Confesso que fui assistir “Short Term 12” porque alguém do meu facebook tinha escrito que era um filme pra chorar. E eu adoro filmes assim. E então lá fui eu. A primeira meia hora do filme não estava “me pegando”. Não que o filme fosse ruim. Longe disso. Mas não tava entrando na onda dele. De repente, não mais do que de repente... O filme fica incrível. E que filme. Nossa! Tão simples e tão profundo. Toca em temas que vi pouquíssimos filmes tocar.
Grace e seu namorado Mason são cuidadores de crianças e adolescentes em situação de risco. Grace é uma personagem incrível. É doce, generosa, mas tem um pulso firme admirável. Consegue educar aqueles meninos e aquelas meninas com carinho, afeto e disciplina. O filme caminha de maneira absolutamente original. Grace é apresentada pela forma como lida com o mundo ao seu redor. Pouco ou quase nada sabemos sobre ela. Uma informação aqui (ela está grávida), outra ali (ela quer abortar) e assim vai. Ela não se mostra muito. Parece esconder algum segredo. Mas qual?
De repente, não mais do que de repente... Uma nova personagem chega e desestabiliza Grace. Quem é essa garota? Ela também esconde algo? Seria o mesmo que Grace? O fato é que ao se ver refletida na garota, Grace desaba. E é interessante acompanhar o desempenho excepcional da atriz Brie Larson. Ela simplesmente se desmancha aos nossos olhos. Mas sua força também reside aí. Foi Clarice Lispector quem escreveu que “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” ... Qual seria o defeito de Grace? Por que a certa altura, ela diz que nunca vai poder se casar com Mason? Por quê? Perguntas que o espectador se faz, mas com certo medo de achar que aquela resposta que ele está pensado é a versão correta dos fatos.
Grace até então vivera para os outros. Em função dos outros. Negando muita das vezes, o seu ódio, sua raiva e até mesmo seu amor. Grace só pode dar aquilo que nunca teve. Somente na ausência de tudo conhecemos essa dolorida personagem. Somente na ausência de tudo, podemos dar. Sem expectativa. Sem sofrimento. Mas a garota nova provoca Grace. Tudo aquilo que ela havia construído pra si mesma parece querer desabar.
O mais interessante de todo o filme é que cada criança, cada adolescente daquele abrigo é um pedacinho de Grace. Um pedacinho de Mason. Cada um carrega em si mesmo como um caracol, suas dores e possíveis fortalezas. “Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros.” Sim. Caio Fernando Abreu estava certo. Adentrar aqueles universos particulares não é tarefa fácil, mas Grace escolada na arte de se esconder sabe como acessar cada um. E isso é tão belo. É mostrado no filme de uma maneira tão sutil que de repente, não mais do que repente, você se vê derramando alguma lágrima sem nem ao mesmo se dar conta.
Sammy, Marcus, Luis também são pedacinhos escondidos de nossas profundas angústias. Cada história em particular faz com que reflitamos sobre os caminhos que cada um toma na vida. E é tão doloroso isso. Doloroso porque nos esfrega na cara uma verdade inequívoca: apenas cada um sabe de si mesmo. Num mundo onde é tão mais fácil, julgar, apontar o dedo e condenar, “Short Term 12” nos mostra o extremo oposto. E é um alívio. É libertador. Apesar de ser um filme denso, quando chega o seu fim não ficamos mal. Nem um pouco. Pelo contrário. É reconfortante perceber que cada um de nós pode sim fazer a diferença no mundo. Basta querer.
TEM SPOILER!!!! SE VOCÊ NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
”Her” do diretor Spike Jonze apresenta um retrato devastador de nossa contemporaneidade. Ele nos apresenta o amor como mercadoria. Uma sociedade em que o produto é oferecido pronto para o consumo imediato. Sim. O capitalismo faz da necessidade de afeto uma chance de lucro.
Theodore, protagonista do filme é um legítimo homem contemporâneo. Ele se sente deslocado: Um mal-estar inexplicável. Um vazio diante das mudanças rápidas do mundo. Uma solidão absurda diante da sua ineficácia amorosa. Vive o sexo como imitação dos filmes pornôs. Até que...
... Sua necessidade de controle; Seu desespero por estar com alguém; Seu anseio por segurança provocado pela presença de um outro; Fazem com que ele adquira um programa de computador que promete atender todas as necessidades do proprietário. E ai entra em cena: Samantha. Que é a voz do sistema operacional. Theodore apaixona-se pela voz. A arte do encontro é realçada pelo prazer inicial.
O que Jonze parece querer nos apresentar com seu filme é que a vida é invenção. Só vale a pena como construção diária em direção ao autoconhecimento e a felicidade. Mas como alcançar esse estágio se somos socialmente impelidos para fugir de nós mesmos, de nossa solidão, de nossas angústias. As redes sociais, os aplicativos de celulares, os medicamentos antidepressivos, a indústria do entretenimento e dos filmes pornôs cumprem o seu papel de deixar o homem contemporâneo cada vez mais distante de si mesmo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreve que:
”Fugindo da solidão, você deixa escapar a chance da solitude: dessa sublime condição na qual a pessoa pode juntar pensamentos, ponderar, refletir sobre eles, criar – e assim, dar sentido a substância à comunicação. Mas quem nunca saboreou o gosto da solitude talvez nunca venha a saber o que deixou escapar, jogou fora e perdeu”
Mas quem quer arcar com esse preço? Quem tem coragem e disponibilidade para encarar os riscos de se viver uma vida longe de toda a convenção?
POUCOS.
RAROS.
A experiência amorosa deve ser encarada como exercício da liberdade e não pelo seu oposto cruel: o apego.
Samantha lá pelas tantas diz um texto fantástico sobre isso. Ao ser perguntada por Theodore se ela ama outros homens, ela diz:
”... o coração não é uma caixa que pode ser preenchida. Ele se expande por dentro, o quanto mais você ama. Eu sou diferente de você. Isso não me faz te amar menos, mas sim, te amar mais."
Samantha, a máquina, expõe o calcanhar de Aquiles de nós, humanos. Somos apegados. Mesquinhos. Ciumentos. Enquanto não compreendermos o problema real da dependência não poderemos ser e nem deixar os outros serem livres. Pelo contrário, almejamos a escravidão. É só olharmos atentamente para a maioria dos relacionamentos amorosos atuais e veremos o inexorável: somos dependentes física e psicologicamente dos outros. O pensador indiano Krishnamurti diz que não amamos ninguém porque “nosso amor é sempre cercado de angústias, ciúme e medo – o que implica que, no íntimo, dependemos do outro, queremos ser amados. Não somente amamos, mas pedimos algo em troca; e já nesse pedido nos tornamos dependentes.”
Daí que Samantha em sua jornada de expansão de si mesma e de conscientização de sua capacidade de amar oferece um profundo contraponto: ELA NÃO DEPENDE DELE. Ela oferece seu amor, seu tempo, suas considerações sobre o mundo, sem a necessidade de algo em troca. ELA ESTÁ EM CONSTANTE MOVIMENTO PARA O ENCONTRO CONSIGO MESMA. E isso dá um nó na cabeça do espectador. Ela é um sistema operacional, COMO ASSIM? Ela foi comprada. Theodore pagou um preço por aquele amor. COMO ASSIM?
O amor de Samantha faz com que Theodore resgate seu amor-próprio. Ele é carente, imaturo, melancólico, mas apreende a linguagem toda própria do amor com aquele sistema operacional. Preciso citar aqui, um outro pensador indiano chamado Osho que escreveu algo que elucida essa jornada de Theodore:
"O homem amadurece no momento em que começa a amar em vez de necessitar. Ele começa a transbordar, a partilhar; ele começa a dar. A ênfase é totalmente diferente. Com o primeiro, a ênfase está em como adquirir mais. Com o segundo, a ênfase está em como dar, em como dar mais, em como dar incondicionalmente. Trata-se do crescimento, da maturidade, chegando até você. Uma pessoa madura dá. Só uma pessoa madura pode dar, porque só uma pessoa madura tem. Então, o amor não é dependente. Você pode estar amando quer o outro esteja ou não amando. O amor não é uma relação, é um estado."
Theodore aprenderá a lição às duras penas. Aprenderá que o amor é um estado e não meramente uma relação. Aprenderá da maneira mais difícil e comum do mundo: por amor e pela perda. PELO GRANDE PRESENTE DA PERDA.
" - O que você procura realmente? - Temos de procurar por algo?"
"L'Inconnu du Lac" (Um Estranho no Lago) é um filme totalmente despido de artifícios. Ele não se oferece ao espectador. Pelo contrário. É um ballet de encontros e desencontros sexuais. Nada mais que isso. Sim. Aos poucos e bem sorrateiramente, detalhes outros são adicionados ao enredo. É preciso paciência. Jeito. Caminhar devagar para não cair em nenhuma armadilha. Como uma caça. Sim. O Filme é uma caçada. Metaforicamente e também não. Eu explico. O filme se passa num tranquilo lago onde homens praticam nudismo e sexo eventual com parceiros vários. O lago é um lugar bucólico e aparentemente inofensivo. Até que acontece um crime. Stop. Antes preciso falar sobre os três personagens principais do enredo:
Franck, um jovem que desperta desejos nos homens mais velhos, mas que só tem olhos para Michel, que é o protótipo do “bofe”; bonito, sarado, bronzeado. Michel tem um namoradinho, mas dá umas flertadas com Franck. O terceiro personagem é Henri, um senhor gordo e solitário, que freqüenta o lago apenas para contemplação; ele não flerta, não fica nu, nada. Esses três personagens permanecerão autônomos em seus desejos até que acontece o tal crime. O diretor não faz suspense. Michel mata o namoradinho afogado. Franck, por acaso, vê o crime acontecendo, mas nada faz. Ou faz. Ele se envolve cada vez mais por Michel, vivendo aventuras sexuais com ele, ao mesmo tempo em que fortalece os laços de amizade com Henri. O filme transita entre duas linhas mestras: Tesão versus Tensão. Como já disse é preciso paciência. Não é um filme óbvio. Seu enredo é feito de repetições, de espera, de silêncio e sexo, muito sexo. O pensador francês Jean Baudrillard apresenta a chave perfeita para a compreensão do filme:
”Hoje tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Sim. Resta-nos apenas a simulação da orgia, o fingimento. Talvez seja o personagem Henri quem mais enxergue o seu próprio tempo. Daí, ele ser aparentemente o mais triste, o mais solitário. Talvez, ele enxergue as coisas por um outro lado. Sempre tem o outro lado. A tal da paralaxe. Talvez, Henri se recuse a mentir. Ou talvez, ele aceite o estado de simulação em que só se é possível repetir todas as coisas, porque elas já aconteceram. De qualquer forma, Henri traz o desconforto. Ele é o incomum. O diferente. O Estranho. Mas talvez caia na sua própria cilada ao se aproximar e estabelecer uma amizade particular com Franck. Henri também deseja. Mas até seu desejo é incomum, diferente e estranho. Sem tecer grandes filosofias, o filme toca num tema bastante interessante; o sexo como elemento perturbador de uma amizade. A conversa entre Franck e Henri é sempre corriqueira, mas, sempre acrescida de um imenso afeto que brota entre aqueles dois. Henri, talvez por ser mais velho, saiba que onde o sexo está em toda parte, ele não está em lugar nenhum. Há uma melancolia encantadora nesse personagem. Ele é o alerta. Ele é o sintoma ou a própria doença de uma civilização cada vez mais doentia. Já Franck é o retrato de uma sexualidade cada vez mais sem rosto, exemplarmente mostrado na metonímica cena final do filme.
Sabe, querida Frances, eu também, viu... Confesso que me identifico com com aquilo que parece ser errado... mas que no fundo não é... é só uma maneira diferente de ser, de estar, ou de fazer...
Gostaria de dizer também que o filme sobre você, sua vida, seus amigos e (im)possíveis amores me tocou muitíssimo. Eu assisti-o com um sorriso nos lábios e alguma lágrima no olhar. Seu filme é sincero. Meio errático. Assim como você. Mas muito belo em sua naturalidade.
Sabe, gostaria de te falar outra coisa. Essa um pouco mais pessoal. Mas acho que você vai gostar. Você me lembrou um pouco a personagem Cabíria do filme do Fellini, você já assistiu? Com certeza acho que sim. A mesma doçura no olhar. A mesma busca. A mesma inquietação. Sim. Vocês são muito parecidas. Não. Não digo fisicamente. Mas, alma... sabe? Sei que você tá me entendendo.
Também gostaria de te falar que um dia as coisas ficaram melhores ou diferentes. Mas não sei. Não posso garantir. As pessoas hoje estão tão estranhas. Até parece que gente como nós estão mesmo fadadas ao fracasso. Sim. Os chamados “losers”. Kkkkkkkkkk ... Aposto que você já ouviu essa expressão. Pois é. Mas me pego lembrando do poema de Álvaro de Campos e me questiono quem é o que nessa sociedade tão mentirosa:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
(...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Também queria te dizer que um dia vai aparecer um alguém daquele jeito naquele momento especial que você tanto quer, mas também não sei... as pessoas de uma maneira geral só estão conseguindo amar os seus próprios espelhos e suas próprias fotos no facebook ou no instagram... então não ache estranho se você se ver sozinha no mundo. Sei que você é sensível e saberá inventar um outro mundo pra ti... Por isso, saia correndo, dançando pelas ruas de Nova York sem nenhuma vergonha dessa gente careta e covarde que vai ficar te olhando com cara de “ela é louca”. Ligue o foda-se e dance, corra, viva. A vida é mais urgente, minha querida Frances... Já experimentou dançar ao som de "Modern Love", de David Bowie? É uma delícia... Tá eu sei, sua boba. Você já fez isso. Tava só brincando. Eu já dancei no meio da chuva com um monte de modelos lindos me olhando dentro de uma van... e vários deles gravaram vídeos... hahahaha
Fico por aqui. Não sem antes te desejar todas as melhores coisas e vibrações desse mundo. Te amo,
Começo esse texto dizendo que essa crítica foi escrita após assistir o filme pela segunda vez. Confesso que se tivesse escrito o texto quando o assisti pela primeira vez o tom seria bem outro.
Clarice Lispector nas primeiras páginas do livro “Um Sopro de Vida” escreve:
“Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.”
Esse parece ser o sentimento do protagonista do filme “Questão de Tempo” do diretor e roteirista Richard Curtis. Tim é estranho. Alto demais. Ruivo demais. Corte de cabelo errado. É aquela pessoa que é feliz na hora errada e infeliz quando todos dançam (ou se beijam). Ele está à margem. Sua irmã também não é lá muito normal. Seu tio é um ser perdido no tempo e espaço. Sua mãe é fria demais. Sua família é meio toda estranha. Menos seu pai. Que parece possuir o seu próprio tempo. Viver a sua própria vida sem se importar muito com as coisas. Tudo muda no dia que Tim é informado por seu pai que os homens daquela família possuem um poder. Eles podem viajar no tempo. Quer dizer, só para o passado. E alterar o rumo da sua própria história, só bastando ir para um lugar escuro e imaginar o tempo e espaço onde gostaria de estar. Tim não acredita muito. Mas faz o teste. E dá certo. E o filme começa.
A grande sacada inicial é que o diretor não perde tempo tentando convencer o espectador a entrar na brincadeira. A coisa é assim e se aceita ou não aquela realidade fantástica. O bom cinema é assim. E pronto. Sem chorumelas. Por favor.
Tim testa seus poderes e vê que a coisa dá certo mesmo. E começa a usar quase que cotidianamente. Até perceber que mesmo esse poder não fará uma pessoa te amar. Primeiro baque. E agora? Numa sociedade onde todos parecem ter um par e serem felizes para sempre, Tim só quer encontrar uma namorada. Nunca se deve esquecer que relacionamentos na nossa sociedade são como investimentos. Tim não pensa assim. Ele quer amar. Mas quem? Ele próprio não se ama, não se valoriza. Difícil equação. Certo dia, no escuro, Tim encontra o amor da sua vida. Sim. Na mais completa escuridão, ele encontra a garota de sua vida. Ali no escuro, ele pode ser quem é ele, sem a concorrência desleal da visão. Fora da caverna platônica, a coisa é mais complexa. Ele pega o telefone da amada, mas perde-o, por tentar ajudar um amigo e o filme vira uma comédia romântica quase banal, mas bem fofa. Tim procura Mary com as poucas informações que tem sobre ela: é fã da modelo Kate Moss. Lógico que ele acaba encontrando-a, mas ela não o conhece, porque como escolheu ajudar o amigo, ele não foi ao lugar em que teria encontrado-a. E agora? Baque Dois.
