"Eu matei minha mãe" é um parto sem anestesia... Um filme sobre a inconformidade de não se entender direito aquilo que se sente. Sobre a necessidade de romper o cordão umbilical. Sobre a impossibilidade de se tornar adulto sem matar (psicanaliticamente) os nossos progenitores.
Xavier Dolan é o idealizador do projeto, escreveu, produziu, dirigiu e é o protagonista do filme. Isso tudo tendo apenas 21 anos. É notável como consegue se sair bem em todas as suas funções. Xavier Dolan seria uma espécie de Vincent Gallo juvenil? O tempo se encarregará de responder essa pergunta.
Mas que em seu primeiro filme, ele alcança patamares bem interessantes, isso não se pode negar.
A história que o autor, produtor, diretor e ator quer nos contar é bem simples: o relacionamento conflituoso entre uma mãe e um filho. Tema bastante explorado não é mesmo?
Sim, o tema é bem corriqueiro, mas, o fato de ser quase autobiográfico faz com que o filme seja bastante diferenciado. Xavier Dolan se inspirou em sua história para contar essa narrativa, fato que poderia prejudicar e muito o filme. O que não ocorre. É um filme desabafo sim, porém, não é maniqueísta.
O começo é estranho, eu demorei a me acostumar. Estava achando tudo um pouco exagerado... não conseguia enxergar os personagens (mãe e filho), via apenas caricaturas deles. Tudo era meio forçado. E impossível de assumir um partido diante da problemática. No início, Hubert é um adolescente chato ao extremo e pedante. Sua mãe é igualmente chata e histérica . Impossível gostar de qualquer um dos dois. Eles se mereciam, isso era claro para mim. Aos poucos e bem sutilmente, o filme vai mostrando aquelas personagens fora do seu “habitat natural”, e é justamente nessa convivência com amigos e pessoas outras que vamos nos simpatizando com a proposta do diretor.
Hubert passa de garoto chato ao extremo e pedante para um artista sensível e apaixonado. Chantal passa de chata e histérica para uma mulher que dá um duro danado para se manter de pé, que tem seus erros como mãe, mas, que ama incondicionalmente o seu filho.
Quando chegou nesse ponto do filme, consegui finalmente entender a proposta do diretor. Era necessária que enxergássemos ambos, mãe e filho, como eles se viam. O diretor nos coloca dentro da zona de conflito. Parece que nós (espectadores) habitamos aquela casa e com isso o diretor faz com que sintamos na pele o quão insuportável é o clima ali dentro daquelas quatro paredes.
Fora dali, Hubert freqüenta a casa de seu namorado Antonin, lá tudo é mais claro, lá tudo é permitido. A Mãe de Antonin é o oposto da Mãe de Hubert, a primeira é chique, bem educada, liberal, já a segunda é cafona, mal educada e conservadora. Esse contato com uma nova “casa” faz com que Hubert deteste mais ainda sua mãe e sua casa.
É interessante notar como a direção de arte compõe com extrema precisão as duas casas. Enquanto a casa de Chantal é escura e com objetos extremamente coloridos e de gosto duvidoso, a casa de Antonin é clean, com quadros de pintores famosos e com um bom gosto absurdo.
Aliás, a direção de arte se faz notar em todas as cenas. É interessante a utilização de enquadramentos nas cenas em que duas pessoas estão conversando; na maioria das vezes tem um quadro acima da cabeça delas nessas conversas. Sempre uma pintura que defini muito bem ou a personagem ou o teor da conversa ou o clima da cena. Por vezes, o efeito fica repetitivo, mas, nada que tire o brilho da película.
Hubert extravasa a raiva que sente de sua mãe gravando pequenos depoimentos em sua câmera de vídeo. Esses depoimentos são exibidos num já manjado preto e branco. Opção estética um bocado forçada, mas, natural em se tratando de um diretor em início de atividade. Todo o filme é impregnado desse desejo de dizer muitas coisas em apenas uma única cena. É um filme barroco, digamos assim, no entanto, totalmente dentro da proposta do jovem diretor. Todo esse rococó encontra vazão na personalidade melodramática de Hubert, seus sentimentos ambíguos em relação a sua mãe é quem define toda a estética do filme. Hubert não gosta de sua mãe e sofre por não conseguir não amá-la. É um sentimento angustiante, que o sufoca totalmente. Só encontro paralelo dessa opressão sentida por Hubert com o livro “Carta ao Pai” do escritor tcheco Franz Kafka. Ouso dizer que se em 1919, Kafka tivesse uma câmera de vídeo, seus registros cinematográficos seriam bem próximos aos de Xavier Dolan.
Sim, “Eu matei minha mãe” é uma espécie de “Carta ao Pai” contemporâneo.
Kafka, porém, nunca enviou sua carta de quase 100 páginas ao destinatário (seu pai). A carta foi publicada postumamente é um dos relatos mais tristes de uma relação familiar. Kafka assim como o protagonista de “Eu matei minha mãe” sentia um misto de sentimentos por seu pai; ódio, admiração, inveja, sentimento de inferioridade.
Creio que assim como “Carta ao pai” esse filme canadense tenha como intuito decodificar e entender um pouco do processo mental pelo qual passam ou passaram e nesse “fluxo de consciência” alcançarem um entendimento do outro e selar uma possível paz entre ambos.
Lá pelas tantas do livro “Carta ao Pai”, Kafka escreve:
"Essa tua maneira de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que não tenhas a menor culpa em nosso alheamento. Mas também eu não tenho a menor culpa. Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida — que para isso estamos ambos velhos demais —, mas o abrandamento de tuas intermináveis acusações."
Lá pelas tantas do filme “Eu matei minha mãe”, a professora de Hubert (única que consegue entendê-lo por ser igualmente homossexual e ter tido conflitos com o pai no passado) o presenteia com um livro de Alfred Musset, escritor francês do século XIX, e recomenda que ele leia a última estrofe da página 218:
“Mãe, confesso ante a ti que as armadilhas deste mundo enganador, destroem a minha débil nau. Quero dever-lhe toda a minha felicidade pela ternura maternal.”
O garoto logo após sair da casa da professora, abre o livro e ao tomar conhecimento das palavras de Musset, parece adquirir pela primeira vez um pequeno ponto de reflexão e de diligência em relação à sua mãe.
É uma cena bonita, a propósito, todas as cenas que envolvem cartas ou leituras de trechos de livros são belas e simples. A direção opta por não colocar voz off e sim, um interessante efeito de escrita na própria tela. Fica bonito, engenhoso e simples.
Outro ponto a favor do filme é a deslumbrante fotografia que remete diretamente ao cinema do cineasta chinês Wong Kar-Wai, sendo possível também, encontrar uma certa saturação das cores quentes da primeira fase de Pedro Almodóvar.
No entanto, a influência mais direta é mesmo de Wong Kar-Wai, estão em “Eu matei minha mãe” a trilha sonora diferenciada e os belos planos em câmera lenta usados a exaustão pelo chinês. O efeito é belo e longe de parecer uma mera cópia. Isso não acontece, pois, esses efeitos redimensionam climas bem interessantes no filme de Xavier Nolan.
O conflito entre a mãe e o filho é exposto de maneira dúbia, alternando cenas de lirismo com violência verbal. É triste ver pessoas que se amam se maltratando tanto. Fiquei me perguntando o que levaria à esse beco sem saída?
Encontrei a resposta dentro de minha própria relação com meu pai, que sempre foi difícil e complexa. Pertencemos a gerações diferentes, encaramos o mundo de maneira diferente. Lembro-me que na idade de Hubert também tinha problemas com meu pai. Mas, que foram solucionados quando refleti que era a parte mais inteligente da história (no caso eu) que deveria tentar fazer algo para mudar. Deu certo. Não somos melhores amigos, mas aprendemos a nos respeitar. Pode parecer clichê, mas isso é fundamental.
Outra coisa que me ajudou, foi o fato de eu fazer teatro e ter como trabalho, observar e tentar entender o comportamento humano. Costumo dizer para meus atores ou alunos que antes de ser um bom ator que eles procurem ser bons seres-humanos.
É da minha natureza observadora não conseguir julgar alguém sem antes tentar entender os meandros daquela existência. Não que use disso para perdoar tudo e todos. Não. Mas, é que não acredito que alguém aja sem uma motivação para seus atos.
Acredito que seja esse o caminho que Hubert percorre durante o filme. Ele aprende a duras penas, que ele é a parte mais inteligente da história e que será ele quem terá que tentar mudar algo. A seqüência final é muito bonita e singela, sem entregar tudo mastigado ao espectador.
Todos os atores estão muito bem, mas o trabalho de composição de Anne Dorval (Chantal) é simplesmente poderoso. A atriz dá conta de todas as facetas dessa mãe pertubada.
A carta que a professora escreve para Hubert vale como metáfora do próprio filme:
“Querido Hubert, você é um peixe de águas profundas. Cego e luminoso. Nada em águas turbulentas com a raiva da era moderna, mas com a frágil poesia de outro tempo.”
"Carnage" ou "O Deus da Carnificina" é uma obra limítrofe em todos os sentidos. É um filme executado como teatro. Ou um teatro gravado como filme. Os personagens estão todos de saco cheio de suas vidas medíocres, mas não sabem como sair dela. A ação se passa toda ela num único cenário. O tempo da ação dramática é o mesmo tempo do filme (salvo a cena inicial e a final). É um filme no limite. No limiar. Na corda bamba. Ali entra a comédia de humor negro e a tragédia nossa de cada dia.
"Submarine" é um filme sobre o rito de passagem de um adolescente para a vida "adulta". Sim. O tema já foi explorado muitas vezes pelo cinema (e com ótimos filmes), mas esse tem um encantamento especial. Impossível assistir este filme sem se pegar pensando na própria adolescência. É uma delícia. Embora dolorido em sua essência. É como se visitássemos um lugar antigo (ou perdido de nós mesmos). Que ficou ali "encantado" num tempo e espaço outro. É uma viagem no tempo. Num passado onde tudo tinha proporções gigantescas. Onde não sabíamos como lidar com as nossas emoções, frustrações... e o que fazer com a angústia e o tédio?
“Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa, pra te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha”. (Caio Fernando Abreu)
Oliver Tate é o protagonista. Mas poderia ser qualquer um de nós espectadores. O filme é também nosso. Reconhecemo-nos naquela situação. Repetimos (em silêncio) para nós mesmo: também eu. Sim. Também nós. A escola. A crise no casamento dos pais. As pequenas (ou grandes humilhações) que passamos ou que fazemos os outros passar (para assim nos sentirmos parte de um grupo). A primeira paixão. A primeira namorada. O primeiro beijo. Os passeios ao lado dela. O cinema. As tentativas (frustradas) da primeira transa. A primeira transa em si. A cumplicidade. O fardo da cumplicidade. O medo de decepcionar o outro. A decepção. O fim. Ou o início. O fim. E o meio. Tudo tão previsível. Tudo tão igual. Tanto que o pai de Oliver lhe entrega uma fita cassete com músicas que ele ouvia quando estava apaixonado e no outro lado da fita, músicas que ele ouvia quando levava um pé na bunda. Sim. Normal. Você não vai se lembrar disso quando estiver com 38 anos. Será?
Oliver apesar de ser igual, é diferente. Ou melhor, singular. Lê livros de Nietzsche (embora não concorde com ele em tudo. rs rs rs), considera o “Apanhador no Campo de Centeio”, um dos melhores livros americanos já escrito. Leva a namorada para assistir “A Paixão de Joana D'Arc” do Dreyer. E gosta de imaginar como seria o seu próprio enterro. Sim, Oliver é excêntrico. E apaixonante, ao mesmo tempo. Sua falta de jeito para o mundo é absurdamente charmosa. Ele não se adequou. Ainda. É antiquado. Meio retrô. Perdido. Solitário. Mas com um enorme desejo de entender o mundo e as pessoas que o rodeiam. Sua missão não é nada fácil. Ele tem que se comportar como o namorado ideal e, além disso, salvar o casamento dos pais. Seus planos quase sempre dão errado. Mas é a tentativa que importa aqui. A inocência que habita Oliver é comovente. Tudo em si quer desabrochar. Conhecer. Ser. Tornar-se. O quê? Sempre é cedo demais para ser aquilo que somos. Tudo nos impede de existir plenamente. Abrimos mão de nós mesmos em troca de uma rotina e pseudo-segurança enganadoras. Família. Escola. Igreja. Televisão. Relacionamentos (ou aquilo que nos é vendido como relação amorosa). Tudo isso pouco a pouco vai nos afundado cada vez mais num mar metafórico (ou não). “O oceano tem 9,65 km de profundidade” nos informa o pai. Ali, a vida é impossível. Não há luz. A pressão é grande demais. Nem os peixes vivem lá. E os humanos simplesmente implodiriam se ali estivessem. Então, qual a saída?
Para Oliver é se imaginar sempre numa realidade totalmente desconectada. Para Jordana (a namoradinha), é tentar fazer com os outros, aquilo que ela não quer que façam com ela mesma. No fundo, ela é uma sentimental e morre de medo disso. Para os pais de Oliver, a saída encontrada é viver numa apatia implacável, onde nada, nem ninguém seriam capaz de tirá-los. A “traição” da mãe com o primeiro amor (que está morando de novo no bairro) é, na verdade, um desejo inconsciente (ou consciente, sabe-se lá) de voltar a um tempo que não existe mais. Um tempo do qual só restaram lembranças guardadas numa caixinha. Daí que “Submarine” revela-se muito mais que um mero filme sobre um adolescente. Não. “Submarine” é um filme sobre o tempo. Sobre a lenta passagem das horas (não a cronológica, mas a existencial). Daí que apesar de ser esteticamente belíssimo (com uma fotografia delirantemente plástica, com uma trilha sonora poderosíssima e com atuações excelentes), “Submarine” é um filme dolorido, pois nos confronta com aquilo que fomos, com aquilo que queríamos ser, e como aquilo que nos tornamos.
"Lola" filme do diretor filipino Brillante Mendoza é a radiografia da situação de duas avós numa jornada épica em que o amor pode ser também uma mercadoria.
“Onde vivem os monstros” do diretor Spike Jonze é um filme que me deixou sem palavras. É simplesmente maravilhoso. O filme é baseado no livro de Maurice Sendak de 1963, um sucesso mundial (curiosamente no Brasil foi pouco lido) e tem pouquissimas páginas, dá pra “ler” em dois minutos. Tanto no livro como no filme a premissa básica é contar a história de um menino muito inteligente, criativo e solitário que acha que sua família não gosta dele e então ele se “refugia” num mundo onde ele é o rei e, é adorado por todos. Na realidade essa história (livro e filme) é a do rito de passagem da infância para o começo da adolescência do pequeno Max, é a história de como ele aprende a lidar com seus sentimentos, é a história de todos nós. O filme é extremamente bem dirigido por Spike Jonze, que em nenhum momento trata a criança como “burra” ou “inferior”, muito pelo contrário. Para contar essa história, o diretor faz uso de vários símbolos, imagens distorcidas, música cult e atores reais interpretando os monstros que o pequeno garoto encontra na ilha. “Onde vivem os monstros” é um fábula e como toda boa fábula não exige explicações longas ou críveis, ou se crê naquilo que está se contando ou não se crê. Sabendo disso, Jonze não se preocupa em tornar tudo palatável e assume os riscos de contar essa história tão rica e tão inteligente de uma maneira bem lúdica. Logo nas primeiras cenas vemos o pequeno Max querendo brincar e sua irmã mais velha combinando de sair com garotos de sua idade, vemos o menino brincando sozinho e depois atacando os amigos da irmã com bolas feitas de neve, como represália ao ato do menino, os adolescentes destroem o iglu onde o menino gostava de brincar, ao ver destruído seu “mundo particular” Max chora e sua irmã entra no carro com os garotos e vai embora. O menino então furioso entra no quarto da irmã, pula na cama dela e quebra um presente (um coração de papel) que ele havia dado para ela. Logo de início também é apresentada cenas em que vemos o garoto exercendo sua criatividade, inventando uma história triste para a mãe e depois construindo uma cabana dentro de seu quarto. O menino chama então a mãe para ela ver a cabana, a mãe não vem (pois está de namorico com um homem no andar de baixo), é o que basta para que Max vista sua fantasia de lobo, desça as escadas, arrume encrenca com a mãe a ponto de mordê-la. Max então foge para rua, corre durante um tempo, chega numa floresta, depois num rio, encontra um pequeno barco, entra, começa a remar e depois de um tempo (não delimitado pelo diretor, pode ser um dia, como vários) chega numa ilha onde encontra alguns monstros, que querem devorá-lo por ele não fazer parte do clã deles. O garoto, muito esperto, inventa uma história que os monstros não podem devorá-lo porque ele é um rei e tem muito poderes, os monstros ficam assustados e o proclamam rei deles. É esse o roteiro básico do filme, que nas mãos de um diretor experiente e com toques de loucura e surrealismo funcionam muito bem. Cada monstro da ilha tem uma personalidade muito bem definida e representam facetas da personalidade em formação do garoto Max. Esses monstros são um show à parte, Jonze opta por colocar atores reais fantasiados de monstros, o que só aumenta o aspecto artístico/lúdico do filme (em tempo de filmes como “Avatar” e sua “realidade” em 3D ter um diretor que banque uma proposta dessas é um bálsamo para nossos olhos). Os Monstros, apesar de serem bem fofos, (dá vontade levá-los para casa) são extremamente contraditório e violentos quando provocados e até nisso o diretor não facilita para as crianças, evitando a todo custo um didatismo bobo e oferecendo ao espectador personagens com densidade psicológica bem acima da média em se tratando de uma produção com um viés infanto-juvenil. O exemplo mais bem acabado de complexidade é o monstro Carol (magistralmente “interpretado” pelo ator James Gandolfini ), que alterna momentos de extremo lirismo com violência assustadora, a voz do ator que faz Carol passa todas as emoções necessárias ao papel, ingenuidade, tristeza e poderio em situações das mais variadas. O filme é de Max e Carol, chega a ser sintomático que o a garoto escolha esse monstro como o seu preferido, pois, Carol é o que melhor sintetiza as contradições de uma criança. É mandão, quer manter todo mundo unido em torno de si, é ingênuo (em sua presunção de poder), é criativo (constroí um réplica linda da floresta em um lugar que era muito visitado pelos outros monstros e com o passar do tempo é deixado de lado) e acima de tudo é extremamente apaixonado por KW (monstro que representa a mãe do pequeno Max). É desse material tão sublime que o diretor extrai cenas e situações maravilhosas, sem nunca cair no ridículo ou no óbvio. Jonze apenas redimensiona a casa e família de Max na floresta e nos monstros, a relação conflituosa de Carol e KW é a síntese da de Max e sua mãe. Na ilha, Carol briga com KW porque ela arruma dois novos amigos fora da ilha, Bob e Terry (duas engraçadas corujas), em casa Max briga com sua mãe por achar que ela dá mais atenção ao namorado e sua irmã. É dessas analogias que pululam a todo momento na tela que o filme atinge dimensões bem maiores do que qualquer outro filme com essa proposta. Jonze mostra a complexidade de ser viver em sociedade, das dificuldades de se proceder com justiça e de como ser autêntico e leal sem magoar os outros. Como já disse, é uma fábula onde o maior dos questionamentos é: Por que fazemos mal às pessoas que mais amamos? e Por que temos a necessidade (sádica/masoquista) de destruir o que construímos de belo? Não vou contar o final aqui, mas, acho que foi um dos que mais chorei desde que me conheço por gente, já assisti o filme duas vezes e é sempre o mesmo berreiro. A primeiro vez assisti em casa no Pc e chorei tanto tanto na parte final que quase passei mal, isso sem falar na vergonha da minha irmã na sala escutando tudo. A segunda vez foi ontem no cinema e novamente passei vergonha, chorei tão alto tão alto que tive que segurar o choro com a mão para evitar constrangimentos maiores. Fomos em 4 pessoas e no final um dos meus amigos virou pra mim e disse “eu já vi você brigando no cinema, gritando com que está conversando na sessão, exigindo ingresso de volta porque o cara que faz a projeção tirou o filme no letreiro final, mas nunca te vi chorando tanto assim...” Eu não falei para ele os reais motivos de tamanha lamúria da minha parte, mas, aqui pra vocês eu conto. É que eu me identifiquei demais com um dos monstros do filme, quem me conhece saca logo de cara quem eu sou ali e esse espelho (que é uma das funções primordiais da verdadeira arte) me fizeram chorar tanto. Não é fácil se ver refletido assim, principalmente na pele de um monstro, porém, garanto que a jornada deste estupendo filme vale muito a pena. Além de tudo isso que falei aqui, o filme tem uma fotografia deslumbrante, uma trilha Karen O and the Kids bastante inspirada e não é nada óbvia e infantilóide e “atuações” convincentes de todos os monstros. Enfim, um filme para a criança que todo mundo possui dentro de si....
Até onde o nosso passado pode ser definidor do nosso presente? Uma história mal resolvida pode anular tudo o que vivemos antes dela? Qual é o lugar do amor em nossas vidas? Todas essas questões parecem interessar o diretor dinamarquês Christoffer Boe. Em "Allegro", mergulhamos na personalidade ególatra de um pianista perfeccionista em busca de seu passado, de um possível amor fugidio e de sua alma. Um filme difícil, mas, absolutamente belo em sua frieza. A trilha sonora e a iluminação peculiar são os destaques. "Allegro" é um "Morangos Silvestres" (de Bergman) contemporâneo e bizarro.
Foi com grande expectativa que assisti ao filme “O Futuro” da diretora Miranda July. Já tinha assistido o seu filme anterior (o excelente “Eu, você e todos nós”) e também já lido seu livro de contos (“É Claro que você sabe do que eu estou falando”) e gostado muito.
Miranda July é dona de um estilo único e absolutamente perceptível. Suas histórias de homens e mulheres comuns com dúvidas existenciais e altos toques de surrealidade me agradam e comovem. “O Futuro”, seu segundo longa-metragem é exatamente assim. Dessa vez, July foca a vida de um casal que estão juntos a mais ou menos uns cinco anos, logo no começo do filme eles decidem adotar um gato. O gato escolhido está com uma das patinhas quebradas e não pode ser adotado imediatamente. O casal precisa esperar um mês para poder levá-lo para casa. A iminência dessa chegada faz com que ambos questionem como será a vida deles agora com essa nova responsabilidade. Dito assim, o filme até parece “normal”, mas não devemos esquecer que isso é um filme de Miranda July e isso faz toda a diferença.
Para começar, a história é narrada pelo gato. E o gato que eles escolheram não terá muito tempo de vida. Irá morrer logo. Exceto se tratado com muito amor e carinho. Ai quem sabe ele poderá viver mais uns cinco anos, no máximo. A responsabilidade pela vida desse gatinho mexe com a cabeça de Jason e Sophie, que decidem assumir uma outra postura perante a vida dentro dos próximos 30 dias. Jason e Sophie começam uma jornada de autoconhecimento que poderá mudar o futuro de ambos para sempre. Está reconhecendo esse enredo de algum lugar? Sim. July parte desse tema bastante clichê do cinema para desembocar num outro lugar, muito mais profundo, melancólico e triste. Não vou contar mais do enredo, mas o fato é que a diretora consegue extrair dessa trama tão simples cenas de grandessíssima beleza.
Na verdade, July faz um filme sobre a escuridão que não se deve nem mesmo falar. Tanto Jason quanto Sophie são seres extremamente inadequados para o mundo que habitam. Ambos parecem ser meio incompetentes para a vida. Sim. Assim como Macabéa do romance “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, o mundo parece ser fora deles e eles próprios parecem ser fora de si mesmos. Falando em Lispector, Miranda July tem muito da escritora brasileira, sobretudo a utilização da epifania. Sim. Aquele momento banal em que de repente PIMBA tudo parece fazer sentido. July é mestra nesse tipo de sensação.
