"A paixão é violenta como o abismo: e suas centelhas são centelhas de fogo, labaredas divinas. Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor; nem rios poderão afogá-lo. Se alguém quisesse comprar o amor, com todos os tesouros de sua casa, se faria desprezível."
Talvez esse trecho do Cântico dos Cânticos ilustre bem o estado amoroso e sua submissão. Sim. Porque o que comumente denominamos amor romântico nada mais é do que uma cópia (ou seria uma substituição?) do amor e obediência ao Deus. Historicamente o amor foi se tornando uma religião. Aquilo que seria responsável por nos trazer a sensação de enraizamento outrora provocado pelo devotamento e fé em Deus. Viria dai a ânsia amorosa de se buscar ideais intangíveis no(a) parceiro(a) e sua subsequente frustração? Filmes como "Respire" nos fazem refletir sobre essas questões. "Quando estamos apaixonados, somos mais ou menos livres?" é a pergunta que o professor faz logo no começo e faz todo o sentido ao longo do filme.
Charlie é uma garota absolutamente normal que ao conhecer a nova aluna da escola fica encantada. Sarah é realmente encantadora e logo as duas se transformam em melhores amigas. Mas pouco a pouco, a trama vai crescendo em tensão até nos deixar verdadeiramente sem ar em sua parte final. O impulso masoquista de Charlie encontra eco na personalidade sociopata da nova amiga. O florescimento da possibilidade amorosa é sugerida de maneira sutil pela jovem diretora (e também atriz) Mélanie Laurent. A infelicidade ronda os apaixonados desde o início, personificado no relacionamento entre os pais de Charlie. Lá pelas tantas, depois de tantas idas e vindas entre os dois, a filha pergunta para mãe "Por que você sempre o perdoa?". Logo, Charlie saberá as respostas. Mas restaria alguma possibilidade de sair desse ciclo vicioso? Sim. Lógico que sim. Começa pela compreensão de que o ser amado não pode ser o responsável por nosso prazer ou dor. Respirar... Talvez seja um bom primeiro passo. Mas haveria tempo hábil antes que o ressentimento tome conta de tudo?
“Meu senhor, livrai-me do ciúme! É um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto que o alimenta."
"45 anos" do diretor Andrew Haigh é um pequeno grande filme sobre o quão frágil são os vínculos humanos. Desempenho brilhante de Charlotte Rampling que através de silêncios e sutis variações de expressões faciais constrói uma personagem comovente às voltas com a incerteza de que tudo o que viveu com o seu marido foi uma mentira. Não há traições. Nada disso. Apenas a fantasmagoria de um primeiro amor de seu marido que vem à tona na semana em que eles vão dar uma festa de comemoração dos 45 anos de casados. Andrew Haigh capta com extrema sensibilidade a dor de ambos de mexer com uma história aparentemente resolvida. Será? Pouco a pouco, fica a impressão de que mesmo quando estamos juntos com alguém a nossa condição solitária se mantém. Afinal, ninguém sabe o que vai na cabeça do outro. O que pensa? O que deixou de viver? O que realmente sabemos sobre o outro? E sobre nós? E sobre o amor? É possível ter alguma certeza sobre esse sentimento absolutamente misterioso e poderoso? Mesmo depois de toda uma vida juntos é compreensível sentir-se atemorizado diante de uma sensação de rejeição e a possibilidade de abandono? Ou é condição sine qua non de um relacionamento sentir-se permanentemente inseguro?
O aspecto mais dolorido de "45 anos" não está no que é dito, no que é mostrado, no que é sabido, mas no que é imaginado, pensado. Na vida que poderia ter sido e que não foi. Nas escolhas, abnegações que fazemos ao longo da vida e que quando olhamos um tempo depois, elas parecem indicar que o que não escolhemos, o que deixamos para trás, sempre parece melhor do que temos hoje. Somos constantemente perseguidos pelas possibilidades. Buscamos um relacionamento na esperança de que isso nos faça esquecer a solidão, o sentimento de insegurança, inferioridade, e quase sempre fracassamos.
Sim. "O fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação", como definiu muitíssimo bem o sociológo Zygmunt Bauman. O não dito, o não revelado, o não verbalizado ganha forças. O aspecto fantasmagórico da obra é reforçado pelas escolhas minimalista da direção que evoca o tempo todo o cinema de Ingmar Bergman e sobretudo o antológico "Cenas de um Casamento". Mas é só uma referência, não uma cópia. O diretor Andrew Haigh já tinha demonstrado habilidade nesse tipo de tema em seu filme anterior "Weekend" em que dois caras se conhecem, transam e começam a gostar da companhia um do outro, mas um deles só quer curtir, enquanto o outro quer algo mais sério. Quais são os riscos de escolher entre uma coisa ou outra? A resposta pode estar em "45 anos"... ou não.
Que belo filme é esse falso documentário do diretor Woody Allen. Sean Penn vive um guitarrista de Jazz daqueles clássicos. Bon Vivant. Beberrão. Mulherengo. E muitas vezes, inseguro e carentão. Seu talento é reconhecido, mas suas idiossincrasias não lhe permite voos maiores. Um belo dia conhece Hattie, uma lavadeira muda. Ela se apaixona por ele. Ele também. Mas acredita que um artista não deve se apaixonar para não comprometer sua arte. Woody Allen faz um bom filme de "homem conhece mulher" e apresenta inovações na maneira de contar essa história. É quase uma cinebiografia. Mas de alguém inventado. Sean Penn é o corpo do filme. Samantha Morton, a alma. Sua Hattie é comovente. Daquelas personagens que dá vontade de levar pra casa. Impossível não lembrar de Charlie Chaplin em seus filmes mudos ou de Giulietta Masina em "Noites de Cabíria" de Fellini. O silêncio dela versus a falação narcisista e melancólica dele torna-se uma forma de equilíbrio para aqueles dois. A necessidade de aprovação constante dele encontra no jeitão "Já que sou, o jeito é ser" dela um alento, uma esperança. Eles são felizes juntos. Mas no fundo, ele a despreza por considerá-la inferior. Vi muito de Olímpico/Macabéa do livro "A Hora da Estrela" na dinâmica de relação proposta por Woody Allen. Até mesmo na inversão proposta lá pelo meio do filme quando entra a personagem da Uma Thurman. É um filme doce e melancólico. E engraçado. Tragicamente engraçado. Enfim, um legítimo Woody Allen.
GENIAL! O filme "Ex-Machina" é uma atualização hiper-contemporanêa do Mito da Caverna. Se no texto de Platão, as criaturas de dentro da caverna, só ouvem e veem projetadas sombras da vida lá de fora, aqui nem isso. Ava é um robô desenvolvido por Nathan, um milionário excêntrico, que bola um concurso entre seus funcionários para que um deles passe uma semana em sua casa, uma mansão que só é possível chegar de helicóptero e está localizada num lugar deslumbrante, no meio da floresta. Caleb, um jovem programador, é selecionado e assina um termo de confidencialidade. O plano de Nathan é que ele faça testes com Ava para que se comprove que ela tem capacidade de conviver com humanos sem que seja perceptível que se trata de um robô. Caleb começa as sessões com Eva e conforme o tempo vai passando, eles se apaixonam um pelo outro.
Até aqui é o começo do filme que nos apresenta mil e uma reviravoltas, sem perder sua essência de ficção cientifica. Não vou contar o que acontece, mas é um filme de referências. Muitas. A mais óbvia é "Frankenstein", de Mary Shelley, mas também o filme "O Enigma de Kaspar House" do diretor Werner Herzog. O que aconteceria com a criatura que rompendo as "correntes" que o seguram a "caverna" consiga sair dali e encontre o mundo que ele só conhecia de ouvir falar? A paixão de Caleb e Ava é uma espécie de exacerbação de "Her" do Spike Jonze ou do 1° episódio da 2° temporada de "Black Mirror" em que o ator Domhnall Gleeson que vive Caleb em "Ex-Machina" é uma materialização de um aplicativo que mantém viva a memória de pessoas mortas. O que todas essas referências discutem é a linha cada vez mais tênue que separa a fronteira entre o real, o virtual e o ilusório. Algo que já estamos vivenciando sem nem mesmo perceber.
O diretor e roteirista Alex Garland consegue fazer um filme esteticamente belo, claustrofóbico e provocativo. Utilizando basicamente apenas três pessoas em seu elenco: Oscar Isaac, Domhnall Gleeson e Alicia Vikander, além de um trilha sonora que entra em momentos pontuais para engrandecer o que está sendo mostrado, assim como a fotografia que assume a tensão de maneira bastante original.
Eu se fosse você correria para assistir esse filme!!!!
"The Lobster" é mais uma daquelas distopias que deixam a gente de cabelo em pé. Em apenas uma palavra é GENIAL! Num futuro próximo, não será mais permitido a solidão. Todo aquele que estiver solteiro será enviado ao hotel onde terá 45 dias para encontrar alguém. Caso contrário, será transformado num animal de sua preferência e solto na floresta. Há também os que se revoltam com essa situação e vivem escondidos e são caçados pelos solitários. O diretor Yorgos Lanthimos instaura o mal estar de maneira minimalista e contundente, fazendo de sua obra uma poderosa análise sobre as relações humanas e como elas se estabelecem. O Amor como o conhecemos e o vivenciamos é uma invenção moderna. Foi se transformando ao longo do tempo. Substituindo o vazio do amor ao Deus, o amor humano é alimentado diariamente por hábitos e costumes. La Rochefoucauld escreveu que "algumas pessoas nunca teriam se enamorado se nunca tivessem ouvido falar do amor." Já Rousseau foi mais filosófico: "E o que é o próprio amor, senão quimera, mentira e ilusão? Amamos a imagem que fazemos para nós mesmo, muito mais do que o objeto a que a aplicamos."
Sim. O diretor tem uma teoria na cabeça e mergulha fundo nela. O hotel é a metáfora perfeita da busca amorosa e da sociedade na qual todos estamos inseridos. Lá estão todos os jogos sociais e a pressões cotidianas para que se tenha algo do seu lado. Até filhos podem ser providenciados para que os conflitos entre o casal sejam postos um pouco de lado. Tão familiar não é mesmo? Acho que conhecemos bem essa prática. Outra ação que nos soa íntima é como as pessoas forçam semelhanças para que sejam amadas pelas outras. O olhar de Lanthimos é cruel, impiedoso, mas a ironia está presente. O esdrúxulo de algumas situações é tanto que às vezes dá vontade de rir... ou de chorar. Essa ideia do amor nos torna seres miseráveis ou a carência humana é tanta que inventamos tais sentimentos para suprir um pouquinho que seja essa nossa necessidade? Ou indo além; Essa carência é real, ou também seria forjada em nós? E se a resposta for positiva, fica a pergunta: Forjada por quem? E por quê? Nietzsche classificava isso como um empobrecimento da vida. Ideia forjada pela religião para justificar um deus que condenava os mais fortes e salvava os fracos, fazendo-nos sentir culpados por aquilo que somos, odiando nossa própria natureza, desejosos de um céu utópico. Seria o medo e não o afeto que nos ligaria aos outros? Medo ou conveniência?
