. Apaixonada por um garoto bem mais novo que ela. Não é nem a busca por sua metade perdida. É mais embaixo ainda. É a busca por si mesmo. Onde eu busco eu?
"Sabe o que me ocorreu? Que todos os papéis que desempenhei... todas aquelas personagens nunca experimentaram a felicidade. Eles eram infelizes. Então comecei a me perguntar, se eu tinha experimentado a felicidade. E eu, tenho momentos de felicidade, mas nunca fui capaz de me ater a eles. Você acha que sou infeliz?"
"Wild Tigers I Have Known" do diretor Cam Archer é um trabalho bastante impressionante.
O filme conta a história do menino Logan, adolescente de 13 anos, entediado com a realidade, se refugia no mundo da imaginação.
Ele é apaixonado por um garoto mais velho e desejado da escola, o garoto mais velho e desejado da escola também é uma garoto entediado assim como Logan.
Os dois viram “amigos” e acompanhamos cenas dos dois juntos, conversando, andando, indo atrás do animal Puma que está rondando e ameaçando a escola.
O filme é pautado em muitas imagens oníricas que sugerem mais do que mostram, tornando o espectador cúmplice de Logan, o filme é aquilo ou você entra na proposta dele ou desiste logo de cara. É um filme à la Clarice Lispector, “ou toca ou não toca”.
A mim me tocou muitíssimo, o diretor iniciante Cam Archer faz um belo trabalho, algo na vertente do Gus Van Sant ( que produziu o filme) e adiciona pitadas de David Lynch.
No entanto, não é uma cópia desses diretores, não. Tem cara e vida própria.
De Gus Van Sant toma emprestado a temática de jovens entendiados e a estética “lenta e bela”, já de David Lynch pega o clima onírico e cenas aparentemente “sem sentido”, além da trilha obsessivamente sombria e opressiva.
Aliás, falando em trilha a cantora folk Emily Jane White gravou a canção que dá titulo ao filme “Wild Tigers I Have Known”. É uma canção triste que diz “O silêncio é um poder e uma ferramenta para você. Tigres selvagens que conheci, eles me mandaram bagunçar.”. É uma canção perfeita no final do filme, uma canção perfeita para Logan.
É um filme duro, mas, sensível, onde o menino que faz o protagonista Malcolm Stumpf dá conta do dificílimo papel que lhe é confiado pelo diretor. O menino trabalha muito bem a questão dos silêncios e do conflito sexual pelo qual seu personagem passa e também segura com competência as cenas que Logan assume seu alter-ego feminino Leah para seduzir Rodeo. As cenas entre Leah e Rodeo são quase todas por telefone e Malcolm Stumpf apenas com um pouco de batom na boca e uma pequena mudança na voz arrasa como Leah.
O final em aberto do filme condiz perfeitamente com sua história e estética... Cabe a nós como espectadores dar um final a Logan.
Ao final do filme, fiquei com um nó na garganta pensando nessa fase complicada que é a adolescência e no quão as instituições que deveriam estar preparadas para lidar e ajudar os jovem nada faz por eles. Família e escola, cada uma joga a responsabilidade em cima da outra e ninguém faz absolutamente nada e ai esses jovens crescem sem orientação nenhuma e ai inúmeras outras instituições estão ávidas para fisgar esse público tão carente de formação e informação: Igrejas, Tv, Drogas e Indústria Fonográfica e ai a coisa descamba e ai tanto a Família quanto a Escola vem a público reclamar do comportamento juvenil. E ai...
Enfim, é uma bola de neve e ninguém faz nada.
Ouço relatos aviltantes dos alunos da escola de teatro onde dou aula... eles me contam o que acontece na sala de aula, no recreio das escolas onde eles estudam e fico pensando onde isso vai parar?
Não sei...
Mas filmes como “Wild Tigers I Have Known” diagnosticam o problema, o que já é muito.
Para encerrar coloco aqui um diálogo dolorido de Logan com a coordenadora da Escola onde estuda:
- "O que você faz quando fica triste?"
- "Eu sonho"
- "Com o que você sonha?"
- "Em estar em outro lugar, em não ficar sozinho."
"FAUST" do diretor russo Aleksandr Sokurov é um filme difícil, pesado, sombrio e lento. Uma longa jornada inferno adentro. Sokurov impressiona mais uma vez pelo apuro estético, belíssima fotografia e trilha sonora, o jogo entre luz e sombra enche o filme de apuro visual raramente visto no cinema. O trabalho do ator Anton Adasinskiy que faz o "diabo" é impressionante. Livremente baseado na obra de Goethe, o filme exala uma humanidade fria e errática, mas ainda assim uma possível humanidade.
"DRIVE" do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos.
Genial. Matemático. Violento. Tenso. É um filme híbrido. Um mix de referências que resultam em algo único e absolutamente brilhante. Estão ali David Lynch, Gaspar Noé, Wong Kar-Wai, Chan-wook Park e Quentin Tarantino. Lynch surge na atmosfera feérica de Los Angeles e na trilha sonora. Gaspar Noé e Chan-wook Park, no modo de filmar a violência explícita do filme. Wong Kar-Wai, na câmera lenta e no desabrochar da paixão. Tarantino, pela ironia perversa. Mas não se enganem. Apesar de todas essas possíveis referências, “Drive” é um filme único. E o diretor Nicolas Winding Refn beira a genialidade.
“Drive” conta a história de um homem que dirige carros em cenas de alta periculosidade em filmes de ação. Esse mesmo homem também participa de assaltos.
A cena inicial mostra esse homem em ação. Durante exatos nove minutos, acompanhamos uma espécie de prólogo auto-explicativo do personagem e do próprio filme. Palavras ou diálogos pouquíssimos. O que segura a cena é a entrelinha, o subtexto. O que está por baixo e além da cena.
“Diga a hora e o lugar, e te dou um tempo de 5 minutos. Haja o que houver nesses 5 minutos, estou à disposição. Seja o que for. Mas o que houver após esses 5 minutos, você está por sua conta”.
“Drive” é um filme em camadas. Como já disse é um filme híbrido. Ele começa com um filme de ação. Vira um filme policial. Ganha contornos românticos quando o motorista conhece e se apaixona por sua vizinha. Torna-se um drama familiar quando o marido dela que estava preso volta (de surpresa) para a casa. A partir daí, um drama psicológico, para logo depois, virar um filme de máfia e terminar como um filme épico, envolto num clima de cinema noir.
O diretor dinamarquês passeia por esses gêneros sem perder a mão em nenhum momento. Nada falta, muito menos sobra. É um filme exato. No ponto. Precisão Pura.
O que assistimos em “Drive” é a história de um indivíduo em combate com o cidadão. O motorista é um ser totalmente cético em relação à sociedade em que vive. Ele cria sua própria “moralidade”. Seu código de ética é rígido.
“Eu não participo do roubo e não porto armas. Eu dirijo.”
Ele é um solitário. Ou melhor, é alguém que sabe que tem que enfrentar solitariamente todos os perigos e riscos. É um homem quieto, silencioso, cheio de mistérios e pequenas nuances. Suas motivações pessoais soam contraditórias e exatamente desse material que emerge o lado mais encantador do filme. Quem é esse homem cujo nome não sabemos? Quem é ele? E o que ele quer?
Impossível saber. Resta-nos o mistério e o assombro ao ver até onde aquele homem pode ir... Em busca sabe-se lá de quê!?
Eu até poderia afirmar aqui, que ele só faz o que faz por amor a personagem de Carey Mulligan e ao filho dela, mas o final propositalmente em aberto deixa o espectador com algumas dúvidas. Na verdade, os laços afetivos entre o personagem do motorista e a vizinha não é nada sólido. Muito pelo contrário. Tem muito de idealização ali. Ambos buscam um relacionamento que aplaque um pouco a solidão em que parecem viver. Ela, totalmente desprotegida. Ele, absolutamente solitário. Eles não vivem a paixão. Eles não se conhecem. Apenas idealizam-se. Trocam apenas um único beijo apaixonado durante todo o filme. Como diz Zygmunt Bauman, “onde há dois não há certeza. (...) Ser duplo significa consentir em indeterminar o futuro”. Daí que esses dois personagens que se envolveram como uma única alternativa possível para escapar da solidão, do desespero e da fragilidade acabam descobrindo às duras penas que tudo se tornou muito mais solitário, desesperador e frágil.
A jornada épica que o personagem de Gosling mergulha é a trajetória de um personagem abandonado à própria sorte e “moralidade”. Torcemos por ele, não por uma mera identificação babaca, e sim, porque também nós estamos todos abandonados à própria sorte e também nós temos que nos inventar e criarmos nossa própria “moralidade”. Sim. Baudrillard estava certo: “Somos todos cúmplices na espera de um roteiro fatal, mesmo se ficamos emocionados ou transtornado quando ele se realiza”.
PS: Ryan Gosling prova (mais um vez) porque é o melhor ator de sua geração, seu desempenho é brilhante. Assim como o de todo o elenco, direção e equipe técnica.
A Imagem como êxtase. A palavra como epifania. Assim é "Le Monde Vivant" do diretor Eugène Green. Belo. Belíssimo. Uma das coisas mais sublimes que já vi na vida.
"-Estamos a sós. -É estranho que possamos estar a sós, inclusive quando somos dois. -A gramática o fez assim. -Então devo agradecer a gramática por me permitir estar a sós com você."
Eugène Green é um dos diretores mais interessantes que descobri esse ano. Seus filmes (já assisti três deles) são extremamente rigorosos, teatrais e bastante minimalistas, mas exalam uma humanidade arrebatadora. Vi "Le Pont des Arts" e estou ainda atônito por ter presenciado tamanha beleza e sensibilidade presente em cada take. Êxtase. Verbo. Silêncio. Música. Teatro. Filosofia. Cinema. Arte. Angústia.
Êxtase porque da cena mais banal, Green faz erigir uma espécie de epifania bastante original. O Verbo é a palavra. E a palavra não é divina, mas humana. É a maneira encontrada para confrontar o silêncio. Já a música é a expressão máxima do sublime em nós. É dor. É violência. Perdição. Mas também redenção. O teatro surge na opção estética de filmar frontalmente os corpos que habitam a cena e também na marcação cênica. “No silêncio a filosofia morre e nasce o fascismo.” Sim. É preciso falar. Sim. É preciso ação. Mas o cinema de Green transcende tudo isso. É movimento antes de tudo. Como na música. É arte. É Barroco. Mas sua exuberância nasce de sua imensa simplicidade. Assim como a angústia que atormenta os personagens brota da justa contraposição entre uma sociedade acadêmica, careta e caricata e a realidade. Não essa realidade vendida em banca de jornal. Mas o real que é sempre inventado por cada humanidade. O real que emerge no momento em que um corpo morto abraça um vivo.
Dividido em cinco capítulos (Ser Feliz, O pensamento revolucionário, A Máscara. Sarah e Manuel), "Le Pont des Arts" conta várias histórias que se entrecruzam de maneira genial e inovadora. Sarah e Manuel e seus respectivos parceiros são jovens estudantes. Manuel está perdido. Nada para ele parece fazer sentido. Enquanto Sarah é uma cantora de enorme talento, mas tiranizada por seu regente, uma figura caricata e risível, que só consegue despertar sentimentos negativos. Sarah chama-o de “O Inominável”. Essa triste figura é utilizada pela direção para satirizar os intelectuais e seus hábitos. É um pateta. Um bufão. Sobrevive apenas do medo que consegue impingir em seu elenco. A crítica de Green é feroz e mordaz. Seu alerta é parecido com o de Álvaro de Campos e seu “Ultimatum”:
“O que aí está a apodrecer a vida Quando muito é estrume para o futuro O que aí está não pode durar Porque não é nada.”
Sim. A sensibilidade nova é representada por Sarah que apesar de seu talento, vive sempre angustiada com as constantes humilhações que sofre de seu regente. Ela não consegue dormir e é constantemente assaltada por perguntas sobre si mesma.
- “Não que ser feliz?”
- “O que é ser feliz?”
- “Estarmos juntos. Amarmos uns aos outros. Ter sucesso em nossas carreiras. Ter dinheiro suficiente para que esqueçamos o dinheiro. Nos amarmos. Viver juntos em um lugar agradável de nossa cidade. Viver juntos com nossos filhos.”
Já Manuel está perdido. Só sabe o que não quer. Não quer tese, mas poesia. Ao longo de seu percurso, rejeita tudo aquilo que a sociedade considera normal; estudo, emprego, namoro. Busca encontrar algo além. O quê? Ele não sabe. Ele está procurando. Ele vai encontrar. O encontro entre esses dois personagens se dá de maneira elíptica. Algo falta. A realidade não dá conta da existência. A angústia (sensibilidade) latente de Sarah leva-a ao suicídio. A violência contida nos olhos e vozes das pessoas arranca a máscara que ela havia criado para si mesma. Não é mais humana. Mas, um fantasma.
“Quando a vida termina, o silêncio volta a reinar”.
Manuel também busca no suicídio uma possível saída para a banalidade da existência humana. O silêncio como resposta. Ele prepara toda a cena. Mas no instante da consumação, a música cantada por Sarah o salva. A cena filmada em detalhes, mas sem nunca revelar o corpo agônico dele, é magistral e comovente. Não por um sentimentalismo barato, e sim, pelo ascetismo fílmico presente em toda a seqüência. É simplesmente genial. Sim. Nietzsche estava certo. “Sem música, a vida seria um erro”. Manuel desliga o gás. Abre as janelas. Respira com dificuldade. Há vida lá fora. Sim. O sorriso dado por ele é o indicador de que ele encontrou seu caminho.
Green utiliza-se de uma história de teatro nô como metáfora de seu próprio filme. Além do humano, está a fantasmagoria. O cinema é a arte de fazer aparecer fantasmas e Green brinca com isso o tempo todo. Sim, pode parecer bizarro. Mas, “talvez as pessoas devessem se separar sempre para serem felizes juntas”.
"Au Hasard Balthazar" ("A Grande Testemunha”) conta a história de um burro, mas o diretor francês Robert Bresson concebe um dos filmes mais humanos que já assisti. Contrapondo várias visões de mundo, o filme evoca algo perdido, que já não é mais... (seria a inocência?). Um filme absolutamente humano, demasiado humano, mas sem pieguices. Bresson eleva a teoria da desfamiliarização brechtiana à enésima potência. Não existe o drama. Nem o pós-drama. Mas apenas situações descarnadas. E mesmo assim dói. Muito.
Impressionante o que o diretor Steve McQueen nos apresenta no filme "SHAME" . Nada psicologizante, o filme é apresentado por meio de seus personagens, sobretudo por Brandon (vivido com brilhantismo por Michael Fassbender) e sua irmã Sissy (a ótima Carey Mulligan). É cinema carne-viva/latente/sangue/esperma. Esteticamente deslumbrante, com um roteiro simples e engenhoso, embevecido em pequenas elipses e um minimalismo assustador, McQueen consegue provocar/questionar o espectador mergulhando-o numa atmosfera sombria, quase um sonho (ou pesadelo) angustiante... Acompanhamos não um filme, mas a "via-crúcis" do corpo.
A primeira “via-crúcis” é vivenciada por Brandon, homem que optou pela solidão, aparentemente bem-sucedido, tem um bom emprego, um apartamento legal, veste-se bem, é bonito, charmoso e tem bom papo. Mas nada disso é dito no filme, tudo é mostrado. O personagem age e é assim que o conhecemos. As primeiras cenas são dedicadas a mostrar Brando existindo. Em quase todas, há um componente em comum: Brandon é fascinado por sexo. Seja no trabalho, em casa, no metrô, ele sempre está pensando ou fazendo isso. Tudo vai bem até que...
... A segunda “via-crúcis” entra em cena. Ela é Sissy, irmã de Brandon. Ela nos é apresentada primeiro por inúmeros telefonemas que ela faz para a casa do irmão sem sucesso. Ele nunca atende as ligações e chega a se irritar com a insistência dela. Até que...
... Ela aparece do nada na casa dele. Sim. Ela tinha as chaves. A primeira cena de Sissy é especialmente bem orquestrada. Ela aparece de maneira sinuosa, pelo espelho, completamente nua e dizendo que vai precisar passar um dia ali, pois tem um show na cidade e brigou com o namorado. Sissy cantará num bar chique da cidade. Brandon não gosta muito de ter alguém perturbando seu sossego, mas acaba cedendo. E é aqui que o inferno de ambos começa.
A presença física da irmã faz com que Brandon tenha uma dificuldade de ser quem ele realmente é. Seus atos precisam ser pensados, para que sua compulsão ao sexo não acabe aparecendo. Mas tudo em seu apartamento é uma denuncia disso. Revistas pornográficas, sites de sexo no computador, punheta no banheiro. A solidão que até então acobertava o comportamento de Brandon é colocada em xeque.
Sua irmã nos é apresentada como uma cantora extremamente sensível (sua versão do clássico “New York, New York” é arrepiante, a cena mais linda de todo o filme) e uma pessoa totalmente carente de afeto. Brandon e Sissy são seres errantes, erráticos, tortos. Mas a direção não perde tempo em tentar explica-los. Não. Aqueles dois personagens existem. São palpáveis. E parecidos. A solidão é a mesma. Mas a maneira de encará-la é diferente. O que terá acontecido com esses dois? Quem são os pais deles? Como eles são? E a infância? E o latente componente sexual que há entre ambos? De onde surgiu? Nada disso é explicitado. Mas, está ali. Quem tiver olhos, que veja.
Nova Iorque é um personagem importantíssimo na trama. Ela parece inspirar certa dose de melancolia e desespero genuíno naqueles personagens, sobretudo em Brandon, que vive ali há mais tempo. Sim. A cidade nunca dorme. Brandon parece nunca estar completamente descansado. Sempre está alerta. À procura de algo ou alguém.
Daí que “Shame” é um filme sobre o vazio. A ausência. O nada. E a não aceitação disso. “Shame” é um filme sobre os caminhos encontrados por esses dois personagens para lidar com angústia e no contexto mostrado, só é possível alcançar esse “alento” através da fuga desesperada de qualquer contato mais profundo com o outro e o desenvolvimento de um comportamento onde se busca o excesso em algo, ou bebida, drogas, sexo ou até mesmo a própria criminalidade e a arte.
Sissy desperta em Brandon sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo em que se vê que ele a ama, ele também a repele e humilha. Sissy representa a mulher. O alvo preferencial de Brandon em suas investidas sexuais. Ela é a personificação de todas as mulheres que ele deseja. Ao conhecer o chefe dele, Sissy transa com ele na mesma noite, comportamento exatamente igual às mulheres que o irmão conhece. Sissy de certa forma aguça um sentimento de culpa em Brandon. Algo que sempre esteve ali, mas escondido, latente, que agora explode de maneira avassaladora.
O pensador francês Jean Baudrillard em seu livro “A Transparência do Mal” diz que atualmente vivemos num estado de pós-orgia, aquele momento explosivo da modernidade em que tudo parece permitido, e arremata com a pergunta “O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Brandon e Sissy vivem nesse mundo e encontram como possível resposta ao questionamento de Baudrillard uma simulação da orgia, um fingimento, onde só é possível repetir todas as cenas, porque tudo já foi feito e deixado para trás. As cenas iniciais de “Shame” são exatamente assim. Repetição. Repetição de um mesmo comportamento obsessivo. Repetição de um padrão que até então dava certo. “Quando tudo é sexual, nada mais é sexual, e o sexo perde toda a sua determinação” (Baudrillard). Brandon lá pelas tantas, parece chegar a essa conclusão. Mas será que ainda há tempo? O desejo de punição, como um expurgo disso tudo, é trilhado. Mas antes o excesso, e se já não há o confronto com outro, defronta-se consigo mesmo. A descida rumo ao Inferno é trilhada por ambos os irmãos. Nem mesmo a tentativa desesperada de afeto parece resolver. A conversa que começa lírica e bela, acaba tenebrosa, violenta e acusatória. Parece termos chegado ao fim. “Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo.” Brando e Sissy parecem fadados ao fracasso, à solidão e à irreconciliação.
“O pior é a compreensão, que é só uma função sentimental e inútil. O verdadeiro conhecimento é o daquilo que nunca compreenderemos nos outros” (Baudrillard).
Talvez Brandon e Sissy aprendam essa lição... Sim. Talvez!
Acabei de assistir o filme "Noviembre" do diretor espanhol Achero Mañas. Estou ainda sem palavras. Chorei. Chorei tanto. É maravilhoso. Fala sobre arte. Sobre o amor à arte. Por enquanto, só posso dizer que o filme mexeu comigo, e é maravilhoso, autêntico, vivaz, terno, violento ...