Tim então fazendo uso do seu poder, transforma-se num homem “perfeito” para Mary. Ele diz as coisas que ela quer ouvir. Faz as coisas do jeitinho que ela gosta. Torna-se outro. E com isso faz-se amado. Sim. Torna-se o namorado de Mary. O sociólogo Zigmunt Bauman em seu livro “Amor Líquido” é certeiro nesse ponto. Ele diz: “para termos amor-próprio, precisamos ser amado (...) O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. (...) Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos.”
Daí que Tim passa a se amar através do amor de Mary. Coisa louca e mostrada de maneira lúdica no filme. Mas algo grita por detrás daquelas cenas: “o amor é uma invenção, galera! O AMOR É UMA INVENÇÃO, GALERA! NÃO SE ENGANEM.” Mas perai... e quem é Mary? A garota pela qual Tim se apaixona? Pouco sabemos. Taí outra grande sacada da direção. Mary é anulada em sua singularidade pelo amor de Tim. Esse sentimento apaga o seu rastro. Ela desaparece. E surge outra coisa: o amor de Tim. Isso tudo o filme mostra de maneira bonitinha, fofinha, mas isso está lá. Gritando. Quem tiver olhos que veja. Eis a sedução.
“A sedução também é mais falsa do que o falso, pois ela usa signos que já são imitações, para fazê-los perderem o sentido – ela engana os signos e os homens. Quem ainda não perdeu o sentido com uma palavra ou um olhar, não sabe o que é essa perdição, abandonar-se à ilusão total dos sinais, à influência imediata das aparências, ou seja, ir além do falso, no abismo absoluto do artifício.” (Jean Baudrillard no livro “As estratégias fatais”).
Não é isso que fazemos o tempo todo? Não é nisso que caímos o tempo todo? No fundo, não queremos o amor, queremos o seu espetáculo. Fomos acostumados assim. Só pra citar Baudrillard novamente: “Existe algo mais forte do que a paixão: a ilusão”. Pronto. Pá na cara de todo mundo.
O mais genial de todo o filme é que ele se apresenta em camadas e tudo transcorre de maneira leve, quase cômica, mas a crítica está lá. Gritando. Berrando. De repente, tudo muda. E o filme ganha em densidade quando Tim é confrontado em seu poder. Quando ele se vê diante de uma decisão ética que pode realmente alterar o rumo de sua vida e de sua família. Aqui o bicho pega e Tim mostra que dificilmente abrirá mão daquela ilusão que criou pra si mesmo. A conta chega e quem irá pagá-la? Na parte final do filme tudo parece desandar, mas Tim opta sempre por preservar a história que criou para si mesmo. Sobrevivência? Amor? Ilusão? Ética? Apego? Questões que reverberam fundo no espectador. Como se ajustar a dança dos pratos que é a vida? O que escolher? Abrir mão de tudo? Mas em favor do quê? Pra quê? Pensar no outro ou em si mesmo? Complicado.
“Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna.”
Daí que Lispector dá a chave para o entendimento final do filme. Sim. Somos Sísifos hiper contemporâneos e nossa única função é carregar pedras até o cume da montanha e quando chegamos lá, ela rola e cai novamente lá embaixo e ai, subimos de novo, e ela cai de novo e assim sucessivamente... A nossa vida é essa pedra. Nossa obrigação nessa vida é criar algum significado nesse trajeto de subir e descer pedras. Esse é o aprendizado de Tim. Esse deve ser o nosso aprendizado.
O Mais genial do filme todo é isso. Apesar de ser cinema. Apesar de ser falso. Apesar de ser ilusão. Ele ainda nos faz acreditar em tudo. Exatamente tudo. Na historinha toda. E nos faz chorar. Questionar valores. E tudo o mais.
"Pasuggun" (BLEAK NIGHT) não é um filme convencional. Muito menos é um filme cabeça. Mas algo ali torna-o complexo. O diretor não explica nada. Os personagens mais complicam que qualquer outra coisa. Alcançamos a trama meio aos solavancos. E quando achamos que estamos entendendo alguma coisa voltamos vários casas ou ao início mesmo.
A trama mostra a relação de amizade entre alguns meninos num colégio. Eles brincam. Brigam. Disputam. Fumam. Flertam com as garotas. Tudo absolutamente normal. Corriqueiro. Igual a milhares de outros adolescentes pelo mundo. Mas algo ali é bem diferente. O quê? Ficamos meio sem saber.
A sinopse entrega algumas pistas, mas tudo é tão sutil que é irrelevante saber ou não saber alguma coisa. Ao que parece, um dos garotos da turma cometeu suicídio. O pai não compreende a motivação do filho e tenta buscar uma resposta conversando com cada amigo individualmente. Essa parecer ser a linha mestra do filme. Digo parece porque o diretor Sung-Hyun Yoon não faz nenhuma concessão ao óbvio. E o trabalho de edição é uma coisa impressionante. Simplesmente presente e passado ficam embaralhados no excelente trabalho de edição do filme. O que reverbera no espectador como o sentimento mais profundo de perdição.
As últimas sequências em que meio que as coisas vão fazendo um certo sentido (digo meio, porque tudo aqui depende de você, o filme é autônomo e não te trata como uma criança ingênua assistindo "teletubbies") são dignas de um cinéfilo entrar em êxtase, tamanho o grau de perfeição atingida por todos os elementos que compõe um filme: trilha, iluminação, atuação, direção, roteiro. Tudo funciona. E é impossível não derramar algumas lágrimas diante de tamanha beleza e ou diante do passado que parece futuro ou do futuro que parece um passado tão distante.
“A vida é só um vulto, um pobre ator, que se pavoneia e choraminga num momento, sobre o palco, e depois não é mais ouvido. É uma fábula, contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada“.
Esse trecho retirado da peça Macbeth, de William Shakespeare poderia muito bem ser usado como release do filme “Only God Forgives” (Só Deus Perdoa). Depois do aclamado “Drive”, o diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn volta com um filme que guarda muitas semelhanças e ao mesmo tempo, não tem nada a ver com sua obra anterior. As semelhanças são quase todas estéticas. E são muitas. Mas as diferenças também são. O que acaba provocando certo desconforto em que assiste. Conhecemos aquele estilo, aquele modo de filmar, mas alguma coisa não se encaixa. Daí, que o filme adquire um ar de pesadelo angustiante. A trama é simples. É uma história de vingança. Mas sem mocinhos e bandidos. Não. Todos são dúbios. O personagem de Ryan Gosling até poderia se encaixar no perfil de mocinho, mas sua apatia e silêncio incomodam demais para que o espectador compre essa ideia. (E, me desculpe quem não gostou, mas Ryan Gosling mais uma vez está fantástico). O espectador é jogado no meio da trama. Não há contextualização. A história já está em andamento quando o filme começa e isso aumenta a sensação de perdição do espectador. Não que isso seja ruim. Pelo contrário. Mas pra quem esperava um novo “Drive”, esse filme certamente será uma decepção. Há pouquíssimos diálogos e muito sangue, mortes, abusos de menores, prostituição, agressões. Mas Nicolas não é nem um pouco vulgar. Filma tudo isso com um rigor estético assombroso. E mesmo assim, não cai num estetização da violência.
Não sei. Pode ser que eu esteja equivocado, mas “Only God Forgives” é uma meditação sobre a violência. Onde ela nasce? Onde ela terminará? Impossível mensurar. O rastro de sangue contamina toda a sociedade e o dinheiro e a honra são as nossas moedas de troca. Até mesmo o afeto é mostrado de maneira quase “pervertida”. Mas ainda assim, a obra não psicologiza os personagens. E muito menos, possui um caráter moralizante. Ou edificante. Não. Não mesmo.
“Está na hora de conhecer o Diabo” diz um dos personagens logo no início da trama. Talvez a chave para o entendimento do filme esteja aí.
Difícil escrever sobre um documentário como "Bully" do diretor Lee Hirsch. Parece que qualquer coisa que seja escrita cairá no clichê. E é quase impossível escrever sobre o tema e não cair no clichê. Pois bem. "Bully" é documentário sobre crianças que sofrem violência física e psicológica praticadas (na maioria das vezes) por outras crianças. Algumas delas não aguentam a pressão e se suicidam. Algumas delas não aguentam a pressão e querem revidar a altura, num aprendizado nefasto de que devem se defender sozinhas. Algumas delas imbuídas de um grande espírito de rebeldia querem fazer a diferença. E os pais? E os professores? E as autoridades policiais? O documentário não evita o mundo adulto e explicita o grande silêncio que há sobre o assunto. Parece que se não falamos sobre algo, esse algo não existe. Pura hipocrisia. E sim, habitamos um mundo extremamente hipócrita. O diretor com sua câmera (que ora se esconde e ora invade) parece querer desvelar algo que nem ele mesmo sabe o que é. Ninguém sabe. Mas, o que leva alguém a praticar um ato de violência física e psicológica de maneira recorrente com o seu semelhante? O que ocasionou esse verdadeiro "boom" sobre o assunto? Antes ele não existia? Sua incidência era menor? A crueldade era mais sutil? Enfim, o que mudou?
Longe de responder às essas perguntas, o diretor nos provoca, questiona, inquieta e emociona. Sim. A resposta está em nós. Nós que somos a sociedade. O fato (palpável) é que nos criamos esse mecanismo. Humano, demasiado humano. O medo, a carência, a necessidade de aparecer e sobretudo o processo de coisificação da humanidade desembocam nesse comportamento. Somos filhos do medo. Nossos pais nos educam baseados tão somente na ideia do medo. E assim crescemos. Sem qualquer escapatória que não seja apenas uma luta interna e individual para compreender isso em nós. E na manutenção desse medo temos uma aliada forte; a religião. Último refúgio dos medrosos de plantão. Que negam a vida em nome de uma suposta eternidade. Que em nome de Deus impingem nos demais seu moralismo cheio de ódio a alteridade. Não. O inferno já não são os outros e sim, o mesmo. "Todo o espectro da alteridade negada ressuscita como processo autodestruidor." escreveu o filósofo francês Jean Baudrillard em seu livro " A transparência do mal".
Estamos num processo de incapacidade de lidar conosco mesmo e também de enfrentar a pluralidade de ideias, pensamentos e humanidades e isso faz com que o outro seja visto como meu oponente, meu adversário, meu inimigo. Como algo pode florescer no meio dessa educação que recebemos de nossos pais, que por sua vez, receberam de seus pais e assim por diante? Como romper com tudo isso? Por onde começar? O documentário explicita o único caminho possível; o de uma tomada radical de consciência individual e da alteridade. Tudo começa com um. Tudo afeta o outro. Não há outra saída.
"Onde a troca é impossível, há o terror." Baudrillard toca na ferida. Esse é o ponto. Somos criados para isso. A vivência em sociedade cada vez mais afirma esse comportamento/pensamento. As relações entre as pessoas se tornaram impossíveis. O outro só é interessante para a satisfação sempre momentânea do meu ego. Tornamo-nos coisas. E coisas podem ser jogadas fora, descartadas sempre que não mais satisfazerem minhas necessidades e meus desejos. O ponto é esse. Não adianta exigir mudanças nas leis. Não adianta uma reforma aqui, outra acolá. Sem uma real mudança na sociedade em que vivemos tudo isso se mostrará absolutamente improfícuo. Sem a tomada de consciência que é sempre individual tudo permanecerá como está e só piorará com o tempo. E, sobretudo, aceitar o fato inexorável de que nunca estamos sozinhos, que o outro nos habita, nos afeta o tempo todo. Não esquecer que nós somos o outro, a sociedade. E finalizando com Baudrillard, não esquecer que "o que predomina não é o regime da diferença e da indiferenciação, é a incompreensibilidade eterna, a estranheza irredutível das culturas, dos costumes, dos rostos e das linguagens."
Vi "Holy Motors" novamente. E mais uma vez o filme me provocou inúmeras interpretações. E mais uma vez, eu não consigo colocá-las em ordem. O fato é que o filme é pura provocação. Pura revolta. Puro amor. É um filme puro. Apesar de sua intensa sujeira. É um filme humano. Sobre humanos. Sobre o erro. Sobre a tentativa de ser. Sobre o desespero de não ser. Sobre a necessidade de se continuar.
"– O que faz você continuar? – A beleza do gesto."
É isso. Ou deveria ser isso. Só isso.
No entanto, o filme é muito mais que isso. Mas, eu estou cansado. O filme provocou um debate intenso e acalorado entre meus amigos. Uns dormiram. Outros ficaram acordados. De olhos bem abertos. E vários nós na cabeça. Literalmente. E eu não consigo esquecer a Kylie Minogue cantando:
♫ Quem éramos nós quando éramos quem éramos? Então, quem seríamos se tivéssemos sido outros? Não há mais tempo para recomeçar”♫
Ai ai ai... (Suspiro)
O fato palpável e inequívoco é que nosso castigo é continuarmos a ser quem somos. E quem somos? Somos como Sísifo saídos de um tal mito antigo. Somos como a filha que mente. E por quê? Porque, a mentira deixa todos mais felizes. Simples assim, não? Habitamos um mundo mentiroso. Relações mentirosas. Mentimos para nós mesmos e para os outros numa tentativa desesperada de alguma verdade, de uma possível beleza. Onde encontrá-las a não ser em nós mesmos? Já que tanto a beleza e a verdade estão nos olhos de quem vê, na boca de quem fala e no ouvido de quem escuta, não é assim?
Ao final, "Holy Motors" é uma ode ao cinema, ao ator, ao teatro, à arte ... um apelo apaixonado e desesperado aos nossos olhos, ouvidos e bocas para não desistirmos de nós mesmos, da beleza e da verdade. É um filme que não vem para propor mudanças, mas para suscitar uma compreensão disso tudo.
Estar vencido. Estar lúcido. Estar perplexo.
Impossível falar desse filme e não lembrar do poema "Tabacaria" do Álvaro de Campos (heterônimo do Fernando Pessoa).
"Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime."
O tempo. Sempre o tempo. O humano. Sempre o humano.
É da correlação entre esses dois temas que sempre conversamos. Neles estão contidos toda a humanidade. Não. Não somos apenas fruto de nossa época. Não. Somos mais. Somos além. E também somos antes. Antes do quê?
Antes do amanhecer. Antes do por do sol. Antes da meia noite.
Sim. Sempre antes. Na verdade, a trilogia sempre jogou na nossa cara tudo isso. Estava tudo ali. Explícito. Nas conversas. Nos olhares. Nas indecisões. Nas brigas. Em tudo reverberava a questão temporal e de personalidade. Tudo é contra. Tudo está sempre contra. Sempre. E é uma luta. Sempre. Construir algo é sempre uma guerra. Prazer e Dor. Quase sempre. Alguma pitada de dúvida também. Não fugimos muito disso. Não conseguimos. O tempo devora tudo. Nos consome. E raramente temos tempo pra gente. Nossas personalidades moldadas por anos e anos de fracasso emocional desembocam sempre numa solidão a dois, a três, a quatro. Não compreendemos nem a nós mesmo, quanto mais um outro... tão ou mais complicado que nós ... Alguém tem que ceder. Sim. Sempre. Alguém tem que ceder para que algo cresça. Sem isso, estagnamos em nós mesmos. É um acordo. Tácito. Mas ainda um acordo. Sempre foi assim. Sempre será? Não sabemos. Não há outra alternativa a não ser pagar o preço. Escolher é sempre isso. Perder. Daí que a vida dos humanos é sempre uma perda. Mas, também um ganho. Depende do ponto de vista. Ou da aposta correta. Como apostar a ficha corretamente e ganhar o grande prêmio da felicidade eterna? Resposta: Tentando. Errando. Indo. Só existe essa possibilidade. E é claro que a frustração uma hora ou outra virá com seu sussurro infernal nos dizendo: "E se você tivesse escolhido outro cara, outra coisa, outro emprego, outro amigo". E aí, o que acontece? MERDA. PANE. CHORO. RANGER DE DENTES.