Os solitários do tal hotel recebem diariamente aulas práticas de como ser solitário é ruim. Numa das cenas mimetizadas pelos garçons do hotel, um homem está sozinho no café da manhã, ele engasga com alguma comida e morre. Na cena seguinte, o mesmo homem na mesmíssima cena, agora é salvo pela esposa que o acompanha no café. Para as mulheres, a cena criada é diferente. Uma mulher sozinha andando na rua é abordada por um homem mal intencionado. Na cena seguinte, já acompanhada pelo marido, ninguém mexe com ela. A ideia de salvação é idêntica, mas o machismo explícito na cena da mulher solitária torna tudo ainda mais cruel. A ideia de amor é cristã por excelência, no entanto, Lanthimos parece muito mais próximo do pensamento nietzschiano:
"Fugis de vós mesmo rumo a vosso próximo e gostaríeis de transformar isso numa virtude."
O que haveria de tão assustador na solidão? Era a pergunta que martelava minha cabeça durante o filme. Ou melhor, é a pergunta que martela minha cabeça diariamente. A história de nossas perdas e busca incessante para conseguir o amor de nossos pais na infância seria uma possível resposta para o nosso comportamento enquanto adultos? Freud diria que sim, que essa é a nossa formação enquanto indivíduos. Então não haveriam saídas? Talvez na liberdade. Mas não naquela que comumente ouvimos por aí. Liberdade não é fazer aquilo que dá na telha. Não só. É acima de tudo compreender todo o problema da dependência. Filmes como "The Lobster" ajudam nesse processo.
"Cinco Graças" (Mustang) é um daqueles filmes que exalam beleza e crueldade a cada take. Contando a história de cinco meninas criadas pelo tio e pela avó num vilarejo bastante conservador da Turquia, o diretor Deniz Gamze Ergüven com certeza se inspira em "Virgens Suicidas" de Sofia Coppola para contar sua história. Mas o que mais assusta é que "Cinco Graças" não é um filme de época. Mas se passa numa Turquia contemporânea ainda atrelada a preceitos religiosos e extremamente machistas. Todo anseio de liberdade é podado pela família e o único papel social destinado às garotas é se transformarem em boas esposas. Lale é a narradora do filme, justamente a mais nova, aquela que por ser ainda criança tem alguns privilégios que as outras não tem. É seu olhar curioso e ingênuo que nos guia nessa história de opressão. É seu desejo de liberdade que nos toca e enternece. Que filme lindo!
"A Terra e a Sombra" é um daqueles filmes que exigem demais do espectador. É uma obra contemplativa, dolorida, poética. O diretor César Augusto Acevedo concebe um filme de incrível beleza ao mostrar uma família defrontada com a doença do homem da família (o pai, o filho e o marido). Ele está doente devido ao extenuante trabalho de cortador de cana, também exercido pelas mulheres da família (a mãe e a esposa). Há também um filho de uns 8/10 anos de idade. E um outro homem que abandonou aquelas pessoas em busca de um futuro melhor. Ele é o pai, o marido, o sogro e o avó. Ele regressa ao lar para cuidar do filho adoentado. Seu regresso provoca mudanças profundas em todos ali. Sobretudo, na relação que pouco a pouco é construída com o neto. É um filme de antonímias: luz/sombra, criança/velho, ir/ficar, dentro/fora, beleza/dureza, ética/estética.
" - Livrarmo-nos do inútil talvez seja a coisa mais difícil. - Sim. E nós não podemos fazê-lo sozinhos."
Que beleza é o cinema de Eugène Green. Algo autêntico e único num mundo totalmente despido de originalidade e de sua força. Assistir ao cinema de Eugène Green é resgatar esse olhar juntamente com o vigor de presenciar uma verdadeira obra de arte. Não é meramente cinema. É mais. É além. É constatar que estamos perdendo a capacidade de se encantar com o suficiente. A palavra aqui tem seu poder encantatório preservado. Num mundo totalmente imerso em imagens, o cinema de Eugène é um respiro. Não que suas imagens não sejam belas e significativas. E eles são. Mas é que tanto as palavras quanto as imagens só possuem valor enquanto experiência. Isso é o aspecto mais belo de "La Sapienza". Sim. Porque é exatamente isso que dá sentido ao que somos e ao que nos acontece. Jorge Larrosa Bondía escreveu que "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece." É isso. Tão contemporâneo, tão dolorido. Porque cada vez mais acontecem coisas, uma infinidade de coisas, somos bombardeados com informações, atualizamos nossos status, fotos e somos atualizados de status, fotos e notícias, mas raramente nos sentimos tocados por algo. É sobre isso que nos fala Bondía. É sobre isso que nos fala Eugène Green. É isso que os personagens de "La Sapienza" precisam descobrir. Isso é o que nós também precisamos sentir. Como numa epifania possível. Como numa aprendizagem urgente. Mas é preciso tempo e já não temos tempo. É necessário fazer silêncio e temos medo do silêncio. Viramos presas fáceis do entretenimento e de seu estímulo barato. Tudo o que não temos aqui em "La Sapienza. Pelo contrário. Tudo é uma meditação. Uma contemplação. Tudo é uma possibilidade. Para o quê? Assim Bondía define que a possibilidade da experiência "requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço."
O mais bonito dessa experiência proposta por Eugène é que os personagens mais velhos acreditam em sua arrogância que estão ensinando os mais jovens, quando na verdade o que ocorre é exatamente o contrário. Sim, se "a vida é um fardo um tanto pesado. É preciso força pra chegar até o fim" como afirma um dos personagens, a força necessária para se chegar até o fim é uma só: a paixão. Não com o sentido que usamos. Mas como experienciação do amor.
"Creio que o homem sempre é movido pela paixão. Caso contrário não está mais vivo."
Ah, o amor... Aquele poderoso sentimento de compartilhar a alegria de estar junto... “JONGENS” (Garotos), do diretor Mischa Kamp tem essa capacidade de nos fazer amá-lo justamente por compartilhar esse prazer conosco. É um filme inocente, mas não menos potente. Sobre a urgência de ser aquilo que se é. Sobre a liberdade arrebatadora do autoconhecimento. Sobre a potência dos nossos desejos e afetos quando assumidos. Ah, o amor...
Estava muito ansioso para assistir "Lições de Harmonia" do diretor Emir Baigazin. Acabei de ver agora, e estou bastante decepcionado. Acho que o filme sofre do mesmíssimo mal de "A Gangue" o polêmico filme ucraniano que ganhou alguns prêmios internacionais: A institucionalização da violência. Sim. Sabemos que isso é uma realidade. Mas não podemos esquecer que é o olhar do artista que altera a realidade. A opção de mostrá-la sob um viés realista, frio e escondendo informações do espectador faz com que a obra ganhe o tal selo "cult", mas perca em tensão e provoque tédio em inúmeros momentos. Sim. As imagens são lindas, o posicionamento da câmera impressiona, os meninos estão muito bem, mas esse tipo de elogio não deveria caber num filme com essa temática tão urgente e atual. Fica parecendo um exercício de estilo. Um belo exercício de estilo. Mas Cinema é muito mais que isso. Não gosto de filmes em que a estética toma a frente da ética. As escolhas que fazemos, todas elas, transparecem no ato da criação. Esse talvez seja o calcanhar de Aquiles do aprendizado educacional de todos nós. Tanto a escola quanto a família e toda a sociedade em geral não educam as crianças e jovens para a obtenção de um pensamento crítico. Todo o modelo de ensino é galgado na repetição, na cópia, gerando indivíduos apáticos, cínicos e descrentes. Ao final, o filme "Lições de Harmonia" sofre do mesmo mal que pretendia representar.
Que grata surpresa é esse "In Natura", filme norueguês dos diretores Ole Giaever & Marte Vold. Ole Giaever escreve, dirige e atua como protagonista e isso faz toda a diferença. É uma obra pessoal e minimalista sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida e sobre quem nos tornamos e quem somos de verdade, sobre a necessidade da solidão e do silêncio como instrumentos de autoconhecimento. Martin é um homem comum, casado, com um filho pequeno, um emprego entediante, uma boa casa, mas nada disso faz com que ele se sinta completo e feliz. Pelo contrário, ele está profundamente desmotivado e decide fazer uma viagem de fim de semana para entrar em contato com (sua) natureza. É uma metáfora, claro, mas aqui a natureza personifica-se e o protagonista mimetiza-se nela numa desesperada possibilidade de salvação.
O filme é todo narrado através dos fluxos de consciência desse homem em conflito e isso traz uma estranha identificação com tudo o que se passa na cabeça dele. O que antes era desconhecido torna-se matéria de reflexão. Lembranças, desejos, vontades, culpas também tomam forma ao longo revelando que todos nós carregamos muitas histórias dentro de um mesmo corpo e que somos muitos, plurais, e que a merda está em transformar-se apenas numa coisa só. A crítica social aparece de maneira sutil e ao mesmo tempo perturbadora. É possível alguém ser feliz dentro dos padrões construídos em sociedade? Por isso, Martin se afasta, para encontrar o silêncio interior que lhe proporcionará uma mudança radical. Fazer de sua própria consciência um lago silencioso.
"Tem gente ao meu redor que não me deixa com medo de ir pra praia, mesmo sabendo que eu posso me perder por lá. Mas eu prefiro arriscar."
Aquela sensação de que há algo a ser comunicado mas que não se sabe direito o que é, nem como isso merece ser verbalizado. É sobre isso que fala "Beira-Mar", filme brasileiro dirigido pela dupla Filipe Matzembacher e Marcio Reolon. Aqueles dois meninos personificam dúvidas, rebeldias clichês, uma certa melancolia de não se ser nem mais crianças e ainda não ter se tornado adulto. O filme é extremamente simples e se contenta em apenas mostrar um final de semana longe de casa. Esse aspecto transitório é necessário para colocar os personagens longe das pressões familiares, longe das certezas e um pouquinho mais perto de si mesmos. É um filme de desconstrução. Um pequeno e singelo movimento de coragem diante da mentira do mundo.
Os poucos diálogos giram em torno da vida normal de qualquer jovem. São realistas e podem parecer "vazios". Mas essa é a intenção. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu em "Amor Líquido" que o fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação. Por isso que o que importa aqui é o "não dito". Aquilo que está latente, mas que ainda não desabrochou. É uma obra silenciosa, melancólica, física. E os atores Mateus Almada e Maurício José Barcellos concebem seus personagens de maneira naturalista, transitando com eficiência entre a ingenuidade e a descoberta do desejo, sem perder a ternura e a sensação de que ainda há algo para ser vivido dentro e ali fora.
