"Hoje foi como se uma parte de mim tivesse morrido, pois não consigo chorar. Eu esqueci todos os sinônimos para tristeza. Agora, apenas o que posso fazer sem você é substituí-lo".
TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Notoriamente “TOM NA FAZENDA” é uma mudança brusca no estilo do artista canadense Xavier Dolan. Não que suas obras anteriores não fossem boas. Pelo contrário. Sou fã confesso dele. Mas aqui há uma tensão, uma sustentação psicológica só comparável ao que eu senti assistindo "Psicose" do Hitchcock. Tudo o que anteriormente era excesso na obra de Dolan aqui se transforma em contenção. Há uma frieza, um minimalismo que só fazem realçar o aspecto anti-psicanalítico da obra. Quem são aqueles personagens? Por que estão naquela situação? A história nos é apresentada de maneira elíptica, aos solavancos. Sabemos tão pouco, para no instante seguinte, sabermos demais, e no próximo take, já não mais reconhecermos as atitudes daqueles personagens.
O enredo é bem simples e essa é uma de suas maiores qualidades. Poucos personagens. Basicamente três. Tom que vai ao enterro de seu namorado (?) numa fazenda distante. Lá moram Agathe (a mãe) e Francis (o irmão). A mãe não sabia da sexualidade do filho e esperava uma mulher. Francis que o tempo todo mentia pra a mãe sobre a sexualidade do irmão faz com que Tom entre no jogo. Ele aceita. Mas a coisa muda de figura quando Francis ordena que ele fique na fazenda. A história é essa. Mas o que importa aqui éo como... A maneira como o roteiro e direção contam essa história. Não é possível nomear o que os personagens sentem. O julgamento sempre se mostra precipitado e tudo se complica cada vez mais. A tensão sexual que existe entre Tom e Francis ganha contornos ora violentos, ora afetuosos, chegando a nos lembrar os casos de Síndrome de Estocolmo. O que está em jogo ali? O que Francis, um homem bonito e viril de 30 anos, mas que ainda vive com a mãe, esconde? O que a simples presença de Tom faz com a cabeça desse cara? Como já disse o diagnóstico nunca é simples e nunca podemos precisar com certeza quem é quem ou quem causou o quê em quem? O jogo se inverte e se embaralha o tempo todo. O que é mais danoso: a violência física ou a repressão sexual? Não estariam intimamente ligadas? Quem detém o poder? Aquele que agride ou aquele que excita? É possível se excitar com uma agressão? Ficar dependente dela? Agride-se aquilo que rejeitamos em nós mesmos? Quem é mais ingênuo:aquele que inventa a mentira ou aquele que acredita nela? É possível fugir daquilo que somos? A mentira que criamos para nós acaba por revelar o quê?
Somos máquinas desejantes, em constante movimento, a concepção de Deleuze em "Anti-Édipo" sobre o ser-humano serve demais aqui. “O inconsciente produz. Não para de produzir. Funciona como uma fábrica”. É sobre isso. Sobre essa produção desesperada. Sobre esse desejo que se inventa, se inverte, cresce, lateja, goteja em nós. E é justamente a presença de Tom que detona tudo isso não só em Francis, como em Agathe também. Ambos viviam num estado improdutivo, impedidos de desejar, reduzidos aos papéis de mamãe e filhinho, recalcados pelo abandono do irmão mais novo.Segundo Deleuze, esse é o papel da família, da sociedade, da igreja, do trabalho, da polícia. Manter as coisas como elas são. O sujeito deseja a própria prisão. Não seria essa então a condição amorosa por excelência?
“Toda produção desejante é esmagada, submetida às exigências da representação”.
Não seria esse o papel de Tom, Agathe, Francis e todos os outros?
Paremos por aqui. Porque não há representação possível para o desejo. Ele é criação, expansão e também sua própria destruição.
Daí que nada poderia ser mais genial do que acabar o filme com “Going to a Town” do cantor Rufus Wainwright. A letra é uma porrada. Assim como o filme.
"Eu e você" do Bertolucci é um daqueles filmes que falam sobre a necessidade que o ser - humano tem de criar muros para si mesmo. De viver fechado em si mesmo e em suas verdades. Lorenzo é um adolescente problemático que mente para a mãe que foi fazer uma viagem com a escola e se enfia no porão do prédio. Lá, enfim, longe de tudo e todos, sem ninguém para lhe dizer o que fazer, o garoto experimenta pela primeira vez aquilo que Clarice Lispector em "A Hora da Estrela" chama de mais precioso: a solidão. Esse estado não dura muito tempo, já que lá pelas tantas, aparece uma meia-irmã que fazia muito tempo que ele não via para perturbá-lo. Mas é justamente nessa quebra que emerge a poesia do filme. Olívia é igualmente problemática, embora bem mais velha que ele. Passando por um período de abstinência em heroína, Olívia desperta em Lorenzo muito mais que um sentimento de empatia, mas tudo aqui fica apenas na sugestão. É um filme bonito sobre a convivência e uma possível abertura para o afeto. Impossível não se emocionar com a cena ao som de "Ragazzo Solo, Ragazza Sola" cantada por David Bowie.
"Fim da Amizade" é um filme obscuro, sobre uma fase conturbada (a adolescência) e retratando um sentimento que quando negado ou traído pode se tornar obsessivo e destrutivo: o amor.
TEM SPOILER!
O diretor filipino Joselito Altarejos nos entrega um filme passional, escuro, mas com uma temática corajosa e abordada de maneira bem diferente da usual. O fato da história se passar numa Filipinas contemporânea dominada por aparatos tecnológicos e pela cultura dos Estados Unidos (o menino é criado pela avó e a mãe foi fazer a vida na América e só fala com ele por Skype e vez ou outra manda algum dinheiro) mas mantendo uma arcaica tradição cristã, aumenta ainda mais o potencial exótico do filme. A homossexualidade do protagonista é mostrada de maneira nada fetichista. A avó parece aceitar a orientação sexual do neto e a mãe se faz de desentendida. O preconceito só é sentido fora da casa, nas brincadeiras cruéis dos meninos do bairro, mas não há autocomiseração. David parece não ter tempo para essas coisas. Sua única vontade é retomar o namoro com Johnatan. Mas ele parece estar em outra. O filme se torna então um mergulho na mentalidade obsessiva do protagonista. Que não medirá esforço para chamar a atenção do amigo. A câmera de Altarejos perscruta David em sua jornada de autodestruição, fazendo-nos sentir na pele sua loucura. Músicas adolescentes, tablets, celulares, fotos, redes sociais e as facilidades de se conseguir uma arma e aprender a atirar através de vídeos no youtube se inserem na trama de maneira natural, sem apelação. Ao final, o que é real e o que é fruto dessa cultura que venera o fato de estar apaixonado são colocados em xeque na excelente cena final. Na maioria das vezes, fazemos sempre pelos outros, não é mesmo?
"Na próxima, acerto no coração" é um daqueles suspenses bem franceses. O que quer dizer que seu foco está mais no perfil psicológico do criminoso do que em seus crimes ou investigação policial. Baseado em fatos reais ocorridos no final dos anos 70, o filme perscruta o homem responsável por uma série de crimes que deixou a polícia francesa de cabelo em pé. Quem é ele? O filme não responde de maneira óbvia. Até porque seria impossível responder sem cair num didatismo bobo. A opção da direção é sábia. Cédric Anger apenas nos mostra esse personagem e deixa espaço para que nós (os espectadores) possamos julgá-lo ou não. O fato é que Franck é um fruto do seu meio. Ele é o sintoma de uma sociedade doente, repressiva. Franck é o criminoso, o policial, o seu próprio algoz e a vítima. Vivendo uma espécie de crime e castigo interior, ele se pune a cada crime em rituais de autoflagelo quase cristão. Mas a sede por mais e mais mortes fala mais alto. Ao mesmo tempo em que ele sofre a cada novo crime. O filme mexe tanto com nosso psicológico que lá pelas tantas nos pegamos torcendo para que a polícia não o capture, numa cena bastante tensa. O ator Guillaume Canet está excelente no papel. É nítido que ele não julga o seu personagem, o que acabaria por diminuir a potência dele. Franck não é um, são vários. Lá pelas tantas, numa cena quase banal, o personagem revela um pouco de sua personalidade conturbada. Ao ser questionado por um homem no bar por que ele está quebrando os ovos sem comê-los, Franck responde apenas: "Não, eu não os como. Eu os quebro. Mas comê-los, não. Eu pago por eles." Eis ai todo o seu método.
"The Babadook" é muito mais que um filme de terror. É um daqueles filmes que exigem a atenção do espectador para as sutilezas, metáforas, para o que está nas entrelinhas, além-filme.
PODE TER SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Amélia é uma escritora de livros infantis que perdeu o marido no mesmo dia que o filho nasceu. Esse fato faz com que ela se desconecte do mundo e se sinta sempre em estado depressivo. Mas ela nega isso. Diz a todo momento que está bem. Seu filho Sam é um menino sensível que do seu modo parece perceber que as coisas não vão nada bem. Seu comportamento é agressivo, e dá muito trabalho para a mãe. Ele é o "sintoma". Um dia ao ler um livro pra o filho dormir, somos apresentados ao Senhor Babadook, uma figura que parece ter saído dos filmes de terror expressionistas e tudo começa a ruir. O que Amélia esconde? Ou melhor, do que ou de quem ela se esconde? É da negação de si mesma e de seus problemas que o monstro acaba ganhando cada vez mais e mais força. “Quanto mais você nega, mais forte vou ficar” diz o monstro do livro. E ela nega. Quer ser uma boa mãe, uma boa funcionária, uma boa amiga. E nunca consegue. E acaba se frustrando e gerando cada vez mais e mais culpa em seu filho. Tudo se passa no plano mental de Amélia. Acompanhamos passo a passo a evolução de seus delírios, loucuras e perturbações. Jennifer Kent assina o roteiro e direção de maneira bastante original, ao mesmo tempo em que faz uma homenagem aos grandes filmes do gênero. Tudo no filme é aterrorizante. Desenhos animados na televisão, músicas infantis, barulhos, sonhos... tudo se torna ameaçador. E a diretora usa esses efeitos com bastante parcimônia, sem ofender a inteligência do espectador. O final é antológico e um apelo bem brechtiano ao espectador: Não esqueçam a cabeça ao entrar no espetáculo. Mas nada disso seria possível sem a interpretação arrebatada e arrebatadora da atriz Essie Davis. Uma das melhores interpretações que vi esse ano.
"A Professora do Jardim de Infância" é um filme estranho. Esse estranhamento é total. Estético e ético. Não sabemos nada de nada. Mas queremos saber. Um fiapo de trama segura o filme inteiro. E isso basta. Não é necessário muito mais que isso. Nira é a tal professora do jardim de infância que se às voltas com um garoto de 5 anos que numa espécie de transe particular declama poesias de sua autoria. As forças das palavras e dos sentimentos evocados por Yoav seduzem a professora e de repente ela se vê envolvida numa trama tão simples quanto absurda. O magnetismo do filme vem daquilo que não compreendemos, mas que podemos de alguma forma sentir ou intuir. A poesia é exatamente isso. O êxtase, a epifania. Quem é Nira e o que ela quer com o menino? E, sobretudo, quem é Yoav? O garotinho que interpreta-o é brilhante. É uma criança. Não um adulto. Isso é o mais impressionante. Mas algo em seus olhos e em seu andar nos comove e seduz. O que será isso? É um filme corpóreo e transcendental. A câmera insistentemente se faz presente quase que o tempo todo. Ela é um personagem. Que perscruta esses dois personagens. E a câmera sempre que Yoav está em cena fica na altura do personagem, cortando o resto do corpo de Nira. É um filme perturbador pelas entrelinhas. Pelo que não é mostrado. Pelo que não sabemos. E que nunca saberemos. É um filme de vazios. Lacunas. Silêncios. E muita poesia.
"Assim falou a sábia Jiang Qing / Alguns dizem que o amor é obtido com ouro / Alguns dizem que o amor é obtido pela mão / Alguns dizem que o amor é obtido pela força / Mas ele não sabe que o amor não é nada além de um vento / Porque junto com todos os ventos dos homens / Ele é soprado no coração, sem um reflexão / Sem refletir, tudo está perdido / Sem refletir, o mar é violeta / Sem refletir, o céu é preto / Sem refletir, uma pessoa não poderia cruzar as montanhas / E esse vento que sopra / É o amor / Adentra em você sem que você reflita sobre ele / E assim, você poderia amar o assassino da tua mãe / Assim falou a sábia Jiang Qing sobre o amor"
"Um Castelo na Itália" não é nem um drama, nem uma comédia. É uma brincadeira melancólica da atriz, diretora e roteirista Valeria Bruni Tedeschi. O filme é dela. Quase uma autobiografia impiedosa e ao mesmo tempo doce. O filme é assim. Contraponto opostos, mas seguindo um fluxo interessante e leve, sem ser frívolo. Tem o charme francês e o despudor italiano. Além de um boa dose de crítica social. Os personagens mais jovens estão perdidos, girando em círculos, correndo atrás de uma utópica felicidade, já os mais velhos estão falidos financeiramente (e espiritualmente). Qual a saída? Existe uma quando todos os valores aparentemente faliram ou estão em vias de? Talvez a profissão dos protagonistas (ela, uma ex-atriz, ele, um ator em vias de desistir de atuar) dê a chave para um possível entendimento da obra... Talvez seja impossível deixa de atuar...
14 Estações de Maria" é um daqueles filmes essenciais para se entender o nosso tempo. Não só ele, como tempos imemoriais. A história humana é a história do medo. Fundamentalmente, o poder está nas mãos daquele que é capaz de designar o outro (seja uma pessoa, um país, uma religião) como o MAL. Acompanhamos o processo de lavagem cerebral que a jovem Maria sofre dentro de uma denominação de dissidentes radicais da Igreja Católica. O Padre e a Mãe são responsáveis pela manipulação da menina. O Padre com seus discursos religiosos travestidos de amor ao próximo e a Deus. Já a mãe é a personificação da tirania. Grita, humilha, castiga quando algo sai do seu controle. Claro, que sempre utilizando a máxima: "de que faz por amor e que um dia a menina irá lhe agradecer."
O fato é que é impossível algo florescer num ambiente desses. Para a garota só resta aceitar sua cruz e imitar, imitar, imitar. A mímese é patética porque é despida de todo e qualquer genuinidade. É tudo para agradar aos outros (Deus, o Padre, a Mãe, a Igreja). A ascese da Jovem Maria só revela sua própria miséria, e a miserabilidade de todo uma organização social baseado em ideais mentirosos. A mentira revela o medo, a covardia. Toda religiosidade de Maria só é válida enquanto performance para agradar a outrem. Uma conservação de valores que cheiram mal. A menina é ensinada a esquecer sua vida para ganhá-la. E há tanta vida lá fora. Mas ela é personifica como demoníaca.
