Em leitura preliminar, o filme "Os Banshees de Inisherin" se apresenta como um tratado sobre a solidão e a busca por propósitos na vida. O ordinário, o trivial e a simplicidade (representados por Pádraic) são um empecilho para que Colm alcance seu objetivo de ser reconhecido pela arte, de ser lembrado por ter deixado algo de valor em sua passagem pela Terra. O rompimento entre estes dois amigos, portanto, seria inevitável.
No entanto, creio que a nova produção de Martim McDonagh vá além disso. Ao inserir sua obra no contexto da Guerra Civil Irlandesa, o diretor quis transmitir uma mensagem melancólica e desesperançada sobre o conflito fratricida que dividiu a pátria de seus pais. O interesse em estudar essa nação se nota desde o título até a fotografia do filme. As Banshees, arautas da morte e do infortúnio na mitologia celta, surgem aqui como uma velha sinistra. A grama da ilha, tingida de um verde inexistente, evoca a cor nacional. E a imigração, que marca a história irlandesa desde os tempos do Absolutismo, fica demonstrada pelo destino de Siobhan.
Sendo assim, quando o roteiro nos coloca em uma situação absurda, inexplicável, como foi o rompimento da amizade de Colm e Pádraic, ele também nos aponta para o incompreensível cenário da guerra desabrochada no seio de uma mesma família, de uma mesma nação. Os irlandeses, unidos durante o milenar conflito contra os ingleses, ao conquistarem sua frágil Independência voltaram-se uns contra os outros. Como entender isso? Como apreender um conflito em que ninguém venceu, em que - literalmente - perderam-se os anéis e os dedos?
Em seu quarto filme, até agora o mais intimista, Martim McDonagh faz perguntas que abrem uma ferida na história recente da República da Irlanda. Sem respostas, não restou ao artista nada além da dor, da desolação e da perplexidade de analisar um fenômeno que não pode ser explicado.
"Tár" é o filme provocativo dessa temporada, uma vez que ele toca no tema mais discutido pelas redes sociais: a cultura do cancelamento.
Se, inicialmente, a regente Lydia Tár é apresentada no auge de sua carreira e de sua vasta erudição, o filme não demora a pincelar certos atos e características que podem levantar suspeitas no espectador. É como ouvir algum componente em desacordo com a harmonia do restante da orquestra. Seriam indícios de uma natureza pútrida da personagem ou pequenos desvios que, afinal, todos possuímos? O filme não responde... E penso ser este o ponto de maior reflexão da obra.
Pois aqueles que apontam dedos acusatórios talvez não estejam vendo o quadro completo. Tomemos como exemplo o caso de Krista Taylor: teria sido ela realmente usada por Lydia Tár (que depois empenhou-se em destruir a carreira da pupila) ou seria Taylor uma pessoa perigosa, obsessiva e persecutória, como o filme parece demonstrar nos lampejos em que surge uma personagem misteriosa?
A escolha da jovem Olga como solista em uma peça se deveu a inconfessados interesses sexuais da maestra por ela (ação antiética diante da diferença de posições que ambas ocupavam naquela hierarquia) ou a um genuíno sentimento de sublime que lhe acometeu ao ouvir a interpretação musical da violoncelista russa?
E quanto à aspirante a regente Francesca? Ela foi preterida ao cargo de assistente da orquestra como uma forma de Tár afastar de si as denúncias de favorecimento e má conduta sexual com mulheres de seu meio? Ou ela não possuía, ainda, as qualidades necessárias para atuar na prestigiada Filarmônica de Berlim?
Berlim, por sinal, não foi escolhida ao acaso. A cidade presenciou dois dos maiores acontecimentos políticos do século XX: a nazificação e desnazificação e também a paranoia do autoritarismo comunista. O processo de desnazificação, inclusive, é citado no filme. O viés adotado foi o de que teria havido "excessos" nisso, com pessoas inocentes sendo perseguidas e acusadas de colaboracionismo com o regime hitlerista. Ora, investigações mais recentes vão dando demonstrações do contrário: a desnazificação se mostrou incompleta, um dos motivos que explicam a persistência de membros da extrema-direita até hoje em instituições e poderes do Estado germânico.
E é aí que começam minhas ressalvas ao filme de Todd Field. Para demonstrar sua tese de que a cultura do cancelamento atira em alvos ainda muito incertos, o diretor recorreu a argumentos discutíveis (como o caso citado acima) ou ao exagero de mostrar uma vídeo-montagem boba, cuja intenção era difamar Lydia Tár, mas que fugiu demais ao tom geral da fita.
Eu não sei o que penso sobre as críticas à cultura do cancelamento. Às vezes as julgo bastante adequadas, outras me parecem mero receio de ser descoberto e não poder mais alegar a execrável sentença de que "se deve separar a obra do artista". Ao fazer isso, podemos incorrer em situações no mínimo desagradáveis, como aquela em que Casey Affleck, que admitiu ter assediado duas profissionais que trabalhavam em seu filme, recebeu todos os prêmios de 2017 das mãos de Brie Larson - atriz que no ano anterior interpretou uma mulher sexualmente violentada.
O filme merece ser visto, já que ele proporciona grandes discussões pelo seu caráter enigmático e, por isso mesmo, provocativo. Seria a protagonista uma artista devotada às mulheres ou uma mulher devotada à arte? Ao escolher uma dessas chaves de leitura, o espectador passará a julgar as ações de Tár a partir de sua personalidade. Ao não oferecer respostas prontas, Todd Field permitiu que cada espectador, com seus valores e convicções, absolvesse, condenasse ou se abstivesse no julgamento de Lydia Tár - desnecessário dizer, magistralmente interpretada por Cate Blanchett.
Num misto de "Matrix", "Ricky and Morty" e "Sense8", Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é exatamente o que se pode esperar de um filme com esse título: é maluco, frenético, e cheio de conceitos e regras que desafiam nosso senso-comum. Mas é, ao mesmo tempo, uma história familiar que solidifica valores tradicionais (EM UM BOM SENTIDO) ao mesmo tempo em que questiona o sentido da vida e o peso de nossas escolhas.
Ao adentrar o multiverso, a personagem de Michelle Yeoh consegue, também, acessar infinitas realidades paralelas criadas a cada decisão que ela toma (ir ou ficar, casar ou não, percorrer tal ou qual caminho, colocar um pedaço de papel na direita ou esquerda, etc).
Dessa forma, como não se estagnar perante a dolorosa, ainda que deliciosa, ideia dos outros "eus" que poderíamos ter sido? Mais fortes, mais belos, mais talentosos, mais inteligentes, mais famosos... Ou, até mesmo, como não sucumbir (como aconteceu a uma personagem do filme) ao niilismo, à ausência de sentido das coisas ao nosso redor, à banalidade de ser mais um dentre trilhões? Como unir, afinal, o amor fati ao eterno retorno, como formulou o filósofo?
"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" decide apostar nos valores familiares. Pode parecer mesquinharia burguesa frente à proposta amalucada do longa, mas eu vejo como uma tentativa de oferecer respostas à era histórica em que vivemos, na qual atitudes como deixar partir, abrir mão, ou pouco se importar estão a uma tecla de bloqueio de distância.
Nesse momento de fragmentação das famílias e de disputas entre valores progressistas e reacionários, o filme dos Daniels nos instiga a lutar por nossas relações, construir pontes e fortalecer estruturas. E, ainda que o filme busque nos convencer dessa solução apelando para estratagemas como "é isso ou a destruição do universo", no fundo ele tenta nos dizer que tal luta só vale a pena ser tomada quando TODAS as partes se unem por um objetivo em comum: a lembrança de que, a despeito das coisas que nos separam, é possível buscar pontos saudáveis de união.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um fenômeno da Sétima Arte, que alegria foi ver uma produção como essa! Talvez eu precise ligar mais para minha mãe...
Caso tivesse sido rodado antes de Trump, Erdogan, Putin e Bolsonaro, sem contar outros tantos governos (intencionalmente) desastrosos no combate à pandemia e no manejo da questão climática, "Não olhe para cima" poderia ser acusado de sensacionalismo barato. Infelizmente, como apresenta em seu cartaz, os eventos absurdos são possivelmente reais.
A nova sátira de Adam Mckay aponta sua artilharia para a cultura do século XXI: as redes sociais, os memes, o comportamento de manada, a vida íntima das celebridades, os políticos grosseiros e desqualificados, a mídia vazia, os bilionários viajantes do espaço, os conspiracionistas, os negacionistas científicos, as fake news, a divisão das famílias e, em meio a tudo isso, pequenas células de bom-senso que precisam falar, explicar e gritar o óbvio: o aquecimento global existe, as vacinas são eficazes, a terra não é plana.
No entanto, ainda que as visões expostas por Mckay sobre a política, o sistema econômico e a validade do método científico ressoem em mim, isso não significa que o filme automaticamente passe a ter boas qualidades. Afinal, a comédia, mais do que qualquer outro gênero cinematográfico, é extremamente pessoal: o que faz uns rirem, em outros não surte efeito. O filme me pareceu chato, mal desenvolvido, sem graça e muito mais longo do que deveria.
Além do mais, o roteiro parece criticar tudo, menos a religião, que foi trabalhada com uma solenidade que destoa do tom geral da produção. Ora, é inegável a participação de certas lideranças religiosas no grande hospício que virou esse planeta de uns anos para cá. Tal covardia é reveladora e me fez desgostar ainda mais de "Não olhe para cima". A premissa pode ter sido boa, eu posso ter concordado com quase tudo que vi ali, mas o desenvolvimento foi nada menos do que torturante.
Quando eu soube da temática de "Nomadland" imaginei que este filme adotaria o caminho mais óbvio: uma crítica ao modelo econômico estadunidense, que promove crises que ressoam sempre no lado mais humilde da sociedade. O tom de denúncia existe, mas, surpreendentemente, o filme não se resume a ele - sequer segue essa linha como diretriz.
Além das questões econômicas, o longa da diretora Chloe Zhao defende a ideia de que os nômades americanos partem em busca de algo. São, quase sempre, solitários que não tem razões para se prenderem em um único lugar, em um único modo de vida. Talvez seja por isso que a fotografia de Joshua James Richards faça tributo à monumentalidade. As estradas parecem sempre continuar, as paisagens são muitas, infinitas. Tudo é grande, pois grandes são as formas de se viver e de buscar sentidos para a existência.