Um exemplo é a cena em que o casal combina um código caso eles venham a se esquecer um do outro. Eles pensam, pensam, pensam e nada parece fazer sentido caso um se esqueça do outro, até que chegam a conclusão que somente uma música poderia fazê-los lembrar um do outro.
A cena é de uma delicadeza assustadora, a música escolhida é linda. Me fez lembrar de “Blue Valentine” e a cena em que Dean mostra a música “You and Me” para Cindy. Lógico que chorei. Alguma dúvida?
Além desse aspecto epifânico o que mais me encanta nos trabalhos de July é a existência de um duplo. Sim. Somos mais a imagem que refletimos do que aquilo que verdadeiramente pensamos ser. Tem uma cena em “O Futuro” que deixa isso claro. Sophie cansada de fazer uma coreografia de dança que sonha em colocar no Youtube e alcançar muitos acessos observa a própria imagem na tela do computador. A estranheza de existir é latente. Sophie existe. Aliás, a utilização do youtube entra como possível norte para uma existência despida de sentido e significado. Caberá a essa ferramenta social o papel de criação e manutenção dos desejos humanos. Até que surja algum outro vídeo mais interessante e nos roube a atenção. O descartável e aquilo feito para durar e ser lembrado até mesmo depois do esquecimento é colocado em xeque. July utiliza-se disso como uma metáfora dolorida da condição humana e ainda consegue extrair dos espectadores semi-sorrisos e alguma lágrima. Definitivamente não é pouco.
O filme "A Árvore da Vida" não se insere num mero "gostar ou não gostar?". É mais que isso. É além. Sua dramaturgia fragmentada busca nos confrontar com valores dicotômicos: o SILÊNCIO/AUSÊNCIA de DEUS "versus" o BARULHO/PRESENÇA de DEUS.
É um filme absolutamente pessoal, onde cada espectador é responsável por aquilo que vê-ouve-sente-reflete. Não há como fugir. Você vai ter que participar do filme. De alguma maneira. E vai ter que se colocar ali. Entendeu? Não apenas sentar a bunda na cadeira do cinema e ter tudo mastigado e ou assistir algo que não tenha a ver contigo. Nãooooooooooooooooooooooooooooo!
“A Árvore da vida” não é esse filme. Esqueça. Nós (os espectadores) seremos tratados como indivíduos e seremos os co-realizadores do filme. Sim. O diretor Terrence Malick faz uma obra onde o espectador (indivíduo) deve manter uma construção livre e ativa em relação ao filme. Sim. Ao retratar o cotidiano de uma família nos anos 50, o diretor também reconta a origem do próprio Universo. Como se ambas as coisas por mais contraditórias que possam parecer, fossem indissociáveis.
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”
Impossível não lembrar desse texto de Clarice Lispector. Sim. O Mundo começou com um sim. Sim. Sim. As imagens cósmicas brilhantemente mostradas no filme refletem esse pensamento. O que assistimos ali é a resposta de uma molécula para a outra: SIM!
A ruptura com o tempo cotidiano se dá justamente quando é mostrado o nascimento de um dos filhos do casal. SIM!
Mais uma vez penso em Clarice:
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?.”
Sim. Essa é a provocação que Malick nos faz. Como contar uma história com um começo, um meio e um fim pré-determinados se as coisas acontecem antes de acontecer? Como? Hein? Não é possível. E é exatamente por isso que o diretor usa e abusa de sequências absolutamente delirantes em que “Bing Bang”, células e dinossauros recontam o SIM, o “começo” de tudo.
Mas Malick não explica nada, não faz um filme tatibitati. Não. Ele mostra. E nos questiona. Talvez o tema maior do filme seja o tempo. Ousaria dizer: TEMPOS. Sim. No plural. Em “A Árvore da Vida” vários tempos habitam o existir. É dessa relação concreta/complexa que brota o maior questionamento do filme. Qual é o meu tempo? Malick mistura cenas banais com outras oníricas. Elas não se misturam. Muito menos se completam. Não. Permanecem autônomas. Co-existindo. Assim como o tempo em que “perdemos” vendo-as. Essa desagregação temporal proposta pelo diretor, perturba nossos sentidos e também nossa expectativa. O filme não conta uma história. Conta várias. Depende do que você vê, do que você tem suporte para ver.
Eu, por exemplo, vi muito da peça “Álbum de Família” do gênio Nelson Rodrigues nesse filme. Assim como nessa peça, aquela família retratada em “A Árvore da Vida” também parece ser a primeira e última. Assim como na peça, o amor e ódio teriam que nascer entre eles mesmos. Sim. A fala do personagem Edmundo para a mãe na obra de Nelson, diz muito sobre o meu entendimento do filme:
“Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.
Sim. As relações humanas surgem ali sufocantes, castradoras, contraditórias. Jack, o filho “rebelde” expõe toda a dor dessa relação quando diz (em voz-off) que aquele pai e aquela mãe habitarão sempre sua maneira de pensar e agir e que a dúvida entre qual comportamento seguir será eterna. Sim. Sempre haverá o nunca. Sempre haverá o sim. Basta escolher. Agora vem a pergunta crucial/cruel: Como escolher?
"Pai. Mãe. Vocês estão sempre lutando dentro de mim. Sempre estarão. "
Malick não coloca a questão apenas no âmbito familiar, mas a redimensiona. Aquela família ali é metonímica. Aquele pai, aquela mãe e irmãos representam à maneira como Malick enxerga a existência humana. Eu vi ali naquela relação algo de divino/profano. Como se aqueles personagens fossem representações bíblicas. O filme está cheio delas. Desde a frase que abre o filme até citações ditas pelos personagens.
“Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre o que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra angular? Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?”
Aliás, essa frase do Livro de Jó é importantíssima para se entender o contexto do filme. Aquela família tão religiosa, tão temente a Deus será testada. Assim como Jô. Um dos filhos do casal morrerá. A fé deles será questionada.
Durante e após o filme, uma teoria peculiar foi se sedimentando em mim. Para mim, aqueles três personagens: Pai, Mãe e Filho “Rebelde” representariam entidades bíblicas. Eu explico: O Pai seria um Deus do Antigo Testamento. Punitivo. Autoritário. Ególatra. A Mãe seria a personificação de um Deus do Novo Testamento. Libertário. Amoroso. E o filho “rebelde” seria algo como Satanás. Sim. O anjo mais bonito do céu. Aquele que tentou ser igual a Deus. Ultrapassa-lo. Aquele que é responsável por tentar Eva a provar do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, a árvore da vida. De alguma maneira, aquele filho representa esse conhecimento. Sua dor, indecisão e frustração na fase adulta mostram que o fardo de provar do fruto dessa árvore é pesado demais. A experienciação vivida pelo filho mais velho é a de toda a humanidade. Sim. Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Somente o caminho ensinado pela mãe pode remir Jack (humanidade).
Enfim, “A Árvore da Vida” não é um filme. É uma experiência. Que propicia inúmeros pontos de vista. É uma obra aberta. Difícil. Lenta. Escorregadia. Mas absolutamente genial. A direção de Terrence Malick é soberba e segura. A iluminação é um deslumbre. Assim como a trilha sonora. Sim. É um filme sinestésico. Em que os sentidos do espectador são constantemente “despertados”. É uma obra única para espectadores também únicos. Malick inclusive usa um recurso bastante usado em seu filme, mas que obtém um resultado comovente. Os personagens falam muito em voz-off. Essas falas altamente questionadoras refletem o interior daquelas personagens. É como se elas estivessem rezando a um deus surdo-mudo. Como se elas tivesses eternamente esperando um possível Godot. Que não vem. Que não virá. Talvez. Nunca. “Quem somos nós pra você”? se questiona a Mãe. “O que eu quero fazer eu não posso. Faço o que eu destesto” balbucia o Filho. E o que ele deseja? Matar esse pai que o reprime.
”Seria tudo melhor se em cada família alguém matasse o pai!” diz Edmundo na peça “Álbum de Família”. Malick assim como Nelson não trata apenas do desejo, mas também do contra-desejo. “De quem você gosta mais?” pergunta Jack para sua mãe. O complexo de Édipo mina a relação pai e filho. O desejo absurdo de superar aquele pai faz com que Jack se torne um homem bem-sucedido, mas mesmo assim frustrado. Por quê? A chave de uma possível resposta talvez esteja numa cena comovente em que pai e filho quase resolvem o conflito existente entre eles. O sofrimento existe porque aquele garoto adquire a consciência de que se parece mais com o pai do que com a mãe. Esse estar cônscio de que é parecido com aquilo que lhe amedronta é um fardo dolorosamente pesado para o garoto. Novamente, só os ensinamentos da mãe poderão remir Jack.
Daí que a imagem de um imenso dinossauro deixando de atacar um outro de tamanho menor, talvez tenha algo maior para nos comunicar. Ou não. Talvez. Sim. Talvez nós sejamos esse dinossauro pequeno que é poupado num gesto de extrema compaixão do dinossauro imenso. Ou não. Talvez. Sim.
“E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Eu sei. Não se pode dar uma prova da existência daquilo que é mais verdadeiro, o único jeito é acreditar. Acreditar chorando.”
Sim Clarice. Sim Terrence Malick. Sim. Ainda é tempo de morangos. Sim. SIM. S-I-M!
A primeira cena do filme “Reconstruction’ (no Brasil traduzido como “Reconstrução de um amor") mostra um homem sob uma luz “teatral”. Ele fuma. De repente, ele faz uma mágica. O cigarro começa a flutuar. Uma voz off anuncia:
“É sempre assim que termina. Um pouco de magia, um pouco de fumaça. Algo flutuando. Mas não funciona sem um empurrão necessário. Um pouco de risadas, um homem e uma mulher bonita. E amor. Vamos recomeçar. No começo, um homem sozinho. Não, ele não está sozinho. Ainda. Esse é o primeiro passo. O homem. Logo vêm as risadas. A mulher. O amor. Olhe para ele. Podemos começar assim, embora não seja assim que começa. Por isso, fique atento. É importante, acredite. “
Sim. É importante ficar atento. O filme é todo cheio de digressões temporais. Mais sugere do que mostra. Em suma, cinema sensorial. Ou toca. Ou não toca.
Eu gostei. E muito. O filme não é sobre o amor. Não. E talvez isso faça toda a diferença.
É sobre o cinema. Sobre como construir uma história. Como contar essa história. Que sim pode ser uma história de amor. Também.
O filme nos mostra o começo e o fim dessa história, de maneira “bagunçada”, estilizada e extremamente engenhosa. Um homem encontra uma mulher num bar enfumaçado e se apaixona por ela. Clichê, não? Esqueça. Em “Reconstruction”, essa história é esgarçada, esticada ao máximo. Utilizando-se de cenas aparentemente repetitivas, o diretor dinamarquês Christoffer Boe reflete sobre o sentido das vivências que se “repetem”. Algo muito próximo ao defendido pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Sim. O Eterno Retorno. Nessa teoria tudo absolutamente tudo vai e retorna sempre.
Conceitos como criação e destruição, amor e ódio, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal, belo e feio são apenas faces de um mesmo jogo “perpétuo”. A realidade não faz sentido.
E é exatamente por isso que o alerta do narrador do filme faz muito “sentido”:
“Sei que não devia mencionar, mas o faço mesmo assim:
Lembre-se: tudo é apenas um filme. Uma construção. Mas de todo modo, dói.”
Sim. Essa é a função da arte. Existir como meio de transubstanciar a vida. É ficção escancarada. Mas mesmo assim sugere a vida. O jogo entre o filme e o espectador é aberto. E sobretudo permiti ao espectador o livre pensar. O enredo contêm “furos”. O espectador terá que preencher essas lacunas. A memória afetiva do espectador é ativada pelas cenas em tom quase sempre sublime. É um filme extremamente contemporâneo. A história contada por ele não é o mais importante. E sim o como contar essa história. Que elementos usar. A cena será lenta ou acelerada? Em preto e branco ou colorida? Terá música ou será muda? É desse jogo escancarado que brota a maior qualidade desse filme. E também seu maior calcanhar de Aquiles. Pois o espectador médio não está acostumado com esse tipo de narrativa. Estamos chafurdados num aristotelismo primitivo. Sim. Ainda no século XXI as histórias precisam fazer “sentido”. Precisam de um começo, um meio e um fim pré-determinados. Daí que “Reconstuction” não nos oferece nada disso. É cinema cabeça. Sim. Se você não gosta desse tipo de cinema então, fuja como o diabo da cruz desse filme. Agora se você curte, te garanto que serás recompensado com um filme poderoso. Uma bela reflexão sobre o homem. Sobre o cinema. Sobre o Amor.
"A Garota da fábrica de caixas de fósforo” do diretor finlandês Aki Kaurismäki é uma fábula moderna sobre a condição da bondade.
Sim. Assim como “Cinderela”, “Branca de neve e os setes anões”, “Rapunzel” e tantas outras obras consideradas infantis que retratam personagens bondosos sofrendo nas mãos dos maldosos, para só lá no final aparecer um príncipe encantado e livrá-las de todo o mal. Amém. Não. Em “A Garota da fábrica de caixas de fósforo” não há espaço para esse maniqueísmo e muito menos para um final feliz. Não.
Afinal, como exercer a bondade num mundo predominantemente mau?
Íris é um garota que mora com os pais numa casa bem humilde. Ela trabalha numa fábrica de caixas de fósforo e todo o dinheiro que ganha, entrega nas mãos dos pais. Ela cozinha, lava e passa a roupa enquanto seus pais assistem o noticiário. Às vezes, ela sai para dançar. Só que nunca é escolhida por ninguém para o grande baile. Até aqui se passaram aproximadamente treze minutos e nem uma só palavra saiu da boca desses personagens. O diretor Aki Kaurismäki demonstra um domínio absoluto do tudo aquilo é silenciado. Não é um silêncio de filme mudo. Muito pelo contrário. É um calar-se. Como se algo ao ser expressado pudesse fazer ruir com o mundo todo. Kaurismäki apresenta um mundo maquinal, frio e miserável. A cena de abertura é uma demonstração genial desse ponto de vista adotado pela direção. Nela, vemos inúmeras máquinas trabalhando na fabricação das tais caixas de fósforos do título. O processo é mostrado por inteiro. Quando as caixas estão prontas, embaladas e seladas, eis que surge Íris. Ela também é uma parte da engrenagem mecânica da fábrica. Sim. Ela também é uma máquina. E é apenas mais uma. E talvez seja até mais insignificante e dispensável do que as outras máquinas. Sim. Assim como Macabéa de “A Hora da Estrela”, Íris “nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”. Um belo dia, após ser dispensada pelos homens no baile, ela intui que o motivo de tal rejeição seja suas roupas, e em posse do salário que acabara de ganhar, compra um belo vestido novo. Ao chegar em casa com o vestido, apanha do pai e é obrigada a devolvê-lo pela mãe. Ela não cumpre o desejo da mãe e vai para o baile com o vestido novo. Lá é cortejada por um homem mais velho. Dança com ele e até mesmo aceita o convite para conhecer a casa do tal homem. Lá, após manter relações sexuais com ele, é tratada como uma prostituta. Sim. Ele é casado e não quer nada com ela. “Se acredita que há algo entre nós dois, está muito enganada. Nada me encanta tão pouco quanto o seu amor. Agora, deixe-me”. Sim. Mais uma rejeição. O problema não é o vestido. É ela. “No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada”. Sim. Novamente Clarice. Novamente Macabéa. Mas não só. Íris e sua procura ingênua pelo verdadeiro amor encontram parentesco em Cabíria do filme de Fellini. Já a decisão moral tomada pela personagem depois de tantas rejeições é parecida com a de Chen Te, protagonista da peça “Alma Boa de Setsuan” do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. “Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel ?” indaga a personagem brechtiana.
Tanto na peça de Brecht quanto no filme de Kaurismäki, o que fica claro é que a pessoa boa para sobreviver precisa colocar uma máscara de maldade e agir de modo coerente com esta faceta. Sim. Numa sociedade capitalista, maquinal e fria, a bondade é impossível. E o amor nada mais que uma mercadoria. “Quem poderá por tanto tempo recusar a maldade quando morrem os esfomeados?” Sim. Há alguma coisa que não vai bem no nosso mundo. Afinal, que vida é essa? “Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?” E o grito fica parado no ar. Sim. Todas essas personagens (Íris, Cabíria, Macabéa, Chen Te) não são satisfatórias. A verdade não está nos filmes, nos livros, nos palcos. Não. Está na vida real. É preciso que o espectador/leitor tire suas conclusões e aja. “Prezado público, vamos busque sem esmorecer! Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver!”
Sendo assim, o filme não termina nunca. Nós (espectadores) somos também Iris, Cabíria, Macabéa e Chen Te tentando sobreviver num mundo insensível, miserável, cruel e injusto.
“O homem sabe roubar, sabe matar.
Mas tem um defeito:
Sabe pensar”.
Mais uma vez Brecht nos provoca, nos inquieta. Sim. Se cabe ao homem bom vestir a máscara da maldade para viver num mundo mau, como fica a consciência dele? O que fazer então? Cruzar os braços? Bater a cabeça até sangrar? Dar a outra face? Calar? Gritar? Olho por olho, dente por dente? Metralhar todo mundo? Dar veneno de rato para quem nos rejeitou?
São possibilidades. Inúmeras.
Mas, lembrando: o filme nunca acaba quando termina.
Como já disse: “A Garota da fábrica de caixas de fósforo” é uma fábula moderna. Uma fábula desgraçadamente trágica.
“Se alguém ferir seu próximo, deixando-o defeituoso, assim como fez lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Assim como feriu o outro, deixando-o defeituoso, assim também será ferido.” [Levítico, capítulo 24, versículo 19-20]
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” [Mateus, capítulo 5, versículo 38-41]
A diretora dinamarquesa Susanne Bier parece ter se inspirado nesses dois textos bíblicos para escrever o roteiro de "Hævnen", seu novo filme.
"Hævnen" que na tradução do dinamarquês para o português seria “Vingança”, aqui recebeu o nome de “Em um mundo melhor”. Tradução equivocada e desprezível, que muda todo o sentido da obra.
O roteiro é absolutamente intrincado e multifacetado.
O filme conta a história de duas famílias, dois países, dois continentes, dois garotos, dois pais.
É um filme tenso, melodramático, catártico e genial. Um soco bem forte no estômago.
A primeira família é composta por Anton, que é um médico que trabalha na África, sua função ali é salvar garotas que são violentadas pela gangue de um tal de “Machão”.
Anton é sueco e possui dois filhos com Marianne. O Casal está em crise no casamento. Estão se separando. Elias, o filho mais velho do casal, é um garoto constantemente humilhado e perseguido na escola por gangue juvenil.
A segunda família é composta por Claus e Christian. Pai e filho. Quando o filme começa, a família encara a dor da perda de um ente querido. A Mãe de Christian morreu de câncer. O garoto nutre uma raiva em relação ao pai, por achar que ele desejou a morte de sua mãe.
Elias e Christian passam a estudar na mesma escola.
Logo no primeiro dia de aula, Christian vê Elias sendo agredido e toma as dores dele. Os agressores batem em Christian e ele revida no dia seguinte de forma extremamente violenta. Sim. Christian ensina a Elias, que a lei do talião (olho por olho, dente por dente) é a melhor saída. Sim. A técnica parece dar certo, pois os ataques diários param. Os dois viram amigos.
Um dia, Anton leva os garotos para passear num parque. Lá, o irmão menor de Elias se envolve numa briga com um outro garotinho. Anton separa a briga. O pai do outro garoto reage de forma violenta e dá um tapa na cara no pai de Elias. Ele não revida. Pega os filhos e vai embora dali.
Christian tenta colocar na cabeça de seu amigo Elias, que o pai dele deveria ter reagido.
É a partir desse momento, que o filme de Bier ganha contornos outros.
De repente, não mais do que repente, a situação se encalacra e a diretora nos questiona:
- Há alguma forma de violência física que seja justificável?
Como já disse nesse mesmo blog, a diretora Susanne Bier é uma mestra do cinema melodramático, seus filmes quase sempre giram em torno de grandes tragédias e de reviravoltas aparentemente mirabolantes.
Sim. Esse é o cinema praticado pela dinamarquesa. É só assistir seus filmes anteriores que terão a prova do que falo. “Corações Livres”, “Brother” e “Depois do Casamento” são a justa medida desse cinema. Filmes em que os personagens estão sempre tendo que lidar com grandes tragédias ou acontecimentos que os tirem de uma suposta normalidade. Sim. Essa é Susanne Bier.
Li algumas pessoas dizendo que nesse novo filme, a diretora produz uma trama rasa, com personagens estereotipados. Ora, acusação absurda e ingênua. Recomendo que essas pessoas estudem um pouco mais sobre o que é o melodrama, para depois abrirem a boca para dizer tal barbaridade. Estudem Diderot, queridos!
O que Susanne Bier faz em "Hævnen" é um verdadeiro tratado do mundo contemporâneo. É característica do gênero melodramático essa tensão entre dois “mundos”. É também comum nesse gênero que o caráter dos personagens seja bastante definido e de fácil assimilação pelo público. É desse embate entre vícios e virtudes que brotará a catarse.
Sim. Bier faz exatamente isso. Mas, vai além. Sim. Bier é um diretora pós-melodramática. Sim. A diretora se utiliza dessas técnicas do melodrama para fisgar o espectador. Para logo depois, embaralhar as cartas e balburdiar com as certezas do espectador. Isso é genial! E Bier faz isso em todos os seus filmes de uma maneira única, segura e nada forçada. Somado a esse talento, a diretora possui um outro. Esse muito mais difícil de ser encontrado no atual cinema mundial. É uma exímia diretora de atores. É impressionante o desempenho de seu elenco. Sempre. No caso de "Hævnen", isso fica ainda mais evidente, já que o filme é protagonizado por duas crianças. Sim. Bier consegue extrair atuações contundentes desses dois garotos. É de cair o queixo. Literalmente.
Enquanto assistia o filme, foi impossível não lembrar do garoto Casey Speaks, que recentemente teve um vídeo em que aparece reagindo às agressões físicas de um “gangue” na escola. Rapidamente o vídeo ganhou a rede. Todo mundo assistindo, comentando, aplaudindo a atitude de Casey em revidar aquilo que agora é chamado de “Bullying”. Uns dias se passaram e um outro vídeo caiu na rede. Dessa vez, era uma entrevista de Casey Speaks para uma emissora de tv. Na entrevista, o garoto comenta que era constantemente humilhado por ser gordo. O “bullying” aconteceu desde o primeiro dia de aula. O garoto perdeu todos os amigos por causa disso. Ficou sozinho e vítima fácil para o abuso de poder. Revela que pensou em suicídio, mas que a amizade com sua irmã mais velha, impediu a consumação do ato. A entrevista é comovente. Triste mesmo. Chorei assistindo a entrevista. Chorei porque habito um mundo onde as pessoas são humilhadas por apenas serem o que são. Isso é lamentável!
E o tal do “bullying” acontece em todos os lugares, em todas as faixas etárias, sem exceções. O “bullying” acontece por você ser gordo demais, magro demais, alto demais, baixo demais, pobre demais, rico demais, feio demais, por sua orientação sexual ser diferente das dos demais e assim vai... tudo é motivo para aquele que quer humilhar o outro. Mas fico pensando cá com meus botões (que nem os tenho): O que leva uma pessoa a querer humilhar a outra? Existem pessoas “más” por natureza? Ou seria a própria sociedade que forjaria um comportamento dominante como forma de sobrevivência? Por que aplaudimos a violência do garoto que revida aos ataques, mas repudiamos a do garoto que provoca? Uma justifica a outra? Uma é mais aceitável do que a outra?