A tentação de Maria é o mundo todo, todos são seus inimigos ... e o amor é o maior pecado de todos. O amor que não surge como obrigação do Deus ("amai o próximo como a ti mesmo") é Satânico. Maria se enamora pelo garoto Christian (belo, irradiando vida, energia e curiosidade pelo outros) e é tocada pela Graça, e pouco a pouco é transformada por ela. Mas até quando resistirá ao chamado dos discursos, da negação a vida, da mentira, da hipocrisia e da covardia?
A direção (de Dietrich Brüggemann) minimalista e bastante rigorosa só reforça o caráter exemplar da obra. Nada excede. Nada falta. É certeiro. O elenco é estupendo. Com destaque absoluto para Lea van Acken que vive Maria.
"A garota que anda à noite" da diretora Ana Lily Amirpour é um filme estranho. Sim. E muito belo. Cult até o talo. Já nasce assim. É uma obra única em sua singeleza e crueldade. A garota que volta para casa de noite parece ser frágil. Ela usa um chador. Vivi num lugar chamado "Cidade do Mal". Anda de skate roubado de um garoto enxerido. Ela é uma espécie de justiceira local. Ela é uma vampira. Mata somente aqueles que fazem o "MAL". Na outra ponta do filme, temos um garoto, espécie de James Dean local, com um pai doente e viciado. Um dia, ele vai à uma festa a fantasia vestido de Drácula. Droga-se. E se perde pela Cidade. A garota que é a personificação do versos da escritora Sylvia Plath: “Dentro de mim mora um grito. De noite, ele sai com suas garras, à caça de algo para amar” está nas ruas, caçando. Ela o encontra. Apaixonam-se. Ele não sabe nada sobre ela. Ela sabe tudo sobre ele. Nós, o espectadores, estamos na mesmíssima situação. Mas mesmo assim torcemos. Pelo quê? Não sei. Foi Clarice Lispector quem disse que se sentia muito mais completa quando não entendia. Sim. É preciso não entender. O entendimento macularia tanto a relação do dois, quanto o filme. Na brilhante cena final ele intui sobre ela. Isso basta. Mas é necessário escolher agora. Não há saída. Ele escolherá. Com certeza. O quê?
"A Garota que anda à noite" é uma obra com várias camadas. Merece ser visto e revisto. A Cidade do Mal é o mundo todo. Um lugar colonizado pela lógica da mercadoria onde tudo está a venda e todos se sujeitam. A vida cotidiana não existe. Foi sugada vampirescamente pelo capital e suas leis. Qual a saída possível? O filme toca em todas essas questões sem cair no panfleto. O que diminuiria suas qualidades. Pelo contrário, a diretora está tão segura de seu filme, que confia sua força no poder das imagens (a noite e seus mistérios, o dia e a rotina repetitiva e extenuante das máquinas) e na quase mudez de sua personagem principal.
"A Garota que anda à noite" é um filme híbrido. Não é (somente) terror ou suspense. Não é (somente) um filme de amor. Não é (somente) uma crítica social. É algo incômodo e artístico. Com um deslumbrante fotografia em preto e branco. Uma trilha sonora deliciosa e inusitada. E uma melancolia que brota sem precisar se fazer esforço nenhum.
Um grande filme. Preciso e quero rever. Urgentemente.
Um delírio fílmico dos mais contundentes e realistas.
"Branco sai, Preto fica" é um obra híbrida e extremamente provocativa. Sua narrativa aparentemente lenta nos coloca no cotidiano dos deficientes físicos, escancara o racismo varrido cinicamente para debaixo do tapete, a ineficiência das leis brasileiras e nos confronta com nossa própria caretice purista com o gênero documentário.
Pense num filme que consiga igualar o nível "Dançando no Escuro" de crueldade... Pense num enredo que refaça de maneira atual o périplo de Jesus Cristo... Pense num garoto que tem como única arma num mundo todo feito contra ele sua própria bondade... Para onde foi o Mal numa sociedade em que já não é possível enunciá-lo? E o Bem? Tem algum valor além de si para si mesmo? "Nada de mau pode acontecer" é um filme incômodo por vários motivos: Tore é um garoto ingênuo que faz parte de uma comunidade cristã punk denominada "Fanáticos por Jesus". Ele crê. Em Deus. Nos homens. Em si. Mas sua fé não basta. Nem seu amor. Muito menos sua esperança. É um filme duro. Desesperançado e desesperado. A bondade de Tore torna-se um sintoma, uma doença, um vírus. Todos o testam. Como uma espécie de Jó hiper-contemporâneo. Resistente à toda dor e sofrimento. Mas por quê? Pra quê? Pra quem? Num mundo despido de significado, tudo torna-se vazio, repetitivo. Tore torna-se um simulacro de algo que nem mesmo entende. E isso só reforça seu caráter estoico. O bem em Tore só reforça, reafirma e engrandece o mal no outro. Ele tudo aceita. Essa é sua provocação. Sua provação. Seu calcanhar de Aquiles e sua força de Sansão. Tudo é bíblico. Uma babilônia. Sodoma e Gomorra. Um apocalipse minimalista e por isso mesmo mais cruel e dolorido.
Baudrillard escreve no livro "A Transparência do Mal" que "todo aquele que expurga sua parte maldita assina sua sentença de morte". Sim. O destino de Tore já está traçado. Não há saída possível. Tore não se confronta com o outro, mas consigo mesmo. Mas de certa forma Tore é uma armadilha para o outro.
"Cada um é o destino do outro, e sem dúvida o destino secreto de cada um é destruir o outro (ou de seduzi-lo), não por maldição ou por qualquer outra pulsão de morte, mas por sua própria destinação vital".
Essa frase de Baudrillar resume bem o filme. Que de maneira nenhuma se mostra maniqueísta apesar de um tema que teria todos os potenciais para cair nisso. Pelo contrário. A diretora Katrin Gebbe em seu filme de estreia faz uma provocação daquelas... utilizando-se de uma estética quase documental guarda o derradeiro soco no estômago para quando o filme termina ao finalizar com um "baseado em fatos reais".
Mas o filme não seria o mesmo sem a atuação epifânica de Julius Feldmeier, ator que interpreta Tore. Ele é a alma, e sobretudo, o corpo do filme.
Acabei de assistir o documentário “O ato de matar” do diretor Joshua Oppenheimer e estou em choque. É seguramente um dos filmes mais perturbadores da história do cinema. O diretor nos apresenta o genocídio ocorrido na Indonésia nos anos 1960 quando 1 milhão de pessoas foram mortas durante a instalação da ditadura militar no país, sob o ponto de vista dos próprios algozes. Silenciados pelo regime, os sobreviventes não ousam falar sobre o massacre temendo represálias, então o diretor convida dois gangsters que atuaram no extermínio dos comunistas para não só darem sua versão da história, como também recriarem as cenas dessas mortes e extermínios. O resultado é chocante e assustador não só pelo que ocorreu no passado, e sim, sobre o que acontece no tempo presente. Como esses senhores já idosos podem falar com tamanho orgulho de seus crimes? Dai que o filme é sobre nós também. Sobre nosso silêncio e hipocrisia. Quase todas as civilizações foram criadas em cima de guerras, medo e mortes. E a história sempre é contada pelo lados dos vencedores (como afirma um dos gangsters a certa altura no filme).
Daí que o diretor dá total liberdade para que Anwar Congo e Ady Zulkadry recriem o passado e as atrocidades que cometeram. Eles não se fazem de rogados e entram de cabeça num projeto artístico de dar calafrios. Reencenam os crimes usando a linguagem do cinema hollywoodiano (musical, aventura, faroeste) e tendo como elenco o povo que eles próprios recrutam nos vilarejos que já atuaram criminosamente. O mais interessante de toda a abordagem deles é que ela não é despida de culpa. Pouco a pouco, dentro do próprio processo de montagem das cenas, eles vão ganhando consciência de alguma coisa está errada nas imagens que eles gravam e depois assistem. Mas o quê? Talvez a roupa. A expressão. Os dentes banguela. A cor do cabelo. Não. Eles estão conscientes do que o que fizeram é um crime, mas a cartilha ideológica os justificam. Fizeram porque era preciso. Simples assim. Algo como a resposta do soldado nazista retratado pela filósofa alemã Hannah Arendt em seu livro "Eichmann em Jerusalém".
Sim. E é exatamente nesse ponto, que o filme mais cresce, pois, ele nos apresenta a tentativa desesperada desses criminosos de enganar não somente os outros, mas, sobretudo, a si mesmos. No fundo, no fundo, eles sabem. O próprio Anwar filma seus pesadelos e até a si mesmo no papel de um dos comunistas torturados numa espécie de impossível expiação de seus pecados. É claro que é uma encenação. Mas também nos mostra um ser desumanizado pela guerra, já cansado e velho, tentando, tentando justificar-se diante do horror dos seus atos. O filme só é brilhante e incomodo por isso. Porque nos apresenta o humano chafurdado nesse pesadelo criado sabe-se lá por quem.
Em "Taurus" o diretor russo Aleksandr Sokúrov registra os momentos finais de Lênin. Não só do estadista, ditador, ou revolucionário, mas também do homem e da ideologia coletiva e do mundo que ele carregava em si mesmo. É um filme difícil. Desesperançado. Perguntas. Perguntas e mais perguntas. Nenhuma certeza. Afinal, alguma coisa valeu a pena? O que restará de tudo isso? Certa vez numa entrevista, Sokúrov afirmou que "Quanto mais infeliz uma pessoa é, mais poder ela quer". Mas o seu interesse está mais na decadência (física, mental e sobretudo, espiritual) do que em qualquer outro lugar. Tudo ruiu. Tudo falhou. Parece não existir mais nenhum resquício ou possibilidade de vida. Os personagens são fantasmas. As imagens num verde desmaiado parecem fruto do último olhar de uma pessoa antes de morrer. Ruídos. Delírios. Risadas. Solidão. Talvez um breve sorriso ao contemplar um (im)possível céu... talvez...
"Disconnect" é mais um filme sobre as relações contemporâneas através da internet e das redes sociais. Mas não é só sobre isso. É uma análise humana, daquilo que se perdeu, da incomunicabilidade, da carência e da crueldade. Retratando personagens que estão sozinhos no meio da multidão e que buscam na internet uma escapatória para não entrar em contato com essa sensação de vazio, o filme é bastante dolorido e dialoga com outro lançado recentemente "Homens, Mulheres e Filhos". Só que no caso de "Disconnect", o retrato é um pouco mais adulto e cruel. A incompreensão é generalizada e os afetos são encobertos pelo véu da incomunicabilidade. Pais e filhos. Irmãos. Marido e mulher. Jornalistas e supostas fontes. Embarcam nesse universo virtual sem contradições aparentes, mas que acabam por revelar todas as angústias contemporâneas. Afinal, até mesmo num universo de identidades frágeis e descartáveis como o virtual alguma coisa sempre acaba escapando. Daí, que nesses simulacros e simulações contemporâneas acabamos por revelar toda nossa miséria, mediocridade e ausência de amor.
“Interstellar” é um filme terreno, sobre sentimentos humanos, sobre o tempo e nossa relação com ele, sobre saudade...
O que alicerça e sustenta toda a obra não são os efeitos especiais e nem a trama aparentemente intricada. NÃO. O que segura e engrandece o filme são as relações de afeto existentes entre os personagens. Esqueçam toda a teoria. Todo o blá blá blá “noliano”. Que nada! “Interstellar” é uma fábula contemporânea. É um “Chapeuzinho Vermelho” atualizado. E Nolan sabiamente nos conta a história dessa humanidade falhada, dessa nossa extrema solidão. Todos aqueles personagens são solitários e buscam desesperadamente encontrar algo ou alguém que suplante essa sensação. Mas há o tempo e o que tiver que acontecer, acontecerá. Não há saída aparente ou fácil. É preciso mergulhar no buraco negro de nossas emoções mais contraditórias, mais ambíguas para quem sabe dali extrair alguma resposta palpável. Daí que o filme é uma metáfora, uma poderosa metáfora.
Outro ponto que considero bastante interessante no filme é a abordagem do “herói”, “aquele que vem para salvar o mundo”. Repare que todos eles são figuras tristes, trágicas, não sorriem e vivem uma vida miserável. Por quê? A figura do Professor Brand é a resposta. Seu desejo de salvar o mundo é muito mais um alimento para o seu ego gigantesco do que um desejo real. E assim o mundo segue, conhecendo vários “salvadores” e continuando “perdido”. Mas eu me pergunto: O mundo precisa realmente de salvação? Eis o ponto-chave para entendimento do filme. NÃO. O mundo não precisa ser salvo. Mas sim o indivíduo. E essa personificação ganha contornos claros através da personagem Murphy. Ela não quer salvar o mundo. Ela quer apenas o seu pai fique. Ou quando ele parte numa jornada quase utópica, ela quer tê-lo de volta. E seu desejo é muito mais sincero, muito mais autêntico do que de todos os outros personagens.
Ela não proclama nada. Não levanta bandeira. Ela simplesmente é. Esse é o seu diferencial. E é ai que ela se salva. E é ai que a epifania acontece e o mundo também pode ser salvo. Autenticidade. Esse é o diferencial de Murphy. Enquanto todos mentem, ela é cruelmente sincera, quase egoísta... mas ali há o lampejo de algo novo. A mensagem final pode até parecer brega ou piegas. Mas não. Não. E não. O amor nada tem a ver com esse sentimento para vender livros, filmes e dvds. Pelo contrário. O amor é a única possibilidade real de contato consigo mesmo e somente esse mergulho é capaz de produzir empatia, uma troca real entre alteridades radicais. A epifania não acontecerá em mim, muito menos no outro. Mas na intersecção. E essa relação só acontece quando há troca, compartilhamento, entrega... pois é preciso que fique claro: Só acredita na mentira quem está mentindo também. Daí que o Professor está mentindo... Brand também está mentindo, pois suas reais intenções são bem outras e isso fica explicitado lá pelas tantas no filme... Cooper também mente, ele quer mesmo salvar o mundo ou está apenas entediado como sua vidinha de fazendeiro?
Ao final das contas, a personagem Murphy não “salva” apenas o mundo. Salva também o filme de Nolan de ser uma catástrofe.