E se os nômades são solitários, também é verdade que eles encontram na fugaz convivência entre seus pares o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Uma comunidade que, como disse a irmã de Fern, faz parte de uma tradição nacional que remonta aos peregrinos. Se, em séculos passados, estes adentraram o continente motivados pela cobiça e pelo genocídio indígena, os peregrinos do século XXI buscam, ao desbravar territórios, um aprofundamento em seu próprio ser. Uma negação aos vorazes valores de consumo e posse que marcam o contemporâneo. Os nômades procuram por si mesmos, um lugar em um não-lugar.
Por detrás da aparente convencionalidade de "Longe do paraíso" existe uma proposta ousada, algo que não me recordo de haver acontecido em outro filme de romance.
Aqui, o relacionamento amoroso não floresce, nunca vai além de um toque ou um olhar cheio de desejo. As razões para isso são tanto pessoais, quanto sociais: para Cathy Whitaker, criada rigorosamente nos códigos de conduta da mulher submissa, bela-recatada-e-do-lar, entregar-se a suas vontades é algo impossível. Para a sociedade do período de segregação, o contato entre brancos e negros jamais poderia ir além da relação profissional.
No entanto, por mais interessante que seja a proposta do filme, ele não atinge seus objetivos. Penso que Todd Haynes resolveu criar uma obra que foge da fórmula clássica da heroína que se vê confrontada com uma nova situação, age visando a retomada do equilíbrio anterior, até que aprende a conduzir-se por este novo mundo e, finalmente, muda. Para Haynes, tal arco ficcional clássico de personagem não aconteceria para mulheres rigidamente controladas pelos códigos sociais conservadores dos anos 50. Se ganha pontos por originalidade, também é verdade que acabou gerando, em mim, distanciamento dos dramas da protagonista; ela é tão submissa e apática que sua história pouco comove.
Além disso, outra grave falha do roteiro é a atenção demasiada que foi dada para a subtrama do marido homossexual enrustido. Afinal, durante muito tempo fiquei imaginando que a história se centraria em torno desses dois eixos, o que não aconteceu. O marido praticamente desaparece em certos momentos e o filme passa a se focar no relacionamento de Raymond e Cathy, quando já é tarde demais para criar vínculos e torcer pelo "casal".
Há audácia nesse filme, os temas são fortes e ainda candentes na sociedade estadunidense. É uma pena, portanto, que o desenvolvimento foi falho - muito em razão da própria originalidade a que ele se propôs mas, também, de escolhas equivocadas de roteiro.
A palavra "single" pode conter vários significados, pelo modo como foi empregada no título original: pode se tratar de um "homem solteiro", mas também "só" (no sentido de solitário) e "singular". O filme de Tom Ford foi hábil em mostrar, ao longo de um único dia, como George Falconer se enquadra realmente em todas essas características.
O trabalho do diretor é cheio de estilo e busca demonstrar, com o uso das cores, momentos de picos e declínios sentimentais que o personagem experimentou, enquanto atravessava profundo luto. A atuação de Colin Firth, que neste filme alcançou o melhor de sua carreira, é fundamental para que o filme chegue até sua mensagem. Há lirismo, elegância e uma trágica beleza em toda essa história, sem deixar de lado o aspecto de denúncia ao nos expor a subcidadania a que homossexuais foram e continuam a ser relegados em nossa sociedade.
Já sobre o final... parece não escapar da tópica dos chamados "filmes lgbtq". Alguém tem que morrer. Falconer, que buscou a morte na maior parte da projeção, reencontra-se com o êxtase da vida quando já é tarde demais para uma segunda chance.
Baz Luhrmann é um esteta. Basta pegar qualquer um de seus cinco longas-metragens para entender que a trama é uma banal história de amor usada como desculpa para exercitar o deslumbre visual que caracteriza o diretor. Esse é o universo que ele cria, esse é o modo que ele enxerga as coisas. Sendo assim, não havia ninguém melhor para dirigir "O grande Gatsby" do que Baz Luhrmann.
Explicando a afirmação acima: o livro de F. Scott Fitzgerald retrata as novas e velhas elites dos Estados Unidos, que naquele primeiro quartel do século XX se convertiam na maior potência mundial. Há, na obra, uma crônica de seu tempo e uma crítica ao poder do dinheiro (que vem sempre dissociado do caráter e da "profundidade" do ser - Gatsby, Tom, Dayse e Jordan são todos levianos). Mas o livro falha, em minha opinião. Ele tenta, mas não consegue se livrar da armadilha de retratar indivíduos (ou, vá lá, tipos sociais) frívolos sem ser a própria obra algo frívolo. Ela tenta se mostrar profunda, crítica, analítica, mas não sai da superfície.
E o que faz Baz Luhrmann? Mergulha de cabeça na superficialidade de "O grande Gatsby". Compõe um melodrama cheio de força, luz e som. Traz alguma crítica social, mas não tenta ser mais do que é, não tenta disfarçar a leviandade do fenômeno que observa. O filme é uma festa de abundância, uma patuscada estilística. É leve, é frívolo, e é, acima de tudo, um estonteante delírio visual.
Antes de tudo, é preciso salientar que "Mank" não é o tipo de filme que se assiste despretensiosamente em um dia qualquer. Para conseguir imergir em sua história é necessário ter visto "Cidadão Kane" e conhecer o cenário amplo da Hollywood dos anos 30 e 40 (crise econômica, estúdios, personalidades, e até técnicas cinematográficas). Dito isso, o filme pretende demonstrar, por meio de flashbacks, como foi criada a primeira versão do roteiro de "Cidadão Kane".
A eleição de 1934 para o governo da Califórnia é um ponto fundamental para compreender a trajetória dos personagens de "Mank", pois ela dividiu um estado ainda bastante afetado pela crise de 1929. A paranoia anticomunista já se anunciava e, para derrotar a esquerda, usava-se de todos os artifícios - de notícias falsas ao poder de convencimento dos conglomerados midiáticos e até mesmo dos grandes estúdios. A campanha suja para eleger Frank Merriam e derrotar o progressista Upton Sinclair, encabeçada pelo magnata da imprensa William Randolph Hearst e por produtores cinematográficos (como Louis B. Mayer) chocou o roteirista Herman J. Mankiewicz. Anos depois, isso acabou por inspirá-lo a conceber "Cidadão Kane", filme que, juntamente com seu diretor, Orson Welles, seria covardemente perseguido.
Enquanto assistia "Mank", contudo, uma reflexão aflorou em mim. Quem é, hoje, William Randolph Hearst? Um dos homens mais poderosos de seu tempo foi esquecido e não passa de uma nota de rodapé - ou, no máximo, um capítulo - na história de "Cidadão Kane". Ficou a arte. Ela provou que é o verdadeiro poder imorredouro, contra a mesquinharia de Hearst e seu mundo de dólares. Ao pensar nos tempos em que vivemos, de mentiras, perseguições e declínio democrático, como não acreditar que, também, os tiranos soçobrarão e os artistas permanecerão? "Mank" reflete a força da arte - e, por isso mesmo, a responsabilidade do artista ao se posicionar. Como é gratificante, então, ver David Fincher posicionando-se no lado certo da História!
Há, contudo, alguns pontos negativos: esse filme é um produto americanissíssimo, o que pode gerar certo distanciamento para outros públicos. Além disso, Fincher trata a primeira versão de "Cidadão Kane" como se fosse a definitiva, ignorando a seminal contribuição de Orson Welles (aqui reduzido a um mimado gritalhão) para a criação desse magnífico roteiro. Não é dos maiores filmes desse diretor, mas merece um cauteloso respeito.
É com muita estranheza que revejo "Eu, Daniel Blake", quatro anos após seu lançamento. Estranheza, pois o mundo onde o filme se passa já não mais existe; a premissa e sua proposta já não mais se sustentam.
Afinal, em 2016 Boris Johnson sequer era cogitado como chefe de governo, a União Europeia se recuperava do debacle de oito anos atrás, Trump era uma piada política, e um golpe parlamentar não teria como se concretizar no quinto país mais populoso do mundo (e, na época, a sexta economia mundial).
No entanto, o que não se imaginava aconteceu: Steve Bannon catalisou a deterioração democrática de Estados que já há muito renunciaram a seus compromissos legais com o bem-estar social. Estados que se transformaram em joguetes nas mãos de bancos e seus agentes econômicos, que desestruturaram toda a rede de seguridade social (o que explica a ineficiência burocrática) para financiar uma micro minoria sedenta por ganhos, sem que houvesse qualquer contrapartida produtiva (bilionários rentistas e especuladores, que nunca geraram um mísero alfinete para seus países). E, mais do que isso, poderosos que usaram de todos os meios ideológicos para convencer a população de que eles eram vencedores exemplares e que os pobres eram culpados por sua situação, pois eram perdulários, preguiçosos, imprevidentes e acomodados. Mas a questão é mais profunda.
Não basta apontar a culpa em uma massa amorfa ("os pobres"), é preciso identificar. Desse modo, a premissa de "Eu, Daniel Blake", que trata de trabalhadores sem maiores qualificações (escolaridade, letramento digital) e apresenta, como proposta, a união comunitária contra a opressão de classe, não é capaz de trazer respostas ao mundo em que vivemos.
E este é o mundo das fake news, o reino encantado das soluções simplistas para problemas complexos, onde o problema está na imigração, na porosidade fronteiriça da União Europeia e no multiculturalismo. No mundo real, os trabalhadores de "Eu, Daniel Blake" uniram-se contra tudo isso para apoiar o Brexit, Trump, Bolsonaro e todas as excrecências que vivemos desde então.
Como unir, afinal, os trabalhadores? Como retomar a discussão econômica, a luta de classes, a democracia e a consolidação da pauta identitária, quando na ordem do dia encontramos apenas moralismo, nostalgia de um passado que nunca existiu, líderes grosseiros e o pensamento uniforme? Como apostar em uma rede de solidariedade que, na prática, mostrou-se excludente e reacionária? Como modificar tal caráter? Como retomar o trabalhismo e as grandes manifestações que construíram Estados menos desiguais pela camaradagem?
