Apesar de se tratar de um filme ambientado no século XIV, O Último Duelo não parece muito diferente do mundo atual. A dúvida lançada diante da corajosa assertiva de uma mulher de que fora estuprada, a humilhação pública de ter suas entranhas reviradas, quando inquirida por homens que a obrigam a reviver a violência (veio à lembrança um caso judicial bastante recente), a falta de sororidade, estes são temas que ressoam com mais força na narrativa do que a colisão de versões.
Pois se Ridley Scott almejava realizar seu Rashomon, a verdade está evidenciada pelo próprio diretor quando introduz a terceira parte, o que pareceria tornar obsoletas as anteriores. Pareceria! Já que sua intenção é revelar que a dignidade de Marguerite não era nada senão o estágio derradeiro de um conjunto de atritos sociais e patrimoniais germinados muito antes. Aqueles homens mesquinhos e pequenos estavam mais preocupados com o orgulho e uma pretensa honra do que com o destino apresentado diante de uma mulher. A vendeta é a razão do duelo, não Marguerite, uma mera desculpa para tanto.
Com 3 versões, a partir de um roteiro co-escrito por Nicole Holofcener e os amigos Matt Damon e Ben Affleck, Ridley Scott promove mais um épico histórico que, acredito, seja capaz de dirigir de olhos vendados: a fotografia acinzentada colorida apenas por cores pastéis de vestidos de Marguerite - o detalhe da bochecha rosada chama-me a atenção -, a montagem caótica do campo de batalho e a cena do duelo digna da tensão praticada em Gladiador.
Seu trabalho de direção é facilitado por atuações marcantes: Matt Damon apropria-se do estereótipo do homem médio americano no campo de batalha francês, revelando-se bruto, insensível e com um sentimento de injustiça e inferioridade por não participar do círculo nobre. Já Adam Driver é ardiloso e político - deveriam ser sinônimos - para escalar os degraus do poder e manter o público em permanente estado de alerta quanto a suas intenções, até cometer um crime vil e repreensível. E se Ben Affleck diverte-se com um tipo maneirista e em ser desafeto de seu melhor amigo na vida real, Jodie Comer tem uma performance dolorosamente irrepreensível enquanto toma ciência de como funciona o mundo dos homens.
Ainda que seja extenso e pese a mão no símbolo da égua no cio ou do retrato vívido da violência contra a mulher, O Último Duelo justifica a duração nos 25 minutos finais e em todos os closes em Marguerite, que encontra, em Jodie Comer, uma atriz apta a dar vida ao mito.
Após um soft reboot morno, o diretor David Gordon Green acertou em cheio ao reencontrar Michael Meyers como um símbolo da maldade e do medo que instila a comunidade de Haddonfield a se transformar no próprio monstro. Com a estrutura caótica pertinente com a narrativa, Michael emerge das chamas - de forma surpreendentemente crível -para continuar sua cruzada pelo restante da noite de Halloween.
A faca permanece afiada, e a cena em que Michael testa diferentes lâminas até encontrar sua favorita é uma evidência da essência que carrega dentro de si. Mas entre os corpos que abandona sem vida no meio do caminho, o foco da narrativa está em analisar como a comunidade responde quando não confia mais nas autoridades policiais e toma a justiça nas próprias mãos.
David Gordon Green é respeitoso com os policiais, que permanecem atônitos e de mãos atadas diante do coro enraivecido, cego ao fato de que o reflexo no espelho não é muito diferente do que Michael tem enxergado por décadas. É o período de pós-justiça, com consequências devastadoras ainda mais considerada a personagem que seria a mais virtuosa da narrativa e no que esta se transforma.
O filme preserva o entretenimento escapista de quem procura, no slasher, a escusa para ver um assassino mascarado destilando um banho de sangue, enquanto propõe uma discussão, até certo ponto expositiva, mas não desnecessária, acerca da sociedade animalesca contemporânea. Haddonfield transformou-se neste manicômio, um barril de pólvora que revela o pior a partir do reflexo do bicho papão que o aterroriza. É a metáfora do poço: encare-o o bastante até este encará-lo de volta, pois, por mais justa que pareça a cruzada contra quem personifica o mal extrema, o resultado de Halloween Kills só reforça como é tênue a linha que separa a justiça do justiçamento.