Acabei de assistir o filme argentino "Las Acácias" do diretor Pablo Giorgelli. O filme poderia facilmente ser resumido como a história de um homem solitário, uma mulher que vai procurar emprego numa outra cidade, um bebê de pouco meses e uma longa estrada pela frente, mas o filme é mais. É um road-movie às avessas, interior, interiorizado. Um filme sobre aquilo que as palavras não comunicam. O silêncio dos personagens, o ruído eterno do motor do caminhão em movimento, o choro da criança, os pequenos gestos, as primeiras palavras, o farejar o outro, os fiapos de histórias, o desabrochar de um possível afeto e toda a vida ali resumida naquele três personagens e a estrada. Um belo filme. Tão simples, mas tão simples, que assombra... Recomendo. É puro cinema, mas nas entrelinhas, no não-dito, naquilo que se cala, naquilo que estava sempre faltando.
“Se você ama alguém, diga-lhe amanhã: “O céu é branco.” Se for eu, responderei: “Mas as nuvens são negras.” Assim saberemos que nos amamos.”
Ir numa locadora. Escolher um filme. Encontra-se com um amigo lá dentro. Reunir-se na casa de uma outra amiga. Assistir o filme na companhia deles. Programa que poderia ser banal. Tantos fazem isso. Todos os dias. Todas as horas. Onde está a diferença? A Epifania brota dos momentos mais inesperados. E quando menos se espera, ela acontece. Plena. Redentora. Podendo assim re-significar o mundo e as pessoas. Isso aconteceu nesta madrugada. O filme em questão é uma obra-prima. Poderoso. Onírico. Violento. Cruel. Divino.
O nome é “Os Amantes da Ponte Neuf” e foi dirigido pelo francês Leos Carax em 1991.
Um dos maiores orçamentos da história do cinema francês, o filme demorou três anos para ser concluído. Só fui descobrir essa informação mais tarde, mas de alguma maneira, ela está impressa em todo o resultado final. É um filme pesado. Difícil. Grandiloquente em sua maneira de filmar, mas absolutamente intimista em sua pequenez de obra de arte. O filme de orçamento caro conta a história de amor entre dois mendigos. Ele, Alex. Ela, Michele. Ele, artista pirofágico. Ela, artista plástica. Ele, morador de rua anônimo sem direto a passado, nem futuro, mas presente. Ela, portadora de uma doença que fará com que fique cega. Ele se apaixonará por ela. Ela tenta esquecer um amor perdido. Ela o espera... muito. É por isto que seus olhos estão muito doentes. Ela não pode esquecê-lo. É por isto que ela o ama. É por isto que ela está na rua. Será que o procura? Ela. Ela. Sempre ela. Ela é atriz Juliete Binoche. Aqui numa atuação arrasadora. Arrebatada. Dolorosamente Sublime. Ela escolhe morar na ponte Neuf, que passa por reformas. O outro morador da ponte, espécie de oráculo do local, não quer saber dela por lá, pois ela lembra algo do seu passado que ele quer esquecer. Esse terceiro mendigo possui um passado. Sim. Mas não um presente. Ele necessita de Alex para existir. Alex depende dos remédios desse outro mendigo para conseguir dormir. Michele lhe ensinará uma outra forma de cair no sono sem a necessidade desses remédios. O enredo abusa de um universo mítico-mágico e as cenas são delirantemente maravilhosas. Um deslumbre. Um desbunde. Não vou entrar em pormenores, mas algumas seqüências são de aplaudir de pé, tamanho o grau de aturdimento que impingem no espectador. É uma atrás da outra. A câmera utilizada no filme possui a tecnologia MovieCam, o que encharca o filme de um lirismo ora estranho, ora pueril, ora violento. Lindíssimo. Muito da beleza do filme brota da utilização dessa tecnologia. Lá pelas tantas, tem uma cena em que os dois mendigos observam da ponte uma apoteose com fogos de artifícios, com um mix de diferentes canções eles dançam num ritual quase demoníaco. É sublime. E essa é apenas uma das inúmeras cenas geniais de um filme que aborda o amor de uma maneira única e com uma trilha sonora das mais instigante do cinema.
Enfim, corra até a locadora mais próxima e alugue-o.
AGORA!
PS: Se você ainda correu até a locadora mais próxima, então, vou te dar mais um argumento: Vários cineastas que hoje em dia são considerados gênios do cinema beberam na fonte de “Os Amantes da Ponte Neuf”. Vou dar só um exemplo, ok? Wong Kar-Wai.
O diretor Nanni Moretti consegue o improvável com "Habemus Papam" . Faz um filme absolutamente (fra) terno de um tema bastante espinhoso, sem, no entanto, deixar de tocar naquilo que é o calcanhar de Aquiles não só da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana como também de todas as outras grandes instituições que tentam (tentaram e tentarão) explicar o mundo e principalmente a humanidade: a ausência de significado, o vazio que todos nós estamos metidos até o pescoço ou até a alma (se é que ela existe mesmo?).
Moretti parte de um tema inusitado: o papa morre e é feito um Conclave para se decidir quem será o seu sucessor. Na hora em que o novo eleito tem de se apresentar para o povo que o aguarda ansiosamente na Praça, ele tem uma crise e se esconde. Os cardeais tentam de tudo, mas nada parece convencer o novo Papa de sua missão. Um psicanalista é chamado numa tentativa desesperada de entendimento do problema. A experiência não dá certo. Arma-se um esquema para uma conversa entre a Santidade e uma outra psicanalista fora dos arredores da Igreja, dessa vez sem que ela saiba que ele é um papa. A conversa também se mostra infrutífera. Na saída da consulta, o papa sai andando pelas ruas e foge sem que os seguranças o vejam. E é aqui que começa o filme de Moretti e a crítica ácida do diretor também.
Ao ser perguntado pela psicanalista qual seria sua profissão, o homem titubeia, e logo depois diz: sou um ator. E sua nova função não deixa dúvida. Sim, aquele homem é um ator e não está sabendo interpretar corretamente seu personagem. Aliás, o teatro tem um papel fundamental neste filme. A saída encontrada pra disfarçar a ausência do papa para o restante dos cardeais é puro teatro de sombras. A insegurança do papa é uma inadequação ao papel que lhe fora designado por outrem. Sua fuga e os conseqüentes passeios incólumes pela cidade são possíveis laboratórios para melhor poder interpretar o seu papel.
A psicanálise também não fica de fora das críticas de Moretti, pois impossibilitada de tratar de temas como sexo, infância e sonhos, fica de mãos atadas. O excesso de confiança e a falação do psicanalista também demonstra o despreparo dele para atual problemática. O papa aqui somos todos nós. Todos inadequados em seus respectivos personagem. Moretti nos pergunta o tempo todo: O que sobrou de nossas ideologias, de nossas certezas? NADA. É necessário um processo inverso. É necessário um mergulho profundo no humano. Faz-se necessária uma troca, uma busca por entendimento da alteridade. Daí que o papa entrega-se em sua vida agora “mundana”. Ele passeia. Conversa com as outras pessoas e até mesmo depende delas. Visita um teatro. Sai para jantar com a trupe e por ai vai. Daí que enquanto esperam pela decisão do papa, o psicanalista e os cardeais organizam um campeonato de vôlei e a vida parece ganhar um novo sentido.
A mensagem de Moretti é clara e direta, mas a maneira encontrada pelo diretor de comunicar essa “verdade” é extremamente sábia. A crítica ao modus vivendi é insinuada, sutil, quase imperceptível em seu disfarce cômico, mas não nos deixemos enganar, ela está lá. Latente e poderosa. É só termos olhos para ver. É só termos ouvidos para ouvir.
O longa “The good, the bad and the ugly” é simplesmente sensacional.
O enredo conta a história de três personagens e a busca por um tesouro.
Cada um dos três sabe uma parte do segredo de onde o tesouro está escondido.
Falando assim a história parece até banal, mas nas mãos do diretor Sérgio Leone a trama vira uma ópera-western com momentos engraçados, longas seqüências, longos silêncios e ótimas atuações.
Os primeiros dez minutos do filme são arrebatadores, sem nenhuma fala e contando com a excelente trilha de Enio Morricone, o espectador é apresentado ao universo nada agradável do longa; lugares desérticos, personagens feios, sujos e malvados e muita violência.
O diretor não tem pressa em apresentar seus personagens, sua história, muito pelo contrário, ele possui a calma daqueles que sabem que possuem uma boa história para contar.
E assim aos poucos somos apresentados aos três protagonistas do filme:
- O Bom, vivido por Clint Eastwood, um canastrão minimalista que vive com um cigarro na boca e pouco fala.
- O Mau, vivido por Lee Van Cleef, é responsável por cenas de arrepiar, tamanho o grau de magnetismo que os olhos do ator exercem no espectador.
- O Feio, vivido por Eli Wallach, um sujeito atrapalhado e sem nenhuma educação.
O diretor apresenta cada um fazendo uso de um interessante mecanismo de paralisar a imagem e escrever o nome deles na tela, algo que mais tarde Tarantino usaria muito.
Aliás, falando em Tarantino, ele considera esse filme o seu predileto e é possível estabelecer vários pontos de ligação entre seus roteiros e esse longa de Leone.
A história mesmo só é apresentada por completo ao espectador depois da primeira hora de filme e é nesse momento em que o diretor mostra seu extremo domínio da arte cinematográfica.
É interessante notar como as histórias se interligam e se desligam ao longo da película, o diretor é habilidoso na condução do roteiro e é uma delicia acompanhar as desventuras desses três personagens.
Especialmente pelo brilhantismo dos três atores em cena, todos em performances acima da média, mas com destaque absoluto para o ator Eli Wallach (O Feio) responsável pelos momentos cômicos do filme e surpreendentemente o mais dramático também (o reencontro depois de nove anos com seu irmão que é padre e quando ele fica sabendo que sua mãe e seu pai já morreram. O ator Eli Wallach desmancha a personalidade bonachona criada para Feio, vira-se de costas e parece chorar. A cena é linda e comovente e ao som da trilha de Morricone então...).
O filme é de Eli Wallach, isso é inegável. Sua ganância pelo dinheiro e acima de tudo sua ingenuidade é algo encantador. O ator é simplesmente brilhante em todas as cenas.
Não que Eastwood e por Lee Van Cleef não estejam bem, não é isso, mas há algo de acima da média na interpretação de Wallach. Suas tiradas (“Na hora de atirar atire, não fale”) seu destino azarado e suas caras e bocas são ótimas e é dele também uma das frases mais duras do filme. Numa conversa com o irmão, ele diz mais ou menos assim “para pessoas pobres como nós, só existe duas saídas: ou virar padre ou bandido. Eu virei bandido, você padre. Cada um que siga sua vida”.
Toda a seqüência final do filme é maravilhosa, não há outro adjetivo.
Um dos melhores momentos do cinema de todos os tempos.
Na cena em que eles chegam ao cemitério onde está escondido o tesouro, o diretor cria uma cena angustiante de procura da “lapide” onde está escondido o ouro
A cena é praticamente um balé, com a câmera girando tentando acompanhar o desespero do personagem... a cena é linda.
Sem falar na seqüência mais sublime do filme que á do “trielo” final dos personagens pelo ouro.
O diretor num jogo de câmera alucinante de tão perfeito consegue criar a tensão necessário no espectador. Ficamos com os olhos grudados na tela acompanhando cada corte abrupto entre um personagem e outro e as perspectivas diferentes só fazem aumentar nossa angústia.
O diretor brinca conosco, além do “trielo” dos personagens, há uma espécie de duelo entre nós, espectadores e o filme. Ficamos de olho em tudo absolutamente tudo.
Leone nos coloca dentro do filme, nessa cena viramos personagens de western também e qualquer movimento nosso parece ser capaz de alterar o desfecho da história.
Outras cenas são igualmente hipnotizantes e não daria para falar de todas aqui.
Mas de uma eu quero falar sim, a seqüência em músicos tocam uma sinfonia enquanto uma tortura é realizada numa casa próxima.
Violência e lirismo invadem a tela e travam um duelo excepcional
Enfim este filme é uma aula do que é cinema e de seu potencial criativo.
Um filme de 1966 que é extremamente contemporâneo.
Ao assisti-lo, fiquei me questionando o quanto atualmente vivemos num western o tempo todo.
Vivemos a mesma busca desenfreada por dinheiro, somos capazes de roubar, matar e destruir em troca de “alguns dólares a mais” e sem termos nenhum sentimento de culpa por isso.
Quem trabalha em grandes corporações sabe do que estou falando.
É um querendo “matar” o outro.
O filme também é genial ao mostrar as relações de interesses entre os personagens, uma hora um personagem é aliado do outro, na cena seguinte é inimigo, na proxima são aliados de novo. Tudo gira em torno de quem me é mais interessante no atual momento em que estou. Algo que nós, humanos do século XXI conhecemos muitíssimo bem.
Obras de artes são assim, nunca parecem ser só o que se pretendem ser.
São mais, são plurissignificativas e é justamente ai que reside seu encantamento.
Recomendo muito!
Quem gostou de “Bastardos Inglórios” e “Kill Bill 1 e 2” tem a obrigação moral de assistir esse filme.
Aliás, quem gosta de cinema, do bom cinema tem que assistir "The good, the bad and the ugly" (que no Brasil recebeu a péssima tradução de “Três homens em conflito”).
Raras coisas me despertam tantos sentimentos quanto alguns filmes .
Já chorei muito mais vendo filmes, do que na vida real.
Não sei, mas não me sinto muito pertencente a este mundo, a esta banalidade do humano. “Meu reino não é daqui”.
Talvez, por isso, o filme “Ordet” (A Palavra) do cineasta dinamarquês Carl Th. Dreyer tenha mexido tanto comigo.
Eu já tinha ficado apaixonado pelo diretor quando assisti “O Martírio de Joana d'Arc”, filme mudo do começo do século, cuja atriz que interpreta a protagonista, Renée Falconetti, tem a melhor performance da história do cinema.
Sempre adiava a possibilidade de assistir outro filme do diretor com medo de me decepcionar, vi e revi “O Martírio de Joana d'Arc” não sei quantas vezes.
É um dos meus filmes prediletos.
Munido de coragem e tempo, decide assistir “Ordet” e confesso que ainda estou extasiado por tamanha beleza e precisão que o diretor nos proporciona.
Sabendo que tem uma ótima história em mãos, Dreyer nos conta-a da maneira mais natural possível, não força a barra e nem acelera os fatos. Muito pelo contrário.
A primeira parte da história, vamos dizer assim, que pode ser compreendida pela primeira uma hora do filme é basicamente construída na apresentação dos personagens e da história.
No filme, um pai, extremamente religioso, tem três filhos. O mais moço deseja se casar com uma moça de religião diferente de sua família. O filho do meio é acometido por delírios religiosos e acha que é Jesus Cristo. O mais velho é ateu e sua esposa está grávida. No trabalho de parto, Ingrid (a esposa) tem complicações, o bebê morre, mas ela é salva pelo médico. Johannes (o irmão louco) adverte a todo o momento que um homem com uma foice na mão está na casa e levará Ingrid embora.
O pai não acredita e o fato acaba se concretizando. Ingrid morre. Johannes diz que pode curá-la, se eles tiverem fé. O irmão ateu o leva até o quarto onde está a morta. Ele tenta ressuscitá-la, mas, desmaia. É levado para seu quarto e foge, sem deixar vestígios.
Essa é a primeira parte do filme.
Confesso que até esse momento estava meio assim com o filme. Era bom, mas, não tanto quanto o outro.
De repente, Dreyer prova o porquê dessa história toda.
É um filme sobre fé... sobre a perda, sobre a reconquista, sobre o amor e também suas torpezas, sobre a morte, sobre a vida.
É um filme humano, demasiado humano.
Toda a construção psicológica que o diretor alicerçou durante a primeira parte (digamos assim) mostra-se completamente coerente com o projeto dramatúrgico do filme.
Temos um pai de família em crise de fé, um outro pai de família repressor, um ateu, um apaixonado por uma moça de outra religião, um “fanático” religioso, um padre, um médico, uma mulher grávida, uma moça apaixonada e possível substituta e uma criança.
O filme passa-se quase que o tempo todo na fazenda dos Borgens, o que dá uma teatralidade latente ao filme.
Os enquadramentos e a marcação cênica extremamente rígida e bela ajudam a dar essa sensação. Mas, não se enganem, o filme não é um teatro filmado. Não! É cinema! Cinema em sua mais alta acepção.
Eu não vou falar sobre as cenas seguintes, porquê não quero estragar o prazer de quem for assistir essa obra-prima do cinema.
Também não vou mentir, dizendo que o filme é fácil, pois não o é.
É um filme longo, lento, denso. As personagens são complexas, construídas com extremo requinte de personalidade. Nada é banal. Tudo transpira verdade. Tudo respira arte. A fotografia é deslumbrante, um preto e branco lindamente iluminado. Tanto é que André Bazin, diretor da Cahiers du Cinéma, escreveu em texto contido no DVD que, depois de “Ordet”, o cinema poderia se tornar colorido, pois Dreyer fez tudo o que era possível ser feito em preto e branco nesse filme. Sou obrigado a concordar com Bazin.
François Truffaut em texto também contido no DVD escreve que gostaria de saber como o diretor obteve o tom quimérico da fotografia do filme.
Realmente, a fotografia, ora etérea ora extremamente realista, impressiona.
O trabalho de som beira a perfeição; o tique taque do relógio, o barulho incessante do vento na cena toda que envolve a morte da grávida, dão o tom exato, no entanto, sem manipular o espectador.
Os atores estão excelentes, sem exceção. Dreyer mostra um trabalho soberbo na direção do elenco. Dizem que a atriz Renée Falconetti após “O Martírio de Joana d'Arc” ficou louca. O diretor submetia-a torturas degradantes para incorporar Joana, tais como ficar ajoelhada no milho ou presa durantes horas ou dias para gravar determinadas seqüências.
Percebe-se pela marcação espacial que os atores seguem rígidas instruções cênicas do diretor e justamente daí, emerge uma das muitas belezas desse filme.
Para quem entende de teatro, o filme é um deleite. Acompanhar a marcação cênica, as paradas, e toda a movimentação daqueles corpos é uma aula.
“Ordet” é baseado na peça de teatro homônima do pastor Kaj Munk que Dreyer tinha visto num teatro de Copenhague em 1926. Durante anos, acalentou o desejo de filmá-la. O sonho só fora realizado quase 30 anos depois.
Outra coisa que impressiona é como o Dreyer trabalha com o silêncio, embora o filme seja verborrágico, os momentos de quietude são deslumbrantes, assim como os closes dos rostos dos atores, marca registrada do diretor.
Queria poder falar mais sobre filme... não posso, pois revelaria fatos importantes do enredo.
Apenas digo que toda a meia hora final é um dos momentos mais esplêndidos da história cinematográfica.
Aos poucos, sem fazer alarde, Dreyer nos concede uma dádiva e nos leva às lágrimas.
"Walkabout” do diretor Nicolas Roeg não é um filme qualquer.
É uma experiência cinematográfica, cultural, antropofágica e necessária.
Sem perder tempo com historinhas para boi dormir, o diretor já começa seu filme dizendo a que veio.
Estamos em uma cidade moderna, cenas de pessoas andando, apressadas, adolescentes fazendo aula de canto na escola, uma criança observando uma parada militar, uma família normal, crianças se divertindo na piscina, a mãe cozinhando e ouvindo o rádio, o fumando e observando as crianças. Tudo normal, corriqueiro, urbano.
Corta!
Outra cena; um deserto, um carro parado, o pai e duas crianças. Sim, a mesma família do início (sem a mãe), a menina prepara o piquenique no meio do deserto, o menino sai pra brincar no meio das pedras, o rádio está tocando uma música alegre, o pai pega um revólver e atira nas crianças, elas saem correndo, ele não consegue acertar os tiros, abre o capô do carro, pega um suporte com álcool, põe fogo no carro e depois dá um tiro na própria cabeça. As crianças fogem e procuram durante dias alguém ou um abrigo no meio do nada. Encontram um aborígine, só que é impossível existir comunicação verbal entre eles. O filme é sobre isso.
O diretor Nicholas Roeg consegue fazer um filme assustador e terno ao mesmo tempo.
É impressionante acompanhar a busca daquelas duas crianças no meio do deserto, é assustadoramente real essa “longa caminhada” deles. Acompanhamos tudo atento, o diretor nos coloca no papel das crianças, pois, assim como elas, também somos civilizados, como elas também desconhecemos o deserto e também como elas estamos perdidos.