É exatamente nesse contexto que o filme de Susanne Bier se insere.
E se o pai que apanhou do homem na praça o procurasse novamente? E se ele apanhasse mais e não reagisse? E se o tal “Machão” lá da África ficasse doente e dependesse de um médico para viver? E se o médico atendesse o homem que é o responsável direto pela morte de tantas garotas? E se os meninos decidissem se vingar do homem da praça? E se? E se? E se?
Incrível o trabalho da diretora Lynne Ramsay na adaptação do livro homônimo. O filme não tentar ser apenas servil à obra que lhe deu origem. É um trabalho depurado e sensível que não tenta em nenhum momento competir com a grandiosidade do livro, e muito menos se torna refém (ou menor) que o livro. É uma obra autônoma. Poderosa. E diz muito sobre os nossos tempos sem sol.
Lionel Shriver (a autora do livro em que o filme se baseia) organiza-o de forma epistolar. Eva Khatchadourian escreve cartas para o marido Franklin na tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Quando o livro começa, o crime já ocorreu, Kevin já está preso e Eva já está separada de Franklin, sem dinheiro, morando numa pequena casa no subúrbio.
Eva escreve cartas para o marido onde analisa tudo, desde a vida antes de Kevin nascer, até o momento que mesmo a contragosto decide ceder à pressão do marido e ter um filho.
Eva não quer ter esse filho, não quer dividir atenção do marido com nenhuma outra pessoa, quanto mais uma criança. Além disso, seu trabalho exige que ela fique longas temporadas fora do país. Temendo perder o marido, que anseia desesperadamente por um filho. Eva engravida. E é aqui que o conflito começa.
“O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então por que motivo retiramos todas as nossas fichas e pusemos nessa aposta ridícula de ter um filho?”
Sim. Para Eva uma criança significa barulho, sujeira, restrições e ingratidão. E é mais ou menos isso o que ela recebe. Acompanhamos tanto no livro quanto no filme sua total inabilidade com aquela criança. Vemos também suas tentativas frustradas e a disputa que surge entre ela e o garoto pela atenção do pai.
“A maternidade me arrastara para o que em geral consideramos as questões mais básicas: comer e cagar.”
Eva não consegue gostar de Kevin e consequentemente Kevin também não consegue gostar da mãe.
“Você nunca quis me ter, não é mesmo?”, pergunta Kevin. “Sinceramente, Kevin... será que você iria querer ter você? Se houver alguma justiça nesse mundo, um dia desses você ainda vai acordar com você mesmo num berço ao lado de sua cama.”, responde a mãe.
E é assim relembrando o passado que Eva vive o presente. As brincadeiras. Os olhares. As afrontas. O desespero. Todos os componentes são apresentados ao leitor/espectador. O jogo de gato e rato entre aquela mãe e seu filho leva-os a um estado de dependência extrema um do outro. Odeiam-se, mas precisam conviver na mesma casa e Evan precisa encontrar algum elo com aquele garoto. Kevin percebe que sua simples presença provoca inquietação na mãe e usa disso para provocá-la o tempo todo. Eva sempre cai. A angústia latente de não saber lidar com o próprio filho. O desejo absurdo de matá-lo e ter novamente o marido só pra ela. Aqui não é nem a vida que poderia ter sido, mas a vida que foi e que ela quer ter de volta. Na frente do pai, Kevin é um anjo, o que aumenta a distância amorosa do casal.
“A mamãe era feliz antes que o Kevin mijão viesse ao mundo, você sabia disso? Agora a mamãe acorda todo dia querendo estar na França. A vida da mamãe é uma droga, você não acha que a vida é uma droga? Você sabia que em certos dias a mamãe preferia estar morta? Para não escutar você guinchar nem mais um minuto, tem dias em que a mamãe gostaria de pular da ponte do Brooklyn.”
Aos poucos vamos tomando conhecimento (sempre pelo ponto de vista da mãe) das pequenas maldades que Kevin comete. Sim. Kevin começa apresentar defeitos e Eva se considera culpada. Em alguns poucos momentos, nasce a surpresa dos pequenos carinhos. Kevin fica doente, abaixa a guarda. Eva também. Mas a trégua dura pouco.
Na realidade o livro/filme não é sobre um garoto que mata sete pessoas na escola. Não. É sobre a culpa que Eva sente pelo ato do filho. É sobre uma mãe que não queria ter tido filhos. É sobre a angústia e a solidão que ela sente desde o dia em que o filho nasce. E de como tudo isso amplia até a potência máxima quando o filho comete o assassinato em série.
“No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações – não só com o sofrimento, mas também com a derrota.”
Sabiamente a diretora Lynne Ramsay utiliza-se da cor vermelha para explicitar logo de cara que seu filme é sim sobre sangue. Não o da morte, mas o que gera vida. A seqüência inicial delirante mostra o quanto Eva está mergulhada na cor vermelha até o pescoço. Os vizinhos também fazem questão de não deixá-la esquecer o inesquecível. Sua casa e seu carro são constantemente tingidos de vermelho, numa espécie de via-crúcis do corpo e da alma. As constantes humilhações. Os encontros fortuitos com os parentes das vítimas numa inocente ida até o supermercado. Os olhares de reprovação.
“A culpa confere um poder espantoso. E simplifica tudo, não só para os espectadores e vítimas, mas, sobretudo, para os culpados. Ela impõe uma ordem à escória. A culpa ensina uma lição muito clara da qual outras pessoas talvez possam obter consolo: se ao mesmo ela não..., e com isso torna a tragédia evitável.”
Eva é digna na dor. Resignadamente assume o papel que Kevin lhe delega no espetáculo que ele cria.
“Num país que não sabe diferir fama de infâmia, obviamente a primeira parece mais fácil de ser atingida.”
Kevin também herda essa característica da mãe e não se dispõe a sofrer em público. Pelo contrário. Parece gostar da fama que adquire. “Não estou fazendo papel nenhum. Eu sou o papel. O Brad Pitt é que deveria me representar” diz Kevin para a mãe numa das visitas que ela faz para ele na prisão. O certo é que cada injúria atirada na direção de Kevin seu ego parece inflar mais e mais. Ele gosta de ser visto como a Encarnação do Mal.
Aliás, um dos principais talentos de Lionel Shriver nesse livro é mostrar abertamente o fascínio que o mal exerce em nossa sociedade. Kevin sabe disso. E manipula muitíssimo bem a situação toda.
Guy Debord em seu livro mais famoso “A Sociedade do Espetáculo” fornece a chave para o entendimento desse fascínio. Sim. Vivemos numa sociedade toda ela espetacularizada e a resposta a isso tudo também tem que ser “espetacular”.
"O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Kevin aprende que para viver nessa sociedade é preciso sustentar a própria história e é exatamente isso que faz desde criança. O depoimento que dá para uma rede TV deixa explícito tanto o ponto de vista de Kevin quanto o posicionamento da autora. Ao ser perguntado sobre as motivações do crime, ele responde:
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
Pronto, a chave para um possível entendimento não mais do livro e nem do filme, mas de uma sociedade como um todo reside nessa frase do Kevin.
Lionel Shriver apresenta em seu livro um assombroso acerto de contas, não apenas de uma mãe, mas de um país, de uma sociedade toda ela culpada, toda ela suja de vermelho. Eva sobrevive. É o relato dela que lemos/vemos. Ela e Kevin são os únicos “sobreviventes” dessa tragédia. A pergunta que nós (leitores/espectadores) nos fazemos é: Por que Kevin não matou a própria mãe? O garoto dá a resposta: “Quando a gente monta um show, não atira na platéia”.
Lynne Ramsay não faz por menos. Seu filme é perturbador e extremamente bem conduzido e ainda consegue extrair interpretações grandiosas dos garotos que vivem Kevin (tanto o que faz na infância, quanto Ezra Miller que vive-o na adolescência), mas o filme sem sombra de qualquer dúvida é de Tilda Swinton que nos mostra não uma interpretação, mas um dilacerar de alma. Seu trabalho é brilhante, sensível e inteligente. Uma das melhores interpretações do ano num dos melhores filmes do ano. A música alegrinha de comercial de margarina que acompanha o filme nos faz pensar que esse esforço hercúleo para ser feliz (ou aparentar uma suposta felicidade para os outros) talvez desemboque nesse beco sem saída que é viver. O branco do final do filme se contrapõe às variações do vermelho que estiveram presentes o tempo todo.
Afinal o que significa essa mudança? Não sei. Tenho dúvidas. Mas aquele branco cegou-me os olhos. Talvez seja isso. Sim. Ou não. Dizem que a cor branca alivia a sensação de desespero e choque emocional. Sim. O silêncio que vem depois do branco, também contribui para aclarar as emoções. Depois do silêncio, o letreiro. Depois, só depois, quando o filme já acabou, entra uma música tensa pela primeira vez. O horror persiste. A lembrança também. “Engraçado como a lembrança de um dia normal é a primeira que some”.
Lionel Shriver (a autora do livro em que o filme se baseia) organiza-o de forma epistolar. Eva Khatchadourian escreve cartas para o marido Franklin na tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Quando o livro começa, o crime já ocorreu, Kevin já está preso e Eva já está separada de Franklin, sem dinheiro, morando numa pequena casa no subúrbio.
Eva escreve cartas para o marido onde analisa tudo, desde a vida antes de Kevin nascer, até o momento que mesmo a contragosto decide ceder à pressão do marido e ter um filho.
Eva não quer ter esse filho, não quer dividir atenção do marido com nenhuma outra pessoa, quanto mais uma criança. Além disso, seu trabalho exige que ela fique longas temporadas fora do país. Temendo perder o marido, que anseia desesperadamente por um filho. Eva engravida. E é aqui que o conflito começa.
“O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então por que motivo retiramos todas as nossas fichas e pusemos nessa aposta ridícula de ter um filho?”
Sim. Para Eva uma criança significa barulho, sujeira, restrições e ingratidão. E é mais ou menos isso o que ela recebe. Acompanhamos tanto no livro quanto no filme sua total inabilidade com aquela criança. Vemos também suas tentativas frustradas e a disputa que surge entre ela e o garoto pela atenção do pai.
“A maternidade me arrastara para o que em geral consideramos as questões mais básicas: comer e cagar.”
Eva não consegue gostar de Kevin e consequentemente Kevin também não consegue gostar da mãe.
“Você nunca quis me ter, não é mesmo?”, pergunta Kevin. “Sinceramente, Kevin... será que você iria querer ter você? Se houver alguma justiça nesse mundo, um dia desses você ainda vai acordar com você mesmo num berço ao lado de sua cama.”, responde a mãe.
E é assim relembrando o passado que Eva vive o presente. As brincadeiras. Os olhares. As afrontas. O desespero. Todos os componentes são apresentados ao leitor/espectador. O jogo de gato e rato entre aquela mãe e seu filho leva-os a um estado de dependência extrema um do outro. Odeiam-se, mas precisam conviver na mesma casa e Evan precisa encontrar algum elo com aquele garoto. Kevin percebe que sua simples presença provoca inquietação na mãe e usa disso para provocá-la o tempo todo. Eva sempre cai. A angústia latente de não saber lidar com o próprio filho. O desejo absurdo de matá-lo e ter novamente o marido só pra ela. Aqui não é nem a vida que poderia ter sido, mas a vida que foi e que ela quer ter de volta. Na frente do pai, Kevin é um anjo, o que aumenta a distância amorosa do casal.
“A mamãe era feliz antes que o Kevin mijão viesse ao mundo, você sabia disso? Agora a mamãe acorda todo dia querendo estar na França. A vida da mamãe é uma droga, você não acha que a vida é uma droga? Você sabia que em certos dias a mamãe preferia estar morta? Para não escutar você guinchar nem mais um minuto, tem dias em que a mamãe gostaria de pular da ponte do Brooklyn.”
Aos poucos vamos tomando conhecimento (sempre pelo ponto de vista da mãe) das pequenas maldades que Kevin comete. Sim. Kevin começa apresentar defeitos e Eva se considera culpada. Em alguns poucos momentos, nasce a surpresa dos pequenos carinhos. Kevin fica doente, abaixa a guarda. Eva também. Mas a trégua dura pouco.
Na realidade o livro/filme não é sobre um garoto que mata sete pessoas na escola. Não. É sobre a culpa que Eva sente pelo ato do filho. É sobre uma mãe que não queria ter tido filhos. É sobre a angústia e a solidão que ela sente desde o dia em que o filho nasce. E de como tudo isso amplia até a potência máxima quando o filho comete o assassinato em série.
“No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações – não só com o sofrimento, mas também com a derrota.”
Sabiamente a diretora Lynne Ramsay utiliza-se da cor vermelha para explicitar logo de cara que seu filme é sim sobre sangue. Não o da morte, mas o que gera vida. A seqüência inicial delirante mostra o quanto Eva está mergulhada na cor vermelha até o pescoço. Os vizinhos também fazem questão de não deixá-la esquecer o inesquecível. Sua casa e seu carro são constantemente tingidos de vermelho, numa espécie de via-crúcis do corpo e da alma. As constantes humilhações. Os encontros fortuitos com os parentes das vítimas numa inocente ida até o supermercado. Os olhares de reprovação.
“A culpa confere um poder espantoso. E simplifica tudo, não só para os espectadores e vítimas, mas, sobretudo, para os culpados. Ela impõe uma ordem à escória. A culpa ensina uma lição muito clara da qual outras pessoas talvez possam obter consolo: se ao mesmo ela não..., e com isso torna a tragédia evitável.”
Eva é digna na dor. Resignadamente assume o papel que Kevin lhe delega no espetáculo que ele cria.
“Num país que não sabe diferir fama de infâmia, obviamente a primeira parece mais fácil de ser atingida.”
Kevin também herda essa característica da mãe e não se dispõe a sofrer em público. Pelo contrário. Parece gostar da fama que adquire. “Não estou fazendo papel nenhum. Eu sou o papel. O Brad Pitt é que deveria me representar” diz Kevin para a mãe numa das visitas que ela faz para ele na prisão. O certo é que cada injúria atirada na direção de Kevin seu ego parece inflar mais e mais. Ele gosta de ser visto como a Encarnação do Mal.
Aliás, um dos principais talentos de Lionel Shriver nesse livro é mostrar abertamente o fascínio que o mal exerce em nossa sociedade. Kevin sabe disso. E manipula muitíssimo bem a situação toda.
Guy Debord em seu livro mais famoso “A Sociedade do Espetáculo” fornece a chave para o entendimento desse fascínio. Sim. Vivemos numa sociedade toda ela espetacularizada e a resposta a isso tudo também tem que ser “espetacular”.
"O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Kevin aprende que para viver nessa sociedade é preciso sustentar a própria história e é exatamente isso que faz desde criança. O depoimento que dá para uma rede TV deixa explícito tanto o ponto de vista de Kevin quanto o posicionamento da autora. Ao ser perguntado sobre as motivações do crime, ele responde:
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
Pronto, a chave para um possível entendimento não mais do livro e nem do filme, mas de uma sociedade como um todo reside nessa frase do Kevin.
Lionel Shriver apresenta em seu livro um assombroso acerto de contas, não apenas de uma mãe, mas de um país, de uma sociedade toda ela culpada, toda ela suja de vermelho. Eva sobrevive. É o relato dela que lemos/vemos. Ela e Kevin são os únicos “sobreviventes” dessa tragédia. A pergunta que nós (leitores/espectadores) nos fazemos é: Por que Kevin não matou a própria mãe? O garoto dá a resposta: “Quando a gente monta um show, não atira na platéia”.
Lynne Ramsay não faz por menos. Seu filme é perturbador e extremamente bem conduzido e ainda consegue extrair interpretações grandiosas dos garotos que vivem Kevin (tanto o que faz na infância, quanto Ezra Miller que vive-o na adolescência), mas o filme sem sombra de qualquer dúvida é de Tilda Swinton que nos mostra não uma interpretação, mas um dilacerar de alma. Seu trabalho é brilhante, sensível e inteligente. Uma das melhores interpretações do ano num dos melhores filmes do ano. A música alegrinha de comercial de margarina que acompanha o filme nos faz pensar que esse esforço hercúleo para ser feliz (ou aparentar uma suposta felicidade para os outros) talvez desemboque nesse beco sem saída que é viver. O branco do final do filme se contrapõe às variações do vermelho que estiveram presentes o tempo todo.
Afinal o que significa essa mudança? Não sei. Tenho dúvidas. Mas aquele branco cegou-me os olhos. Talvez seja isso. Sim. Ou não. Dizem que a cor branca alivia a sensação de desespero e choque emocional. Sim. O silêncio que vem depois do branco, também contribui para aclarar as emoções. Depois do silêncio, o letreiro. Depois, só depois, quando o filme já acabou, entra uma música tensa pela primeira vez. O horror persiste. A lembrança também. “Engraçado como a lembrança de um dia normal é a primeira que some”.
"Mammoth" do diretor sueco Lukas Moodysson é sensacional.
Já havia assistido outros filmes seus e a sensação de angústia e impotência perante a história mostrada pelo realizador é sempre a mesma.
O diretor mostra em seus filmes que realmente tem um ponto de vista em relação à sociedade que o rodeia.
Moodysson em seus filmes parece interessado em mostrar como o humano pode ser afetado pelo meio em que vive e pelo sistema que está engendrado.
“Para Sempre Lilya” e “Um Vazio no Coração” são filmes dentro dessa proposta.
O material humano que o diretor gosta de trabalhar é o inusitado, o quase invisível, Moodysson nesses dois filmes retrata o mundo sob a ótica de dois adolescentes.
Em “Para sempre Lilya” o da menina abandonada pela mãe, que vai viver com o amante, e é prostituída pelo “namorado”. É um filme brutal, incômodo.
Já “Um Vazio no coração”, Eric é um adolescente tímido, que ouve música o dia todo, ele é filho de um cara que produz filmes pornográficos em seu apartamento. Entre cenas de sexo explicito e bebidas, o pai dele e os atores pornôs mostram seu melhor e seu pior. É um filme absolutamente forte, com imagens agressivas e outras absurdamente líricas.
Moodysson consegue o improvável nesse filme, transformar o abjeto, o nojento em sublime. É um filme indicado somente para pessoas corajosas.
Essas são minhas referências do diretor.
Bom, a película conta a história de Leo e Ellen, casal cheio da grana, mas que não tem tempo para mais nada, nem para a própria filha.
A menina é cuidada pela babá e desenvolve com essa mulher, um sentimento muito forte.
A babá é filipina e veio para os EUA para conseguir melhores condições para seus dois filhos pequenos que foram deixados sob o cuidado da avó.
O mais velho deles, Salvador, é responsável por manter o irmão mais novo, Manuel, aquietado enquanto esperam a volta da mãe.
Leo é um homem que ficou milionário graças a um site de jogos parecido com o Myspace, ele tem um compromisso de trabalho na Tailândia, onde irá fechar um contrato de aproximadamente 45 milhões.
Ellen é médica e por causa de seu trabalho exaustivo não consegue dormir.
Leo em sua viagem conhece uma prostituta e por mais que não queira trair a mulher com ela, acaba cedendo aos encantos da moça.
A prostituta trabalha para sustentar a filha pequena.
Lukas Moodysson trabalha com temas clichês, não dá pra negar, mas a maneira como o diretor aborda os temas é fascinante.
Alguns críticos dizem que o filme é superficial, fraco e apelativo.
Eu discordo veementemente.
Feito em camadas assim como o igualmente excelente “Babel” do mexicano Alejandro González Iñárritu, “Mammoth” nos esfrega na cara as conseqüências de um mundo globalizado e galgado em interesses financeiros.
Todos sofrem as conseqüências desse sistema capitalista, todos, sem exceção, desde os mais ricos até os mais pobres.
Moodysson nos mostra o mal-estar de uma civilização capitalista:
Ricos morrendo de medo de deixarem de ser ricos e para tanto trabalham exaustivamente, sem tempo para seus filhos e familiares.
Pobres tentando desesperadamente uma maneira de sobreviver em meio ao caos.
Não há meio termo em seu cinema, Moodysson parece ter seguido os conselhos de Caio Fernando Abreu e sua frase: “Não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha à mim com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar”.
É exatamente assim que o diretor vem até nós, seus espectadores, com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar. LITERALMENTE FALANDO.
O roteiro é intricado, mas nada complexo, muito pelo contrário, o diretor segue as personagens em suas ações cotidianas e deixa com que essas ações mostrem quem são essas personagens, pouco a pouco, sem forçar a barra.
É um filme pesado, denso, sufocante, eu diria, em alguns momentos me peguei antecipando algumas cenas e a sensação não era nem um pouco agradável, algo como o narrador Rodrigo S.M. de “A Hora da Estrela” que antevê a morte de sua protagonista Macabéa, e quer evitá-la a qualquer custo.
O diretor sem medo de expor o dedo na ferida mostra como um sistema econômico totalmente injusto é o responsável pela inúmeras desgraças que assombram nossa civilização contemporânea.
É aquele velho ditado, enquanto uns tem muitos, outros nada.
O que se fazer então?
Ficar calado?
Moodysson responde um sonoro NÃO e faz um filme político, sem ser pedante. Ele não reinventa a roda, mas faz um filme digno.
Algumas cenas são chocantes em sua extrema realidade,
tais como a do menino que pede que a mãe volte a morar com eles e o desespero da médica Ellen quando o garotinho que foi esfaqueado pela própria mãe morre em suas mãos e também na sutil cena em que o filho mais velho da babá tenta desesperadamente arranjar um emprego para trazer a mãe de volta e acaba sendo violentando sexualmente e quase morto.
Tem também uma curiosa cena em que o personagem de Gael observa por vários instantes um elefante. Não sei por que, mas essa cena me remeteu ao conto “O Búfalo” de Clarice Lispector onde uma mulher busca no zoológico um animal em que ela se reconheça. “E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente”. Nessa cena da troca de olhares entre o homem (Gael) e o elefante parece existir a mesma necessidade de reconhecimento entre dois seres.
O diretor trabalha com uma premissa previsível, mas parece saber do ensinamentos do alemão Beltort Brecht e seu teatro da denúncia, sem perder de vista o entretenimento da platéia. É um filme difícil, mas não complexo.
O elenco é irrepreensível, estão todos excelentes, Gael Garcia Bernal consegue dar vida e dignidade a Leo, um jovem que tudo tem, mas que gostaria de viver uma vida quase hippie, Michelle Williams constrói uma personagem tripla, mãe, médica e esposa e o resultado é poderoso, é uma grande atriz, de gestos minimalista e meticulosos, a babá nos comove com seu misto de ternura e dor, vemos em seus olhos aquele sentimento de incompreensão diante de mundo que a faz ficar longe de seus filhos, mas em nenhum momento vemos revolta ou ódio em suas atitudes, e as crianças que fazem os meninos filipinos são muito boas, destaque para o ator mirim que faz Salvador.
A trilha sonora é interessante e inclui uma linda canção da cantora Cat Power.
Enfim, um filme seguro, comovente e certeiro com um golpe numa luta de boxe que é a vida dos humanos atualmente.
Já vou começar dizendo que filme “Os Famosos e os duendes da morte” é um dos melhores filmes já produzidos no Brasil.
É um daqueles filmes que te deixam com inveja e muita vontade de ser o autor de tudo aquilo... foi com essa sensação que sai do cinema, além de estar com os olhos inchados de tanto chorar.