PS: Importante salientar também a excelente atuação de Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain e Mackenzie Foy. Seria injusto não citá-los aqui.
PS 2: Pra quem gostou de “Interstellar” indico o primeiro filme dirigido por Nolan: “Following” que é excepcional !!!
“És um senhor tão bonito Quanto a cara do meu filho Tempo, tempo, tempo, tempo...”
O filme “Boyhood” do diretor Richard Linklater é uma experiência cinematográfica que busca esmiuçar a complexidade que é a vida humana, é um tratado sobre a relação tempo e espaço, indivíduo e sociedade. Tudo isso exposto da maneira mais simples possível, quase banal. E é justamente aí que reside toda a sua força.
Filmado com o mesmo elenco durante um período de doze anos, o diretor nos apresenta um relato contundente do rito de passagem de um garoto e consequentemente toda sua família.
Serei direto, o filme é um tremendo soco no estômago. Mas você nem percebe a pancada que está levando. Lógico que a fotografia é linda, a trilha é um achado e tudo o mais... No entanto, as entrelinhas são extremamente doloridas. Ao final do filme, fiquei me perguntando: Haverá algum espaço para que alguma espécie de humanidade real floresça? Ou tudo será essa eterna repetição de valores fajutos, essa cópia sem fim, essa ordem sem nenhum progresso realmente humano? Afinal, pra que existimos? Para consumir, tão somente? Sei lá... O que mais me pegou foi ver o estrago que os pais, os familiares, os professores e a sociedade em geral fazem na cabeça de Masom e nos outros como ele. Existe alguma alternativa possível a não ser repetir os mesmos padrões dos pais? Estudar, trabalhar, casar, ter filhos... Tão pouco... Todos os adultos parecem tão infelizes, tão frustrados e mesmo assim obrigam seus filhos dia após dia a abandonar seus sonhos, objetivos e ideais em troca de segurança financeira, de status social... Os personagens conversam amenidades, passam algum tempo estudando para a faculdade, mas algo está desmoronando e eles não se dão conta... Mason é diferente, possui uma chama, um lampejo criativo, mas que pouco a pouco vai se transformando em silêncio, introspecção, rebeldia. Algo parecido ocorre com seu pai; que ao longo dos anos deixa de ser um cara libertário para se transformar num homem religioso, sério e pai de família. Tal pai, tal filho. Será?
E isso é o aspecto mais doloroso de toda a obra. Não há amor, só obrigações. E a tristeza impera, porque não há compreensão, só dor e mentira. Até mesmo a preocupação da mãe de Mason é mentirosa. No fundo, ela está preocupada somente com ela, com seu futuro.
Todos os personagens sem exceção ou são ou se transformam ao longo do tempo em pessoas tristes, angustiadas, cínicas. Mason ainda não. Mas ele resistirá quanto tempo? Quanto tempo durará a insatisfação criativa dele?
Acabei de assistir "THE BLING RING" da Sofia Coppola e não consigo entender os motivos pelos quais o filme foi tão massacrado na época do seu lançamento. Sofia é uma diretora inteligente e sensível e é quem melhor sabe fazer um retrato dos jovens (coloco lado a lado de Gus Van Sant, outro mestre em retratar adolescentes). Dai que o registro documental de Sofia incomoda. Ela não emite um julgamento de valor com seu filme. Ela apenas mostra a vida daqueles meninas e do menino. Nada mais. Li que alguns acusam o filme de ser superficial, vazio, que ela poderia ter ido mais fundo. Ora, meus amigos, o filme é um recorte, uma escolha da direção, ela quis que o filme fosse assim. Podemos curtir ou não. Mas é uma escolha dela. Odeio quando "críticos" opinam sobre as escolhas éticas e estéticas de um diretor(a) de uma maneira que fique parecendo que a pessoa não tem consciência do que está fazendo. Sofia não só sabe como está fazendo, como tem uma constância assustadora em suas obras. Quem acompanha seus filmes sabe disso. "The Bling Ring" é um retrato contundente da cultura da ostentação, do narcisismo e do crime. É um filme sobre a morbidez e a estupidez contemporânea, algo como quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha ou uma coisa seria o espelho da outra? "The Bling Ring" se mostra genial quando apenas mostra aquilo que vemos diariamente no Facebook, no Instagram, nas emissoras de televisão, nos filmes de Hollywood, nos jornais e revistas: uma cultura narcísica doentia, um vazio profundo e uma total ausência de afeto. Ao final, Sofia é mais uma vez genial pois nos coloca como cúmplices daqueles jovens e dessa sociedade que aí está.
"HOMEM, MULHERES E FILHOS" é um retrato da incomunicabilidade contemporânea. Dessa nossa modernidade líquida em que tudo parece estar ao alcance das nossas mãos ou de clique no celular, mas que escorre feito água segundos depois. Dessa sensação de habitar tempos mortos e vazios em que não existe sequer um significado ou a possibilidade de inventar um. Dessa imitação barata de uma sexualidade liberal mas que é apenas dor, medo e carência. Dessa nossa falta de empatia com a alteridade. Desse nosso cinismo diário. Dessa nossa hipocrisia cristã, patriótica e meritocrática. Dessa nossa profunda ausência de alegria, êxtase e transcendência. Sim, é um filme tristíssimo.
"O amor não é um prêmio que você ganha no circo por espirrar água na cara do palhaço."
Acabei de assistir um filme ("OLÁ, EU PRECISO IR") cuja estrutura é bem simples, mas que demonstra muito do modus operandi de nossa modernidade. Amy é uma mulher recém-separada (casou-se jovem com um advogado rico) e agora que está sem nenhuma perspectiva na vida, voltou a morar com os pais. Ali, naquele ambiente cheio de cobranças e expectativas, Amy adoece. Entra num processo depressivo e não quer mais ver ninguém, nem fazer nada. Amy é uma loser. Fez bacharelado em artes com um mestrado fajuto, segundo palavras da própria mãe e acabou por ser anular numa dinâmica doméstica com o marido. Não teve filhos. E isso segundo uma amiga de escola, muda tudo. Enfim, Amy até antes do divórcio vivia uma vida "feliz". Normal. Como a da maioria. Até que o marido arrumou outra e por ter se anulado no casamento, não tem nada pra fazer por ela mesma. Ela estava desacostumada a pensar nela própria. Um belo dia, seus pais estão dando um jantar de negócios e Amy conhece Jeremy, jovem ator que se apaixona pelo jeitão dela. Os dois começam um relacionamento bem conturbado, a mãe dele acredita que ele é gay, e ele não sabe como desmentir isso. Além disso, ele odeia ser ator. Mas também não consegue impor suas vontades, nem responsabilizar-se por suas escolhas.
"Às vezes é mais fácil ser o que os outros esperam, em vez de tentar evitar."
O filme fala basicamente sobre como nos acomodamos. Em como vivemos uma vida de mentira em nome apenas da manutenção dessa sociedade normativa. Todos são assim no filme. Todos mentem para manter uma suposta aparência de felicidade. Todos são infelizes. Até que Amy rompe esse ciclo. Novos sonhos. Novas escolhas. Vida Nova. Mas é claro que isso tem seu preço. Enfim, um filme adorável, com um trilha sonora lindíssima e ótimas atuações de Melanie Lynskey e Christopher Abbott.
Well, well... Preciso começar dizendo que “Malévola” é uma parábola. E só pode ser entendido dentro desse universo. Porque fora disso, tudo o mais se invalida. Bom, pra começo de conversa, eu tive muita resistência ao filme. Não gosto de filmes com muitos efeitos especiais. Fujo. Corro. Não assisto simplesmente. Mas dei uma chance e me surpreendi. O filme é bem mais que uma recriação de “A Bela Adormecida”. É um filme sobre o amor. Sobre esse poderoso e tão propagado sentimento. Mas vai além do mero amor romântico. É sobre a misteriosa sensação de enraizamento, de pertencimento, que o amor nos provoca.
No livro “Amor – Uma História”, o filósofo Simon May escreve assim:
”O amor é evocado não por beleza ou excelência moral (no sentido da bondade), mas pela misteriosa promessa do amado de ancorar e sustentar nossa vida, de modo que possamos nos sentir em casa no mundo.”
É isso. Exatamente isso. Malévola, (a personagem) é uma figura que destoa das outras de seu grupo. É uma fada, mas tem chifres e asas que lhe dão um aspecto dark. É menina, mas é a ela que os outros recorrem quando acontece um problema. E é nessa circunstância que Malévola conhece Sthepan, um garoto ambicioso que é pego tentando roubar uma jóia do reino encantado. E será desse encontro com o diferente que algo novo surgirá. Primeiro, uma grande amizade. Depois, um estado de enamoramento. Malévola e o Sthepan se apaixonam. Mas... Ele é extremamente ambicioso e aos poucos se distancia dela. Ela sofre com a ausência. Anos depois, o reino encantado é atacado pelos humanos. Sim. Porque sempre é preciso atacar o diferente. “Malévola” defende seu reino e ganha a guerra. Porque enquanto os homens possuem armas e dinheiro, ela possui também poderes, mas de outras ordens. E como escreve Jean Baudrillard em “A Transparência do Mal”: “O poder simbólico é sempre superior ao das armas e do dinheiro” •
Malévola, apesar de poderosa, é ingênua e cai na lábia de Sthepan, que movido por uma ambição desmedida, seduz, engana, ludibria-a. Ele corta suas asas. Pois esse é o papel do macho. Não permitir o vôo da mulher. Mantê-la prisioneira ao patriarcado. Oferece as asas de Malévola ao rei que está prestes a morrer e se torna o sucessor dele. Pois esse é o papel do homem. Manter-se no poder sempre. Já Malévola é obrigada a conviver com sua dor. (Talvez seja o papel destinado às mulheres?) E nesse processo, ela é tomada por um desejo de vingança avassalador e joga uma praga na filha do homem que a enganou. A história já narrada milhões de vezes é a mesma. A menina ao completar dezesseis anos espetará o dedo numa roca de fiar e dormirá pra sempre. O agora rei Sthepan implora para que Malévola tenha compaixão da filha. Ela, então, faz a concessão. Diz que o feitiço só será desfeito se ela for beijada por alguém que a ame de verdade. Pronto! Estamos dentro do já conhecido. Sim. Afinal, já vimos essa história muitas vezes. Mas calma. O Rei atormentado designa que as três fadas cuidem de Aurora bem longe do reino. Elas partem. Malévola descobre o esconderijo e passa a vigiar a menina. E aqui o inesperado acontece. Novamente o encontro diferente provocará Malévola. Aurora não tem medo dela. Pelo contrário. Procura-a. Quer colo. Cuidado. Aurora é o retrato do desamparo. As três fadas não cuidam bem dela. E ela quase morre algumas vezes. Seja por fome ou por desatenção. E quem sempre salva a menina? Sim. Malévola torna-se a fada madrinha de Aurora. Sempre a seguindo. Sempre a espreita. E nesse processo, Malévola se reconhece na menina. Ao seguir Aurora, Malévola segue o seu próprio rastro. Vê sua história de fora. Resignificada. Enfim, Malévola cai no seu próprio feitiço. Sim. Baudrillard já afirmava que “cada vive da armadilha que prepara para o outro”. Malévola e Aurora tornam-se cada dia mais próximas. Porém, o grande dia se aproxima. Aurora fará 16 anos. E assim como Malévola conhecerá o significado da palavra “traição”. Apesar dos esforços de todos, a maldição se cumprirá. Mas o desfecho... ah, o desfecho ... (Não vou contar para não estragar a surpresa de quem ainda não viu o filme) é uma verdadeira ousadia. Um passo além. É a grande sacada do filme!!!! Tá... Ok? Se o filme provoca essa subversão do gênero feminino, qual o papel do homem nisso tudo? O rei torna-se um arremedo de homem. Confrontado diariamente consigo mesmo através do que foi capaz de fazer por poder e dinheiro. O Príncipe é um perdido. Desde a primeira cena, ele já nos é apresentado assim. Na última cena também. Reparem. Interessante! Muito interessante! Mas eu ainda sonho com um filme que ultrapasse toda essa questão de gênero. Pensando bem, não sonho só com um filme não... É. Mas ... (Suspiro) ...
No final das contas, o filme é uma reflexão sobre o medo de ser abandonado por quem amamos ou acreditamos amar. Talvez o que procuramos nos outros seja essa a desterritorialização que uma viagem para um lugar desconhecido nos provoca. Baudrillard estava certo.
Gosto de filmes que me inquietam. Desafiam-me. Que eu não saiba nada. Em que me sinta perdido dentro de mim mesmo. “Animals” do diretor Marçal Fores é esse tipo de filme. É um filme híbrido. Em camadas. Sutil. Arrebatador. Poético. Os elogios são vários e eu não me cansaria de citá-los.
A história é bem simples. Um garoto solitário cria um mundo ficcional onde é amigo de um urso de pelúcia. Sim. Lembra o filme “Ted”. Só que numa versão mais sinistra. Aliás, o filme é todo sinistro. Construído de maneira lenta, mas fluída, o filme surpreende por mergulhar o espectador no mesmo desamparo e solidão que o protagonista enfrenta. Não existe escapatória. Tudo é mistério.
Pol não é como um adolescente qualquer. Tenta ser. Mas não é. Pouco sabemos dele. Vive com o irmão. Mas não sabemos o que aconteceu com seus pais. Uma tragédia? Abandono? O quê? Não há respostas. Pelo menos não palpáveis. É preciso aceitar essa proposta e seguir sem mapa. Pol estuda. Toca guitarra e canta escondido no porão junto com o tal urso. Tem uma “namorada”, mas não dá muita bola pra ela. Tudo vai bem, até que...
Um novo personagem entra em cena: Ikari. Quem é ele? Também não sabemos. Misterioso, inteligente, logo Pol encontra-se seduzido pelo aluno novo. O que o atrai em Ikari? É interessante notar que quanto mais ele conhece o novo aluno, mais o rejeita e dicotomicamente mais se sente atraído por ele ou por essa ideia. Foi Lacan quem formulou que "o desejo do homem é o desejo do Outro". Existe uma emergência aí. A presença de Ikari atiça Pol. Desejo e Repulsa caminham lado a lado. A angústia cresce. Lacan acreditava que a angústia seja o único afeto que coloca a gente em contato com o real. O fato é que Pol se ampara em Ikari para construir uma possível identidade, já que ele não tem uma ainda definida. Pol fascinasse com o amigo. Ainda citando Lacan: "A fascinação é absolutamente essencial para o fenômeno da constituição do eu. É na qualidade de fascinada que a diversidade descoordenada, incoerente, da despedaçagem primitiva adquire sua unidade".