Eles estão à deriva e a descoberta da sexualidade propiciará um encontro consigo mesmo e com a liberdade do momento em que é assumido todos os medos, amores, desejos. A fantasmagoria desaparece e pela primeira vez é possível se encontrar com o imponderável de si mesmo. Por quanto durará essa sensação? O que acontecerá a seguir? Não se sabe. Essa indefinibilidade do futuro é toda nossa jornada amorosa na terra. Talvez essa seja a beleza da vida. Os momentos são efêmeros mas deixam marcas eternas.
É tudo sobre o desejo. Sempre é tudo sobre o desejo. Sim. Afinal, somos máquinas desejantes, como já nos alertou Deleuze. "It Follows" (me recuso a chamá-lo de "Corrente do Mal" como a tradução mais uma vez estúpida do nosso país optou por nomeá-lo). O nome em inglês traduz perfeitamente o espírito do filme. Se há um "mal" aqui ele é um só: o mal-estar de toda uma civilização ou de um modo de viver específico. O filme é magnífico em capturar essa essência demasiada humana em que nos enfiamos. A negação dos nossos instintos em nome de uma suposta segurança utópica, que não vem e que talvez não virá nunca. Estamos diante de um estado de tensão permanente, em que não é mais possível nem mesmo nomear o mal. Ele já não tem rosto. Mas nos causa um incessante estado de angústia e medo. Como nos livrar disso?
O enredo é extremamente simples: uma garota aparentemente virgem transa com seu novo namorado que passa para ela uma espécie de condenação. Sua única possibilidade de salvação é passar isso adiante, transando com outra pessoa. A genialidade do roteiro e da direção de David Robert Mitchell é exatamente essa; extrair terror e suspense de coisas aparentemente banais. A partir disso, qualquer pessoa ou ação passa a ser suspeita e vive-se sob um estado de tensão extremamente perturbador. E aí que o roteiro ganha dimensões outras. O que fazer? Jay, a protagonista do filme, se vê dividida em duas. Seu lado racional versus seu instinto. Seja qual for sua escolha, ela permanecerá apenas metade e enfraquecida. Sim, porque isso tudo é apenas uma falsa questão e logo Jay se dará conta disso. O final, um dos finais mais enigmáticos e doloridos de todos os tempos, é altamente provocativo. Talvez Jay precise se dar conta do que fizeram (quem?) com sua cabeça. Talvez ela precise entender os mecanismos que fizeram com que ela não apenas tivesse medo dos outros, mas, sobretudo, tivesse absoluto horror a si mesma. Talvez Jay precise aceitar sua própria condição solitária. Talvez Jay precise vivenciar outras possibilidades de relacionamento longe desse maniqueísmo cultural tão característico dos países ocidentais. Talvez Jay só precise se dar conta de sua potência. Talvez nós precisemos ser menos Jay.
”Engraçado. Eu tinha esse sonho de ser madura, de sair em encontros, sair com os amigos de carro. Tinha uma imagem de mim mesma, segurando a mão de um cara bem bonito. Escutando rádio, dirigindo por uma bela estrada. Talvez no norte. As árvores começarem a mudar de cor. Nunca tem a ver com um lugar específico. Devia ser sobre liberdade. Agora que somos adultos, aonde diabos iremos?”
Que delícia de filme é esse "Inside Out"!!! Sim. Somos todos Riley. Ou já fomos um dia. A identificação é imediata, tanto com a protagonista quanto com os sentimentos personificados na animação. Essa sacada é ótima e acompanhamos o processo de amadurecimento dessa garota. É um rito de passagem. Mas originalíssimo. É um passeio por nossas emoções mais genuínas e por nossa humanidade. Ao mesmo tempo que emociona, nos faz refletir sobre a nossa condição. Além de ser uma aventura para os olhos de tão belo. Somos o que somos, e é da negação da nossa essência que vem o sofrimento. O aprendizado de Riley é também o nosso. Cada emoção tem sua hora e lugar. Ter somente alegrias nos torna frívolos. Negar a tristeza é não experimentar a possibilidade de aprofundar as relações (com a gente mesmo, com os outros, com o mundo). Isso é o mais maravilhoso do filme. Sim. Porque também a tristeza é bela, precisa ser ouvida e encarada de frente. Essa é a verdadeira transcendência. O que mais me surpreende é isso vir de uma animação... Sim. Vivemos hoje na cultura da felicidade. Temos que ser felizes o tempo todo. Essa é a mensagem. E nesse processo rejeitamos a tristeza, fugimos dela e a tornamos mais triste. Tornamo-nos mais tristes também. E passamos a mentir. Todos mentem. E a coisa só muda, quando a gente se desapega da ideia de felicidade. O Osho tem uma frase perfeita pra exemplicar isso que estou tentanto dizer:
"Não rejeite a tristeza e não se apegue à felicidade."
Sim. É isso. Ah, eu poderia passar horas e horas vendo essa maravilha de animação!!!!!!!
PS: Preciso, necessito, quero agora, um Bing Bong pra mim!!!!
"71 - Esquecido em Belfast" é um filme de guerra. Ou melhor, um filme sobre a guerra. Ou melhor ainda, trata-se da produção da histeria de uma guerra. Sim. Porque já não se sabe nem mais porque nem contra quem direito se luta. O importante é matar. Cumprir ordens. Achar um culpado. O pensador francês Jean Baudrillard diz que isso é também terrorismo. Essa procura por uma responsabilidade, que nada mais é do que "a consequência do desaparecimento das causas e do poder ilimitado dos efeitos." ISSO! Já não se sabe mais nada, mas é preciso não questionar. É assim que se faz a manutenção do ódio ao outro. O inferno são sempre os outros. O erro tá sempre lá. Do outro lado da rua. Noutro país. Numa outra religião. Porque? Não importa mais. Todos perderam seus nomes, sua identidades. Transformaram-se num mero pedaço de carne, num número. São inomináveis. Mas e o quando o grupo deixa de ser o "batalhão" e o soldado vê sozinho no campo mimado entre territórios inimigos? É disso que se trata o filme. Dessa mudança de percepção.
No início acompanhamos o treinamento de alguns soldados, logo depois, são jogados sem o devido preparo numa missão na Irlanda do Norte. Algo dá errado e de repente o soldado Hook vê-se sozinho tendo que sobreviver literalmente no inferno. Quem é o inimigo nessa situação? O filme é de uma tensão absurda pois mostra o quanto estamos todos chafurdados num encadeamento de pequenas e grandes chantagens. Não restando nenhuma outra saída possível a não ser tentar salvar a própria pele. Custe o que custar.
Ótimo filme de estreia do diretor Yann Demange, com uma fotografia e trilha sonora instigantes, e a atuação minimalista do Jack O'Connell. Recomendo.
Sim. "Comet" se parece com um daqueles filmes de amor que você já assistiu. Tem a fofura de um "500 dias com ela". A bad e depressão de um "Blue Valentine". O esdrúxulo cult de "O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças". A complexidade narrativa de "Dogma do Amor". Mas não se engane. O filme tem uma cara que é só dele. E isso deve-se sobretudo ao roteirista e diretor Sam Esmail. Estou completamente apaixonado por ele. Eu explico: Eu tenho uma mania. Tenho várias. Mas quero falar especificamente sobre essa. Quando vejo uma coisa que gosto muito (um filme, uma música, um peça, um quadro, um livro) corro atrás do que essa pessoa já fez pra me certificar de que ela é boa mesmo e não está apenas me enganando. Sou libriano, gente... Desculpa! O Caso é que fiquei alucinado com a série "Mr. Robot" assinada por Sam Esmail, foi então que descobri que ele tinha realizado um filme já e fiquei procurando procurando até encontrar. E achei. E assisti. E o cara é phodalhaço! Tem estética, mas nunca dissociada da ética. Como sei disso? Pq está implícito em cada take, em cada cena, em cada palavra de sua obra. É lindo. É extático, eu diria. É belo, classudo, emociona e faz pensar. PORRA! Como é bom quando isso acontece!!!!! Isso é arte, meus amigos. Arte em sua mais pura essência. A história é banal. O mesmo "homem conhece mulher" de sempre. Mas é olhar do artista que altera a realidade. É sobre o tempo. Sobre espaço. E a gente. Sobre a vastidão do mundo. E a gente. Sobre o cometa que de tempos e tempos passa e você pega ele ou não. O amor é esse cometa. (?)(...)(!)
"Me sinto como se eu estivesse no mundo errado. Porque não pertenço a um mundo onde não terminamos juntos. Não pertenço. Existem universos paralelos onde isso não aconteceu. Onde eu estou com você e você está comigo. E seja qual for esse universo é nele que vive o meu coração. Eu queria tanto voltar aquele sonho que eu tive. Eu tentei voltar a dormir. Nunca pensei que o amor existisse. Nunca. E agora eu acho que a vida não existe sem ele. Isso parece uma frase cafona de cartão comemorativo."
Gostei tanto de "It Follows" que fui atrás da filmografia do diretor David Robert Mitchell e descobri que ele só tinha dirigido uma outra obra. Procurei e achei. O filme chama-se "The Myth Of The American Sleepover" e o título em português dessa vez é ótimo: "O MITO DA LIBERDADE". Novamente estão lá os adolescentes e a urgência da descoberta da sexualidade, os anseios, os medos e os desejos. Em suma, retrata o rito de passagem da infância para a adolescência. É um filme interessante que não trata os personagens feito idiotas (tipo "American Pie"), nem os erotiza (tipo "Kids" e "Ken Park"). Não. É uma obra que respeita e principalmente se interessa em apenas mostrar uma noite na vida daqueles meninos e meninas. E sua beleza vem dai. Dessa apresentação singular de um fase já amplamente filmada. Sim. O diretor tem um estilo e ele já está impresso nessa sua primeira obra. Ele também possui um tema até agora obsessivo; retratar esse mal-estar de nossa juventude contemporânea. Sempre quando falo desse assunto gosto de citar o pensador Baudrillard que nos lança a pergunta fatal: O QUE FAZER APÓS A ORGIA? Sim, porque habitamos um tempo em que tudo parece já ter sido vivido e experimentado e que mesmo assim ficamos com aquela sensação quase sempre incômoda de que uma grande festa sempre está acontecendo e nós não fomos convidado. As redes sociais potencializam essa sensação onde tudo parece estar liberado, porém, quase sempre, inacessível para a maioria. Mitchell não faz disso uma tese, pelo contrário, seu cinema é imagético. Retrata com sensibilidade uma fase em que só é possível viver de indefinições, sonhos e fantasmagoria que sempre ou quase sempre desembocam em frustrações e fracassos.
"Eu não acredito que você caia em todas besteiras sobre a juventude. (...) É um mito. (...) Eles fazem você deixar a infância para trás prometendo todas essas aventuras. Mas uma vez que entenda o que você perdeu, é tarde demais. Você não pode recuperá-la."