É incrível ver o talento do diretor Esmir Filho na condução de um trabalho tão sensível, com uma poética toda particular, e, no entanto ser uma poesia errática, dura e fria.
Fazendo uso do tempo como personagem principal de seu roteiro e tendo a cidade onde o protagonista mora como metáfora do estado de espírito do tal garoto, Esmir constrói um filme de uma beleza singular, bem próximo ao que o cineasta Hector Babenco conseguiu em “Coração Iluminado” e Gus Van Sant em “Paranoid Park”. Também vejo um paralelo com o belíssimo documentário "A Ponte" do diretor Eric Steel.
Por mais referências que o filme tenha, não se enganem, pois o que vemos na tela é um filme de um diretor iniciante, mas, absolutamente genial e particular, é um filme de Esmir Filho.
Poucos conseguem isso em seu primeiro trabalho, por isso, temos que divulgar e falar muito desse filme, num país chafurdado em temáticas violentas e/ou miseráveis, encontrar uma obra dessas na filmografia brasileira é algo raro.
O filme mostra a vida de um adolescente numa cidade pequena no Rio Grande do Sul, o personagem principal é um menino viciado em internet e em Bob Dylan.
O garoto acha a cidade pequena demais, chega a chamá-la de “cu de mundo” e os moradores de “colonos”.
Na verdade, o menino tem um forte sentimento de não pertencimento àquela realidade e desenvolve um meio de suportar tudo aqui, através de um alheamento a tudo aquilo que não lhe diz respeito.
No livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, a autora afirma que o lugar onde a protagonista Macabéa mora “é uma cidade toda feita contra ela”.
Algo parecido ocorre com o protagonista do filme “Os famosos e os duendes da morte”.
O diretor apenas mostra o tal menino, sem se preocupar em fazer com que nós (espectadores) gostemos ou não dele. Muito pelo contrário, ao fazer uso de uma câmera que na maioria das vezes filma o ator de costas “vagando” pela cidade, o registro realista do filme dilata-se e o que vemos é aquilo que temos suporte ou preparo para ver.
É um filme de sensações, cabe ao espectador dar sentido à obra, é ele quem preencherá as lacunas deixadas pelo diretor, pelo filme e pelos atores. E isso é um elogio, não é preguiça ou falta de talento do diretor, e sim, estilo, estilo próprio de filmar e pensar o mundo.
Em muitas cenas, eu me peguei rindo e chorando ao mesmo tempo, tamanho o grau de aturdimento que o filme me causou, é um filme incômodo, lento, pesado, mas extremamente contemporâneo tanto na temática quanto na maneira de retratar o mundo.
O maior talento de Esmir Filho é mostrar o tempo como o tempo, é deixar as coisas acontecerem sem se preocupar com nada a não ser a cena, é um risco que ele corre, mas um risco absolutamente necessário e, é esse tempo como tempo que faz com que a obra ganhe uma dimensão outra, que faz com que o filme transcenda.
Cada cena por mais lenta que seja possui o exato tempo da comunicação necessária, algo que o velho filósofo Aristóteles já dizia em seu livro “Poética”.
O menino não possui um elo com o mundo real, ele parece mais vagar por aqueles lugares gélidos do filme, do que propriamente viver, sua vida é mais interna, sua vida é a sonhada ou a cibernética.
Em muitas cenas vemos o menino conversando com uma menina no MSN e o diretor não tem medo de usar a linguagem usada pelos jovens nesse tipo de mídia, ao não evitar o maneirismo da linguagem da net, o diretor poderia reduzir seu filme a uma mera reprodução de um comportamento juvenil, mas não, ela usa a linguagem como aproximação das personagens e não como barateamento da obra ou das idéias do filme.
Além do garoto, temos outro personagem principal no filme, uma ponte onde alguns moradores que não suportam o tédio de existir se jogam lá do alto e cometem suicídio.
Foi o escritor Albert Camus quem formulou a questão que sabendo que a existência é essa aqui mesmo (a realidade de cada um) a questão mais urgente de ser respondida era se consciente disso deveríamos cometer suicídio ou não? (O mito de Sísifo)
Essa parece ser a questão primeira que o garoto sem nome que vaga pela cidade quer responder. Ao ver um corpo jogado lá embaixo, no rio, o garoto pergunta a um amigo:
“Não parece que tem alguma coisa que puxa a gente pra lá pra baixo?”
O tempo, a cidade, a ponte, tudo parece levar ao suicídio, essa é a grande reflexão do filme, e coloque ainda nesses ingredientes, a adolescência, fase complicada entre a infância e o mundo adulto, fase em que tudo é elevado à nona potência.
E então o menino comete o suicídio ou não?
Essa questão não é tão importante assim para o filme, o final fica em aberto...
As cena que antecedem o final são de uma grandiosidade assustadora, acho que nunca mais vou esquecer a cena em que o menino e a mãe dançam na festa da cidade.
No começo há um abraço, um abraço forte, dolorido, o menino está chorando, a mãe também, a música alegre da festa está tocando, do abraço aos poucos mãe e filho começam a dançar, uma dança desajeitada, uma dança alegre/triste, a dança da vida depois ele vai embora, a mãe permanece chorando, dançando, batendo palmas sem saber por que faz tudo isso. É uma cena sufocante, sublime e extremamente bem orquestrada pela direção.
Outras cenas possuem a mesma “pegada”, como a da mãe e do menino bebendo vinho e conversando e rindo, único momento do filme em que os dois estão “felizes”, é uma cena engraçada, os dois estão bêbados, mas é uma cena dolorosa, triste, foi nessa cena que eu chorava e ria ao mesmo tempo. E também a cena em que o menino e o amigo fumam um baseado e conversam sobre a vida. Soa sintomático que os maiores e melhores diálogos do filme sejam quando o menino está alterado ou pela maconha ou pelo vinho.
Destaque também para as cenas gravadas pela web cam da menina que o menino é apaixonado e para todas as cenas de delírios, que apesar de barrocas e exageradas, dão o tom certo dos sonhos e delírios. E também para a comovente cena em que o garoto visita os avós.
A trilha é um personagem também, o menino é fã da música “Mrs. Tambourine Man” do Bob Dylan (para quem conhece a letra, o filme é quase um tradução literal dela), além disso, o cantor Nelo Johann compôs uma comovente trilha especialmente para o filme .
Todos os atores, sem exceção estão excelentes, o protagonista do filme Henrique Larré é um achado, ele não possui nada das afetações tão freqüentes na interpretação de adolescentes, é um ator minimalista, é quase uma Isabelle Huppert versão menino.
A mãe é ótima, tem todas as nuances necessárias para o papel, já quando a atriz que interpreta a avó entra em cena, pensei “hum, é a única atriz ruim do elenco”, mas ai fui me familiarizando com ela, seu sotaque estranho e adorei sua participação, assim como o avô, os amigos, a menina e o homem misterioso que perpassa quase o filme todo.
Ele é o enigma do filme, sabemos pouco sobre ele, quase nada, mas ao longo do enredo e principalmente no final, ele, junto com o menino, é o responsável pelos momentos mais interessantes da trama. (Não vou contar pra não estragar a surpresa).
Enfim, é um daqueles filmes que te faz sair do cinema com vontade de ver mais e mais, que te faz pensar, chorar, rir, refletir sobre a condição humana, entre outras coisas, essa é a função primordial do cinema e de toda a arte.
O filme é irregular. Mesclando momentos de lirismo, tédio, política e sexo. Assim como a vida, não? No geral, é um filme provocativo e apesar de tudo, belo e triste.
Filme surpreendente. Amei. Lógico que chorei, chorei e muito. Eu já gostava e muito do trabalho do ator Ryan Gosling. Agora depois desse filme, ele entrou na lista de meus atores prediletos. Ryan Gosling entrou no meu TOP 3 junto com o Gael Garcia Bernal e Louis Garrel. O trabalho de Gosling nesse filme é sensível ao extremo. E ele dá conta do recado com louvor. De se aplaudir de pé. Bravo!
O filme é uma poderosa análise das relações humanísticas. É um filme dolorido. Cruel. Forte.
É um filme salomônico, espiral. Quando conhecemos Dean e Cindy, eles já estão casados. Já têm uma filha. Já estão meio infelizes. A primeira cena mostra uma garotinha procurando um cachorro. Logo ficamos sabendo que o cachorro sumiu. E mais tarde que o cachorro morreu. Sim. Maus presságios. A morte do cachorro significa que algo ruirá. Assim como nas clássicas tragédias gregas. É interessante notar a maneira especial com que o diretor trata as cenas que se passam na estrada. E isso eu só notei na segunda vez em que assisti. A estrada no filme é um lugar de perigo. De alerta. Mas também de aberturas de possibilidades. O filme começa e termina mostrando uma estrada. Sim. O que o diretor pretende com isso? Simples. A própria vida é essa estrada. Muitas outras cenas se passam ali. Em trânsito. Preste atenção. Nessa terceira vez que assisti o filme, lembrei de uma passagem de um poema do Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa):
“Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a ação humana pelo mundo fora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias.”
Creio ser uma perfeita definição para o uso recorrente desses personagens em trânsito.
Dean e Cindy são tipos diferentes. Ele, todo relaxadão. Ela, tensa, insegura. Suas histórias de vida só reforçam essa diferença. Ele foi abandonado pela mãe quando criança. Ela tem um pai tirano e uma mãe omissa. Sim. Freud explica. Esse aspecto psicanalítico está impresso no filme. De alguma maneira, Cindy busca em seus relacionamentos a reprodução tirânica de seu pai. Fato explícito numa cena em que ela “pede” para ser quase estuprada. Já Dean, sua sina é ser constantemente abandonado.
"- Sabe qual é o seu problema? Você não deixa as pessoas com gostinho de quero mais. - Como assim? - Você distribui doce todo dia. Isso enjoa!"
Essa frase do Caio Fernando Abreu é a mais pura definição de Dean. Sim. Ele é carente. Mas é também bom pai e ama desmedidamente Cindy. Mas acaba por sufocá-la. Afinal, ela não está acostumada a ser amada. E quantos de nós estamos? Essa pergunta martela minha cabeça. Assistir “Blue Valentine” é isso. É perceber certas coisas que gostaríamos de esquecer. Sim. Não é fácil assistir o fim de algo tão bonito. Não consigo aceitar que as coisas acabem dessa maneira. É tão triste. Mas somos assim. O ser humano é assim. Parece fadado ao erro. Triste constatação. “Blue Valentine” me lembra um outro filme que aparentemente não tem nada a ver com ele: “Onde vivem os monstros” do Spike Jonze. Também ali há o fim de algo sublime. Também ali dói. Também ali há a metáfora do caminho.
“Tudo é ilusão, tudo é só estrada que corre e corre, e todas as estradas vão para o mesmo lugar. Que as paisagens dessa estrada sejam belas, então.”
Sim. Novamente Ele: Caio Fernando Abreu. Sim.
“Blue Valentine” possui um roteiro simples, mas eficiente. O filme não se perde em explicações tolas, não tenta forçar uma resposta para o término do relacionamento de Dean e Cindy. E isso é um dos muitos aspectos positivos. Não é justamente assim na vida real? Quase nunca temos uma explicação palpável para o fim das coisas. Muito pelo contrário. Na maioria das vezes, só sobra a perplexidade de não se entender direito aquilo que se sente. Humano. Tão demasiado Humano.
“Uma pressa, uma urgência. E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça.”
Por que sempre fazemos isso? Do que temos tanto medo?
Creio que uma possível resposta esteja em nossa educação. Não. Não somos criados para o amor. E quando digo amor não é só esse existente entre os apaixonados. Mas todo e qualquer sentimento bom que nutrimos pelos outros, seja família, amigos, etc.
Não é a nossa. O amor em nossa sociedade é uma obrigação. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” “Amai Deus sobre todas as coisas”. E assim caminhamos nessa estrada, que não é nem feliz, nem infeliz. É morna apenas. É incompleta apenas. Lacan dizia que a gente sofre, porque não tem para onde voltar. Concordo com ele. Não sabemos nada de nada. Somos uns perdidos. Uns entregues a própria sorte. E cada um que faça o seu. O amor em nossa sociedade se transformou numa mercadoria. Brecht estava certo. “Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?” Eis ai a grande contradição de nossos tempos.
Aliás, falando em Brecht, é dele uma das melhores definições sobre o amor:
“O amor é a arte de criar algo com a ajuda da capacidade do outro.”
E é exatamente esse o ponto que pega em “Blue Valentine”. Cindy não suporta ser ajudada. Já Dean é legal com todo o mundo. Cindy é inverno. Dean é verão. Juntos produzem grandes tempestades. No começo é aquela chuva redentora, que molha a terra e faz brotar os alimentos. No final é aquela chuva que só provoca o caos.
“Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.”
No começo do namoro de Dean e Cindy essa frase de Caio Fernando Abreu é real. Eles são lindos juntos. Eles se divertem. Parecem até mesmo se completar. Mas com o passar do tempo, algo desanda. O quê então? Para mim, creio ser um misto de coisas. Resquícios de infância, imaturidade dos personagens, egoísmo, o modo capitalista como a sociedade se organiza. O mundo de Cindy e Dean acaba de ruir quando ela está comprando bebidas num supermercado e reencontra o namorado da adolescência. Sim. Cindy inevitavelmente faz a comparação entre Bob e Dean. E nessa comparação o marido sai perdendo. Bob é lindo, bem sucedido e lhe passa uma cantada. Dean é a imagem do “loser”. A visão de Bob a perturba. Ela vê que fez uma “escolha errada”. Ela deveria ter escolhido Bob. Ele sim era o marido ideal para ela. Fato este que corrobora para a tese de Dean:
“Eu acho que os homens são mais românticos do que as mulheres. Quando nos casamos é com uma garota. Nós resistimos o tempo todo até conhecermos uma garota e pensamos: eu seria idiota se não casasse com ela. Mas as garotas só escolhem a melhor opção. Esperam sempre pelo príncipe encantado, e então casam com o cara que tem um bom emprego.”
Essa cena do encontro entre Cindy e o ex-namorado deflagra o fim do relacionamento dela com o marido. “Por que você não faz nada da vida?” pergunta ela. De certa forma os conselhos de sua avó de “Faça com que a pessoa por quem você se apaixone valha a pena pra você” é confrontado. “Como confiar em seus sentimentos quando eles desaparecem?”, essa é a dúvida de Cindy.
Sim. Esse é o ponto.
O diretor Derek Cianfrance escreveu esse roteiro para tentar responder essa pergunta. Seus pais se separaram quando ele tinha 21 anos de idade e o roteiro de “Blue Valentine” é uma tentativa de compreender o que levou seus pais a se separarem. Outro fato interessante de “Blue Valentine” é que o diretor não deixou que Ryan Gosling e Michelle Williams se conhecessem antes das filmagens. Não. Os dois atores só se conheceram já no set. As gravações começaram pelo início do namoro. Gravada essa parte do filme, Derek confinou Michelle, Ryan e a atriz que interpreta a filha deles numa casa real durante um mês. Feito esse laboratório das vivências de um casal, o diretor filmou a separação. Creio que esses detalhes dão a riqueza emocional desse filme. Tudo isso fica impresso em seu resultado final. Michelle Williams e Ryan Gosling demonstram uma incrível maturidade artística nesse filme. O frescor da juventude, da paixão e o lento processo de desintegração disso tudo é vivenciado pelos dois com extrema coragem e talento. O que assistimos não é um filme, mas um desabrochar de intimidades. O trabalho desses dois é de cair o queixo, de aplaudir de pé, de gritar “bravo” no final. O diretor Derek Cianfrance consegue em seu primeiro trabalho construir o clima certeiro em todas as cenas. É impressionante. Nada falta. Nada sobra. A direção dos atores e o tratamento das imagens é o ponto alto desse jovem diretor. A iluminação e a trilha sonora do grupo Grizzly Bear é linda e inspirada. Outras duas músicas também ganham destaque no filme, uma delas inclusive é cantada pelo próprio ator Ryan Gosling, já a outra de nome “You and Me” (cantada pelo grupo “Penny & The Quartets”) é usada como tema do casal. Aliás, essa canção é utilizada duas vezes no filme e impressiona a sensibilidade do diretor no tratamento dado a cada uma delas. É genial e dolorido. Demais.
Enfim, “Blue Valentine” é um daqueles raros filmes que tratam de relacionamentos de maneira adulta, sem os maneirismos do gênero. Não é um filme. É um soco em plena boca do estômago. “Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom.” Sim, Clarice Lispector estava certa: “a vida é um soco no estômago.” Sim.
PINA"... nem tem muito o que comentar. É o encontro de duas genialidades. Pina e sua dança. Wenders e seu cinema. Esses duas forças juntas resultam numa poesia que alcança o sublime. BRAVO!
O filme impressiona pelo minimalismo e pela retrato refinado do tempo como tempo. A fragmentação desses possíveis tempos que habitam um mesmo tempo cronológico é utilizado com extrema sabedoria. O prenúncio da tragédia que alterará o destino de todos está presente em que cada cena que é mostrada no filme.
O filme é surreal, delirantemente bem construído. Tem vigor, ironia, sarcasmo, uma estupenda e brechtiana trilha sonora e um desempenho impressionante do ator Tom Hardy que vive o protagonista.
Um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Genial. Matemático. Violento. Tenso. O filme é mix de referências que resultam em algo único. Estão ali David Lynch, Gaspar Noé, Wong Kar-Wai, Chan-wook Park e Quentin Tarantino. Ryan Gosling prova (mais um vez) porque é o melhor ator de sua geração, seu desempenho é brilhante. Assim como o de todo o elenco e direção. Sim. Estou impressionado. QUE FILME!!!! QUE FILME!!!
"Batalha no Céu". é um desbunde (literalmente) filtrado pelo olhar sensível do diretor Carlos Reygadas. A maneira magnífica com que o diretor captura o real é assombrosa. Sim. Todas as histórias mostradas pela curiosa câmera são passíveis de serem cinematógraficas. A estética, apesar de rigorosa, tem um quê de amadora, e isso não é nenhum demérito. O elenco (de não atores) apresenta um desempenho maduro e bem diferente do habitual. Sem maquiagem, sem nenhuma concessão àquilo que se convencionou a ser esteticamente bonito, mas ainda assim belo. Áspero. Duro. Um soco não no estômago, mas nas duas bolas do saco.
Reygadas nos questiona o tempo todo qual a nossa noção do belo, e quanto ao grotesco? É possível existir o lirismo no limite do pornográfico? Por isso, “Batalha no Céu” é um filme provocativo, mas não só. É um tratado sobre a vida contemporânea, com suas neuroses, dores, alienação, pequenas alegrias e prazeres e a culpa. Abrindo mão de um tom didático ou professoral, o diretor apenas mostra esses personagens chafurdados numa sociedade de consumo, onde tudo é passível de ser comprado, roubado ou negociado. E também por que não perdoado? Todos os personagens retratados pelo filme estão em busca de uma redenção que não vem. Que não virá. Nunca. São personagens desesperados em sua apatia. São suicidas em potencial. São morto-vivos. Zumbis. Numa sociedade toda ela composta por zumbis. Numa cidade toda feita contra eles. Estão perdidos. Desesperadamente perdidos. E não se encontram. A não ser furtivamente. No sexo. Ou no que resta do amor. Num fiapo de moralidade. Numa ascese impossível, utópica e alienada. O sufoco existe. É real. Palpável. O filme exala um desejo de beleza, uma vontade do sublime, mas que é cortada/estirpada/mutilada pela realidade. Que se apresenta sempre muito mais poderosa que qualquer outra coisa. O aspecto formal apreendido por Reygadas chama a atenção, mas, sobretudo, a aparência de realidade que encharca a tela a todo o momento. A cena em que acompanhamos Marcos levando a filha do general de carro pelas ruas da cidade é um exemplo disso. A câmera mostra os transeuntes, os outros motoristas, a conversa da menina com o namorado, o rosto impávido do condutor, a música que toca no rádio, o trânsito alucinante... Tudo. Nada escapa ao olhar do diretor. E no entanto (como espectadores) nos perguntamos: Como ele gravou isso? Essa cena foi ensaiada? Não? Foi gravada sem qualquer prévia do que se queria obter. O acaso? A sorte? Ou a técnica? É dessa contradição absurda que “Batalha no Céu” parece querer nos falar. A cena inicial em que uma bela garota faz sexo oral num homem obeso parece ser a própria materialização das contradições pretendidas pelo diretor. A trilha sonora também acompanha esse pensamento. A trilha é quase sempre grandiloquente, enquanto a cena mostrada é aparentemente banal. Para Reygadas não é só a cena que importa. Mas, o entorno. O que acontece fora da cena. O que não veríamos se não fosse pela câmera irrequieta, sempre a procura de algo. Do quê?
O cinema praticado por Reygadas é o desvelamento, acompanhamos aquelas almas desnudadas pelo olhar encardido da lente da câmera. A beleza surge manipulada. Dolorida. O desamparo é a constante. Também nós (espectadores e humanos) estamos desamparados. O que recebemos são apenas fragmentos de uma história. Migalhas de uma vida. Pedaços humanos despidos de pudor, mas não da culpa. A grande culpa. Soa sintomático que numa cena de sexo, a câmera fixe por alguns segundos no retrato do corpo de Jesus Cristo, que sangra, sangra, sempre. "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus", (Romanos, capítulo 3, versículo 23). Daí que Reygadas nos fala dessa natureza humana, pecaminosa e falha. Que sempre necessita da redenção. Mas antes há a morte. Pois o salário do pecado é sempre a morte. Sim. Ou não. Quem sabe, não é mesmo?
"É sempre assim. Morre-se. Não se compreende nada. Nunca se tem tempo de aprender. Envolvem-nos no jogo. Ensinam-nos as regras e à primeira falta matam-nos."
"O Cavalo de Turim" do diretor Béla Tarr materializa o apocalipse da natureza de forma avassaladora. A rotina. O barulho implacável do vento. O silêncio. A curta conversa antes de dormir. Repetições. Repetições. As pequenas mudanças de perspectivas da rotina. Nunca estar parado. Sempre fazer algo. Tudo está em ruínas. Tudo degradou-se. Nem metáfora. Nem antítese. E sim, elipse.
"Carnage" ou "O Deus da Carnificina", é uma obra limítrofe em todos os sentidos. É um filme executado como teatro. Ou um teatro gravado como filme. Os personagens estão todos de saco cheio de suas vidas medíocres, mas não sabem como sair dela. A ação se passa toda ela num único cenário. O tempo da ação dramática é o mesmo tempo do filme (salvo a cena inicial e a final). É um filme no limite. No limiar. Na corda bamba. Ali entra a comédia de humor negro e a tragédia nossa de cada dia.
Eu Matei Minha Mãe
3.9 1,3K"Eu matei minha mãe" é um parto sem anestesia... Um filme sobre a inconformidade de não se entender direito aquilo que se sente. Sobre a necessidade de romper o cordão umbilical. Sobre a impossibilidade de se tornar adulto sem matar (psicanaliticamente) os nossos progenitores.
Xavier Dolan é o idealizador do projeto, escreveu, produziu, dirigiu e é o protagonista do filme. Isso tudo tendo apenas 21 anos. É notável como consegue se sair bem em todas as suas funções. Xavier Dolan seria uma espécie de Vincent Gallo juvenil? O tempo se encarregará de responder essa pergunta.
Mas que em seu primeiro filme, ele alcança patamares bem interessantes, isso não se pode negar.