"Eu, Daniel Blake" não tem essas respostas. Talvez o filme seja a última tentativa - hoje ingênua - de apresentar uma tese sobre pobreza, exploração e consciência de classe. Mas... como é bela a tese. Como comove, como é humanista e aprofunda os laços entre o público e os personagens que se veem, que são imensos como a vida. Ao receber a Palma de Ouro, o diretor Ken Loach clamou para que o Cinema de protesto continue vivo. Por isso, ainda espero por um filme que responda os problemas que esses quatro anos nos trouxeram.
Discurso de Ken Loach ao receber a Palma de Ouro (2016):
"Obrigado a todos! Agradeço a toda equipe do filme, ao roteirista, à produtora, ao cinegrafista e todos os outros. Obrigado novamente. Obrigado ao Festival e a todos que trabalham pelo Festival, porque é graças a vocês que a experiência é tão bela. E obrigado a Cannes, porque o Festival é muito, muito importante para o futuro do Cinema. Por favor, mantenham-se fortes.
Receber esse prêmio, nessa situação, é muito estranho, porque é preciso lembrar-se de que os personagens que inspiraram esse filme são aqueles que passam fome na quinta nação mais rica do planeta.
É formidável fazer cinema, e como podemos ver esta noite, é muito importante. O cinema faz viver a nossa imaginação, traz sonhos ao mundo, mas também nos apresenta o mundo no qual vivemos. O mundo se encontra numa situação perigosa agora mesmo. Nós estamos nas garras de um projeto de austeridade que é conduzido pelas ideias que nós chamamos 'neoliberalismo', que quase nos trouxeram a catástrofe. Isso deixou bilhões de pessoas em sérias dificuldades e milhões lutando, da Grécia a Espanha, com uma pequena minoria que enriqueceu de maneira vergonhosa.
O cinema tem muitas tradições, uma delas é apresentar um cinema de protesto, um cinema que representa os interesses do povo contra os poderosos. Eu espero que essa tradição se mantenha.
Quando há desespero, as pessoas da extrema direita tomam vantagem. Alguns dentre nós tem idade suficiente para se lembrar onde isso pode levar. Desse modo, nós devemos dizer que outro mundo é possível e necessário."
"A vida invisível" abraça sem concessões o melodrama para contar seu épico familiar. Ao narrar desventuras amorosas, maternidade, vida conjugal, sexo, e a autoridade masculina (pai e marido), o filme nos detalha intimamente a história do calvário da mulher sob regime patriarcal. Contudo, a adaptação do livro de Martha Batalha, ao meu ver, fracassou por duas razões:
a) já existe uma história bastante parecida com essa, mas trabalhada de maneira superior ("A cor púrpura") por conseguir dosar melhor drama e comédia, além de não reduzir a vida de sua protagonista à busca incessante de sua irmã. Do jeito como ficou em "A vida invisível", Eurídice simplesmente parecia uma obcecada que nada mais fazia além de caçar a irmã. Não surpreende, portanto, que apesar de ser dela a "vida invisível" do título, Eurídice acabou obliterada - não pelo pai ou marido, mas sim pelo vazio da construção de sua personagem. Guida, por outro lado, é uma personagem com maior densidade. No entanto, seu arco poderia ser resolvido apenas se ela conversasse com os vizinhos de seus pais, denotando toda a fragilidade dessa estrutura narrativa. Além de "A cor púrpura", o filme de Karim Ainouz também aproxima-se de "Desejo e reparação", quando se considera o final, com a presença de uma grande atriz já idosa que, com economia de gestos e olhares, consegue transmitir décadas de perdas e arrependimentos. Tais problemas, contudo, poderiam ser esquecidos, não fosse a segunda razão.
b) As interpretações são fracas. Carol Duarte, Gregorio Duvivier e Julia Stockler não me convenceram. Em vários momentos senti que estava vendo amadores reproduzindo maquinalmente as palavras do roteiro (pense na cena da Silene Seagal, em "Saneamento básico"). O casal de portugueses eu pouco poderia dizer, já que não compreendi boa parte do que eles falavam.
Enfim, por mais que eu goste de um bom melodrama, "A vida invisível" não me desceu. Se fosse para copiar outras produções, que pelo menos dedicassem-se um pouco mais na construção da trama e na direção de elenco. E, ainda que a crítica e o público tenham se sentido agradados com essa história, sua indicação como filme brasileiro ao Oscar 2019 foi, claramente, mais um golpe contra Kleber Mendonça e o maior filme brasileiro deste século: "Bacurau".
Para muitos, o terceiro filme da Trilogia do Caos, de Iñárritu, é o mais fraco. No entanto, 14 anos depois do lançamento de "Babel", ele parece crescer em sua relevância e falar ainda mais alto ao coração.
"Babel" traça o mal-estar de nosso século, que iniciou-se naquela manhã de 11 de setembro de 2001. O filme apresenta a violência das "guerras preventivas", a desconfiança nas relações internacionais, o tratamento desumano aos imigrantes, a brutalidade policial sofrida pelos explorados, e os lares em silenciosa desunião. Temas tão caros de nossa agenda que os anos apenas trouxeram agravamento, sem oferecer ainda expectativa de resolução...
A arte de Iñárritu, contudo, oferece-nos catarse. O diretor demonstra que, se a linguagem e as diferenças culturais nos lançam em uma Babel de desorientação e incomunicabilidade, também é possível buscarmos uma interlocução pelos sentimentos universais que nos unem: a dor, a solidão, o luto, o desejo, e a vontade de superação. Além, claro, da indignação perante os preconceitos e as injustiças que marcam a História. "Babel" é um chamado à conscientização, por meio dos afetos (que não respeitam qualquer fronteira). Nada melhor, portanto, do que encerrar esse comentário com a famosa frase atribuída a Che Guevara: "Se você treme de indignação perante uma injustiça, então somos companheiros".
De muito longe, a maior qualidade de "O rei do show" é seu repertório musical. As canções compostas pela dupla Benj Pasek e Justin Paul (de "La La Land") são contagiantes e narram a história com perfeição. O problema do filme, contudo, é o que acontece entre um número musical e outro.
O roteiro é pobre demais, até mesmo para um filme musical, que naturalmente já exige do espectador uma maior suspensão de descrença. Há, aqui, um amontoado de situações e conflitos simplesmente jogados em tela e resolvidos poucos minutos depois - em 1h35m de filme vê-se conflitos de classe, utopia do self-made man, reinvenção dos negócios, relacionamento interracial em país escravocrata, marginalização social, ascensão e queda, triângulo amoroso, debate acerca da arte elevada vs. arte popular, preconceitos, empoderamento, encontro de si/retorno às origens, e, por fim, a ideia de que se deve passar o bastão para a geração mais nova. A falta de profundidade com que tantos assuntos são tratados e encerrados tem, como eco, a completa falta de tridimensionalidade dos personagens, que se convertem em instrumentos vazios do roteiro (algo é feito para se chegar a certo ponto, mas nada fica convincente nessa fórmula, os conflitos não são bem trabalhados).
No entanto, mais grave do que essa superficialidade é o fato de o filme romantizar excessivamente uma pessoa que, no melhor dos pontos de vista, foi um oportunista da desgraça alheia. Afinal, a figura carismática de Hugh Jackman nos impede de antipatizar com o protagonista e questionar a exploração que ele fazia de pessoas marginalizadas pela sociedade. Enquanto isso, os outros personagens do filme sequer possuem nome - ou não são pronunciados suficientemente para que os saibamos. Não passam, portanto, de "aberrações".
Talvez P.T. Barnum merecesse um filme. Mas, com certeza, não merecia um panegírico.
"Vidas ao vento" já foi acusado de trair os ideias de seu realizador, Hayao Miyazaki, ao supostamente romantizar a trajetória de Jiro Horikoshi, o responsável pela engenharia por trás dos aviões de guerra japoneses. Mas a crítica não procede.
Realizar um estudo de personagem, como é o caso desse filme, não significa compactuar com o que se mostra. Pelo contrário, a todo momento Miyazaki confrontava seu protagonista diante das escolhas do mesmo: em certo momento alguém fala que a verba destinada aos projetos militares seria suficiente para alimentar a massa empobrecida do Japão dos anos 30; em outro mostra-se a negligência de Jiro com sua família, aqui representada pela irmã, que vai aos poucos se afastando e mantendo uma relação eminentemente formal com ele; a seguir vê-se o abandono de sua jovem esposa desenganada...
O que faz o protagonista prosseguir sua jornada, colocar o trabalho a frente de tudo, é explicado por meio de seus sonhos, então transformados em portais para sua psiquê. É por meio deles que Jiro se justifica e se posiciona: afinal, "é melhor viver em um mundo sem pirâmides ou com pirâmides?" A pergunta, na verdade, coloca diante de Jiro - e de cada um de nós - o questionamento ético sobre os limites das ações que são capazes de produzir grandeza e beleza, mas a elevados custos humanos. Ora, o tempo apaga as mazelas, enquanto a obra permanece, pensa Jiro. A guerra, portanto, era conjuntural, passageira. Já a engenharia brilhante de seus aviões, esta permaneceria.
Essa é, portanto, a justificativa de Jiro para suas ações. Foi sua escolha. Isso significa dizer que o diretor compactua com ela? Um olhar atento para o filme demonstra que não. Como foi falado, o protagonista constantemente é questionado sobre suas escolhas. E, para arrematar, Miyazaki sequer nos oferece um tempo para celebrar a conquista de Jiro, ao final: após conseguir triunfar em seus objetivos, a cena seguinte demonstra as consequências disso - cidades em chamas e a própria obra destruída, lançada ao chão pelos kamikazes. Ao atravessar o cemitério de aeronaves, teria Jiro cogitado se tudo aquilo valeu a pena? Miyazaki demonstra, sem ceder espaço a ambiguidades, que não. O preço que Jiro precisou pagar por suas escolhas foi caro demais.