E se toda minha vida foi um erro, um equivoco, um engodo? E se...
Pensou. Perdeu.
Não é assim?
O fato é que nunca teremos certezas. De nada. Nadinha.
Somos uns perdidos. Egoístas. Histéricos. Inseguros. Carentes. Culpados. Mas ainda assim tentamos. Queremos acreditar. Em quê? Não importa muito. Queremos. E é esse querer por algo que não sabemos bem o que é (mistura dos contos de fadas, dos que nossos pais nos disseram, das novelas, dos filmes, das músicas românticas) que nos move.
Da máquina que nos move sabemos pouquíssimo. Da engrenagem sabemos um pouquinho mais. Mas ainda assim é muito pouco. Só o necessário para conviver em sociedade. Um tantinho de nada. Que nos agarramos feitos doidos. E o mais engraçado (ou contraditório) disso tudo é que acreditamos que sabemos. Acreditamos que estamos no controle. Acreditamos que amamos.
No fundo é essa necessidade de acreditar que nos torna tão humanos.
No fundo só vivemos mesmo no tempo anterior a algo ou alguma coisa.
Vivemos de lembranças. Vivemos de expectativas. E só.
No fundo, antes de morrer, nós vivemos.
E é isso.
No fundo, toda a humanidade de todos os tempos vivem em Jesse e Celine.
Sim. A Verdade é só uma questão de ponto de vista. Não. Ninguém sabe tudo sobre uma outra pessoa. Tudo são apenas versões de um mesmo fato.
O filme holandês “Onder Us” do diretor Marco Van Geffen explicita essas máximas ao extremo chegando até mesmo a confundir o próprio espectador do que seria a realidade dos fatos. Sem fazer nenhum sensacionalismo do tema, o diretor está mais interessado na alienação sofrida por aquele que detém (ou acredita deter) a verdade sobre um fato que pode alterar a rotina de uma cidade. No caso, a personagem principal Ewa passa de excelente (tímida e calada) babá para uma garota inconsequente e aparentemente louca. Por quê? Em grande parte do tempo, nem os personagens (e nem o espectador) sabem direito o porquê. Ao longo do filme, versões serão dadas e a "verdade" parece aparecer. Mas só parece. Não esquecer que ela é somente um ponto de vista. Alguns estupros estão ocorrendo na cidade e Ewa acha que sabe quem é o suposto criminoso sexual. Mas como ela tem certeza? Por que ela não faz nada com essa informação? São perguntas que ficam no ar.
Divididos em três atos que contam segundo perspectivas de personagens diferente um determinado período de tempo, "Onder Ons" torna-se angustiante em meio ao tédio da rotina de uma babá, seu bebê, sua amiga, sua patroa e seu patrão e seu desespero, sua solidão.
"Elegia ao Suicídio Duplo", filme do diretor japonês Toru Kamei não oferece perguntas, nem muito menos repostas. Apenas é. Bastando-se nessa afirmação. Filme em camadas que vai apresentando os personagens e seus dramas de maneira bastante curiosa. Não. Nada é entregue. Tudo é sutileza. Que pode ou não ser percebida pelos olhos humanos. A palavra não basta. A imagem apesar de linda também não. Nada, nenhuma palavra, nenhum gesto, ninguém pode tornar palpável a solidão e dor humana. Simplesmente não existem respostas, porque não deveria existir perguntas. O diretor consciente dessa premissa nos apresenta um filme de uma alta complexidade, porém absolutamente simples. Tudo é apenas ponto de vistas. Tudo é apenas paralaxe. Apenas possibilidades de uma história. Fragmentos de algo que poderia ter sido. Aqui o que importa não é o que é comunicado pela fala, mas aquilo que é silenciado. O que importa é o erro. Porque só o erro é humano. É o erro que torna aqueles personagens todos tão belos. Belos em sua humanidade e porque não sede de vida? Como já disse, depende apenas da maneira como se olha...
Qual o lugar da verdade numa sociedade toda ela mentirosa? Como amar alguém sobre o qual se sabe tão pouco e mesmo assim não se pode confiar plenamente? Como habitar um espaço/tempo indefinido onde não se é mais criança e ainda não se é adulto? Como suportar a morte de alguém muito próximo?
São esses alguns dos temas principais do filme búlgaro "AVÉ" do diretor Konstantin Bojanov. Não há respostas fáceis. Ou talvez não haja mesmo respostas. Talvez só exista a vontade de ir... Mas ir para onde? Do ponto A ao ponto B. Só? Sim. Só. E talvez a grande aventura e beleza humana seja encontrar uma possível felicidade nesse trajeto. Sim. "AVÉ" é um filme em trânsito. Um road-movie juvenil. Um rito de passagem para uma suposta vida adulta.
O filme é extremamente simples e honesto em sua proposta e talvez resida aí sua beleza. O filme ao contrário da protagonista não tenta ser aquilo que não é. E é desse choque que brota algo ao mesmo tempo terno e assustador. Existe um lugar para a verdade? Ou melhor, o que é a verdade? E a mentira? Como condená-la se é justamente ela quem leva a personagem para mais adiante? Mentira ou fantasia? Existe uma diferença? Talvez não existam diferenças entre verdade, mentira, fantasia. Talvez sejamos condenados a ser sempre nós mesmos e isso às vezes cansa. Somos Sísifos hiper - contemporâneos. E talvez a fantasia seja uma possível salvação em meio ao tédio de existir. Talvez, a fantasia livre a menina de se matar ou abusar das drogas ou se prostituir. Talvez seus pequenos delitos salvem-na do grande delito de continuar vivendo. É um filme de talvez, aberturas, de possibilidades. É isso.
"Beautiful Boy" do diretor Shawn Ku é um doloroso acerto de contas familiar.
Como sobreviver a uma tragédia? Como encarar-se no espelho e reconhecer-se como pais de um garoto que assassina alguns colegas de escola e depois comete suicídio? Como recomeçar? Por onde recomeçar?
Porém, sempre tem um antes. E esse antes é mostrado através da preocupação do pai somente com a parte financeira da criação do filho: está faltando dinheiro, filho? E o carro? Precisa trocar? Já a mãe força um união que não existe de verdade. Ela acredita nessa família fake? Ou é uma hipócrita?
No passado eles já formaram uma família feliz... mas algo irá mudar... A rotina será alterada pela tragédia. Onde não será mais possível reconhecer o filho. Onde não será mais possível nem reconhecer-se a si próprios. O importante agora é encontrar refúgios.
"Às vezes pessoas boas fazem coisas ruins."
No fundo, "Beautiful Boy" é um filme sobre imagens. Sobre aquilo que acreditamos enxergar e aquilo que realmente enxergamos. Quando tudo começou a degringolar? Onde encaixar as lembranças? Como evitar a culpa de ter gerado aquilo que a mídia e a sociedade em geral tratam como um "monstro"? O que poderia ter sido dito que teria alterado tudo?
O fato é que corresponder às expectativas familiares sempre foi um fardo para o garoto Sam. A dinâmica familiar gravitando sempre em torno de castigos versus presentes mina qualquer possibilidade de encontro real. Tudo é mentiroso. Tudo estava fadado ao trágico. Maktub! Sim.
"Você só deu a ele um teto."
O filme em nenhum momento foca no crime. Nenhuma cena sobre isso é mostrada. Nada. O foco aqui é outro. São os pais do assassino que importa ao roteiro. E nesse ponto o filme se aproxima do livro/filme "Precisamos falar sobre o Kevin" onde a protagonista Eva investiga até as últimas consequências suas possíveis culpas no crime cometido pelo filho Kevin. Não. Não é uma obra fácil. Acertar as contas com o passado é sempre doloroso e é preciso coragem para fazê-lo. E isso os personagens de "Beautiful Boy" vão ganhando pouco a pouca a confiança necessária para, enfim, se depararem com o imponderável de si mesmos.
O poeta. O Gênio. O Homem. O Filho. O Homossexual. O Desejo. O Sexo. A Música. Os Garotos. Os Pelos. A Mãe. Relações. Relações Humanas. Relações de Interesse. A Solidão. O Artista. A Posteridade. A Morte.
Acabei de assistir um filme magnífico chamado "Nerolio - Sputeró Su Mio Padre" dirigido por Aurelio Grimaldi sobre a vida de Pier Paolo Pasolini. O filme, praticamente um documentário filmado, reconta os últimos dias do genial cineasta. É um filme duro, selvagem, exala uma humanidade dolorida. Ainda estou sem saber o que escrever direito. O filme me tocou profundamente. É um filme sobre um artista. Um filme sobre a humanidade de um artista. Belíssimo! Recomendo.
"Eu não tinha medo de você, porque o artista é carne, sexo, ruas e sangue."
"Você entende? Pode entender que não é só sexo que eu precisava, mas de calor, vida, sorrisos. Somos todos famintos de amor. E os artista são os mais famintos de todos."
Nó na garganta. Olhos Marejados. Lembranças auditivas.
"Perfect Sense" do diretor David Mackenzie é um dos melhores filmes apocalípticos que eu já vi (talvez seja o melhor). Não sei. Eu sinto. O filme é absolutamente impactante. Quando começa você não dá muito crédito. Mas de repente. Pronto. Eis a epifania.
O filme começa retratando uma situação aparentemente pontual. Algumas pessoas estão perdendo o olfato. Não conseguem mais sentir cheiro nenhum. De repente, o que parecia apenas um vírus ou algo do gênero ganha contornos outros quando todos perdem suas capacidades olfativas. Desespero. Angústia. Medo. O que está acontecendo? Como reverter tudo isso? Qual a saída?
Sim. É um filme apocalíptico. Mas não só. Esqueça os clichês do filme desse gênero. "Perfect Sense" vai além. Não focando meramente na tragédia em si, mas em todo o entorno. O filme vai ganhando corpo pelas beiradas. E, sobretudo, pela ótima interpretação do casal protagonista, vivido por Eva Green e Ewan McGregor. Eles vivem Susan e Michael. Conhecem-se. Transam. E parecem não querer levar a relação adiante. Mas algo parece os unir. O que seria esse algo?
"Perfect Sense" também não é um filme de suspense. Não há surpresas. E é possível saber de antemão tudo o que irá se suceder. O segredo aqui não é saber o que irá acontecer. Mas como? E aí nesse ponto que o filme se engrandece. Pouco a pouco, as pessoas vão perdendo outros sentidos e a maneira repetitiva como cada perda acontece é o mais interessante de todo o filme.
O Caos passa a reinar. E o animalesco contido em cada humano vem à tona. Acessos de raiva, ira, agressividade, fome repentina, isolamento, solidão. É um filme de ausências. Sobre perdas. Mas que exala uma humanidade assustadora. O confronto não é mais com o outro. Mas, consigo mesmo. Como lidar com a falibilidade do meu próprio corpo?
Baudrillard no excelente livro "A Transparência do Mal" vaticina:
"Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo."
Como habitar um corpo despido de lembranças? Como sobreviver ao desaparecimento daquilo que se convencionou chamar de "eu"? Quem sou eu? Ou pior, o que sou eu? O que restou de mim? A única coisa que resta é esperar. Esperar a próxima perda. Resignadamente. No fundo, sempre estamos à espera. Sempre. E sempre estaremos. É que não nos damos conta. O caos só traz toda essa angústia para o mundo exterior. E o pior, não existe culpados. A própria humanidade é a Culpa. Culpa do quê? Por quê? Pra quê? Não há explicações. Há teorias. Mas nenhuma é comprovada. Não há saída. Ou há? Sim. Há. Sempre houve. Sempre haverá. Pode até parecer clichê. Mas juro que não é. A única saída é o amor.
Impossível esquecer de Nietzsche e sua frase profética:
“É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
"Bestiaire", documentário do diretor Denis Côté pode até parecer num primeiro momento que é sobre animais. Tipo aqueles do Discovery, saca? Mas não. Não é sobre os animais. Ou não só. É mais sobre os homens. Sobre a nossa necessidade de domínio, de controle, de entretenimento e até mesmo de uma possível eternidade. É sobre cinema. Sobre enquadramentos. Sobre escolhas. Um filme mantra. Silencioso. Sem música. Com pouquíssima fala humana. Sobre mugidos, gemidos. Sobre contemplação. Sobre olhar. Muitos temas pululam ao observar aqueles animais. Cinema experiência. Recomendo.
As diferenças. As dificuldades. O mundo. Duas pessoas.
O que move-as para que fiquem juntas?
(Suspiro) Não sei. Acho que ninguém no fundo sabe. É algo. Impossível responder racionalmente. O amor não é nada racional. Apenas é. E cabe aceitá-lo ou lutar contra.
O filme "The Broken Circle Breakdown" trata exatamente desses temas. O filme é uma tragédia. Retrata humanos defrontados com o fim. Só que antes do fim tem o começo. E tem o meio. E tem a vida. Sim. Novamente criação, manutenção e destruição. As três forças vitais. Não é um filme fácil. Longe disso. Mas é um filme sobre nossa humanidade falhada. Sobre nossa impotência perante a morte. Do quê? De uma filha... do amor... ou de si mesmo. Nascemos. Vivemos. Morremos. E isso é um exercício diário. Mas não nos damos conta disso. E num belo dia defrontamo-nos com o imponderável. Tudo ia bem. E de repente... É. Pois é. Como lidar? Somos humanos almejando uma impossível eternidade. Também queremos ser Deus. Mas qual Deus? Tem tantos por aí. Até nisso temos que escolher. Perdidos no tempo e no espaço. Sem bússola. Sem norte. Sem nada. Mas podemos exercer nossa pequena divindade humanizada quando amamos. No amor somos Deus. Mas temos medo. Tanto medo. Olha a posse. Cuidado com a posse. A Posse é destrutiva. E aí, acontece que no mesmo instante em que começamos a amar. Também começamos a sentir medo. E aí, começamos a sofrer. E de certa forma, começamos a nos preparar para a perda. Já sabemos de antemão que perderemos. Já entramos em campo derrotados. Sim. Perderemos. O pai. A Mãe. O Filho. A Casa. O Amor de nossas vidas. Nada dura pra sempre, repetimos numa espécie de mantra acalentador. O que nos conforma é que todos os outros também perderão. Uns mais. Outros menos. O fato é que a tragédia chegará. Estamos todos condenados. O que fazer com isso?
"The Broken Circle Breakdown" nem tenta responder essas perguntas. Não. É um filme desesperado. Urgente. Um grito. Uma cabeçada na parede. Precisamos saber que há vida pulsante em nossos corpos. O filme é só sobre isso. Só.
Ontem assisti "Camille Claudel, 1915" do diretor Bruno Dumont. Obra incrível. Forte. Que exala uma humanidade perdida. Fria. Errática. Mas que mesmo assim ainda é bela. Juliette Binoche é Camille. Que atuação poderosa. Avassaladora. Minimalista. Ela domina o filme. Enche a tela. Transpira dor. Lucidez. Horror. E vontade de viver. É algo além do humano. Uma coisa linda mesmo. O filme todo é. Bruno Dumont faz uma obra em trânsito. A câmera apesar de se locomover lentamente e ter muitos takes estáticos, ela perscruta Camille. É cinema encarnado. Cru(el). Camille ama. Camille enlouquece. Seu amor a enlouquece. Mas seu amor salva-a. Ela é uma artista. Ela é humana. Apesar de tudo, lúcida. Consciente de sua situação. E da dos outros também. Isso dói. Incomoda. Camille é silenciada. Sua arte é silenciada. Por medo. Insegurança. De um outro artista, Rodin. Seu amante.
Como sobreviver a dor de ser traída pelo homem que você mais amou? Como continuar vivendo depois de ter sua arte e discurso calado? Como prosseguir sem o amparo do seus familiares?