O filme nos causa essa impressão de perdição. Tudo é inóspito, tudo é estranho. Os animais do lugar que eles encontram (bichos esquisitos e aparentemente ameaçadores), o fora de foco das imagens como numa espécie de delírio causado pelo sol exaustivo, o cansaço da procura e o sentimento de aventura (no princípio) sendo substituído pelo de tédio (das crianças e o nosso também) ao ver que aparentemente nada irá acontecer.
O encontro do aborígine com as crianças acontece da maneira mais natural possível, o diretor não dá aquilo que a gente estava esperando, muito pelo contrário, ele retira todo e qualquer ranço de possibilidade dramática que poderia existir do encontro.
O estranho fica relegado ao campo da palavra. As crianças falam inglês e o aborígine, uma língua incompreensível. Mais uma vez, o diretor nos coloca na mesma posição das crianças. Não entendemos nada do que fala aquela criatura e o diretor não coloca nenhuma legenda.
Toda a comunicação do filme se estabelece pelo campo do não verbal, aos poucos, as crianças estabelecem com o aborígine, uma possível identificação. Todos ali são crianças. O garoto caça animais com extrema facilidade, encontra água e protege os dois. Aos poucos também, surge um sentimento do aborígine pela menina e uma possível reciprocidade por parte dela também, que ela automaticamente rejeita, por ele não se encaixar nos padrões de beleza de sua cultura.
O interessante nessa história é a convergência entre esses dois mundos tão distintos.
O menino aborígine está cumprindo um ritual de sua tribo; no qual o menino tem que passar um período sozinho, para aprender a sobreviver.
As crianças também estão sozinhas, o pai suicidou-se (aparentemente por não agüentar as pressões do capitalismo).
Toda a história é contada sob essa fina camada de aproximações e estranhezas.
Numa caçada, o aborígine mata um canguru e o despedaça, o diretor sabiamente utiliza cortes na cena mostrando um açougueiro cortando e despedaçando um animal na cidade grande.
É um filme pesado, porém, bonito, com belas imagens e paisagens, o diretor sabe captar e acima de tudo manipular cada imagem para causar a sensação necessária à história.
É um feito e tanto.
Sentimos medo, nojo, piedade, horror, tédio, ternura, amizade e esperança.
Tudo arquitetado com extrema maestria pela direção e executado com muito talento pelo trio de crianças protagonistas.
A trilha é estranha também, ora acompanha a ação e até mesmo dá um tom épico ao filme, ora é diferente e desfamiliarizada, efeito causado pelo rádio que as crianças carregam pra cima e pra baixo.
Durante o filme, fiquei me perguntando: Afinal, quem seria o selvagem ali?
É justamente essa questão que parece interessar ao diretor Nicolas Roig.
Em cena, vemos uma volta aos primórdios da civilização: o homem sai à caça de algo para comer e a menina nada nua no rio, ele faz fogo atritando dois paus e assim por diante.... tudo remonta o mito de Adão e Eva. O mundo é deles e não há ninguém por perto, pelo menos aparentemente.
Não vou contar mais detalhes para não estragar o filme de quem por ventura possa se interessar em assisti-lo.
O filme é uma fábula moral em que o diretor cutuca até onde pode o espectador. Seu enredo escarafuncha onde começa a cultura (?), onde termina o instinto (?). E acima de tudo, onde começa a dominação através da linguagem (?) onde fica o respeito à alteridade (?). São essas as questões principais desse filme genial.
Além disso, o filme tem uma linda cena de dança aborígine e mais uma vez, sabiamente, aliás, o diretor nos coloca no papel de quem não compreende bem aquela dança ao mesmo tempo esquisita e bela.
Nicolas Reig talvez quisesse nos dizer que a cultura dos outros fosse sempre assim, estranha e bela.
O filme é inteligente e o diretor “parece” não se posicionar quanto ao final, deixando as possibilidades em aberto, para que o espectador as defina, segundo sua própria experiência. Jogada de mestre.
Enfim, um filme estranho e belo, não necessariamente nessa mesma ordem.
Michael Haneke, cineasta austríaco, é o diretor que mais entende do vazio do homem contemporâneo.
Seus filmes apresentam a humanidade tal qual ela é.
Sem explicação. Sem subterfúgios. Sem máscara.
Todos os seus filmes vão por esse caminho: “A Fita Branca”, “Cachê”, “A Professora de Piano”, “Funny Games” e “O Vídeo de Benny”.
Hoje eu assisti “O Sétimo Continente”, seu primeiro filme.
E é interessante notar que em seu primeiro filme, os temas que mais tarde seriam perseguidos, decepados e analisados pela sua ótica crua já estavam todos ali.
O filme conta a história de uma família aparentemente normal, como todas as outras do mundo.
Haneke passa os primeiros longos minutos do filme mostrando os personagens em ação diária; acordar, escovar os dentes, chamar a filha para ir para a escola, tomar café da manhã, ir cada um para seus afazeres e filma também à volta para a casa até o sono e consequentemente tudo recomeça no dia seguinte com sutis mudanças.
O diretor filma fragmentos do dia dessas pessoas e utiliza-se desse efeito para igualmente filmar pedaços dos corpos delas. Nos primeiros vintes minutos, pouco ou quase nada vemos dos rostos desses personagens.
Ação cotidiana pura e simples.
A primeira cena é genial.
Haneke filma um carro sendo ensaboado num lava-jato, a câmera fica do lado de dentro, assumindo a posição que mais tarde saberemos ser a da criança, a partir desse olhar vemos um homem e uma mulher sentados, sem aparentemente reação alguma.
A cena é poderosa e incômoda e Haneke se vale dela em outros grandes momentos do filme.
O filme é dividido por partes e em quase 1 hora de filme acompanhamos a rotina daqueles personagens sem saber muito bem por quais caminhos o diretor pretende trilhar. As imagens são fortes, repetitivas e angustiantes. São incômodas ao extremo e Haneke não parece fazer o menor trabalho para torná-las menos densas.
A rotina só é quebrada por pequenos e rápidos momentos em que dois dos personagens choram. As situações em que esse choro acontece são imprevisíveis e o diretor não as explica. Fica o vazio do não entendimento por vias racionais. Mas, mesmo assim, conseguimos entender o porquê das lágrimas.
É cinema para gente grande.
Para aqueles que querem pensar a respeito do homem, suas mazelas e seu mundo.
De repente o imponderável acontece e mesmo assim Haneke filma da mesma maneira, como se até mesmo no caos houvesse uma ordem e por que não dizer, até mesmo uma beleza. Só o caos os salva da rotina. E é preciso ir até o fim em seu propósito... E os personagens vão até esse fim.
As imagens dessa destruição são filmadas de uma maneira crua, distanciada com cortes secos e racionais. Os personagens continuam até mesmo dentro do caos agindo de maneira racional. Como se o cotidiano já estivesse tão entranhado neles que fosse impossível se livrar de tudo aquilo ali.
É um dos filmes mais poderosos que já foi feito sobre o capitalismo e suas rotina estafante de trabalho. Inúmeros estudos já foram feitos nessa área sinalizando que essa rotina massacra o ser humano, neurotizando-o até o extremo da loucura.
Coincidentemente, quando assisti o filme, me lembrei de um vídeo que me deixou estupefato. No vídeo real, uma garota vestida com um capuz vermelho (Chapeuzinho-vermelho?) carrega uma cesta com seis filhotes de cachorro. Ela está na beira de um rio. Pega cada um dos cachorrinhos (que estão chorando na cesta) e arremessa-os no rio. A garota não demonstra qualquer tipo de reação, apenas joga-os e parece se divertir. Parece. Não dá para se ter certeza disso.
Pensei em Nelson Rodrigues e seu “Os Setes Gatinhos”, peça em que uma garota “virginal” mata uma gata prenha. A gata morre, e depois de morta, ela pari sete gatinhos.
Nelson Rodrigues assim como Haneke entende muito dos processos mentais que o humano passa durante a sua existência. Temas como ciúme, parafilias, suicídios e morte estão retratados em quase toda a totalidade de sua obra.
Pensei também no excelente livro da Lionel Shriver, escritora americana, chamado “Precisamos falar sobre Kevin”. Nesse livro todo feito em forma de cartas de uma mulher para seu marido, a escritora conta a história de Kevin, adolescente que entra armado na escola e comete uma verdadeira chacina. A mãe dele, que nunca quis tê-lo, tenta encontrar uma justificativa para o ato.
Pensei, pensei, pensei tanto.
É possível uma pessoa nascer genuinamente má?
Lembrei dos pensadores que conhecia e suas ânsias em querer explicar algo nesse sentido.
Lembrei de Rosseau e sua frase: “O Homem nasce bom a sociedade o corrompe.”
Lembrei de Hobbes: “O Homem nasce mau a sociedade o civiliza”
E por fim, lembrei de Pascal: “O bem e o mal coexistem dentro do homem”.
Onde estaria a melhor resposta para minha pergunta?
O fato é que o mal sempre nos fascinou e fascina até hoje.
É só dar uma olhada nas listas dos livros mais vendidos e nas sessões de cinema lotadas de filmes de terror e suspense.
Misteriosamente me pego pensando em Brecht e sua frase na peça “A Alma Boa de Setsuan”: “Como posso ser boa, se tenho que pagar o aluguel?”.
Brecht parece ir ao cerne da discussão proposta pelo filme “O Sétimo Continente” de Haneke; a alienação proporcionada pela busca utópica da sobrevivência e/ou do luxo.
Hoje vemos que as pessoas se justificam por aquilo que possuem ou parecem possuir.
A tal “Sociedade do Espetáculo” analisada por Guy Debord em seu livro homônimo.
Vivemos a sociedade da aparência e soa sintomático que cada vez mais pessoas estejam enlouquecendo, atirando e matando seus semelhantes.
Nessa nova configuração de nossa sociedade, o lugar delegado ao outro é inversamente proporcional ao nosso.
“O que é bom é pra si e o que sobra é do outro”, letra realista do grupo de rap “Racionais MC’s”, chamada “A Vida é um desafio”.
Esse comportamento alienatório em relação à alteridade é o que fomenta a barbárie. Se o outro é mero arremedo de minhas vontades e desejos, eu posso acabar com a vida dele a hora que eu quiser, sem absolutamente nenhum sofrimento.
Lionel Shriver no livro “Precisamos falar sobre Kevin” escreve sobre a relação de crime e castigo para seres sociopatas, para quem nada nem ninguém desperta qualquer tipo de sentimento.
“Eu acho muito difícil que consigam fazê-lo se envergonhar. Você só consegue afetar quem tem consciência. Só pode punir quem tem esperanças para serem frustradas ou laços a serem cortados; quem se preocupa com a opinião dos outros. Você, na verdade, só consegue punir quem já é pelo menos um pouquinho bom.”.
O certo é que quanto mais se lê, mais se assiste filme, mais se conhece o humano, mais perplexo se fica.
Freud escreveu que desde que nascemos lutamos pela manutenção de nossas vidas e que nossas duas principais forças seriam as pulsões de vida e as pulsões de morte. Ambas lutando para encontrar ecos dentro de nós mesmos.
Melanie Klein talvez tenha ido mais fundo ao escrever que se não conseguimos integrar nossos amores e ódios dentro de nós mesmos e nem aceitarmos as perdas durante nosso percurso na terra, estaríamos à mercê de forças destrutivas. Algo bem próximo propôs Jung com o conselho de trazer nossas “Sombras” para a luz do consciente.
O fato é que os filmes de Haneke são provocativos por não trazerem nenhum tipo de respostas. Talvez nem mesmo traga perguntas. É um cinema “narrativo”, num binômio cru/cruel e realista/estranho.
Optei por falar menos do filme e mais do que ele me causou para não estragar a genialidade proposta pelo cineasta.
É um daqueles filmes que exigem a aquiescência máxima do espectador.
Haneke com certeza aprendeu grandes lições com a dramaturgo alemão Bertolt Brecht. A teoria do estranhamento proposta por Brecht permeia os filmes desse diretor. A maneira desfamiliarizada com que o austríaco filma as pessoas e o próprio cotidiano é uma prova disso.
Poderia ficar aqui, falando mais e mais sobre o filme, pois, ele suscita altas discussões, mas, paro por aqui.
Apenas mais uma linha:
Se você quiser entender um pouco mais sobre o homem na contemporaneidade, é obrigatório que assista os filmes de Michael Haneke.
Cenas. Estado. Situação. O filme “A Bela Adormecida” mostra mais uma composição do que basicamente uma história. A maneira como a diretora estreante Julia Leigh filma substitui a ação dramática pela cerimônia.
O que assistimos (na realidade) são rituais, mostrados em seus mínimos detalhes. Há uma obsessão pelo minimalismo, pela perda e com a morte. A personagem principal é apresentada de maneira fragmentada. Não há um todo. Não há uma lição a ser aprendida. Mas, “apenas” partes que permanecem autônomas e parecem não apresentar nada concreto. Lucy, a protagonista, apresenta-se como magra e audaciosa. Só. Conhecemo-na pela maneira como age. Então, tudo é estranho. Tudo é mistério. Impossível não lembrar da teoria do “Gestus Social” de Bertolt Brecht:
“O objetivo do efeito de estranhamento é distanciar o Gestus social subjacente em todos os acontecimentos. Por Gestus social entende-se a expressão mímica e gestual das relações sociais que prevalecem entre os homens de uma determinada época.”
Lucy é uma jovem estudante, que trabalha numa copiadora, como garçonete, como cobaia em experimentos médicos, como prostituta e o que mais lhe aparecer pela frente. As cenas inicias de “A Bela Adormecida” nos mostram Lucy existindo. Ela mora numa casa de aluguel com outras pessoas. Está devendo o mês anterior e não tem como pagar. Ela limpa o banheiro. Limpa a mesa do bar. É cantada. Anda pelas ruas. Vai pra faculdade. Tem um “relacionamento” com um homem (que ao que parece é um intelectual) doente. Atende telefonemas da mãe, que (ao que parece) lhe pede mais dinheiro. E assim vai. Tudo aqui pode ser interpretado como “ao que parece”. Nada é de fato. O filme tem inúmeras lacunas, que devem ser preenchidas pelo espectador. Não existe psicologia, mas apenas pessoas agindo. Existindo. Sendo. O incompreensível existe e é quase palpável. Tudo é apenas acontecimento. Tudo remete ao sonho. A linguagem fragmentada e aparentemente “incompreensível” bebe na fonte não-hierárquica do sonhos. “O sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”, escreveu Freud.
Tudo depende aqui de não querer compreender imediatamente. É preciso uma mudança na atitude do espectador para o filme. É preciso abrir as portas da percepção e deixar que as possíveis ligações sejam feitas de maneira totalmente inesperada. Freud recomenda que o analista tenha uma “atenção flutuante por igual” em relação ao seu analisado. A teoria seriíssima foi concebida para que o analista não tenha o desejo de exercer qualquer tipo de poder sobre o outro, evitando assim a dominação e o possível apagamento da singularidade do indivíduo.
Essa advertência freudiana é perfeita para o filme. Pois, se quisermos “entender” logo de cara, anularemos qualquer possibilidade de singularidade do filme. E vos digo, é um filme absolutamente singular. Devemos “apenas” armazenar as impressões sensíveis (ou não) que o filme nos causa. Não deve haver penetração. A única regra da casa é essa. No sentido metafórico, é claro. E também no plano real, se levarmos em consideração a situação em que a protagonista encontra-se.
O título do filme que pode até parecer lúdico num primeiro instante, revela-se, pelo contrário, extremamente sombrio. O novo emprego de Lucy consiste em tomar uma espécie de chá do sono e dormir algumas horas, enquanto senhores endinheirados realizam suas fantasias sexuais (ou não) com ela. Tudo é permitido, exceto penetrá-la.
A essência do sonho, na visão de Leigh, coaduna com a de Freud. O sonho é a realização de um desejo infantil reprimido. O ego sem barreiras. O “eu tudo posso”. E o outro é mero arremedo das minhas vontades ilimitadas. “Quanto mais escolhas parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos”, escreveu o sociólogo Zigmunt Bauman no livro “Modernidade Líquida”, em que o autor nos fala da passagem de um capitalismo “sólido” para um mais “leve” e “fluido” e as mudanças acarretadas na vida humana. Lá pelas tantas, Bauman cita uma frase de Jeremy Seabrook que se encaixa perfeitamente ao filme:
“O capitalismo não entregou os bens às pessoas; as pessoas foram crescentemente entregues aos bens, o que quer dizer que o próprio caráter e sensibilidade das pessoas foi reelaborado, reformulado, de tal forma que elas se agrupam aproximadamente ... com as mercadorias, experiências e sensações ... cuja venda é o que dá forma e significado a suas vidas.”
A vida de Lucy só ganha significado quando ela coloca o próprio corpo a venda. Ela adquire um status. Ela passa a ser. Ela é. Quem?
Soa extremamente irônico que o “Príncipe Encantado” dela seja alguém debilitado, fraco e sem nenhuma perspectiva de vida. Mas é ali no aconchego da casa daquele homem que Lucy parece ser quem ela realmente é. Lucy é uma Macabéa hiper-contemporânea: “Já que sou, o jeito é ser.” Lucy, assim como protagonista do romance “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector também só se conhece através de ir vivendo à toa e também não explicita grandes pretensões quanto ao futuro. “Ter futuro era luxo”.
O máximo de desejo que Lucy verbaliza é o fato de querer casar-se com alguém. Mas seu príncipe encantado não pode beijá-la, pois ele tem a língua saburrosa. Mas se o príncipe não pode ser seu marido, ele transforma-se numa espécie de pai ou irmão mais velho. A cena mais linda de todo o filme mostra essa relação entre os dois. Lucy chega de manhãzinha, cansada de mais um dia de trabalho, e encontra nos braços do “príncipe” aquela espécie de carinho que nos dá uma segurança e alento. A cena é sublime, tão pequena, mas tão profunda, que dá vontade chorar junto com os personagens, não por uma emoção boba e barata, mas, por um entendimento profundo das necessidades humanas.
“A Bela Adormecida” é assim. Uma fábula que apresenta a humanidade como matéria-prima de uma crítica aos modos como nos organizamos enquanto sociedade. Uma fábula adulta, dolorosa e angustiante. Em seu primeiro filme, Julia Leigh nos brinda com uma pequena obra-prima, onde podemos ver ecos de David Lynch, Sofia Coppola, Gus Van Sant e sobretudo Michael Haneke e sua câmera documental e parada e a perplexidade de não se entender direito as razões que parecem mover os individuos. O filme também tem semelhanças com o livro de Yasunari Kawabata chamado "A Casa das Belas Adormecidas" que virou filme nas mãos do diretor alemão Vadim Glowna (e que assisti na Mostra de Cinema de SP em 2007). Mas, longe de aparentar uma mera cópia de suas possíveis inspirações, Leigh apresenta aqui um filme único e brilhante e que filme! Que filme!
O enredo conta a história de uma família numa situação pós-apocalíptica.
Não sabemos o que aconteceu. Nem como aconteceu.
Quando o filme começa, a catástrofe já ocorreu e em nenhum momento o diretor revela as razões. A situação é. Ou se entra na história ou não se entra. Haneke é assim “preciso”.
Nada falta. Nada sobra.
Seu cinema é essencial. Somente aquilo que tem relevância é mostrado.
Quando o filme começa, vemos uma família aparentemente feliz dentro de um carro no meio de uma floresta. Chegam até uma casa, retiram alguns alimentos e as malas do carro. Entram na casa. Lá dentro está um homem armado. Ele, a mulher segurando uma criança de colo e uma outra criança de uns 6, 7 anos de idade.
O homem com a arma na mão ameaça os proprietários da casa. O dono da casa tenta negociar. Consegue com que o homem com a arma na mão autorize que seus dois filhos saiam da casa. As crianças saem. Nova negociação. Um tiro. O homem com a arma na mão mata o dono da casa.
Haneke é tão genial que não mostra a morte. Filma apenas as reações a morte.
Isabelle Huppert logo em suas primeiras cenas já mostra a grande atriz que é; sua expressão fria, européia, calada é magistral, seus olhos marejados de lágrimas e sua reação de repulsa à morte é simplesmente fantástica.
A mulher e os dois filhos agora partem sem eira nem beira no meio do nada.
Soa sintomático que os nomes do filme de Anna (Huppert) atendam pelo nome de Eva e Benny. Dois nomes já utilizados por Haneke em filmes anteriores; Eva é o nome da menina que assiste curiosa e impassível a destruição de sua família em “O sétimo continente” e Benny é o nome do garoto assassino em “O Vídeo de Benny”.