É importante lembrar, por fim, que o filme reflete o momento histórico em que foi criado. Ele nos mostra como um desastre ambiental (o grande terremoto de Tóquio), aliado a uma grave crise econômica, ajudaram a lançar os japoneses numa corrida imperialista que, em última instância, levou o país à guerra. Ora, a situação do Japão no momento em que o filme foi realizado era semelhante: a crise intermitente que vem desde os finais dos anos 90 chocou-se com o acidente nuclear de Fukushima, que precipitou o já conhecido conservadorismo japonês a uma tentativa infame de se alterar a Constituição, que proíbe expressamente o país de participar de guerras (em um período de intensas rusgas com a China).
Miyazaki, portanto, manteve-se fiel a seus ideais: a defesa intransigente da ecologia e do pacifismo. O mestre despediu-se com sua obra mais madura e complexa, deixando o mundo um pouco mais triste pela aposentadoria de um talento ímpar, uma voz que merecia ser ouvida, mas também muito feliz por toda a contribuição artística que ele e seu estúdio nos proporcionaram... Foi uma honra, Miyazaki.
Em 2006, Bong Joon-Ho já mostrava às plateias, por meio do tradicional blockbuster de monstro gigante, como governos e empresas acuados por alguma ameaça desconhecida poderiam revelar sua faceta mais violenta, gananciosa, corrupta e, por que não, subserviente. Mas não só isso. Afinal, o diretor não abandonou sua marca de crítico social da realidade sul-coreana. "O hospedeiro" também traz um subtexto atado fortemente à história recente de seu país (assim como o Brasil, uma jovem democracia).
De um Estado com pouca autonomia perante a China, a península da Coreia passou a fazer parte do Império Japonês já em 1910 para, ao final da Segunda Guerra Mundial, ser artificialmente divida em duas. É nesse período, por sinal, o início da ocupação militar estadunidense em seu território, que durará mais de 50 anos de investimentos maciços, mas também de gradativa implantação do neoliberalismo. E, claro, de apoio às ditaduras e todo o teatro político que elas carregam: repressão, violência, assassinatos políticos, golpes, deposições, leis marciais e protestos de estudantes. Protestos dos quais um dos personagens desse filme participou para encontrar, na Coreia democratizada e neoliberal, o desemprego.
Sucesso de bilheteria, "O hospedeiro" revigorou sua temática de monstros pela direção de Bong Joon-Ho e sua costumeira mescla de gêneros cinematográficos. Indo além, o filme também introduziu nessa situação críticas sutis à história tortuosa da Coreia do Sul. Pode não ser o melhor do diretor, mas certamente tem algo a dizer.
Min-hyuk traz um presente à família Kim: uma pedra cuja propriedade é a atração de riqueza aos seus possuidores. O presente é inútil, "comida seria melhor", diz a matriarca Chung-sook. O presente, contudo, gera efeito e cria no jovem Ki-woo a expectativa de enriquecimento da família, a partir de relações parasitárias dos Kim para com os Park.
Mas será isso? Ora, no atual modelo econômico a opulência de poucos se dá através da exploração de muitos. Exploração que, por sinal, só se torna possível graças a um exército de trabalhadores que permitem aos ricos desenvolverem suas atividades e, concomitantemente, oferecer o suporte necessário para que sua prole mantenha ou até mesmo supere o status favorecido da família; daí a necessidade de motoristas, governantas, cozinheiros e professores particulares. Uma relação parasitária, portanto, cunhada para produzir a desigualdade.
Inverosímel, dirão alguns! Se assim o fosse, por que as classes exploradas não se revoltariam? Bem, retornemos ao começo do filme. O modelo capitalista, como a pedra inútil, também cria ilusões de bonança por meio de redes ideológicas que perpassam os mais diversos setores de uma sociedade. Há quem acredite em fantasias. Quase todos creem em quimeras. Desse modo, os pobres não se percebem pobres e não colaboram entre si. Competem, desprezam-se, destroem-se. Chegam a acreditar que, ao subir um degrau, igualaram-se aos patrões. Tornaram-se Park ou estão em vias de se tornar. Mas vejam a ironia da situação: o cheiro do pobre não o abandona, está lá para recordar seu lugar de subalternidade. E a pedra que incita os sonhos de prosperidade pode ser a mesma que despedaça o sonhador.
Lançado em 1991, "A bela e a fera" conseguiu ser a primeira animação indicada ao Oscar de melhor filme. Sua versão live-action, lançada em 2017, faturou mais de 1,2 bilhão de dólares em bilheteria. Ora, ignorando-se o primor técnico dessas produções, ficamos com filmes nos quais um sujeito aprisiona uma mulher em sua casa para que, durante o período de convivência, laços afetivos sejam construídos. Nada muito diferente do que se viu aqui...
O sucesso financeiro e as críticas positivas que "A bela e a fera" angariaram, portanto, chocam-se com a indignação recebida por "Ata-me". Penso que Almodóvar, um diretor tão cuidadoso no trato de suas personagens femininas, fez desse filme uma peça provocativa às nossas sensibilidades. O filme te causou repulsa? Que bom! O filme te causou comoção? Procure ajuda psiquiátrica.
Quase todo grande cineasta cria, em algum momento, sua obra metalinguística. De Abbas Kiarostomi a Federico Fellini, passando por François Truffaut, Woody Allen, Joel e Ethan Coen, Alejandro Iñarritu, Martin Scorsese, Pedro Almodóvar, David Lyncher, Paul Thomas Anderson, Godard e Billy Wilder. Era esperado que Tarantino, um dos diretores que mais idolatram a sétima arte, também o fizesse, agora que ele se encontra no crepúsculo de sua carreira. Aventurar-se a ingressar nesse seleto grupo é algo que demanda argúcia, visão criativa, responsabilidade, conhecimentos e certa maturidade, o que o diretor já demonstrou possuir de sobra. Mas, ainda assim, por que "Era uma vez em Hollywood" não funcionou para mim?
Penso que, de uns tempos pra cá, os filmes de Tarantino tem me atraído menos, por conta de seus roteiros inchados. O excesso de situações e diálogos que pouco acrescentam ao desenvolvimento dos personagens e da trama já me enervam. Com o filme em questão, atingiu-se o paroxismo. Após "Bastardos Inglórios", ficou claro para mim a abrupta queda do talento narrativo do diretor. Não por acaso, "Bastardos" também marca o trágico encerramento da parceria de Tarantino com Sally Menke, falecida em 2010, que realizava a montagem de seus filmes desde "Cães de aluguel". Para meu gosto pessoal, acredito que pelo menos metade do prestígio dos filmes anteriores do diretor se devia ao excepcional trabalho de Menke, uma vez que seu substituto, o antigo assistente Fred Raskin, não mostrou igual valentia para montar filmes que agradem mais ao público do que ao ego de Tarantino.
Não obstante, reconheço que, à parte a falta de carisma dos personagens e da história de "Era uma vez em Hollywood", que tenta compreender as transformações ocorridas no Cinema americano na virada dos anos 60 para os intensos e violentos anos 70, à parte todos os defeitos do filme... seu final me comoveu. E conhecer de antemão a terrível história de Sharon Tate é fundamental para isso. Ignorando-se os problemas do filme, vejo nele um belo tributo a uma atriz que, sempre lembrada por sua morte, foi aqui eternizada em sua beleza, frescor e juventude... a promessa de uma Hollywood que poderia ter sido, se tudo não terminasse com um "era uma vez"...
Cláudia é arrastada por uma viatura policial. Denunciado pela mãe, o uniforme escolar de Marcos Vinícius tem manchas de seu sangue. Carlos, Cleiton, Wilton e Wesley saem para comemorar o primeiro salário de Roberto - o carro é alvejado 111 vezes. Marielle Franco toma quatro tiros na cabeça. Sônia, da etnia caingangue, tal como a Pietá segura o corpo do bebê Vitor, degolado em seus braços. Espancada, asfixiada e defenestrada, Isabella foi morta pelo próprio pai. O jovem Itaberli, gay, é queimado pela mãe em um canavial. 80 tiros por engano roubam a vida de Evaldo. Agatha morre na van escolar. Lanterna, furadeira e guarda-chuva são confundidos com armas em mãos escuras (...)
Há algo de muito errado acontecendo no Brasil. Os casos de violência incontida tingiram de sangue o cotidiano nacional e apontaram um profundo mal-estar em nossa sociedade, algo camuflado nos anos de expansão democrática. Os crimes de ódio crescem deixando desnorteados os observadores mais atentos, que compreendem que tais fenômenos, longe de serem "casos isolados", fazem girar cada vez mais nossa roda viva de iniquidades. O país está à venda, seus recursos naturais são pechinchados, a carne negra é a mais barata, o governador aponta um fuzil para o lado pobre da cidade, o fantasma do Integralismo ressurge e um homem senta no bar portando a suástica. Com famílias divididas e amizades desfeitas, na Alvorada de 2019 encabeça a nação o mais sincero legionário de Brilhante Ustra.
Nesse espírito de anomalia social gestou-se "Bacurau". No filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles estranhos acontecimentos, como os citados acima, também prenunciam catástrofes ainda maiores, também traduzem um estado de coisas invulgar: caixões jazem na estrada, um carro-pipa se torna alvo, a cidade some do mapa, misteriosos forasteiros aparecem, chacinas vitimizam idosos, homens e mulheres formados, e até criança. O Brasil de "Bacurau" está partido, as execuções públicas se tornaram espetáculo, o teimoso colonialismo volta a nos deixar de joelhos perante os países centrais, aqui representados pelos invasores estadunidenses...
Mendonça e Dornelles não sucumbem ao derrotismo infecundo, mostram-nos que apenas a união da cidade, microcosmo de nossa pátria, permitirá o triunfo sobre as forças políticas e imperialistas que insistem em nos rebaixar e violentar. Bacurau deu o recado. O Brasil de suas classes baixas e médias compreenderá?
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Os Banshees de Inisherin
3.9 567 Assista AgoraEm leitura preliminar, o filme "Os Banshees de Inisherin" se apresenta como um tratado sobre a solidão e a busca por propósitos na vida. O ordinário, o trivial e a simplicidade (representados por Pádraic) são um empecilho para que Colm alcance seu objetivo de ser reconhecido pela arte, de ser lembrado por ter deixado algo de valor em sua passagem pela Terra. O rompimento entre estes dois amigos, portanto, seria inevitável.