A história que o autor, produtor, diretor e ator quer nos contar é bem simples: o relacionamento conflituoso entre uma mãe e um filho. Tema bastante explorado não é mesmo?
Sim, o tema é bem corriqueiro, mas, o fato de ser quase autobiográfico faz com que o filme seja bastante diferenciado. Xavier Dolan se inspirou em sua história para contar essa narrativa, fato que poderia prejudicar e muito o filme. O que não ocorre. É um filme desabafo sim, porém, não é maniqueísta.
O começo é estranho, eu demorei a me acostumar. Estava achando tudo um pouco exagerado... não conseguia enxergar os personagens (mãe e filho), via apenas caricaturas deles. Tudo era meio forçado. E impossível de assumir um partido diante da problemática. No início, Hubert é um adolescente chato ao extremo e pedante. Sua mãe é igualmente chata e histérica . Impossível gostar de qualquer um dos dois. Eles se mereciam, isso era claro para mim. Aos poucos e bem sutilmente, o filme vai mostrando aquelas personagens fora do seu “habitat natural”, e é justamente nessa convivência com amigos e pessoas outras que vamos nos simpatizando com a proposta do diretor.
Hubert passa de garoto chato ao extremo e pedante para um artista sensível e apaixonado. Chantal passa de chata e histérica para uma mulher que dá um duro danado para se manter de pé, que tem seus erros como mãe, mas, que ama incondicionalmente o seu filho.
Quando chegou nesse ponto do filme, consegui finalmente entender a proposta do diretor. Era necessária que enxergássemos ambos, mãe e filho, como eles se viam. O diretor nos coloca dentro da zona de conflito. Parece que nós (espectadores) habitamos aquela casa e com isso o diretor faz com que sintamos na pele o quão insuportável é o clima ali dentro daquelas quatro paredes.
Fora dali, Hubert freqüenta a casa de seu namorado Antonin, lá tudo é mais claro, lá tudo é permitido. A Mãe de Antonin é o oposto da Mãe de Hubert, a primeira é chique, bem educada, liberal, já a segunda é cafona, mal educada e conservadora. Esse contato com uma nova “casa” faz com que Hubert deteste mais ainda sua mãe e sua casa.
É interessante notar como a direção de arte compõe com extrema precisão as duas casas. Enquanto a casa de Chantal é escura e com objetos extremamente coloridos e de gosto duvidoso, a casa de Antonin é clean, com quadros de pintores famosos e com um bom gosto absurdo.
Aliás, a direção de arte se faz notar em todas as cenas. É interessante a utilização de enquadramentos nas cenas em que duas pessoas estão conversando; na maioria das vezes tem um quadro acima da cabeça delas nessas conversas. Sempre uma pintura que defini muito bem ou a personagem ou o teor da conversa ou o clima da cena. Por vezes, o efeito fica repetitivo, mas, nada que tire o brilho da película.
Hubert extravasa a raiva que sente de sua mãe gravando pequenos depoimentos em sua câmera de vídeo. Esses depoimentos são exibidos num já manjado preto e branco. Opção estética um bocado forçada, mas, natural em se tratando de um diretor em início de atividade. Todo o filme é impregnado desse desejo de dizer muitas coisas em apenas uma única cena. É um filme barroco, digamos assim, no entanto, totalmente dentro da proposta do jovem diretor. Todo esse rococó encontra vazão na personalidade melodramática de Hubert, seus sentimentos ambíguos em relação a sua mãe é quem define toda a estética do filme. Hubert não gosta de sua mãe e sofre por não conseguir não amá-la. É um sentimento angustiante, que o sufoca totalmente. Só encontro paralelo dessa opressão sentida por Hubert com o livro “Carta ao Pai” do escritor tcheco Franz Kafka. Ouso dizer que se em 1919, Kafka tivesse uma câmera de vídeo, seus registros cinematográficos seriam bem próximos aos de Xavier Dolan.
Sim, “Eu matei minha mãe” é uma espécie de “Carta ao Pai” contemporâneo.
Kafka, porém, nunca enviou sua carta de quase 100 páginas ao destinatário (seu pai). A carta foi publicada postumamente é um dos relatos mais tristes de uma relação familiar. Kafka assim como o protagonista de “Eu matei minha mãe” sentia um misto de sentimentos por seu pai; ódio, admiração, inveja, sentimento de inferioridade.
Creio que assim como “Carta ao pai” esse filme canadense tenha como intuito decodificar e entender um pouco do processo mental pelo qual passam ou passaram e nesse “fluxo de consciência” alcançarem um entendimento do outro e selar uma possível paz entre ambos.
Lá pelas tantas do livro “Carta ao Pai”, Kafka escreve:
"Essa tua maneira de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que não tenhas a menor culpa em nosso alheamento. Mas também eu não tenho a menor culpa. Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida — que para isso estamos ambos velhos demais —, mas o abrandamento de tuas intermináveis acusações."
Lá pelas tantas do filme “Eu matei minha mãe”, a professora de Hubert (única que consegue entendê-lo por ser igualmente homossexual e ter tido conflitos com o pai no passado) o presenteia com um livro de Alfred Musset, escritor francês do século XIX, e recomenda que ele leia a última estrofe da página 218:
“Mãe, confesso ante a ti que as armadilhas deste mundo enganador, destroem a minha débil nau. Quero dever-lhe toda a minha felicidade pela ternura maternal.”
O garoto logo após sair da casa da professora, abre o livro e ao tomar conhecimento das palavras de Musset, parece adquirir pela primeira vez um pequeno ponto de reflexão e de diligência em relação à sua mãe.
É uma cena bonita, a propósito, todas as cenas que envolvem cartas ou leituras de trechos de livros são belas e simples. A direção opta por não colocar voz off e sim, um interessante efeito de escrita na própria tela. Fica bonito, engenhoso e simples.
Outro ponto a favor do filme é a deslumbrante fotografia que remete diretamente ao cinema do cineasta chinês Wong Kar-Wai, sendo possível também, encontrar uma certa saturação das cores quentes da primeira fase de Pedro Almodóvar.
No entanto, a influência mais direta é mesmo de Wong Kar-Wai, estão em “Eu matei minha mãe” a trilha sonora diferenciada e os belos planos em câmera lenta usados a exaustão pelo chinês. O efeito é belo e longe de parecer uma mera cópia. Isso não acontece, pois, esses efeitos redimensionam climas bem interessantes no filme de Xavier Nolan.
O conflito entre a mãe e o filho é exposto de maneira dúbia, alternando cenas de lirismo com violência verbal. É triste ver pessoas que se amam se maltratando tanto. Fiquei me perguntando o que levaria à esse beco sem saída?
Encontrei a resposta dentro de minha própria relação com meu pai, que sempre foi difícil e complexa. Pertencemos a gerações diferentes, encaramos o mundo de maneira diferente. Lembro-me que na idade de Hubert também tinha problemas com meu pai. Mas, que foram solucionados quando refleti que era a parte mais inteligente da história (no caso eu) que deveria tentar fazer algo para mudar. Deu certo. Não somos melhores amigos, mas aprendemos a nos respeitar. Pode parecer clichê, mas isso é fundamental.
Outra coisa que me ajudou, foi o fato de eu fazer teatro e ter como trabalho, observar e tentar entender o comportamento humano. Costumo dizer para meus atores ou alunos que antes de ser um bom ator que eles procurem ser bons seres-humanos.
É da minha natureza observadora não conseguir julgar alguém sem antes tentar entender os meandros daquela existência. Não que use disso para perdoar tudo e todos. Não. Mas, é que não acredito que alguém aja sem uma motivação para seus atos.
Acredito que seja esse o caminho que Hubert percorre durante o filme. Ele aprende a duras penas, que ele é a parte mais inteligente da história e que será ele quem terá que tentar mudar algo. A seqüência final é muito bonita e singela, sem entregar tudo mastigado ao espectador.
Todos os atores estão muito bem, mas o trabalho de composição de Anne Dorval (Chantal) é simplesmente poderoso. A atriz dá conta de todas as facetas dessa mãe pertubada.
Creio que não vou esquecer tão cedo a resposta dela à pergunta do filho:
"O que você faria se eu morresse hoje?”.
É claro que não vou colocar aqui a resposta, mas, confesso que cai numa crise de choro após a resposta da mãe.
Enfim, um filme honesto (o diretor em nenhum momento esconde suas referências culturais) que eu recomendo muitíssimo.
É um rito de passagem, não só para o protagonista Hubert, mas para todos os personagens do drama.
A carta que a professora escreve para Hubert vale como metáfora do próprio filme:
“Querido Hubert, você é um peixe de águas profundas. Cego e luminoso. Nada em águas turbulentas com a raiva da era moderna, mas com a frágil poesia de outro tempo.”
Deus da Carnificina
3.8 1,4K"Carnage" ou "O Deus da Carnificina" é uma obra limítrofe em todos os sentidos. É um filme executado como teatro. Ou um teatro gravado como filme. Os personagens estão todos de saco cheio de suas vidas medíocres, mas não sabem como sair dela. A ação se passa toda ela num único cenário. O tempo da ação dramática é o mesmo tempo do filme (salvo a cena inicial e a final). É um filme no limite. No limiar. Na corda bamba. Ali entra a comédia de humor negro e a tragédia nossa de cada dia.
Submarine
4.0 1,6K"Submarine" é um filme sobre o rito de passagem de um adolescente para a vida "adulta". Sim. O tema já foi explorado muitas vezes pelo cinema (e com ótimos filmes), mas esse tem um encantamento especial. Impossível assistir este filme sem se pegar pensando na própria adolescência. É uma delícia. Embora dolorido em sua essência. É como se visitássemos um lugar antigo (ou perdido de nós mesmos). Que ficou ali "encantado" num tempo e espaço outro. É uma viagem no tempo. Num passado onde tudo tinha proporções gigantescas. Onde não sabíamos como lidar com as nossas emoções, frustrações... e o que fazer com a angústia e o tédio?
“Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa, pra te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha”. (Caio Fernando Abreu)
Oliver Tate é o protagonista. Mas poderia ser qualquer um de nós espectadores. O filme é também nosso. Reconhecemo-nos naquela situação. Repetimos (em silêncio) para nós mesmo: também eu. Sim. Também nós. A escola. A crise no casamento dos pais. As pequenas (ou grandes humilhações) que passamos ou que fazemos os outros passar (para assim nos sentirmos parte de um grupo). A primeira paixão. A primeira namorada. O primeiro beijo. Os passeios ao lado dela. O cinema. As tentativas (frustradas) da primeira transa. A primeira transa em si. A cumplicidade. O fardo da cumplicidade. O medo de decepcionar o outro. A decepção. O fim. Ou o início. O fim. E o meio. Tudo tão previsível. Tudo tão igual. Tanto que o pai de Oliver lhe entrega uma fita cassete com músicas que ele ouvia quando estava apaixonado e no outro lado da fita, músicas que ele ouvia quando levava um pé na bunda. Sim. Normal. Você não vai se lembrar disso quando estiver com 38 anos. Será?
Oliver apesar de ser igual, é diferente. Ou melhor, singular. Lê livros de Nietzsche (embora não concorde com ele em tudo. rs rs rs), considera o “Apanhador no Campo de Centeio”, um dos melhores livros americanos já escrito. Leva a namorada para assistir “A Paixão de Joana D'Arc” do Dreyer. E gosta de imaginar como seria o seu próprio enterro. Sim, Oliver é excêntrico. E apaixonante, ao mesmo tempo. Sua falta de jeito para o mundo é absurdamente charmosa. Ele não se adequou. Ainda. É antiquado. Meio retrô. Perdido. Solitário. Mas com um enorme desejo de entender o mundo e as pessoas que o rodeiam. Sua missão não é nada fácil. Ele tem que se comportar como o namorado ideal e, além disso, salvar o casamento dos pais. Seus planos quase sempre dão errado. Mas é a tentativa que importa aqui. A inocência que habita Oliver é comovente. Tudo em si quer desabrochar. Conhecer. Ser. Tornar-se. O quê? Sempre é cedo demais para ser aquilo que somos. Tudo nos impede de existir plenamente. Abrimos mão de nós mesmos em troca de uma rotina e pseudo-segurança enganadoras. Família. Escola. Igreja. Televisão. Relacionamentos (ou aquilo que nos é vendido como relação amorosa). Tudo isso pouco a pouco vai nos afundado cada vez mais num mar metafórico (ou não). “O oceano tem 9,65 km de profundidade” nos informa o pai. Ali, a vida é impossível. Não há luz. A pressão é grande demais. Nem os peixes vivem lá. E os humanos simplesmente implodiriam se ali estivessem. Então, qual a saída?
Para Oliver é se imaginar sempre numa realidade totalmente desconectada. Para Jordana (a namoradinha), é tentar fazer com os outros, aquilo que ela não quer que façam com ela mesma. No fundo, ela é uma sentimental e morre de medo disso. Para os pais de Oliver, a saída encontrada é viver numa apatia implacável, onde nada, nem ninguém seriam capaz de tirá-los. A “traição” da mãe com o primeiro amor (que está morando de novo no bairro) é, na verdade, um desejo inconsciente (ou consciente, sabe-se lá) de voltar a um tempo que não existe mais. Um tempo do qual só restaram lembranças guardadas numa caixinha. Daí que “Submarine” revela-se muito mais que um mero filme sobre um adolescente. Não. “Submarine” é um filme sobre o tempo. Sobre a lenta passagem das horas (não a cronológica, mas a existencial). Daí que apesar de ser esteticamente belíssimo (com uma fotografia delirantemente plástica, com uma trilha sonora poderosíssima e com atuações excelentes), “Submarine” é um filme dolorido, pois nos confronta com aquilo que fomos, com aquilo que queríamos ser, e como aquilo que nos tornamos.
Lola
3.7 35 Assista Agora"Lola" filme do diretor filipino Brillante Mendoza é a radiografia da situação de duas avós numa jornada épica em que o amor pode ser também uma mercadoria.
Onde Vivem os Monstros
3.8 2,4K Assista Agora“Onde vivem os monstros” do diretor Spike Jonze é um filme que me deixou sem palavras.
É simplesmente maravilhoso.
O filme é baseado no livro de Maurice Sendak de 1963, um sucesso mundial (curiosamente no Brasil foi pouco lido) e tem pouquissimas páginas, dá pra “ler” em dois minutos.
Tanto no livro como no filme a premissa básica é contar a história de um menino muito inteligente, criativo e solitário que acha que sua família não gosta dele e então ele se “refugia” num mundo onde ele é o rei e, é adorado por todos.
Na realidade essa história (livro e filme) é a do rito de passagem da infância para o começo da adolescência do pequeno Max, é a história de como ele aprende a lidar com seus sentimentos, é a história de todos nós.
O filme é extremamente bem dirigido por Spike Jonze, que em nenhum momento trata a criança como “burra” ou “inferior”, muito pelo contrário.
Para contar essa história, o diretor faz uso de vários símbolos, imagens distorcidas, música cult e atores reais interpretando os monstros que o pequeno garoto encontra na ilha.
“Onde vivem os monstros” é um fábula e como toda boa fábula não exige explicações longas ou críveis, ou se crê naquilo que está se contando ou não se crê.
Sabendo disso, Jonze não se preocupa em tornar tudo palatável e assume os riscos de contar essa história tão rica e tão inteligente de uma maneira bem lúdica.
Logo nas primeiras cenas vemos o pequeno Max querendo brincar e sua irmã mais velha combinando de sair com garotos de sua idade, vemos o menino brincando sozinho e depois atacando os amigos da irmã com bolas feitas de neve, como represália ao ato do menino, os adolescentes destroem o iglu onde o menino gostava de brincar, ao ver destruído seu “mundo particular” Max chora e sua irmã entra no carro com os garotos e vai embora.
O menino então furioso entra no quarto da irmã, pula na cama dela e quebra um presente (um coração de papel) que ele havia dado para ela.
Logo de início também é apresentada cenas em que vemos o garoto exercendo sua criatividade, inventando uma história triste para a mãe e depois construindo uma cabana dentro de seu quarto. O menino chama então a mãe para ela ver a cabana, a mãe não vem (pois está de namorico com um homem no andar de baixo), é o que basta para que Max vista sua fantasia de lobo, desça as escadas, arrume encrenca com a mãe a ponto de mordê-la.
Max então foge para rua, corre durante um tempo, chega numa floresta, depois num rio, encontra um pequeno barco, entra, começa a remar e depois de um tempo (não delimitado pelo diretor, pode ser um dia, como vários) chega numa ilha onde encontra alguns monstros, que querem devorá-lo por ele não fazer parte do clã deles. O garoto, muito esperto, inventa uma história que os monstros não podem devorá-lo porque ele é um rei e tem muito poderes, os monstros ficam assustados e o proclamam rei deles.
É esse o roteiro básico do filme, que nas mãos de um diretor experiente e com toques de loucura e surrealismo funcionam muito bem.
Cada monstro da ilha tem uma personalidade muito bem definida e representam facetas da personalidade em formação do garoto Max.
Esses monstros são um show à parte, Jonze opta por colocar atores reais fantasiados de monstros, o que só aumenta o aspecto artístico/lúdico do filme (em tempo de filmes como “Avatar” e sua “realidade” em 3D ter um diretor que banque uma proposta dessas é um bálsamo para nossos olhos).
Os Monstros, apesar de serem bem fofos, (dá vontade levá-los para casa) são extremamente contraditório e violentos quando provocados e até nisso o diretor não facilita para as crianças, evitando a todo custo um didatismo bobo e oferecendo ao espectador personagens com densidade psicológica bem acima da média em se tratando de uma produção com um viés infanto-juvenil.
O exemplo mais bem acabado de complexidade é o monstro Carol (magistralmente “interpretado” pelo ator James Gandolfini ), que alterna momentos de extremo lirismo com violência assustadora, a voz do ator que faz Carol passa todas as emoções necessárias ao papel, ingenuidade, tristeza e poderio em situações das mais variadas.
O filme é de Max e Carol, chega a ser sintomático que o a garoto escolha esse monstro como o seu preferido, pois, Carol é o que melhor sintetiza as contradições de uma criança.
É mandão, quer manter todo mundo unido em torno de si, é ingênuo (em sua presunção de poder), é criativo (constroí um réplica linda da floresta em um lugar que era muito visitado pelos outros monstros e com o passar do tempo é deixado de lado) e acima de tudo é extremamente apaixonado por KW (monstro que representa a mãe do pequeno Max).
É desse material tão sublime que o diretor extrai cenas e situações maravilhosas, sem nunca cair no ridículo ou no óbvio.
Jonze apenas redimensiona a casa e família de Max na floresta e nos monstros, a relação conflituosa de Carol e KW é a síntese da de Max e sua mãe.
Na ilha, Carol briga com KW porque ela arruma dois novos amigos fora da ilha, Bob e Terry (duas engraçadas corujas), em casa Max briga com sua mãe por achar que ela dá mais atenção ao namorado e sua irmã.
É dessas analogias que pululam a todo momento na tela que o filme atinge dimensões bem maiores do que qualquer outro filme com essa proposta.
Jonze mostra a complexidade de ser viver em sociedade, das dificuldades de se proceder com justiça e de como ser autêntico e leal sem magoar os outros.
Como já disse, é uma fábula onde o maior dos questionamentos é: Por que fazemos mal às pessoas que mais amamos? e Por que temos a necessidade (sádica/masoquista) de destruir o que construímos de belo?
Não vou contar o final aqui, mas, acho que foi um dos que mais chorei desde que me conheço por gente, já assisti o filme duas vezes e é sempre o mesmo berreiro.
A primeiro vez assisti em casa no Pc e chorei tanto tanto na parte final que quase passei mal, isso sem falar na vergonha da minha irmã na sala escutando tudo.
A segunda vez foi ontem no cinema e novamente passei vergonha, chorei tão alto tão alto que tive que segurar o choro com a mão para evitar constrangimentos maiores.
Fomos em 4 pessoas e no final um dos meus amigos virou pra mim e disse “eu já vi você brigando no cinema, gritando com que está conversando na sessão, exigindo ingresso de volta porque o cara que faz a projeção tirou o filme no letreiro final, mas nunca te vi chorando tanto assim...”
Eu não falei para ele os reais motivos de tamanha lamúria da minha parte, mas, aqui pra vocês eu conto.
É que eu me identifiquei demais com um dos monstros do filme, quem me conhece saca logo de cara quem eu sou ali e esse espelho (que é uma das funções primordiais da verdadeira arte) me fizeram chorar tanto.
Não é fácil se ver refletido assim, principalmente na pele de um monstro, porém, garanto que a jornada deste estupendo filme vale muito a pena.
Além de tudo isso que falei aqui, o filme tem uma fotografia deslumbrante, uma trilha Karen O and the Kids bastante inspirada e não é nada óbvia e infantilóide e “atuações” convincentes de todos os monstros.
Enfim, um filme para a criança que todo mundo possui dentro de si....
Allegro
3.2 8Até onde o nosso passado pode ser definidor do nosso presente? Uma história mal resolvida pode anular tudo o que vivemos antes dela? Qual é o lugar do amor em nossas vidas? Todas essas questões parecem interessar o diretor dinamarquês Christoffer Boe. Em "Allegro", mergulhamos na personalidade ególatra de um pianista perfeccionista em busca de seu passado, de um possível amor fugidio e de sua alma. Um filme difícil, mas, absolutamente belo em sua frieza. A trilha sonora e a iluminação peculiar são os destaques. "Allegro" é um "Morangos Silvestres" (de Bergman) contemporâneo e bizarro.
O Futuro
3.5 155 Assista AgoraFoi com grande expectativa que assisti ao filme “O Futuro” da diretora Miranda July. Já tinha assistido o seu filme anterior (o excelente “Eu, você e todos nós”) e também já lido seu livro de contos (“É Claro que você sabe do que eu estou falando”) e gostado muito.
Miranda July é dona de um estilo único e absolutamente perceptível. Suas histórias de homens e mulheres comuns com dúvidas existenciais e altos toques de surrealidade me agradam e comovem. “O Futuro”, seu segundo longa-metragem é exatamente assim. Dessa vez, July foca a vida de um casal que estão juntos a mais ou menos uns cinco anos, logo no começo do filme eles decidem adotar um gato. O gato escolhido está com uma das patinhas quebradas e não pode ser adotado imediatamente. O casal precisa esperar um mês para poder levá-lo para casa. A iminência dessa chegada faz com que ambos questionem como será a vida deles agora com essa nova responsabilidade. Dito assim, o filme até parece “normal”, mas não devemos esquecer que isso é um filme de Miranda July e isso faz toda a diferença.
Para começar, a história é narrada pelo gato. E o gato que eles escolheram não terá muito tempo de vida. Irá morrer logo. Exceto se tratado com muito amor e carinho. Ai quem sabe ele poderá viver mais uns cinco anos, no máximo. A responsabilidade pela vida desse gatinho mexe com a cabeça de Jason e Sophie, que decidem assumir uma outra postura perante a vida dentro dos próximos 30 dias. Jason e Sophie começam uma jornada de autoconhecimento que poderá mudar o futuro de ambos para sempre. Está reconhecendo esse enredo de algum lugar? Sim. July parte desse tema bastante clichê do cinema para desembocar num outro lugar, muito mais profundo, melancólico e triste. Não vou contar mais do enredo, mas o fato é que a diretora consegue extrair dessa trama tão simples cenas de grandessíssima beleza.