"Camille Claudel, 1915" lida o tempo todo com essas questões. Cinema híbrido. Que mistura atores como Binoche com atores inexperientes como o que vive o irmão de Camille e outros que não são atores. Dumont filmou em um manicômio no sul da França e os "atores" que interpretam os pacientes são realmente portadores de demência, paranoia, Alzheimer... O deslocamento provocado pela presença inquietante desses seres é único. O resultado longe de ser um realismo barato lança um olhar terno e causador de um tremendo mal-estar. Impossível não lembrar da cena matadora em que Camille acompanha o ensaio de uma cena de "Don Juan" com os pacientes do manicômio. A cena começa e recomeça várias vezes. Os atores erram, pulam falas, avançam. O diretor enlouquece. Camille ri algumas vezes do que vê. Nós também rimos. De repente, a cena ganha contornos outros. Camille se vê em cena. Camille se reconhece na personagem seduzida por Don Juan. E chora. Um choro contido. E depois, se descontrola. E nós também choramos e nos descontrolamos. Não manipulados por nada, nem ninguém. Mas porque também nós nos reconhecemos naquela cena. Na cena da cena. Várias câmadas habitam o que vemos. Basta enxergar. É palpável. Tem outras mais. Algumas outras mais. Impossível ficar indiferente. Não dá. Camille também sou eu. Camille somos todos nós. Alguns são Rodin. Seduzem, enganam, são medrosos, não se entregam e vivem uma mentira. Habitar a verdade tem seu preço. E a cena final do filme mostra o quanto Camille estava consciente de tudo isso. Sem palavras. É maravilhoso!
Acabei de assistir "Upstream Color" do diretor Shane Carruth. Assistir é modo de dizer. Acho que o filme me assistiu na realidade. Minha cabeça dói. E eu sinto uma vontade abusrda de deitar e dormir. Não é meramente um filme. É algo absolutamente sinestésico. Uma mistura louca e original de gêneros e possibilidades. Pura "brisa". É necessário mergulhar na proposta. É uma experiência. De alguma maneira, somos capturados, drogados e perdemos tudos. Assim como a protagonista do filme. Ficamos sem referencial. Sem casa. Sem norte. Sem nada. Mas é preciso. Qualquer tentativa de classificá-lo em algum parâmetro é completamente equivocado. Quebra-cabeça enigmático. Só recebemos peças. Fragmentos. Pedaços de alguma história. Restos. O corpo contaminado. A mente dominada. A captura do som. A busca por respostas só traz mais e mais dúvidas. Onde se agarrar quando tudo o que vemos é novidade? Onde se agarrar quando tudo é importante e nada parece ter um significado maior a ser comunicado?
Tudo é.
Luz. Som. Palavra. Silêncio. Treva. Sangue.
Não jogue pérolas aos porcos.
Estamos perdidos. Assim como os personagens. Assim como o roteiro. Assim como na vida. Perdidos. Chafurdados como porcos na lama. Mas também podemos ser flor de lótus. É preciso atingir a superfície. Ir além. Meditar. Refletir. Na verdade, na verdade, "Upstream Color" é uma poderosa meditação sobre a condição humana. Sobre o vazio contemporâneo. Sobre nossa busca por respostas. Sobre nossa falibilidade. Sobre o amor.
Essa pergunta martelou minha cabeça nas duas vezes em que assisti “Lena” do diretor Christophe Van Rompaey. O filme conta a história de uma garota deslocada do mundo em que habita. Absolutamente solitária, apesar de ter mãe, uma amiga e trabalhar numa creche. Lena é gorda. Lena é sensível. Importa-se com os outros. É usada pelos outros meninos, que a procuram só quando querem sexo. Eles até transam com ela, mas não querem ser vistos ao lado dela. Sua mãe é uma mulher amarga que desconta toda sua frustração nela. Mãe opressora e carente. Uma vagina dentada. Lena é a mãe de sua mãe. Sua melhor amiga, apesar de bonita, é extremamente insegura e usa Lena para reafirmar sua felicidade encenada. Ela precisa provar que é feliz. Lena não tem essa necessidade. Até que um dia, Lena encontra o amor. Liberta-se disso tudo.
Estamos apenas no começo do filme. Confesso que raras vezes temi tanto pelo futuro de uma personagem de ficção quanto por Lena. O namorado dela é um garoto lindo, desencanado, que assume a relação sem medo e até convida-a para morar em sua casa. A casa dele é grande e ele mora só com o pai. A mãe já morreu faz muito tempo. O menino e o pai não conversam muito. Ambos são carentes de uma figura feminina em casa e Lena supre essa ausência. Lena transforma-se em mãe do namorado e mãe do pai do namorado. Mas não deixa de aproveitar a vida e seu namoro. Tudo vai bem demais. Será que o filme é de superação? Vamos acompanhar a trajetória bela de Lena, o entendimento de pai e filho, essas coisas? Medo. Medo. Muito medo. Nada de ruim pode acontecer com Lena. Ela não merece.
Com medo de que essa felicidade toda seja apenas passageira. Lena almeja algo eterno. E inveja a tatuagem conjunta que sua amiga e namorado fizeram. A tatuagem surge aqui como símbolo daquilo que não acaba nunca. Desejo simbólico para alguém acostumado a sempre perder aquilo que conquista, ou então, a não ter nada. Outro símbolo bastante pertinente no filme é o nome como afirmação de si mesmo. “Eu sou Lena”. Ou ainda “Eu me chamo Lena”. Essas frases serão ditas pela protagonista em momentos chaves. Uma, logo no início. Outra vez, no meio. E na última frase do filme. A diferença no modo como Lena profere as frases é sutil. Mas no subtexto, na entrelinha, quanta diferença! E isso tudo se deve ao trabalho extraordinário de Emma Levie, em seu primeiro trabalho no cinema. Aqui, ela apresenta um desempenho minimalista, interiozado, que se encaixa perfeitamente com a personagem. Desenvolvemos afeto, mas ela continua sendo um enigma para nós. Quem é Lena? O que ela pensa? Por que age de determinadas maneiras durante o filme?
A direção não entrega muita coisa. Vamos conhecendo a personagem pela ação. Por suas decisões éticas e morais tomadas diante dos fatos. Isso é o mais interessante. E o que nos deixa ligados ao filme. Gostaria muito de me alongar nesse texto sobre “Lena”. Mas não posso. Entregaria demais o que acontece. Afinal, “de que adianta saber de tudo?”
PS: Pesquisando sobre o filme na internet, descobri que o produtor do filme (Els Vandevorst) é o mesmo dos filmes “Dancer in the Dark” e “Dogville” do diretor Lars Von Trier. E entendi, o porquê de ter sentido tanta semelhança entre Lena, Selma e Grace. De alguma maneira, ela são irmãs.
Revi "Sleeping Beauty" hoje pela terceira vez. E pela terceira vez comprovo que Julia Leigh fez um filme póstumo. Daqui uns anos falaremos muito dele. Leigh foi extremamente transgressora nessa obra e fez o que poucos (ou ninguém) teve coragem de fazer AINDA com o cinema. Rompeu regras e fez algo próximo do que vem sendo testado no gênero pós-dramático, muito discutido no meio teatral. Não é um filme feito pra se apreciar no agora. Não. Deixem ele quietinho ai... O tempo fará justiça. Aguardem!
Pertubador. É o mínimo que se pode dizer do filme "Jagten" (A Caça") do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg. Lucas, personagem central do drama, é um homem pacato, trabalha numa creche, é adorado pelas crianças, sobretudo por Klara. Ela é uma linda garota, que vive vendo seus pais brigarem e acaba buscando em Lucas, um possível referencial paterno. Théo, pai de Klara é o melhor amigo de Lucas. Tudo vai bem, até que Klara ao perceber que Lucas não retribui seu amor da maneira que ela acha que ele deveria, inventa para a diretora da crechê que ele mostrou seu pênis para ela. Pronto. Alerta vermelho. A diretora fica desesperada. Chama um "profissional" responsável por tirar maiores informações da menina e conclui que o caso é de polícia. A cidade inteira fica sabendo e Lucas começa a ser investigado.
A genialidade do filme reside no fato do diretor não fazer um suspense banal com a história: Lucas cometeu ou não o tal assédio? Em nenhum momento, o diretor cai nesse clichê. No entanto, também não vitimiza Lucas e nem o transforma num mártir. Não há vitimas. Nem algozes. Todos reproduzem comportamentos. Estão acostumados. Não questionam. Deixam-se levar por um argumento de uma criança (que depois repetidamente diz que inventou a história) e julgam moralmente Lucas. O título do filme é perfeito. O caçador (Lucas e todos os outros homens do vilarejo caçam servos) vira a caça.
A sociedade cria os seus próprios monstros. E num processo todo psicanalítico faz sua transferência de culpa. É necessário ter um culpado. Um bode expiatório. E Lucas é o escolhido da vez. Resquícios de um povo cristão. Que adora um homem pregado numa cruz de madeira toda ensangüentado.
"Todos pecaram e destituídos estão da Glória de Deus".
As crianças não mentem. Repetem excessivamente os pais, a diretora, todos os moradores. Como para justificar a dúvida latente dentro deles: Como Lucas foi fazer uma coisa dessas? Logo ele? Mas não há espaço para dúvida. Se uma criança disse está dito. Ainda mais uma criança tão angelical quanto Klara. “Mas Jesus chamou a si as crianças e disse: ‘Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele". Em quem aquela comunidade vai acreditar? Numa criança ou num homem adulto que nem ao menos se defende? Não resta dúvida. Lucas é culpado. E é preciso que ele pague por sua culpa. O martírio começa. E dia após dia, ele é constantemente humilhado. Poucos acreditam em sua inocência. E ele se vê absolutamente sem saída. Ele é o alvo. E todos estão com suas armas empunhadas em sua direção. Não há saída.
Vinterberg constrói um filme duro, austero, gélido. E coloca os espectadores como cúmplices da mentira de Klara. Nós também crucificaríamos Lucas. Nós também exigiríamos sua cabeça. Numa sociedade toda ela dominada pelo medo. Onde o outro é constantemente visto como uma ameaça, Vinterberg toca o dedo na ferida. “Jugten” é um filme nevrálgico. Tenso. E absolutamente provocador. O diretor expõe em cena todos os mecanismos de dominação que a população está exposta. Não sobra pedra sobre pedra. Tudo que era felicidade desmorona. Não sobra nada. Nenhuma certeza. Nada. Mas, é preciso se agarrar em alguma coisa. Em qual mentira acreditar: Lucas é realmente um abusador ou aquela garotinha linda está mentindo?
Não é preciso nem ir muito longe. Todos se lembram do fatídico caso da Escola Base, onde alguns funcionários foram acusados de pedofilia. A mídia caiu matando. E a sociedade julgou antes da Justiça. Logo depois, se comprovou que a história era toda falaciosa. Como voltar atrás? Como desmentir o que antes era fato comprovado? Mesmo depois do desmentido é possível viver normalmente? É justamente aí que Vinterbeg insere seu filme. O final do filme é a resposta perfeita.
PS: As atuações de todo o elenco estão sensacionais. Destaco o trabalho minucioso do ator Mads Mikkelsen e da pequena Annika Wedderkopp, que demonstra uma maturidade absurda em cena. Eu não sei exatamente quais foram os métodos utilizados pela direção para alcançar os resultados mostrados no filme, independente disso, a atuação da garota é simplesmente monstruosa (em todos os sentidos).
Somos constantemente bombardeados com frases como essa proferida por uma das personagens do filme “To The Wonder” do diretor Terrence Malick. Somos levados a acreditar que somente encontrando nossa cara metade, a outra metade da laranja, a tampa de nossa panela, seremos pessoas plenas e felizes. Pura Balela. E a origem de enormes sofrimentos dos humanos. Somos uns abandonados. Sentimo-nos abandonados. Incompletos. Vazios. Quase que o tempo todo. O outro entra como um possível alento para cessar tudo isso. Sim. Um outro. Exatamente igual: Abandonado. Incompleto. Vazio. E o resultado de tudo isso: Mais e mais solidão. E cada vez menos amor. Sobretudo nessa nossa modernidade. Onde tudo é líquido. Rápido. Descartável. E nada é feito pra durar. Então, aparece a questão fatal:
Como o amor pode crescer em meio ao medo?
O nosso aprendizado amoroso é todo baseado no medo, sobretudo da solidão, na carência. E quando não é baseado nisso, temos aquele amor caridoso, que nada mais é que uma forma de se esconder. Olha o medo aí de novo. O amor em nossa sociedade é uma obrigação. Somos obrigados a amar os outros. Obrigados a amar nossa família. Somos obrigados até a amar Deus. Não somos livres. Até tentamos. Mas o fato é que não somos. Não corremos riscos. Não saímos da gaiola ideológica. Cobiçamos luxos. Queremos nos sentir seguros. E evitamos nos comprometer. Temos medo de ser quem somos. E afinal, o que somos?
Somos autores da obra. “To The Wonder” é difícil, fragmentado, poético, etéreo. Um filme individual. Aquilo que vemos é o que podemos ver. Sem tirar nem por. O personagem vivido pelo ator Bem Afleck é um personagem morno. Apático. Frio. É mais um joguete. Um legítimo homem contemporâneo. Perdido. Absolutamente perdido. Já a personagem da atriz Olga Kurylenko é quente. Passional. Entrega-se ao outro sem resistência. Mas falta-lhe amor próprio. “Escrevo na água, o que não me atrevo a dizer”. O padre vivido por Javier Bardem se perde numa caridade vazia. “Tudo o que vejo é destruição. Fracasso. Ruína”.
Os relacionamentos humanos mostrados em “To The Wonder” são meios para fugir de si mesmos. O tédio predomina. O medo domina. A carência grita. E o outro serve como diversão. Algumas cenas em “To The Wonder” se passam num parque de diversão. E ali se encontra a metáfora perfeita para o amor dos humanos: um sobe e desce frenético. Giramos e nos entorpecemos. Pra esquecer. Sobretudo de nós mesmos. De nossas dores. De nosso vazio.
O novo filme de Malick não traz um enredo claro. É preciso escavá-lo. Ir junto. Se permitir. Só assim o filme fará algum “sentido”. E que fique claro. Esse “sentido” será sempre individual. O filme é um exuberante quebra-cabeça. Recebemos várias peças e temos que ir montando aos poucos. Com cuidado. Para não se deixar cegar pela beleza das imagens. É preciso ir além das imagens. E ver o que elas escondem. Ou o que elas revelam. O filme é sobre amor. Sim. Conta histórias de amor. E dito assim pode até parecer uma história convencional. Fulano “ama” Fulana. Casam-se. Brigam. Separam-se. Fulano conhece outra Fulana. “Apaixonam-se”. E a primeira Fulana se ferra porque ainda amava o tal Fulano. Mas esqueça. O filme é bem mais que isso.
A real beleza de “To The Wonder” não reside na fotografia deslumbrante, nem na trilha sonora perfeita. Não. O que mais me impressiona no filme é a coragem do diretor de bancar um filme como esse. De esfregar na nossa cara, o quanto não somos livres, o quanto somos dependentes psicologicamente dos outros. Nosso ciúme, medo, ansiedade estão todinhos ali. O fato é que não amamos ninguém. Nem a nós mesmos. Não sabemos amar. O amor em nossa contemporaneidade é apenas troca. Comércio. Material para cinema, novela, música grudenta. Lucro. O amor, aquele que não espera nada em troca, só pode surgir na liberdade, na ausência do medo. Quando mergulhamos fundo na solidão. Quando a compreendemos. Quando já não mais temos medo dela. Quando nos tornamos solitários. Esse é o aprendizado da personagem de Olga Kurylenko. Esse é o tal Amor Pleno. Quando não há mais dependência de nada, nem ninguém.
“No momento em que tiverem no coração essa coisa extraordinária chamada amor e sentirem a profundidade, o prazer, o êxtase dele, descobrirão que para vocês o mundo se transforma”.
Com essa frase do pensador indiano Krishnamurti encerro meu texto sobre esse filme sensacional e urgente. Recomendo. Muito. Muito.
Temporário 12
4.3 590Confesso que fui assistir “Short Term 12” porque alguém do meu facebook tinha escrito que era um filme pra chorar. E eu adoro filmes assim. E então lá fui eu. A primeira meia hora do filme não estava “me pegando”. Não que o filme fosse ruim. Longe disso. Mas não tava entrando na onda dele. De repente, não mais do que de repente... O filme fica incrível. E que filme. Nossa! Tão simples e tão profundo. Toca em temas que vi pouquíssimos filmes tocar.