No entanto, creio que a nova produção de Martim McDonagh vá além disso. Ao inserir sua obra no contexto da Guerra Civil Irlandesa, o diretor quis transmitir uma mensagem melancólica e desesperançada sobre o conflito fratricida que dividiu a pátria de seus pais. O interesse em estudar essa nação se nota desde o título até a fotografia do filme. As Banshees, arautas da morte e do infortúnio na mitologia celta, surgem aqui como uma velha sinistra. A grama da ilha, tingida de um verde inexistente, evoca a cor nacional. E a imigração, que marca a história irlandesa desde os tempos do Absolutismo, fica demonstrada pelo destino de Siobhan.
Sendo assim, quando o roteiro nos coloca em uma situação absurda, inexplicável, como foi o rompimento da amizade de Colm e Pádraic, ele também nos aponta para o incompreensível cenário da guerra desabrochada no seio de uma mesma família, de uma mesma nação. Os irlandeses, unidos durante o milenar conflito contra os ingleses, ao conquistarem sua frágil Independência voltaram-se uns contra os outros. Como entender isso? Como apreender um conflito em que ninguém venceu, em que - literalmente - perderam-se os anéis e os dedos?
Em seu quarto filme, até agora o mais intimista, Martim McDonagh faz perguntas que abrem uma ferida na história recente da República da Irlanda. Sem respostas, não restou ao artista nada além da dor, da desolação e da perplexidade de analisar um fenômeno que não pode ser explicado.
Tár
3.8 393 Assista Agora"Tár" é o filme provocativo dessa temporada, uma vez que ele toca no tema mais discutido pelas redes sociais: a cultura do cancelamento.
Se, inicialmente, a regente Lydia Tár é apresentada no auge de sua carreira e de sua vasta erudição, o filme não demora a pincelar certos atos e características que podem levantar suspeitas no espectador. É como ouvir algum componente em desacordo com a harmonia do restante da orquestra. Seriam indícios de uma natureza pútrida da personagem ou pequenos desvios que, afinal, todos possuímos? O filme não responde... E penso ser este o ponto de maior reflexão da obra.
Pois aqueles que apontam dedos acusatórios talvez não estejam vendo o quadro completo. Tomemos como exemplo o caso de Krista Taylor: teria sido ela realmente usada por Lydia Tár (que depois empenhou-se em destruir a carreira da pupila) ou seria Taylor uma pessoa perigosa, obsessiva e persecutória, como o filme parece demonstrar nos lampejos em que surge uma personagem misteriosa?
A escolha da jovem Olga como solista em uma peça se deveu a inconfessados interesses sexuais da maestra por ela (ação antiética diante da diferença de posições que ambas ocupavam naquela hierarquia) ou a um genuíno sentimento de sublime que lhe acometeu ao ouvir a interpretação musical da violoncelista russa?
E quanto à aspirante a regente Francesca? Ela foi preterida ao cargo de assistente da orquestra como uma forma de Tár afastar de si as denúncias de favorecimento e má conduta sexual com mulheres de seu meio? Ou ela não possuía, ainda, as qualidades necessárias para atuar na prestigiada Filarmônica de Berlim?
Berlim, por sinal, não foi escolhida ao acaso. A cidade presenciou dois dos maiores acontecimentos políticos do século XX: a nazificação e desnazificação e também a paranoia do autoritarismo comunista. O processo de desnazificação, inclusive, é citado no filme. O viés adotado foi o de que teria havido "excessos" nisso, com pessoas inocentes sendo perseguidas e acusadas de colaboracionismo com o regime hitlerista. Ora, investigações mais recentes vão dando demonstrações do contrário: a desnazificação se mostrou incompleta, um dos motivos que explicam a persistência de membros da extrema-direita até hoje em instituições e poderes do Estado germânico.
E é aí que começam minhas ressalvas ao filme de Todd Field. Para demonstrar sua tese de que a cultura do cancelamento atira em alvos ainda muito incertos, o diretor recorreu a argumentos discutíveis (como o caso citado acima) ou ao exagero de mostrar uma vídeo-montagem boba, cuja intenção era difamar Lydia Tár, mas que fugiu demais ao tom geral da fita.
Eu não sei o que penso sobre as críticas à cultura do cancelamento. Às vezes as julgo bastante adequadas, outras me parecem mero receio de ser descoberto e não poder mais alegar a execrável sentença de que "se deve separar a obra do artista". Ao fazer isso, podemos incorrer em situações no mínimo desagradáveis, como aquela em que Casey Affleck, que admitiu ter assediado duas profissionais que trabalhavam em seu filme, recebeu todos os prêmios de 2017 das mãos de Brie Larson - atriz que no ano anterior interpretou uma mulher sexualmente violentada.
O filme merece ser visto, já que ele proporciona grandes discussões pelo seu caráter enigmático e, por isso mesmo, provocativo. Seria a protagonista uma artista devotada às mulheres ou uma mulher devotada à arte? Ao escolher uma dessas chaves de leitura, o espectador passará a julgar as ações de Tár a partir de sua personalidade. Ao não oferecer respostas prontas, Todd Field permitiu que cada espectador, com seus valores e convicções, absolvesse, condenasse ou se abstivesse no julgamento de Lydia Tár - desnecessário dizer, magistralmente interpretada por Cate Blanchett.
Tudo em Todo O Lugar ao Mesmo Tempo
4.0 2,1K Assista AgoraNum misto de "Matrix", "Ricky and Morty" e "Sense8", Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é exatamente o que se pode esperar de um filme com esse título: é maluco, frenético, e cheio de conceitos e regras que desafiam nosso senso-comum. Mas é, ao mesmo tempo, uma história familiar que solidifica valores tradicionais (EM UM BOM SENTIDO) ao mesmo tempo em que questiona o sentido da vida e o peso de nossas escolhas.
Ao adentrar o multiverso, a personagem de Michelle Yeoh consegue, também, acessar infinitas realidades paralelas criadas a cada decisão que ela toma (ir ou ficar, casar ou não, percorrer tal ou qual caminho, colocar um pedaço de papel na direita ou esquerda, etc).
Dessa forma, como não se estagnar perante a dolorosa, ainda que deliciosa, ideia dos outros "eus" que poderíamos ter sido? Mais fortes, mais belos, mais talentosos, mais inteligentes, mais famosos... Ou, até mesmo, como não sucumbir (como aconteceu a uma personagem do filme) ao niilismo, à ausência de sentido das coisas ao nosso redor, à banalidade de ser mais um dentre trilhões? Como unir, afinal, o amor fati ao eterno retorno, como formulou o filósofo?
"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" decide apostar nos valores familiares. Pode parecer mesquinharia burguesa frente à proposta amalucada do longa, mas eu vejo como uma tentativa de oferecer respostas à era histórica em que vivemos, na qual atitudes como deixar partir, abrir mão, ou pouco se importar estão a uma tecla de bloqueio de distância.
Nesse momento de fragmentação das famílias e de disputas entre valores progressistas e reacionários, o filme dos Daniels nos instiga a lutar por nossas relações, construir pontes e fortalecer estruturas. E, ainda que o filme busque nos convencer dessa solução apelando para estratagemas como "é isso ou a destruição do universo", no fundo ele tenta nos dizer que tal luta só vale a pena ser tomada quando TODAS as partes se unem por um objetivo em comum: a lembrança de que, a despeito das coisas que nos separam, é possível buscar pontos saudáveis de união.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um fenômeno da Sétima Arte, que alegria foi ver uma produção como essa! Talvez eu precise ligar mais para minha mãe...
Não Olhe para Cima
3.7 1,9K Assista AgoraCaso tivesse sido rodado antes de Trump, Erdogan, Putin e Bolsonaro, sem contar outros tantos governos (intencionalmente) desastrosos no combate à pandemia e no manejo da questão climática, "Não olhe para cima" poderia ser acusado de sensacionalismo barato. Infelizmente, como apresenta em seu cartaz, os eventos absurdos são possivelmente reais.
A nova sátira de Adam Mckay aponta sua artilharia para a cultura do século XXI: as redes sociais, os memes, o comportamento de manada, a vida íntima das celebridades, os políticos grosseiros e desqualificados, a mídia vazia, os bilionários viajantes do espaço, os conspiracionistas, os negacionistas científicos, as fake news, a divisão das famílias e, em meio a tudo isso, pequenas células de bom-senso que precisam falar, explicar e gritar o óbvio: o aquecimento global existe, as vacinas são eficazes, a terra não é plana.
No entanto, ainda que as visões expostas por Mckay sobre a política, o sistema econômico e a validade do método científico ressoem em mim, isso não significa que o filme automaticamente passe a ter boas qualidades. Afinal, a comédia, mais do que qualquer outro gênero cinematográfico, é extremamente pessoal: o que faz uns rirem, em outros não surte efeito. O filme me pareceu chato, mal desenvolvido, sem graça e muito mais longo do que deveria.
Além do mais, o roteiro parece criticar tudo, menos a religião, que foi trabalhada com uma solenidade que destoa do tom geral da produção. Ora, é inegável a participação de certas lideranças religiosas no grande hospício que virou esse planeta de uns anos para cá. Tal covardia é reveladora e me fez desgostar ainda mais de "Não olhe para cima". A premissa pode ter sido boa, eu posso ter concordado com quase tudo que vi ali, mas o desenvolvimento foi nada menos do que torturante.
Nomadland
3.9 896 Assista AgoraQuando eu soube da temática de "Nomadland" imaginei que este filme adotaria o caminho mais óbvio: uma crítica ao modelo econômico estadunidense, que promove crises que ressoam sempre no lado mais humilde da sociedade. O tom de denúncia existe, mas, surpreendentemente, o filme não se resume a ele - sequer segue essa linha como diretriz.
Além das questões econômicas, o longa da diretora Chloe Zhao defende a ideia de que os nômades americanos partem em busca de algo. São, quase sempre, solitários que não tem razões para se prenderem em um único lugar, em um único modo de vida. Talvez seja por isso que a fotografia de Joshua James Richards faça tributo à monumentalidade. As estradas parecem sempre continuar, as paisagens são muitas, infinitas. Tudo é grande, pois grandes são as formas de se viver e de buscar sentidos para a existência.