Na verdade, July faz um filme sobre a escuridão que não se deve nem mesmo falar. Tanto Jason quanto Sophie são seres extremamente inadequados para o mundo que habitam. Ambos parecem ser meio incompetentes para a vida. Sim. Assim como Macabéa do romance “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, o mundo parece ser fora deles e eles próprios parecem ser fora de si mesmos. Falando em Lispector, Miranda July tem muito da escritora brasileira, sobretudo a utilização da epifania. Sim. Aquele momento banal em que de repente PIMBA tudo parece fazer sentido. July é mestra nesse tipo de sensação.
Um exemplo é a cena em que o casal combina um código caso eles venham a se esquecer um do outro. Eles pensam, pensam, pensam e nada parece fazer sentido caso um se esqueça do outro, até que chegam a conclusão que somente uma música poderia fazê-los lembrar um do outro.
Além desse aspecto epifânico o que mais me encanta nos trabalhos de July é a existência de um duplo. Sim. Somos mais a imagem que refletimos do que aquilo que verdadeiramente pensamos ser. Tem uma cena em “O Futuro” que deixa isso claro. Sophie cansada de fazer uma coreografia de dança que sonha em colocar no Youtube e alcançar muitos acessos observa a própria imagem na tela do computador. A estranheza de existir é latente. Sophie existe. Aliás, a utilização do youtube entra como possível norte para uma existência despida de sentido e significado. Caberá a essa ferramenta social o papel de criação e manutenção dos desejos humanos. Até que surja algum outro vídeo mais interessante e nos roube a atenção. O descartável e aquilo feito para durar e ser lembrado até mesmo depois do esquecimento é colocado em xeque. July utiliza-se disso como uma metáfora dolorida da condição humana e ainda consegue extrair dos espectadores semi-sorrisos e alguma lágrima. Definitivamente não é pouco.
A Árvore da Vida
3.4 3,1K Assista AgoraO filme "A Árvore da Vida" não se insere num mero "gostar ou não gostar?". É mais que isso. É além. Sua dramaturgia fragmentada busca nos confrontar com valores dicotômicos: o SILÊNCIO/AUSÊNCIA de DEUS "versus" o BARULHO/PRESENÇA de DEUS.
É um filme absolutamente pessoal, onde cada espectador é responsável por aquilo que vê-ouve-sente-reflete. Não há como fugir. Você vai ter que participar do filme. De alguma maneira. E vai ter que se colocar ali. Entendeu? Não apenas sentar a bunda na cadeira do cinema e ter tudo mastigado e ou assistir algo que não tenha a ver contigo. Nãooooooooooooooooooooooooooooo!
“A Árvore da vida” não é esse filme. Esqueça. Nós (os espectadores) seremos tratados como indivíduos e seremos os co-realizadores do filme. Sim. O diretor Terrence Malick faz uma obra onde o espectador (indivíduo) deve manter uma construção livre e ativa em relação ao filme. Sim. Ao retratar o cotidiano de uma família nos anos 50, o diretor também reconta a origem do próprio Universo. Como se ambas as coisas por mais contraditórias que possam parecer, fossem indissociáveis.
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”
Impossível não lembrar desse texto de Clarice Lispector. Sim. O Mundo começou com um sim. Sim. Sim. As imagens cósmicas brilhantemente mostradas no filme refletem esse pensamento. O que assistimos ali é a resposta de uma molécula para a outra: SIM!
A ruptura com o tempo cotidiano se dá justamente quando é mostrado o nascimento de um dos filhos do casal. SIM!
Mais uma vez penso em Clarice:
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?.”
Sim. Essa é a provocação que Malick nos faz. Como contar uma história com um começo, um meio e um fim pré-determinados se as coisas acontecem antes de acontecer? Como? Hein? Não é possível. E é exatamente por isso que o diretor usa e abusa de sequências absolutamente delirantes em que “Bing Bang”, células e dinossauros recontam o SIM, o “começo” de tudo.
Mas Malick não explica nada, não faz um filme tatibitati. Não. Ele mostra. E nos questiona. Talvez o tema maior do filme seja o tempo. Ousaria dizer: TEMPOS. Sim. No plural. Em “A Árvore da Vida” vários tempos habitam o existir. É dessa relação concreta/complexa que brota o maior questionamento do filme. Qual é o meu tempo? Malick mistura cenas banais com outras oníricas. Elas não se misturam. Muito menos se completam. Não. Permanecem autônomas. Co-existindo. Assim como o tempo em que “perdemos” vendo-as. Essa desagregação temporal proposta pelo diretor, perturba nossos sentidos e também nossa expectativa. O filme não conta uma história. Conta várias. Depende do que você vê, do que você tem suporte para ver.
Eu, por exemplo, vi muito da peça “Álbum de Família” do gênio Nelson Rodrigues nesse filme. Assim como nessa peça, aquela família retratada em “A Árvore da Vida” também parece ser a primeira e última. Assim como na peça, o amor e ódio teriam que nascer entre eles mesmos. Sim. A fala do personagem Edmundo para a mãe na obra de Nelson, diz muito sobre o meu entendimento do filme:
“Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.
Sim. As relações humanas surgem ali sufocantes, castradoras, contraditórias. Jack, o filho “rebelde” expõe toda a dor dessa relação quando diz (em voz-off) que aquele pai e aquela mãe habitarão sempre sua maneira de pensar e agir e que a dúvida entre qual comportamento seguir será eterna. Sim. Sempre haverá o nunca. Sempre haverá o sim. Basta escolher. Agora vem a pergunta crucial/cruel: Como escolher?
"Pai. Mãe. Vocês estão sempre lutando dentro de mim. Sempre estarão. "
Malick não coloca a questão apenas no âmbito familiar, mas a redimensiona. Aquela família ali é metonímica. Aquele pai, aquela mãe e irmãos representam à maneira como Malick enxerga a existência humana. Eu vi ali naquela relação algo de divino/profano. Como se aqueles personagens fossem representações bíblicas. O filme está cheio delas. Desde a frase que abre o filme até citações ditas pelos personagens.
“Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre o que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra angular? Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?”
Aliás, essa frase do Livro de Jó é importantíssima para se entender o contexto do filme. Aquela família tão religiosa, tão temente a Deus será testada. Assim como Jô. Um dos filhos do casal morrerá. A fé deles será questionada.
Durante e após o filme, uma teoria peculiar foi se sedimentando em mim. Para mim, aqueles três personagens: Pai, Mãe e Filho “Rebelde” representariam entidades bíblicas. Eu explico: O Pai seria um Deus do Antigo Testamento. Punitivo. Autoritário. Ególatra. A Mãe seria a personificação de um Deus do Novo Testamento. Libertário. Amoroso. E o filho “rebelde” seria algo como Satanás. Sim. O anjo mais bonito do céu. Aquele que tentou ser igual a Deus. Ultrapassa-lo. Aquele que é responsável por tentar Eva a provar do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, a árvore da vida. De alguma maneira, aquele filho representa esse conhecimento. Sua dor, indecisão e frustração na fase adulta mostram que o fardo de provar do fruto dessa árvore é pesado demais. A experienciação vivida pelo filho mais velho é a de toda a humanidade. Sim. Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Somente o caminho ensinado pela mãe pode remir Jack (humanidade).
Enfim, “A Árvore da Vida” não é um filme. É uma experiência. Que propicia inúmeros pontos de vista. É uma obra aberta. Difícil. Lenta. Escorregadia. Mas absolutamente genial. A direção de Terrence Malick é soberba e segura. A iluminação é um deslumbre. Assim como a trilha sonora. Sim. É um filme sinestésico. Em que os sentidos do espectador são constantemente “despertados”. É uma obra única para espectadores também únicos. Malick inclusive usa um recurso bastante usado em seu filme, mas que obtém um resultado comovente. Os personagens falam muito em voz-off. Essas falas altamente questionadoras refletem o interior daquelas personagens. É como se elas estivessem rezando a um deus surdo-mudo. Como se elas tivesses eternamente esperando um possível Godot. Que não vem. Que não virá. Talvez. Nunca. “Quem somos nós pra você”? se questiona a Mãe. “O que eu quero fazer eu não posso. Faço o que eu destesto” balbucia o Filho. E o que ele deseja? Matar esse pai que o reprime.
”Seria tudo melhor se em cada família alguém matasse o pai!” diz Edmundo na peça “Álbum de Família”. Malick assim como Nelson não trata apenas do desejo, mas também do contra-desejo. “De quem você gosta mais?” pergunta Jack para sua mãe. O complexo de Édipo mina a relação pai e filho. O desejo absurdo de superar aquele pai faz com que Jack se torne um homem bem-sucedido, mas mesmo assim frustrado. Por quê? A chave de uma possível resposta talvez esteja numa cena comovente em que pai e filho quase resolvem o conflito existente entre eles. O sofrimento existe porque aquele garoto adquire a consciência de que se parece mais com o pai do que com a mãe. Esse estar cônscio de que é parecido com aquilo que lhe amedronta é um fardo dolorosamente pesado para o garoto. Novamente, só os ensinamentos da mãe poderão remir Jack.
Daí que a imagem de um imenso dinossauro deixando de atacar um outro de tamanho menor, talvez tenha algo maior para nos comunicar. Ou não. Talvez. Sim. Talvez nós sejamos esse dinossauro pequeno que é poupado num gesto de extrema compaixão do dinossauro imenso. Ou não. Talvez. Sim.
“E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Eu sei. Não se pode dar uma prova da existência daquilo que é mais verdadeiro, o único jeito é acreditar. Acreditar chorando.”
Sim Clarice. Sim Terrence Malick. Sim. Ainda é tempo de morangos. Sim. SIM. S-I-M!
Reconstrução de um Amor
3.8 23A primeira cena do filme “Reconstruction’ (no Brasil traduzido como “Reconstrução de um amor") mostra um homem sob uma luz “teatral”. Ele fuma. De repente, ele faz uma mágica. O cigarro começa a flutuar. Uma voz off anuncia:
“É sempre assim que termina. Um pouco de magia, um pouco de fumaça. Algo flutuando. Mas não funciona sem um empurrão necessário. Um pouco de risadas, um homem e uma mulher bonita. E amor. Vamos recomeçar. No começo, um homem sozinho. Não, ele não está sozinho. Ainda. Esse é o primeiro passo. O homem. Logo vêm as risadas. A mulher. O amor. Olhe para ele. Podemos começar assim, embora não seja assim que começa. Por isso, fique atento. É importante, acredite. “
Sim. É importante ficar atento. O filme é todo cheio de digressões temporais. Mais sugere do que mostra. Em suma, cinema sensorial. Ou toca. Ou não toca.
Eu gostei. E muito. O filme não é sobre o amor. Não. E talvez isso faça toda a diferença.
É sobre o cinema. Sobre como construir uma história. Como contar essa história. Que sim pode ser uma história de amor. Também.
O filme nos mostra o começo e o fim dessa história, de maneira “bagunçada”, estilizada e extremamente engenhosa. Um homem encontra uma mulher num bar enfumaçado e se apaixona por ela. Clichê, não? Esqueça. Em “Reconstruction”, essa história é esgarçada, esticada ao máximo. Utilizando-se de cenas aparentemente repetitivas, o diretor dinamarquês Christoffer Boe reflete sobre o sentido das vivências que se “repetem”. Algo muito próximo ao defendido pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Sim. O Eterno Retorno. Nessa teoria tudo absolutamente tudo vai e retorna sempre.
Conceitos como criação e destruição, amor e ódio, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal, belo e feio são apenas faces de um mesmo jogo “perpétuo”. A realidade não faz sentido.
E é exatamente por isso que o alerta do narrador do filme faz muito “sentido”:
“Sei que não devia mencionar, mas o faço mesmo assim:
Lembre-se: tudo é apenas um filme. Uma construção. Mas de todo modo, dói.”
Sim. Essa é a função da arte. Existir como meio de transubstanciar a vida. É ficção escancarada. Mas mesmo assim sugere a vida. O jogo entre o filme e o espectador é aberto. E sobretudo permiti ao espectador o livre pensar. O enredo contêm “furos”. O espectador terá que preencher essas lacunas. A memória afetiva do espectador é ativada pelas cenas em tom quase sempre sublime. É um filme extremamente contemporâneo. A história contada por ele não é o mais importante. E sim o como contar essa história. Que elementos usar. A cena será lenta ou acelerada? Em preto e branco ou colorida? Terá música ou será muda? É desse jogo escancarado que brota a maior qualidade desse filme. E também seu maior calcanhar de Aquiles. Pois o espectador médio não está acostumado com esse tipo de narrativa. Estamos chafurdados num aristotelismo primitivo. Sim. Ainda no século XXI as histórias precisam fazer “sentido”. Precisam de um começo, um meio e um fim pré-determinados. Daí que “Reconstuction” não nos oferece nada disso. É cinema cabeça. Sim. Se você não gosta desse tipo de cinema então, fuja como o diabo da cruz desse filme. Agora se você curte, te garanto que serás recompensado com um filme poderoso. Uma bela reflexão sobre o homem. Sobre o cinema. Sobre o Amor.
A Garota da Fábrica de Fósforos
3.9 161 Assista Agora"A Garota da fábrica de caixas de fósforo” do diretor finlandês Aki Kaurismäki é uma fábula moderna sobre a condição da bondade.
Sim. Assim como “Cinderela”, “Branca de neve e os setes anões”, “Rapunzel” e tantas outras obras consideradas infantis que retratam personagens bondosos sofrendo nas mãos dos maldosos, para só lá no final aparecer um príncipe encantado e livrá-las de todo o mal. Amém. Não. Em “A Garota da fábrica de caixas de fósforo” não há espaço para esse maniqueísmo e muito menos para um final feliz. Não.
Afinal, como exercer a bondade num mundo predominantemente mau?
Íris é um garota que mora com os pais numa casa bem humilde. Ela trabalha numa fábrica de caixas de fósforo e todo o dinheiro que ganha, entrega nas mãos dos pais. Ela cozinha, lava e passa a roupa enquanto seus pais assistem o noticiário. Às vezes, ela sai para dançar. Só que nunca é escolhida por ninguém para o grande baile. Até aqui se passaram aproximadamente treze minutos e nem uma só palavra saiu da boca desses personagens. O diretor Aki Kaurismäki demonstra um domínio absoluto do tudo aquilo é silenciado. Não é um silêncio de filme mudo. Muito pelo contrário. É um calar-se. Como se algo ao ser expressado pudesse fazer ruir com o mundo todo. Kaurismäki apresenta um mundo maquinal, frio e miserável. A cena de abertura é uma demonstração genial desse ponto de vista adotado pela direção. Nela, vemos inúmeras máquinas trabalhando na fabricação das tais caixas de fósforos do título. O processo é mostrado por inteiro. Quando as caixas estão prontas, embaladas e seladas, eis que surge Íris. Ela também é uma parte da engrenagem mecânica da fábrica. Sim. Ela também é uma máquina. E é apenas mais uma. E talvez seja até mais insignificante e dispensável do que as outras máquinas. Sim. Assim como Macabéa de “A Hora da Estrela”, Íris “nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”. Um belo dia, após ser dispensada pelos homens no baile, ela intui que o motivo de tal rejeição seja suas roupas, e em posse do salário que acabara de ganhar, compra um belo vestido novo. Ao chegar em casa com o vestido, apanha do pai e é obrigada a devolvê-lo pela mãe. Ela não cumpre o desejo da mãe e vai para o baile com o vestido novo. Lá é cortejada por um homem mais velho. Dança com ele e até mesmo aceita o convite para conhecer a casa do tal homem. Lá, após manter relações sexuais com ele, é tratada como uma prostituta. Sim. Ele é casado e não quer nada com ela. “Se acredita que há algo entre nós dois, está muito enganada. Nada me encanta tão pouco quanto o seu amor. Agora, deixe-me”. Sim. Mais uma rejeição. O problema não é o vestido. É ela. “No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada”. Sim. Novamente Clarice. Novamente Macabéa. Mas não só. Íris e sua procura ingênua pelo verdadeiro amor encontram parentesco em Cabíria do filme de Fellini. Já a decisão moral tomada pela personagem depois de tantas rejeições é parecida com a de Chen Te, protagonista da peça “Alma Boa de Setsuan” do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. “Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel ?” indaga a personagem brechtiana.
Tanto na peça de Brecht quanto no filme de Kaurismäki, o que fica claro é que a pessoa boa para sobreviver precisa colocar uma máscara de maldade e agir de modo coerente com esta faceta. Sim. Numa sociedade capitalista, maquinal e fria, a bondade é impossível. E o amor nada mais que uma mercadoria. “Quem poderá por tanto tempo recusar a maldade quando morrem os esfomeados?” Sim. Há alguma coisa que não vai bem no nosso mundo. Afinal, que vida é essa? “Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?” E o grito fica parado no ar. Sim. Todas essas personagens (Íris, Cabíria, Macabéa, Chen Te) não são satisfatórias. A verdade não está nos filmes, nos livros, nos palcos. Não. Está na vida real. É preciso que o espectador/leitor tire suas conclusões e aja. “Prezado público, vamos busque sem esmorecer! Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver!”
Sendo assim, o filme não termina nunca. Nós (espectadores) somos também Iris, Cabíria, Macabéa e Chen Te tentando sobreviver num mundo insensível, miserável, cruel e injusto.
“O homem sabe roubar, sabe matar.
Mas tem um defeito:
Sabe pensar”.
Mais uma vez Brecht nos provoca, nos inquieta. Sim. Se cabe ao homem bom vestir a máscara da maldade para viver num mundo mau, como fica a consciência dele? O que fazer então? Cruzar os braços? Bater a cabeça até sangrar? Dar a outra face? Calar? Gritar? Olho por olho, dente por dente? Metralhar todo mundo? Dar veneno de rato para quem nos rejeitou?
São possibilidades. Inúmeras.
Mas, lembrando: o filme nunca acaba quando termina.
Como já disse: “A Garota da fábrica de caixas de fósforo” é uma fábula moderna. Uma fábula desgraçadamente trágica.
Em um Mundo Melhor
3.9 317“Se alguém ferir seu próximo, deixando-o defeituoso, assim como fez lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Assim como feriu o outro, deixando-o defeituoso, assim também será ferido.” [Levítico, capítulo 24, versículo 19-20]
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” [Mateus, capítulo 5, versículo 38-41]
A diretora dinamarquesa Susanne Bier parece ter se inspirado nesses dois textos bíblicos para escrever o roteiro de "Hævnen", seu novo filme.
"Hævnen" que na tradução do dinamarquês para o português seria “Vingança”, aqui recebeu o nome de “Em um mundo melhor”. Tradução equivocada e desprezível, que muda todo o sentido da obra.
O roteiro é absolutamente intrincado e multifacetado.
O filme conta a história de duas famílias, dois países, dois continentes, dois garotos, dois pais.
É um filme tenso, melodramático, catártico e genial. Um soco bem forte no estômago.
A primeira família é composta por Anton, que é um médico que trabalha na África, sua função ali é salvar garotas que são violentadas pela gangue de um tal de “Machão”.
Anton é sueco e possui dois filhos com Marianne. O Casal está em crise no casamento. Estão se separando. Elias, o filho mais velho do casal, é um garoto constantemente humilhado e perseguido na escola por gangue juvenil.
A segunda família é composta por Claus e Christian. Pai e filho. Quando o filme começa, a família encara a dor da perda de um ente querido. A Mãe de Christian morreu de câncer. O garoto nutre uma raiva em relação ao pai, por achar que ele desejou a morte de sua mãe.
Elias e Christian passam a estudar na mesma escola.
Logo no primeiro dia de aula, Christian vê Elias sendo agredido e toma as dores dele. Os agressores batem em Christian e ele revida no dia seguinte de forma extremamente violenta. Sim. Christian ensina a Elias, que a lei do talião (olho por olho, dente por dente) é a melhor saída. Sim. A técnica parece dar certo, pois os ataques diários param. Os dois viram amigos.
Um dia, Anton leva os garotos para passear num parque. Lá, o irmão menor de Elias se envolve numa briga com um outro garotinho. Anton separa a briga. O pai do outro garoto reage de forma violenta e dá um tapa na cara no pai de Elias. Ele não revida. Pega os filhos e vai embora dali.
Christian tenta colocar na cabeça de seu amigo Elias, que o pai dele deveria ter reagido.
É a partir desse momento, que o filme de Bier ganha contornos outros.
De repente, não mais do que repente, a situação se encalacra e a diretora nos questiona:
- Há alguma forma de violência física que seja justificável?
Como já disse nesse mesmo blog, a diretora Susanne Bier é uma mestra do cinema melodramático, seus filmes quase sempre giram em torno de grandes tragédias e de reviravoltas aparentemente mirabolantes.
Sim. Esse é o cinema praticado pela dinamarquesa. É só assistir seus filmes anteriores que terão a prova do que falo. “Corações Livres”, “Brother” e “Depois do Casamento” são a justa medida desse cinema. Filmes em que os personagens estão sempre tendo que lidar com grandes tragédias ou acontecimentos que os tirem de uma suposta normalidade. Sim. Essa é Susanne Bier.
Li algumas pessoas dizendo que nesse novo filme, a diretora produz uma trama rasa, com personagens estereotipados. Ora, acusação absurda e ingênua. Recomendo que essas pessoas estudem um pouco mais sobre o que é o melodrama, para depois abrirem a boca para dizer tal barbaridade. Estudem Diderot, queridos!
O que Susanne Bier faz em "Hævnen" é um verdadeiro tratado do mundo contemporâneo. É característica do gênero melodramático essa tensão entre dois “mundos”. É também comum nesse gênero que o caráter dos personagens seja bastante definido e de fácil assimilação pelo público. É desse embate entre vícios e virtudes que brotará a catarse.
Sim. Bier faz exatamente isso. Mas, vai além. Sim. Bier é um diretora pós-melodramática. Sim. A diretora se utiliza dessas técnicas do melodrama para fisgar o espectador. Para logo depois, embaralhar as cartas e balburdiar com as certezas do espectador. Isso é genial! E Bier faz isso em todos os seus filmes de uma maneira única, segura e nada forçada. Somado a esse talento, a diretora possui um outro. Esse muito mais difícil de ser encontrado no atual cinema mundial. É uma exímia diretora de atores. É impressionante o desempenho de seu elenco. Sempre. No caso de "Hævnen", isso fica ainda mais evidente, já que o filme é protagonizado por duas crianças. Sim. Bier consegue extrair atuações contundentes desses dois garotos. É de cair o queixo. Literalmente.
Enquanto assistia o filme, foi impossível não lembrar do garoto Casey Speaks, que recentemente teve um vídeo em que aparece reagindo às agressões físicas de um “gangue” na escola. Rapidamente o vídeo ganhou a rede. Todo mundo assistindo, comentando, aplaudindo a atitude de Casey em revidar aquilo que agora é chamado de “Bullying”. Uns dias se passaram e um outro vídeo caiu na rede. Dessa vez, era uma entrevista de Casey Speaks para uma emissora de tv. Na entrevista, o garoto comenta que era constantemente humilhado por ser gordo. O “bullying” aconteceu desde o primeiro dia de aula. O garoto perdeu todos os amigos por causa disso. Ficou sozinho e vítima fácil para o abuso de poder. Revela que pensou em suicídio, mas que a amizade com sua irmã mais velha, impediu a consumação do ato. A entrevista é comovente. Triste mesmo. Chorei assistindo a entrevista. Chorei porque habito um mundo onde as pessoas são humilhadas por apenas serem o que são. Isso é lamentável!
E o tal do “bullying” acontece em todos os lugares, em todas as faixas etárias, sem exceções. O “bullying” acontece por você ser gordo demais, magro demais, alto demais, baixo demais, pobre demais, rico demais, feio demais, por sua orientação sexual ser diferente das dos demais e assim vai... tudo é motivo para aquele que quer humilhar o outro. Mas fico pensando cá com meus botões (que nem os tenho): O que leva uma pessoa a querer humilhar a outra? Existem pessoas “más” por natureza? Ou seria a própria sociedade que forjaria um comportamento dominante como forma de sobrevivência? Por que aplaudimos a violência do garoto que revida aos ataques, mas repudiamos a do garoto que provoca? Uma justifica a outra? Uma é mais aceitável do que a outra?