Proposital ou não, essa simbologia dos nomes das crianças permite (a quem já assistiu os filmes), certa proximidade daquelas crianças. Parece que já as conhecemos.
Em todos os filmes que já assisti de Michael Haneke as crianças possuem um papel fundamental. É através do olhar ainda não decodificado delas que Haneke constrói seus filmes. O diretor filma como se fosse uma dessas crianças. Ele também parece não entender (por vias racionais) o que está acontecendo ali, ou quais seriam as motivações de cada um e até mesmo, indo mais longe, quem estaria certo e quem estaria errado.
Para Haneke, isso não interessa.
Interessa sim, filmar, filmar de maneira mais distanciada possível.
Sua câmera é quase documental, digo quase, porquê a mão ferrenha do diretor está por detrás de tudo. Haneke é tão genial, tão genial, que quase nos faz acreditar que seu cinema seja fácil de fazer. Não se enganem, é o mais difícil.
O diretor em nenhum momento, em nenhum mesmo, faz algum tipo de concessão. Seu cinema é extremamente pessoal e contemporâneo. Haneke tem um tema e desde seu primeiro filme “O sétimo continente” já o discutia com o espectador.
A sensação de não compreender direito o que se sente, não compreender o mundo que habitamos e as pessoas que nos rodeiam. A incompreensão de si mesmo.
É esse olhar incompreendido que o diretor filma.
Cinema incômodo. Haneke faz um cinema que “dói da flor da pele ao pó do osso” e que “rói do cóccix até o pescoço” (parafraseando a música de Caetano Veloso).
É impossível ficar impassível frente às propostas hiper-realistas do diretor austríaco.
Esse filme em especial mexeu muito comigo. A situação vivida por aquelas pessoas é muito parecida com a da peça que dirigi chamada “Suspensão” (de Lucas Arantes).
Tanto na peça quanto no filme, o mundo “acaba” sem nenhum tipo de explicação. Quando “Suspensão” começa, vemos três personagens (Ele, Ela e o Avô) habitando um mundo vazio. Cada um desses três personagens desenvolve um tipo de “loucura” para tentar sobreviver; ele sai todos os dias procurando vida nas ruas, ela fica obcecada com a ideia de ter um filho e repovoar o mundo e o avô busca na descrença mensurar o vazio. Não é uma peça fácil. A premissa inicial (o mundo pós-apocalíptico) é apenas uma metáfora, para falar do vazio que estamos vivenciando e também, do papel delegamos aos outros em nossas vidas.
O registro aqui é intimista, o que interessa na peça de Lucas Arantes é como aquelas pessoas sobreviveram e sobrevivem em meio ao caos.
A proposta de Haneke é parecida.
Anna vaga pela cidade em busca de alimentos e é rejeitada por aqueles que um dia foram ajudados por ela.
Haneke parece querer remontar os mitos bíblicos, vemos muitas passagens bíblicas ali materializadas.
Após muita procura e algumas pequenas tragédias, Anna chega até uma espécie de “sociedade” onde outros iguais a ela esperam uma possível salvação advinda da passagem de um trem.
Aqui é possível encontrar ecos da peça de Samuel Beckett chamada “Esperando Godot” onde dois personagens esperam, esperam e nada acontece.
Enquanto na peça de Beckett o registro é “absurdo” em “O tempo do lobo” é outro, mais próximo do real.
Foi Thomas Hobbes quem disse que “O HOMEM É O LOBO DO HOMEM” e é esse o ponto que interessa ao diretor.
Haneke é um obcecado pela ideia da maldade. Como ela surge? È da própria natureza humana? Ou é forjada por algum instinto de sobrevivência?
Não há respostas plausíveis, restam apenas algumas ações e são elas as responsáveis por tentar explicar algo.
Em nome de sua sobrevivência, o homem é capaz de qualquer coisa e embora tenha sentimentos tidos como nobres numa situação como à proposta pelo filme, a vontade de se dar bem em cima do outro fala mais forte.
(SOMOS TODOS MACUNAÍMA’S!)
Em justa medida, Haneke também traz o tema do outro, de como construímos e alicerçamos nossa civilização. Sim, somos seres ególatras, mas, não conseguimos ser sozinhos e há um vazio existencial em todos nós que nada aplaca.
No fundo, bem lá no fundo, somos todos tão parecidos, desejamos as mesmas coisas, temos as mesmíssimas necessidades e queremos todos sobreviver (se é que isso seja possível).
Toda a seqüência final é simplesmente soberba, a tentativa de possível “salvação” ao qual o filho de Anna recorre é comovente. A Bíblia nos ensinou que sempre um tem que sofrer para que os outros se dêem bem. Haneke parece não acreditar muito nisso não.
O take final é extremamente contraditório e cruel.
O diálogo final da peça “Esperando Godot” talvez explique alguma coisa:
Esse filme italiano de 1972 é atualíssimo e extremamente crítico.
Sem mais nem menos, crianças são encontradas mortas num vilarejo onde a ignorância impera. Sem obter respostas críveis os habitantes apelam para o misticismo como uma possível resposta. O vilarejo que até então era muito calmo, começa a ser invadido por repórteres e policiais de toda ordem. Os habitantes ficam em polvorosa. Todos são culpados num primeiro momento.
O diretor Lucio Fulci concebe um filme híbrido, mistura de triller policial com suspense e pitadas de humor negro.
Apesar de ter sido realizado em 1972 o filme é extremamente atual, sua crítica mordaz aos meandros do poder e principalmente à Igreja Católica é soberba.
O diretor foi excomungado pela Igreja por esse filme, só pra se ter uma ideia.
Aparentemente, o filme é apenas mais de um suspense “onde quem é o assassino?” é mais importante que a história em si. Não é o caso aqui. Mesmo se fosse apenas isso Fulci já teria realizado um filme acima da média dos outros que seguem essa linha.
Fica nítido, especialmente na parte final do filme, que o diretor concebeu um enredo grandioso e até ouso dizer raivoso. Sua ira parece se estender a tudo e a todos. Ninguém se safa ali, todos têm pequenos podres e é obvio que todos querem esconder esses pequenos podres a qualquer custo.
Fulci sabe muito bem que o binômio ignorância + misticismo é um barril de pólvora, cabendo ao diretor apenas o papel de acender o pavio e ver a dimensão do estrago.
Sim, o estrago é grande. E o diretor tinha a certeza que assim o seria.
Visto que é um filme atemporal, apesar de seus 38 anos de realização.
A galeria de personagens estranhos e com aparente culpa no cartório estão todos lá.
Tem as putas gordas a la Fellini, tem a patricinha rica e ex-drogada, tem o padre bonitão, a mãe esquisita do padre, a menina surda-muda, a “bruxa”, o curandeiro, as crianças “inocentes” e moradores carentes de informação/cultura e pobres.
Esses personagens são meros joguetes do destino, como escreveu Shakespeare. Parece que há uma força maior que força-os a agir da maneira como agem. Ouso dizer que não parecem responsáveis pelos seus atos. É desse mistério que o filme se vale em inúmeros momentos. O diretor, cônscio disso, brinca conosco, seus espectadores.
Algumas cenas são brilhantes e chocantes ao mesmo tempo. É incrível notar a ousadia do diretor em tocar em certos temas e em mostrar certas imagens. Algumas chocam ainda hoje.
A cena de abertura em que o diretor filma todo o vilarejo e depois uma imponente estrada (contraste claro entre o “rural” e o “urbano”) para só depois revelar um mão escavando algo na terra é brilhante. Aliás, essa cena é importantíssima para a compreensão do enredo. Nela, uma mãe (a “bruxa”) escava o local onde enterrou o filho morto, considerado pela mesma como sendo filho do diabo.
A seqüência final também é de encher os olhos.
No entanto, a cena mais fabulosa de todas é uma em que a “bruxa” é sumariamente torturada. A maneira como o diretor filma a seqüência é admirável, (mais tarde Tarantino se inspiraria nessa cena para o seu “Cães de Aluguel”) usando um ótimo efeito crítico, o diretor mostra a tortura de modo crudelíssimo, sem meios termos, e além disso, utiliza-se de uma trilha sonora genial, que dá o perfeito tom crítico que parece ser tão caro ao realizador. É a melhor cena do filme. Eu chorei assistindo. Chorei não só pela cena em si, mas, por todo o contexto e genialidade envolvidos. Bravo!
Não vou falar muito sobre o enredo, pois com certeza revelaria fatos que iriam estragar o prazer de quem for assistir a esse brilhante filme.
Só digo uma coisa: Assista sem medo!
Que pena que os diretores atuais sejam tão covardes e medrosos, com seus filminhos tão quadrados e caretas, fechados em si e sem reverberação crítica na sociedade.
Esse filme aqui não é desses não.
Até o título original é ousado e corajoso: “NON SI SEVIZIA UN PAPERINO” e em português claro: “NÃO SE TORTURA UM PATINHO".
A ironia fina e crítica do nome só será assimilada por quem assistí-lo.
Susanne Bier, diretora dinamarquesa, dirigiu seu primeiro filme em 2002. Este filme chama-se "Elsker Dig for Evigt" [traduzido para o português como “Corações Livres”] e ganhou o certificado de um legítimo “Dogma 95”. Movimento cinematográfico fundado por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg que criava certas regras para a criação de um filme um cinema autoral e diferente do que era (e ainda é) produzido em Hollywood.
Para garantir o selo de “Dogma 95” era necessário seguir 10 mandamentos:
As filmagens devem ser feitas em locações. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre). O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena). A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar). O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera). São proibidos os truques fotográficos e filtros. O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios, Armas, etc. não podem ocorrer). São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme se desenvolve em tempo real). São inaceitáveis os filmes de gênero. O filme final deve ser transferido para cópia em 35mm padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Muito bons filmes foram produzidos por esse movimento. Cito de cabeça uns três que são excelentes: “Festa de Família”, “Os Idiotas” e “Julien Donkey Boy”.
"Elsker Dig for Evigt" é mais um que entra nessa lista.
A diretora Susanne Bier é uma mestra do cinema melodramático, seus filmes quase sempre giram em torno de grandes tragédias e de reviravoltas aparentemente mirabolantes. Mas, seu estilo único e preciso impede que seus filmes pareçam novelas produzidas pela Rede Globo. O enredo não é muito diferente do que passa na televisão, o que diferencia Susanne Bier de uma estética famigerada é sua visão de mundo. Seus filmes e posso falar especialmente de outros dois que já assisti (“Brother” e “Depois do Casamento”) são dois ótimos exemplos de um cinema que trata o espectador com inteligência.
Seus personagens estão sempre tendo que lidar com grandes tragédias ou acontecimentos que os tirem de uma suposta normalidade.
Em "Elsker Dig for Evigt" acompanhamos a história de Cecilie, uma jovem de 20 e poucos anos, que não tem pais e é apaixonada por Joachim, A primeira cena mostra o casal num restaurante. Estão felizes. Ele a pede em casamento. Ela aceita. Próxima cena: Cecilie está preocupada, pois Joachim terá que viajar a trabalho para um lugar aparentemente perigoso. Ele tenta convencê-la de que não há nenhum perigo. Próxima cena: Os dois estão dentro do carro. Estão se despedindo. Na hora em que ele sai do carro, é abruptamente atropelado por um carro. A cena é densa e espetacularmente filmada por Susanne Bier. Sem arroubos dramáticos, a cena é mostrada com uma sutileza admirável. Pronto, está posto o drama de Cecilie.
Joachim é levado ao hospital. O marido da Mulher (Marie) que o atropelou é médico. Joachim não poderá mais andar, nunca mais. Cecilie diz que ainda quer viver com ele. Joachim não aceita e pede que ela nunca mais o visite. Cecilie completamente perturbada vê nos braços do médico Niels, um possível consolo. Juntos iniciam um caso. Pronto, cinema de Susane Bier na veia e em alta voltagem. Cheios de reviravoltas e climas preciosos, Bier também se destaca por ser uma exímia diretora de atores. O que poderia soar superficial, ela consegue transformar em dúvida genuína. Seus personagens apresentam uma densidade quase palpável. São personagens em trânsito. Em choque por acontecimentos inesperados. Nem os filhos de Marie e Niels se salvam do imponderável. A filha adolescente foi abandonada pelo namorado e os filhos menores apesar de não terem idade para entender o que está acontecendo com sua família, sofrem junto com os pais. Susanne Bier vai pouco a pouco tecendo sua teia e de repente nós (espectadores) estamos completamente enredados. Seu cinema é tão bom, que assim como os personagens também ficamos em dúvida e também nos angustiamos. As situações propostas pela diretora poderiam ocorrer com qualquer um de nós. No entanto, acontece com aqueles quatro personagens e esse distanciamento assumido através de uma direção quase fria, evidencia o caráter trágico da existência humana. Sim. O cinema de Susanne Bier é humano, demasiado humano.
"Nós simplesmente fomos azarados", frase dita lá pelo final do filme define tudo. O filme e a própria condição humana.
Freud em sua teoria sobre o Complexo de Édipo formulou aquilo que é (Sempre foi? Sempre será?) a essência de todo o conflito humano; amor e ódio (ou hostilidade). Amor extremado pela mãe e hostilidade pelo pai. Esse conflito se dá por uma necessidade de atenção do filho e conseqüente disputa com o pai. Mas e quando o pai não existe? Morreu? Desapareceu? Fugiu? Ou a mãe não sabe de seu paradeiro? Ou até mesmo, o pai nem saiba que esse filho exista.
O conflito no filme francês “Feliz que minha mãe esteja viva” toca nesse assunto espinhoso. Longe de qualquer “psicologismo” barato, o filme se sai muito bem. O tema é evocado de maneira natural e a trama é mostrada de maneira não fetichista, o que seria uma redução na qualidade do filme. Isso não acontece.
O filme mostra a história de dois garotos, Thomas e seu irmão menor, Patrick. Ambos são “abandonados” pela mãe e adotados por uma outra família. Patrick aparentemente lida bem com a situação, mas Thomas não se conforma com o abandono da mãe verdadeira. A nova família tenta fazer de tudo para que Thomas sinta-se bem ali com eles, mas o garoto tem uma revolta latente dentro de si. Brigas, gritos e palavrões são a palavras de ordem dele. O filme não é mostrado de maneira linear, as cenas do passado e do presente alternam-se numa tentativa de explicar o comportamento do garoto. A mãe biológica dos garotos é mostrada como uma mulher que teve filho muito nova e não sabe muito bem como lidar com isso. Além disso, a necessidade de ganhar dinheiro faz com que ela abandone vez por outra os filhos sozinhos em casa. Thomas, o mais velho é quem cuida do menor. Já crescidos, Thomas desenvolve um comportamento violento e errático, enquanto Patrick é seu exato oposto. O interessante de tudo isso é que quando Thomas é criança, ele tem um comportamento mais adulto e quando é adulto tem um comportamento mais infantilizado. Certo dia, ele decide ir atrás de sua história e acaba obtendo o endereço de sua mãe verdadeira. Ao ver a mãe novamente, ele foge, mas pouco a pouco a nova velha relação se restabelece. A mãe está grávida e já tem um outro filho. A relação estreita-se. O filho começa a passar temporadas na casa da mãe. Ninguém sabe de nada. Tudo é feito em segredo. Como forma de disfarçar sua ausência para a mãe adotiva o menino inventa uma namorada. Ao conhecer uma garota no cinema, Thomas mostra-se interessado nela, mas quando ela convida-o para ir tomar uma coca-cola em sua casa, ele mais uma vez mente e fala que não poderá ir, já que tem uma namorada. A relação mãe e filho que começou bem fria e distante, aos poucos vai ganhando intimidade e cobrança. Thomas começa a sentir ciúmes da relação de sua filha com seu irmão menor. Chega até mesmo a questioná-la por que ela não o abandona também. A tensão (tesão?) cresce e o conflito ganha contornos densos.
Seria uma redução atroz classificar a relação dos dois de meramente sexual. Não é isso. Ou melhor, não é apenas isso. É mais profundo que isso.
A relação daquela mãe e daquele filho é um complexo de Édipo tardio. Tudo aquilo que não foi vivenciado na infância surge agora avassalador. Diante da ausência do pai, o conflito se estabelece na relação com o irmãozinho. É ele quem rouba a atenção da mãe. Algo precisa ser feito. Thomas precisa tornar-se adulto. Mas como? A ausência do pai é um imperativo para ele desenvolver uma "Síndrome do Eterno Filho". Isto é, um adulto infantilizado e impotente.
A maneira encontrada por Thomas para a eliminação do conflito edipiano é radical. Ela mata a mãe, não apenas psicologicamente falando como Freud sugerira. Num rompante desesperado, Thomas esfaqueia a mãe. Ela não morre. O garoto é preso. No julgamento, a mãe aparece e diz que o filho não tem culpa de nada. A culpa toda é dela, por tê-lo abandonado na infância. É ai que o complexo volta à cena. A Mãe também não aceita sair da vida daquele filho. Ela torna-se uma “Vagina Dentada”. Ela castra-o. Impossibilitando-o assim de tomar as rédeas de sua vida. A culpa é sempre do outro. Fecha-se o ciclo.
“Feliz que minha mãe esteja viva” é um filme interessantíssimo, sem arrombos melodramáticos e psicologismos. Os personagens são. Eles se mostram pela suas ações. É um filme lento, frio e distante, mas tenso e sedutor. De certa maneira, “Feliz que minha mãe esteja viva” dialoga com outro filme contemporâneo “Eu matei minha mãe”, mas sem todo o rococó de Xavier Dolan. Em ambos os filmes, os conflitos entre a mãe e o filho são expostos de maneira dúbia, alternando cenas de lirismo com violência verbal. A diferença entre os filmes é que em “Eu matei minha mãe” o conflito é “solucionado” de uma maneira mais natural, mãe e filho aprendem juntos a conviver, já em “Feliz que minha mãe esteja viva” o conflito permanece.
Dirigido por Claude Miller e seu filho Nathan Miller, o filme apresenta qualidades técnicas surpreendentes. A fotografia do filme é simples, eficiente e muito bonita. A trilha sonora não procura acompanhar as emoções do filme e indicar um possível caminho para o espectador. Não. O Caminho aqui é outro. É mais embaixo. A trilha questiona/tensiona a ação. Mas, o que mais chama a atenção em todo o filme são as atuações de todo o elenco. Claude e Nathan Miller revelam-se grandes diretores de atores, conseguindo arrancar interpretações inspiradas deles. As crianças que interpretam os filhos de Julie Martino (a mãe) são todas um achado e brilham intensamente no filme. É de cair o queixo a densidade que os diretores arrancam daquelas crianças. Mas o filme não seria o mesmo sem a presença forte do ator Vincent Rottiers que vive Thomas na juventude. Ele é fabuloso. Seu trabalho corporal e principalmente os seus olhos vivificam o personagem o tempo todo. É um trabalho muito depurado, que com certeza é fruto de um talento natural do garoto, mas também de uma direção de ator bastante minuciosa. O filme é dele e ninguém tasca. O olhar que ele lança para a mãe na cena final é desesperador. O olhar que ele nos dá na cena final também é desesperador. O filme não acaba quando termina. Sim.
Dolce...
3.9 4"Dolce" é um doloroso estudo do humano. Através das lamentações de uma velha senhora japonesa é possível entender as nossas próprias dores. Sokurov não faz filme, nem documentário, nem poesia, ele ultrapassa tudo isso. Sim.
Shit Year
3.8 8"SHIT YEAR" do diretor Cam Archer é um doloroso ajustes de contas com o passado de uma atriz que decide se aposentar e se isolar do mundo. É a história de alguém que viveu atráves de suas personagens. Quase sem lembranças próprias. É um filme triste. Em preto e branco. Fragmentado. Melancólico. Com pitadas de surrealismo. É a história de uma mulher solitária. Apaixonada por um garoto bem mais novo que ela. Não é nem a busca por sua metade perdida. É mais embaixo ainda. É a busca por si mesmo. Onde eu busco eu?
"Sabe o que me ocorreu? Que todos os papéis que desempenhei... todas aquelas personagens nunca experimentaram a felicidade. Eles eram infelizes. Então comecei a me perguntar, se eu tinha experimentado a felicidade. E eu, tenho momentos de felicidade, mas nunca fui capaz de me ater a eles. Você acha que sou infeliz?"
{ Frase do filme "SHIT YEAR" - Cam Archer }
Tigres Selvagens
3.8 48"Wild Tigers I Have Known" do diretor Cam Archer é um trabalho bastante impressionante.