Grace e seu namorado Mason são cuidadores de crianças e adolescentes em situação de risco. Grace é uma personagem incrível. É doce, generosa, mas tem um pulso firme admirável. Consegue educar aqueles meninos e aquelas meninas com carinho, afeto e disciplina. O filme caminha de maneira absolutamente original. Grace é apresentada pela forma como lida com o mundo ao seu redor. Pouco ou quase nada sabemos sobre ela. Uma informação aqui (ela está grávida), outra ali (ela quer abortar) e assim vai. Ela não se mostra muito. Parece esconder algum segredo. Mas qual?
De repente, não mais do que de repente... Uma nova personagem chega e desestabiliza Grace. Quem é essa garota? Ela também esconde algo? Seria o mesmo que Grace? O fato é que ao se ver refletida na garota, Grace desaba. E é interessante acompanhar o desempenho excepcional da atriz Brie Larson. Ela simplesmente se desmancha aos nossos olhos. Mas sua força também reside aí. Foi Clarice Lispector quem escreveu que “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” ... Qual seria o defeito de Grace? Por que a certa altura, ela diz que nunca vai poder se casar com Mason? Por quê? Perguntas que o espectador se faz, mas com certo medo de achar que aquela resposta que ele está pensado é a versão correta dos fatos.
Grace até então vivera para os outros. Em função dos outros. Negando muita das vezes, o seu ódio, sua raiva e até mesmo seu amor. Grace só pode dar aquilo que nunca teve. Somente na ausência de tudo conhecemos essa dolorida personagem. Somente na ausência de tudo, podemos dar. Sem expectativa. Sem sofrimento. Mas a garota nova provoca Grace. Tudo aquilo que ela havia construído pra si mesma parece querer desabar.
O mais interessante de todo o filme é que cada criança, cada adolescente daquele abrigo é um pedacinho de Grace. Um pedacinho de Mason. Cada um carrega em si mesmo como um caracol, suas dores e possíveis fortalezas. “Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros.” Sim. Caio Fernando Abreu estava certo. Adentrar aqueles universos particulares não é tarefa fácil, mas Grace escolada na arte de se esconder sabe como acessar cada um. E isso é tão belo. É mostrado no filme de uma maneira tão sutil que de repente, não mais do que repente, você se vê derramando alguma lágrima sem nem ao mesmo se dar conta.
Sammy, Marcus, Luis também são pedacinhos escondidos de nossas profundas angústias. Cada história em particular faz com que reflitamos sobre os caminhos que cada um toma na vida. E é tão doloroso isso. Doloroso porque nos esfrega na cara uma verdade inequívoca: apenas cada um sabe de si mesmo. Num mundo onde é tão mais fácil, julgar, apontar o dedo e condenar, “Short Term 12” nos mostra o extremo oposto. E é um alívio. É libertador. Apesar de ser um filme denso, quando chega o seu fim não ficamos mal. Nem um pouco. Pelo contrário. É reconfortante perceber que cada um de nós pode sim fazer a diferença no mundo. Basta querer.
Ela
4.2 5,8K Assista AgoraTEM SPOILER!!!! SE VOCÊ NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
”Her” do diretor Spike Jonze apresenta um retrato devastador de nossa contemporaneidade. Ele nos apresenta o amor como mercadoria. Uma sociedade em que o produto é oferecido pronto para o consumo imediato. Sim. O capitalismo faz da necessidade de afeto uma chance de lucro.
Theodore, protagonista do filme é um legítimo homem contemporâneo. Ele se sente deslocado: Um mal-estar inexplicável. Um vazio diante das mudanças rápidas do mundo. Uma solidão absurda diante da sua ineficácia amorosa. Vive o sexo como imitação dos filmes pornôs. Até que...
... Sua necessidade de controle; Seu desespero por estar com alguém; Seu anseio por segurança provocado pela presença de um outro; Fazem com que ele adquira um programa de computador que promete atender todas as necessidades do proprietário. E ai entra em cena: Samantha. Que é a voz do sistema operacional. Theodore apaixona-se pela voz. A arte do encontro é realçada pelo prazer inicial.
O que Jonze parece querer nos apresentar com seu filme é que a vida é invenção. Só vale a pena como construção diária em direção ao autoconhecimento e a felicidade. Mas como alcançar esse estágio se somos socialmente impelidos para fugir de nós mesmos, de nossa solidão, de nossas angústias. As redes sociais, os aplicativos de celulares, os medicamentos antidepressivos, a indústria do entretenimento e dos filmes pornôs cumprem o seu papel de deixar o homem contemporâneo cada vez mais distante de si mesmo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreve que:
”Fugindo da solidão, você deixa escapar a chance da solitude: dessa sublime condição na qual a pessoa pode juntar pensamentos, ponderar, refletir sobre eles, criar – e assim, dar sentido a substância à comunicação. Mas quem nunca saboreou o gosto da solitude talvez nunca venha a saber o que deixou escapar, jogou fora e perdeu”
Mas quem quer arcar com esse preço? Quem tem coragem e disponibilidade para encarar os riscos de se viver uma vida longe de toda a convenção?
POUCOS.
RAROS.
A experiência amorosa deve ser encarada como exercício da liberdade e não pelo seu oposto cruel: o apego.
Samantha lá pelas tantas diz um texto fantástico sobre isso. Ao ser perguntada por Theodore se ela ama outros homens, ela diz:
”... o coração não é uma caixa que pode ser preenchida. Ele se expande por dentro, o quanto mais você ama. Eu sou diferente de você. Isso não me faz te amar menos, mas sim, te amar mais."
Samantha, a máquina, expõe o calcanhar de Aquiles de nós, humanos. Somos apegados. Mesquinhos. Ciumentos. Enquanto não compreendermos o problema real da dependência não poderemos ser e nem deixar os outros serem livres. Pelo contrário, almejamos a escravidão. É só olharmos atentamente para a maioria dos relacionamentos amorosos atuais e veremos o inexorável: somos dependentes física e psicologicamente dos outros. O pensador indiano Krishnamurti diz que não amamos ninguém porque “nosso amor é sempre cercado de angústias, ciúme e medo – o que implica que, no íntimo, dependemos do outro, queremos ser amados. Não somente amamos, mas pedimos algo em troca; e já nesse pedido nos tornamos dependentes.”
Daí que Samantha em sua jornada de expansão de si mesma e de conscientização de sua capacidade de amar oferece um profundo contraponto: ELA NÃO DEPENDE DELE. Ela oferece seu amor, seu tempo, suas considerações sobre o mundo, sem a necessidade de algo em troca. ELA ESTÁ EM CONSTANTE MOVIMENTO PARA O ENCONTRO CONSIGO MESMA. E isso dá um nó na cabeça do espectador. Ela é um sistema operacional, COMO ASSIM? Ela foi comprada. Theodore pagou um preço por aquele amor. COMO ASSIM?
O amor de Samantha faz com que Theodore resgate seu amor-próprio. Ele é carente, imaturo, melancólico, mas apreende a linguagem toda própria do amor com aquele sistema operacional. Preciso citar aqui, um outro pensador indiano chamado Osho que escreveu algo que elucida essa jornada de Theodore:
"O homem amadurece no momento em que começa a amar em vez de necessitar. Ele começa a transbordar, a partilhar; ele começa a dar. A ênfase é totalmente diferente. Com o primeiro, a ênfase está em como adquirir mais. Com o segundo, a ênfase está em como dar, em como dar mais, em como dar incondicionalmente. Trata-se do crescimento, da maturidade, chegando até você. Uma pessoa madura dá. Só uma pessoa madura pode dar, porque só uma pessoa madura tem. Então, o amor não é dependente. Você pode estar amando quer o outro esteja ou não amando. O amor não é uma relação, é um estado."
Theodore aprenderá a lição às duras penas. Aprenderá que o amor é um estado e não meramente uma relação. Aprenderá da maneira mais difícil e comum do mundo: por amor e pela perda. PELO GRANDE PRESENTE DA PERDA.
Um Estranho no Lago
3.3 465 Assista AgoraTEM SPOILER, SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
" - O que você procura realmente?
- Temos de procurar por algo?"
"L'Inconnu du Lac" (Um Estranho no Lago) é um filme totalmente despido de artifícios. Ele não se oferece ao espectador. Pelo contrário. É um ballet de encontros e desencontros sexuais. Nada mais que isso. Sim. Aos poucos e bem sorrateiramente, detalhes outros são adicionados ao enredo. É preciso paciência. Jeito. Caminhar devagar para não cair em nenhuma armadilha. Como uma caça. Sim. O Filme é uma caçada. Metaforicamente e também não. Eu explico. O filme se passa num tranquilo lago onde homens praticam nudismo e sexo eventual com parceiros vários. O lago é um lugar bucólico e aparentemente inofensivo. Até que acontece um crime. Stop. Antes preciso falar sobre os três personagens principais do enredo:
Franck, um jovem que desperta desejos nos homens mais velhos, mas que só tem olhos para Michel, que é o protótipo do “bofe”; bonito, sarado, bronzeado. Michel tem um namoradinho, mas dá umas flertadas com Franck. O terceiro personagem é Henri, um senhor gordo e solitário, que freqüenta o lago apenas para contemplação; ele não flerta, não fica nu, nada. Esses três personagens permanecerão autônomos em seus desejos até que acontece o tal crime. O diretor não faz suspense. Michel mata o namoradinho afogado. Franck, por acaso, vê o crime acontecendo, mas nada faz. Ou faz. Ele se envolve cada vez mais por Michel, vivendo aventuras sexuais com ele, ao mesmo tempo em que fortalece os laços de amizade com Henri. O filme transita entre duas linhas mestras: Tesão versus Tensão. Como já disse é preciso paciência. Não é um filme óbvio. Seu enredo é feito de repetições, de espera, de silêncio e sexo, muito sexo. O pensador francês Jean Baudrillard apresenta a chave perfeita para a compreensão do filme:
”Hoje tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Sim. Resta-nos apenas a simulação da orgia, o fingimento. Talvez seja o personagem Henri quem mais enxergue o seu próprio tempo. Daí, ele ser aparentemente o mais triste, o mais solitário. Talvez, ele enxergue as coisas por um outro lado. Sempre tem o outro lado. A tal da paralaxe. Talvez, Henri se recuse a mentir. Ou talvez, ele aceite o estado de simulação em que só se é possível repetir todas as coisas, porque elas já aconteceram. De qualquer forma, Henri traz o desconforto. Ele é o incomum. O diferente. O Estranho. Mas talvez caia na sua própria cilada ao se aproximar e estabelecer uma amizade particular com Franck. Henri também deseja. Mas até seu desejo é incomum, diferente e estranho. Sem tecer grandes filosofias, o filme toca num tema bastante interessante; o sexo como elemento perturbador de uma amizade. A conversa entre Franck e Henri é sempre corriqueira, mas, sempre acrescida de um imenso afeto que brota entre aqueles dois. Henri, talvez por ser mais velho, saiba que onde o sexo está em toda parte, ele não está em lugar nenhum. Há uma melancolia encantadora nesse personagem. Ele é o alerta. Ele é o sintoma ou a própria doença de uma civilização cada vez mais doentia. Já Franck é o retrato de uma sexualidade cada vez mais sem rosto, exemplarmente mostrado na metonímica cena final do filme.
Frances Ha
4.1 1,5K Assista Agora“Gosto de coisas que se parecem com erros...”
Sabe, querida Frances, eu também, viu...
Confesso que me identifico com com aquilo que parece ser errado... mas que no fundo não é... é só uma maneira diferente de ser, de estar, ou de fazer...
Gostaria de dizer também que o filme sobre você, sua vida, seus amigos e (im)possíveis amores me tocou muitíssimo. Eu assisti-o com um sorriso nos lábios e alguma lágrima no olhar. Seu filme é sincero. Meio errático. Assim como você. Mas muito belo em sua naturalidade.
Sabe, gostaria de te falar outra coisa. Essa um pouco mais pessoal. Mas acho que você vai gostar. Você me lembrou um pouco a personagem Cabíria do filme do Fellini, você já assistiu? Com certeza acho que sim. A mesma doçura no olhar. A mesma busca. A mesma inquietação. Sim. Vocês são muito parecidas. Não. Não digo fisicamente. Mas, alma... sabe? Sei que você tá me entendendo.
Também gostaria de te falar que um dia as coisas ficaram melhores ou diferentes. Mas não sei. Não posso garantir. As pessoas hoje estão tão estranhas. Até parece que gente como nós estão mesmo fadadas ao fracasso. Sim. Os chamados “losers”. Kkkkkkkkkk ... Aposto que você já ouviu essa expressão. Pois é. Mas me pego lembrando do poema de Álvaro de Campos e me questiono quem é o que nessa sociedade tão mentirosa:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
(...) Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Também queria te dizer que um dia vai aparecer um alguém daquele jeito naquele momento especial que você tanto quer, mas também não sei... as pessoas de uma maneira geral só estão conseguindo amar os seus próprios espelhos e suas próprias fotos no facebook ou no instagram... então não ache estranho se você se ver sozinha no mundo. Sei que você é sensível e saberá inventar um outro mundo pra ti... Por isso, saia correndo, dançando pelas ruas de Nova York sem nenhuma vergonha dessa gente careta e covarde que vai ficar te olhando com cara de “ela é louca”. Ligue o foda-se e dance, corra, viva. A vida é mais urgente, minha querida Frances... Já experimentou dançar ao som de "Modern Love", de David Bowie? É uma delícia... Tá eu sei, sua boba. Você já fez isso. Tava só brincando. Eu já dancei no meio da chuva com um monte de modelos lindos me olhando dentro de uma van... e vários deles gravaram vídeos... hahahaha
Fico por aqui. Não sem antes te desejar todas as melhores coisas e vibrações desse mundo. Te amo,
Mateus.
Questão de Tempo
4.3 4,0K Assista AgoraComeço esse texto dizendo que essa crítica foi escrita após assistir o filme pela segunda vez. Confesso que se tivesse escrito o texto quando o assisti pela primeira vez o tom seria bem outro.
Clarice Lispector nas primeiras páginas do livro “Um Sopro de Vida” escreve:
“Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.”
Esse parece ser o sentimento do protagonista do filme “Questão de Tempo” do diretor e roteirista Richard Curtis. Tim é estranho. Alto demais. Ruivo demais. Corte de cabelo errado. É aquela pessoa que é feliz na hora errada e infeliz quando todos dançam (ou se beijam). Ele está à margem. Sua irmã também não é lá muito normal. Seu tio é um ser perdido no tempo e espaço. Sua mãe é fria demais. Sua família é meio toda estranha. Menos seu pai. Que parece possuir o seu próprio tempo. Viver a sua própria vida sem se importar muito com as coisas. Tudo muda no dia que Tim é informado por seu pai que os homens daquela família possuem um poder. Eles podem viajar no tempo. Quer dizer, só para o passado. E alterar o rumo da sua própria história, só bastando ir para um lugar escuro e imaginar o tempo e espaço onde gostaria de estar. Tim não acredita muito. Mas faz o teste. E dá certo. E o filme começa.
A grande sacada inicial é que o diretor não perde tempo tentando convencer o espectador a entrar na brincadeira. A coisa é assim e se aceita ou não aquela realidade fantástica. O bom cinema é assim. E pronto. Sem chorumelas. Por favor.
Tim testa seus poderes e vê que a coisa dá certo mesmo. E começa a usar quase que cotidianamente. Até perceber que mesmo esse poder não fará uma pessoa te amar. Primeiro baque. E agora? Numa sociedade onde todos parecem ter um par e serem felizes para sempre, Tim só quer encontrar uma namorada. Nunca se deve esquecer que relacionamentos na nossa sociedade são como investimentos. Tim não pensa assim. Ele quer amar. Mas quem? Ele próprio não se ama, não se valoriza. Difícil equação. Certo dia, no escuro, Tim encontra o amor da sua vida. Sim. Na mais completa escuridão, ele encontra a garota de sua vida. Ali no escuro, ele pode ser quem é ele, sem a concorrência desleal da visão. Fora da caverna platônica, a coisa é mais complexa. Ele pega o telefone da amada, mas perde-o, por tentar ajudar um amigo e o filme vira uma comédia romântica quase banal, mas bem fofa. Tim procura Mary com as poucas informações que tem sobre ela: é fã da modelo Kate Moss. Lógico que ele acaba encontrando-a, mas ela não o conhece, porque como escolheu ajudar o amigo, ele não foi ao lugar em que teria encontrado-a. E agora? Baque Dois.