Olha, vou falar uma coisa pra vocês: Corram para os cinemas e assistam "Que horas ela volta?". É uma das melhores coisas que eu já vi na minha vida. Não tenho nem condições de escrever uma crítica agora pq o filme mexeu muito comigo. Sei lá, parece um filme de terror. Vc se pega tenso. Ri. Chora. Reflete. Um turbilhão de sensações... eu não queria que o filme acabasse nunca mais... poderia ficar horas e horas ali vendo aquilo... E por favor, parem tudo e entreguem todos os prêmios para a Regina Casé que está estupenda, junto com o todo o elenco e direção. Uma obra-prima!!!!!
"Quando pensar, somos como um barco que afunda lentamente. Os barcos salva-vidas estão longe. A água chega a nossas bocas. Sabemos que é impossível, mas seguimos procurando uma saída. Mas também não temos a valentia de nos atirar na água."
"Tokyo Sonata" é um filme duro. Cruel, eu diria. Retratando passo a passo o processo de desagregação de toda uma sociedade, no caso, a japonesa, mas poderia se passar perfeitamente em muitos outros países. Toda a estrutura social que é responsável por manter as coisas como elas são entram em colapso (emprego, casamento, escola, filhos) e o que sobra? Uma família: pai, mãe, o filho mais velho e o filho mais novo. Uma boa casa. Um casamento frio e sem afeto. Um emprego aparentemente vitalício. Tudo feito para durar muito. Eternamente. Mas um dia... o tal homem é demitido, trabalhadores chineses o substituirão por salários bem menores. O que fazer? Ele já tem quase 50 anos e nenhum talento especial. É apenas mais um desempregado. Ele decide não contar nada à mulher. E vaga pela cidade durante o horário de trabalho. A mulher é alguém que parece não ter outra vida a não ser limpar, cozinhar, e manter toda aquela estrutura familiar. Repete sempre quando o marido ou algum dos filhos chegam: "Seja Bem-Vindo a Casa". O filho mais velho quer servir o exército americano. É um idealista ou quer apenas fugir daquilo tudo? A farsa respinga em todas as relações. Não há espaço para demonstrações de afeto e tudo é extremamente mecanizado. Qual a saída, então? A pergunta, na verdade, deveria ser outra: Há alguma saída?
Kenji, o personagem do filho mais novo é o primeiro a quebrar o protocolo imposto pela sociedade ao enfrentar o professor, mas logo percebe que não tem interesse em levar aquela situação adiante. Seu lugar no mundo é outro. Qual? Ele ainda não sabe. Mas um dia... ao passar por uma escolinha de piano algo mexe com aquele garoto.
Ele quer fazer aulas de piano. O pai é contra. Mais uma vez Kenji quebrará o protocolo e pagará as aulas de piano com o dinheiro que sua mãe lhe dá para o lanche da escola. Ali, estabelece um outro tipo de relação com a professora de piano que escreve uma carta aos pais dizendo que ele é um talento raro como músico. O pai escarnece do filho: "Como você pode acreditar nisso? Como um prodígio poderia ser nosso filho?"
Será a partir dai que um novo futuro poderá ser escrito. Qual? Não sabemos. Mas a trajetória de Kenji é admirável. Entre a acomodação do pai e da mãe e o idealismo fajuto do irmão, ele escolhe uma terceira via. Ele é alguém que segue o seu coração. Um verdadeiro rebelde. Pagará um alto preço por isso. Mas essa é a beleza da vida. Sim. E a arte é esse momento de suspensão de sentido, de realidade, de hierarquia. É um rasgo temporal. Uma epifania. Tudo o mais ruirá, todos os valores, tudo. Numa necessária transmutação nietzschiana.
"Que maravilhoso seria se minha vida inteira resultasse em ser um sonho. E de repente acordasse e fosse alguém completamente diferente."
"Phoenix" do diretor Christian Petzold é uma parábola e justamente por isso me incomoda muito o fato de algumas pessoas o criticarem pelo que ele tem de melhor. Eu explico: Nelly é uma sobrevivente dos campos de concentração nazista. Era cantora. Era casada. Era pobre. Escapa milagrosamente da morte, mas fica com o rosto todo desfigurado, passa por uma cirurgia de reconstrução facial e não se reconhece mais com aquele rosto. Ao voltar para Berlim trazida pela amiga Lene, descobre que tem direito à uma herança milionária, mas nada disse parece lhe interessar. Ela só quer saber de reencontrar seu marido. Ela, então, busca-o no meio dos escombros do que restou após a guerra. Até que o encontra trabalhando numa espécie de cabaré chamado "Phoenix". Ele não a reconhece. Mas acha-a parecida com sua esposa. É ai que ele tem uma ideia: Sugere que ela se passe pela mulher para que ele possa reclamar para si a tal herança milionária. Nelly topa e passa a ter aulas diárias com o marido para que se torna cada dia mais parecida com ela mesma.
O filme é sutil, genial, justamente por depender da aquiescência do espectador. O que interessa aqui não é apenas o enredo, mas o que está por debaixo, nas entrelinhas, no subtexto. É possível reconstruir uma vida devastada pela guerra, pelo ódio ao diferente? Ou só nos resta uma (im)possível recriação do que já não é mais? Tudo isso é colocado de maneira adulta, dolorida. Nelly é uma personagem encantadora, multifacetada. E Johnny, o marido, também. O que está em jogo ali? Ele realmente a amava? Ele a traiu denunciando-a para se salvar? Ele é somente um interesseiro? Ou a guerra desperta sempre o pior nas pessoas, revelando sua facetas mais obscuras?
O final é de um genuinidade assustadora. Torcemos por Nelly. Tornamos-nos Nelly. Que cena maravilhosa aquela!!!!!
É preciso que se diga logo de cara, “Goodnight Mommy” não é um filme de terror. Nem de suspense. É uma tragédia minimalista. E anunciada. Não há mistério a ser descoberto. Não há enigma.
A proposta do filme é bem outra: Mostrar como as relações podem se desgastar diante do acidente, da perda, do imponderável.
O filme não quer ser interpretado. Mas quer expandir-se. Onde? Em nós. Mas somos apegados às identidades. Queremos entender. Queremos conforto. Somos ensinados desde criança a seguir os padrões pré-determinados. Por quem? Não se sabe. Ou finge-se não saber. Mas é inegável que toda a produção capitalista, filosófica, religiosa “serve” para definir a maioria dos papéis. Aqui, no filme, temos a figura da mãe e dos filhos. A mãe zelosa que conta histórias e canta para adormecer os lindos filhos gêmeos que garantiriam a felicidade da família. Até que... tudo muda. Porque tudo está em constante movimento. Sempre.
Papéis se invertem. A mãe antes zelosa, após um tempo ausente devido a uma cirurgia plástica, retorna ao lar, agressiva e mandona. O que mudou? Mas acima de tudo, por que mudou? Os gêmeos rejeitam essa “nova” mãe e desconfiam que ela seja uma impostora. Ao mesmo tempo em que a mãe se nega a manter relações com um dos filhos. Só conversa com um deles. Só faz comida para um deles. E através de tortuosos esforços pede que o filho também não converse mais com o outro irmão.
Novamente é preciso frisar. Não se deve perder tempo tentando entender. O segredo é deixar levar-se pela obra, embarcar nesses mecanismos de relação. E eles se invertem a todo o momento. Há uma estrutura de relação anti-edipiana por excelência.
Sim, assim como em Édipo o(s) filho(s) não reconhece(m) a mãe. Mas a situação é bem outra. Se lá na Tragédia Grega, Édipo punia a si mesmo, aqui, nessa Tragédia Contemporânea, ele(s) impinge(m) sofrimento na figura materna. É ela quem deve pagar pelo pecado. Qual? Talvez o de não se encaixar mais no padrão materno que o(s) filho(s) queria(m). No entanto, ele(s) também não aceita(m) apenas o papel de filho(s). Eles querem mais. O quê?
“Uma criança não brinca apenas de papai e mamãe” já nos alertaram Deleuze e Guattari. Por isso é preciso enxergar as dinâmicas expostas em “Goodnight Mommy” além do óbvio. O que está exposto ali é exatamente o que vemos: fragmentos de relação, personagens despedaçados, ausências, lacunas, desejos. E tudo está em processo, desenvolvimento.
Apesar do ritmo extremamente lento, o que está por baixo desses silêncios é algo que grita e bastante alto. A tensão é elevada à condição de personagem central. Tudo na obra importa. O cenário apresentado como um lugar belo e bucólico contrastando com a casa da família, bastante moderna, com fotografias imensas estilizados e um trabalho de direção de arte impressionante. A fotografia é outro elemento importantíssimo, jogando com o claro e escuro, com o belo e o terrível. A direção é quase documental, num registro absurdamente naturalista. O elenco impressiona, sobretudo o desempenho dos irmãos gêmeos Elias e Lukas Schwarz.
É interessante notar um diálogo com uma outra obra contemporânea “The Babadook” também considerado “terror”, mas que vai muito além do gênero. São filmes complementares, e que se redimensionam quando analisados juntos. Ambos são filmes sutis sobre a perda e devem incomodar quem espera apenas sustos ou reviravoltas tão características do gênero.
"NUIT #1" é um dos filmes mais dolorosos que já assisti na minha vida. Assisti-o pela primeira vez em 2012 e pra mim foi o melhor filme daquele ano. Retratando o vazio contemporâneo de duas almas solitárias de maneira radical. É um daqueles filmes que não consigo elaborar uma crítica racionalizada, tipo "Dançando no Escuro". Da primeira vez que vi chorei muito. Já dessa vez, não escorreu lágrimas, mas sangrei por dentro. Mantive-me sério o tempo todo. Já não sou mais o mesmo de 2012. Já não sou mais o mesmo no instante em que acabo de escrever essas linhas. Mas a essência, meu Deus... a essência... essa não muda nunca. Ela nos revela. Ela é o alarme. É o lugar para onde podemos voltar. O que acontece com aquele homem e aquela mulher do filme é cotidiano, uma balada, um sexo casual, um ir embora no dia seguinte, mas algo lateja, grita, exaspera dentro daqueles dois. O que é esse algo? Talvez uma tentativa desesperada de que alguma coisa seja diferente algum dia, ou por um instante... E então, eles se revelam. Revelam suas dores, vicissitudes, fracassos... Numa sociedade toda galgada no sucesso e na ostentação chega a ser libertador encontrar uma pessoa com a qual você possa se abrir dessa maneira. Mas o que resta? O que nos resta depois disso? É possível continuar o mesmo?
Respire
3.8 290 Assista Agora"A paixão é violenta como o abismo: e suas centelhas são centelhas de fogo, labaredas divinas. Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor; nem rios poderão afogá-lo. Se alguém quisesse comprar o amor, com todos os tesouros de sua casa, se faria desprezível."