É exatamente nesse contexto que o filme de Susanne Bier se insere.
E se o pai que apanhou do homem na praça o procurasse novamente? E se ele apanhasse mais e não reagisse? E se o tal “Machão” lá da África ficasse doente e dependesse de um médico para viver? E se o médico atendesse o homem que é o responsável direto pela morte de tantas garotas? E se os meninos decidissem se vingar do homem da praça? E se? E se? E se?
Assistam "Hævnen" urgentemente!
RECOMENDO!
Precisamos Falar Sobre o Kevin
4.1 4,2K Assista AgoraIncrível o trabalho da diretora Lynne Ramsay na adaptação do livro homônimo. O filme não tentar ser apenas servil à obra que lhe deu origem. É um trabalho depurado e sensível que não tenta em nenhum momento competir com a grandiosidade do livro, e muito menos se torna refém (ou menor) que o livro. É uma obra autônoma. Poderosa. E diz muito sobre os nossos tempos sem sol.
Lionel Shriver (a autora do livro em que o filme se baseia) organiza-o de forma epistolar. Eva Khatchadourian escreve cartas para o marido Franklin na tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Quando o livro começa, o crime já ocorreu, Kevin já está preso e Eva já está separada de Franklin, sem dinheiro, morando numa pequena casa no subúrbio.
Eva escreve cartas para o marido onde analisa tudo, desde a vida antes de Kevin nascer, até o momento que mesmo a contragosto decide ceder à pressão do marido e ter um filho.
Eva não quer ter esse filho, não quer dividir atenção do marido com nenhuma outra pessoa, quanto mais uma criança. Além disso, seu trabalho exige que ela fique longas temporadas fora do país. Temendo perder o marido, que anseia desesperadamente por um filho. Eva engravida. E é aqui que o conflito começa.
“O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então por que motivo retiramos todas as nossas fichas e pusemos nessa aposta ridícula de ter um filho?”
Sim. Para Eva uma criança significa barulho, sujeira, restrições e ingratidão. E é mais ou menos isso o que ela recebe. Acompanhamos tanto no livro quanto no filme sua total inabilidade com aquela criança. Vemos também suas tentativas frustradas e a disputa que surge entre ela e o garoto pela atenção do pai.
“A maternidade me arrastara para o que em geral consideramos as questões mais básicas: comer e cagar.”
Eva não consegue gostar de Kevin e consequentemente Kevin também não consegue gostar da mãe.
“Você nunca quis me ter, não é mesmo?”, pergunta Kevin. “Sinceramente, Kevin... será que você iria querer ter você? Se houver alguma justiça nesse mundo, um dia desses você ainda vai acordar com você mesmo num berço ao lado de sua cama.”, responde a mãe.
E é assim relembrando o passado que Eva vive o presente. As brincadeiras. Os olhares. As afrontas. O desespero. Todos os componentes são apresentados ao leitor/espectador. O jogo de gato e rato entre aquela mãe e seu filho leva-os a um estado de dependência extrema um do outro. Odeiam-se, mas precisam conviver na mesma casa e Evan precisa encontrar algum elo com aquele garoto. Kevin percebe que sua simples presença provoca inquietação na mãe e usa disso para provocá-la o tempo todo. Eva sempre cai. A angústia latente de não saber lidar com o próprio filho. O desejo absurdo de matá-lo e ter novamente o marido só pra ela. Aqui não é nem a vida que poderia ter sido, mas a vida que foi e que ela quer ter de volta. Na frente do pai, Kevin é um anjo, o que aumenta a distância amorosa do casal.
“A mamãe era feliz antes que o Kevin mijão viesse ao mundo, você sabia disso? Agora a mamãe acorda todo dia querendo estar na França. A vida da mamãe é uma droga, você não acha que a vida é uma droga? Você sabia que em certos dias a mamãe preferia estar morta? Para não escutar você guinchar nem mais um minuto, tem dias em que a mamãe gostaria de pular da ponte do Brooklyn.”
Aos poucos vamos tomando conhecimento (sempre pelo ponto de vista da mãe) das pequenas maldades que Kevin comete. Sim. Kevin começa apresentar defeitos e Eva se considera culpada. Em alguns poucos momentos, nasce a surpresa dos pequenos carinhos. Kevin fica doente, abaixa a guarda. Eva também. Mas a trégua dura pouco.
Na realidade o livro/filme não é sobre um garoto que mata sete pessoas na escola. Não. É sobre a culpa que Eva sente pelo ato do filho. É sobre uma mãe que não queria ter tido filhos. É sobre a angústia e a solidão que ela sente desde o dia em que o filho nasce. E de como tudo isso amplia até a potência máxima quando o filho comete o assassinato em série.
“No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações – não só com o sofrimento, mas também com a derrota.”
Sabiamente a diretora Lynne Ramsay utiliza-se da cor vermelha para explicitar logo de cara que seu filme é sim sobre sangue. Não o da morte, mas o que gera vida. A seqüência inicial delirante mostra o quanto Eva está mergulhada na cor vermelha até o pescoço. Os vizinhos também fazem questão de não deixá-la esquecer o inesquecível. Sua casa e seu carro são constantemente tingidos de vermelho, numa espécie de via-crúcis do corpo e da alma. As constantes humilhações. Os encontros fortuitos com os parentes das vítimas numa inocente ida até o supermercado. Os olhares de reprovação.
“A culpa confere um poder espantoso. E simplifica tudo, não só para os espectadores e vítimas, mas, sobretudo, para os culpados. Ela impõe uma ordem à escória. A culpa ensina uma lição muito clara da qual outras pessoas talvez possam obter consolo: se ao mesmo ela não..., e com isso torna a tragédia evitável.”
Eva é digna na dor. Resignadamente assume o papel que Kevin lhe delega no espetáculo que ele cria.
“Num país que não sabe diferir fama de infâmia, obviamente a primeira parece mais fácil de ser atingida.”
Kevin também herda essa característica da mãe e não se dispõe a sofrer em público. Pelo contrário. Parece gostar da fama que adquire. “Não estou fazendo papel nenhum. Eu sou o papel. O Brad Pitt é que deveria me representar” diz Kevin para a mãe numa das visitas que ela faz para ele na prisão. O certo é que cada injúria atirada na direção de Kevin seu ego parece inflar mais e mais. Ele gosta de ser visto como a Encarnação do Mal.
Aliás, um dos principais talentos de Lionel Shriver nesse livro é mostrar abertamente o fascínio que o mal exerce em nossa sociedade. Kevin sabe disso. E manipula muitíssimo bem a situação toda.
Guy Debord em seu livro mais famoso “A Sociedade do Espetáculo” fornece a chave para o entendimento desse fascínio. Sim. Vivemos numa sociedade toda ela espetacularizada e a resposta a isso tudo também tem que ser “espetacular”.
"O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Kevin aprende que para viver nessa sociedade é preciso sustentar a própria história e é exatamente isso que faz desde criança. O depoimento que dá para uma rede TV deixa explícito tanto o ponto de vista de Kevin quanto o posicionamento da autora. Ao ser perguntado sobre as motivações do crime, ele responde:
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
Pronto, a chave para um possível entendimento não mais do livro e nem do filme, mas de uma sociedade como um todo reside nessa frase do Kevin.
Lionel Shriver apresenta em seu livro um assombroso acerto de contas, não apenas de uma mãe, mas de um país, de uma sociedade toda ela culpada, toda ela suja de vermelho. Eva sobrevive. É o relato dela que lemos/vemos. Ela e Kevin são os únicos “sobreviventes” dessa tragédia. A pergunta que nós (leitores/espectadores) nos fazemos é: Por que Kevin não matou a própria mãe? O garoto dá a resposta: “Quando a gente monta um show, não atira na platéia”.
Lynne Ramsay não faz por menos. Seu filme é perturbador e extremamente bem conduzido e ainda consegue extrair interpretações grandiosas dos garotos que vivem Kevin (tanto o que faz na infância, quanto Ezra Miller que vive-o na adolescência), mas o filme sem sombra de qualquer dúvida é de Tilda Swinton que nos mostra não uma interpretação, mas um dilacerar de alma. Seu trabalho é brilhante, sensível e inteligente. Uma das melhores interpretações do ano num dos melhores filmes do ano. A música alegrinha de comercial de margarina que acompanha o filme nos faz pensar que esse esforço hercúleo para ser feliz (ou aparentar uma suposta felicidade para os outros) talvez desemboque nesse beco sem saída que é viver. O branco do final do filme se contrapõe às variações do vermelho que estiveram presentes o tempo todo.
Afinal o que significa essa mudança? Não sei. Tenho dúvidas. Mas aquele branco cegou-me os olhos. Talvez seja isso. Sim. Ou não. Dizem que a cor branca alivia a sensação de desespero e choque emocional. Sim. O silêncio que vem depois do branco, também contribui para aclarar as emoções. Depois do silêncio, o letreiro. Depois, só depois, quando o filme já acabou, entra uma música tensa pela primeira vez. O horror persiste. A lembrança também. “Engraçado como a lembrança de um dia normal é a primeira que some”.
Lionel Shriver (a autora do livro em que o filme se baseia) organiza-o de forma epistolar. Eva Khatchadourian escreve cartas para o marido Franklin na tentativa de entender os motivos que fizeram Kevin (filho do casal) assassinar sete colegas na escola, três dias antes de completar dezesseis anos.
Quando o livro começa, o crime já ocorreu, Kevin já está preso e Eva já está separada de Franklin, sem dinheiro, morando numa pequena casa no subúrbio.
Eva escreve cartas para o marido onde analisa tudo, desde a vida antes de Kevin nascer, até o momento que mesmo a contragosto decide ceder à pressão do marido e ter um filho.
Eva não quer ter esse filho, não quer dividir atenção do marido com nenhuma outra pessoa, quanto mais uma criança. Além disso, seu trabalho exige que ela fique longas temporadas fora do país. Temendo perder o marido, que anseia desesperadamente por um filho. Eva engravida. E é aqui que o conflito começa.
“O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então por que motivo retiramos todas as nossas fichas e pusemos nessa aposta ridícula de ter um filho?”
Sim. Para Eva uma criança significa barulho, sujeira, restrições e ingratidão. E é mais ou menos isso o que ela recebe. Acompanhamos tanto no livro quanto no filme sua total inabilidade com aquela criança. Vemos também suas tentativas frustradas e a disputa que surge entre ela e o garoto pela atenção do pai.
“A maternidade me arrastara para o que em geral consideramos as questões mais básicas: comer e cagar.”
Eva não consegue gostar de Kevin e consequentemente Kevin também não consegue gostar da mãe.
“Você nunca quis me ter, não é mesmo?”, pergunta Kevin. “Sinceramente, Kevin... será que você iria querer ter você? Se houver alguma justiça nesse mundo, um dia desses você ainda vai acordar com você mesmo num berço ao lado de sua cama.”, responde a mãe.
E é assim relembrando o passado que Eva vive o presente. As brincadeiras. Os olhares. As afrontas. O desespero. Todos os componentes são apresentados ao leitor/espectador. O jogo de gato e rato entre aquela mãe e seu filho leva-os a um estado de dependência extrema um do outro. Odeiam-se, mas precisam conviver na mesma casa e Evan precisa encontrar algum elo com aquele garoto. Kevin percebe que sua simples presença provoca inquietação na mãe e usa disso para provocá-la o tempo todo. Eva sempre cai. A angústia latente de não saber lidar com o próprio filho. O desejo absurdo de matá-lo e ter novamente o marido só pra ela. Aqui não é nem a vida que poderia ter sido, mas a vida que foi e que ela quer ter de volta. Na frente do pai, Kevin é um anjo, o que aumenta a distância amorosa do casal.
“A mamãe era feliz antes que o Kevin mijão viesse ao mundo, você sabia disso? Agora a mamãe acorda todo dia querendo estar na França. A vida da mamãe é uma droga, você não acha que a vida é uma droga? Você sabia que em certos dias a mamãe preferia estar morta? Para não escutar você guinchar nem mais um minuto, tem dias em que a mamãe gostaria de pular da ponte do Brooklyn.”
Aos poucos vamos tomando conhecimento (sempre pelo ponto de vista da mãe) das pequenas maldades que Kevin comete. Sim. Kevin começa apresentar defeitos e Eva se considera culpada. Em alguns poucos momentos, nasce a surpresa dos pequenos carinhos. Kevin fica doente, abaixa a guarda. Eva também. Mas a trégua dura pouco.
Na realidade o livro/filme não é sobre um garoto que mata sete pessoas na escola. Não. É sobre a culpa que Eva sente pelo ato do filho. É sobre uma mãe que não queria ter tido filhos. É sobre a angústia e a solidão que ela sente desde o dia em que o filho nasce. E de como tudo isso amplia até a potência máxima quando o filho comete o assassinato em série.
“No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações – não só com o sofrimento, mas também com a derrota.”
Sabiamente a diretora Lynne Ramsay utiliza-se da cor vermelha para explicitar logo de cara que seu filme é sim sobre sangue. Não o da morte, mas o que gera vida. A seqüência inicial delirante mostra o quanto Eva está mergulhada na cor vermelha até o pescoço. Os vizinhos também fazem questão de não deixá-la esquecer o inesquecível. Sua casa e seu carro são constantemente tingidos de vermelho, numa espécie de via-crúcis do corpo e da alma. As constantes humilhações. Os encontros fortuitos com os parentes das vítimas numa inocente ida até o supermercado. Os olhares de reprovação.
“A culpa confere um poder espantoso. E simplifica tudo, não só para os espectadores e vítimas, mas, sobretudo, para os culpados. Ela impõe uma ordem à escória. A culpa ensina uma lição muito clara da qual outras pessoas talvez possam obter consolo: se ao mesmo ela não..., e com isso torna a tragédia evitável.”
Eva é digna na dor. Resignadamente assume o papel que Kevin lhe delega no espetáculo que ele cria.
“Num país que não sabe diferir fama de infâmia, obviamente a primeira parece mais fácil de ser atingida.”
Kevin também herda essa característica da mãe e não se dispõe a sofrer em público. Pelo contrário. Parece gostar da fama que adquire. “Não estou fazendo papel nenhum. Eu sou o papel. O Brad Pitt é que deveria me representar” diz Kevin para a mãe numa das visitas que ela faz para ele na prisão. O certo é que cada injúria atirada na direção de Kevin seu ego parece inflar mais e mais. Ele gosta de ser visto como a Encarnação do Mal.
Aliás, um dos principais talentos de Lionel Shriver nesse livro é mostrar abertamente o fascínio que o mal exerce em nossa sociedade. Kevin sabe disso. E manipula muitíssimo bem a situação toda.
Guy Debord em seu livro mais famoso “A Sociedade do Espetáculo” fornece a chave para o entendimento desse fascínio. Sim. Vivemos numa sociedade toda ela espetacularizada e a resposta a isso tudo também tem que ser “espetacular”.
"O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Kevin aprende que para viver nessa sociedade é preciso sustentar a própria história e é exatamente isso que faz desde criança. O depoimento que dá para uma rede TV deixa explícito tanto o ponto de vista de Kevin quanto o posicionamento da autora. Ao ser perguntado sobre as motivações do crime, ele responde:
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
Pronto, a chave para um possível entendimento não mais do livro e nem do filme, mas de uma sociedade como um todo reside nessa frase do Kevin.
Lionel Shriver apresenta em seu livro um assombroso acerto de contas, não apenas de uma mãe, mas de um país, de uma sociedade toda ela culpada, toda ela suja de vermelho. Eva sobrevive. É o relato dela que lemos/vemos. Ela e Kevin são os únicos “sobreviventes” dessa tragédia. A pergunta que nós (leitores/espectadores) nos fazemos é: Por que Kevin não matou a própria mãe? O garoto dá a resposta: “Quando a gente monta um show, não atira na platéia”.
Lynne Ramsay não faz por menos. Seu filme é perturbador e extremamente bem conduzido e ainda consegue extrair interpretações grandiosas dos garotos que vivem Kevin (tanto o que faz na infância, quanto Ezra Miller que vive-o na adolescência), mas o filme sem sombra de qualquer dúvida é de Tilda Swinton que nos mostra não uma interpretação, mas um dilacerar de alma. Seu trabalho é brilhante, sensível e inteligente. Uma das melhores interpretações do ano num dos melhores filmes do ano. A música alegrinha de comercial de margarina que acompanha o filme nos faz pensar que esse esforço hercúleo para ser feliz (ou aparentar uma suposta felicidade para os outros) talvez desemboque nesse beco sem saída que é viver. O branco do final do filme se contrapõe às variações do vermelho que estiveram presentes o tempo todo.
Afinal o que significa essa mudança? Não sei. Tenho dúvidas. Mas aquele branco cegou-me os olhos. Talvez seja isso. Sim. Ou não. Dizem que a cor branca alivia a sensação de desespero e choque emocional. Sim. O silêncio que vem depois do branco, também contribui para aclarar as emoções. Depois do silêncio, o letreiro. Depois, só depois, quando o filme já acabou, entra uma música tensa pela primeira vez. O horror persiste. A lembrança também. “Engraçado como a lembrança de um dia normal é a primeira que some”.
Corações em Conflito
3.3 169 Assista Agora"Mammoth" do diretor sueco Lukas Moodysson é sensacional.
Já havia assistido outros filmes seus e a sensação de angústia e impotência perante a história mostrada pelo realizador é sempre a mesma.
O diretor mostra em seus filmes que realmente tem um ponto de vista em relação à sociedade que o rodeia.
Moodysson em seus filmes parece interessado em mostrar como o humano pode ser afetado pelo meio em que vive e pelo sistema que está engendrado.
“Para Sempre Lilya” e “Um Vazio no Coração” são filmes dentro dessa proposta.
O material humano que o diretor gosta de trabalhar é o inusitado, o quase invisível, Moodysson nesses dois filmes retrata o mundo sob a ótica de dois adolescentes.
Em “Para sempre Lilya” o da menina abandonada pela mãe, que vai viver com o amante, e é prostituída pelo “namorado”. É um filme brutal, incômodo.
Já “Um Vazio no coração”, Eric é um adolescente tímido, que ouve música o dia todo, ele é filho de um cara que produz filmes pornográficos em seu apartamento. Entre cenas de sexo explicito e bebidas, o pai dele e os atores pornôs mostram seu melhor e seu pior. É um filme absolutamente forte, com imagens agressivas e outras absurdamente líricas.
Moodysson consegue o improvável nesse filme, transformar o abjeto, o nojento em sublime. É um filme indicado somente para pessoas corajosas.
Essas são minhas referências do diretor.
Bom, a película conta a história de Leo e Ellen, casal cheio da grana, mas que não tem tempo para mais nada, nem para a própria filha.
A menina é cuidada pela babá e desenvolve com essa mulher, um sentimento muito forte.
A babá é filipina e veio para os EUA para conseguir melhores condições para seus dois filhos pequenos que foram deixados sob o cuidado da avó.
O mais velho deles, Salvador, é responsável por manter o irmão mais novo, Manuel, aquietado enquanto esperam a volta da mãe.
Leo é um homem que ficou milionário graças a um site de jogos parecido com o Myspace, ele tem um compromisso de trabalho na Tailândia, onde irá fechar um contrato de aproximadamente 45 milhões.
Ellen é médica e por causa de seu trabalho exaustivo não consegue dormir.
Leo em sua viagem conhece uma prostituta e por mais que não queira trair a mulher com ela, acaba cedendo aos encantos da moça.
A prostituta trabalha para sustentar a filha pequena.
Lukas Moodysson trabalha com temas clichês, não dá pra negar, mas a maneira como o diretor aborda os temas é fascinante.
Alguns críticos dizem que o filme é superficial, fraco e apelativo.
Eu discordo veementemente.
Feito em camadas assim como o igualmente excelente “Babel” do mexicano Alejandro González Iñárritu, “Mammoth” nos esfrega na cara as conseqüências de um mundo globalizado e galgado em interesses financeiros.
Todos sofrem as conseqüências desse sistema capitalista, todos, sem exceção, desde os mais ricos até os mais pobres.
Moodysson nos mostra o mal-estar de uma civilização capitalista:
Ricos morrendo de medo de deixarem de ser ricos e para tanto trabalham exaustivamente, sem tempo para seus filhos e familiares.
Pobres tentando desesperadamente uma maneira de sobreviver em meio ao caos.
Não há meio termo em seu cinema, Moodysson parece ter seguido os conselhos de Caio Fernando Abreu e sua frase: “Não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha à mim com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar”.
É exatamente assim que o diretor vem até nós, seus espectadores, com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar. LITERALMENTE FALANDO.
O roteiro é intricado, mas nada complexo, muito pelo contrário, o diretor segue as personagens em suas ações cotidianas e deixa com que essas ações mostrem quem são essas personagens, pouco a pouco, sem forçar a barra.
É um filme pesado, denso, sufocante, eu diria, em alguns momentos me peguei antecipando algumas cenas e a sensação não era nem um pouco agradável, algo como o narrador Rodrigo S.M. de “A Hora da Estrela” que antevê a morte de sua protagonista Macabéa, e quer evitá-la a qualquer custo.
O diretor sem medo de expor o dedo na ferida mostra como um sistema econômico totalmente injusto é o responsável pela inúmeras desgraças que assombram nossa civilização contemporânea.
É aquele velho ditado, enquanto uns tem muitos, outros nada.
O que se fazer então?
Ficar calado?
Moodysson responde um sonoro NÃO e faz um filme político, sem ser pedante. Ele não reinventa a roda, mas faz um filme digno.
Algumas cenas são chocantes em sua extrema realidade,
tais como a do menino que pede que a mãe volte a morar com eles e o desespero da médica Ellen quando o garotinho que foi esfaqueado pela própria mãe morre em suas mãos e também na sutil cena em que o filho mais velho da babá tenta desesperadamente arranjar um emprego para trazer a mãe de volta e acaba sendo violentando sexualmente e quase morto.
Tem também uma curiosa cena em que o personagem de Gael observa por vários instantes um elefante. Não sei por que, mas essa cena me remeteu ao conto “O Búfalo” de Clarice Lispector onde uma mulher busca no zoológico um animal em que ela se reconheça. “E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente”. Nessa cena da troca de olhares entre o homem (Gael) e o elefante parece existir a mesma necessidade de reconhecimento entre dois seres.
O diretor trabalha com uma premissa previsível, mas parece saber do ensinamentos do alemão Beltort Brecht e seu teatro da denúncia, sem perder de vista o entretenimento da platéia. É um filme difícil, mas não complexo.
O elenco é irrepreensível, estão todos excelentes, Gael Garcia Bernal consegue dar vida e dignidade a Leo, um jovem que tudo tem, mas que gostaria de viver uma vida quase hippie, Michelle Williams constrói uma personagem tripla, mãe, médica e esposa e o resultado é poderoso, é uma grande atriz, de gestos minimalista e meticulosos, a babá nos comove com seu misto de ternura e dor, vemos em seus olhos aquele sentimento de incompreensão diante de mundo que a faz ficar longe de seus filhos, mas em nenhum momento vemos revolta ou ódio em suas atitudes, e as crianças que fazem os meninos filipinos são muito boas, destaque para o ator mirim que faz Salvador.
A trilha sonora é interessante e inclui uma linda canção da cantora Cat Power.