E se os nômades são solitários, também é verdade que eles encontram na fugaz convivência entre seus pares o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Uma comunidade que, como disse a irmã de Fern, faz parte de uma tradição nacional que remonta aos peregrinos. Se, em séculos passados, estes adentraram o continente motivados pela cobiça e pelo genocídio indígena, os peregrinos do século XXI buscam, ao desbravar territórios, um aprofundamento em seu próprio ser. Uma negação aos vorazes valores de consumo e posse que marcam o contemporâneo. Os nômades procuram por si mesmos, um lugar em um não-lugar.
Longe do Paraíso
3.8 170 Assista AgoraPor detrás da aparente convencionalidade de "Longe do paraíso" existe uma proposta ousada, algo que não me recordo de haver acontecido em outro filme de romance.
Aqui, o relacionamento amoroso não floresce, nunca vai além de um toque ou um olhar cheio de desejo. As razões para isso são tanto pessoais, quanto sociais: para Cathy Whitaker, criada rigorosamente nos códigos de conduta da mulher submissa, bela-recatada-e-do-lar, entregar-se a suas vontades é algo impossível. Para a sociedade do período de segregação, o contato entre brancos e negros jamais poderia ir além da relação profissional.
No entanto, por mais interessante que seja a proposta do filme, ele não atinge seus objetivos. Penso que Todd Haynes resolveu criar uma obra que foge da fórmula clássica da heroína que se vê confrontada com uma nova situação, age visando a retomada do equilíbrio anterior, até que aprende a conduzir-se por este novo mundo e, finalmente, muda. Para Haynes, tal arco ficcional clássico de personagem não aconteceria para mulheres rigidamente controladas pelos códigos sociais conservadores dos anos 50. Se ganha pontos por originalidade, também é verdade que acabou gerando, em mim, distanciamento dos dramas da protagonista; ela é tão submissa e apática que sua história pouco comove.
Além disso, outra grave falha do roteiro é a atenção demasiada que foi dada para a subtrama do marido homossexual enrustido. Afinal, durante muito tempo fiquei imaginando que a história se centraria em torno desses dois eixos, o que não aconteceu. O marido praticamente desaparece em certos momentos e o filme passa a se focar no relacionamento de Raymond e Cathy, quando já é tarde demais para criar vínculos e torcer pelo "casal".
Há audácia nesse filme, os temas são fortes e ainda candentes na sociedade estadunidense. É uma pena, portanto, que o desenvolvimento foi falho - muito em razão da própria originalidade a que ele se propôs mas, também, de escolhas equivocadas de roteiro.
Direito de Amar
4.0 1,1K Assista AgoraA palavra "single" pode conter vários significados, pelo modo como foi empregada no título original: pode se tratar de um "homem solteiro", mas também "só" (no sentido de solitário) e "singular". O filme de Tom Ford foi hábil em mostrar, ao longo de um único dia, como George Falconer se enquadra realmente em todas essas características.
O trabalho do diretor é cheio de estilo e busca demonstrar, com o uso das cores, momentos de picos e declínios sentimentais que o personagem experimentou, enquanto atravessava profundo luto. A atuação de Colin Firth, que neste filme alcançou o melhor de sua carreira, é fundamental para que o filme chegue até sua mensagem. Há lirismo, elegância e uma trágica beleza em toda essa história, sem deixar de lado o aspecto de denúncia ao nos expor a subcidadania a que homossexuais foram e continuam a ser relegados em nossa sociedade.
Já sobre o final... parece não escapar da tópica dos chamados "filmes lgbtq". Alguém tem que morrer. Falconer, que buscou a morte na maior parte da projeção, reencontra-se com o êxtase da vida quando já é tarde demais para uma segunda chance.
O Grande Gatsby
3.9 2,7K Assista AgoraBaz Luhrmann é um esteta. Basta pegar qualquer um de seus cinco longas-metragens para entender que a trama é uma banal história de amor usada como desculpa para exercitar o deslumbre visual que caracteriza o diretor. Esse é o universo que ele cria, esse é o modo que ele enxerga as coisas. Sendo assim, não havia ninguém melhor para dirigir "O grande Gatsby" do que Baz Luhrmann.
Explicando a afirmação acima: o livro de F. Scott Fitzgerald retrata as novas e velhas elites dos Estados Unidos, que naquele primeiro quartel do século XX se convertiam na maior potência mundial. Há, na obra, uma crônica de seu tempo e uma crítica ao poder do dinheiro (que vem sempre dissociado do caráter e da "profundidade" do ser - Gatsby, Tom, Dayse e Jordan são todos levianos). Mas o livro falha, em minha opinião. Ele tenta, mas não consegue se livrar da armadilha de retratar indivíduos (ou, vá lá, tipos sociais) frívolos sem ser a própria obra algo frívolo. Ela tenta se mostrar profunda, crítica, analítica, mas não sai da superfície.
E o que faz Baz Luhrmann? Mergulha de cabeça na superficialidade de "O grande Gatsby". Compõe um melodrama cheio de força, luz e som. Traz alguma crítica social, mas não tenta ser mais do que é, não tenta disfarçar a leviandade do fenômeno que observa. O filme é uma festa de abundância, uma patuscada estilística. É leve, é frívolo, e é, acima de tudo, um estonteante delírio visual.
Mank
3.2 462 Assista AgoraAntes de tudo, é preciso salientar que "Mank" não é o tipo de filme que se assiste despretensiosamente em um dia qualquer. Para conseguir imergir em sua história é necessário ter visto "Cidadão Kane" e conhecer o cenário amplo da Hollywood dos anos 30 e 40 (crise econômica, estúdios, personalidades, e até técnicas cinematográficas). Dito isso, o filme pretende demonstrar, por meio de flashbacks, como foi criada a primeira versão do roteiro de "Cidadão Kane".
A eleição de 1934 para o governo da Califórnia é um ponto fundamental para compreender a trajetória dos personagens de "Mank", pois ela dividiu um estado ainda bastante afetado pela crise de 1929. A paranoia anticomunista já se anunciava e, para derrotar a esquerda, usava-se de todos os artifícios - de notícias falsas ao poder de convencimento dos conglomerados midiáticos e até mesmo dos grandes estúdios. A campanha suja para eleger Frank Merriam e derrotar o progressista Upton Sinclair, encabeçada pelo magnata da imprensa William Randolph Hearst e por produtores cinematográficos (como Louis B. Mayer) chocou o roteirista Herman J. Mankiewicz. Anos depois, isso acabou por inspirá-lo a conceber "Cidadão Kane", filme que, juntamente com seu diretor, Orson Welles, seria covardemente perseguido.
Enquanto assistia "Mank", contudo, uma reflexão aflorou em mim. Quem é, hoje, William Randolph Hearst? Um dos homens mais poderosos de seu tempo foi esquecido e não passa de uma nota de rodapé - ou, no máximo, um capítulo - na história de "Cidadão Kane". Ficou a arte. Ela provou que é o verdadeiro poder imorredouro, contra a mesquinharia de Hearst e seu mundo de dólares. Ao pensar nos tempos em que vivemos, de mentiras, perseguições e declínio democrático, como não acreditar que, também, os tiranos soçobrarão e os artistas permanecerão? "Mank" reflete a força da arte - e, por isso mesmo, a responsabilidade do artista ao se posicionar. Como é gratificante, então, ver David Fincher posicionando-se no lado certo da História!
Há, contudo, alguns pontos negativos: esse filme é um produto americanissíssimo, o que pode gerar certo distanciamento para outros públicos. Além disso, Fincher trata a primeira versão de "Cidadão Kane" como se fosse a definitiva, ignorando a seminal contribuição de Orson Welles (aqui reduzido a um mimado gritalhão) para a criação desse magnífico roteiro. Não é dos maiores filmes desse diretor, mas merece um cauteloso respeito.
Eu, Daniel Blake
4.3 532 Assista AgoraÉ com muita estranheza que revejo "Eu, Daniel Blake", quatro anos após seu lançamento. Estranheza, pois o mundo onde o filme se passa já não mais existe; a premissa e sua proposta já não mais se sustentam.
Afinal, em 2016 Boris Johnson sequer era cogitado como chefe de governo, a União Europeia se recuperava do debacle de oito anos atrás, Trump era uma piada política, e um golpe parlamentar não teria como se concretizar no quinto país mais populoso do mundo (e, na época, a sexta economia mundial).
No entanto, o que não se imaginava aconteceu: Steve Bannon catalisou a deterioração democrática de Estados que já há muito renunciaram a seus compromissos legais com o bem-estar social. Estados que se transformaram em joguetes nas mãos de bancos e seus agentes econômicos, que desestruturaram toda a rede de seguridade social (o que explica a ineficiência burocrática) para financiar uma micro minoria sedenta por ganhos, sem que houvesse qualquer contrapartida produtiva (bilionários rentistas e especuladores, que nunca geraram um mísero alfinete para seus países). E, mais do que isso, poderosos que usaram de todos os meios ideológicos para convencer a população de que eles eram vencedores exemplares e que os pobres eram culpados por sua situação, pois eram perdulários, preguiçosos, imprevidentes e acomodados. Mas a questão é mais profunda.
Não basta apontar a culpa em uma massa amorfa ("os pobres"), é preciso identificar. Desse modo, a premissa de "Eu, Daniel Blake", que trata de trabalhadores sem maiores qualificações (escolaridade, letramento digital) e apresenta, como proposta, a união comunitária contra a opressão de classe, não é capaz de trazer respostas ao mundo em que vivemos.
E este é o mundo das fake news, o reino encantado das soluções simplistas para problemas complexos, onde o problema está na imigração, na porosidade fronteiriça da União Europeia e no multiculturalismo. No mundo real, os trabalhadores de "Eu, Daniel Blake" uniram-se contra tudo isso para apoiar o Brexit, Trump, Bolsonaro e todas as excrecências que vivemos desde então.
Como unir, afinal, os trabalhadores? Como retomar a discussão econômica, a luta de classes, a democracia e a consolidação da pauta identitária, quando na ordem do dia encontramos apenas moralismo, nostalgia de um passado que nunca existiu, líderes grosseiros e o pensamento uniforme? Como apostar em uma rede de solidariedade que, na prática, mostrou-se excludente e reacionária? Como modificar tal caráter? Como retomar o trabalhismo e as grandes manifestações que construíram Estados menos desiguais pela camaradagem?