Este thriller é bem intencionado em como tentar atacar um câncer doméstico através da linguagem do mistério, mas não propõe nada além do óbvio enquanto faz isto.
A direção tenta estabelecer um diálogo com o cenário desértico a partir de planos externos em que a vastidão se torna opressiva, enquanto realça a opulência onde fora construída a mansão onde moram Freida Pinto e Logan Marshall-Green. Mas a beleza destas passagens ou o design de produção passam longe de socorrer os graves problemas desse roteiro.
A começar pelo mistério tacanha, que deve surpreender apenas quem nunca assistiu a nenhum filme antes. Depois, a tomada de decisões da protagonista é pra lá de inverossímil, em uma sucessão de trapalhadas que rivalizam sua trajetória com a investigação da polícia (ora, até parece que a construção de um marco arquitetônico como é esta casa não atrairia atenção, notícias e pistas, certo?).
As atuações não atrapalham, mas tampouco são boas o bastante para ajudar o mau desenvolvimento dos personagens - agora com spoilers -
e tapar o buraco da reviravolta tomada por somente um encanamento problemática e ainda por cima. Eu admiro como o roteiro se apropria do debate sobre misoginia, violência doméstica e sororidade, mas da forma como foi feito, era melhor não.
O desejo de decodificar o cinema e entender minuciosamente tudo o que acontece na trama, para estabelecer qualquer relação emocional com a obra, ainda matará a arte e a transformará em mera equação. A complexidade inerente de Primer em atar bem firme os nós das linhas temporais é desafiadora para quem gosta de quebra-cabeças, mas só.
A compreensão integral do roteiro de Shane Carruth é insignificante para entender o que a narrativa revela quando dois amigos e sócios, Aaron e Abe, constroem uma máquina do tempo na garagem de casa, utilizando-a para voltar no tempo e faturar na bolsa de valores. É uma forma de serem recompensados do modo como acreditam merecer.
Pensado assim, Primer é uma narrativa universal do mundo capitalista em que a esmagadora maioria das pessoas não é retribuída, financeira ou moralmente. A universalidade também é expressa na ruptura entre os amigos, que enxergam a invenção como uma alternativa para obter resultados diferentes.
Quem domina a linha temporal, domina o tempo, commodity preciosa no mundo de hoje em que precisamos nos duplicar ou triplicar a fim de sermos produtivos. Com isto em mente e apenas 7 mil dólares no bolso, Shane Carruth criou uma narrativa que desafia a percepção e exige múltiplas revisitações. Não só para tentar decifrar os mistérios, mas para enxergar como uma amizade pode ser dissolvida diante da ganância e do controle. Uma consequência triste da sociedade que põe amigos para concorrer um contra o outro.
O Culpado é mais sobre a trama, e sua reviravolta, do que sobre atmosfera de thriller; é mais sobre Joe, do que sobre o trabalho a que está designado. Estes elementos já colocam o filme noutra direção que o original dinamarquês de 2018, uma refilmagem de aparência, não de essência.
É até melhor que refilmagens tenham abordagens diferentes porque isto permite distinguir como o cinema americano se diferencia em razão de seu individualismo do cinema de boa parte do restante do mundo. Em O Culpado, a chamada de emergência serve de pano de fundo para que Joe entre em termos consigo mesmo, mais do que para enfatizar que mesmo um policial recriminável poderia fazer o bem na situação em que está.
Então, a direção de Antoine Fuqua (de Dia de Treinamento e O Protetor) encena o oposto do ofício de Joe: em vez de ajudar o próximo apesar de si mesmo, O Culpado é sobre ajudar a si a partir do próximo. Não estou fazendo juízo de qualidade com isto, apenas constatando como a mão norte-americana pode alterar um filme sem modificar significativamente a história.