O filme conta a história do menino Logan, adolescente de 13 anos, entediado com a realidade, se refugia no mundo da imaginação.
Ele é apaixonado por um garoto mais velho e desejado da escola, o garoto mais velho e desejado da escola também é uma garoto entediado assim como Logan.
Os dois viram “amigos” e acompanhamos cenas dos dois juntos, conversando, andando, indo atrás do animal Puma que está rondando e ameaçando a escola.
O filme é pautado em muitas imagens oníricas que sugerem mais do que mostram, tornando o espectador cúmplice de Logan, o filme é aquilo ou você entra na proposta dele ou desiste logo de cara. É um filme à la Clarice Lispector, “ou toca ou não toca”.
A mim me tocou muitíssimo, o diretor iniciante Cam Archer faz um belo trabalho, algo na vertente do Gus Van Sant ( que produziu o filme) e adiciona pitadas de David Lynch.
No entanto, não é uma cópia desses diretores, não. Tem cara e vida própria.
De Gus Van Sant toma emprestado a temática de jovens entendiados e a estética “lenta e bela”, já de David Lynch pega o clima onírico e cenas aparentemente “sem sentido”, além da trilha obsessivamente sombria e opressiva.
Aliás, falando em trilha a cantora folk Emily Jane White gravou a canção que dá titulo ao filme “Wild Tigers I Have Known”. É uma canção triste que diz “O silêncio é um poder e uma ferramenta para você. Tigres selvagens que conheci, eles me mandaram bagunçar.”. É uma canção perfeita no final do filme, uma canção perfeita para Logan.
É um filme duro, mas, sensível, onde o menino que faz o protagonista Malcolm Stumpf dá conta do dificílimo papel que lhe é confiado pelo diretor. O menino trabalha muito bem a questão dos silêncios e do conflito sexual pelo qual seu personagem passa e também segura com competência as cenas que Logan assume seu alter-ego feminino Leah para seduzir Rodeo. As cenas entre Leah e Rodeo são quase todas por telefone e Malcolm Stumpf apenas com um pouco de batom na boca e uma pequena mudança na voz arrasa como Leah.
O final em aberto do filme condiz perfeitamente com sua história e estética... Cabe a nós como espectadores dar um final a Logan.
Ao final do filme, fiquei com um nó na garganta pensando nessa fase complicada que é a adolescência e no quão as instituições que deveriam estar preparadas para lidar e ajudar os jovem nada faz por eles. Família e escola, cada uma joga a responsabilidade em cima da outra e ninguém faz absolutamente nada e ai esses jovens crescem sem orientação nenhuma e ai inúmeras outras instituições estão ávidas para fisgar esse público tão carente de formação e informação: Igrejas, Tv, Drogas e Indústria Fonográfica e ai a coisa descamba e ai tanto a Família quanto a Escola vem a público reclamar do comportamento juvenil. E ai...
Enfim, é uma bola de neve e ninguém faz nada.
Ouço relatos aviltantes dos alunos da escola de teatro onde dou aula... eles me contam o que acontece na sala de aula, no recreio das escolas onde eles estudam e fico pensando onde isso vai parar?
Não sei...
Mas filmes como “Wild Tigers I Have Known” diagnosticam o problema, o que já é muito.
Para encerrar coloco aqui um diálogo dolorido de Logan com a coordenadora da Escola onde estuda:
- "O que você faz quando fica triste?"
- "Eu sonho"
- "Com o que você sonha?"
- "Em estar em outro lugar, em não ficar sozinho."
Fausto
3.4 220"FAUST" do diretor russo Aleksandr Sokurov é um filme difícil, pesado, sombrio e lento. Uma longa jornada inferno adentro. Sokurov impressiona mais uma vez pelo apuro estético, belíssima fotografia e trilha sonora, o jogo entre luz e sombra enche o filme de apuro visual raramente visto no cinema. O trabalho do ator Anton Adasinskiy que faz o "diabo" é impressionante. Livremente baseado na obra de Goethe, o filme exala uma humanidade fria e errática, mas ainda assim uma possível humanidade.
Drive
3.9 3,5K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"DRIVE" do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos.
Genial. Matemático. Violento. Tenso.
É um filme híbrido. Um mix de referências que resultam em algo único e absolutamente brilhante. Estão ali David Lynch, Gaspar Noé, Wong Kar-Wai, Chan-wook Park e Quentin Tarantino.
Lynch surge na atmosfera feérica de Los Angeles e na trilha sonora. Gaspar Noé e Chan-wook Park, no modo de filmar a violência explícita do filme. Wong Kar-Wai, na câmera lenta e no desabrochar da paixão. Tarantino, pela ironia perversa.
Mas não se enganem. Apesar de todas essas possíveis referências, “Drive” é um filme único. E o diretor Nicolas Winding Refn beira a genialidade.
“Drive” conta a história de um homem que dirige carros em cenas de alta periculosidade em filmes de ação. Esse mesmo homem também participa de assaltos.
A cena inicial mostra esse homem em ação. Durante exatos nove minutos, acompanhamos uma espécie de prólogo auto-explicativo do personagem e do próprio filme. Palavras ou diálogos pouquíssimos. O que segura a cena é a entrelinha, o subtexto. O que está por baixo e além da cena.
“Diga a hora e o lugar, e te dou um tempo de 5 minutos. Haja o que houver nesses 5 minutos, estou à disposição. Seja o que for. Mas o que houver após esses 5 minutos, você está por sua conta”.
“Drive” é um filme em camadas. Como já disse é um filme híbrido. Ele começa com um filme de ação. Vira um filme policial. Ganha contornos românticos quando o motorista conhece e se apaixona por sua vizinha. Torna-se um drama familiar quando o marido dela que estava preso volta (de surpresa) para a casa. A partir daí, um drama psicológico, para logo depois, virar um filme de máfia e terminar como um filme épico, envolto num clima de cinema noir.
O diretor dinamarquês passeia por esses gêneros sem perder a mão em nenhum momento. Nada falta, muito menos sobra. É um filme exato. No ponto. Precisão Pura.
O que assistimos em “Drive” é a história de um indivíduo em combate com o cidadão. O motorista é um ser totalmente cético em relação à sociedade em que vive. Ele cria sua própria “moralidade”. Seu código de ética é rígido.
“Eu não participo do roubo e não porto armas. Eu dirijo.”
Ele é um solitário. Ou melhor, é alguém que sabe que tem que enfrentar solitariamente todos os perigos e riscos. É um homem quieto, silencioso, cheio de mistérios e pequenas nuances. Suas motivações pessoais soam contraditórias e exatamente desse material que emerge o lado mais encantador do filme. Quem é esse homem cujo nome não sabemos? Quem é ele? E o que ele quer?
Impossível saber. Resta-nos o mistério e o assombro ao ver até onde aquele homem pode ir... Em busca sabe-se lá de quê!?
Eu até poderia afirmar aqui, que ele só faz o que faz por amor a personagem de Carey Mulligan e ao filho dela, mas o final propositalmente em aberto deixa o espectador com algumas dúvidas. Na verdade, os laços afetivos entre o personagem do motorista e a vizinha não é nada sólido. Muito pelo contrário. Tem muito de idealização ali. Ambos buscam um relacionamento que aplaque um pouco a solidão em que parecem viver. Ela, totalmente desprotegida. Ele, absolutamente solitário. Eles não vivem a paixão. Eles não se conhecem. Apenas idealizam-se. Trocam apenas um único beijo apaixonado durante todo o filme. Como diz Zygmunt Bauman, “onde há dois não há certeza. (...) Ser duplo significa consentir em indeterminar o futuro”. Daí que esses dois personagens que se envolveram como uma única alternativa possível para escapar da solidão, do desespero e da fragilidade acabam descobrindo às duras penas que tudo se tornou muito mais solitário, desesperador e frágil.
A jornada épica que o personagem de Gosling mergulha é a trajetória de um personagem abandonado à própria sorte e “moralidade”. Torcemos por ele, não por uma mera identificação babaca, e sim, porque também nós estamos todos abandonados à própria sorte e também nós temos que nos inventar e criarmos nossa própria “moralidade”. Sim. Baudrillard estava certo: “Somos todos cúmplices na espera de um roteiro fatal, mesmo se ficamos emocionados ou transtornado quando ele se realiza”.
PS: Ryan Gosling prova (mais um vez) porque é o melhor ator de sua geração, seu desempenho é brilhante. Assim como o de todo o elenco, direção e equipe técnica.
O Mundo Vivente
4.0 22A Imagem como êxtase. A palavra como epifania. Assim é "Le Monde Vivant" do diretor Eugène Green. Belo. Belíssimo. Uma das coisas mais sublimes que já vi na vida.
"-Estamos a sós.
-É estranho que possamos estar a sós, inclusive quando somos dois.
-A gramática o fez assim.
-Então devo agradecer a gramática por me permitir estar a sós com você."
{Diálogo do filme "Le Monde Vivant"}
A Ponte das Artes
4.0 39TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Eugène Green é um dos diretores mais interessantes que descobri esse ano. Seus filmes (já assisti três deles) são extremamente rigorosos, teatrais e bastante minimalistas, mas exalam uma humanidade arrebatadora. Vi "Le Pont des Arts" e estou ainda atônito por ter presenciado tamanha beleza e sensibilidade presente em cada take. Êxtase. Verbo. Silêncio. Música. Teatro. Filosofia. Cinema. Arte. Angústia.
Êxtase porque da cena mais banal, Green faz erigir uma espécie de epifania bastante original. O Verbo é a palavra. E a palavra não é divina, mas humana. É a maneira encontrada para confrontar o silêncio. Já a música é a expressão máxima do sublime em nós. É dor. É violência. Perdição. Mas também redenção. O teatro surge na opção estética de filmar frontalmente os corpos que habitam a cena e também na marcação cênica. “No silêncio a filosofia morre e nasce o fascismo.” Sim. É preciso falar. Sim. É preciso ação. Mas o cinema de Green transcende tudo isso. É movimento antes de tudo. Como na música. É arte. É Barroco. Mas sua exuberância nasce de sua imensa simplicidade. Assim como a angústia que atormenta os personagens brota da justa contraposição entre uma sociedade acadêmica, careta e caricata e a realidade. Não essa realidade vendida em banca de jornal. Mas o real que é sempre inventado por cada humanidade. O real que emerge no momento em que um corpo morto abraça um vivo.
Dividido em cinco capítulos (Ser Feliz, O pensamento revolucionário, A Máscara. Sarah e Manuel), "Le Pont des Arts" conta várias histórias que se entrecruzam de maneira genial e inovadora. Sarah e Manuel e seus respectivos parceiros são jovens estudantes. Manuel está perdido. Nada para ele parece fazer sentido. Enquanto Sarah é uma cantora de enorme talento, mas tiranizada por seu regente, uma figura caricata e risível, que só consegue despertar sentimentos negativos. Sarah chama-o de “O Inominável”. Essa triste figura é utilizada pela direção para satirizar os intelectuais e seus hábitos. É um pateta. Um bufão. Sobrevive apenas do medo que consegue impingir em seu elenco. A crítica de Green é feroz e mordaz. Seu alerta é parecido com o de Álvaro de Campos e seu “Ultimatum”:
“O que aí está a apodrecer a vida
Quando muito é estrume para o futuro
O que aí está não pode durar
Porque não é nada.”
Sim. A sensibilidade nova é representada por Sarah que apesar de seu talento, vive sempre angustiada com as constantes humilhações que sofre de seu regente. Ela não consegue dormir e é constantemente assaltada por perguntas sobre si mesma.
- “Não que ser feliz?”
- “O que é ser feliz?”
- “Estarmos juntos. Amarmos uns aos outros. Ter sucesso em nossas carreiras. Ter dinheiro suficiente para que esqueçamos o dinheiro. Nos amarmos. Viver juntos em um lugar agradável de nossa cidade. Viver juntos com nossos filhos.”
Já Manuel está perdido. Só sabe o que não quer. Não quer tese, mas poesia. Ao longo de seu percurso, rejeita tudo aquilo que a sociedade considera normal; estudo, emprego, namoro. Busca encontrar algo além. O quê? Ele não sabe. Ele está procurando. Ele vai encontrar.
O encontro entre esses dois personagens se dá de maneira elíptica. Algo falta. A realidade não dá conta da existência. A angústia (sensibilidade) latente de Sarah leva-a ao suicídio. A violência contida nos olhos e vozes das pessoas arranca a máscara que ela havia criado para si mesma. Não é mais humana. Mas, um fantasma.
“Quando a vida termina, o silêncio volta a reinar”.
Manuel também busca no suicídio uma possível saída para a banalidade da existência humana. O silêncio como resposta. Ele prepara toda a cena. Mas no instante da consumação, a música cantada por Sarah o salva. A cena filmada em detalhes, mas sem nunca revelar o corpo agônico dele, é magistral e comovente. Não por um sentimentalismo barato, e sim, pelo ascetismo fílmico presente em toda a seqüência. É simplesmente genial. Sim. Nietzsche estava certo. “Sem música, a vida seria um erro”. Manuel desliga o gás. Abre as janelas. Respira com dificuldade. Há vida lá fora. Sim. O sorriso dado por ele é o indicador de que ele encontrou seu caminho.
Green utiliza-se de uma história de teatro nô como metáfora de seu próprio filme. Além do humano, está a fantasmagoria. O cinema é a arte de fazer aparecer fantasmas e Green brinca com isso o tempo todo. Sim, pode parecer bizarro. Mas, “talvez as pessoas devessem se separar sempre para serem felizes juntas”.
A Grande Testemunha
4.0 94 Assista Agora"Au Hasard Balthazar" ("A Grande Testemunha”) conta a história de um burro, mas o diretor francês Robert Bresson concebe um dos filmes mais humanos que já assisti. Contrapondo várias visões de mundo, o filme evoca algo perdido, que já não é mais... (seria a inocência?). Um filme absolutamente humano, demasiado humano, mas sem pieguices. Bresson eleva a teoria da desfamiliarização brechtiana à enésima potência. Não existe o drama. Nem o pós-drama. Mas apenas situações descarnadas. E mesmo assim dói. Muito.
Beleza Adormecida
2.4 1,2K Assista AgoraVamos falar sério agora, ok? Vou até escrever com letras grandes, para ver se vocês "entendem":
1° - SE VOCÊ NÃO GOSTA DE FILMES LENTOS, FRAGMENTADOS E COM FINAL EM ABERTO PASSA BEM LONGE DE "SLEEPING BEUATY"
2° - SE VOCÊ QUER ASSISTIR AO FILME SIMPLESMENTE PARA VER GENTE PELADA, ALUGUE UM FILME PORNÔ.
Shame
3.6 2,0K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Impressionante o que o diretor Steve McQueen nos apresenta no filme "SHAME" . Nada psicologizante, o filme é apresentado por meio de seus personagens, sobretudo por Brandon (vivido com brilhantismo por Michael Fassbender) e sua irmã Sissy (a ótima Carey Mulligan). É cinema carne-viva/latente/sangue/esperma. Esteticamente deslumbrante, com um roteiro simples e engenhoso, embevecido em pequenas elipses e um minimalismo assustador, McQueen consegue provocar/questionar o espectador mergulhando-o numa atmosfera sombria, quase um sonho (ou pesadelo) angustiante... Acompanhamos não um filme, mas a "via-crúcis" do corpo.
A primeira “via-crúcis” é vivenciada por Brandon, homem que optou pela solidão, aparentemente bem-sucedido, tem um bom emprego, um apartamento legal, veste-se bem, é bonito, charmoso e tem bom papo. Mas nada disso é dito no filme, tudo é mostrado. O personagem age e é assim que o conhecemos. As primeiras cenas são dedicadas a mostrar Brando existindo. Em quase todas, há um componente em comum: Brandon é fascinado por sexo. Seja no trabalho, em casa, no metrô, ele sempre está pensando ou fazendo isso. Tudo vai bem até que...
... A segunda “via-crúcis” entra em cena. Ela é Sissy, irmã de Brandon. Ela nos é apresentada primeiro por inúmeros telefonemas que ela faz para a casa do irmão sem sucesso. Ele nunca atende as ligações e chega a se irritar com a insistência dela. Até que...
... Ela aparece do nada na casa dele. Sim. Ela tinha as chaves. A primeira cena de Sissy é especialmente bem orquestrada. Ela aparece de maneira sinuosa, pelo espelho, completamente nua e dizendo que vai precisar passar um dia ali, pois tem um show na cidade e brigou com o namorado. Sissy cantará num bar chique da cidade. Brandon não gosta muito de ter alguém perturbando seu sossego, mas acaba cedendo. E é aqui que o inferno de ambos começa.
A presença física da irmã faz com que Brandon tenha uma dificuldade de ser quem ele realmente é. Seus atos precisam ser pensados, para que sua compulsão ao sexo não acabe aparecendo. Mas tudo em seu apartamento é uma denuncia disso. Revistas pornográficas, sites de sexo no computador, punheta no banheiro. A solidão que até então acobertava o comportamento de Brandon é colocada em xeque.
Sua irmã nos é apresentada como uma cantora extremamente sensível (sua versão do clássico “New York, New York” é arrepiante, a cena mais linda de todo o filme) e uma pessoa totalmente carente de afeto. Brandon e Sissy são seres errantes, erráticos, tortos. Mas a direção não perde tempo em tentar explica-los. Não. Aqueles dois personagens existem. São palpáveis. E parecidos. A solidão é a mesma. Mas a maneira de encará-la é diferente. O que terá acontecido com esses dois? Quem são os pais deles? Como eles são? E a infância? E o latente componente sexual que há entre ambos? De onde surgiu? Nada disso é explicitado. Mas, está ali. Quem tiver olhos, que veja.
Nova Iorque é um personagem importantíssimo na trama. Ela parece inspirar certa dose de melancolia e desespero genuíno naqueles personagens, sobretudo em Brandon, que vive ali há mais tempo. Sim. A cidade nunca dorme. Brandon parece nunca estar completamente descansado. Sempre está alerta. À procura de algo ou alguém.
Daí que “Shame” é um filme sobre o vazio. A ausência. O nada. E a não aceitação disso. “Shame” é um filme sobre os caminhos encontrados por esses dois personagens para lidar com angústia e no contexto mostrado, só é possível alcançar esse “alento” através da fuga desesperada de qualquer contato mais profundo com o outro e o desenvolvimento de um comportamento onde se busca o excesso em algo, ou bebida, drogas, sexo ou até mesmo a própria criminalidade e a arte.
Sissy desperta em Brandon sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo em que se vê que ele a ama, ele também a repele e humilha. Sissy representa a mulher. O alvo preferencial de Brandon em suas investidas sexuais. Ela é a personificação de todas as mulheres que ele deseja. Ao conhecer o chefe dele, Sissy transa com ele na mesma noite, comportamento exatamente igual às mulheres que o irmão conhece. Sissy de certa forma aguça um sentimento de culpa em Brandon. Algo que sempre esteve ali, mas escondido, latente, que agora explode de maneira avassaladora.
O pensador francês Jean Baudrillard em seu livro “A Transparência do Mal” diz que atualmente vivemos num estado de pós-orgia, aquele momento explosivo da modernidade em que tudo parece permitido, e arremata com a pergunta “O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Brandon e Sissy vivem nesse mundo e encontram como possível resposta ao questionamento de Baudrillard uma simulação da orgia, um fingimento, onde só é possível repetir todas as cenas, porque tudo já foi feito e deixado para trás. As cenas iniciais de “Shame” são exatamente assim. Repetição. Repetição de um mesmo comportamento obsessivo. Repetição de um padrão que até então dava certo. “Quando tudo é sexual, nada mais é sexual, e o sexo perde toda a sua determinação” (Baudrillard). Brandon lá pelas tantas, parece chegar a essa conclusão. Mas será que ainda há tempo? O desejo de punição, como um expurgo disso tudo, é trilhado. Mas antes o excesso, e se já não há o confronto com outro, defronta-se consigo mesmo. A descida rumo ao Inferno é trilhada por ambos os irmãos. Nem mesmo a tentativa desesperada de afeto parece resolver. A conversa que começa lírica e bela, acaba tenebrosa, violenta e acusatória. Parece termos chegado ao fim. “Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo.” Brando e Sissy parecem fadados ao fracasso, à solidão e à irreconciliação.
“O pior é a compreensão, que é só uma função sentimental e inútil. O verdadeiro conhecimento é o daquilo que nunca compreenderemos nos outros” (Baudrillard).
Talvez Brandon e Sissy aprendam essa lição... Sim. Talvez!