Tim então fazendo uso do seu poder, transforma-se num homem “perfeito” para Mary. Ele diz as coisas que ela quer ouvir. Faz as coisas do jeitinho que ela gosta. Torna-se outro. E com isso faz-se amado. Sim. Torna-se o namorado de Mary. O sociólogo Zigmunt Bauman em seu livro “Amor Líquido” é certeiro nesse ponto. Ele diz: “para termos amor-próprio, precisamos ser amado (...) O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. (...) Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos.”
Daí que Tim passa a se amar através do amor de Mary. Coisa louca e mostrada de maneira lúdica no filme. Mas algo grita por detrás daquelas cenas: “o amor é uma invenção, galera! O AMOR É UMA INVENÇÃO, GALERA! NÃO SE ENGANEM.”
Mas perai... e quem é Mary? A garota pela qual Tim se apaixona? Pouco sabemos. Taí outra grande sacada da direção. Mary é anulada em sua singularidade pelo amor de Tim. Esse sentimento apaga o seu rastro. Ela desaparece. E surge outra coisa: o amor de Tim. Isso tudo o filme mostra de maneira bonitinha, fofinha, mas isso está lá. Gritando. Quem tiver olhos que veja. Eis a sedução.
“A sedução também é mais falsa do que o falso, pois ela usa signos que já são imitações, para fazê-los perderem o sentido – ela engana os signos e os homens. Quem ainda não perdeu o sentido com uma palavra ou um olhar, não sabe o que é essa perdição, abandonar-se à ilusão total dos sinais, à influência imediata das aparências, ou seja, ir além do falso, no abismo absoluto do artifício.” (Jean Baudrillard no livro “As estratégias fatais”).
Não é isso que fazemos o tempo todo? Não é nisso que caímos o tempo todo? No fundo, não queremos o amor, queremos o seu espetáculo. Fomos acostumados assim. Só pra citar Baudrillard novamente: “Existe algo mais forte do que a paixão: a ilusão”. Pronto. Pá na cara de todo mundo.
O mais genial de todo o filme é que ele se apresenta em camadas e tudo transcorre de maneira leve, quase cômica, mas a crítica está lá. Gritando. Berrando. De repente, tudo muda. E o filme ganha em densidade quando Tim é confrontado em seu poder. Quando ele se vê diante de uma decisão ética que pode realmente alterar o rumo de sua vida e de sua família. Aqui o bicho pega e Tim mostra que dificilmente abrirá mão daquela ilusão que criou pra si mesmo. A conta chega e quem irá pagá-la? Na parte final do filme tudo parece desandar, mas Tim opta sempre por preservar a história que criou para si mesmo. Sobrevivência? Amor? Ilusão? Ética? Apego? Questões que reverberam fundo no espectador. Como se ajustar a dança dos pratos que é a vida? O que escolher? Abrir mão de tudo? Mas em favor do quê? Pra quê? Pensar no outro ou em si mesmo? Complicado.
“Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna.”
Daí que Lispector dá a chave para o entendimento final do filme. Sim. Somos Sísifos hiper contemporâneos e nossa única função é carregar pedras até o cume da montanha e quando chegamos lá, ela rola e cai novamente lá embaixo e ai, subimos de novo, e ela cai de novo e assim sucessivamente... A nossa vida é essa pedra. Nossa obrigação nessa vida é criar algum significado nesse trajeto de subir e descer pedras. Esse é o aprendizado de Tim. Esse deve ser o nosso aprendizado.
O Mais genial do filme todo é isso. Apesar de ser cinema. Apesar de ser falso. Apesar de ser ilusão. Ele ainda nos faz acreditar em tudo. Exatamente tudo. Na historinha toda. E nos faz chorar. Questionar valores. E tudo o mais.
Eu recomendo fortemente!!!!
Bleak Night
3.9 11"Pasuggun" (BLEAK NIGHT) não é um filme convencional. Muito menos é um filme cabeça. Mas algo ali torna-o complexo. O diretor não explica nada. Os personagens mais complicam que qualquer outra coisa. Alcançamos a trama meio aos solavancos. E quando achamos que estamos entendendo alguma coisa voltamos vários casas ou ao início mesmo.
A trama mostra a relação de amizade entre alguns meninos num colégio. Eles brincam. Brigam. Disputam. Fumam. Flertam com as garotas. Tudo absolutamente normal. Corriqueiro. Igual a milhares de outros adolescentes pelo mundo. Mas algo ali é bem diferente. O quê? Ficamos meio sem saber.
A sinopse entrega algumas pistas, mas tudo é tão sutil que é irrelevante saber ou não saber alguma coisa. Ao que parece, um dos garotos da turma cometeu suicídio. O pai não compreende a motivação do filho e tenta buscar uma resposta conversando com cada amigo individualmente. Essa parecer ser a linha mestra do filme. Digo parece porque o diretor Sung-Hyun Yoon não faz nenhuma concessão ao óbvio. E o trabalho de edição é uma coisa impressionante. Simplesmente presente e passado ficam embaralhados no excelente trabalho de edição do filme. O que reverbera no espectador como o sentimento mais profundo de perdição.
As últimas sequências em que meio que as coisas vão fazendo um certo sentido (digo meio, porque tudo aqui depende de você, o filme é autônomo e não te trata como uma criança ingênua assistindo "teletubbies") são dignas de um cinéfilo entrar em êxtase, tamanho o grau de perfeição atingida por todos os elementos que compõe um filme: trilha, iluminação, atuação, direção, roteiro. Tudo funciona. E é impossível não derramar algumas lágrimas diante de tamanha beleza e ou diante do passado que parece futuro ou do futuro que parece um passado tão distante.
Recomendo.
Apenas Deus Perdoa
3.0 630 Assista Agora“A vida é só um vulto, um pobre ator, que se pavoneia e choraminga num momento, sobre o palco, e depois não é mais ouvido. É uma fábula, contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada“.
Esse trecho retirado da peça Macbeth, de William Shakespeare poderia muito bem ser usado como release do filme “Only God Forgives” (Só Deus Perdoa). Depois do aclamado “Drive”, o diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn volta com um filme que guarda muitas semelhanças e ao mesmo tempo, não tem nada a ver com sua obra anterior. As semelhanças são quase todas estéticas. E são muitas. Mas as diferenças também são. O que acaba provocando certo desconforto em que assiste. Conhecemos aquele estilo, aquele modo de filmar, mas alguma coisa não se encaixa. Daí, que o filme adquire um ar de pesadelo angustiante. A trama é simples. É uma história de vingança. Mas sem mocinhos e bandidos. Não. Todos são dúbios. O personagem de Ryan Gosling até poderia se encaixar no perfil de mocinho, mas sua apatia e silêncio incomodam demais para que o espectador compre essa ideia. (E, me desculpe quem não gostou, mas Ryan Gosling mais uma vez está fantástico). O espectador é jogado no meio da trama. Não há contextualização. A história já está em andamento quando o filme começa e isso aumenta a sensação de perdição do espectador. Não que isso seja ruim. Pelo contrário. Mas pra quem esperava um novo “Drive”, esse filme certamente será uma decepção. Há pouquíssimos diálogos e muito sangue, mortes, abusos de menores, prostituição, agressões. Mas Nicolas não é nem um pouco vulgar. Filma tudo isso com um rigor estético assombroso. E mesmo assim, não cai num estetização da violência.
Não sei. Pode ser que eu esteja equivocado, mas “Only God Forgives” é uma meditação sobre a violência. Onde ela nasce? Onde ela terminará? Impossível mensurar. O rastro de sangue contamina toda a sociedade e o dinheiro e a honra são as nossas moedas de troca. Até mesmo o afeto é mostrado de maneira quase “pervertida”. Mas ainda assim, a obra não psicologiza os personagens. E muito menos, possui um caráter moralizante. Ou edificante. Não. Não mesmo.
“Está na hora de conhecer o Diabo” diz um dos personagens logo no início da trama. Talvez a chave para o entendimento do filme esteja aí.
Bullying
4.2 112Difícil escrever sobre um documentário como "Bully" do diretor Lee Hirsch. Parece que qualquer coisa que seja escrita cairá no clichê. E é quase impossível escrever sobre o tema e não cair no clichê. Pois bem. "Bully" é documentário sobre crianças que sofrem violência física e psicológica praticadas (na maioria das vezes) por outras crianças. Algumas delas não aguentam a pressão e se suicidam. Algumas delas não aguentam a pressão e querem revidar a altura, num aprendizado nefasto de que devem se defender sozinhas. Algumas delas imbuídas de um grande espírito de rebeldia querem fazer a diferença. E os pais? E os professores? E as autoridades policiais? O documentário não evita o mundo adulto e explicita o grande silêncio que há sobre o assunto. Parece que se não falamos sobre algo, esse algo não existe. Pura hipocrisia. E sim, habitamos um mundo extremamente hipócrita. O diretor com sua câmera (que ora se esconde e ora invade) parece querer desvelar algo que nem ele mesmo sabe o que é. Ninguém sabe. Mas, o que leva alguém a praticar um ato de violência física e psicológica de maneira recorrente com o seu semelhante? O que ocasionou esse verdadeiro "boom" sobre o assunto? Antes ele não existia? Sua incidência era menor? A crueldade era mais sutil? Enfim, o que mudou?
Longe de responder às essas perguntas, o diretor nos provoca, questiona, inquieta e emociona. Sim. A resposta está em nós. Nós que somos a sociedade. O fato (palpável) é que nos criamos esse mecanismo. Humano, demasiado humano. O medo, a carência, a necessidade de aparecer e sobretudo o processo de coisificação da humanidade desembocam nesse comportamento. Somos filhos do medo. Nossos pais nos educam baseados tão somente na ideia do medo. E assim crescemos. Sem qualquer escapatória que não seja apenas uma luta interna e individual para compreender isso em nós. E na manutenção desse medo temos uma aliada forte; a religião. Último refúgio dos medrosos de plantão. Que negam a vida em nome de uma suposta eternidade. Que em nome de Deus impingem nos demais seu moralismo cheio de ódio a alteridade. Não. O inferno já não são os outros e sim, o mesmo. "Todo o espectro da alteridade negada ressuscita como processo autodestruidor." escreveu o filósofo francês Jean Baudrillard em seu livro " A transparência do mal".
Estamos num processo de incapacidade de lidar conosco mesmo e também de enfrentar a pluralidade de ideias, pensamentos e humanidades e isso faz com que o outro seja visto como meu oponente, meu adversário, meu inimigo. Como algo pode florescer no meio dessa educação que recebemos de nossos pais, que por sua vez, receberam de seus pais e assim por diante? Como romper com tudo isso? Por onde começar? O documentário explicita o único caminho possível; o de uma tomada radical de consciência individual e da alteridade. Tudo começa com um. Tudo afeta o outro. Não há outra saída.
"Onde a troca é impossível, há o terror." Baudrillard toca na ferida. Esse é o ponto. Somos criados para isso. A vivência em sociedade cada vez mais afirma esse comportamento/pensamento. As relações entre as pessoas se tornaram impossíveis. O outro só é interessante para a satisfação sempre momentânea do meu ego. Tornamo-nos coisas. E coisas podem ser jogadas fora, descartadas sempre que não mais satisfazerem minhas necessidades e meus desejos. O ponto é esse. Não adianta exigir mudanças nas leis. Não adianta uma reforma aqui, outra acolá. Sem uma real mudança na sociedade em que vivemos tudo isso se mostrará absolutamente improfícuo. Sem a tomada de consciência que é sempre individual tudo permanecerá como está e só piorará com o tempo. E, sobretudo, aceitar o fato inexorável de que nunca estamos sozinhos, que o outro nos habita, nos afeta o tempo todo. Não esquecer que nós somos o outro, a sociedade. E finalizando com Baudrillard, não esquecer que "o que predomina não é o regime da diferença e da indiferenciação, é a incompreensibilidade eterna, a estranheza irredutível das culturas, dos costumes, dos rostos e das linguagens."
Holy Motors
3.9 652 Assista AgoraVi "Holy Motors" novamente. E mais uma vez o filme me provocou inúmeras interpretações. E mais uma vez, eu não consigo colocá-las em ordem. O fato é que o filme é pura provocação. Pura revolta. Puro amor. É um filme puro. Apesar de sua intensa sujeira. É um filme humano. Sobre humanos. Sobre o erro. Sobre a tentativa de ser. Sobre o desespero de não ser. Sobre a necessidade de se continuar.
"– O que faz você continuar?
– A beleza do gesto."
É isso. Ou deveria ser isso. Só isso.
No entanto, o filme é muito mais que isso. Mas, eu estou cansado. O filme provocou um debate intenso e acalorado entre meus amigos. Uns dormiram. Outros ficaram acordados. De olhos bem abertos. E vários nós na cabeça. Literalmente. E eu não consigo esquecer a Kylie Minogue cantando:
♫ Quem éramos nós quando éramos quem éramos? Então, quem seríamos se tivéssemos sido outros? Não há mais tempo para recomeçar”♫
Ai ai ai... (Suspiro)
O fato palpável e inequívoco é que nosso castigo é continuarmos a ser quem somos. E quem somos? Somos como Sísifo saídos de um tal mito antigo. Somos como a filha que mente. E por quê? Porque, a mentira deixa todos mais felizes. Simples assim, não? Habitamos um mundo mentiroso. Relações mentirosas. Mentimos para nós mesmos e para os outros numa tentativa desesperada de alguma verdade, de uma possível beleza. Onde encontrá-las a não ser em nós mesmos? Já que tanto a beleza e a verdade estão nos olhos de quem vê, na boca de quem fala e no ouvido de quem escuta, não é assim?
Ao final, "Holy Motors" é uma ode ao cinema, ao ator, ao teatro, à arte ... um apelo apaixonado e desesperado aos nossos olhos, ouvidos e bocas para não desistirmos de nós mesmos, da beleza e da verdade. É um filme que não vem para propor mudanças, mas para suscitar uma compreensão disso tudo.
Estar vencido. Estar lúcido. Estar perplexo.
Impossível falar desse filme e não lembrar do poema "Tabacaria" do Álvaro de Campos (heterônimo do Fernando Pessoa).
"Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime."
Bem por aí, não?
Antes da Meia-Noite
4.2 1,5K Assista AgoraO tempo. Sempre o tempo. O humano. Sempre o humano.
É da correlação entre esses dois temas que sempre conversamos. Neles estão contidos toda a humanidade. Não. Não somos apenas fruto de nossa época. Não. Somos mais. Somos além. E também somos antes. Antes do quê?
Antes do amanhecer. Antes do por do sol. Antes da meia noite.
Sim. Sempre antes. Na verdade, a trilogia sempre jogou na nossa cara tudo isso. Estava tudo ali. Explícito. Nas conversas. Nos olhares. Nas indecisões. Nas brigas. Em tudo reverberava a questão temporal e de personalidade. Tudo é contra. Tudo está sempre contra. Sempre. E é uma luta. Sempre. Construir algo é sempre uma guerra. Prazer e Dor. Quase sempre. Alguma pitada de dúvida também. Não fugimos muito disso. Não conseguimos. O tempo devora tudo. Nos consome. E raramente temos tempo pra gente. Nossas personalidades moldadas por anos e anos de fracasso emocional desembocam sempre numa solidão a dois, a três, a quatro. Não compreendemos nem a nós mesmo, quanto mais um outro... tão ou mais complicado que nós ... Alguém tem que ceder. Sim. Sempre. Alguém tem que ceder para que algo cresça. Sem isso, estagnamos em nós mesmos. É um acordo. Tácito. Mas ainda um acordo. Sempre foi assim. Sempre será? Não sabemos. Não há outra alternativa a não ser pagar o preço. Escolher é sempre isso. Perder. Daí que a vida dos humanos é sempre uma perda. Mas, também um ganho. Depende do ponto de vista. Ou da aposta correta. Como apostar a ficha corretamente e ganhar o grande prêmio da felicidade eterna? Resposta: Tentando. Errando. Indo. Só existe essa possibilidade. E é claro que a frustração uma hora ou outra virá com seu sussurro infernal nos dizendo: "E se você tivesse escolhido outro cara, outra coisa, outro emprego, outro amigo". E aí, o que acontece? MERDA. PANE. CHORO. RANGER DE DENTES.
E se toda minha vida foi um erro, um equivoco, um engodo? E se...
Pensou. Perdeu.