Talvez esse trecho do Cântico dos Cânticos ilustre bem o estado amoroso e sua submissão. Sim. Porque o que comumente denominamos amor romântico nada mais é do que uma cópia (ou seria uma substituição?) do amor e obediência ao Deus. Historicamente o amor foi se tornando uma religião. Aquilo que seria responsável por nos trazer a sensação de enraizamento outrora provocado pelo devotamento e fé em Deus. Viria dai a ânsia amorosa de se buscar ideais intangíveis no(a) parceiro(a) e sua subsequente frustração? Filmes como "Respire" nos fazem refletir sobre essas questões. "Quando estamos apaixonados, somos mais ou menos livres?" é a pergunta que o professor faz logo no começo e faz todo o sentido ao longo do filme.
Charlie é uma garota absolutamente normal que ao conhecer a nova aluna da escola fica encantada. Sarah é realmente encantadora e logo as duas se transformam em melhores amigas. Mas pouco a pouco, a trama vai crescendo em tensão até nos deixar verdadeiramente sem ar em sua parte final. O impulso masoquista de Charlie encontra eco na personalidade sociopata da nova amiga. O florescimento da possibilidade amorosa é sugerida de maneira sutil pela jovem diretora (e também atriz) Mélanie Laurent. A infelicidade ronda os apaixonados desde o início, personificado no relacionamento entre os pais de Charlie. Lá pelas tantas, depois de tantas idas e vindas entre os dois, a filha pergunta para mãe "Por que você sempre o perdoa?". Logo, Charlie saberá as respostas. Mas restaria alguma possibilidade de sair desse ciclo vicioso? Sim. Lógico que sim. Começa pela compreensão de que o ser amado não pode ser o responsável por nosso prazer ou dor. Respirar... Talvez seja um bom primeiro passo. Mas haveria tempo hábil antes que o ressentimento tome conta de tudo?
45 Anos
3.7 254 Assista Agora“Meu senhor, livrai-me do ciúme! É um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto que o alimenta."
"45 anos" do diretor Andrew Haigh é um pequeno grande filme sobre o quão frágil são os vínculos humanos. Desempenho brilhante de Charlotte Rampling que através de silêncios e sutis variações de expressões faciais constrói uma personagem comovente às voltas com a incerteza de que tudo o que viveu com o seu marido foi uma mentira. Não há traições. Nada disso. Apenas a fantasmagoria de um primeiro amor de seu marido que vem à tona na semana em que eles vão dar uma festa de comemoração dos 45 anos de casados. Andrew Haigh capta com extrema sensibilidade a dor de ambos de mexer com uma história aparentemente resolvida. Será? Pouco a pouco, fica a impressão de que mesmo quando estamos juntos com alguém a nossa condição solitária se mantém. Afinal, ninguém sabe o que vai na cabeça do outro. O que pensa? O que deixou de viver? O que realmente sabemos sobre o outro? E sobre nós? E sobre o amor? É possível ter alguma certeza sobre esse sentimento absolutamente misterioso e poderoso? Mesmo depois de toda uma vida juntos é compreensível sentir-se atemorizado diante de uma sensação de rejeição e a possibilidade de abandono? Ou é condição sine qua non de um relacionamento sentir-se permanentemente inseguro?
O aspecto mais dolorido de "45 anos" não está no que é dito, no que é mostrado, no que é sabido, mas no que é imaginado, pensado. Na vida que poderia ter sido e que não foi. Nas escolhas, abnegações que fazemos ao longo da vida e que quando olhamos um tempo depois, elas parecem indicar que o que não escolhemos, o que deixamos para trás, sempre parece melhor do que temos hoje. Somos constantemente perseguidos pelas possibilidades. Buscamos um relacionamento na esperança de que isso nos faça esquecer a solidão, o sentimento de insegurança, inferioridade, e quase sempre fracassamos.
Sim. "O fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação", como definiu muitíssimo bem o sociológo Zygmunt Bauman. O não dito, o não revelado, o não verbalizado ganha forças. O aspecto fantasmagórico da obra é reforçado pelas escolhas minimalista da direção que evoca o tempo todo o cinema de Ingmar Bergman e sobretudo o antológico "Cenas de um Casamento". Mas é só uma referência, não uma cópia. O diretor Andrew Haigh já tinha demonstrado habilidade nesse tipo de tema em seu filme anterior "Weekend" em que dois caras se conhecem, transam e começam a gostar da companhia um do outro, mas um deles só quer curtir, enquanto o outro quer algo mais sério. Quais são os riscos de escolher entre uma coisa ou outra? A resposta pode estar em "45 anos"... ou não.
Poucas e Boas
3.6 129 Assista AgoraQue belo filme é esse falso documentário do diretor Woody Allen. Sean Penn vive um guitarrista de Jazz daqueles clássicos. Bon Vivant. Beberrão. Mulherengo. E muitas vezes, inseguro e carentão. Seu talento é reconhecido, mas suas idiossincrasias não lhe permite voos maiores. Um belo dia conhece Hattie, uma lavadeira muda. Ela se apaixona por ele. Ele também. Mas acredita que um artista não deve se apaixonar para não comprometer sua arte. Woody Allen faz um bom filme de "homem conhece mulher" e apresenta inovações na maneira de contar essa história. É quase uma cinebiografia. Mas de alguém inventado. Sean Penn é o corpo do filme. Samantha Morton, a alma. Sua Hattie é comovente. Daquelas personagens que dá vontade de levar pra casa. Impossível não lembrar de Charlie Chaplin em seus filmes mudos ou de Giulietta Masina em "Noites de Cabíria" de Fellini. O silêncio dela versus a falação narcisista e melancólica dele torna-se uma forma de equilíbrio para aqueles dois. A necessidade de aprovação constante dele encontra no jeitão "Já que sou, o jeito é ser" dela um alento, uma esperança. Eles são felizes juntos. Mas no fundo, ele a despreza por considerá-la inferior. Vi muito de Olímpico/Macabéa do livro "A Hora da Estrela" na dinâmica de relação proposta por Woody Allen. Até mesmo na inversão proposta lá pelo meio do filme quando entra a personagem da Uma Thurman. É um filme doce e melancólico. E engraçado. Tragicamente engraçado. Enfim, um legítimo Woody Allen.
Ex Machina: Instinto Artificial
3.9 2,0K Assista AgoraGENIAL! O filme "Ex-Machina" é uma atualização hiper-contemporanêa do Mito da Caverna. Se no texto de Platão, as criaturas de dentro da caverna, só ouvem e veem projetadas sombras da vida lá de fora, aqui nem isso. Ava é um robô desenvolvido por Nathan, um milionário excêntrico, que bola um concurso entre seus funcionários para que um deles passe uma semana em sua casa, uma mansão que só é possível chegar de helicóptero e está localizada num lugar deslumbrante, no meio da floresta. Caleb, um jovem programador, é selecionado e assina um termo de confidencialidade. O plano de Nathan é que ele faça testes com Ava para que se comprove que ela tem capacidade de conviver com humanos sem que seja perceptível que se trata de um robô. Caleb começa as sessões com Eva e conforme o tempo vai passando, eles se apaixonam um pelo outro.
Até aqui é o começo do filme que nos apresenta mil e uma reviravoltas, sem perder sua essência de ficção cientifica. Não vou contar o que acontece, mas é um filme de referências. Muitas. A mais óbvia é "Frankenstein", de Mary Shelley, mas também o filme "O Enigma de Kaspar House" do diretor Werner Herzog. O que aconteceria com a criatura que rompendo as "correntes" que o seguram a "caverna" consiga sair dali e encontre o mundo que ele só conhecia de ouvir falar? A paixão de Caleb e Ava é uma espécie de exacerbação de "Her" do Spike Jonze ou do 1° episódio da 2° temporada de "Black Mirror" em que o ator Domhnall Gleeson que vive Caleb em "Ex-Machina" é uma materialização de um aplicativo que mantém viva a memória de pessoas mortas. O que todas essas referências discutem é a linha cada vez mais tênue que separa a fronteira entre o real, o virtual e o ilusório. Algo que já estamos vivenciando sem nem mesmo perceber.
O diretor e roteirista Alex Garland consegue fazer um filme esteticamente belo, claustrofóbico e provocativo. Utilizando basicamente apenas três pessoas em seu elenco: Oscar Isaac, Domhnall Gleeson e Alicia Vikander, além de um trilha sonora que entra em momentos pontuais para engrandecer o que está sendo mostrado, assim como a fotografia que assume a tensão de maneira bastante original.
Eu se fosse você correria para assistir esse filme!!!!
O Lagosta
3.8 1,4K Assista Agora"The Lobster" é mais uma daquelas distopias que deixam a gente de cabelo em pé. Em apenas uma palavra é GENIAL! Num futuro próximo, não será mais permitido a solidão. Todo aquele que estiver solteiro será enviado ao hotel onde terá 45 dias para encontrar alguém. Caso contrário, será transformado num animal de sua preferência e solto na floresta. Há também os que se revoltam com essa situação e vivem escondidos e são caçados pelos solitários. O diretor Yorgos Lanthimos instaura o mal estar de maneira minimalista e contundente, fazendo de sua obra uma poderosa análise sobre as relações humanas e como elas se estabelecem. O Amor como o conhecemos e o vivenciamos é uma invenção moderna. Foi se transformando ao longo do tempo. Substituindo o vazio do amor ao Deus, o amor humano é alimentado diariamente por hábitos e costumes. La Rochefoucauld escreveu que "algumas pessoas nunca teriam se enamorado se nunca tivessem ouvido falar do amor." Já Rousseau foi mais filosófico: "E o que é o próprio amor, senão quimera, mentira e ilusão? Amamos a imagem que fazemos para nós mesmo, muito mais do que o objeto a que a aplicamos."
Sim. O diretor tem uma teoria na cabeça e mergulha fundo nela. O hotel é a metáfora perfeita da busca amorosa e da sociedade na qual todos estamos inseridos. Lá estão todos os jogos sociais e a pressões cotidianas para que se tenha algo do seu lado. Até filhos podem ser providenciados para que os conflitos entre o casal sejam postos um pouco de lado. Tão familiar não é mesmo? Acho que conhecemos bem essa prática. Outra ação que nos soa íntima é como as pessoas forçam semelhanças para que sejam amadas pelas outras. O olhar de Lanthimos é cruel, impiedoso, mas a ironia está presente. O esdrúxulo de algumas situações é tanto que às vezes dá vontade de rir... ou de chorar. Essa ideia do amor nos torna seres miseráveis ou a carência humana é tanta que inventamos tais sentimentos para suprir um pouquinho que seja essa nossa necessidade? Ou indo além; Essa carência é real, ou também seria forjada em nós? E se a resposta for positiva, fica a pergunta: Forjada por quem? E por quê? Nietzsche classificava isso como um empobrecimento da vida. Ideia forjada pela religião para justificar um deus que condenava os mais fortes e salvava os fracos, fazendo-nos sentir culpados por aquilo que somos, odiando nossa própria natureza, desejosos de um céu utópico. Seria o medo e não o afeto que nos ligaria aos outros? Medo ou conveniência?