Mas aqui surge um impasse. Qual a saída para se ganhar autonomia? A destruição do outro? Ou a destruição de si mesmo? E aqui o filme engrandece de uma forma avassaladora. A violência é a única linguagem entendida por todos. Importante salientar que o filme se constrói em cima de três campos:
Imaginário, simbólico e real.
Ora independentes. Ora misturados.
É possível encontrar ecos de vários filmes em “Animals”:
”Elephant” de Gus Vant Sant, “Os Famosos e os Duendes da Morte” de Esmir Filho, o já citado “Ted”, o documentário “Tiros em Columbine” de Michael Moore, etc...
Apesar dessas referências todas, o filme tem uma identidade própria, só é preciso deixá-lo ser.
"Eu gosto quando os personagens têm de lidar com o limite dos seus desejos. Eu acho muito legal que eles deem suas vidas por eles. Você não acha?"
A fala do ursinho logo no começo da história talvez seja a melhor chave de entendimento para o filme.
”Cada um é o destino do outro, e sem dúvida o destino secreto de cada um é destruir o outro (ou de seduzí-lo), não por maldição ou por qualquer outra pulsão de morte, mas por sua própria destinação vital.”
Com esse trecho escrito pelo filósofo francês Jean Baudrillard eu começo meu texto sobre o filme “A Culpa é das Estrelas”. Sim. O filme que num primeiro momento pode parecer ser apenas uma bobagem adolescente é muito mais que isso. Mas já adianto que cada um é universo em si e só pode enxergar aquilo que traz dentro de si. Desde criança, eu soube que quem construía as histórias e dava significado às coisas era eu mesmo. Ideia reforçada no e pelo teatro. Onde é preciso estar diante da obra sem nenhum desejo e também sem nenhuma memória. E sedimentada ainda mais pela prática da meditação. Onde o único instante que existe é o agora e nada mais. Fiz esse preâmbulo como uma justificativa mesmo. Assumo. Parece que preciso assumir pra mim mesmo que gostei do filme. Como se fosse uma heresia ou algo assim. Dito isso, acho que posso começar.
O filme me pegou. Inexplicavelmente me vi envolvido pela história de Hazel Grace Lancaster e Augustus Waters. É como escreveu Clarice Lispector: “Ou Toca ou não Toca”. Simples assim. E eu me permiti ser tocado pelo filme. Eu disse SIM para ele. É um filme simples. Clichê, alguns dirão. Sim. Não nego. É simples e clichê. O.K. Mas tem algo nele de muito verdadeiro. E o que é esse algo? Tentarei explicar.
O amor em nossa contemporaneidade tornou-se quase divino. Buscamos nele algo que dê sentido para a nossa própria miserabilidade. Sim. Somos miseráveis. Se você ainda não se deu conta disso, sorry, mas ... Somos obrigados a amar. Um sentimento tão genuíno tornou-se uma obrigação. Artigo para vender mercadorias, bugigangas. Dar lucro. A obrigatoriedade de amar é uma fonte de lucro absurda. Consumimos músicas, filmes, novelas, livros, jóias, jantares, roupas, perfumes... Tudo na expectativa amorosa. Esse é o nosso aprendizado. Isso é o que somos. Romper isso é difícil. Quase impossível. Daí que é preciso aparecer um filme como “A Culpa é das Estrelas” para explicitar tudo isso. E ao mesmo tempo provocar uma hecatombe dentro de mim.
Lá pelas tantas Hazel alerta Augustus: Fique longe de mim, eu sou uma granada. Na mosca. Metáfora perfeita. O amor é essa granada. O amor é um fim em si mesmo. Não tem utilidade efetiva nenhuma. Por que amamos? Porque sim, ora essas. Não precisa de explicação. É e pronto. Aceita que dói menos. Tudo isso estou falando sobre o amor verdadeiro. Não sobre o falso. Mistura de luxuria com desejo de posse e de escravidão. Não. Falo do amor que torna tudo rico, uma grande brincadeira. Aquele amor que em sua forma mais pura é alegria compartilhada como escreveu Osho. Pra sentir esse amor é preciso ser maduro e ingênuo ao mesmo tempo. Sim. A vida é feita de contradições e você já devia saber disso. Nada é uma coisa só. Mas também o seu oposto.
Hazel e Augustus têm câncer. Cada um o seu. Com sua especificidade e poder de destruição. Eles vão morrer. Há uma urgência nesse fato inexorável que torna tudo muito mais angustiante. Não há mais espaço para (os nossos tão corriqueiros) tempos mortos. Não há tempo para bobagens. Não há mais tempo para a mentira. Não há tempo para perda de tempo. Não há tempo. Não há mais. Muitos pensam que o ódio é o oposto do amor. Alguns mais espertos dizem que é a indiferença. Mas não. Nem um nem outro. O verdadeiro sentimento oposto ao amor é o medo. E desse mal os personagens protagonistas não padecem. Até um pouco no começo. Mais Hazel do que Augustus, é verdade. Mas o medo desaparece. Torna-se amor. Latente. Puro. Intenso. Alegria (e por que não também dor?) compartilhada. Eles se dão. Doam-se um para o outro. Vivem aquilo que têm para viver. Isso o que mais me toca no filme. Osho tem um texto tão lindo em que escreve assim:
”O amor é se aproximar do outro sem medo, com uma enorme confiança de que será recebido - e ele sempre é. O medo se encolhe dentro de você, fecha o seu ser, fecha todas as portas, todas as janelas para que o sol, o vento, a chuva não possam atingi-lo, tamanho o seu pavor. Você está se enterrando vivo.
O medo é uma sepultura, o amor é um templo. No amor, a vida chega ao seu apogeu. No medo, a vida resvala para o nível da morte. O medo fede, o amor é perfumado. Por que você deveria ter receio?”
Por que você deveria ter receio? Porque assim fomos ensinados. Doutrinados. O outro é a ameaça. O mal. O inferno. E assim negamos a vida na esperança de vivê-la. Medo. Só medo. E Hazel e Augustus talvez pelo câncer, talvez pela urgência, talvez pela pouca idade permitem-se um se aproximar do outro sem medo. Tá, tudo bem que o filme faz deles um casal de namorados e que blá blá blá, mas isso é só a superfície. Existem outras camadas. Precisamos ir além. Ir mais fundo. Sempre. E é nesse processo louco de mergulho um no outro que acontece a maior epifania de todas e a que mais me provoca nessa história de Hazel e Augustus:
É que quando mais eles caminham em direção a morte, mas eles se afastam dela. Porque eles vivem. Não meramente comem, dormem, trabalham, estudam. Verdadeiros Zumbis. Não. Eles vivem. Isso é tão mágico e mostrado de uma maneira tão doce no filme que me tocou profundamente. Eles são tão conscientes da morte que se tornam inocentes em vida. A vida se torna maior, mais vivida, intensa e bela. Uma celebração. Um êxtase.
Mas nada disso seria possível sem a atuação sensível de Shailene Woodley e Ansel Elgort que vivem os protagonistas. O filme é deles. O filme é eles. Como é bom ver atuações tão jovens e cheios de verdade, entrega e doçura. Não são só as falas do filme que encantam. Mas o subtexto. As entrelinhas. O Silêncio. Os olhares. Shailene e Ansel fazem Hazel e Augustus serem palpáveis. Carne e osso. Eles atuam num campo emocional muito difícil de ser acessado. Estão entregues. Despidos de artifícios tão comuns nesse tipo de filme. Pode parecer até loucura, mas identifiquei neles algo tão profundo quanto nas atuações de Michelle Williams e Ryan Gosling em “Blue Valentine”. A mesmíssima entrega e sensibilidade. É tão bonito de ver quando a atuação extrapola o fílmico, o roteiro... Eles dão vida. Eles vivem. Se doam um ao outro. O filme só dá certo por eles. Lógico que a direção também segura a onda muito bem. Lógico que a trilha sonora é maravilhosa. Mas se não fosse pela química que rola entre o casal nada disso faria sentido.
E outra coisa que me chama a atenção. Num tempo totalmente dominado pelas relações virtuais ver os dois começando uma relação permeada pelo real desejo de conhecimento um do outro e pela troca de livros (que não são apenas livros prediletos, mas universos particulares de cada um) é um alento tremendo. Algo como “eu confio em você, toma aqui meu mundo... esse sou eu.”
São esses pequenos detalhes que me fazem ficar fã do filme. Tão fã que senti vontade de passar numa livraria e comprar uma edição de “A Culpa é das Estrelas” e devorá-lo todinho. Só não o fiz porque todas as livrarias estavam fechadas. (Risos).
De onde vem a melancolia? A tristeza? Esse sentimento de não pertencimento? “Oslo, 31 de Agosto” do diretor Joachim Trier deixa-nos com essas perguntas martelando nossas cabeças. Sim. A arte deve nos trazer dúvidas e nunca responder nada. Caberá ao indivíduo refletir e chegar por si mesmo em alguma possível resposta ou aceitar o mistério das coisas.
O enredo do filme é bastante simples. Anders é um norueguês de 34 anos, viciado em drogas, que está internado numa clínica de recuperação. Quando o filme começa, ele está saindo da clínica por um dia. Irá numa entrevista de emprego. Tudo dentro do cronograma da clínica. O que acontecerá com ele fora do ambiente protegido? Como ele se comportará diante das figuras do seu passado? Ele conseguirá resistir? Permanecer limpo?
Uma cena em especial materializa tudo isso de maneira exemplar. Logo quando sai da clínica, Anders está dentro de um táxi e passa por um imenso e intenso túnel. Tudo se transforma em escuridão... Até que... A luz do sol volta a aparecer retumbante. Será?
O filme não apresenta nenhum tratado sociológico, nem muito menos transforma tudo num circo sentimental. Pelo contrário. Apenas acompanhamos o protagonista. E isso é tudo. Somos apresentados aos fragmentos de possíveis respostas. Fotos ali. Uma canção ao piano acolá. Telefonemas. Encontros. Desencontros. Somos aquilo que somos ou o que fomos? É possível dissociar o passado do presente? Quiçá do futuro? Pouco a pouco vamos compreendendo as dificuldades de convívio. Vamos entendendo o distanciamento do irmão. Tudo no final das contas é só medo. É só autodefesa. Instinto de preservação da espécie. Tudo é uma preparação para a perda.
Anders parece se diferenciar de todos os outros. A realidade afeta-o de uma maneira mais profunda e intensa que nos outros. O Vazio se apresenta mais irremediável. O passado é uma pedra pesada amarrada aos pés. Impossível tirar. Aquela pedra o acompanhará pelos restos de seus dias. Todos os outros personagens aceitam a miserabilidade de suas vidas. Anders não. Ele não se contenta. Os outros sim. Eles aceitam. Lá pelas tantas lembrei do Mito de Sísifo escrito pelo sempre fabuloso Albert Camus.
"O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia."
Sim. Anders já tentou o suicídio algumas vezes. Sempre fracassou em seu intento. Camus no livro nos apresenta o seguinte questionamento: Se a vida é isso aqui que vivemos, sem tirar nem por, a gente comete suicídio ou não? Se somos esse homem em busca de sentido em meio ao caos e o vazio de significado, será que a concretização desse absurdo exige o suicídio. Camus acredita que não. Exige revolta. Exige coragem para viver as contradições.
"Desde que o momento absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante de todas as paixões."
Anders opta pela melancolia pura e simples. Ela não se contenta, mas também não se revolta. Parece querer fugir do embate que é viver. Afinal, o que é a vida de cada um de nós quando vista de muito perto? O drama vivido pelo irmão intelectual diz muito sobre isso. Ele também é outro que parece fugir do embate. Refugia-se nas citações, nos livros, na mentira. Torna-se frio. Debochado. Sem empatia. Sem paixão. Camus acredita que somente da plena aceitação do absurdo podemos ter uma vida de verdade. E para chegarmos a esse estado precisamos de revolta, liberdade e paixão. Sim. Nada faz sentido. Estamos sozinhos como Macabéa’s numa cidade toda feita contra nós. Mas ainda assim, precisamos estar apaixonados, porque como diz Nelson Rodrigues; sem paixão não dá nem pra chupar um picolé.
Anders reconhece que nada mais faz sentido. Ele saca que estamos sozinhos num lugar inóspito. Ele não consegue mentir para si mesmo. E isso é o mais doloroso da trajetória dele. Ao final do filme, esperei o letreiro subir. Desliguei a TV. Deite-me. E novamente me veio Camus na cabeça:
Uma pequena obra-prima do cinema. Um dos filmes mais doloridos que já assisti. "Minha Infância" do diretor Bill Douglas. Putz! Não tem nem o que falar. O filme é inspirado nas memórias do diretor e para conseguir realizá-lo, ele vendeu potes de geleia durante um tempo. Mas nem é preciso saber de nada disso, pq tá tudo lá. Impresso. Marcado a ferro e fogo. Em brasa. Ardendo. Queimando. Naqueles dois meninos. Naquela miséria. Ausência de tudo. Afeto. Comida. Passado. Presente. Futuro. Tudo faltou. Falhou. Deu errado. A vida come a vida. Espanta-se o narrador de "A Hora da Estrela" lá pelo finalzinho do livro. Também eu me esqueci desse detalhe. E assombrou-me diante da verdade inexorável desse filme. Não chorei. Nenhuma gota de lágrima caiu de meus olhos. Não consegui. Só restou-me o espanto. O assombro. Como pode um filme ser tão desgraçado e ainda sim exalar uma poética toda própria e desvelar nossa própria humanidade perdida? Não sei. Juro que não sei. "Minha infância" é a primeira parte de uma trilogia. Vou assistir os dois próximos filmes urgentemente. Quero saber o que acontecerá com Jamie e seu meio-irmão. Ficará complicado abandonar esses dois essa noite. Como esquecer o olhar de pura melancolia e desamparo do ator mirim Stephen Archibald? Impossível. Ai ai ...
Tom na Fazenda
3.7 368 Assista Agora"Hoje foi como se uma parte de mim tivesse morrido, pois não consigo chorar. Eu esqueci todos os sinônimos para tristeza. Agora, apenas o que posso fazer sem você é substituí-lo".
TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Notoriamente “TOM NA FAZENDA” é uma mudança brusca no estilo do artista canadense Xavier Dolan. Não que suas obras anteriores não fossem boas. Pelo contrário. Sou fã confesso dele. Mas aqui há uma tensão, uma sustentação psicológica só comparável ao que eu senti assistindo "Psicose" do Hitchcock. Tudo o que anteriormente era excesso na obra de Dolan aqui se transforma em contenção. Há uma frieza, um minimalismo que só fazem realçar o aspecto anti-psicanalítico da obra. Quem são aqueles personagens? Por que estão naquela situação? A história nos é apresentada de maneira elíptica, aos solavancos. Sabemos tão pouco, para no instante seguinte, sabermos demais, e no próximo take, já não mais reconhecermos as atitudes daqueles personagens.
O enredo é bem simples e essa é uma de suas maiores qualidades. Poucos personagens. Basicamente três. Tom que vai ao enterro de seu namorado (?) numa fazenda distante. Lá moram Agathe (a mãe) e Francis (o irmão). A mãe não sabia da sexualidade do filho e esperava uma mulher. Francis que o tempo todo mentia pra a mãe sobre a sexualidade do irmão faz com que Tom entre no jogo. Ele aceita. Mas a coisa muda de figura quando Francis ordena que ele fique na fazenda. A história é essa. Mas o que importa aqui éo como... A maneira como o roteiro e direção contam essa história. Não é possível nomear o que os personagens sentem. O julgamento sempre se mostra precipitado e tudo se complica cada vez mais. A tensão sexual que existe entre Tom e Francis ganha contornos ora violentos, ora afetuosos, chegando a nos lembrar os casos de Síndrome de Estocolmo. O que está em jogo ali? O que Francis, um homem bonito e viril de 30 anos, mas que ainda vive com a mãe, esconde? O que a simples presença de Tom faz com a cabeça desse cara? Como já disse o diagnóstico nunca é simples e nunca podemos precisar com certeza quem é quem ou quem causou o quê em quem? O jogo se inverte e se embaralha o tempo todo. O que é mais danoso: a violência física ou a repressão sexual? Não estariam intimamente ligadas? Quem detém o poder? Aquele que agride ou aquele que excita? É possível se excitar com uma agressão? Ficar dependente dela? Agride-se aquilo que rejeitamos em nós mesmos? Quem é mais ingênuo:aquele que inventa a mentira ou aquele que acredita nela? É possível fugir daquilo que somos? A mentira que criamos para nós acaba por revelar o quê?
Somos máquinas desejantes, em constante movimento, a concepção de Deleuze em "Anti-Édipo" sobre o ser-humano serve demais aqui. “O inconsciente produz. Não para de produzir. Funciona como uma fábrica”. É sobre isso. Sobre essa produção desesperada. Sobre esse desejo que se inventa, se inverte, cresce, lateja, goteja em nós. E é justamente a presença de Tom que detona tudo isso não só em Francis, como em Agathe também. Ambos viviam num estado improdutivo, impedidos de desejar, reduzidos aos papéis de mamãe e filhinho, recalcados pelo abandono do irmão mais novo.Segundo Deleuze, esse é o papel da família, da sociedade, da igreja, do trabalho, da polícia. Manter as coisas como elas são. O sujeito deseja a própria prisão. Não seria essa então a condição amorosa por excelência?
“Toda produção desejante é esmagada, submetida às exigências da representação”.
Não seria esse o papel de Tom, Agathe, Francis e todos os outros?
Paremos por aqui. Porque não há representação possível para o desejo. Ele é criação, expansão e também sua própria destruição.
Daí que nada poderia ser mais genial do que acabar o filme com “Going to a Town” do cantor Rufus Wainwright. A letra é uma porrada. Assim como o filme.
Eu e Você
3.5 190 Assista Agora"Eu e você" do Bertolucci é um daqueles filmes que falam sobre a necessidade que o ser - humano tem de criar muros para si mesmo. De viver fechado em si mesmo e em suas verdades. Lorenzo é um adolescente problemático que mente para a mãe que foi fazer uma viagem com a escola e se enfia no porão do prédio. Lá, enfim, longe de tudo e todos, sem ninguém para lhe dizer o que fazer, o garoto experimenta pela primeira vez aquilo que Clarice Lispector em "A Hora da Estrela" chama de mais precioso: a solidão. Esse estado não dura muito tempo, já que lá pelas tantas, aparece uma meia-irmã que fazia muito tempo que ele não via para perturbá-lo. Mas é justamente nessa quebra que emerge a poesia do filme. Olívia é igualmente problemática, embora bem mais velha que ele. Passando por um período de abstinência em heroína, Olívia desperta em Lorenzo muito mais que um sentimento de empatia, mas tudo aqui fica apenas na sugestão. É um filme bonito sobre a convivência e uma possível abertura para o afeto. Impossível não se emocionar com a cena ao som de "Ragazzo Solo, Ragazza Sola" cantada por David Bowie.
Fim da Amizade
2.5 8"Fim da Amizade" é um filme obscuro, sobre uma fase conturbada (a adolescência) e retratando um sentimento que quando negado ou traído pode se tornar obsessivo e destrutivo: o amor.
TEM SPOILER!
O diretor filipino Joselito Altarejos nos entrega um filme passional, escuro, mas com uma temática corajosa e abordada de maneira bem diferente da usual. O fato da história se passar numa Filipinas contemporânea dominada por aparatos tecnológicos e pela cultura dos Estados Unidos (o menino é criado pela avó e a mãe foi fazer a vida na América e só fala com ele por Skype e vez ou outra manda algum dinheiro) mas mantendo uma arcaica tradição cristã, aumenta ainda mais o potencial exótico do filme. A homossexualidade do protagonista é mostrada de maneira nada fetichista. A avó parece aceitar a orientação sexual do neto e a mãe se faz de desentendida. O preconceito só é sentido fora da casa, nas brincadeiras cruéis dos meninos do bairro, mas não há autocomiseração. David parece não ter tempo para essas coisas. Sua única vontade é retomar o namoro com Johnatan. Mas ele parece estar em outra. O filme se torna então um mergulho na mentalidade obsessiva do protagonista. Que não medirá esforço para chamar a atenção do amigo. A câmera de Altarejos perscruta David em sua jornada de autodestruição, fazendo-nos sentir na pele sua loucura. Músicas adolescentes, tablets, celulares, fotos, redes sociais e as facilidades de se conseguir uma arma e aprender a atirar através de vídeos no youtube se inserem na trama de maneira natural, sem apelação. Ao final, o que é real e o que é fruto dessa cultura que venera o fato de estar apaixonado são colocados em xeque na excelente cena final. Na maioria das vezes, fazemos sempre pelos outros, não é mesmo?
Na Próxima, Acerto o Coração
3.2 80 Assista Agora"Na próxima, acerto no coração" é um daqueles suspenses bem franceses. O que quer dizer que seu foco está mais no perfil psicológico do criminoso do que em seus crimes ou investigação policial. Baseado em fatos reais ocorridos no final dos anos 70, o filme perscruta o homem responsável por uma série de crimes que deixou a polícia francesa de cabelo em pé. Quem é ele? O filme não responde de maneira óbvia. Até porque seria impossível responder sem cair num didatismo bobo. A opção da direção é sábia. Cédric Anger apenas nos mostra esse personagem e deixa espaço para que nós (os espectadores) possamos julgá-lo ou não. O fato é que Franck é um fruto do seu meio. Ele é o sintoma de uma sociedade doente, repressiva. Franck é o criminoso, o policial, o seu próprio algoz e a vítima. Vivendo uma espécie de crime e castigo interior, ele se pune a cada crime em rituais de autoflagelo quase cristão. Mas a sede por mais e mais mortes fala mais alto. Ao mesmo tempo em que ele sofre a cada novo crime. O filme mexe tanto com nosso psicológico que lá pelas tantas nos pegamos torcendo para que a polícia não o capture, numa cena bastante tensa. O ator Guillaume Canet está excelente no papel. É nítido que ele não julga o seu personagem, o que acabaria por diminuir a potência dele. Franck não é um, são vários. Lá pelas tantas, numa cena quase banal, o personagem revela um pouco de sua personalidade conturbada. Ao ser questionado por um homem no bar por que ele está quebrando os ovos sem comê-los, Franck responde apenas: "Não, eu não os como. Eu os quebro. Mas comê-los, não. Eu pago por eles." Eis ai todo o seu método.
O Babadook
3.5 2,0K"The Babadook" é muito mais que um filme de terror. É um daqueles filmes que exigem a atenção do espectador para as sutilezas, metáforas, para o que está nas entrelinhas, além-filme.
PODE TER SPOILER! SE NÃO VIU O FILME NÃO LEIA!
Amélia é uma escritora de livros infantis que perdeu o marido no mesmo dia que o filho nasceu. Esse fato faz com que ela se desconecte do mundo e se sinta sempre em estado depressivo. Mas ela nega isso. Diz a todo momento que está bem. Seu filho Sam é um menino sensível que do seu modo parece perceber que as coisas não vão nada bem. Seu comportamento é agressivo, e dá muito trabalho para a mãe. Ele é o "sintoma". Um dia ao ler um livro pra o filho dormir, somos apresentados ao Senhor Babadook, uma figura que parece ter saído dos filmes de terror expressionistas e tudo começa a ruir. O que Amélia esconde? Ou melhor, do que ou de quem ela se esconde? É da negação de si mesma e de seus problemas que o monstro acaba ganhando cada vez mais e mais força. “Quanto mais você nega, mais forte vou ficar” diz o monstro do livro. E ela nega. Quer ser uma boa mãe, uma boa funcionária, uma boa amiga. E nunca consegue. E acaba se frustrando e gerando cada vez mais e mais culpa em seu filho. Tudo se passa no plano mental de Amélia. Acompanhamos passo a passo a evolução de seus delírios, loucuras e perturbações. Jennifer Kent assina o roteiro e direção de maneira bastante original, ao mesmo tempo em que faz uma homenagem aos grandes filmes do gênero. Tudo no filme é aterrorizante. Desenhos animados na televisão, músicas infantis, barulhos, sonhos... tudo se torna ameaçador. E a diretora usa esses efeitos com bastante parcimônia, sem ofender a inteligência do espectador. O final é antológico e um apelo bem brechtiano ao espectador: Não esqueçam a cabeça ao entrar no espetáculo. Mas nada disso seria possível sem a interpretação arrebatada e arrebatadora da atriz Essie Davis. Uma das melhores interpretações que vi esse ano.
A Professora do Jardim de Infância
3.5 22 Assista Agora"A Professora do Jardim de Infância" é um filme estranho. Esse estranhamento é total. Estético e ético. Não sabemos nada de nada. Mas queremos saber. Um fiapo de trama segura o filme inteiro. E isso basta. Não é necessário muito mais que isso. Nira é a tal professora do jardim de infância que se às voltas com um garoto de 5 anos que numa espécie de transe particular declama poesias de sua autoria. As forças das palavras e dos sentimentos evocados por Yoav seduzem a professora e de repente ela se vê envolvida numa trama tão simples quanto absurda. O magnetismo do filme vem daquilo que não compreendemos, mas que podemos de alguma forma sentir ou intuir. A poesia é exatamente isso. O êxtase, a epifania. Quem é Nira e o que ela quer com o menino? E, sobretudo, quem é Yoav? O garotinho que interpreta-o é brilhante. É uma criança. Não um adulto. Isso é o mais impressionante. Mas algo em seus olhos e em seu andar nos comove e seduz. O que será isso? É um filme corpóreo e transcendental. A câmera insistentemente se faz presente quase que o tempo todo. Ela é um personagem. Que perscruta esses dois personagens. E a câmera sempre que Yoav está em cena fica na altura do personagem, cortando o resto do corpo de Nira. É um filme perturbador pelas entrelinhas. Pelo que não é mostrado. Pelo que não sabemos. E que nunca saberemos. É um filme de vazios. Lacunas. Silêncios. E muita poesia.
"Assim falou a sábia Jiang Qing / Alguns dizem que o amor é obtido com ouro / Alguns dizem que o amor é obtido pela mão / Alguns dizem que o amor é obtido pela força / Mas ele não sabe que o amor não é nada além de um vento / Porque junto com todos os ventos dos homens / Ele é soprado no coração, sem um reflexão / Sem refletir, tudo está perdido / Sem refletir, o mar é violeta / Sem refletir, o céu é preto / Sem refletir, uma pessoa não poderia cruzar as montanhas / E esse vento que sopra / É o amor / Adentra em você sem que você reflita sobre ele / E assim, você poderia amar o assassino da tua mãe / Assim falou a sábia Jiang Qing sobre o amor"
Um Castelo na Itália
3.0 38"Um Castelo na Itália" não é nem um drama, nem uma comédia. É uma brincadeira melancólica da atriz, diretora e roteirista Valeria Bruni Tedeschi. O filme é dela. Quase uma autobiografia impiedosa e ao mesmo tempo doce. O filme é assim. Contraponto opostos, mas seguindo um fluxo interessante e leve, sem ser frívolo. Tem o charme francês e o despudor italiano. Além de um boa dose de crítica social. Os personagens mais jovens estão perdidos, girando em círculos, correndo atrás de uma utópica felicidade, já os mais velhos estão falidos financeiramente (e espiritualmente). Qual a saída? Existe uma quando todos os valores aparentemente faliram ou estão em vias de? Talvez a profissão dos protagonistas (ela, uma ex-atriz, ele, um ator em vias de desistir de atuar) dê a chave para um possível entendimento da obra... Talvez seja impossível deixa de atuar...
14 Estações de Maria
4.0 7814 Estações de Maria" é um daqueles filmes essenciais para se entender o nosso tempo. Não só ele, como tempos imemoriais. A história humana é a história do medo. Fundamentalmente, o poder está nas mãos daquele que é capaz de designar o outro (seja uma pessoa, um país, uma religião) como o MAL. Acompanhamos o processo de lavagem cerebral que a jovem Maria sofre dentro de uma denominação de dissidentes radicais da Igreja Católica. O Padre e a Mãe são responsáveis pela manipulação da menina. O Padre com seus discursos religiosos travestidos de amor ao próximo e a Deus. Já a mãe é a personificação da tirania. Grita, humilha, castiga quando algo sai do seu controle. Claro, que sempre utilizando a máxima: "de que faz por amor e que um dia a menina irá lhe agradecer."
O fato é que é impossível algo florescer num ambiente desses. Para a garota só resta aceitar sua cruz e imitar, imitar, imitar. A mímese é patética porque é despida de todo e qualquer genuinidade. É tudo para agradar aos outros (Deus, o Padre, a Mãe, a Igreja). A ascese da Jovem Maria só revela sua própria miséria, e a miserabilidade de todo uma organização social baseado em ideais mentirosos. A mentira revela o medo, a covardia. Toda religiosidade de Maria só é válida enquanto performance para agradar a outrem. Uma conservação de valores que cheiram mal. A menina é ensinada a esquecer sua vida para ganhá-la. E há tanta vida lá fora. Mas ela é personifica como demoníaca.