Enfim, um filme seguro, comovente e certeiro com um golpe numa luta de boxe que é a vida dos humanos atualmente.
Recomendo!
Os Famosos e os Duendes da Morte
3.7 670 Assista AgoraJá vou começar dizendo que filme “Os Famosos e os duendes da morte” é um dos melhores filmes já produzidos no Brasil.
É um daqueles filmes que te deixam com inveja e muita vontade de ser o autor de tudo aquilo... foi com essa sensação que sai do cinema, além de estar com os olhos inchados de tanto chorar.
É incrível ver o talento do diretor Esmir Filho na condução de um trabalho tão sensível, com uma poética toda particular, e, no entanto ser uma poesia errática, dura e fria.
Fazendo uso do tempo como personagem principal de seu roteiro e tendo a cidade onde o protagonista mora como metáfora do estado de espírito do tal garoto, Esmir constrói um filme de uma beleza singular, bem próximo ao que o cineasta Hector Babenco conseguiu em “Coração Iluminado” e Gus Van Sant em “Paranoid Park”. Também vejo um paralelo com o belíssimo documentário "A Ponte" do diretor Eric Steel.
Por mais referências que o filme tenha, não se enganem, pois o que vemos na tela é um filme de um diretor iniciante, mas, absolutamente genial e particular, é um filme de Esmir Filho.
Poucos conseguem isso em seu primeiro trabalho, por isso, temos que divulgar e falar muito desse filme, num país chafurdado em temáticas violentas e/ou miseráveis, encontrar uma obra dessas na filmografia brasileira é algo raro.
O filme mostra a vida de um adolescente numa cidade pequena no Rio Grande do Sul, o personagem principal é um menino viciado em internet e em Bob Dylan.
O garoto acha a cidade pequena demais, chega a chamá-la de “cu de mundo” e os moradores de “colonos”.
Na verdade, o menino tem um forte sentimento de não pertencimento àquela realidade e desenvolve um meio de suportar tudo aqui, através de um alheamento a tudo aquilo que não lhe diz respeito.
No livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, a autora afirma que o lugar onde a protagonista Macabéa mora “é uma cidade toda feita contra ela”.
Algo parecido ocorre com o protagonista do filme “Os famosos e os duendes da morte”.
O diretor apenas mostra o tal menino, sem se preocupar em fazer com que nós (espectadores) gostemos ou não dele. Muito pelo contrário, ao fazer uso de uma câmera que na maioria das vezes filma o ator de costas “vagando” pela cidade, o registro realista do filme dilata-se e o que vemos é aquilo que temos suporte ou preparo para ver.
É um filme de sensações, cabe ao espectador dar sentido à obra, é ele quem preencherá as lacunas deixadas pelo diretor, pelo filme e pelos atores. E isso é um elogio, não é preguiça ou falta de talento do diretor, e sim, estilo, estilo próprio de filmar e pensar o mundo.
Em muitas cenas, eu me peguei rindo e chorando ao mesmo tempo, tamanho o grau de aturdimento que o filme me causou, é um filme incômodo, lento, pesado, mas extremamente contemporâneo tanto na temática quanto na maneira de retratar o mundo.
O maior talento de Esmir Filho é mostrar o tempo como o tempo, é deixar as coisas acontecerem sem se preocupar com nada a não ser a cena, é um risco que ele corre, mas um risco absolutamente necessário e, é esse tempo como tempo que faz com que a obra ganhe uma dimensão outra, que faz com que o filme transcenda.
Cada cena por mais lenta que seja possui o exato tempo da comunicação necessária, algo que o velho filósofo Aristóteles já dizia em seu livro “Poética”.
O menino não possui um elo com o mundo real, ele parece mais vagar por aqueles lugares gélidos do filme, do que propriamente viver, sua vida é mais interna, sua vida é a sonhada ou a cibernética.
Em muitas cenas vemos o menino conversando com uma menina no MSN e o diretor não tem medo de usar a linguagem usada pelos jovens nesse tipo de mídia, ao não evitar o maneirismo da linguagem da net, o diretor poderia reduzir seu filme a uma mera reprodução de um comportamento juvenil, mas não, ela usa a linguagem como aproximação das personagens e não como barateamento da obra ou das idéias do filme.
Além do garoto, temos outro personagem principal no filme, uma ponte onde alguns moradores que não suportam o tédio de existir se jogam lá do alto e cometem suicídio.
Foi o escritor Albert Camus quem formulou a questão que sabendo que a existência é essa aqui mesmo (a realidade de cada um) a questão mais urgente de ser respondida era se consciente disso deveríamos cometer suicídio ou não? (O mito de Sísifo)
Essa parece ser a questão primeira que o garoto sem nome que vaga pela cidade quer responder. Ao ver um corpo jogado lá embaixo, no rio, o garoto pergunta a um amigo:
“Não parece que tem alguma coisa que puxa a gente pra lá pra baixo?”
O tempo, a cidade, a ponte, tudo parece levar ao suicídio, essa é a grande reflexão do filme, e coloque ainda nesses ingredientes, a adolescência, fase complicada entre a infância e o mundo adulto, fase em que tudo é elevado à nona potência.
E então o menino comete o suicídio ou não?
Essa questão não é tão importante assim para o filme, o final fica em aberto...
As cena que antecedem o final são de uma grandiosidade assustadora, acho que nunca mais vou esquecer a cena em que o menino e a mãe dançam na festa da cidade.
No começo há um abraço, um abraço forte, dolorido, o menino está chorando, a mãe também, a música alegre da festa está tocando, do abraço aos poucos mãe e filho começam a dançar, uma dança desajeitada, uma dança alegre/triste, a dança da vida depois ele vai embora, a mãe permanece chorando, dançando, batendo palmas sem saber por que faz tudo isso. É uma cena sufocante, sublime e extremamente bem orquestrada pela direção.
Outras cenas possuem a mesma “pegada”, como a da mãe e do menino bebendo vinho e conversando e rindo, único momento do filme em que os dois estão “felizes”, é uma cena engraçada, os dois estão bêbados, mas é uma cena dolorosa, triste, foi nessa cena que eu chorava e ria ao mesmo tempo. E também a cena em que o menino e o amigo fumam um baseado e conversam sobre a vida. Soa sintomático que os maiores e melhores diálogos do filme sejam quando o menino está alterado ou pela maconha ou pelo vinho.
Destaque também para as cenas gravadas pela web cam da menina que o menino é apaixonado e para todas as cenas de delírios, que apesar de barrocas e exageradas, dão o tom certo dos sonhos e delírios. E também para a comovente cena em que o garoto visita os avós.
A trilha é um personagem também, o menino é fã da música “Mrs. Tambourine Man” do Bob Dylan (para quem conhece a letra, o filme é quase um tradução literal dela), além disso, o cantor Nelo Johann compôs uma comovente trilha especialmente para o filme .
Todos os atores, sem exceção estão excelentes, o protagonista do filme Henrique Larré é um achado, ele não possui nada das afetações tão freqüentes na interpretação de adolescentes, é um ator minimalista, é quase uma Isabelle Huppert versão menino.
A mãe é ótima, tem todas as nuances necessárias para o papel, já quando a atriz que interpreta a avó entra em cena, pensei “hum, é a única atriz ruim do elenco”, mas ai fui me familiarizando com ela, seu sotaque estranho e adorei sua participação, assim como o avô, os amigos, a menina e o homem misterioso que perpassa quase o filme todo.
Ele é o enigma do filme, sabemos pouco sobre ele, quase nada, mas ao longo do enredo e principalmente no final, ele, junto com o menino, é o responsável pelos momentos mais interessantes da trama. (Não vou contar pra não estragar a surpresa).
Enfim, é um daqueles filmes que te faz sair do cinema com vontade de ver mais e mais, que te faz pensar, chorar, rir, refletir sobre a condição humana, entre outras coisas, essa é a função primordial do cinema e de toda a arte.
Homem ao Banho
2.6 71O filme é irregular. Mesclando momentos de lirismo, tédio, política e sexo. Assim como a vida, não? No geral, é um filme provocativo e apesar de tudo, belo e triste.
A Garota Ideal
3.8 1,2K Assista AgoraFilme surpreendente. Amei. Lógico que chorei, chorei e muito.
Eu já gostava e muito do trabalho do ator Ryan Gosling. Agora depois desse filme, ele entrou na lista de meus atores prediletos.
Ryan Gosling entrou no meu TOP 3 junto com o Gael Garcia Bernal e Louis Garrel.
O trabalho de Gosling nesse filme é sensível ao extremo. E ele dá conta do recado com louvor. De se aplaudir de pé. Bravo!
Namorados para Sempre
3.6 2,5K Assista AgoraO filme é uma poderosa análise das relações humanísticas. É um filme dolorido. Cruel. Forte.
É um filme salomônico, espiral. Quando conhecemos Dean e Cindy, eles já estão casados. Já têm uma filha. Já estão meio infelizes. A primeira cena mostra uma garotinha procurando um cachorro. Logo ficamos sabendo que o cachorro sumiu. E mais tarde que o cachorro morreu. Sim. Maus presságios. A morte do cachorro significa que algo ruirá. Assim como nas clássicas tragédias gregas. É interessante notar a maneira especial com que o diretor trata as cenas que se passam na estrada. E isso eu só notei na segunda vez em que assisti. A estrada no filme é um lugar de perigo. De alerta. Mas também de aberturas de possibilidades. O filme começa e termina mostrando uma estrada. Sim. O que o diretor pretende com isso? Simples. A própria vida é essa estrada. Muitas outras cenas se passam ali. Em trânsito. Preste atenção. Nessa terceira vez que assisti o filme, lembrei de uma passagem de um poema do Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa):
“Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.”
Creio ser uma perfeita definição para o uso recorrente desses personagens em trânsito.
Dean e Cindy são tipos diferentes. Ele, todo relaxadão. Ela, tensa, insegura. Suas histórias de vida só reforçam essa diferença. Ele foi abandonado pela mãe quando criança. Ela tem um pai tirano e uma mãe omissa. Sim. Freud explica. Esse aspecto psicanalítico está impresso no filme. De alguma maneira, Cindy busca em seus relacionamentos a reprodução tirânica de seu pai. Fato explícito numa cena em que ela “pede” para ser quase estuprada. Já Dean, sua sina é ser constantemente abandonado.
"- Sabe qual é o seu problema? Você não deixa as pessoas com gostinho de quero mais.
- Como assim?
- Você distribui doce todo dia. Isso enjoa!"
Essa frase do Caio Fernando Abreu é a mais pura definição de Dean. Sim. Ele é carente. Mas é também bom pai e ama desmedidamente Cindy. Mas acaba por sufocá-la. Afinal, ela não está acostumada a ser amada. E quantos de nós estamos? Essa pergunta martela minha cabeça. Assistir “Blue Valentine” é isso. É perceber certas coisas que gostaríamos de esquecer. Sim. Não é fácil assistir o fim de algo tão bonito. Não consigo aceitar que as coisas acabem dessa maneira. É tão triste. Mas somos assim. O ser humano é assim. Parece fadado ao erro. Triste constatação. “Blue Valentine” me lembra um outro filme que aparentemente não tem nada a ver com ele: “Onde vivem os monstros” do Spike Jonze. Também ali há o fim de algo sublime. Também ali dói. Também ali há a metáfora do caminho.
“Tudo é ilusão, tudo é só estrada que corre e corre, e todas as estradas vão para o mesmo lugar. Que as paisagens dessa estrada sejam belas, então.”
Sim. Novamente Ele: Caio Fernando Abreu. Sim.
“Blue Valentine” possui um roteiro simples, mas eficiente. O filme não se perde em explicações tolas, não tenta forçar uma resposta para o término do relacionamento de Dean e Cindy. E isso é um dos muitos aspectos positivos. Não é justamente assim na vida real? Quase nunca temos uma explicação palpável para o fim das coisas. Muito pelo contrário. Na maioria das vezes, só sobra a perplexidade de não se entender direito aquilo que se sente. Humano. Tão demasiado Humano.
“Uma pressa, uma urgência. E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça.”
Por que sempre fazemos isso? Do que temos tanto medo?
Creio que uma possível resposta esteja em nossa educação. Não. Não somos criados para o amor. E quando digo amor não é só esse existente entre os apaixonados. Mas todo e qualquer sentimento bom que nutrimos pelos outros, seja família, amigos, etc.
Não é a nossa. O amor em nossa sociedade é uma obrigação. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” “Amai Deus sobre todas as coisas”. E assim caminhamos nessa estrada, que não é nem feliz, nem infeliz. É morna apenas. É incompleta apenas. Lacan dizia que a gente sofre, porque não tem para onde voltar. Concordo com ele. Não sabemos nada de nada. Somos uns perdidos. Uns entregues a própria sorte. E cada um que faça o seu. O amor em nossa sociedade se transformou numa mercadoria. Brecht estava certo. “Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?” Eis ai a grande contradição de nossos tempos.
Aliás, falando em Brecht, é dele uma das melhores definições sobre o amor:
“O amor é a arte de criar algo com a ajuda da capacidade do outro.”
E é exatamente esse o ponto que pega em “Blue Valentine”. Cindy não suporta ser ajudada. Já Dean é legal com todo o mundo. Cindy é inverno. Dean é verão. Juntos produzem grandes tempestades. No começo é aquela chuva redentora, que molha a terra e faz brotar os alimentos. No final é aquela chuva que só provoca o caos.
“Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.”
No começo do namoro de Dean e Cindy essa frase de Caio Fernando Abreu é real. Eles são lindos juntos. Eles se divertem. Parecem até mesmo se completar. Mas com o passar do tempo, algo desanda. O quê então? Para mim, creio ser um misto de coisas. Resquícios de infância, imaturidade dos personagens, egoísmo, o modo capitalista como a sociedade se organiza. O mundo de Cindy e Dean acaba de ruir quando ela está comprando bebidas num supermercado e reencontra o namorado da adolescência. Sim. Cindy inevitavelmente faz a comparação entre Bob e Dean. E nessa comparação o marido sai perdendo. Bob é lindo, bem sucedido e lhe passa uma cantada. Dean é a imagem do “loser”. A visão de Bob a perturba. Ela vê que fez uma “escolha errada”. Ela deveria ter escolhido Bob. Ele sim era o marido ideal para ela. Fato este que corrobora para a tese de Dean:
“Eu acho que os homens são mais românticos do que as mulheres. Quando nos casamos é com uma garota. Nós resistimos o tempo todo até conhecermos uma garota e pensamos: eu seria idiota se não casasse com ela. Mas as garotas só escolhem a melhor opção. Esperam sempre pelo príncipe encantado, e então casam com o cara que tem um bom emprego.”
Essa cena do encontro entre Cindy e o ex-namorado deflagra o fim do relacionamento dela com o marido. “Por que você não faz nada da vida?” pergunta ela. De certa forma os conselhos de sua avó de “Faça com que a pessoa por quem você se apaixone valha a pena pra você” é confrontado. “Como confiar em seus sentimentos quando eles desaparecem?”, essa é a dúvida de Cindy.
Sim. Esse é o ponto.
O diretor Derek Cianfrance escreveu esse roteiro para tentar responder essa pergunta. Seus pais se separaram quando ele tinha 21 anos de idade e o roteiro de “Blue Valentine” é uma tentativa de compreender o que levou seus pais a se separarem. Outro fato interessante de “Blue Valentine” é que o diretor não deixou que Ryan Gosling e Michelle Williams se conhecessem antes das filmagens. Não. Os dois atores só se conheceram já no set. As gravações começaram pelo início do namoro. Gravada essa parte do filme, Derek confinou Michelle, Ryan e a atriz que interpreta a filha deles numa casa real durante um mês. Feito esse laboratório das vivências de um casal, o diretor filmou a separação. Creio que esses detalhes dão a riqueza emocional desse filme. Tudo isso fica impresso em seu resultado final. Michelle Williams e Ryan Gosling demonstram uma incrível maturidade artística nesse filme. O frescor da juventude, da paixão e o lento processo de desintegração disso tudo é vivenciado pelos dois com extrema coragem e talento. O que assistimos não é um filme, mas um desabrochar de intimidades. O trabalho desses dois é de cair o queixo, de aplaudir de pé, de gritar “bravo” no final. O diretor Derek Cianfrance consegue em seu primeiro trabalho construir o clima certeiro em todas as cenas. É impressionante. Nada falta. Nada sobra. A direção dos atores e o tratamento das imagens é o ponto alto desse jovem diretor. A iluminação e a trilha sonora do grupo Grizzly Bear é linda e inspirada. Outras duas músicas também ganham destaque no filme, uma delas inclusive é cantada pelo próprio ator Ryan Gosling, já a outra de nome “You and Me” (cantada pelo grupo “Penny & The Quartets”) é usada como tema do casal. Aliás, essa canção é utilizada duas vezes no filme e impressiona a sensibilidade do diretor no tratamento dado a cada uma delas. É genial e dolorido. Demais.
Enfim, “Blue Valentine” é um daqueles raros filmes que tratam de relacionamentos de maneira adulta, sem os maneirismos do gênero. Não é um filme. É um soco em plena boca do estômago. “Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom.” Sim, Clarice Lispector estava certa: “a vida é um soco no estômago.” Sim.
Pina
4.4 408PINA"... nem tem muito o que comentar. É o encontro de duas genialidades. Pina e sua dança. Wenders e seu cinema. Esses duas forças juntas resultam numa poesia que alcança o sublime. BRAVO!
Depois do Sul
3.5 6O filme impressiona pelo minimalismo e pela retrato refinado do tempo como tempo. A fragmentação desses possíveis tempos que habitam um mesmo tempo cronológico é utilizado com extrema sabedoria. O prenúncio da tragédia que alterará o destino de todos está presente em que cada cena que é mostrada no filme.
Bronson
3.8 427O filme é surreal, delirantemente bem construído. Tem vigor, ironia, sarcasmo, uma estupenda e brechtiana trilha sonora e um desempenho impressionante do ator Tom Hardy que vive o protagonista.
Drive
3.9 3,5K Assista AgoraUm dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Genial. Matemático. Violento. Tenso. O filme é mix de referências que resultam em algo único. Estão ali David Lynch, Gaspar Noé, Wong Kar-Wai, Chan-wook Park e Quentin Tarantino. Ryan Gosling prova (mais um vez) porque é o melhor ator de sua geração, seu desempenho é brilhante. Assim como o de todo o elenco e direção. Sim. Estou impressionado. QUE FILME!!!! QUE FILME!!!
Batalha no Céu
3.1 22"Batalha no Céu". é um desbunde (literalmente) filtrado pelo olhar sensível do diretor Carlos Reygadas. A maneira magnífica com que o diretor captura o real é assombrosa. Sim. Todas as histórias mostradas pela curiosa câmera são passíveis de serem cinematógraficas. A estética, apesar de rigorosa, tem um quê de amadora, e isso não é nenhum demérito. O elenco (de não atores) apresenta um desempenho maduro e bem diferente do habitual. Sem maquiagem, sem nenhuma concessão àquilo que se convencionou a ser esteticamente bonito, mas ainda assim belo. Áspero. Duro. Um soco não no estômago, mas nas duas bolas do saco.
Reygadas nos questiona o tempo todo qual a nossa noção do belo, e quanto ao grotesco? É possível existir o lirismo no limite do pornográfico? Por isso, “Batalha no Céu” é um filme provocativo, mas não só. É um tratado sobre a vida contemporânea, com suas neuroses, dores, alienação, pequenas alegrias e prazeres e a culpa. Abrindo mão de um tom didático ou professoral, o diretor apenas mostra esses personagens chafurdados numa sociedade de consumo, onde tudo é passível de ser comprado, roubado ou negociado. E também por que não perdoado? Todos os personagens retratados pelo filme estão em busca de uma redenção que não vem. Que não virá. Nunca. São personagens desesperados em sua apatia. São suicidas em potencial. São morto-vivos. Zumbis. Numa sociedade toda ela composta por zumbis. Numa cidade toda feita contra eles. Estão perdidos. Desesperadamente perdidos. E não se encontram. A não ser furtivamente. No sexo. Ou no que resta do amor. Num fiapo de moralidade. Numa ascese impossível, utópica e alienada. O sufoco existe. É real. Palpável. O filme exala um desejo de beleza, uma vontade do sublime, mas que é cortada/estirpada/mutilada pela realidade. Que se apresenta sempre muito mais poderosa que qualquer outra coisa. O aspecto formal apreendido por Reygadas chama a atenção, mas, sobretudo, a aparência de realidade que encharca a tela a todo o momento. A cena em que acompanhamos Marcos levando a filha do general de carro pelas ruas da cidade é um exemplo disso. A câmera mostra os transeuntes, os outros motoristas, a conversa da menina com o namorado, o rosto impávido do condutor, a música que toca no rádio, o trânsito alucinante... Tudo. Nada escapa ao olhar do diretor. E no entanto (como espectadores) nos perguntamos: Como ele gravou isso? Essa cena foi ensaiada? Não? Foi gravada sem qualquer prévia do que se queria obter. O acaso? A sorte? Ou a técnica? É dessa contradição absurda que “Batalha no Céu” parece querer nos falar. A cena inicial em que uma bela garota faz sexo oral num homem obeso parece ser a própria materialização das contradições pretendidas pelo diretor. A trilha sonora também acompanha esse pensamento. A trilha é quase sempre grandiloquente, enquanto a cena mostrada é aparentemente banal. Para Reygadas não é só a cena que importa. Mas, o entorno. O que acontece fora da cena. O que não veríamos se não fosse pela câmera irrequieta, sempre a procura de algo. Do quê?
O cinema praticado por Reygadas é o desvelamento, acompanhamos aquelas almas desnudadas pelo olhar encardido da lente da câmera. A beleza surge manipulada. Dolorida. O desamparo é a constante. Também nós (espectadores e humanos) estamos desamparados. O que recebemos são apenas fragmentos de uma história. Migalhas de uma vida. Pedaços humanos despidos de pudor, mas não da culpa. A grande culpa. Soa sintomático que numa cena de sexo, a câmera fixe por alguns segundos no retrato do corpo de Jesus Cristo, que sangra, sangra, sempre. "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus", (Romanos, capítulo 3, versículo 23). Daí que Reygadas nos fala dessa natureza humana, pecaminosa e falha. Que sempre necessita da redenção. Mas antes há a morte. Pois o salário do pecado é sempre a morte. Sim. Ou não. Quem sabe, não é mesmo?
"É sempre assim. Morre-se. Não se compreende nada. Nunca se tem tempo de aprender. Envolvem-nos no jogo. Ensinam-nos as regras e à primeira falta matam-nos."
(Ernest Hemingway)
O Cavalo de Turim
4.2 211"O Cavalo de Turim" do diretor Béla Tarr materializa o apocalipse da natureza de forma avassaladora. A rotina. O barulho implacável do vento. O silêncio. A curta conversa antes de dormir. Repetições. Repetições. As pequenas mudanças de perspectivas da rotina. Nunca estar parado. Sempre fazer algo. Tudo está em ruínas. Tudo degradou-se. Nem metáfora. Nem antítese. E sim, elipse.
Deus da Carnificina
3.8 1,4K"Carnage" ou "O Deus da Carnificina", é uma obra limítrofe em todos os sentidos. É um filme executado como teatro. Ou um teatro gravado como filme. Os personagens estão todos de saco cheio de suas vidas medíocres, mas não sabem como sair dela. A ação se passa toda ela num único cenário. O tempo da ação dramática é o mesmo tempo do filme (salvo a cena inicial e a final). É um filme no limite. No limiar. Na corda bamba. Ali entra a comédia de humor negro e a tragédia nossa de cada dia.