Novembro
4.4 60Acabei de assistir o filme "Noviembre" do diretor espanhol Achero Mañas. Estou ainda sem palavras. Chorei. Chorei tanto. É maravilhoso. Fala sobre arte. Sobre o amor à arte. Por enquanto, só posso dizer que o filme mexeu comigo, e é maravilhoso, autêntico, vivaz, terno, violento ...
As Acácias
3.8 67Acabei de assistir o filme argentino "Las Acácias" do diretor Pablo Giorgelli. O filme poderia facilmente ser resumido como a história de um homem solitário, uma mulher que vai procurar emprego numa outra cidade, um bebê de pouco meses e uma longa estrada pela frente, mas o filme é mais. É um road-movie às avessas, interior, interiorizado. Um filme sobre aquilo que as palavras não comunicam. O silêncio dos personagens, o ruído eterno do motor do caminhão em movimento, o choro da criança, os pequenos gestos, as primeiras palavras, o farejar o outro, os fiapos de histórias, o desabrochar de um possível afeto e toda a vida ali resumida naquele três personagens e a estrada. Um belo filme. Tão simples, mas tão simples, que assombra... Recomendo. É puro cinema, mas nas entrelinhas, no não-dito, naquilo que se cala, naquilo que estava sempre faltando.
Os Amantes de Pont Neuf
4.2 129 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Se você ama alguém, diga-lhe amanhã: “O céu é branco.” Se for eu, responderei: “Mas as nuvens são negras.” Assim saberemos que nos amamos.”
Ir numa locadora. Escolher um filme. Encontra-se com um amigo lá dentro. Reunir-se na casa de uma outra amiga. Assistir o filme na companhia deles. Programa que poderia ser banal. Tantos fazem isso. Todos os dias. Todas as horas. Onde está a diferença? A Epifania brota dos momentos mais inesperados. E quando menos se espera, ela acontece. Plena. Redentora. Podendo assim re-significar o mundo e as pessoas. Isso aconteceu nesta madrugada. O filme em questão é uma obra-prima. Poderoso. Onírico. Violento. Cruel. Divino.
O nome é “Os Amantes da Ponte Neuf” e foi dirigido pelo francês Leos Carax em 1991.
Um dos maiores orçamentos da história do cinema francês, o filme demorou três anos para ser concluído. Só fui descobrir essa informação mais tarde, mas de alguma maneira, ela está impressa em todo o resultado final. É um filme pesado. Difícil. Grandiloquente em sua maneira de filmar, mas absolutamente intimista em sua pequenez de obra de arte. O filme de orçamento caro conta a história de amor entre dois mendigos. Ele, Alex. Ela, Michele. Ele, artista pirofágico. Ela, artista plástica. Ele, morador de rua anônimo sem direto a passado, nem futuro, mas presente. Ela, portadora de uma doença que fará com que fique cega. Ele se apaixonará por ela. Ela tenta esquecer um amor perdido. Ela o espera... muito. É por isto que seus olhos estão muito doentes. Ela não pode esquecê-lo. É por isto que ela o ama. É por isto que ela está na rua. Será que o procura? Ela. Ela. Sempre ela. Ela é atriz Juliete Binoche. Aqui numa atuação arrasadora. Arrebatada. Dolorosamente Sublime. Ela escolhe morar na ponte Neuf, que passa por reformas. O outro morador da ponte, espécie de oráculo do local, não quer saber dela por lá, pois ela lembra algo do seu passado que ele quer esquecer. Esse terceiro mendigo possui um passado. Sim. Mas não um presente. Ele necessita de Alex para existir. Alex depende dos remédios desse outro mendigo para conseguir dormir. Michele lhe ensinará uma outra forma de cair no sono sem a necessidade desses remédios. O enredo abusa de um universo mítico-mágico e as cenas são delirantemente maravilhosas. Um deslumbre. Um desbunde. Não vou entrar em pormenores, mas algumas seqüências são de aplaudir de pé, tamanho o grau de aturdimento que impingem no espectador. É uma atrás da outra. A câmera utilizada no filme possui a tecnologia MovieCam, o que encharca o filme de um lirismo ora estranho, ora pueril, ora violento. Lindíssimo. Muito da beleza do filme brota da utilização dessa tecnologia. Lá pelas tantas, tem uma cena em que os dois mendigos observam da ponte uma apoteose com fogos de artifícios, com um mix de diferentes canções eles dançam num ritual quase demoníaco. É sublime. E essa é apenas uma das inúmeras cenas geniais de um filme que aborda o amor de uma maneira única e com uma trilha sonora das mais instigante do cinema.
Enfim, corra até a locadora mais próxima e alugue-o.
AGORA!
PS: Se você ainda correu até a locadora mais próxima, então, vou te dar mais um argumento: Vários cineastas que hoje em dia são considerados gênios do cinema beberam na fonte de “Os Amantes da Ponte Neuf”. Vou dar só um exemplo, ok? Wong Kar-Wai.
Habemus Papam
3.6 194 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O diretor Nanni Moretti consegue o improvável com "Habemus Papam" . Faz um filme absolutamente (fra) terno de um tema bastante espinhoso, sem, no entanto, deixar de tocar naquilo que é o calcanhar de Aquiles não só da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana como também de todas as outras grandes instituições que tentam (tentaram e tentarão) explicar o mundo e principalmente a humanidade: a ausência de significado, o vazio que todos nós estamos metidos até o pescoço ou até a alma (se é que ela existe mesmo?).
Moretti parte de um tema inusitado: o papa morre e é feito um Conclave para se decidir quem será o seu sucessor. Na hora em que o novo eleito tem de se apresentar para o povo que o aguarda ansiosamente na Praça, ele tem uma crise e se esconde. Os cardeais tentam de tudo, mas nada parece convencer o novo Papa de sua missão. Um psicanalista é chamado numa tentativa desesperada de entendimento do problema. A experiência não dá certo. Arma-se um esquema para uma conversa entre a Santidade e uma outra psicanalista fora dos arredores da Igreja, dessa vez sem que ela saiba que ele é um papa. A conversa também se mostra infrutífera. Na saída da consulta, o papa sai andando pelas ruas e foge sem que os seguranças o vejam. E é aqui que começa o filme de Moretti e a crítica ácida do diretor também.
Ao ser perguntado pela psicanalista qual seria sua profissão, o homem titubeia, e logo depois diz: sou um ator. E sua nova função não deixa dúvida. Sim, aquele homem é um ator e não está sabendo interpretar corretamente seu personagem. Aliás, o teatro tem um papel fundamental neste filme. A saída encontrada pra disfarçar a ausência do papa para o restante dos cardeais é puro teatro de sombras. A insegurança do papa é uma inadequação ao papel que lhe fora designado por outrem. Sua fuga e os conseqüentes passeios incólumes pela cidade são possíveis laboratórios para melhor poder interpretar o seu papel.
A psicanálise também não fica de fora das críticas de Moretti, pois impossibilitada de tratar de temas como sexo, infância e sonhos, fica de mãos atadas. O excesso de confiança e a falação do psicanalista também demonstra o despreparo dele para atual problemática. O papa aqui somos todos nós. Todos inadequados em seus respectivos personagem. Moretti nos pergunta o tempo todo: O que sobrou de nossas ideologias, de nossas certezas? NADA. É necessário um processo inverso. É necessário um mergulho profundo no humano. Faz-se necessária uma troca, uma busca por entendimento da alteridade. Daí que o papa entrega-se em sua vida agora “mundana”. Ele passeia. Conversa com as outras pessoas e até mesmo depende delas. Visita um teatro. Sai para jantar com a trupe e por ai vai. Daí que enquanto esperam pela decisão do papa, o psicanalista e os cardeais organizam um campeonato de vôlei e a vida parece ganhar um novo sentido.
A mensagem de Moretti é clara e direta, mas a maneira encontrada pelo diretor de comunicar essa “verdade” é extremamente sábia. A crítica ao modus vivendi é insinuada, sutil, quase imperceptível em seu disfarce cômico, mas não nos deixemos enganar, ela está lá. Latente e poderosa. É só termos olhos para ver. É só termos ouvidos para ouvir.
Três Homens em Conflito
4.6 1,2K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O longa “The good, the bad and the ugly” é simplesmente sensacional.
O enredo conta a história de três personagens e a busca por um tesouro.
Cada um dos três sabe uma parte do segredo de onde o tesouro está escondido.
Falando assim a história parece até banal, mas nas mãos do diretor Sérgio Leone a trama vira uma ópera-western com momentos engraçados, longas seqüências, longos silêncios e ótimas atuações.
Os primeiros dez minutos do filme são arrebatadores, sem nenhuma fala e contando com a excelente trilha de Enio Morricone, o espectador é apresentado ao universo nada agradável do longa; lugares desérticos, personagens feios, sujos e malvados e muita violência.
O diretor não tem pressa em apresentar seus personagens, sua história, muito pelo contrário, ele possui a calma daqueles que sabem que possuem uma boa história para contar.
E assim aos poucos somos apresentados aos três protagonistas do filme:
- O Bom, vivido por Clint Eastwood, um canastrão minimalista que vive com um cigarro na boca e pouco fala.
- O Mau, vivido por Lee Van Cleef, é responsável por cenas de arrepiar, tamanho o grau de magnetismo que os olhos do ator exercem no espectador.
- O Feio, vivido por Eli Wallach, um sujeito atrapalhado e sem nenhuma educação.
O diretor apresenta cada um fazendo uso de um interessante mecanismo de paralisar a imagem e escrever o nome deles na tela, algo que mais tarde Tarantino usaria muito.
Aliás, falando em Tarantino, ele considera esse filme o seu predileto e é possível estabelecer vários pontos de ligação entre seus roteiros e esse longa de Leone.
A história mesmo só é apresentada por completo ao espectador depois da primeira hora de filme e é nesse momento em que o diretor mostra seu extremo domínio da arte cinematográfica.
É interessante notar como as histórias se interligam e se desligam ao longo da película, o diretor é habilidoso na condução do roteiro e é uma delicia acompanhar as desventuras desses três personagens.
Especialmente pelo brilhantismo dos três atores em cena, todos em performances acima da média, mas com destaque absoluto para o ator Eli Wallach (O Feio) responsável pelos momentos cômicos do filme e surpreendentemente o mais dramático também (o reencontro depois de nove anos com seu irmão que é padre e quando ele fica sabendo que sua mãe e seu pai já morreram. O ator Eli Wallach desmancha a personalidade bonachona criada para Feio, vira-se de costas e parece chorar. A cena é linda e comovente e ao som da trilha de Morricone então...).
O filme é de Eli Wallach, isso é inegável. Sua ganância pelo dinheiro e acima de tudo sua ingenuidade é algo encantador. O ator é simplesmente brilhante em todas as cenas.
Não que Eastwood e por Lee Van Cleef não estejam bem, não é isso, mas há algo de acima da média na interpretação de Wallach. Suas tiradas (“Na hora de atirar atire, não fale”) seu destino azarado e suas caras e bocas são ótimas e é dele também uma das frases mais duras do filme. Numa conversa com o irmão, ele diz mais ou menos assim “para pessoas pobres como nós, só existe duas saídas: ou virar padre ou bandido. Eu virei bandido, você padre. Cada um que siga sua vida”.
Toda a seqüência final do filme é maravilhosa, não há outro adjetivo.
Um dos melhores momentos do cinema de todos os tempos.
Na cena em que eles chegam ao cemitério onde está escondido o tesouro, o diretor cria uma cena angustiante de procura da “lapide” onde está escondido o ouro
A cena é praticamente um balé, com a câmera girando tentando acompanhar o desespero do personagem... a cena é linda.
Sem falar na seqüência mais sublime do filme que á do “trielo” final dos personagens pelo ouro.
O diretor num jogo de câmera alucinante de tão perfeito consegue criar a tensão necessário no espectador. Ficamos com os olhos grudados na tela acompanhando cada corte abrupto entre um personagem e outro e as perspectivas diferentes só fazem aumentar nossa angústia.
O diretor brinca conosco, além do “trielo” dos personagens, há uma espécie de duelo entre nós, espectadores e o filme. Ficamos de olho em tudo absolutamente tudo.
Leone nos coloca dentro do filme, nessa cena viramos personagens de western também e qualquer movimento nosso parece ser capaz de alterar o desfecho da história.
Outras cenas são igualmente hipnotizantes e não daria para falar de todas aqui.
Mas de uma eu quero falar sim, a seqüência em músicos tocam uma sinfonia enquanto uma tortura é realizada numa casa próxima.
Violência e lirismo invadem a tela e travam um duelo excepcional
Enfim este filme é uma aula do que é cinema e de seu potencial criativo.
Um filme de 1966 que é extremamente contemporâneo.
Ao assisti-lo, fiquei me questionando o quanto atualmente vivemos num western o tempo todo.
Vivemos a mesma busca desenfreada por dinheiro, somos capazes de roubar, matar e destruir em troca de “alguns dólares a mais” e sem termos nenhum sentimento de culpa por isso.
Quem trabalha em grandes corporações sabe do que estou falando.
É um querendo “matar” o outro.
O filme também é genial ao mostrar as relações de interesses entre os personagens, uma hora um personagem é aliado do outro, na cena seguinte é inimigo, na proxima são aliados de novo. Tudo gira em torno de quem me é mais interessante no atual momento em que estou. Algo que nós, humanos do século XXI conhecemos muitíssimo bem.
Obras de artes são assim, nunca parecem ser só o que se pretendem ser.
São mais, são plurissignificativas e é justamente ai que reside seu encantamento.
Recomendo muito!
Quem gostou de “Bastardos Inglórios” e “Kill Bill 1 e 2” tem a obrigação moral de assistir esse filme.
Aliás, quem gosta de cinema, do bom cinema tem que assistir "The good, the bad and the ugly" (que no Brasil recebeu a péssima tradução de “Três homens em conflito”).
A Palavra
4.5 100TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Sou um apaixonado por cinema.
Raras coisas me despertam tantos sentimentos quanto alguns filmes .
Já chorei muito mais vendo filmes, do que na vida real.
Não sei, mas não me sinto muito pertencente a este mundo, a esta banalidade do humano. “Meu reino não é daqui”.
Talvez, por isso, o filme “Ordet” (A Palavra) do cineasta dinamarquês Carl Th. Dreyer tenha mexido tanto comigo.
Eu já tinha ficado apaixonado pelo diretor quando assisti “O Martírio de Joana d'Arc”, filme mudo do começo do século, cuja atriz que interpreta a protagonista, Renée Falconetti, tem a melhor performance da história do cinema.
Sempre adiava a possibilidade de assistir outro filme do diretor com medo de me decepcionar, vi e revi “O Martírio de Joana d'Arc” não sei quantas vezes.
É um dos meus filmes prediletos.
Munido de coragem e tempo, decide assistir “Ordet” e confesso que ainda estou extasiado por tamanha beleza e precisão que o diretor nos proporciona.
Sabendo que tem uma ótima história em mãos, Dreyer nos conta-a da maneira mais natural possível, não força a barra e nem acelera os fatos. Muito pelo contrário.
A primeira parte da história, vamos dizer assim, que pode ser compreendida pela primeira uma hora do filme é basicamente construída na apresentação dos personagens e da história.
No filme, um pai, extremamente religioso, tem três filhos. O mais moço deseja se casar com uma moça de religião diferente de sua família. O filho do meio é acometido por delírios religiosos e acha que é Jesus Cristo. O mais velho é ateu e sua esposa está grávida. No trabalho de parto, Ingrid (a esposa) tem complicações, o bebê morre, mas ela é salva pelo médico. Johannes (o irmão louco) adverte a todo o momento que um homem com uma foice na mão está na casa e levará Ingrid embora.
O pai não acredita e o fato acaba se concretizando. Ingrid morre. Johannes diz que pode curá-la, se eles tiverem fé. O irmão ateu o leva até o quarto onde está a morta. Ele tenta ressuscitá-la, mas, desmaia. É levado para seu quarto e foge, sem deixar vestígios.
Essa é a primeira parte do filme.
Confesso que até esse momento estava meio assim com o filme. Era bom, mas, não tanto quanto o outro.
De repente, Dreyer prova o porquê dessa história toda.
É um filme sobre fé... sobre a perda, sobre a reconquista, sobre o amor e também suas torpezas, sobre a morte, sobre a vida.
É um filme humano, demasiado humano.
Toda a construção psicológica que o diretor alicerçou durante a primeira parte (digamos assim) mostra-se completamente coerente com o projeto dramatúrgico do filme.
Temos um pai de família em crise de fé, um outro pai de família repressor, um ateu, um apaixonado por uma moça de outra religião, um “fanático” religioso, um padre, um médico, uma mulher grávida, uma moça apaixonada e possível substituta e uma criança.
O filme passa-se quase que o tempo todo na fazenda dos Borgens, o que dá uma teatralidade latente ao filme.
Os enquadramentos e a marcação cênica extremamente rígida e bela ajudam a dar essa sensação. Mas, não se enganem, o filme não é um teatro filmado. Não! É cinema! Cinema em sua mais alta acepção.
Eu não vou falar sobre as cenas seguintes, porquê não quero estragar o prazer de quem for assistir essa obra-prima do cinema.
Também não vou mentir, dizendo que o filme é fácil, pois não o é.
É um filme longo, lento, denso. As personagens são complexas, construídas com extremo requinte de personalidade. Nada é banal. Tudo transpira verdade. Tudo respira arte. A fotografia é deslumbrante, um preto e branco lindamente iluminado. Tanto é que André Bazin, diretor da Cahiers du Cinéma, escreveu em texto contido no DVD que, depois de “Ordet”, o cinema poderia se tornar colorido, pois Dreyer fez tudo o que era possível ser feito em preto e branco nesse filme. Sou obrigado a concordar com Bazin.
François Truffaut em texto também contido no DVD escreve que gostaria de saber como o diretor obteve o tom quimérico da fotografia do filme.
Realmente, a fotografia, ora etérea ora extremamente realista, impressiona.
O trabalho de som beira a perfeição; o tique taque do relógio, o barulho incessante do vento na cena toda que envolve a morte da grávida, dão o tom exato, no entanto, sem manipular o espectador.
Os atores estão excelentes, sem exceção. Dreyer mostra um trabalho soberbo na direção do elenco. Dizem que a atriz Renée Falconetti após “O Martírio de Joana d'Arc” ficou louca. O diretor submetia-a torturas degradantes para incorporar Joana, tais como ficar ajoelhada no milho ou presa durantes horas ou dias para gravar determinadas seqüências.
Percebe-se pela marcação espacial que os atores seguem rígidas instruções cênicas do diretor e justamente daí, emerge uma das muitas belezas desse filme.
Para quem entende de teatro, o filme é um deleite. Acompanhar a marcação cênica, as paradas, e toda a movimentação daqueles corpos é uma aula.
“Ordet” é baseado na peça de teatro homônima do pastor Kaj Munk que Dreyer tinha visto num teatro de Copenhague em 1926. Durante anos, acalentou o desejo de filmá-la. O sonho só fora realizado quase 30 anos depois.
Outra coisa que impressiona é como o Dreyer trabalha com o silêncio, embora o filme seja verborrágico, os momentos de quietude são deslumbrantes, assim como os closes dos rostos dos atores, marca registrada do diretor.
Queria poder falar mais sobre filme... não posso, pois revelaria fatos importantes do enredo.
Apenas digo que toda a meia hora final é um dos momentos mais esplêndidos da história cinematográfica.
Aos poucos, sem fazer alarde, Dreyer nos concede uma dádiva e nos leva às lágrimas.
Sim, Dreyer é Deus!
Os outros são seus súditos.
A Longa Caminhada
4.0 52 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Walkabout” do diretor Nicolas Roeg não é um filme qualquer.
É uma experiência cinematográfica, cultural, antropofágica e necessária.
Sem perder tempo com historinhas para boi dormir, o diretor já começa seu filme dizendo a que veio.
Estamos em uma cidade moderna, cenas de pessoas andando, apressadas, adolescentes fazendo aula de canto na escola, uma criança observando uma parada militar, uma família normal, crianças se divertindo na piscina, a mãe cozinhando e ouvindo o rádio, o fumando e observando as crianças. Tudo normal, corriqueiro, urbano.
Corta!
Outra cena; um deserto, um carro parado, o pai e duas crianças. Sim, a mesma família do início (sem a mãe), a menina prepara o piquenique no meio do deserto, o menino sai pra brincar no meio das pedras, o rádio está tocando uma música alegre, o pai pega um revólver e atira nas crianças, elas saem correndo, ele não consegue acertar os tiros, abre o capô do carro, pega um suporte com álcool, põe fogo no carro e depois dá um tiro na própria cabeça. As crianças fogem e procuram durante dias alguém ou um abrigo no meio do nada. Encontram um aborígine, só que é impossível existir comunicação verbal entre eles. O filme é sobre isso.