"Eu, Daniel Blake" não tem essas respostas. Talvez o filme seja a última tentativa - hoje ingênua - de apresentar uma tese sobre pobreza, exploração e consciência de classe. Mas... como é bela a tese. Como comove, como é humanista e aprofunda os laços entre o público e os personagens que se veem, que são imensos como a vida. Ao receber a Palma de Ouro, o diretor Ken Loach clamou para que o Cinema de protesto continue vivo. Por isso, ainda espero por um filme que responda os problemas que esses quatro anos nos trouxeram.
Eu, Daniel Blake
4.3 532 Assista AgoraDiscurso de Ken Loach ao receber a Palma de Ouro (2016):
"Obrigado a todos! Agradeço a toda equipe do filme, ao roteirista, à produtora, ao cinegrafista e todos os outros. Obrigado novamente. Obrigado ao Festival e a todos que trabalham pelo Festival, porque é graças a vocês que a experiência é tão bela. E obrigado a Cannes, porque o Festival é muito, muito importante para o futuro do Cinema. Por favor, mantenham-se fortes.
Receber esse prêmio, nessa situação, é muito estranho, porque é preciso lembrar-se de que os personagens que inspiraram esse filme são aqueles que passam fome na quinta nação mais rica do planeta.
É formidável fazer cinema, e como podemos ver esta noite, é muito importante. O cinema faz viver a nossa imaginação, traz sonhos ao mundo, mas também nos apresenta o mundo no qual vivemos. O mundo se encontra numa situação perigosa agora mesmo. Nós estamos nas garras de um projeto de austeridade que é conduzido pelas ideias que nós chamamos 'neoliberalismo', que quase nos trouxeram a catástrofe. Isso deixou bilhões de pessoas em sérias dificuldades e milhões lutando, da Grécia a Espanha, com uma pequena minoria que enriqueceu de maneira vergonhosa.
O cinema tem muitas tradições, uma delas é apresentar um cinema de protesto, um cinema que representa os interesses do povo contra os poderosos. Eu espero que essa tradição se mantenha.
Quando há desespero, as pessoas da extrema direita tomam vantagem. Alguns dentre nós tem idade suficiente para se lembrar onde isso pode levar. Desse modo, nós devemos dizer que outro mundo é possível e necessário."
A Vida Invisível
4.3 642"A vida invisível" abraça sem concessões o melodrama para contar seu épico familiar. Ao narrar desventuras amorosas, maternidade, vida conjugal, sexo, e a autoridade masculina (pai e marido), o filme nos detalha intimamente a história do calvário da mulher sob regime patriarcal. Contudo, a adaptação do livro de Martha Batalha, ao meu ver, fracassou por duas razões:
a) já existe uma história bastante parecida com essa, mas trabalhada de maneira superior ("A cor púrpura") por conseguir dosar melhor drama e comédia, além de não reduzir a vida de sua protagonista à busca incessante de sua irmã. Do jeito como ficou em "A vida invisível", Eurídice simplesmente parecia uma obcecada que nada mais fazia além de caçar a irmã. Não surpreende, portanto, que apesar de ser dela a "vida invisível" do título, Eurídice acabou obliterada - não pelo pai ou marido, mas sim pelo vazio da construção de sua personagem. Guida, por outro lado, é uma personagem com maior densidade. No entanto, seu arco poderia ser resolvido apenas se ela conversasse com os vizinhos de seus pais, denotando toda a fragilidade dessa estrutura narrativa. Além de "A cor púrpura", o filme de Karim Ainouz também aproxima-se de "Desejo e reparação", quando se considera o final, com a presença de uma grande atriz já idosa que, com economia de gestos e olhares, consegue transmitir décadas de perdas e arrependimentos. Tais problemas, contudo, poderiam ser esquecidos, não fosse a segunda razão.
b) As interpretações são fracas. Carol Duarte, Gregorio Duvivier e Julia Stockler não me convenceram. Em vários momentos senti que estava vendo amadores reproduzindo maquinalmente as palavras do roteiro (pense na cena da Silene Seagal, em "Saneamento básico"). O casal de portugueses eu pouco poderia dizer, já que não compreendi boa parte do que eles falavam.
Enfim, por mais que eu goste de um bom melodrama, "A vida invisível" não me desceu. Se fosse para copiar outras produções, que pelo menos dedicassem-se um pouco mais na construção da trama e na direção de elenco. E, ainda que a crítica e o público tenham se sentido agradados com essa história, sua indicação como filme brasileiro ao Oscar 2019 foi, claramente, mais um golpe contra Kleber Mendonça e o maior filme brasileiro deste século: "Bacurau".
Babel
3.9 996 Assista AgoraPara muitos, o terceiro filme da Trilogia do Caos, de Iñárritu, é o mais fraco. No entanto, 14 anos depois do lançamento de "Babel", ele parece crescer em sua relevância e falar ainda mais alto ao coração.
"Babel" traça o mal-estar de nosso século, que iniciou-se naquela manhã de 11 de setembro de 2001. O filme apresenta a violência das "guerras preventivas", a desconfiança nas relações internacionais, o tratamento desumano aos imigrantes, a brutalidade policial sofrida pelos explorados, e os lares em silenciosa desunião. Temas tão caros de nossa agenda que os anos apenas trouxeram agravamento, sem oferecer ainda expectativa de resolução...
A arte de Iñárritu, contudo, oferece-nos catarse. O diretor demonstra que, se a linguagem e as diferenças culturais nos lançam em uma Babel de desorientação e incomunicabilidade, também é possível buscarmos uma interlocução pelos sentimentos universais que nos unem: a dor, a solidão, o luto, o desejo, e a vontade de superação. Além, claro, da indignação perante os preconceitos e as injustiças que marcam a História. "Babel" é um chamado à conscientização, por meio dos afetos (que não respeitam qualquer fronteira). Nada melhor, portanto, do que encerrar esse comentário com a famosa frase atribuída a Che Guevara: "Se você treme de indignação perante uma injustiça, então somos companheiros".
O Rei do Show
3.9 897 Assista AgoraDe muito longe, a maior qualidade de "O rei do show" é seu repertório musical. As canções compostas pela dupla Benj Pasek e Justin Paul (de "La La Land") são contagiantes e narram a história com perfeição. O problema do filme, contudo, é o que acontece entre um número musical e outro.
O roteiro é pobre demais, até mesmo para um filme musical, que naturalmente já exige do espectador uma maior suspensão de descrença. Há, aqui, um amontoado de situações e conflitos simplesmente jogados em tela e resolvidos poucos minutos depois - em 1h35m de filme vê-se conflitos de classe, utopia do self-made man, reinvenção dos negócios, relacionamento interracial em país escravocrata, marginalização social, ascensão e queda, triângulo amoroso, debate acerca da arte elevada vs. arte popular, preconceitos, empoderamento, encontro de si/retorno às origens, e, por fim, a ideia de que se deve passar o bastão para a geração mais nova. A falta de profundidade com que tantos assuntos são tratados e encerrados tem, como eco, a completa falta de tridimensionalidade dos personagens, que se convertem em instrumentos vazios do roteiro (algo é feito para se chegar a certo ponto, mas nada fica convincente nessa fórmula, os conflitos não são bem trabalhados).
No entanto, mais grave do que essa superficialidade é o fato de o filme romantizar excessivamente uma pessoa que, no melhor dos pontos de vista, foi um oportunista da desgraça alheia. Afinal, a figura carismática de Hugh Jackman nos impede de antipatizar com o protagonista e questionar a exploração que ele fazia de pessoas marginalizadas pela sociedade. Enquanto isso, os outros personagens do filme sequer possuem nome - ou não são pronunciados suficientemente para que os saibamos. Não passam, portanto, de "aberrações".
Talvez P.T. Barnum merecesse um filme. Mas, com certeza, não merecia um panegírico.
Vidas ao Vento
4.1 603 Assista Agora"Vidas ao vento" já foi acusado de trair os ideias de seu realizador, Hayao Miyazaki, ao supostamente romantizar a trajetória de Jiro Horikoshi, o responsável pela engenharia por trás dos aviões de guerra japoneses. Mas a crítica não procede.
Realizar um estudo de personagem, como é o caso desse filme, não significa compactuar com o que se mostra. Pelo contrário, a todo momento Miyazaki confrontava seu protagonista diante das escolhas do mesmo: em certo momento alguém fala que a verba destinada aos projetos militares seria suficiente para alimentar a massa empobrecida do Japão dos anos 30; em outro mostra-se a negligência de Jiro com sua família, aqui representada pela irmã, que vai aos poucos se afastando e mantendo uma relação eminentemente formal com ele; a seguir vê-se o abandono de sua jovem esposa desenganada...
O que faz o protagonista prosseguir sua jornada, colocar o trabalho a frente de tudo, é explicado por meio de seus sonhos, então transformados em portais para sua psiquê. É por meio deles que Jiro se justifica e se posiciona: afinal, "é melhor viver em um mundo sem pirâmides ou com pirâmides?" A pergunta, na verdade, coloca diante de Jiro - e de cada um de nós - o questionamento ético sobre os limites das ações que são capazes de produzir grandeza e beleza, mas a elevados custos humanos. Ora, o tempo apaga as mazelas, enquanto a obra permanece, pensa Jiro. A guerra, portanto, era conjuntural, passageira. Já a engenharia brilhante de seus aviões, esta permaneceria.
Essa é, portanto, a justificativa de Jiro para suas ações. Foi sua escolha. Isso significa dizer que o diretor compactua com ela? Um olhar atento para o filme demonstra que não. Como foi falado, o protagonista constantemente é questionado sobre suas escolhas. E, para arrematar, Miyazaki sequer nos oferece um tempo para celebrar a conquista de Jiro, ao final: após conseguir triunfar em seus objetivos, a cena seguinte demonstra as consequências disso - cidades em chamas e a própria obra destruída, lançada ao chão pelos kamikazes. Ao atravessar o cemitério de aeronaves, teria Jiro cogitado se tudo aquilo valeu a pena? Miyazaki demonstra, sem ceder espaço a ambiguidades, que não. O preço que Jiro precisou pagar por suas escolhas foi caro demais.