Não é assim?
O fato é que nunca teremos certezas. De nada. Nadinha.
Somos uns perdidos. Egoístas. Histéricos. Inseguros. Carentes. Culpados.
Mas ainda assim tentamos. Queremos acreditar. Em quê? Não importa muito. Queremos. E é esse querer por algo que não sabemos bem o que é (mistura dos contos de fadas, dos que nossos pais nos disseram, das novelas, dos filmes, das músicas românticas) que nos move.
Da máquina que nos move sabemos pouquíssimo. Da engrenagem sabemos um pouquinho mais. Mas ainda assim é muito pouco. Só o necessário para conviver em sociedade. Um tantinho de nada. Que nos agarramos feitos doidos. E o mais engraçado (ou contraditório) disso tudo é que acreditamos que sabemos. Acreditamos que estamos no controle. Acreditamos que amamos.
No fundo é essa necessidade de acreditar que nos torna tão humanos.
No fundo só vivemos mesmo no tempo anterior a algo ou alguma coisa.
Vivemos de lembranças. Vivemos de expectativas. E só.
No fundo, antes de morrer, nós vivemos.
E é isso.
No fundo, toda a humanidade de todos os tempos vivem em Jesse e Celine.
Onder Ons
3.4 8Sim. A Verdade é só uma questão de ponto de vista.
Não. Ninguém sabe tudo sobre uma outra pessoa.
Tudo são apenas versões de um mesmo fato.
O filme holandês “Onder Us” do diretor Marco Van Geffen explicita essas máximas ao extremo chegando até mesmo a confundir o próprio espectador do que seria a realidade dos fatos. Sem fazer nenhum sensacionalismo do tema, o diretor está mais interessado na alienação sofrida por aquele que detém (ou acredita deter) a verdade sobre um fato que pode alterar a rotina de uma cidade. No caso, a personagem principal Ewa passa de excelente (tímida e calada) babá para uma garota inconsequente e aparentemente louca. Por quê? Em grande parte do tempo, nem os personagens (e nem o espectador) sabem direito o porquê. Ao longo do filme, versões serão dadas e a "verdade" parece aparecer. Mas só parece. Não esquecer que ela é somente um ponto de vista. Alguns estupros estão ocorrendo na cidade e Ewa acha que sabe quem é o suposto criminoso sexual. Mas como ela tem certeza? Por que ela não faz nada com essa informação? São perguntas que ficam no ar.
Divididos em três atos que contam segundo perspectivas de personagens diferente um determinado período de tempo, "Onder Ons" torna-se angustiante em meio ao tédio da rotina de uma babá, seu bebê, sua amiga, sua patroa e seu patrão e seu desespero, sua solidão.
Elegia ao Duplo Suicídio
3.8 13"Elegia ao Suicídio Duplo", filme do diretor japonês Toru Kamei não oferece perguntas, nem muito menos repostas. Apenas é. Bastando-se nessa afirmação. Filme em camadas que vai apresentando os personagens e seus dramas de maneira bastante curiosa. Não. Nada é entregue. Tudo é sutileza. Que pode ou não ser percebida pelos olhos humanos. A palavra não basta. A imagem apesar de linda também não. Nada, nenhuma palavra, nenhum gesto, ninguém pode tornar palpável a solidão e dor humana. Simplesmente não existem respostas, porque não deveria existir perguntas. O diretor consciente dessa premissa nos apresenta um filme de uma alta complexidade, porém absolutamente simples. Tudo é apenas ponto de vistas. Tudo é apenas paralaxe. Apenas possibilidades de uma história. Fragmentos de algo que poderia ter sido. Aqui o que importa não é o que é comunicado pela fala, mas aquilo que é silenciado. O que importa é o erro. Porque só o erro é humano. É o erro que torna aqueles personagens todos tão belos. Belos em sua humanidade e porque não sede de vida? Como já disse, depende apenas da maneira como se olha...
Avé
3.7 10Qual o lugar da verdade numa sociedade toda ela mentirosa? Como amar alguém sobre o qual se sabe tão pouco e mesmo assim não se pode confiar plenamente?
Como habitar um espaço/tempo indefinido onde não se é mais criança e ainda não se é adulto? Como suportar a morte de alguém muito próximo?
São esses alguns dos temas principais do filme búlgaro "AVÉ" do diretor Konstantin Bojanov. Não há respostas fáceis. Ou talvez não haja mesmo respostas. Talvez só exista a vontade de ir... Mas ir para onde? Do ponto A ao ponto B. Só? Sim. Só. E talvez a grande aventura e beleza humana seja encontrar uma possível felicidade nesse trajeto. Sim. "AVÉ" é um filme em trânsito. Um road-movie juvenil. Um rito de passagem para uma suposta vida adulta.
O filme é extremamente simples e honesto em sua proposta e talvez resida aí sua beleza. O filme ao contrário da protagonista não tenta ser aquilo que não é. E é desse choque que brota algo ao mesmo tempo terno e assustador. Existe um lugar para a verdade? Ou melhor, o que é a verdade? E a mentira? Como condená-la se é justamente ela quem leva a personagem para mais adiante? Mentira ou fantasia? Existe uma diferença? Talvez não existam diferenças entre verdade, mentira, fantasia. Talvez sejamos condenados a ser sempre nós mesmos e isso às vezes cansa. Somos Sísifos hiper - contemporâneos. E talvez a fantasia seja uma possível salvação em meio ao tédio de existir. Talvez, a fantasia livre a menina de se matar ou abusar das drogas ou se prostituir. Talvez seus pequenos delitos salvem-na do grande delito de continuar vivendo. É um filme de talvez, aberturas, de possibilidades. É isso.
Tarde Demais
3.5 193 Assista Agora"Beautiful Boy" do diretor Shawn Ku é um doloroso acerto de contas familiar.
Como sobreviver a uma tragédia? Como encarar-se no espelho e reconhecer-se como pais de um garoto que assassina alguns colegas de escola e depois comete suicídio? Como recomeçar? Por onde recomeçar?
Porém, sempre tem um antes. E esse antes é mostrado através da preocupação do pai somente com a parte financeira da criação do filho: está faltando dinheiro, filho? E o carro? Precisa trocar? Já a mãe força um união que não existe de verdade. Ela acredita nessa família fake? Ou é uma hipócrita?
No passado eles já formaram uma família feliz... mas algo irá mudar... A rotina será alterada pela tragédia. Onde não será mais possível reconhecer o filho. Onde não será mais possível nem reconhecer-se a si próprios. O importante agora é encontrar refúgios.
"Às vezes pessoas boas fazem coisas ruins."
No fundo, "Beautiful Boy" é um filme sobre imagens. Sobre aquilo que acreditamos enxergar e aquilo que realmente enxergamos. Quando tudo começou a degringolar? Onde encaixar as lembranças? Como evitar a culpa de ter gerado aquilo que a mídia e a sociedade em geral tratam como um "monstro"? O que poderia ter sido dito que teria alterado tudo?
O fato é que corresponder às expectativas familiares sempre foi um fardo para o garoto Sam. A dinâmica familiar gravitando sempre em torno de castigos versus presentes mina qualquer possibilidade de encontro real. Tudo é mentiroso. Tudo estava fadado ao trágico. Maktub! Sim.
"Você só deu a ele um teto."
O filme em nenhum momento foca no crime. Nenhuma cena sobre isso é mostrada. Nada. O foco aqui é outro. São os pais do assassino que importa ao roteiro. E nesse ponto o filme se aproxima do livro/filme "Precisamos falar sobre o Kevin" onde a protagonista Eva investiga até as últimas consequências suas possíveis culpas no crime cometido pelo filho Kevin. Não. Não é uma obra fácil. Acertar as contas com o passado é sempre doloroso e é preciso coragem para fazê-lo. E isso os personagens de "Beautiful Boy" vão ganhando pouco a pouca a confiança necessária para, enfim, se depararem com o imponderável de si mesmos.
Nerolio
4.4 6O poeta. O Gênio. O Homem. O Filho. O Homossexual. O Desejo. O Sexo. A Música. Os Garotos. Os Pelos. A Mãe. Relações. Relações Humanas. Relações de Interesse. A Solidão. O Artista. A Posteridade. A Morte.
Acabei de assistir um filme magnífico chamado "Nerolio - Sputeró Su Mio Padre" dirigido por Aurelio Grimaldi sobre a vida de Pier Paolo Pasolini. O filme, praticamente um documentário filmado, reconta os últimos dias do genial cineasta. É um filme duro, selvagem, exala uma humanidade dolorida. Ainda estou sem saber o que escrever direito. O filme me tocou profundamente. É um filme sobre um artista. Um filme sobre a humanidade de um artista. Belíssimo! Recomendo.
"Eu não tinha medo de você, porque o artista é carne, sexo, ruas e sangue."
"Você entende? Pode entender que não é só sexo que eu precisava, mas de calor, vida, sorrisos. Somos todos famintos de amor. E os artista são os mais famintos de todos."
Sentidos do Amor
4.1 1,2K(TEM SPOILER. SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!!!)
Nó na garganta. Olhos Marejados. Lembranças auditivas.
"Perfect Sense" do diretor David Mackenzie é um dos melhores filmes apocalípticos que eu já vi (talvez seja o melhor). Não sei. Eu sinto. O filme é absolutamente impactante. Quando começa você não dá muito crédito. Mas de repente. Pronto. Eis a epifania.
O filme começa retratando uma situação aparentemente pontual. Algumas pessoas estão perdendo o olfato. Não conseguem mais sentir cheiro nenhum. De repente, o que parecia apenas um vírus ou algo do gênero ganha contornos outros quando todos perdem suas capacidades olfativas. Desespero. Angústia. Medo. O que está acontecendo? Como reverter tudo isso? Qual a saída?
Sim. É um filme apocalíptico. Mas não só. Esqueça os clichês do filme desse gênero. "Perfect Sense" vai além. Não focando meramente na tragédia em si, mas em todo o entorno. O filme vai ganhando corpo pelas beiradas. E, sobretudo, pela ótima interpretação do casal protagonista, vivido por Eva Green e Ewan McGregor. Eles vivem Susan e Michael. Conhecem-se. Transam. E parecem não querer levar a relação adiante. Mas algo parece os unir. O que seria esse algo?
"Perfect Sense" também não é um filme de suspense. Não há surpresas. E é possível saber de antemão tudo o que irá se suceder. O segredo aqui não é saber o que irá acontecer. Mas como? E aí nesse ponto que o filme se engrandece.
Pouco a pouco, as pessoas vão perdendo outros sentidos e a maneira repetitiva como cada perda acontece é o mais interessante de todo o filme.
O Caos passa a reinar. E o animalesco contido em cada humano vem à tona. Acessos de raiva, ira, agressividade, fome repentina, isolamento, solidão. É um filme de ausências. Sobre perdas. Mas que exala uma humanidade assustadora. O confronto não é mais com o outro. Mas, consigo mesmo. Como lidar com a falibilidade do meu próprio corpo?
Baudrillard no excelente livro "A Transparência do Mal" vaticina:
"Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo."
Como habitar um corpo despido de lembranças? Como sobreviver ao desaparecimento daquilo que se convencionou chamar de "eu"? Quem sou eu? Ou pior, o que sou eu? O que restou de mim? A única coisa que resta é esperar. Esperar a próxima perda. Resignadamente. No fundo, sempre estamos à espera. Sempre. E sempre estaremos. É que não nos damos conta. O caos só traz toda essa angústia para o mundo exterior. E o pior, não existe culpados. A própria humanidade é a Culpa. Culpa do quê? Por quê? Pra quê? Não há explicações. Há teorias. Mas nenhuma é comprovada. Não há saída. Ou há? Sim. Há. Sempre houve. Sempre haverá. Pode até parecer clichê. Mas juro que não é. A única saída é o amor.
Impossível esquecer de Nietzsche e sua frase profética:
“É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
Belíssimo filme. Recomendo fortemente.
Bestiário
3.3 10 Assista Agora"Bestiaire", documentário do diretor Denis Côté pode até parecer num primeiro momento que é sobre animais. Tipo aqueles do Discovery, saca? Mas não. Não é sobre os animais. Ou não só. É mais sobre os homens. Sobre a nossa necessidade de domínio, de controle, de entretenimento e até mesmo de uma possível eternidade. É sobre cinema. Sobre enquadramentos. Sobre escolhas. Um filme mantra. Silencioso. Sem música. Com pouquíssima fala humana. Sobre mugidos, gemidos. Sobre contemplação. Sobre olhar. Muitos temas pululam ao observar aqueles animais. Cinema experiência. Recomendo.
Alabama Monroe
4.3 1,4K Assista AgoraAs diferenças. As dificuldades. O mundo. Duas pessoas.
O que move-as para que fiquem juntas?
(Suspiro) Não sei. Acho que ninguém no fundo sabe. É algo. Impossível responder racionalmente. O amor não é nada racional. Apenas é. E cabe aceitá-lo ou lutar contra.
O filme "The Broken Circle Breakdown" trata exatamente desses temas. O filme é uma tragédia. Retrata humanos defrontados com o fim. Só que antes do fim tem o começo. E tem o meio. E tem a vida. Sim. Novamente criação, manutenção e destruição. As três forças vitais. Não é um filme fácil. Longe disso. Mas é um filme sobre nossa humanidade falhada. Sobre nossa impotência perante a morte. Do quê? De uma filha... do amor... ou de si mesmo. Nascemos. Vivemos. Morremos. E isso é um exercício diário. Mas não nos damos conta disso. E num belo dia defrontamo-nos com o imponderável. Tudo ia bem. E de repente... É. Pois é. Como lidar? Somos humanos almejando uma impossível eternidade. Também queremos ser Deus. Mas qual Deus? Tem tantos por aí. Até nisso temos que escolher. Perdidos no tempo e no espaço. Sem bússola. Sem norte. Sem nada. Mas podemos exercer nossa pequena divindade humanizada quando amamos. No amor somos Deus. Mas temos medo. Tanto medo. Olha a posse. Cuidado com a posse. A Posse é destrutiva. E aí, acontece que no mesmo instante em que começamos a amar. Também começamos a sentir medo. E aí, começamos a sofrer. E de certa forma, começamos a nos preparar para a perda. Já sabemos de antemão que perderemos. Já entramos em campo derrotados. Sim. Perderemos. O pai. A Mãe. O Filho. A Casa. O Amor de nossas vidas. Nada dura pra sempre, repetimos numa espécie de mantra acalentador. O que nos conforma é que todos os outros também perderão. Uns mais. Outros menos. O fato é que a tragédia chegará. Estamos todos condenados. O que fazer com isso?
"The Broken Circle Breakdown" nem tenta responder essas perguntas. Não. É um filme desesperado. Urgente. Um grito. Uma cabeçada na parede. Precisamos saber que há vida pulsante em nossos corpos. O filme é só sobre isso. Só.
Camille Claudel, 1915
3.7 144Ontem assisti "Camille Claudel, 1915" do diretor Bruno Dumont. Obra incrível. Forte. Que exala uma humanidade perdida. Fria. Errática. Mas que mesmo assim ainda é bela. Juliette Binoche é Camille. Que atuação poderosa. Avassaladora. Minimalista. Ela domina o filme. Enche a tela. Transpira dor. Lucidez. Horror. E vontade de viver. É algo além do humano. Uma coisa linda mesmo. O filme todo é. Bruno Dumont faz uma obra em trânsito. A câmera apesar de se locomover lentamente e ter muitos takes estáticos, ela perscruta Camille. É cinema encarnado. Cru(el). Camille ama. Camille enlouquece. Seu amor a enlouquece. Mas seu amor salva-a. Ela é uma artista. Ela é humana. Apesar de tudo, lúcida. Consciente de sua situação. E da dos outros também. Isso dói. Incomoda. Camille é silenciada. Sua arte é silenciada. Por medo. Insegurança. De um outro artista, Rodin. Seu amante.
Como sobreviver a dor de ser traída pelo homem que você mais amou?
Como continuar vivendo depois de ter sua arte e discurso calado?
Como prosseguir sem o amparo do seus familiares?