O diretor Nicholas Roeg consegue fazer um filme assustador e terno ao mesmo tempo.
É impressionante acompanhar a busca daquelas duas crianças no meio do deserto, é assustadoramente real essa “longa caminhada” deles. Acompanhamos tudo atento, o diretor nos coloca no papel das crianças, pois, assim como elas, também somos civilizados, como elas também desconhecemos o deserto e também como elas estamos perdidos.
O filme nos causa essa impressão de perdição. Tudo é inóspito, tudo é estranho. Os animais do lugar que eles encontram (bichos esquisitos e aparentemente ameaçadores), o fora de foco das imagens como numa espécie de delírio causado pelo sol exaustivo, o cansaço da procura e o sentimento de aventura (no princípio) sendo substituído pelo de tédio (das crianças e o nosso também) ao ver que aparentemente nada irá acontecer.
O encontro do aborígine com as crianças acontece da maneira mais natural possível, o diretor não dá aquilo que a gente estava esperando, muito pelo contrário, ele retira todo e qualquer ranço de possibilidade dramática que poderia existir do encontro.
O estranho fica relegado ao campo da palavra. As crianças falam inglês e o aborígine, uma língua incompreensível. Mais uma vez, o diretor nos coloca na mesma posição das crianças. Não entendemos nada do que fala aquela criatura e o diretor não coloca nenhuma legenda.
Toda a comunicação do filme se estabelece pelo campo do não verbal, aos poucos, as crianças estabelecem com o aborígine, uma possível identificação. Todos ali são crianças. O garoto caça animais com extrema facilidade, encontra água e protege os dois. Aos poucos também, surge um sentimento do aborígine pela menina e uma possível reciprocidade por parte dela também, que ela automaticamente rejeita, por ele não se encaixar nos padrões de beleza de sua cultura.
O interessante nessa história é a convergência entre esses dois mundos tão distintos.
O menino aborígine está cumprindo um ritual de sua tribo; no qual o menino tem que passar um período sozinho, para aprender a sobreviver.
As crianças também estão sozinhas, o pai suicidou-se (aparentemente por não agüentar as pressões do capitalismo).
Toda a história é contada sob essa fina camada de aproximações e estranhezas.
Numa caçada, o aborígine mata um canguru e o despedaça, o diretor sabiamente utiliza cortes na cena mostrando um açougueiro cortando e despedaçando um animal na cidade grande.
É um filme pesado, porém, bonito, com belas imagens e paisagens, o diretor sabe captar e acima de tudo manipular cada imagem para causar a sensação necessária à história.
É um feito e tanto.
Sentimos medo, nojo, piedade, horror, tédio, ternura, amizade e esperança.
Tudo arquitetado com extrema maestria pela direção e executado com muito talento pelo trio de crianças protagonistas.
A trilha é estranha também, ora acompanha a ação e até mesmo dá um tom épico ao filme, ora é diferente e desfamiliarizada, efeito causado pelo rádio que as crianças carregam pra cima e pra baixo.
Durante o filme, fiquei me perguntando: Afinal, quem seria o selvagem ali?
É justamente essa questão que parece interessar ao diretor Nicolas Roig.
Em cena, vemos uma volta aos primórdios da civilização: o homem sai à caça de algo para comer e a menina nada nua no rio, ele faz fogo atritando dois paus e assim por diante.... tudo remonta o mito de Adão e Eva. O mundo é deles e não há ninguém por perto, pelo menos aparentemente.
Não vou contar mais detalhes para não estragar o filme de quem por ventura possa se interessar em assisti-lo.
O filme é uma fábula moral em que o diretor cutuca até onde pode o espectador. Seu enredo escarafuncha onde começa a cultura (?), onde termina o instinto (?). E acima de tudo, onde começa a dominação através da linguagem (?) onde fica o respeito à alteridade (?). São essas as questões principais desse filme genial.
Além disso, o filme tem uma linda cena de dança aborígine e mais uma vez, sabiamente, aliás, o diretor nos coloca no papel de quem não compreende bem aquela dança ao mesmo tempo esquisita e bela.
Nicolas Reig talvez quisesse nos dizer que a cultura dos outros fosse sempre assim, estranha e bela.
O filme é inteligente e o diretor “parece” não se posicionar quanto ao final, deixando as possibilidades em aberto, para que o espectador as defina, segundo sua própria experiência. Jogada de mestre.
Enfim, um filme estranho e belo, não necessariamente nessa mesma ordem.
O Sétimo Continente
4.0 174TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Michael Haneke, cineasta austríaco, é o diretor que mais entende do vazio do homem contemporâneo.
Seus filmes apresentam a humanidade tal qual ela é.
Sem explicação. Sem subterfúgios. Sem máscara.
Todos os seus filmes vão por esse caminho: “A Fita Branca”, “Cachê”, “A Professora de Piano”, “Funny Games” e “O Vídeo de Benny”.
Hoje eu assisti “O Sétimo Continente”, seu primeiro filme.
E é interessante notar que em seu primeiro filme, os temas que mais tarde seriam perseguidos, decepados e analisados pela sua ótica crua já estavam todos ali.
O filme conta a história de uma família aparentemente normal, como todas as outras do mundo.
Haneke passa os primeiros longos minutos do filme mostrando os personagens em ação diária; acordar, escovar os dentes, chamar a filha para ir para a escola, tomar café da manhã, ir cada um para seus afazeres e filma também à volta para a casa até o sono e consequentemente tudo recomeça no dia seguinte com sutis mudanças.
O diretor filma fragmentos do dia dessas pessoas e utiliza-se desse efeito para igualmente filmar pedaços dos corpos delas. Nos primeiros vintes minutos, pouco ou quase nada vemos dos rostos desses personagens.
Ação cotidiana pura e simples.
A primeira cena é genial.
Haneke filma um carro sendo ensaboado num lava-jato, a câmera fica do lado de dentro, assumindo a posição que mais tarde saberemos ser a da criança, a partir desse olhar vemos um homem e uma mulher sentados, sem aparentemente reação alguma.
A cena é poderosa e incômoda e Haneke se vale dela em outros grandes momentos do filme.
O filme é dividido por partes e em quase 1 hora de filme acompanhamos a rotina daqueles personagens sem saber muito bem por quais caminhos o diretor pretende trilhar. As imagens são fortes, repetitivas e angustiantes. São incômodas ao extremo e Haneke não parece fazer o menor trabalho para torná-las menos densas.
A rotina só é quebrada por pequenos e rápidos momentos em que dois dos personagens choram. As situações em que esse choro acontece são imprevisíveis e o diretor não as explica. Fica o vazio do não entendimento por vias racionais. Mas, mesmo assim, conseguimos entender o porquê das lágrimas.
É cinema para gente grande.
Para aqueles que querem pensar a respeito do homem, suas mazelas e seu mundo.
De repente o imponderável acontece e mesmo assim Haneke filma da mesma maneira, como se até mesmo no caos houvesse uma ordem e por que não dizer, até mesmo uma beleza. Só o caos os salva da rotina. E é preciso ir até o fim em seu propósito... E os personagens vão até esse fim.
As imagens dessa destruição são filmadas de uma maneira crua, distanciada com cortes secos e racionais. Os personagens continuam até mesmo dentro do caos agindo de maneira racional. Como se o cotidiano já estivesse tão entranhado neles que fosse impossível se livrar de tudo aquilo ali.
É um dos filmes mais poderosos que já foi feito sobre o capitalismo e suas rotina estafante de trabalho. Inúmeros estudos já foram feitos nessa área sinalizando que essa rotina massacra o ser humano, neurotizando-o até o extremo da loucura.
Coincidentemente, quando assisti o filme, me lembrei de um vídeo que me deixou estupefato. No vídeo real, uma garota vestida com um capuz vermelho (Chapeuzinho-vermelho?) carrega uma cesta com seis filhotes de cachorro. Ela está na beira de um rio. Pega cada um dos cachorrinhos (que estão chorando na cesta) e arremessa-os no rio. A garota não demonstra qualquer tipo de reação, apenas joga-os e parece se divertir. Parece. Não dá para se ter certeza disso.
Pensei em Nelson Rodrigues e seu “Os Setes Gatinhos”, peça em que uma garota “virginal” mata uma gata prenha. A gata morre, e depois de morta, ela pari sete gatinhos.
Nelson Rodrigues assim como Haneke entende muito dos processos mentais que o humano passa durante a sua existência. Temas como ciúme, parafilias, suicídios e morte estão retratados em quase toda a totalidade de sua obra.
Pensei também no excelente livro da Lionel Shriver, escritora americana, chamado “Precisamos falar sobre Kevin”. Nesse livro todo feito em forma de cartas de uma mulher para seu marido, a escritora conta a história de Kevin, adolescente que entra armado na escola e comete uma verdadeira chacina. A mãe dele, que nunca quis tê-lo, tenta encontrar uma justificativa para o ato.
Pensei, pensei, pensei tanto.
É possível uma pessoa nascer genuinamente má?
Lembrei dos pensadores que conhecia e suas ânsias em querer explicar algo nesse sentido.
Lembrei de Rosseau e sua frase: “O Homem nasce bom a sociedade o corrompe.”
Lembrei de Hobbes: “O Homem nasce mau a sociedade o civiliza”
E por fim, lembrei de Pascal: “O bem e o mal coexistem dentro do homem”.
Onde estaria a melhor resposta para minha pergunta?
O fato é que o mal sempre nos fascinou e fascina até hoje.
É só dar uma olhada nas listas dos livros mais vendidos e nas sessões de cinema lotadas de filmes de terror e suspense.
Misteriosamente me pego pensando em Brecht e sua frase na peça “A Alma Boa de Setsuan”: “Como posso ser boa, se tenho que pagar o aluguel?”.
Brecht parece ir ao cerne da discussão proposta pelo filme “O Sétimo Continente” de Haneke; a alienação proporcionada pela busca utópica da sobrevivência e/ou do luxo.
Hoje vemos que as pessoas se justificam por aquilo que possuem ou parecem possuir.
A tal “Sociedade do Espetáculo” analisada por Guy Debord em seu livro homônimo.
Vivemos a sociedade da aparência e soa sintomático que cada vez mais pessoas estejam enlouquecendo, atirando e matando seus semelhantes.
Nessa nova configuração de nossa sociedade, o lugar delegado ao outro é inversamente proporcional ao nosso.
“O que é bom é pra si e o que sobra é do outro”, letra realista do grupo de rap “Racionais MC’s”, chamada “A Vida é um desafio”.
Esse comportamento alienatório em relação à alteridade é o que fomenta a barbárie. Se o outro é mero arremedo de minhas vontades e desejos, eu posso acabar com a vida dele a hora que eu quiser, sem absolutamente nenhum sofrimento.
Lionel Shriver no livro “Precisamos falar sobre Kevin” escreve sobre a relação de crime e castigo para seres sociopatas, para quem nada nem ninguém desperta qualquer tipo de sentimento.
“Eu acho muito difícil que consigam fazê-lo se envergonhar. Você só consegue afetar quem tem consciência. Só pode punir quem tem esperanças para serem frustradas ou laços a serem cortados; quem se preocupa com a opinião dos outros. Você, na verdade, só consegue punir quem já é pelo menos um pouquinho bom.”.
O certo é que quanto mais se lê, mais se assiste filme, mais se conhece o humano, mais perplexo se fica.
Freud escreveu que desde que nascemos lutamos pela manutenção de nossas vidas e que nossas duas principais forças seriam as pulsões de vida e as pulsões de morte. Ambas lutando para encontrar ecos dentro de nós mesmos.
Melanie Klein talvez tenha ido mais fundo ao escrever que se não conseguimos integrar nossos amores e ódios dentro de nós mesmos e nem aceitarmos as perdas durante nosso percurso na terra, estaríamos à mercê de forças destrutivas. Algo bem próximo propôs Jung com o conselho de trazer nossas “Sombras” para a luz do consciente.
O fato é que os filmes de Haneke são provocativos por não trazerem nenhum tipo de respostas. Talvez nem mesmo traga perguntas. É um cinema “narrativo”, num binômio cru/cruel e realista/estranho.
Optei por falar menos do filme e mais do que ele me causou para não estragar a genialidade proposta pelo cineasta.
É um daqueles filmes que exigem a aquiescência máxima do espectador.
Haneke com certeza aprendeu grandes lições com a dramaturgo alemão Bertolt Brecht. A teoria do estranhamento proposta por Brecht permeia os filmes desse diretor. A maneira desfamiliarizada com que o austríaco filma as pessoas e o próprio cotidiano é uma prova disso.
Poderia ficar aqui, falando mais e mais sobre o filme, pois, ele suscita altas discussões, mas, paro por aqui.
Apenas mais uma linha:
Se você quiser entender um pouco mais sobre o homem na contemporaneidade, é obrigatório que assista os filmes de Michael Haneke.
Beleza Adormecida
2.4 1,2K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Cenas. Estado. Situação. O filme “A Bela Adormecida” mostra mais uma composição do que basicamente uma história. A maneira como a diretora estreante Julia Leigh filma substitui a ação dramática pela cerimônia.
O que assistimos (na realidade) são rituais, mostrados em seus mínimos detalhes. Há uma obsessão pelo minimalismo, pela perda e com a morte. A personagem principal é apresentada de maneira fragmentada. Não há um todo. Não há uma lição a ser aprendida. Mas, “apenas” partes que permanecem autônomas e parecem não apresentar nada concreto. Lucy, a protagonista, apresenta-se como magra e audaciosa. Só. Conhecemo-na pela maneira como age. Então, tudo é estranho. Tudo é mistério. Impossível não lembrar da teoria do “Gestus Social” de Bertolt Brecht:
“O objetivo do efeito de estranhamento é distanciar o Gestus social subjacente em todos os acontecimentos. Por Gestus social entende-se a expressão mímica e gestual das relações sociais que prevalecem entre os homens de uma determinada época.”
Lucy é uma jovem estudante, que trabalha numa copiadora, como garçonete, como cobaia em experimentos médicos, como prostituta e o que mais lhe aparecer pela frente. As cenas inicias de “A Bela Adormecida” nos mostram Lucy existindo. Ela mora numa casa de aluguel com outras pessoas. Está devendo o mês anterior e não tem como pagar. Ela limpa o banheiro. Limpa a mesa do bar. É cantada. Anda pelas ruas. Vai pra faculdade. Tem um “relacionamento” com um homem (que ao que parece é um intelectual) doente. Atende telefonemas da mãe, que (ao que parece) lhe pede mais dinheiro. E assim vai. Tudo aqui pode ser interpretado como “ao que parece”. Nada é de fato. O filme tem inúmeras lacunas, que devem ser preenchidas pelo espectador. Não existe psicologia, mas apenas pessoas agindo. Existindo. Sendo. O incompreensível existe e é quase palpável. Tudo é apenas acontecimento. Tudo remete ao sonho. A linguagem fragmentada e aparentemente “incompreensível” bebe na fonte não-hierárquica do sonhos. “O sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”, escreveu Freud.
Tudo depende aqui de não querer compreender imediatamente. É preciso uma mudança na atitude do espectador para o filme. É preciso abrir as portas da percepção e deixar que as possíveis ligações sejam feitas de maneira totalmente inesperada. Freud recomenda que o analista tenha uma “atenção flutuante por igual” em relação ao seu analisado. A teoria seriíssima foi concebida para que o analista não tenha o desejo de exercer qualquer tipo de poder sobre o outro, evitando assim a dominação e o possível apagamento da singularidade do indivíduo.
Essa advertência freudiana é perfeita para o filme. Pois, se quisermos “entender” logo de cara, anularemos qualquer possibilidade de singularidade do filme. E vos digo, é um filme absolutamente singular. Devemos “apenas” armazenar as impressões sensíveis (ou não) que o filme nos causa. Não deve haver penetração. A única regra da casa é essa. No sentido metafórico, é claro. E também no plano real, se levarmos em consideração a situação em que a protagonista encontra-se.
O título do filme que pode até parecer lúdico num primeiro instante, revela-se, pelo contrário, extremamente sombrio. O novo emprego de Lucy consiste em tomar uma espécie de chá do sono e dormir algumas horas, enquanto senhores endinheirados realizam suas fantasias sexuais (ou não) com ela. Tudo é permitido, exceto penetrá-la.
A essência do sonho, na visão de Leigh, coaduna com a de Freud. O sonho é a realização de um desejo infantil reprimido. O ego sem barreiras. O “eu tudo posso”. E o outro é mero arremedo das minhas vontades ilimitadas. “Quanto mais escolhas parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos”, escreveu o sociólogo Zigmunt Bauman no livro “Modernidade Líquida”, em que o autor nos fala da passagem de um capitalismo “sólido” para um mais “leve” e “fluido” e as mudanças acarretadas na vida humana. Lá pelas tantas, Bauman cita uma frase de Jeremy Seabrook que se encaixa perfeitamente ao filme:
“O capitalismo não entregou os bens às pessoas; as pessoas foram crescentemente entregues aos bens, o que quer dizer que o próprio caráter e sensibilidade das pessoas foi reelaborado, reformulado, de tal forma que elas se agrupam aproximadamente ... com as mercadorias, experiências e sensações ... cuja venda é o que dá forma e significado a suas vidas.”
A vida de Lucy só ganha significado quando ela coloca o próprio corpo a venda. Ela adquire um status. Ela passa a ser. Ela é. Quem?
Soa extremamente irônico que o “Príncipe Encantado” dela seja alguém debilitado, fraco e sem nenhuma perspectiva de vida. Mas é ali no aconchego da casa daquele homem que Lucy parece ser quem ela realmente é. Lucy é uma Macabéa hiper-contemporânea: “Já que sou, o jeito é ser.” Lucy, assim como protagonista do romance “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector também só se conhece através de ir vivendo à toa e também não explicita grandes pretensões quanto ao futuro. “Ter futuro era luxo”.
O máximo de desejo que Lucy verbaliza é o fato de querer casar-se com alguém. Mas seu príncipe encantado não pode beijá-la, pois ele tem a língua saburrosa. Mas se o príncipe não pode ser seu marido, ele transforma-se numa espécie de pai ou irmão mais velho. A cena mais linda de todo o filme mostra essa relação entre os dois. Lucy chega de manhãzinha, cansada de mais um dia de trabalho, e encontra nos braços do “príncipe” aquela espécie de carinho que nos dá uma segurança e alento. A cena é sublime, tão pequena, mas tão profunda, que dá vontade chorar junto com os personagens, não por uma emoção boba e barata, mas, por um entendimento profundo das necessidades humanas.
“A Bela Adormecida” é assim. Uma fábula que apresenta a humanidade como matéria-prima de uma crítica aos modos como nos organizamos enquanto sociedade. Uma fábula adulta, dolorosa e angustiante. Em seu primeiro filme, Julia Leigh nos brinda com uma pequena obra-prima, onde podemos ver ecos de David Lynch, Sofia Coppola, Gus Van Sant e sobretudo Michael Haneke e sua câmera documental e parada e a perplexidade de não se entender direito as razões que parecem mover os individuos. O filme também tem semelhanças com o livro de Yasunari Kawabata chamado "A Casa das Belas Adormecidas" que virou filme nas mãos do diretor alemão Vadim Glowna (e que assisti na Mostra de Cinema de SP em 2007). Mas, longe de aparentar uma mera cópia de suas possíveis inspirações, Leigh apresenta aqui um filme único e brilhante e que filme! Que filme!
O Tempo do Lobo
3.6 71TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
O enredo conta a história de uma família numa situação pós-apocalíptica.
Não sabemos o que aconteceu. Nem como aconteceu.
Quando o filme começa, a catástrofe já ocorreu e em nenhum momento o diretor revela as razões. A situação é. Ou se entra na história ou não se entra. Haneke é assim “preciso”.
Nada falta. Nada sobra.
Seu cinema é essencial. Somente aquilo que tem relevância é mostrado.
Quando o filme começa, vemos uma família aparentemente feliz dentro de um carro no meio de uma floresta. Chegam até uma casa, retiram alguns alimentos e as malas do carro. Entram na casa. Lá dentro está um homem armado. Ele, a mulher segurando uma criança de colo e uma outra criança de uns 6, 7 anos de idade.
O homem com a arma na mão ameaça os proprietários da casa. O dono da casa tenta negociar. Consegue com que o homem com a arma na mão autorize que seus dois filhos saiam da casa. As crianças saem. Nova negociação. Um tiro. O homem com a arma na mão mata o dono da casa.