É importante lembrar, por fim, que o filme reflete o momento histórico em que foi criado. Ele nos mostra como um desastre ambiental (o grande terremoto de Tóquio), aliado a uma grave crise econômica, ajudaram a lançar os japoneses numa corrida imperialista que, em última instância, levou o país à guerra. Ora, a situação do Japão no momento em que o filme foi realizado era semelhante: a crise intermitente que vem desde os finais dos anos 90 chocou-se com o acidente nuclear de Fukushima, que precipitou o já conhecido conservadorismo japonês a uma tentativa infame de se alterar a Constituição, que proíbe expressamente o país de participar de guerras (em um período de intensas rusgas com a China).
Miyazaki, portanto, manteve-se fiel a seus ideais: a defesa intransigente da ecologia e do pacifismo. O mestre despediu-se com sua obra mais madura e complexa, deixando o mundo um pouco mais triste pela aposentadoria de um talento ímpar, uma voz que merecia ser ouvida, mas também muito feliz por toda a contribuição artística que ele e seu estúdio nos proporcionaram... Foi uma honra, Miyazaki.
O Hospedeiro
3.6 549 Assista AgoraEm 2006, Bong Joon-Ho já mostrava às plateias, por meio do tradicional blockbuster de monstro gigante, como governos e empresas acuados por alguma ameaça desconhecida poderiam revelar sua faceta mais violenta, gananciosa, corrupta e, por que não, subserviente. Mas não só isso. Afinal, o diretor não abandonou sua marca de crítico social da realidade sul-coreana. "O hospedeiro" também traz um subtexto atado fortemente à história recente de seu país (assim como o Brasil, uma jovem democracia).
De um Estado com pouca autonomia perante a China, a península da Coreia passou a fazer parte do Império Japonês já em 1910 para, ao final da Segunda Guerra Mundial, ser artificialmente divida em duas. É nesse período, por sinal, o início da ocupação militar estadunidense em seu território, que durará mais de 50 anos de investimentos maciços, mas também de gradativa implantação do neoliberalismo. E, claro, de apoio às ditaduras e todo o teatro político que elas carregam: repressão, violência, assassinatos políticos, golpes, deposições, leis marciais e protestos de estudantes. Protestos dos quais um dos personagens desse filme participou para encontrar, na Coreia democratizada e neoliberal, o desemprego.
Sucesso de bilheteria, "O hospedeiro" revigorou sua temática de monstros pela direção de Bong Joon-Ho e sua costumeira mescla de gêneros cinematográficos. Indo além, o filme também introduziu nessa situação críticas sutis à história tortuosa da Coreia do Sul. Pode não ser o melhor do diretor, mas certamente tem algo a dizer.
Parasita
4.5 3,6K Assista AgoraMin-hyuk traz um presente à família Kim: uma pedra cuja propriedade é a atração de riqueza aos seus possuidores. O presente é inútil, "comida seria melhor", diz a matriarca Chung-sook. O presente, contudo, gera efeito e cria no jovem Ki-woo a expectativa de enriquecimento da família, a partir de relações parasitárias dos Kim para com os Park.
Mas será isso? Ora, no atual modelo econômico a opulência de poucos se dá através da exploração de muitos. Exploração que, por sinal, só se torna possível graças a um exército de trabalhadores que permitem aos ricos desenvolverem suas atividades e, concomitantemente, oferecer o suporte necessário para que sua prole mantenha ou até mesmo supere o status favorecido da família; daí a necessidade de motoristas, governantas, cozinheiros e professores particulares. Uma relação parasitária, portanto, cunhada para produzir a desigualdade.
Inverosímel, dirão alguns! Se assim o fosse, por que as classes exploradas não se revoltariam? Bem, retornemos ao começo do filme. O modelo capitalista, como a pedra inútil, também cria ilusões de bonança por meio de redes ideológicas que perpassam os mais diversos setores de uma sociedade. Há quem acredite em fantasias. Quase todos creem em quimeras. Desse modo, os pobres não se percebem pobres e não colaboram entre si. Competem, desprezam-se, destroem-se. Chegam a acreditar que, ao subir um degrau, igualaram-se aos patrões. Tornaram-se Park ou estão em vias de se tornar. Mas vejam a ironia da situação: o cheiro do pobre não o abandona, está lá para recordar seu lugar de subalternidade. E a pedra que incita os sonhos de prosperidade pode ser a mesma que despedaça o sonhador.
Ata-me!
3.7 550Lançado em 1991, "A bela e a fera" conseguiu ser a primeira animação indicada ao Oscar de melhor filme. Sua versão live-action, lançada em 2017, faturou mais de 1,2 bilhão de dólares em bilheteria. Ora, ignorando-se o primor técnico dessas produções, ficamos com filmes nos quais um sujeito aprisiona uma mulher em sua casa para que, durante o período de convivência, laços afetivos sejam construídos. Nada muito diferente do que se viu aqui...
O sucesso financeiro e as críticas positivas que "A bela e a fera" angariaram, portanto, chocam-se com a indignação recebida por "Ata-me". Penso que Almodóvar, um diretor tão cuidadoso no trato de suas personagens femininas, fez desse filme uma peça provocativa às nossas sensibilidades. O filme te causou repulsa? Que bom! O filme te causou comoção? Procure ajuda psiquiátrica.
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraQuase todo grande cineasta cria, em algum momento, sua obra metalinguística. De Abbas Kiarostomi a Federico Fellini, passando por François Truffaut, Woody Allen, Joel e Ethan Coen, Alejandro Iñarritu, Martin Scorsese, Pedro Almodóvar, David Lyncher, Paul Thomas Anderson, Godard e Billy Wilder. Era esperado que Tarantino, um dos diretores que mais idolatram a sétima arte, também o fizesse, agora que ele se encontra no crepúsculo de sua carreira.
Aventurar-se a ingressar nesse seleto grupo é algo que demanda argúcia, visão criativa, responsabilidade, conhecimentos e certa maturidade, o que o diretor já demonstrou possuir de sobra. Mas, ainda assim, por que "Era uma vez em Hollywood" não funcionou para mim?
Penso que, de uns tempos pra cá, os filmes de Tarantino tem me atraído menos, por conta de seus roteiros inchados. O excesso de situações e diálogos que pouco acrescentam ao desenvolvimento dos personagens e da trama já me enervam. Com o filme em questão, atingiu-se o paroxismo. Após "Bastardos Inglórios", ficou claro para mim a abrupta queda do talento narrativo do diretor. Não por acaso, "Bastardos" também marca o trágico encerramento da parceria de Tarantino com Sally Menke, falecida em 2010, que realizava a montagem de seus filmes desde "Cães de aluguel". Para meu gosto pessoal, acredito que pelo menos metade do prestígio dos filmes anteriores do diretor se devia ao excepcional trabalho de Menke, uma vez que seu substituto, o antigo assistente Fred Raskin, não mostrou igual valentia para montar filmes que agradem mais ao público do que ao ego de Tarantino.
Não obstante, reconheço que, à parte a falta de carisma dos personagens e da história de "Era uma vez em Hollywood", que tenta compreender as transformações ocorridas no Cinema americano na virada dos anos 60 para os intensos e violentos anos 70, à parte todos os defeitos do filme... seu final me comoveu. E conhecer de antemão a terrível história de Sharon Tate é fundamental para isso. Ignorando-se os problemas do filme, vejo nele um belo tributo a uma atriz que, sempre lembrada por sua morte, foi aqui eternizada em sua beleza, frescor e juventude... a promessa de uma Hollywood que poderia ter sido, se tudo não terminasse com um "era uma vez"...
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraCláudia é arrastada por uma viatura policial. Denunciado pela mãe, o uniforme escolar de Marcos Vinícius tem manchas de seu sangue. Carlos, Cleiton, Wilton e Wesley saem para comemorar o primeiro salário de Roberto - o carro é alvejado 111 vezes. Marielle Franco toma quatro tiros na cabeça. Sônia, da etnia caingangue, tal como a Pietá segura o corpo do bebê Vitor, degolado em seus braços. Espancada, asfixiada e defenestrada, Isabella foi morta pelo próprio pai. O jovem Itaberli, gay, é queimado pela mãe em um canavial. 80 tiros por engano roubam a vida de Evaldo. Agatha morre na van escolar. Lanterna, furadeira e guarda-chuva são confundidos com armas em mãos escuras (...)
Há algo de muito errado acontecendo no Brasil. Os casos de violência incontida tingiram de sangue o cotidiano nacional e apontaram um profundo mal-estar em nossa sociedade, algo camuflado nos anos de expansão democrática. Os crimes de ódio crescem deixando desnorteados os observadores mais atentos, que compreendem que tais fenômenos, longe de serem "casos isolados", fazem girar cada vez mais nossa roda viva de iniquidades. O país está à venda, seus recursos naturais são pechinchados, a carne negra é a mais barata, o governador aponta um fuzil para o lado pobre da cidade, o fantasma do Integralismo ressurge e um homem senta no bar portando a suástica. Com famílias divididas e amizades desfeitas, na Alvorada de 2019 encabeça a nação o mais sincero legionário de Brilhante Ustra.
Nesse espírito de anomalia social gestou-se "Bacurau". No filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles estranhos acontecimentos, como os citados acima, também prenunciam catástrofes ainda maiores, também traduzem um estado de coisas invulgar: caixões jazem na estrada, um carro-pipa se torna alvo, a cidade some do mapa, misteriosos forasteiros aparecem, chacinas vitimizam idosos, homens e mulheres formados, e até criança. O Brasil de "Bacurau" está partido, as execuções públicas se tornaram espetáculo, o teimoso colonialismo volta a nos deixar de joelhos perante os países centrais, aqui representados pelos invasores estadunidenses...
Haverá solução? A vitória é possível?
Mendonça e Dornelles não sucumbem ao derrotismo infecundo, mostram-nos que apenas a união da cidade, microcosmo de nossa pátria, permitirá o triunfo sobre as forças políticas e imperialistas que insistem em nos rebaixar e violentar. Bacurau deu o recado. O Brasil de suas classes baixas e médias compreenderá?