A tentação de Maria é o mundo todo, todos são seus inimigos ... e o amor é o maior pecado de todos. O amor que não surge como obrigação do Deus ("amai o próximo como a ti mesmo") é Satânico. Maria se enamora pelo garoto Christian (belo, irradiando vida, energia e curiosidade pelo outros) e é tocada pela Graça, e pouco a pouco é transformada por ela. Mas até quando resistirá ao chamado dos discursos, da negação a vida, da mentira, da hipocrisia e da covardia?
A direção (de Dietrich Brüggemann) minimalista e bastante rigorosa só reforça o caráter exemplar da obra. Nada excede. Nada falta. É certeiro. O elenco é estupendo. Com destaque absoluto para Lea van Acken que vive Maria.
Recomendo!
Garota Sombria Caminha Pela Noite
3.7 343 Assista Agora"A garota que anda à noite" da diretora Ana Lily Amirpour é um filme estranho. Sim. E muito belo. Cult até o talo. Já nasce assim. É uma obra única em sua singeleza e crueldade. A garota que volta para casa de noite parece ser frágil. Ela usa um chador. Vivi num lugar chamado "Cidade do Mal". Anda de skate roubado de um garoto enxerido. Ela é uma espécie de justiceira local. Ela é uma vampira. Mata somente aqueles que fazem o "MAL". Na outra ponta do filme, temos um garoto, espécie de James Dean local, com um pai doente e viciado. Um dia, ele vai à uma festa a fantasia vestido de Drácula. Droga-se. E se perde pela Cidade. A garota que é a personificação do versos da escritora Sylvia Plath: “Dentro de mim mora um grito. De noite, ele sai com suas garras, à caça de algo para amar” está nas ruas, caçando. Ela o encontra. Apaixonam-se. Ele não sabe nada sobre ela. Ela sabe tudo sobre ele. Nós, o espectadores, estamos na mesmíssima situação. Mas mesmo assim torcemos. Pelo quê? Não sei. Foi Clarice Lispector quem disse que se sentia muito mais completa quando não entendia. Sim. É preciso não entender. O entendimento macularia tanto a relação do dois, quanto o filme. Na brilhante cena final ele intui sobre ela. Isso basta. Mas é necessário escolher agora. Não há saída. Ele escolherá. Com certeza. O quê?
"A Garota que anda à noite" é uma obra com várias camadas. Merece ser visto e revisto. A Cidade do Mal é o mundo todo. Um lugar colonizado pela lógica da mercadoria onde tudo está a venda e todos se sujeitam. A vida cotidiana não existe. Foi sugada vampirescamente pelo capital e suas leis. Qual a saída possível? O filme toca em todas essas questões sem cair no panfleto. O que diminuiria suas qualidades. Pelo contrário, a diretora está tão segura de seu filme, que confia sua força no poder das imagens (a noite e seus mistérios, o dia e a rotina repetitiva e extenuante das máquinas) e na quase mudez de sua personagem principal.
"A Garota que anda à noite" é um filme híbrido. Não é (somente) terror ou suspense. Não é (somente) um filme de amor. Não é (somente) uma crítica social. É algo incômodo e artístico. Com um deslumbrante fotografia em preto e branco. Uma trilha sonora deliciosa e inusitada. E uma melancolia que brota sem precisar se fazer esforço nenhum.
Um grande filme. Preciso e quero rever. Urgentemente.
Branco Sai, Preto Fica
3.5 173Um delírio fílmico dos mais contundentes e realistas.
"Branco sai, Preto fica" é um obra híbrida e extremamente provocativa. Sua narrativa aparentemente lenta nos coloca no cotidiano dos deficientes físicos, escancara o racismo varrido cinicamente para debaixo do tapete, a ineficiência das leis brasileiras e nos confronta com nossa própria caretice purista com o gênero documentário.
Nada de Mau Pode Acontecer
3.8 100Pense num filme que consiga igualar o nível "Dançando no Escuro" de crueldade... Pense num enredo que refaça de maneira atual o périplo de Jesus Cristo... Pense num garoto que tem como única arma num mundo todo feito contra ele sua própria bondade... Para onde foi o Mal numa sociedade em que já não é possível enunciá-lo? E o Bem? Tem algum valor além de si para si mesmo? "Nada de mau pode acontecer" é um filme incômodo por vários motivos: Tore é um garoto ingênuo que faz parte de uma comunidade cristã punk denominada "Fanáticos por Jesus". Ele crê. Em Deus. Nos homens. Em si. Mas sua fé não basta. Nem seu amor. Muito menos sua esperança. É um filme duro. Desesperançado e desesperado. A bondade de Tore torna-se um sintoma, uma doença, um vírus. Todos o testam. Como uma espécie de Jó hiper-contemporâneo. Resistente à toda dor e sofrimento. Mas por quê? Pra quê? Pra quem? Num mundo despido de significado, tudo torna-se vazio, repetitivo. Tore torna-se um simulacro de algo que nem mesmo entende. E isso só reforça seu caráter estoico. O bem em Tore só reforça, reafirma e engrandece o mal no outro. Ele tudo aceita. Essa é sua provocação. Sua provação. Seu calcanhar de Aquiles e sua força de Sansão. Tudo é bíblico. Uma babilônia. Sodoma e Gomorra. Um apocalipse minimalista e por isso mesmo mais cruel e dolorido.
Baudrillard escreve no livro "A Transparência do Mal" que "todo aquele que expurga sua parte maldita assina sua sentença de morte". Sim. O destino de Tore já está traçado. Não há saída possível. Tore não se confronta com o outro, mas consigo mesmo. Mas de certa forma Tore é uma armadilha para o outro.
"Cada um é o destino do outro, e sem dúvida o destino secreto de cada um é destruir o outro (ou de seduzi-lo), não por maldição ou por qualquer outra pulsão de morte, mas por sua própria destinação vital".
Essa frase de Baudrillar resume bem o filme. Que de maneira nenhuma se mostra maniqueísta apesar de um tema que teria todos os potenciais para cair nisso. Pelo contrário. A diretora Katrin Gebbe em seu filme de estreia faz uma provocação daquelas... utilizando-se de uma estética quase documental guarda o derradeiro soco no estômago para quando o filme termina ao finalizar com um "baseado em fatos reais".
Mas o filme não seria o mesmo sem a atuação epifânica de Julius Feldmeier, ator que interpreta Tore. Ele é a alma, e sobretudo, o corpo do filme.
Recomendo só para os muito fortes.
O Ato de Matar
4.3 135Acabei de assistir o documentário “O ato de matar” do diretor Joshua Oppenheimer e estou em choque. É seguramente um dos filmes mais perturbadores da história do cinema. O diretor nos apresenta o genocídio ocorrido na Indonésia nos anos 1960 quando 1 milhão de pessoas foram mortas durante a instalação da ditadura militar no país, sob o ponto de vista dos próprios algozes. Silenciados pelo regime, os sobreviventes não ousam falar sobre o massacre temendo represálias, então o diretor convida dois gangsters que atuaram no extermínio dos comunistas para não só darem sua versão da história, como também recriarem as cenas dessas mortes e extermínios. O resultado é chocante e assustador não só pelo que ocorreu no passado, e sim, sobre o que acontece no tempo presente. Como esses senhores já idosos podem falar com tamanho orgulho de seus crimes? Dai que o filme é sobre nós também. Sobre nosso silêncio e hipocrisia. Quase todas as civilizações foram criadas em cima de guerras, medo e mortes. E a história sempre é contada pelo lados dos vencedores (como afirma um dos gangsters a certa altura no filme).
Daí que o diretor dá total liberdade para que Anwar Congo e Ady Zulkadry recriem o passado e as atrocidades que cometeram. Eles não se fazem de rogados e entram de cabeça num projeto artístico de dar calafrios. Reencenam os crimes usando a linguagem do cinema hollywoodiano (musical, aventura, faroeste) e tendo como elenco o povo que eles próprios recrutam nos vilarejos que já atuaram criminosamente. O mais interessante de toda a abordagem deles é que ela não é despida de culpa. Pouco a pouco, dentro do próprio processo de montagem das cenas, eles vão ganhando consciência de alguma coisa está errada nas imagens que eles gravam e depois assistem. Mas o quê? Talvez a roupa. A expressão. Os dentes banguela. A cor do cabelo. Não. Eles estão conscientes do que o que fizeram é um crime, mas a cartilha ideológica os justificam. Fizeram porque era preciso. Simples assim. Algo como a resposta do soldado nazista retratado pela filósofa alemã Hannah Arendt em seu livro "Eichmann em Jerusalém".
Sim. E é exatamente nesse ponto, que o filme mais cresce, pois, ele nos apresenta a tentativa desesperada desses criminosos de enganar não somente os outros, mas, sobretudo, a si mesmos. No fundo, no fundo, eles sabem. O próprio Anwar filma seus pesadelos e até a si mesmo no papel de um dos comunistas torturados numa espécie de impossível expiação de seus pecados. É claro que é uma encenação. Mas também nos mostra um ser desumanizado pela guerra, já cansado e velho, tentando, tentando justificar-se diante do horror dos seus atos. O filme só é brilhante e incomodo por isso. Porque nos apresenta o humano chafurdado nesse pesadelo criado sabe-se lá por quem.
Taurus
3.7 19Em "Taurus" o diretor russo Aleksandr Sokúrov registra os momentos finais de Lênin. Não só do estadista, ditador, ou revolucionário, mas também do homem e da ideologia coletiva e do mundo que ele carregava em si mesmo. É um filme difícil. Desesperançado. Perguntas. Perguntas e mais perguntas. Nenhuma certeza. Afinal, alguma coisa valeu a pena? O que restará de tudo isso? Certa vez numa entrevista, Sokúrov afirmou que "Quanto mais infeliz uma pessoa é, mais poder ela quer". Mas o seu interesse está mais na decadência (física, mental e sobretudo, espiritual) do que em qualquer outro lugar. Tudo ruiu. Tudo falhou. Parece não existir mais nenhum resquício ou possibilidade de vida. Os personagens são fantasmas. As imagens num verde desmaiado parecem fruto do último olhar de uma pessoa antes de morrer. Ruídos. Delírios. Risadas. Solidão. Talvez um breve sorriso ao contemplar um (im)possível céu... talvez...
Os Desconectados
3.9 442 Assista Agora"Disconnect" é mais um filme sobre as relações contemporâneas através da internet e das redes sociais. Mas não é só sobre isso. É uma análise humana, daquilo que se perdeu, da incomunicabilidade, da carência e da crueldade. Retratando personagens que estão sozinhos no meio da multidão e que buscam na internet uma escapatória para não entrar em contato com essa sensação de vazio, o filme é bastante dolorido e dialoga com outro lançado recentemente "Homens, Mulheres e Filhos". Só que no caso de "Disconnect", o retrato é um pouco mais adulto e cruel. A incompreensão é generalizada e os afetos são encobertos pelo véu da incomunicabilidade. Pais e filhos. Irmãos. Marido e mulher. Jornalistas e supostas fontes. Embarcam nesse universo virtual sem contradições aparentes, mas que acabam por revelar todas as angústias contemporâneas. Afinal, até mesmo num universo de identidades frágeis e descartáveis como o virtual alguma coisa sempre acaba escapando. Daí, que nesses simulacros e simulações contemporâneas acabamos por revelar toda nossa miséria, mediocridade e ausência de amor.
Interestelar
4.3 5,7K Assista Agora“Interstellar” é um filme terreno, sobre sentimentos humanos, sobre o tempo e nossa relação com ele, sobre saudade...
O que alicerça e sustenta toda a obra não são os efeitos especiais e nem a trama aparentemente intricada. NÃO. O que segura e engrandece o filme são as relações de afeto existentes entre os personagens. Esqueçam toda a teoria. Todo o blá blá blá “noliano”. Que nada! “Interstellar” é uma fábula contemporânea. É um “Chapeuzinho Vermelho” atualizado. E Nolan sabiamente nos conta a história dessa humanidade falhada, dessa nossa extrema solidão. Todos aqueles personagens são solitários e buscam desesperadamente encontrar algo ou alguém que suplante essa sensação. Mas há o tempo e o que tiver que acontecer, acontecerá. Não há saída aparente ou fácil. É preciso mergulhar no buraco negro de nossas emoções mais contraditórias, mais ambíguas para quem sabe dali extrair alguma resposta palpável. Daí que o filme é uma metáfora, uma poderosa metáfora.
Outro ponto que considero bastante interessante no filme é a abordagem do “herói”, “aquele que vem para salvar o mundo”. Repare que todos eles são figuras tristes, trágicas, não sorriem e vivem uma vida miserável. Por quê? A figura do Professor Brand é a resposta. Seu desejo de salvar o mundo é muito mais um alimento para o seu ego gigantesco do que um desejo real. E assim o mundo segue, conhecendo vários “salvadores” e continuando “perdido”. Mas eu me pergunto: O mundo precisa realmente de salvação? Eis o ponto-chave para entendimento do filme. NÃO. O mundo não precisa ser salvo. Mas sim o indivíduo. E essa personificação ganha contornos claros através da personagem Murphy. Ela não quer salvar o mundo. Ela quer apenas o seu pai fique. Ou quando ele parte numa jornada quase utópica, ela quer tê-lo de volta. E seu desejo é muito mais sincero, muito mais autêntico do que de todos os outros personagens.
Ela não proclama nada. Não levanta bandeira. Ela simplesmente é. Esse é o seu diferencial. E é ai que ela se salva. E é ai que a epifania acontece e o mundo também pode ser salvo. Autenticidade. Esse é o diferencial de Murphy. Enquanto todos mentem, ela é cruelmente sincera, quase egoísta... mas ali há o lampejo de algo novo. A mensagem final pode até parecer brega ou piegas. Mas não. Não. E não. O amor nada tem a ver com esse sentimento para vender livros, filmes e dvds. Pelo contrário. O amor é a única possibilidade real de contato consigo mesmo e somente esse mergulho é capaz de produzir empatia, uma troca real entre alteridades radicais. A epifania não acontecerá em mim, muito menos no outro. Mas na intersecção. E essa relação só acontece quando há troca, compartilhamento, entrega... pois é preciso que fique claro: Só acredita na mentira quem está mentindo também. Daí que o Professor está mentindo... Brand também está mentindo, pois suas reais intenções são bem outras e isso fica explicitado lá pelas tantas no filme... Cooper também mente, ele quer mesmo salvar o mundo ou está apenas entediado como sua vidinha de fazendeiro?