Haneke é tão genial que não mostra a morte. Filma apenas as reações a morte.
Isabelle Huppert logo em suas primeiras cenas já mostra a grande atriz que é; sua expressão fria, européia, calada é magistral, seus olhos marejados de lágrimas e sua reação de repulsa à morte é simplesmente fantástica.
A mulher e os dois filhos agora partem sem eira nem beira no meio do nada.
Soa sintomático que os nomes do filme de Anna (Huppert) atendam pelo nome de Eva e Benny. Dois nomes já utilizados por Haneke em filmes anteriores; Eva é o nome da menina que assiste curiosa e impassível a destruição de sua família em “O sétimo continente” e Benny é o nome do garoto assassino em “O Vídeo de Benny”.
Proposital ou não, essa simbologia dos nomes das crianças permite (a quem já assistiu os filmes), certa proximidade daquelas crianças. Parece que já as conhecemos.
Em todos os filmes que já assisti de Michael Haneke as crianças possuem um papel fundamental. É através do olhar ainda não decodificado delas que Haneke constrói seus filmes. O diretor filma como se fosse uma dessas crianças. Ele também parece não entender (por vias racionais) o que está acontecendo ali, ou quais seriam as motivações de cada um e até mesmo, indo mais longe, quem estaria certo e quem estaria errado.
Para Haneke, isso não interessa.
Interessa sim, filmar, filmar de maneira mais distanciada possível.
Sua câmera é quase documental, digo quase, porquê a mão ferrenha do diretor está por detrás de tudo. Haneke é tão genial, tão genial, que quase nos faz acreditar que seu cinema seja fácil de fazer. Não se enganem, é o mais difícil.
O diretor em nenhum momento, em nenhum mesmo, faz algum tipo de concessão. Seu cinema é extremamente pessoal e contemporâneo. Haneke tem um tema e desde seu primeiro filme “O sétimo continente” já o discutia com o espectador.
A sensação de não compreender direito o que se sente, não compreender o mundo que habitamos e as pessoas que nos rodeiam. A incompreensão de si mesmo.
É esse olhar incompreendido que o diretor filma.
Cinema incômodo. Haneke faz um cinema que “dói da flor da pele ao pó do osso” e que “rói do cóccix até o pescoço” (parafraseando a música de Caetano Veloso).
É impossível ficar impassível frente às propostas hiper-realistas do diretor austríaco.
Esse filme em especial mexeu muito comigo. A situação vivida por aquelas pessoas é muito parecida com a da peça que dirigi chamada “Suspensão” (de Lucas Arantes).
Tanto na peça quanto no filme, o mundo “acaba” sem nenhum tipo de explicação. Quando “Suspensão” começa, vemos três personagens (Ele, Ela e o Avô) habitando um mundo vazio. Cada um desses três personagens desenvolve um tipo de “loucura” para tentar sobreviver; ele sai todos os dias procurando vida nas ruas, ela fica obcecada com a ideia de ter um filho e repovoar o mundo e o avô busca na descrença mensurar o vazio. Não é uma peça fácil. A premissa inicial (o mundo pós-apocalíptico) é apenas uma metáfora, para falar do vazio que estamos vivenciando e também, do papel delegamos aos outros em nossas vidas.
O registro aqui é intimista, o que interessa na peça de Lucas Arantes é como aquelas pessoas sobreviveram e sobrevivem em meio ao caos.
A proposta de Haneke é parecida.
Anna vaga pela cidade em busca de alimentos e é rejeitada por aqueles que um dia foram ajudados por ela.
Haneke parece querer remontar os mitos bíblicos, vemos muitas passagens bíblicas ali materializadas.
Após muita procura e algumas pequenas tragédias, Anna chega até uma espécie de “sociedade” onde outros iguais a ela esperam uma possível salvação advinda da passagem de um trem.
Aqui é possível encontrar ecos da peça de Samuel Beckett chamada “Esperando Godot” onde dois personagens esperam, esperam e nada acontece.
Enquanto na peça de Beckett o registro é “absurdo” em “O tempo do lobo” é outro, mais próximo do real.
Foi Thomas Hobbes quem disse que “O HOMEM É O LOBO DO HOMEM” e é esse o ponto que interessa ao diretor.
Haneke é um obcecado pela ideia da maldade. Como ela surge? È da própria natureza humana? Ou é forjada por algum instinto de sobrevivência?
Não há respostas plausíveis, restam apenas algumas ações e são elas as responsáveis por tentar explicar algo.
Em nome de sua sobrevivência, o homem é capaz de qualquer coisa e embora tenha sentimentos tidos como nobres numa situação como à proposta pelo filme, a vontade de se dar bem em cima do outro fala mais forte.
(SOMOS TODOS MACUNAÍMA’S!)
Em justa medida, Haneke também traz o tema do outro, de como construímos e alicerçamos nossa civilização. Sim, somos seres ególatras, mas, não conseguimos ser sozinhos e há um vazio existencial em todos nós que nada aplaca.
No fundo, bem lá no fundo, somos todos tão parecidos, desejamos as mesmas coisas, temos as mesmíssimas necessidades e queremos todos sobreviver (se é que isso seja possível).
Toda a seqüência final é simplesmente soberba, a tentativa de possível “salvação” ao qual o filho de Anna recorre é comovente. A Bíblia nos ensinou que sempre um tem que sofrer para que os outros se dêem bem. Haneke parece não acreditar muito nisso não.
O take final é extremamente contraditório e cruel.
O diálogo final da peça “Esperando Godot” talvez explique alguma coisa:
Vladimir: Então, devemos partir?
Estragon: Sim, vamos.
Eles não se movem.
O Segredo do Bosque dos Sonhos
3.8 88TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Esse filme italiano de 1972 é atualíssimo e extremamente crítico.
Sem mais nem menos, crianças são encontradas mortas num vilarejo onde a ignorância impera. Sem obter respostas críveis os habitantes apelam para o misticismo como uma possível resposta. O vilarejo que até então era muito calmo, começa a ser invadido por repórteres e policiais de toda ordem. Os habitantes ficam em polvorosa. Todos são culpados num primeiro momento.
O diretor Lucio Fulci concebe um filme híbrido, mistura de triller policial com suspense e pitadas de humor negro.
Apesar de ter sido realizado em 1972 o filme é extremamente atual, sua crítica mordaz aos meandros do poder e principalmente à Igreja Católica é soberba.
O diretor foi excomungado pela Igreja por esse filme, só pra se ter uma ideia.
Aparentemente, o filme é apenas mais de um suspense “onde quem é o assassino?” é mais importante que a história em si. Não é o caso aqui. Mesmo se fosse apenas isso Fulci já teria realizado um filme acima da média dos outros que seguem essa linha.
Fica nítido, especialmente na parte final do filme, que o diretor concebeu um enredo grandioso e até ouso dizer raivoso. Sua ira parece se estender a tudo e a todos. Ninguém se safa ali, todos têm pequenos podres e é obvio que todos querem esconder esses pequenos podres a qualquer custo.
Fulci sabe muito bem que o binômio ignorância + misticismo é um barril de pólvora, cabendo ao diretor apenas o papel de acender o pavio e ver a dimensão do estrago.
Sim, o estrago é grande. E o diretor tinha a certeza que assim o seria.
Visto que é um filme atemporal, apesar de seus 38 anos de realização.
A galeria de personagens estranhos e com aparente culpa no cartório estão todos lá.
Tem as putas gordas a la Fellini, tem a patricinha rica e ex-drogada, tem o padre bonitão, a mãe esquisita do padre, a menina surda-muda, a “bruxa”, o curandeiro, as crianças “inocentes” e moradores carentes de informação/cultura e pobres.
Esses personagens são meros joguetes do destino, como escreveu Shakespeare. Parece que há uma força maior que força-os a agir da maneira como agem. Ouso dizer que não parecem responsáveis pelos seus atos. É desse mistério que o filme se vale em inúmeros momentos. O diretor, cônscio disso, brinca conosco, seus espectadores.
Algumas cenas são brilhantes e chocantes ao mesmo tempo. É incrível notar a ousadia do diretor em tocar em certos temas e em mostrar certas imagens. Algumas chocam ainda hoje.
A cena de abertura em que o diretor filma todo o vilarejo e depois uma imponente estrada (contraste claro entre o “rural” e o “urbano”) para só depois revelar um mão escavando algo na terra é brilhante. Aliás, essa cena é importantíssima para a compreensão do enredo. Nela, uma mãe (a “bruxa”) escava o local onde enterrou o filho morto, considerado pela mesma como sendo filho do diabo.
A seqüência final também é de encher os olhos.
No entanto, a cena mais fabulosa de todas é uma em que a “bruxa” é sumariamente torturada. A maneira como o diretor filma a seqüência é admirável, (mais tarde Tarantino se inspiraria nessa cena para o seu “Cães de Aluguel”) usando um ótimo efeito crítico, o diretor mostra a tortura de modo crudelíssimo, sem meios termos, e além disso, utiliza-se de uma trilha sonora genial, que dá o perfeito tom crítico que parece ser tão caro ao realizador. É a melhor cena do filme. Eu chorei assistindo. Chorei não só pela cena em si, mas, por todo o contexto e genialidade envolvidos. Bravo!
Não vou falar muito sobre o enredo, pois com certeza revelaria fatos que iriam estragar o prazer de quem for assistir a esse brilhante filme.
Só digo uma coisa: Assista sem medo!
Que pena que os diretores atuais sejam tão covardes e medrosos, com seus filminhos tão quadrados e caretas, fechados em si e sem reverberação crítica na sociedade.
Esse filme aqui não é desses não.
Até o título original é ousado e corajoso: “NON SI SEVIZIA UN PAPERINO” e em português claro: “NÃO SE TORTURA UM PATINHO".
A ironia fina e crítica do nome só será assimilada por quem assistí-lo.
Recomendo!
Corações Livres
3.8 26TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Susanne Bier, diretora dinamarquesa, dirigiu seu primeiro filme em 2002. Este filme chama-se "Elsker Dig for Evigt" [traduzido para o português como “Corações Livres”] e ganhou o certificado de um legítimo “Dogma 95”. Movimento cinematográfico fundado por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg que criava certas regras para a criação de um filme um cinema autoral e diferente do que era (e ainda é) produzido em Hollywood.
Para garantir o selo de “Dogma 95” era necessário seguir 10 mandamentos:
As filmagens devem ser feitas em locações. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).
O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena).
A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar).
O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera).
São proibidos os truques fotográficos e filtros.
O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios, Armas, etc. não podem ocorrer).
São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme se desenvolve em tempo real).
São inaceitáveis os filmes de gênero.
O filme final deve ser transferido para cópia em 35mm padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento.
O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Muito bons filmes foram produzidos por esse movimento. Cito de cabeça uns três que são excelentes: “Festa de Família”, “Os Idiotas” e “Julien Donkey Boy”.
"Elsker Dig for Evigt" é mais um que entra nessa lista.
A diretora Susanne Bier é uma mestra do cinema melodramático, seus filmes quase sempre giram em torno de grandes tragédias e de reviravoltas aparentemente mirabolantes. Mas, seu estilo único e preciso impede que seus filmes pareçam novelas produzidas pela Rede Globo. O enredo não é muito diferente do que passa na televisão, o que diferencia Susanne Bier de uma estética famigerada é sua visão de mundo. Seus filmes e posso falar especialmente de outros dois que já assisti (“Brother” e “Depois do Casamento”) são dois ótimos exemplos de um cinema que trata o espectador com inteligência.
Seus personagens estão sempre tendo que lidar com grandes tragédias ou acontecimentos que os tirem de uma suposta normalidade.
Em "Elsker Dig for Evigt" acompanhamos a história de Cecilie, uma jovem de 20 e poucos anos, que não tem pais e é apaixonada por Joachim, A primeira cena mostra o casal num restaurante. Estão felizes. Ele a pede em casamento. Ela aceita. Próxima cena: Cecilie está preocupada, pois Joachim terá que viajar a trabalho para um lugar aparentemente perigoso. Ele tenta convencê-la de que não há nenhum perigo. Próxima cena: Os dois estão dentro do carro. Estão se despedindo. Na hora em que ele sai do carro, é abruptamente atropelado por um carro. A cena é densa e espetacularmente filmada por Susanne Bier. Sem arroubos dramáticos, a cena é mostrada com uma sutileza admirável. Pronto, está posto o drama de Cecilie.
Joachim é levado ao hospital. O marido da Mulher (Marie) que o atropelou é médico. Joachim não poderá mais andar, nunca mais. Cecilie diz que ainda quer viver com ele. Joachim não aceita e pede que ela nunca mais o visite. Cecilie completamente perturbada vê nos braços do médico Niels, um possível consolo. Juntos iniciam um caso. Pronto, cinema de Susane Bier na veia e em alta voltagem. Cheios de reviravoltas e climas preciosos, Bier também se destaca por ser uma exímia diretora de atores. O que poderia soar superficial, ela consegue transformar em dúvida genuína. Seus personagens apresentam uma densidade quase palpável. São personagens em trânsito. Em choque por acontecimentos inesperados. Nem os filhos de Marie e Niels se salvam do imponderável. A filha adolescente foi abandonada pelo namorado e os filhos menores apesar de não terem idade para entender o que está acontecendo com sua família, sofrem junto com os pais. Susanne Bier vai pouco a pouco tecendo sua teia e de repente nós (espectadores) estamos completamente enredados. Seu cinema é tão bom, que assim como os personagens também ficamos em dúvida e também nos angustiamos. As situações propostas pela diretora poderiam ocorrer com qualquer um de nós. No entanto, acontece com aqueles quatro personagens e esse distanciamento assumido através de uma direção quase fria, evidencia o caráter trágico da existência humana. Sim. O cinema de Susanne Bier é humano, demasiado humano.
"Nós simplesmente fomos azarados", frase dita lá pelo final do filme define tudo. O filme e a própria condição humana.
A Pedra
3.9 6As palavras de Sokurov dizem tudo:
“A Pedra nunca irá procurar pelo seu público: o seu grito é muito fraco.
O filme vai encontrar os seus espectadores apenas se eles foram à procura dele.”
Feliz que Minha Mãe Esteja Viva
3.5 72{SE VOCÊ NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA. TEM SPOILER}
Freud em sua teoria sobre o Complexo de Édipo formulou aquilo que é (Sempre foi? Sempre será?) a essência de todo o conflito humano; amor e ódio (ou hostilidade). Amor extremado pela mãe e hostilidade pelo pai. Esse conflito se dá por uma necessidade de atenção do filho e conseqüente disputa com o pai. Mas e quando o pai não existe? Morreu? Desapareceu? Fugiu? Ou a mãe não sabe de seu paradeiro? Ou até mesmo, o pai nem saiba que esse filho exista.
O conflito no filme francês “Feliz que minha mãe esteja viva” toca nesse assunto espinhoso. Longe de qualquer “psicologismo” barato, o filme se sai muito bem. O tema é evocado de maneira natural e a trama é mostrada de maneira não fetichista, o que seria uma redução na qualidade do filme. Isso não acontece.
O filme mostra a história de dois garotos, Thomas e seu irmão menor, Patrick. Ambos são “abandonados” pela mãe e adotados por uma outra família. Patrick aparentemente lida bem com a situação, mas Thomas não se conforma com o abandono da mãe verdadeira. A nova família tenta fazer de tudo para que Thomas sinta-se bem ali com eles, mas o garoto tem uma revolta latente dentro de si. Brigas, gritos e palavrões são a palavras de ordem dele. O filme não é mostrado de maneira linear, as cenas do passado e do presente alternam-se numa tentativa de explicar o comportamento do garoto. A mãe biológica dos garotos é mostrada como uma mulher que teve filho muito nova e não sabe muito bem como lidar com isso. Além disso, a necessidade de ganhar dinheiro faz com que ela abandone vez por outra os filhos sozinhos em casa. Thomas, o mais velho é quem cuida do menor. Já crescidos, Thomas desenvolve um comportamento violento e errático, enquanto Patrick é seu exato oposto. O interessante de tudo isso é que quando Thomas é criança, ele tem um comportamento mais adulto e quando é adulto tem um comportamento mais infantilizado. Certo dia, ele decide ir atrás de sua história e acaba obtendo o endereço de sua mãe verdadeira. Ao ver a mãe novamente, ele foge, mas pouco a pouco a nova velha relação se restabelece. A mãe está grávida e já tem um outro filho. A relação estreita-se. O filho começa a passar temporadas na casa da mãe. Ninguém sabe de nada. Tudo é feito em segredo. Como forma de disfarçar sua ausência para a mãe adotiva o menino inventa uma namorada. Ao conhecer uma garota no cinema, Thomas mostra-se interessado nela, mas quando ela convida-o para ir tomar uma coca-cola em sua casa, ele mais uma vez mente e fala que não poderá ir, já que tem uma namorada. A relação mãe e filho que começou bem fria e distante, aos poucos vai ganhando intimidade e cobrança. Thomas começa a sentir ciúmes da relação de sua filha com seu irmão menor. Chega até mesmo a questioná-la por que ela não o abandona também. A tensão (tesão?) cresce e o conflito ganha contornos densos.
Seria uma redução atroz classificar a relação dos dois de meramente sexual. Não é isso. Ou melhor, não é apenas isso. É mais profundo que isso.
A relação daquela mãe e daquele filho é um complexo de Édipo tardio. Tudo aquilo que não foi vivenciado na infância surge agora avassalador. Diante da ausência do pai, o conflito se estabelece na relação com o irmãozinho. É ele quem rouba a atenção da mãe. Algo precisa ser feito. Thomas precisa tornar-se adulto. Mas como? A ausência do pai é um imperativo para ele desenvolver uma "Síndrome do Eterno Filho". Isto é, um adulto infantilizado e impotente.
A maneira encontrada por Thomas para a eliminação do conflito edipiano é radical. Ela mata a mãe, não apenas psicologicamente falando como Freud sugerira. Num rompante desesperado, Thomas esfaqueia a mãe. Ela não morre. O garoto é preso. No julgamento, a mãe aparece e diz que o filho não tem culpa de nada. A culpa toda é dela, por tê-lo abandonado na infância. É ai que o complexo volta à cena. A Mãe também não aceita sair da vida daquele filho. Ela torna-se uma “Vagina Dentada”. Ela castra-o. Impossibilitando-o assim de tomar as rédeas de sua vida. A culpa é sempre do outro. Fecha-se o ciclo.
“Feliz que minha mãe esteja viva” é um filme interessantíssimo, sem arrombos melodramáticos e psicologismos. Os personagens são. Eles se mostram pela suas ações. É um filme lento, frio e distante, mas tenso e sedutor. De certa maneira, “Feliz que minha mãe esteja viva” dialoga com outro filme contemporâneo “Eu matei minha mãe”, mas sem todo o rococó de Xavier Dolan. Em ambos os filmes, os conflitos entre a mãe e o filho são expostos de maneira dúbia, alternando cenas de lirismo com violência verbal. A diferença entre os filmes é que em “Eu matei minha mãe” o conflito é “solucionado” de uma maneira mais natural, mãe e filho aprendem juntos a conviver, já em “Feliz que minha mãe esteja viva” o conflito permanece.
Dirigido por Claude Miller e seu filho Nathan Miller, o filme apresenta qualidades técnicas surpreendentes. A fotografia do filme é simples, eficiente e muito bonita. A trilha sonora não procura acompanhar as emoções do filme e indicar um possível caminho para o espectador. Não. O Caminho aqui é outro. É mais embaixo. A trilha questiona/tensiona a ação. Mas, o que mais chama a atenção em todo o filme são as atuações de todo o elenco. Claude e Nathan Miller revelam-se grandes diretores de atores, conseguindo arrancar interpretações inspiradas deles. As crianças que interpretam os filhos de Julie Martino (a mãe) são todas um achado e brilham intensamente no filme. É de cair o queixo a densidade que os diretores arrancam daquelas crianças. Mas o filme não seria o mesmo sem a presença forte do ator Vincent Rottiers que vive Thomas na juventude. Ele é fabuloso. Seu trabalho corporal e principalmente os seus olhos vivificam o personagem o tempo todo. É um trabalho muito depurado, que com certeza é fruto de um talento natural do garoto, mas também de uma direção de ator bastante minuciosa. O filme é dele e ninguém tasca. O olhar que ele lança para a mãe na cena final é desesperador. O olhar que ele nos dá na cena final também é desesperador. O filme não acaba quando termina. Sim.