Sim, a narrativa é eficiente e nervosa, ainda que óbvia ao contrapor Joe diante de persianas que o colocam na situação de prisioneiro. E tem uma atuação competente de Jake Gyllenhaal, embora a bombinha de asma seja um dos elementos que prejudica o desenvolvimento de seu personagem em razão do excesso. De toda forma, se você não conferiu o original, talvez curta mais.
Kathryn Bigelow, neste jovem clássico vencedor do Oscar, estabeleceu regras narrativas e estilísticas que norteariam o cinema que retratasse a guerra do Iraque, o mais ilegítimo dos conflitos militares americanos desde que se aventurou nas selvas do Vietnã.
A diretora entendeu que a sujeira da guerra, política, moral e óbvia, exigiria uma abordagem idem. Assim, ao empregar múltiplas câmeras na mão articuladas pela montagem desorientadora, a encenação de Kathryn estabelece a ação no espaço e a movimentação incessante e caótica a fim de situar o espectador à certa distância, mas perto o bastante da psique do trio de soldados, que representam arquétipos da guerra contemporânea.
James, o protagonista de Jeremy Renner, é o xerife do velho oeste, ora deslocado a Bagdá, que atua de forma inconsequente e individualista a fim de cumprir sua missão. É o personagem mais gravemente ferido - do trio -, pois mal percebe que a guerra se tornou seu lar, afastando-o da vida doméstica, da família e de relações humanas significativas.
Ao estabelecer a estrutura em torno de esquetes em que James tenta desarmar as mais variadas bombas ou se posicionar dentro do campo de batalha, é como se a narrativa evidenciasse que só isto importa, de fato, na vida do personagem. Todo o restante pode subtraído, sem qualquer prejuízo. O desenvolvimento de James se faz em ação, não fora dela.
Essa estrutura favorece a construção da tensão crescente, de novo com méritos à montagem, enquanto tenta arrancar James da frieza racional que precisa se submeter para decidir qual fio cortar de um IED. Com elementos de ação e faroeste embutidos em uma narrativa de guerra, a diretora revisita o gênero e atribui-lhe significados antes não apresentados com esta mesma consistência.
Guerra ao Terror, cujo título em inglês significa Armário da Dor, é um retrato implacável e angustiante de mortes, em vida, de pessoas que param de funcionar como agentes da sociedade para se tornarem as peças substituíveis do exército americano ávido para lubrificar sua máquina de guerra com mais insumos humanos. Ainda que a diretora não milite contra ou a favor da guerra, James, Sanborn e Eldrige são provas cabais de seu posicionamento. É uma obra paradigmática e irrepreensível.
Existem muitos traumas que cercam a experiência de Ambar nos Estados Unidos: o sentimento de culpa por haver abandonado a mãe no leito de morte, a condição de imigrante em um país hostil que a deseja somente como mão de obra barata para serviços que os americanos não desejam realizar, a violência contra a mulher praticada por homens que têm seus interesses particulares. Quando a encontramos, Ambar tem dificuldade em renovar o período de aluguel porque não tem carteira de identidade e, para conseguir falsificar em que conste haver nascido no Texas (não em Ohio), precisa desembolsar 3 mil dólares. Isto a empurra a morar em uma pensão para mulheres, estranhamente comandada por um homem, onde começa a testemunhar eventos estranhos relacionados a um artefato latino.
O diretor Santiago Menghini, estreante em longas-metragens e que trabalhou em curtas-metragens e na supervisão de efeitos especiais, transforma a experiência de Ambar em um pesadelo sob a iluminação precária que oscila em circunstâncias bastantes específicas. Com a visibilidade comprometida com relação a parte do que acontece no escuro da pensão, Ambar tateia no escuro como também testa sorte em permanecer no país ilegalmente. Prova disto é depositar a fé em alguém que a trairá e impactará, negativamente, na chance minúscula que tem de usufruiu o idealista sonho americano. Ao menos o chefe da tecelaria onde trabalha é honesto por não esconder sua opressão diária.