Ao final das contas, a personagem Murphy não “salva” apenas o mundo. Salva também o filme de Nolan de ser uma catástrofe.
PS: Importante salientar também a excelente atuação de Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain e Mackenzie Foy. Seria injusto não citá-los aqui.
PS 2: Pra quem gostou de “Interstellar” indico o primeiro filme dirigido por Nolan: “Following” que é excepcional !!!
Boyhood: Da Infância à Juventude
4.0 3,7K Assista Agora“És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo...”
O filme “Boyhood” do diretor Richard Linklater é uma experiência cinematográfica que busca esmiuçar a complexidade que é a vida humana, é um tratado sobre a relação tempo e espaço, indivíduo e sociedade. Tudo isso exposto da maneira mais simples possível, quase banal. E é justamente aí que reside toda a sua força.
Filmado com o mesmo elenco durante um período de doze anos, o diretor nos apresenta um relato contundente do rito de passagem de um garoto e consequentemente toda sua família.
Serei direto, o filme é um tremendo soco no estômago. Mas você nem percebe a pancada que está levando. Lógico que a fotografia é linda, a trilha é um achado e tudo o mais... No entanto, as entrelinhas são extremamente doloridas. Ao final do filme, fiquei me perguntando: Haverá algum espaço para que alguma espécie de humanidade real floresça? Ou tudo será essa eterna repetição de valores fajutos, essa cópia sem fim, essa ordem sem nenhum progresso realmente humano? Afinal, pra que existimos? Para consumir, tão somente? Sei lá... O que mais me pegou foi ver o estrago que os pais, os familiares, os professores e a sociedade em geral fazem na cabeça de Masom e nos outros como ele. Existe alguma alternativa possível a não ser repetir os mesmos padrões dos pais? Estudar, trabalhar, casar, ter filhos... Tão pouco... Todos os adultos parecem tão infelizes, tão frustrados e mesmo assim obrigam seus filhos dia após dia a abandonar seus sonhos, objetivos e ideais em troca de segurança financeira, de status social... Os personagens conversam amenidades, passam algum tempo estudando para a faculdade, mas algo está desmoronando e eles não se dão conta... Mason é diferente, possui uma chama, um lampejo criativo, mas que pouco a pouco vai se transformando em silêncio, introspecção, rebeldia. Algo parecido ocorre com seu pai; que ao longo dos anos deixa de ser um cara libertário para se transformar num homem religioso, sério e pai de família. Tal pai, tal filho. Será?
E isso é o aspecto mais doloroso de toda a obra. Não há amor, só obrigações. E a tristeza impera, porque não há compreensão, só dor e mentira. Até mesmo a preocupação da mãe de Mason é mentirosa. No fundo, ela está preocupada somente com ela, com seu futuro.
Todos os personagens sem exceção ou são ou se transformam ao longo do tempo em pessoas tristes, angustiadas, cínicas. Mason ainda não. Mas ele resistirá quanto tempo? Quanto tempo durará a insatisfação criativa dele?
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
3.0 1,7K Assista AgoraAcabei de assistir "THE BLING RING" da Sofia Coppola e não consigo entender os motivos pelos quais o filme foi tão massacrado na época do seu lançamento. Sofia é uma diretora inteligente e sensível e é quem melhor sabe fazer um retrato dos jovens (coloco lado a lado de Gus Van Sant, outro mestre em retratar adolescentes). Dai que o registro documental de Sofia incomoda. Ela não emite um julgamento de valor com seu filme. Ela apenas mostra a vida daqueles meninas e do menino. Nada mais. Li que alguns acusam o filme de ser superficial, vazio, que ela poderia ter ido mais fundo. Ora, meus amigos, o filme é um recorte, uma escolha da direção, ela quis que o filme fosse assim. Podemos curtir ou não. Mas é uma escolha dela. Odeio quando "críticos" opinam sobre as escolhas éticas e estéticas de um diretor(a) de uma maneira que fique parecendo que a pessoa não tem consciência do que está fazendo. Sofia não só sabe como está fazendo, como tem uma constância assustadora em suas obras. Quem acompanha seus filmes sabe disso. "The Bling Ring" é um retrato contundente da cultura da ostentação, do narcisismo e do crime. É um filme sobre a morbidez e a estupidez contemporânea, algo como quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha ou uma coisa seria o espelho da outra? "The Bling Ring" se mostra genial quando apenas mostra aquilo que vemos diariamente no Facebook, no Instagram, nas emissoras de televisão, nos filmes de Hollywood, nos jornais e revistas: uma cultura narcísica doentia, um vazio profundo e uma total ausência de afeto. Ao final, Sofia é mais uma vez genial pois nos coloca como cúmplices daqueles jovens e dessa sociedade que aí está.
Homens, Mulheres & Filhos
3.6 670 Assista Agora"HOMEM, MULHERES E FILHOS" é um retrato da incomunicabilidade contemporânea. Dessa nossa modernidade líquida em que tudo parece estar ao alcance das nossas mãos ou de clique no celular, mas que escorre feito água segundos depois. Dessa sensação de habitar tempos mortos e vazios em que não existe sequer um significado ou a possibilidade de inventar um. Dessa imitação barata de uma sexualidade liberal mas que é apenas dor, medo e carência. Dessa nossa falta de empatia com a alteridade. Desse nosso cinismo diário. Dessa nossa hipocrisia cristã, patriótica e meritocrática. Dessa nossa profunda ausência de alegria, êxtase e transcendência. Sim, é um filme tristíssimo.
Olá, Eu Preciso Ir
3.3 52"O amor não é um prêmio que você ganha no circo por espirrar água na cara do palhaço."
Acabei de assistir um filme ("OLÁ, EU PRECISO IR") cuja estrutura é bem simples, mas que demonstra muito do modus operandi de nossa modernidade. Amy é uma mulher recém-separada (casou-se jovem com um advogado rico) e agora que está sem nenhuma perspectiva na vida, voltou a morar com os pais. Ali, naquele ambiente cheio de cobranças e expectativas, Amy adoece. Entra num processo depressivo e não quer mais ver ninguém, nem fazer nada. Amy é uma loser. Fez bacharelado em artes com um mestrado fajuto, segundo palavras da própria mãe e acabou por ser anular numa dinâmica doméstica com o marido. Não teve filhos. E isso segundo uma amiga de escola, muda tudo. Enfim, Amy até antes do divórcio vivia uma vida "feliz". Normal. Como a da maioria. Até que o marido arrumou outra e por ter se anulado no casamento, não tem nada pra fazer por ela mesma. Ela estava desacostumada a pensar nela própria. Um belo dia, seus pais estão dando um jantar de negócios e Amy conhece Jeremy, jovem ator que se apaixona pelo jeitão dela. Os dois começam um relacionamento bem conturbado, a mãe dele acredita que ele é gay, e ele não sabe como desmentir isso. Além disso, ele odeia ser ator. Mas também não consegue impor suas vontades, nem responsabilizar-se por suas escolhas.
"Às vezes é mais fácil ser o que os outros esperam, em vez de tentar evitar."
O filme fala basicamente sobre como nos acomodamos. Em como vivemos uma vida de mentira em nome apenas da manutenção dessa sociedade normativa. Todos são assim no filme. Todos mentem para manter uma suposta aparência de felicidade. Todos são infelizes. Até que Amy rompe esse ciclo. Novos sonhos. Novas escolhas. Vida Nova. Mas é claro que isso tem seu preço. Enfim, um filme adorável, com um trilha sonora lindíssima e ótimas atuações de Melanie Lynskey e Christopher Abbott.
Malévola
3.7 3,8K Assista AgoraWell, well... Preciso começar dizendo que “Malévola” é uma parábola. E só pode ser entendido dentro desse universo. Porque fora disso, tudo o mais se invalida. Bom, pra começo de conversa, eu tive muita resistência ao filme. Não gosto de filmes com muitos efeitos especiais. Fujo. Corro. Não assisto simplesmente. Mas dei uma chance e me surpreendi. O filme é bem mais que uma recriação de “A Bela Adormecida”. É um filme sobre o amor. Sobre esse poderoso e tão propagado sentimento. Mas vai além do mero amor romântico. É sobre a misteriosa sensação de enraizamento, de pertencimento, que o amor nos provoca.
No livro “Amor – Uma História”, o filósofo Simon May escreve assim:
”O amor é evocado não por beleza ou excelência moral (no sentido da bondade), mas pela misteriosa promessa do amado de ancorar e sustentar nossa vida, de modo que possamos nos sentir em casa no mundo.”
É isso. Exatamente isso. Malévola, (a personagem) é uma figura que destoa das outras de seu grupo. É uma fada, mas tem chifres e asas que lhe dão um aspecto dark. É menina, mas é a ela que os outros recorrem quando acontece um problema. E é nessa circunstância que Malévola conhece Sthepan, um garoto ambicioso que é pego tentando roubar uma jóia do reino encantado. E será desse encontro com o diferente que algo novo surgirá. Primeiro, uma grande amizade. Depois, um estado de enamoramento. Malévola e o Sthepan se apaixonam. Mas... Ele é extremamente ambicioso e aos poucos se distancia dela. Ela sofre com a ausência. Anos depois, o reino encantado é atacado pelos humanos. Sim. Porque sempre é preciso atacar o diferente. “Malévola” defende seu reino e ganha a guerra. Porque enquanto os homens possuem armas e dinheiro, ela possui também poderes, mas de outras ordens. E como escreve Jean Baudrillard em “A Transparência do Mal”: “O poder simbólico é sempre superior ao das armas e do dinheiro” •
Malévola, apesar de poderosa, é ingênua e cai na lábia de Sthepan, que movido por uma ambição desmedida, seduz, engana, ludibria-a. Ele corta suas asas. Pois esse é o papel do macho. Não permitir o vôo da mulher. Mantê-la prisioneira ao patriarcado. Oferece as asas de Malévola ao rei que está prestes a morrer e se torna o sucessor dele. Pois esse é o papel do homem. Manter-se no poder sempre. Já Malévola é obrigada a conviver com sua dor. (Talvez seja o papel destinado às mulheres?) E nesse processo, ela é tomada por um desejo de vingança avassalador e joga uma praga na filha do homem que a enganou. A história já narrada milhões de vezes é a mesma. A menina ao completar dezesseis anos espetará o dedo numa roca de fiar e dormirá pra sempre. O agora rei Sthepan implora para que Malévola tenha compaixão da filha. Ela, então, faz a concessão. Diz que o feitiço só será desfeito se ela for beijada por alguém que a ame de verdade. Pronto! Estamos dentro do já conhecido. Sim. Afinal, já vimos essa história muitas vezes. Mas calma. O Rei atormentado designa que as três fadas cuidem de Aurora bem longe do reino. Elas partem. Malévola descobre o esconderijo e passa a vigiar a menina. E aqui o inesperado acontece. Novamente o encontro diferente provocará Malévola. Aurora não tem medo dela. Pelo contrário. Procura-a. Quer colo. Cuidado. Aurora é o retrato do desamparo. As três fadas não cuidam bem dela. E ela quase morre algumas vezes. Seja por fome ou por desatenção. E quem sempre salva a menina? Sim. Malévola torna-se a fada madrinha de Aurora. Sempre a seguindo. Sempre a espreita. E nesse processo, Malévola se reconhece na menina. Ao seguir Aurora, Malévola segue o seu próprio rastro. Vê sua história de fora. Resignificada. Enfim, Malévola cai no seu próprio feitiço. Sim. Baudrillard já afirmava que “cada vive da armadilha que prepara para o outro”. Malévola e Aurora tornam-se cada dia mais próximas. Porém, o grande dia se aproxima. Aurora fará 16 anos. E assim como Malévola conhecerá o significado da palavra “traição”. Apesar dos esforços de todos, a maldição se cumprirá. Mas o desfecho... ah, o desfecho ... (Não vou contar para não estragar a surpresa de quem ainda não viu o filme) é uma verdadeira ousadia. Um passo além. É a grande sacada do filme!!!! Tá... Ok? Se o filme provoca essa subversão do gênero feminino, qual o papel do homem nisso tudo? O rei torna-se um arremedo de homem. Confrontado diariamente consigo mesmo através do que foi capaz de fazer por poder e dinheiro. O Príncipe é um perdido. Desde a primeira cena, ele já nos é apresentado assim. Na última cena também. Reparem. Interessante! Muito interessante! Mas eu ainda sonho com um filme que ultrapasse toda essa questão de gênero. Pensando bem, não sonho só com um filme não... É. Mas ... (Suspiro) ...
No final das contas, o filme é uma reflexão sobre o medo de ser abandonado por quem amamos ou acreditamos amar. Talvez o que procuramos nos outros seja essa a desterritorialização que uma viagem para um lugar desconhecido nos provoca. Baudrillard estava certo.
Animais
3.7 8Gosto de filmes que me inquietam. Desafiam-me. Que eu não saiba nada. Em que me sinta perdido dentro de mim mesmo. “Animals” do diretor Marçal Fores é esse tipo de filme. É um filme híbrido. Em camadas. Sutil. Arrebatador. Poético. Os elogios são vários e eu não me cansaria de citá-los.
A história é bem simples. Um garoto solitário cria um mundo ficcional onde é amigo de um urso de pelúcia. Sim. Lembra o filme “Ted”. Só que numa versão mais sinistra. Aliás, o filme é todo sinistro. Construído de maneira lenta, mas fluída, o filme surpreende por mergulhar o espectador no mesmo desamparo e solidão que o protagonista enfrenta. Não existe escapatória. Tudo é mistério.
Pol não é como um adolescente qualquer. Tenta ser. Mas não é. Pouco sabemos dele. Vive com o irmão. Mas não sabemos o que aconteceu com seus pais. Uma tragédia? Abandono? O quê? Não há respostas. Pelo menos não palpáveis. É preciso aceitar essa proposta e seguir sem mapa. Pol estuda. Toca guitarra e canta escondido no porão junto com o tal urso. Tem uma “namorada”, mas não dá muita bola pra ela. Tudo vai bem, até que...
Um novo personagem entra em cena: Ikari.
Quem é ele? Também não sabemos. Misterioso, inteligente, logo Pol encontra-se seduzido pelo aluno novo. O que o atrai em Ikari? É interessante notar que quanto mais ele conhece o novo aluno, mais o rejeita e dicotomicamente mais se sente atraído por ele ou por essa ideia. Foi Lacan quem formulou que "o desejo do homem é o desejo do Outro". Existe uma emergência aí. A presença de Ikari atiça Pol. Desejo e Repulsa caminham lado a lado. A angústia cresce. Lacan acreditava que a angústia seja o único afeto que coloca a gente em contato com o real. O fato é que Pol se ampara em Ikari para construir uma possível identidade, já que ele não tem uma ainda definida. Pol fascinasse com o amigo. Ainda citando Lacan: "A fascinação é absolutamente essencial para o fenômeno da constituição do eu. É na qualidade de fascinada que a diversidade descoordenada, incoerente, da despedaçagem primitiva adquire sua unidade".