Os solitários do tal hotel recebem diariamente aulas práticas de como ser solitário é ruim. Numa das cenas mimetizadas pelos garçons do hotel, um homem está sozinho no café da manhã, ele engasga com alguma comida e morre. Na cena seguinte, o mesmo homem na mesmíssima cena, agora é salvo pela esposa que o acompanha no café. Para as mulheres, a cena criada é diferente. Uma mulher sozinha andando na rua é abordada por um homem mal intencionado. Na cena seguinte, já acompanhada pelo marido, ninguém mexe com ela. A ideia de salvação é idêntica, mas o machismo explícito na cena da mulher solitária torna tudo ainda mais cruel. A ideia de amor é cristã por excelência, no entanto, Lanthimos parece muito mais próximo do pensamento nietzschiano:
"Fugis de vós mesmo rumo a vosso próximo e gostaríeis de transformar isso numa virtude."
O que haveria de tão assustador na solidão? Era a pergunta que martelava minha cabeça durante o filme. Ou melhor, é a pergunta que martela minha cabeça diariamente. A história de nossas perdas e busca incessante para conseguir o amor de nossos pais na infância seria uma possível resposta para o nosso comportamento enquanto adultos? Freud diria que sim, que essa é a nossa formação enquanto indivíduos. Então não haveriam saídas? Talvez na liberdade. Mas não naquela que comumente ouvimos por aí. Liberdade não é fazer aquilo que dá na telha. Não só. É acima de tudo compreender todo o problema da dependência. Filmes como "The Lobster" ajudam nesse processo.
Cinco Graças
4.3 329 Assista Agora"Cinco Graças" (Mustang) é um daqueles filmes que exalam beleza e crueldade a cada take. Contando a história de cinco meninas criadas pelo tio e pela avó num vilarejo bastante conservador da Turquia, o diretor Deniz Gamze Ergüven com certeza se inspira em "Virgens Suicidas" de Sofia Coppola para contar sua história. Mas o que mais assusta é que "Cinco Graças" não é um filme de época. Mas se passa numa Turquia contemporânea ainda atrelada a preceitos religiosos e extremamente machistas. Todo anseio de liberdade é podado pela família e o único papel social destinado às garotas é se transformarem em boas esposas. Lale é a narradora do filme, justamente a mais nova, aquela que por ser ainda criança tem alguns privilégios que as outras não tem. É seu olhar curioso e ingênuo que nos guia nessa história de opressão. É seu desejo de liberdade que nos toca e enternece. Que filme lindo!
A Terra e a Sombra
3.8 52 Assista Agora"A Terra e a Sombra" é um daqueles filmes que exigem demais do espectador. É uma obra contemplativa, dolorida, poética. O diretor César Augusto Acevedo concebe um filme de incrível beleza ao mostrar uma família defrontada com a doença do homem da família (o pai, o filho e o marido). Ele está doente devido ao extenuante trabalho de cortador de cana, também exercido pelas mulheres da família (a mãe e a esposa). Há também um filho de uns 8/10 anos de idade. E um outro homem que abandonou aquelas pessoas em busca de um futuro melhor. Ele é o pai, o marido, o sogro e o avó. Ele regressa ao lar para cuidar do filho adoentado. Seu regresso provoca mudanças profundas em todos ali. Sobretudo, na relação que pouco a pouco é construída com o neto. É um filme de antonímias: luz/sombra, criança/velho, ir/ficar, dentro/fora, beleza/dureza, ética/estética.
A Sapiência
3.5 25 Assista Agora" - Livrarmo-nos do inútil talvez seja a coisa mais difícil.
- Sim. E nós não podemos fazê-lo sozinhos."
Que beleza é o cinema de Eugène Green. Algo autêntico e único num mundo totalmente despido de originalidade e de sua força. Assistir ao cinema de Eugène Green é resgatar esse olhar juntamente com o vigor de presenciar uma verdadeira obra de arte. Não é meramente cinema. É mais. É além. É constatar que estamos perdendo a capacidade de se encantar com o suficiente. A palavra aqui tem seu poder encantatório preservado. Num mundo totalmente imerso em imagens, o cinema de Eugène é um respiro. Não que suas imagens não sejam belas e significativas. E eles são. Mas é que tanto as palavras quanto as imagens só possuem valor enquanto experiência. Isso é o aspecto mais belo de "La Sapienza". Sim. Porque é exatamente isso que dá sentido ao que somos e ao que nos acontece. Jorge Larrosa Bondía escreveu que "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece." É isso. Tão contemporâneo, tão dolorido. Porque cada vez mais acontecem coisas, uma infinidade de coisas, somos bombardeados com informações, atualizamos nossos status, fotos e somos atualizados de status, fotos e notícias, mas raramente nos sentimos tocados por algo. É sobre isso que nos fala Bondía. É sobre isso que nos fala Eugène Green. É isso que os personagens de "La Sapienza" precisam descobrir. Isso é o que nós também precisamos sentir. Como numa epifania possível. Como numa aprendizagem urgente. Mas é preciso tempo e já não temos tempo. É necessário fazer silêncio e temos medo do silêncio. Viramos presas fáceis do entretenimento e de seu estímulo barato. Tudo o que não temos aqui em "La Sapienza. Pelo contrário. Tudo é uma meditação. Uma contemplação. Tudo é uma possibilidade. Para o quê? Assim Bondía define que a possibilidade da experiência "requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço."
O mais bonito dessa experiência proposta por Eugène é que os personagens mais velhos acreditam em sua arrogância que estão ensinando os mais jovens, quando na verdade o que ocorre é exatamente o contrário. Sim, se "a vida é um fardo um tanto pesado. É preciso força pra chegar até o fim" como afirma um dos personagens, a força necessária para se chegar até o fim é uma só: a paixão. Não com o sentido que usamos. Mas como experienciação do amor.
"Creio que o homem sempre é movido pela paixão. Caso contrário não está mais vivo."
Garotos
3.8 604 Assista AgoraAh, o amor... Aquele poderoso sentimento de compartilhar a alegria de estar junto... “JONGENS” (Garotos), do diretor Mischa Kamp tem essa capacidade de nos fazer amá-lo justamente por compartilhar esse prazer conosco. É um filme inocente, mas não menos potente. Sobre a urgência de ser aquilo que se é. Sobre a liberdade arrebatadora do autoconhecimento. Sobre a potência dos nossos desejos e afetos quando assumidos. Ah, o amor...
Lições de Harmonia
3.8 15Estava muito ansioso para assistir "Lições de Harmonia" do diretor Emir Baigazin. Acabei de ver agora, e estou bastante decepcionado. Acho que o filme sofre do mesmíssimo mal de "A Gangue" o polêmico filme ucraniano que ganhou alguns prêmios internacionais: A institucionalização da violência. Sim. Sabemos que isso é uma realidade. Mas não podemos esquecer que é o olhar do artista que altera a realidade. A opção de mostrá-la sob um viés realista, frio e escondendo informações do espectador faz com que a obra ganhe o tal selo "cult", mas perca em tensão e provoque tédio em inúmeros momentos. Sim. As imagens são lindas, o posicionamento da câmera impressiona, os meninos estão muito bem, mas esse tipo de elogio não deveria caber num filme com essa temática tão urgente e atual. Fica parecendo um exercício de estilo. Um belo exercício de estilo. Mas Cinema é muito mais que isso. Não gosto de filmes em que a estética toma a frente da ética. As escolhas que fazemos, todas elas, transparecem no ato da criação. Esse talvez seja o calcanhar de Aquiles do aprendizado educacional de todos nós. Tanto a escola quanto a família e toda a sociedade em geral não educam as crianças e jovens para a obtenção de um pensamento crítico. Todo o modelo de ensino é galgado na repetição, na cópia, gerando indivíduos apáticos, cínicos e descrentes. Ao final, o filme "Lições de Harmonia" sofre do mesmo mal que pretendia representar.
In Natura
3.5 40Que grata surpresa é esse "In Natura", filme norueguês dos diretores Ole Giaever & Marte Vold. Ole Giaever escreve, dirige e atua como protagonista e isso faz toda a diferença. É uma obra pessoal e minimalista sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida e sobre quem nos tornamos e quem somos de verdade, sobre a necessidade da solidão e do silêncio como instrumentos de autoconhecimento. Martin é um homem comum, casado, com um filho pequeno, um emprego entediante, uma boa casa, mas nada disso faz com que ele se sinta completo e feliz. Pelo contrário, ele está profundamente desmotivado e decide fazer uma viagem de fim de semana para entrar em contato com (sua) natureza. É uma metáfora, claro, mas aqui a natureza personifica-se e o protagonista mimetiza-se nela numa desesperada possibilidade de salvação.
O filme é todo narrado através dos fluxos de consciência desse homem em conflito e isso traz uma estranha identificação com tudo o que se passa na cabeça dele. O que antes era desconhecido torna-se matéria de reflexão. Lembranças, desejos, vontades, culpas também tomam forma ao longo revelando que todos nós carregamos muitas histórias dentro de um mesmo corpo e que somos muitos, plurais, e que a merda está em transformar-se apenas numa coisa só. A crítica social aparece de maneira sutil e ao mesmo tempo perturbadora. É possível alguém ser feliz dentro dos padrões construídos em sociedade? Por isso, Martin se afasta, para encontrar o silêncio interior que lhe proporcionará uma mudança radical. Fazer de sua própria consciência um lago silencioso.
Rio Perdido
3.0 199 Assista AgoraEsquizofrênico. Doentio. Perverso. Tenso. Amaldiçoado. Um delírio poético e visual. A estreia de Ryan Gosling na direção me arrebatou. Genial!!!
A Ilha do Milharal
4.0 40O silêncio. A menina. O velho. A boneca de pano. O rio. Os soldados. O tempo. A Natureza; sua força e beleza.
O filme é uma obra-prima. Sem mais.
Beira-Mar
2.7 454"Tem gente ao meu redor que não me deixa com medo de ir pra praia, mesmo sabendo que eu posso me perder por lá. Mas eu prefiro arriscar."
Aquela sensação de que há algo a ser comunicado mas que não se sabe direito o que é, nem como isso merece ser verbalizado. É sobre isso que fala "Beira-Mar", filme brasileiro dirigido pela dupla Filipe Matzembacher e Marcio Reolon. Aqueles dois meninos personificam dúvidas, rebeldias clichês, uma certa melancolia de não se ser nem mais crianças e ainda não ter se tornado adulto. O filme é extremamente simples e se contenta em apenas mostrar um final de semana longe de casa. Esse aspecto transitório é necessário para colocar os personagens longe das pressões familiares, longe das certezas e um pouquinho mais perto de si mesmos. É um filme de desconstrução. Um pequeno e singelo movimento de coragem diante da mentira do mundo.
Os poucos diálogos giram em torno da vida normal de qualquer jovem. São realistas e podem parecer "vazios". Mas essa é a intenção. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu em "Amor Líquido" que o fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação. Por isso que o que importa aqui é o "não dito". Aquilo que está latente, mas que ainda não desabrochou. É uma obra silenciosa, melancólica, física. E os atores Mateus Almada e Maurício José Barcellos concebem seus personagens de maneira naturalista, transitando com eficiência entre a ingenuidade e a descoberta do desejo, sem perder a ternura e a sensação de que ainda há algo para ser vivido dentro e ali fora.