"Camille Claudel, 1915" lida o tempo todo com essas questões. Cinema híbrido. Que mistura atores como Binoche com atores inexperientes como o que vive o irmão de Camille e outros que não são atores. Dumont filmou em um manicômio no sul da França e os "atores" que interpretam os pacientes são realmente portadores de demência, paranoia, Alzheimer... O deslocamento provocado pela presença inquietante desses seres é único. O resultado longe de ser um realismo barato lança um olhar terno e causador de um tremendo mal-estar. Impossível não lembrar da cena matadora em que Camille acompanha o ensaio de uma cena de "Don Juan" com os pacientes do manicômio. A cena começa e recomeça várias vezes. Os atores erram, pulam falas, avançam. O diretor enlouquece. Camille ri algumas vezes do que vê. Nós também rimos. De repente, a cena ganha contornos outros. Camille se vê em cena. Camille se reconhece na personagem seduzida por Don Juan. E chora. Um choro contido. E depois, se descontrola. E nós também choramos e nos descontrolamos. Não manipulados por nada, nem ninguém. Mas porque também nós nos reconhecemos naquela cena. Na cena da cena. Várias câmadas habitam o que vemos. Basta enxergar. É palpável. Tem outras mais. Algumas outras mais. Impossível ficar indiferente. Não dá. Camille também sou eu. Camille somos todos nós. Alguns são Rodin. Seduzem, enganam, são medrosos, não se entregam e vivem uma mentira. Habitar a verdade tem seu preço. E a cena final do filme mostra o quanto Camille estava consciente de tudo isso. Sem palavras. É maravilhoso!
Cores do Destino
3.5 196 Assista AgoraAcabei de assistir "Upstream Color" do diretor Shane Carruth. Assistir é modo de dizer. Acho que o filme me assistiu na realidade. Minha cabeça dói. E eu sinto uma vontade abusrda de deitar e dormir. Não é meramente um filme. É algo absolutamente sinestésico. Uma mistura louca e original de gêneros e possibilidades. Pura "brisa". É necessário mergulhar na proposta. É uma experiência. De alguma maneira, somos capturados, drogados e perdemos tudos. Assim como a protagonista do filme. Ficamos sem referencial. Sem casa. Sem norte. Sem nada. Mas é preciso. Qualquer tentativa de classificá-lo em algum parâmetro é completamente equivocado. Quebra-cabeça enigmático. Só recebemos peças. Fragmentos. Pedaços de alguma história. Restos. O corpo contaminado. A mente dominada. A captura do som. A busca por respostas só traz mais e mais dúvidas. Onde se agarrar quando tudo o que vemos é novidade? Onde se agarrar quando tudo é importante e nada parece ter um significado maior a ser comunicado?
Tudo é.
Luz. Som. Palavra. Silêncio. Treva. Sangue.
Não jogue pérolas aos porcos.
Estamos perdidos. Assim como os personagens. Assim como o roteiro. Assim como na vida. Perdidos. Chafurdados como porcos na lama. Mas também podemos ser flor de lótus. É preciso atingir a superfície. Ir além. Meditar. Refletir. Na verdade, na verdade, "Upstream Color" é uma poderosa meditação sobre a condição humana. Sobre o vazio contemporâneo. Sobre nossa busca por respostas. Sobre nossa falibilidade. Sobre o amor.
Recomendo muitíssimo!!!!!!!!!
Lena
3.4 58“De que adianta saber de tudo?”
Essa pergunta martelou minha cabeça nas duas vezes em que assisti “Lena” do diretor Christophe Van Rompaey. O filme conta a história de uma garota deslocada do mundo em que habita. Absolutamente solitária, apesar de ter mãe, uma amiga e trabalhar numa creche. Lena é gorda. Lena é sensível. Importa-se com os outros. É usada pelos outros meninos, que a procuram só quando querem sexo. Eles até transam com ela, mas não querem ser vistos ao lado dela. Sua mãe é uma mulher amarga que desconta toda sua frustração nela. Mãe opressora e carente. Uma vagina dentada. Lena é a mãe de sua mãe. Sua melhor amiga, apesar de bonita, é extremamente insegura e usa Lena para reafirmar sua felicidade encenada. Ela precisa provar que é feliz. Lena não tem essa necessidade. Até que um dia, Lena encontra o amor. Liberta-se disso tudo.
Estamos apenas no começo do filme.
Confesso que raras vezes temi tanto pelo futuro de uma personagem de ficção quanto por Lena. O namorado dela é um garoto lindo, desencanado, que assume a relação sem medo e até convida-a para morar em sua casa. A casa dele é grande e ele mora só com o pai. A mãe já morreu faz muito tempo. O menino e o pai não conversam muito. Ambos são carentes de uma figura feminina em casa e Lena supre essa ausência. Lena transforma-se em mãe do namorado e mãe do pai do namorado. Mas não deixa de aproveitar a vida e seu namoro. Tudo vai bem demais. Será que o filme é de superação? Vamos acompanhar a trajetória bela de Lena, o entendimento de pai e filho, essas coisas? Medo. Medo. Muito medo. Nada de ruim pode acontecer com Lena. Ela não merece.
Com medo de que essa felicidade toda seja apenas passageira. Lena almeja algo eterno. E inveja a tatuagem conjunta que sua amiga e namorado fizeram. A tatuagem surge aqui como símbolo daquilo que não acaba nunca. Desejo simbólico para alguém acostumado a sempre perder aquilo que conquista, ou então, a não ter nada. Outro símbolo bastante pertinente no filme é o nome como afirmação de si mesmo. “Eu sou Lena”. Ou ainda “Eu me chamo Lena”. Essas frases serão ditas pela protagonista em momentos chaves. Uma, logo no início. Outra vez, no meio. E na última frase do filme. A diferença no modo como Lena profere as frases é sutil. Mas no subtexto, na entrelinha, quanta diferença! E isso tudo se deve ao trabalho extraordinário de Emma Levie, em seu primeiro trabalho no cinema. Aqui, ela apresenta um desempenho minimalista, interiozado, que se encaixa perfeitamente com a personagem. Desenvolvemos afeto, mas ela continua sendo um enigma para nós. Quem é Lena? O que ela pensa? Por que age de determinadas maneiras durante o filme?
A direção não entrega muita coisa. Vamos conhecendo a personagem pela ação. Por suas decisões éticas e morais tomadas diante dos fatos. Isso é o mais interessante. E o que nos deixa ligados ao filme. Gostaria muito de me alongar nesse texto sobre “Lena”. Mas não posso. Entregaria demais o que acontece. Afinal, “de que adianta saber de tudo?”
PS: Pesquisando sobre o filme na internet, descobri que o produtor do filme (Els Vandevorst) é o mesmo dos filmes “Dancer in the Dark” e “Dogville” do diretor Lars Von Trier. E entendi, o porquê de ter sentido tanta semelhança entre Lena, Selma e Grace. De alguma maneira, ela são irmãs.
Beleza Adormecida
2.4 1,2K Assista AgoraRevi "Sleeping Beauty" hoje pela terceira vez. E pela terceira vez comprovo que Julia Leigh fez um filme póstumo. Daqui uns anos falaremos muito dele. Leigh foi extremamente transgressora nessa obra e fez o que poucos (ou ninguém) teve coragem de fazer AINDA com o cinema. Rompeu regras e fez algo próximo do que vem sendo testado no gênero pós-dramático, muito discutido no meio teatral. Não é um filme feito pra se apreciar no agora. Não. Deixem ele quietinho ai... O tempo fará justiça. Aguardem!
A Caça
4.2 2,0K Assista AgoraPertubador. É o mínimo que se pode dizer do filme "Jagten" (A Caça") do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg. Lucas, personagem central do drama, é um homem pacato, trabalha numa creche, é adorado pelas crianças, sobretudo por Klara. Ela é uma linda garota, que vive vendo seus pais brigarem e acaba buscando em Lucas, um possível referencial paterno. Théo, pai de Klara é o melhor amigo de Lucas. Tudo vai bem, até que Klara ao perceber que Lucas não retribui seu amor da maneira que ela acha que ele deveria, inventa para a diretora da crechê que ele mostrou seu pênis para ela. Pronto. Alerta vermelho. A diretora fica desesperada. Chama um "profissional" responsável por tirar maiores informações da menina e conclui que o caso é de polícia. A cidade inteira fica sabendo e Lucas começa a ser investigado.
A genialidade do filme reside no fato do diretor não fazer um suspense banal com a história: Lucas cometeu ou não o tal assédio? Em nenhum momento, o diretor cai nesse clichê. No entanto, também não vitimiza Lucas e nem o transforma num mártir. Não há vitimas. Nem algozes. Todos reproduzem comportamentos. Estão acostumados. Não questionam. Deixam-se levar por um argumento de uma criança (que depois repetidamente diz que inventou a história) e julgam moralmente Lucas. O título do filme é perfeito. O caçador (Lucas e todos os outros homens do vilarejo caçam servos) vira a caça.
A sociedade cria os seus próprios monstros. E num processo todo psicanalítico faz sua transferência de culpa. É necessário ter um culpado. Um bode expiatório. E Lucas é o escolhido da vez. Resquícios de um povo cristão. Que adora um homem pregado numa cruz de madeira toda ensangüentado.
"Todos pecaram e destituídos estão da Glória de Deus".
As crianças não mentem. Repetem excessivamente os pais, a diretora, todos os moradores. Como para justificar a dúvida latente dentro deles: Como Lucas foi fazer uma coisa dessas? Logo ele? Mas não há espaço para dúvida. Se uma criança disse está dito. Ainda mais uma criança tão angelical quanto Klara.
“Mas Jesus chamou a si as crianças e disse: ‘Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele".
Em quem aquela comunidade vai acreditar? Numa criança ou num homem adulto que nem ao menos se defende? Não resta dúvida. Lucas é culpado. E é preciso que ele pague por sua culpa. O martírio começa. E dia após dia, ele é constantemente humilhado. Poucos acreditam em sua inocência. E ele se vê absolutamente sem saída. Ele é o alvo. E todos estão com suas armas empunhadas em sua direção. Não há saída.
Vinterberg constrói um filme duro, austero, gélido. E coloca os espectadores como cúmplices da mentira de Klara. Nós também crucificaríamos Lucas. Nós também exigiríamos sua cabeça. Numa sociedade toda ela dominada pelo medo. Onde o outro é constantemente visto como uma ameaça, Vinterberg toca o dedo na ferida. “Jugten” é um filme nevrálgico. Tenso. E absolutamente provocador. O diretor expõe em cena todos os mecanismos de dominação que a população está exposta. Não sobra pedra sobre pedra. Tudo que era felicidade desmorona. Não sobra nada. Nenhuma certeza. Nada. Mas, é preciso se agarrar em alguma coisa. Em qual mentira acreditar: Lucas é realmente um abusador ou aquela garotinha linda está mentindo?
Não é preciso nem ir muito longe. Todos se lembram do fatídico caso da Escola Base, onde alguns funcionários foram acusados de pedofilia. A mídia caiu matando. E a sociedade julgou antes da Justiça. Logo depois, se comprovou que a história era toda falaciosa. Como voltar atrás? Como desmentir o que antes era fato comprovado? Mesmo depois do desmentido é possível viver normalmente? É justamente aí que Vinterbeg insere seu filme. O final do filme é a resposta perfeita.
PS: As atuações de todo o elenco estão sensacionais. Destaco o trabalho minucioso do ator Mads Mikkelsen e da pequena Annika Wedderkopp, que demonstra uma maturidade absurda em cena. Eu não sei exatamente quais foram os métodos utilizados pela direção para alcançar os resultados mostrados no filme, independente disso, a atuação da garota é simplesmente monstruosa (em todos os sentidos).
Amor Pleno
3.0 558TEM SPOILER!!!! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!!!!
“O Amor torna-nos um. Eu em ti. Tu em mim.”
Somos constantemente bombardeados com frases como essa proferida por uma das personagens do filme “To The Wonder” do diretor Terrence Malick. Somos levados a acreditar que somente encontrando nossa cara metade, a outra metade da laranja, a tampa de nossa panela, seremos pessoas plenas e felizes. Pura Balela. E a origem de enormes sofrimentos dos humanos. Somos uns abandonados. Sentimo-nos abandonados. Incompletos. Vazios. Quase que o tempo todo. O outro entra como um possível alento para cessar tudo isso. Sim. Um outro. Exatamente igual: Abandonado. Incompleto. Vazio. E o resultado de tudo isso: Mais e mais solidão. E cada vez menos amor. Sobretudo nessa nossa modernidade. Onde tudo é líquido. Rápido. Descartável. E nada é feito pra durar. Então, aparece a questão fatal:
Como o amor pode crescer em meio ao medo?
O nosso aprendizado amoroso é todo baseado no medo, sobretudo da solidão, na carência. E quando não é baseado nisso, temos aquele amor caridoso, que nada mais é que uma forma de se esconder. Olha o medo aí de novo. O amor em nossa sociedade é uma obrigação. Somos obrigados a amar os outros. Obrigados a amar nossa família. Somos obrigados até a amar Deus. Não somos livres. Até tentamos. Mas o fato é que não somos. Não corremos riscos. Não saímos da gaiola ideológica. Cobiçamos luxos. Queremos nos sentir seguros. E evitamos nos comprometer. Temos medo de ser quem somos. E afinal, o que somos?
Somos autores da obra. “To The Wonder” é difícil, fragmentado, poético, etéreo. Um filme individual. Aquilo que vemos é o que podemos ver. Sem tirar nem por. O personagem vivido pelo ator Bem Afleck é um personagem morno. Apático. Frio. É mais um joguete. Um legítimo homem contemporâneo. Perdido. Absolutamente perdido. Já a personagem da atriz Olga Kurylenko é quente. Passional. Entrega-se ao outro sem resistência. Mas falta-lhe amor próprio. “Escrevo na água, o que não me atrevo a dizer”. O padre vivido por Javier Bardem se perde numa caridade vazia.
“Tudo o que vejo é destruição. Fracasso. Ruína”.
Os relacionamentos humanos mostrados em “To The Wonder” são meios para fugir de si mesmos. O tédio predomina. O medo domina. A carência grita. E o outro serve como diversão. Algumas cenas em “To The Wonder” se passam num parque de diversão. E ali se encontra a metáfora perfeita para o amor dos humanos: um sobe e desce frenético. Giramos e nos entorpecemos. Pra esquecer. Sobretudo de nós mesmos. De nossas dores. De nosso vazio.
O novo filme de Malick não traz um enredo claro. É preciso escavá-lo. Ir junto. Se permitir. Só assim o filme fará algum “sentido”. E que fique claro. Esse “sentido” será sempre individual. O filme é um exuberante quebra-cabeça. Recebemos várias peças e temos que ir montando aos poucos. Com cuidado. Para não se deixar cegar pela beleza das imagens. É preciso ir além das imagens. E ver o que elas escondem. Ou o que elas revelam. O filme é sobre amor. Sim. Conta histórias de amor. E dito assim pode até parecer uma história convencional. Fulano “ama” Fulana. Casam-se. Brigam. Separam-se. Fulano conhece outra Fulana. “Apaixonam-se”. E a primeira Fulana se ferra porque ainda amava o tal Fulano. Mas esqueça. O filme é bem mais que isso.
A real beleza de “To The Wonder” não reside na fotografia deslumbrante, nem na trilha sonora perfeita. Não. O que mais me impressiona no filme é a coragem do diretor de bancar um filme como esse. De esfregar na nossa cara, o quanto não somos livres, o quanto somos dependentes psicologicamente dos outros. Nosso ciúme, medo, ansiedade estão todinhos ali. O fato é que não amamos ninguém. Nem a nós mesmos. Não sabemos amar. O amor em nossa contemporaneidade é apenas troca. Comércio. Material para cinema, novela, música grudenta. Lucro. O amor, aquele que não espera nada em troca, só pode surgir na liberdade, na ausência do medo. Quando mergulhamos fundo na solidão. Quando a compreendemos. Quando já não mais temos medo dela. Quando nos tornamos solitários. Esse é o aprendizado da personagem de Olga Kurylenko. Esse é o tal Amor Pleno. Quando não há mais dependência de nada, nem ninguém.
“No momento em que tiverem no coração essa coisa extraordinária chamada amor e sentirem a profundidade, o prazer, o êxtase dele, descobrirão que para vocês o mundo se transforma”.
Com essa frase do pensador indiano Krishnamurti encerro meu texto sobre esse filme sensacional e urgente. Recomendo. Muito. Muito.