Mas aqui surge um impasse. Qual a saída para se ganhar autonomia? A destruição do outro? Ou a destruição de si mesmo? E aqui o filme engrandece de uma forma avassaladora. A violência é a única linguagem entendida por todos. Importante salientar que o filme se constrói em cima de três campos:
Imaginário, simbólico e real.
Ora independentes. Ora misturados.
É possível encontrar ecos de vários filmes em “Animals”:
”Elephant” de Gus Vant Sant, “Os Famosos e os Duendes da Morte” de Esmir Filho, o já citado “Ted”, o documentário “Tiros em Columbine” de Michael Moore, etc...
Apesar dessas referências todas, o filme tem uma identidade própria, só é preciso deixá-lo ser.
"Eu gosto quando os personagens têm de lidar com o limite dos seus desejos. Eu acho muito legal que eles deem suas vidas por eles. Você não acha?"
A fala do ursinho logo no começo da história talvez seja a melhor chave de entendimento para o filme.
A Culpa é das Estrelas
3.7 4,0K Assista Agora”Cada um é o destino do outro, e sem dúvida o destino secreto de cada um é destruir o outro (ou de seduzí-lo), não por maldição ou por qualquer outra pulsão de morte, mas por sua própria destinação vital.”
Com esse trecho escrito pelo filósofo francês Jean Baudrillard eu começo meu texto sobre o filme “A Culpa é das Estrelas”. Sim. O filme que num primeiro momento pode parecer ser apenas uma bobagem adolescente é muito mais que isso. Mas já adianto que cada um é universo em si e só pode enxergar aquilo que traz dentro de si. Desde criança, eu soube que quem construía as histórias e dava significado às coisas era eu mesmo. Ideia reforçada no e pelo teatro. Onde é preciso estar diante da obra sem nenhum desejo e também sem nenhuma memória. E sedimentada ainda mais pela prática da meditação. Onde o único instante que existe é o agora e nada mais. Fiz esse preâmbulo como uma justificativa mesmo. Assumo. Parece que preciso assumir pra mim mesmo que gostei do filme. Como se fosse uma heresia ou algo assim. Dito isso, acho que posso começar.
O filme me pegou. Inexplicavelmente me vi envolvido pela história de Hazel Grace Lancaster e Augustus Waters. É como escreveu Clarice Lispector: “Ou Toca ou não Toca”. Simples assim. E eu me permiti ser tocado pelo filme. Eu disse SIM para ele. É um filme simples. Clichê, alguns dirão. Sim. Não nego. É simples e clichê. O.K. Mas tem algo nele de muito verdadeiro. E o que é esse algo? Tentarei explicar.
O amor em nossa contemporaneidade tornou-se quase divino. Buscamos nele algo que dê sentido para a nossa própria miserabilidade. Sim. Somos miseráveis. Se você ainda não se deu conta disso, sorry, mas ... Somos obrigados a amar. Um sentimento tão genuíno tornou-se uma obrigação. Artigo para vender mercadorias, bugigangas. Dar lucro. A obrigatoriedade de amar é uma fonte de lucro absurda. Consumimos músicas, filmes, novelas, livros, jóias, jantares, roupas, perfumes... Tudo na expectativa amorosa. Esse é o nosso aprendizado. Isso é o que somos. Romper isso é difícil. Quase impossível. Daí que é preciso aparecer um filme como “A Culpa é das Estrelas” para explicitar tudo isso. E ao mesmo tempo provocar uma hecatombe dentro de mim.
Lá pelas tantas Hazel alerta Augustus: Fique longe de mim, eu sou uma granada. Na mosca. Metáfora perfeita. O amor é essa granada. O amor é um fim em si mesmo. Não tem utilidade efetiva nenhuma. Por que amamos? Porque sim, ora essas. Não precisa de explicação. É e pronto. Aceita que dói menos. Tudo isso estou falando sobre o amor verdadeiro. Não sobre o falso. Mistura de luxuria com desejo de posse e de escravidão. Não. Falo do amor que torna tudo rico, uma grande brincadeira. Aquele amor que em sua forma mais pura é alegria compartilhada como escreveu Osho. Pra sentir esse amor é preciso ser maduro e ingênuo ao mesmo tempo. Sim. A vida é feita de contradições e você já devia saber disso. Nada é uma coisa só. Mas também o seu oposto.
Hazel e Augustus têm câncer. Cada um o seu. Com sua especificidade e poder de destruição. Eles vão morrer. Há uma urgência nesse fato inexorável que torna tudo muito mais angustiante. Não há mais espaço para (os nossos tão corriqueiros) tempos mortos. Não há tempo para bobagens. Não há mais tempo para a mentira.
Não há tempo para perda de tempo. Não há tempo. Não há mais. Muitos pensam que o ódio é o oposto do amor. Alguns mais espertos dizem que é a indiferença. Mas não. Nem um nem outro. O verdadeiro sentimento oposto ao amor é o medo. E desse mal os personagens protagonistas não padecem. Até um pouco no começo. Mais Hazel do que Augustus, é verdade. Mas o medo desaparece. Torna-se amor. Latente. Puro. Intenso. Alegria (e por que não também dor?) compartilhada. Eles se dão. Doam-se um para o outro. Vivem aquilo que têm para viver. Isso o que mais me toca no filme. Osho tem um texto tão lindo em que escreve assim:
”O amor é se aproximar do outro sem medo, com uma enorme confiança de que será recebido - e ele sempre é. O medo se encolhe dentro de você, fecha o seu ser, fecha todas as portas, todas as janelas para que o sol, o vento, a chuva não possam atingi-lo, tamanho o seu pavor. Você está se enterrando vivo.
O medo é uma sepultura, o amor é um templo. No amor, a vida chega ao seu apogeu. No medo, a vida resvala para o nível da morte. O medo fede, o amor é perfumado. Por que você deveria ter receio?”
Por que você deveria ter receio? Porque assim fomos ensinados. Doutrinados. O outro é a ameaça. O mal. O inferno. E assim negamos a vida na esperança de vivê-la. Medo. Só medo. E Hazel e Augustus talvez pelo câncer, talvez pela urgência, talvez pela pouca idade permitem-se um se aproximar do outro sem medo. Tá, tudo bem que o filme faz deles um casal de namorados e que blá blá blá, mas isso é só a superfície. Existem outras camadas. Precisamos ir além. Ir mais fundo. Sempre. E é nesse processo louco de mergulho um no outro que acontece a maior epifania de todas e a que mais me provoca nessa história de Hazel e Augustus:
É que quando mais eles caminham em direção a morte, mas eles se afastam dela. Porque eles vivem. Não meramente comem, dormem, trabalham, estudam. Verdadeiros Zumbis. Não. Eles vivem. Isso é tão mágico e mostrado de uma maneira tão doce no filme que me tocou profundamente. Eles são tão conscientes da morte que se tornam inocentes em vida. A vida se torna maior, mais vivida, intensa e bela. Uma celebração. Um êxtase.
Mas nada disso seria possível sem a atuação sensível de Shailene Woodley e Ansel Elgort que vivem os protagonistas. O filme é deles. O filme é eles. Como é bom ver atuações tão jovens e cheios de verdade, entrega e doçura. Não são só as falas do filme que encantam. Mas o subtexto. As entrelinhas. O Silêncio. Os olhares. Shailene e Ansel fazem Hazel e Augustus serem palpáveis. Carne e osso. Eles atuam num campo emocional muito difícil de ser acessado. Estão entregues. Despidos de artifícios tão comuns nesse tipo de filme. Pode parecer até loucura, mas identifiquei neles algo tão profundo quanto nas atuações de Michelle Williams e Ryan Gosling em “Blue Valentine”. A mesmíssima entrega e sensibilidade. É tão bonito de ver quando a atuação extrapola o fílmico, o roteiro... Eles dão vida. Eles vivem. Se doam um ao outro. O filme só dá certo por eles. Lógico que a direção também segura a onda muito bem. Lógico que a trilha sonora é maravilhosa. Mas se não fosse pela química que rola entre o casal nada disso faria sentido.
E outra coisa que me chama a atenção. Num tempo totalmente dominado pelas relações virtuais ver os dois começando uma relação permeada pelo real desejo de conhecimento um do outro e pela troca de livros (que não são apenas livros prediletos, mas universos particulares de cada um) é um alento tremendo. Algo como “eu confio em você, toma aqui meu mundo... esse sou eu.”
São esses pequenos detalhes que me fazem ficar fã do filme. Tão fã que senti vontade de passar numa livraria e comprar uma edição de “A Culpa é das Estrelas” e devorá-lo todinho. Só não o fiz porque todas as livrarias estavam fechadas. (Risos).
Oslo, 31 de Agosto
3.9 194De onde vem a melancolia? A tristeza? Esse sentimento de não pertencimento?
“Oslo, 31 de Agosto” do diretor Joachim Trier deixa-nos com essas perguntas martelando nossas cabeças. Sim. A arte deve nos trazer dúvidas e nunca responder nada. Caberá ao indivíduo refletir e chegar por si mesmo em alguma possível resposta ou aceitar o mistério das coisas.
O enredo do filme é bastante simples. Anders é um norueguês de 34 anos, viciado em drogas, que está internado numa clínica de recuperação. Quando o filme começa, ele está saindo da clínica por um dia. Irá numa entrevista de emprego. Tudo dentro do cronograma da clínica. O que acontecerá com ele fora do ambiente protegido? Como ele se comportará diante das figuras do seu passado? Ele conseguirá resistir? Permanecer limpo?
Uma cena em especial materializa tudo isso de maneira exemplar. Logo quando sai da clínica, Anders está dentro de um táxi e passa por um imenso e intenso túnel. Tudo se transforma em escuridão... Até que... A luz do sol volta a aparecer retumbante. Será?
O filme não apresenta nenhum tratado sociológico, nem muito menos transforma tudo num circo sentimental. Pelo contrário. Apenas acompanhamos o protagonista. E isso é tudo. Somos apresentados aos fragmentos de possíveis respostas. Fotos ali. Uma canção ao piano acolá. Telefonemas. Encontros. Desencontros. Somos aquilo que somos ou o que fomos? É possível dissociar o passado do presente? Quiçá do futuro? Pouco a pouco vamos compreendendo as dificuldades de convívio. Vamos entendendo o distanciamento do irmão. Tudo no final das contas é só medo. É só autodefesa. Instinto de preservação da espécie. Tudo é uma preparação para a perda.
Anders parece se diferenciar de todos os outros. A realidade afeta-o de uma maneira mais profunda e intensa que nos outros. O Vazio se apresenta mais irremediável. O passado é uma pedra pesada amarrada aos pés. Impossível tirar. Aquela pedra o acompanhará pelos restos de seus dias. Todos os outros personagens aceitam a miserabilidade de suas vidas. Anders não. Ele não se contenta. Os outros sim. Eles aceitam. Lá pelas tantas lembrei do Mito de Sísifo escrito pelo sempre fabuloso Albert Camus.
"O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia."
Sim. Anders já tentou o suicídio algumas vezes. Sempre fracassou em seu intento. Camus no livro nos apresenta o seguinte questionamento: Se a vida é isso aqui que vivemos, sem tirar nem por, a gente comete suicídio ou não? Se somos esse homem em busca de sentido em meio ao caos e o vazio de significado, será que a concretização desse absurdo exige o suicídio. Camus acredita que não. Exige revolta. Exige coragem para viver as contradições.
"Desde que o momento absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante de todas as paixões."
Anders opta pela melancolia pura e simples. Ela não se contenta, mas também não se revolta. Parece querer fugir do embate que é viver. Afinal, o que é a vida de cada um de nós quando vista de muito perto? O drama vivido pelo irmão intelectual diz muito sobre isso. Ele também é outro que parece fugir do embate. Refugia-se nas citações, nos livros, na mentira. Torna-se frio. Debochado. Sem empatia. Sem paixão. Camus acredita que somente da plena aceitação do absurdo podemos ter uma vida de verdade. E para chegarmos a esse estado precisamos de revolta, liberdade e paixão. Sim. Nada faz sentido. Estamos sozinhos como Macabéa’s numa cidade toda feita contra nós. Mas ainda assim, precisamos estar apaixonados, porque como diz Nelson Rodrigues; sem paixão não dá nem pra chupar um picolé.
Anders reconhece que nada mais faz sentido. Ele saca que estamos sozinhos num lugar inóspito. Ele não consegue mentir para si mesmo. E isso é o mais doloroso da trajetória dele. Ao final do filme, esperei o letreiro subir. Desliguei a TV. Deite-me. E novamente me veio Camus na cabeça:
"Se o mundo fosse claro, a arte não existiria."
SIIIIIIIM!
Minha Infância
4.1 7Uma pequena obra-prima do cinema. Um dos filmes mais doloridos que já assisti. "Minha Infância" do diretor Bill Douglas. Putz! Não tem nem o que falar. O filme é inspirado nas memórias do diretor e para conseguir realizá-lo, ele vendeu potes de geleia durante um tempo. Mas nem é preciso saber de nada disso, pq tá tudo lá. Impresso. Marcado a ferro e fogo. Em brasa. Ardendo. Queimando. Naqueles dois meninos. Naquela miséria. Ausência de tudo. Afeto. Comida. Passado. Presente. Futuro. Tudo faltou. Falhou. Deu errado. A vida come a vida. Espanta-se o narrador de "A Hora da Estrela" lá pelo finalzinho do livro. Também eu me esqueci desse detalhe. E assombrou-me diante da verdade inexorável desse filme. Não chorei. Nenhuma gota de lágrima caiu de meus olhos. Não consegui. Só restou-me o espanto. O assombro. Como pode um filme ser tão desgraçado e ainda sim exalar uma poética toda própria e desvelar nossa própria humanidade perdida? Não sei. Juro que não sei. "Minha infância" é a primeira parte de uma trilogia. Vou assistir os dois próximos filmes urgentemente. Quero saber o que acontecerá com Jamie e seu meio-irmão. Ficará complicado abandonar esses dois essa noite. Como esquecer o olhar de pura melancolia e desamparo do ator mirim Stephen Archibald? Impossível. Ai ai ...