Eles estão à deriva e a descoberta da sexualidade propiciará um encontro consigo mesmo e com a liberdade do momento em que é assumido todos os medos, amores, desejos. A fantasmagoria desaparece e pela primeira vez é possível se encontrar com o imponderável de si mesmo. Por quanto durará essa sensação? O que acontecerá a seguir? Não se sabe. Essa indefinibilidade do futuro é toda nossa jornada amorosa na terra. Talvez essa seja a beleza da vida. Os momentos são efêmeros mas deixam marcas eternas.
Corrente do Mal
3.2 1,8K Assista AgoraÉ tudo sobre o desejo. Sempre é tudo sobre o desejo. Sim. Afinal, somos máquinas desejantes, como já nos alertou Deleuze. "It Follows" (me recuso a chamá-lo de "Corrente do Mal" como a tradução mais uma vez estúpida do nosso país optou por nomeá-lo). O nome em inglês traduz perfeitamente o espírito do filme. Se há um "mal" aqui ele é um só: o mal-estar de toda uma civilização ou de um modo de viver específico. O filme é magnífico em capturar essa essência demasiada humana em que nos enfiamos. A negação dos nossos instintos em nome de uma suposta segurança utópica, que não vem e que talvez não virá nunca. Estamos diante de um estado de tensão permanente, em que não é mais possível nem mesmo nomear o mal. Ele já não tem rosto. Mas nos causa um incessante estado de angústia e medo. Como nos livrar disso?
O enredo é extremamente simples: uma garota aparentemente virgem transa com seu novo namorado que passa para ela uma espécie de condenação. Sua única possibilidade de salvação é passar isso adiante, transando com outra pessoa. A genialidade do roteiro e da direção de David Robert Mitchell é exatamente essa; extrair terror e suspense de coisas aparentemente banais. A partir disso, qualquer pessoa ou ação passa a ser suspeita e vive-se sob um estado de tensão extremamente perturbador. E aí que o roteiro ganha dimensões outras. O que fazer? Jay, a protagonista do filme, se vê dividida em duas. Seu lado racional versus seu instinto. Seja qual for sua escolha, ela permanecerá apenas metade e enfraquecida. Sim, porque isso tudo é apenas uma falsa questão e logo Jay se dará conta disso. O final, um dos finais mais enigmáticos e doloridos de todos os tempos, é altamente provocativo. Talvez Jay precise se dar conta do que fizeram (quem?) com sua cabeça. Talvez ela precise entender os mecanismos que fizeram com que ela não apenas tivesse medo dos outros, mas, sobretudo, tivesse absoluto horror a si mesma. Talvez Jay precise aceitar sua própria condição solitária. Talvez Jay precise vivenciar outras possibilidades de relacionamento longe desse maniqueísmo cultural tão característico dos países ocidentais. Talvez Jay só precise se dar conta de sua potência. Talvez nós precisemos ser menos Jay.
”Engraçado. Eu tinha esse sonho de ser madura, de sair em encontros, sair com os amigos de carro. Tinha uma imagem de mim mesma, segurando a mão de um cara bem bonito. Escutando rádio, dirigindo por uma bela estrada. Talvez no norte. As árvores começarem a mudar de cor. Nunca tem a ver com um lugar específico. Devia ser sobre liberdade. Agora que somos adultos, aonde diabos iremos?”
Divertida Mente
4.3 3,2K Assista AgoraQue delícia de filme é esse "Inside Out"!!! Sim. Somos todos Riley. Ou já fomos um dia. A identificação é imediata, tanto com a protagonista quanto com os sentimentos personificados na animação. Essa sacada é ótima e acompanhamos o processo de amadurecimento dessa garota. É um rito de passagem. Mas originalíssimo. É um passeio por nossas emoções mais genuínas e por nossa humanidade. Ao mesmo tempo que emociona, nos faz refletir sobre a nossa condição. Além de ser uma aventura para os olhos de tão belo. Somos o que somos, e é da negação da nossa essência que vem o sofrimento. O aprendizado de Riley é também o nosso. Cada emoção tem sua hora e lugar. Ter somente alegrias nos torna frívolos. Negar a tristeza é não experimentar a possibilidade de aprofundar as relações (com a gente mesmo, com os outros, com o mundo). Isso é o mais maravilhoso do filme. Sim. Porque também a tristeza é bela, precisa ser ouvida e encarada de frente. Essa é a verdadeira transcendência. O que mais me surpreende é isso vir de uma animação... Sim. Vivemos hoje na cultura da felicidade. Temos que ser felizes o tempo todo. Essa é a mensagem. E nesse processo rejeitamos a tristeza, fugimos dela e a tornamos mais triste. Tornamo-nos mais tristes também. E passamos a mentir. Todos mentem. E a coisa só muda, quando a gente se desapega da ideia de felicidade. O Osho tem uma frase perfeita pra exemplicar isso que estou tentanto dizer:
"Não rejeite a tristeza e não se apegue à felicidade."
Sim. É isso. Ah, eu poderia passar horas e horas vendo essa maravilha de animação!!!!!!!
PS: Preciso, necessito, quero agora, um Bing Bong pra mim!!!!
71: Esquecido em Belfast
3.5 98 Assista Agora"71 - Esquecido em Belfast" é um filme de guerra. Ou melhor, um filme sobre a guerra. Ou melhor ainda, trata-se da produção da histeria de uma guerra. Sim. Porque já não se sabe nem mais porque nem contra quem direito se luta. O importante é matar. Cumprir ordens. Achar um culpado. O pensador francês Jean Baudrillard diz que isso é também terrorismo. Essa procura por uma responsabilidade, que nada mais é do que "a consequência do desaparecimento das causas e do poder ilimitado dos efeitos." ISSO! Já não se sabe mais nada, mas é preciso não questionar. É assim que se faz a manutenção do ódio ao outro. O inferno são sempre os outros. O erro tá sempre lá. Do outro lado da rua. Noutro país. Numa outra religião. Porque? Não importa mais. Todos perderam seus nomes, sua identidades. Transformaram-se num mero pedaço de carne, num número. São inomináveis. Mas e o quando o grupo deixa de ser o "batalhão" e o soldado vê sozinho no campo mimado entre territórios inimigos? É disso que se trata o filme. Dessa mudança de percepção.
No início acompanhamos o treinamento de alguns soldados, logo depois, são jogados sem o devido preparo numa missão na Irlanda do Norte. Algo dá errado e de repente o soldado Hook vê-se sozinho tendo que sobreviver literalmente no inferno. Quem é o inimigo nessa situação? O filme é de uma tensão absurda pois mostra o quanto estamos todos chafurdados num encadeamento de pequenas e grandes chantagens. Não restando nenhuma outra saída possível a não ser tentar salvar a própria pele. Custe o que custar.
Ótimo filme de estreia do diretor Yann Demange, com uma fotografia e trilha sonora instigantes, e a atuação minimalista do Jack O'Connell. Recomendo.
Eu Estava Justamente Pensando em Você
3.6 372 Assista AgoraSim. "Comet" se parece com um daqueles filmes de amor que você já assistiu. Tem a fofura de um "500 dias com ela". A bad e depressão de um "Blue Valentine". O esdrúxulo cult de "O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças". A complexidade narrativa de "Dogma do Amor". Mas não se engane. O filme tem uma cara que é só dele. E isso deve-se sobretudo ao roteirista e diretor Sam Esmail. Estou completamente apaixonado por ele. Eu explico: Eu tenho uma mania. Tenho várias. Mas quero falar especificamente sobre essa. Quando vejo uma coisa que gosto muito (um filme, uma música, um peça, um quadro, um livro) corro atrás do que essa pessoa já fez pra me certificar de que ela é boa mesmo e não está apenas me enganando. Sou libriano, gente... Desculpa! O Caso é que fiquei alucinado com a série "Mr. Robot" assinada por Sam Esmail, foi então que descobri que ele tinha realizado um filme já e fiquei procurando procurando até encontrar. E achei. E assisti. E o cara é phodalhaço! Tem estética, mas nunca dissociada da ética. Como sei disso? Pq está implícito em cada take, em cada cena, em cada palavra de sua obra. É lindo. É extático, eu diria. É belo, classudo, emociona e faz pensar. PORRA! Como é bom quando isso acontece!!!!! Isso é arte, meus amigos. Arte em sua mais pura essência. A história é banal. O mesmo "homem conhece mulher" de sempre. Mas é olhar do artista que altera a realidade. É sobre o tempo. Sobre espaço. E a gente. Sobre a vastidão do mundo. E a gente. Sobre o cometa que de tempos e tempos passa e você pega ele ou não. O amor é esse cometa. (?)(...)(!)
"Me sinto como se eu estivesse no mundo errado. Porque não pertenço a um mundo onde não terminamos juntos. Não pertenço. Existem universos paralelos onde isso não aconteceu. Onde eu estou com você e você está comigo. E seja qual for esse universo é nele que vive o meu coração. Eu queria tanto voltar aquele sonho que eu tive. Eu tentei voltar a dormir. Nunca pensei que o amor existisse. Nunca. E agora eu acho que a vida não existe sem ele. Isso parece uma frase cafona de cartão comemorativo."
O Mito Americano da Festa do Pijama
3.1 39Gostei tanto de "It Follows" que fui atrás da filmografia do diretor David Robert Mitchell e descobri que ele só tinha dirigido uma outra obra. Procurei e achei. O filme chama-se "The Myth Of The American Sleepover" e o título em português dessa vez é ótimo: "O MITO DA LIBERDADE". Novamente estão lá os adolescentes e a urgência da descoberta da sexualidade, os anseios, os medos e os desejos. Em suma, retrata o rito de passagem da infância para a adolescência. É um filme interessante que não trata os personagens feito idiotas (tipo "American Pie"), nem os erotiza (tipo "Kids" e "Ken Park"). Não. É uma obra que respeita e principalmente se interessa em apenas mostrar uma noite na vida daqueles meninos e meninas. E sua beleza vem dai. Dessa apresentação singular de um fase já amplamente filmada. Sim. O diretor tem um estilo e ele já está impresso nessa sua primeira obra. Ele também possui um tema até agora obsessivo; retratar esse mal-estar de nossa juventude contemporânea. Sempre quando falo desse assunto gosto de citar o pensador Baudrillard que nos lança a pergunta fatal: O QUE FAZER APÓS A ORGIA? Sim, porque habitamos um tempo em que tudo parece já ter sido vivido e experimentado e que mesmo assim ficamos com aquela sensação quase sempre incômoda de que uma grande festa sempre está acontecendo e nós não fomos convidado. As redes sociais potencializam essa sensação onde tudo parece estar liberado, porém, quase sempre, inacessível para a maioria. Mitchell não faz disso uma tese, pelo contrário, seu cinema é imagético. Retrata com sensibilidade uma fase em que só é possível viver de indefinições, sonhos e fantasmagoria que sempre ou quase sempre desembocam em frustrações e fracassos.
"Eu não acredito que você caia em todas besteiras sobre a juventude. (...) É um mito. (...) Eles fazem você deixar a infância para trás prometendo todas essas aventuras. Mas uma vez que entenda o que você perdeu, é tarde demais. Você não pode recuperá-la."
Que Horas Ela Volta?
4.3 3,0K Assista AgoraOlha, vou falar uma coisa pra vocês: Corram para os cinemas e assistam "Que horas ela volta?". É uma das melhores coisas que eu já vi na minha vida. Não tenho nem condições de escrever uma crítica agora pq o filme mexeu muito comigo. Sei lá, parece um filme de terror. Vc se pega tenso. Ri. Chora. Reflete. Um turbilhão de sensações... eu não queria que o filme acabasse nunca mais... poderia ficar horas e horas ali vendo aquilo... E por favor, parem tudo e entreguem todos os prêmios para a Regina Casé que está estupenda, junto com o todo o elenco e direção. Uma obra-prima!!!!!
Sonata de Tóquio
4.1 59 Assista Agora"Quando pensar, somos como um barco que afunda lentamente. Os barcos salva-vidas estão longe. A água chega a nossas bocas. Sabemos que é impossível, mas seguimos procurando uma saída. Mas também não temos a valentia de nos atirar na água."
"Tokyo Sonata" é um filme duro. Cruel, eu diria. Retratando passo a passo o processo de desagregação de toda uma sociedade, no caso, a japonesa, mas poderia se passar perfeitamente em muitos outros países. Toda a estrutura social que é responsável por manter as coisas como elas são entram em colapso (emprego, casamento, escola, filhos) e o que sobra? Uma família: pai, mãe, o filho mais velho e o filho mais novo. Uma boa casa. Um casamento frio e sem afeto. Um emprego aparentemente vitalício. Tudo feito para durar muito. Eternamente. Mas um dia... o tal homem é demitido, trabalhadores chineses o substituirão por salários bem menores. O que fazer? Ele já tem quase 50 anos e nenhum talento especial. É apenas mais um desempregado. Ele decide não contar nada à mulher. E vaga pela cidade durante o horário de trabalho. A mulher é alguém que parece não ter outra vida a não ser limpar, cozinhar, e manter toda aquela estrutura familiar. Repete sempre quando o marido ou algum dos filhos chegam: "Seja Bem-Vindo a Casa". O filho mais velho quer servir o exército americano. É um idealista ou quer apenas fugir daquilo tudo? A farsa respinga em todas as relações. Não há espaço para demonstrações de afeto e tudo é extremamente mecanizado. Qual a saída, então? A pergunta, na verdade, deveria ser outra: Há alguma saída?
Kenji, o personagem do filho mais novo é o primeiro a quebrar o protocolo imposto pela sociedade ao enfrentar o professor, mas logo percebe que não tem interesse em levar aquela situação adiante. Seu lugar no mundo é outro. Qual? Ele ainda não sabe. Mas um dia... ao passar por uma escolinha de piano algo mexe com aquele garoto.
Ele quer fazer aulas de piano. O pai é contra. Mais uma vez Kenji quebrará o protocolo e pagará as aulas de piano com o dinheiro que sua mãe lhe dá para o lanche da escola. Ali, estabelece um outro tipo de relação com a professora de piano que escreve uma carta aos pais dizendo que ele é um talento raro como músico. O pai escarnece do filho: "Como você pode acreditar nisso? Como um prodígio poderia ser nosso filho?"
Será a partir dai que um novo futuro poderá ser escrito. Qual? Não sabemos. Mas a trajetória de Kenji é admirável. Entre a acomodação do pai e da mãe e o idealismo fajuto do irmão, ele escolhe uma terceira via. Ele é alguém que segue o seu coração. Um verdadeiro rebelde. Pagará um alto preço por isso. Mas essa é a beleza da vida. Sim. E a arte é esse momento de suspensão de sentido, de realidade, de hierarquia. É um rasgo temporal. Uma epifania. Tudo o mais ruirá, todos os valores, tudo. Numa necessária transmutação nietzschiana.
"Que maravilhoso seria se minha vida inteira resultasse em ser um sonho. E de repente acordasse e fosse alguém completamente diferente."
Phoenix
3.8 104 Assista Agora"Phoenix" do diretor Christian Petzold é uma parábola e justamente por isso me incomoda muito o fato de algumas pessoas o criticarem pelo que ele tem de melhor. Eu explico: Nelly é uma sobrevivente dos campos de concentração nazista. Era cantora. Era casada. Era pobre. Escapa milagrosamente da morte, mas fica com o rosto todo desfigurado, passa por uma cirurgia de reconstrução facial e não se reconhece mais com aquele rosto. Ao voltar para Berlim trazida pela amiga Lene, descobre que tem direito à uma herança milionária, mas nada disse parece lhe interessar. Ela só quer saber de reencontrar seu marido. Ela, então, busca-o no meio dos escombros do que restou após a guerra. Até que o encontra trabalhando numa espécie de cabaré chamado "Phoenix". Ele não a reconhece. Mas acha-a parecida com sua esposa. É ai que ele tem uma ideia: Sugere que ela se passe pela mulher para que ele possa reclamar para si a tal herança milionária. Nelly topa e passa a ter aulas diárias com o marido para que se torna cada dia mais parecida com ela mesma.
O filme é sutil, genial, justamente por depender da aquiescência do espectador. O que interessa aqui não é apenas o enredo, mas o que está por debaixo, nas entrelinhas, no subtexto. É possível reconstruir uma vida devastada pela guerra, pelo ódio ao diferente? Ou só nos resta uma (im)possível recriação do que já não é mais? Tudo isso é colocado de maneira adulta, dolorida. Nelly é uma personagem encantadora, multifacetada. E Johnny, o marido, também. O que está em jogo ali? Ele realmente a amava? Ele a traiu denunciando-a para se salvar? Ele é somente um interesseiro? Ou a guerra desperta sempre o pior nas pessoas, revelando sua facetas mais obscuras?
O final é de um genuinidade assustadora. Torcemos por Nelly. Tornamos-nos Nelly. Que cena maravilhosa aquela!!!!!
Boa Noite, Mamãe
3.5 1,5K Assista AgoraÉ preciso que se diga logo de cara, “Goodnight Mommy” não é um filme de terror. Nem de suspense. É uma tragédia minimalista. E anunciada. Não há mistério a ser descoberto. Não há enigma.
A proposta do filme é bem outra: Mostrar como as relações podem se desgastar diante do acidente, da perda, do imponderável.
O filme não quer ser interpretado. Mas quer expandir-se. Onde? Em nós. Mas somos apegados às identidades. Queremos entender. Queremos conforto. Somos ensinados desde criança a seguir os padrões pré-determinados. Por quem? Não se sabe. Ou finge-se não saber. Mas é inegável que toda a produção capitalista, filosófica, religiosa “serve” para definir a maioria dos papéis. Aqui, no filme, temos a figura da mãe e dos filhos. A mãe zelosa que conta histórias e canta para adormecer os lindos filhos gêmeos que garantiriam a felicidade da família. Até que... tudo muda. Porque tudo está em constante movimento. Sempre.
Papéis se invertem. A mãe antes zelosa, após um tempo ausente devido a uma cirurgia plástica, retorna ao lar, agressiva e mandona. O que mudou? Mas acima de tudo, por que mudou? Os gêmeos rejeitam essa “nova” mãe e desconfiam que ela seja uma impostora. Ao mesmo tempo em que a mãe se nega a manter relações com um dos filhos. Só conversa com um deles. Só faz comida para um deles. E através de tortuosos esforços pede que o filho também não converse mais com o outro irmão.
Novamente é preciso frisar. Não se deve perder tempo tentando entender. O segredo é deixar levar-se pela obra, embarcar nesses mecanismos de relação. E eles se invertem a todo o momento. Há uma estrutura de relação anti-edipiana por excelência.
Sim, assim como em Édipo o(s) filho(s) não reconhece(m) a mãe. Mas a situação é bem outra. Se lá na Tragédia Grega, Édipo punia a si mesmo, aqui, nessa Tragédia Contemporânea, ele(s) impinge(m) sofrimento na figura materna. É ela quem deve pagar pelo pecado. Qual? Talvez o de não se encaixar mais no padrão materno que o(s) filho(s) queria(m). No entanto, ele(s) também não aceita(m) apenas o papel de filho(s). Eles querem mais. O quê?
Apesar do ritmo extremamente lento, o que está por baixo desses silêncios é algo que grita e bastante alto. A tensão é elevada à condição de personagem central. Tudo na obra importa. O cenário apresentado como um lugar belo e bucólico contrastando com a casa da família, bastante moderna, com fotografias imensas estilizados e um trabalho de direção de arte impressionante. A fotografia é outro elemento importantíssimo, jogando com o claro e escuro, com o belo e o terrível. A direção é quase documental, num registro absurdamente naturalista. O elenco impressiona, sobretudo o desempenho dos irmãos gêmeos Elias e Lukas Schwarz.
É interessante notar um diálogo com uma outra obra contemporânea “The Babadook” também considerado “terror”, mas que vai muito além do gênero. São filmes complementares, e que se redimensionam quando analisados juntos. Ambos são filmes sutis sobre a perda e devem incomodar quem espera apenas sustos ou reviravoltas tão características do gênero.
Noite Nº1
3.9 41"NUIT #1" é um dos filmes mais dolorosos que já assisti na minha vida. Assisti-o pela primeira vez em 2012 e pra mim foi o melhor filme daquele ano. Retratando o vazio contemporâneo de duas almas solitárias de maneira radical. É um daqueles filmes que não consigo elaborar uma crítica racionalizada, tipo "Dançando no Escuro". Da primeira vez que vi chorei muito. Já dessa vez, não escorreu lágrimas, mas sangrei por dentro. Mantive-me sério o tempo todo. Já não sou mais o mesmo de 2012. Já não sou mais o mesmo no instante em que acabo de escrever essas linhas. Mas a essência, meu Deus... a essência... essa não muda nunca. Ela nos revela. Ela é o alarme. É o lugar para onde podemos voltar. O que acontece com aquele homem e aquela mulher do filme é cotidiano, uma balada, um sexo casual, um ir embora no dia seguinte, mas algo lateja, grita, exaspera dentro daqueles dois. O que é esse algo? Talvez uma tentativa desesperada de que alguma coisa seja diferente algum dia, ou por um instante... E então, eles se revelam. Revelam suas dores, vicissitudes, fracassos... Numa sociedade toda galgada no sucesso e na ostentação chega a ser libertador encontrar uma pessoa com a qual você possa se abrir dessa maneira. Mas o que resta? O que nos resta depois disso? É possível continuar o mesmo?