Quem interpreta Ambar é a atriz mexicana Cristina Rodlo, com boas participações nas séries Muito Velho para Morrer Jovem e The Terror, além de na refilmagem Miss Bala. Cristina evita o caminho percorrido da protagonista indefesa e adota uma postura combativa, ainda que ausentes os recurso de combate. Ela não somente teme o inesperado, procura enxergá-lo como reflexo da própria situação, enquanto ainda barganha sua forma de sobreviver. Já Marc Menchaca, de The Ozark, tenta conferir dignidade ao antagonista, colocando-o como agente e refém de um sistema de opressão de que acredita não poder escapar, porque deve retribuir algo que recebeu no passado (mas não entro em maiores detalhes para evitar spoilers).
O filme é a segunda adaptação de uma obra literária de Adam Nevill - a anterior, O Ritual, também está disponível na Netfilx -, com o roteiro assinado por Jon Croker e Fernanda Coppel, que podem desconhecer a situação dos imigrantes e a (escassa, mas existente) rede de apoio, embora saibam como tornar macabro o que aparentava ser um terror-metáfora. Na literalidade chocante, o drama de Ambar se torna vívido e pungente, e também enigmático, em como corrige a passada e abre caminho à protagonista em uma terra que não é sua.
O diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
O diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
O conto de fadas é uma narrativa descontextualizada do mundo em que vivemos hoje, mas céus, como este clássico é gostoso. Deve ser o misto de ingenuidade e literariedade trazidos por Rob Reiner. Ele sabe que seu filme, mesmo em 1987, estava perigosamente perto de ser datado, então aborda os seus personagens com um humor crítico e desconstruído sem perder a essência do jogo com príncipe, princesa plebeia, plebeu pirata, bem como o elemento afetivo e inocente do filme.
Rob Reiner também se dedica ao aspecto literário. Até poderia ir direto ao ponto da história, mas isto tiraria o charme de encaderná-la no interior de outra história: a de uma criança adoentada e viciada em videogames que recebe o avô, que o presenteia com o livro que havia lido para seu pai. O garoto não gosta das cenas em que o casal central se beija e prefere a aventura, e passamos a enxergar o mundo através do olhar imaginativo de uma criança, construído a partir da voz de seu avô. O conto de fadas é então um pacto maior do que entre só leitor e escritor, inclui a comunhão familiar e a experiência cinematográfica.
Dentro das páginas do conto de fadas, a fantasia é quente, cativante e se apoia em um quarteto de atores carismáticos. É o tipo de filme mais carente nos dias de hoje: o que oferece entretenimento, sem qualquer agenda adicional. Uma aventura fantástica objetiva. Sem símbolos ou metáforas, resta o amor verdadeiro e o momento entre avô e neto em torno do amor pelo contar histórias. Ao desligar o jogo, resta o mundo da imaginação fruto da literatura para onde escapam os que buscam sonhar.
Desde que estreou nos longas-metragens, Guy Ritchie descartou a abordagem convencional do cinema de gângster para adotar uma estrutura caracterizada por um mosaico de personagens e percursos narrativos concorrentes, complementares e entrecortados de forma caótica. Isto não é demérito. O caos de Ritchie é o reflexo da tomada decisória que, ao melhor estilo efeito borboleta, causa consequências indiretas até mais do que diretas. Em Infiltrado, as causas e os efeitos estão separados pelo tempo e Jason Statham é como o anjo vingador que se coloca como juiz e carrasco.
O que motiva este homem, o espectador se pergunta, enquanto as respostas vão sendo fornecidas e mais problemas apresentados à medida em que a narrativa anda para trás ou para os lados revelando facetas desconhecidas que resultaram no presente. Tudo é amarrado com bastante competência por Guy, que também assina o roteiro, e, ainda que não haja a aspereza de seus dois primeiros clássicos - Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch - Porcos e Diamantes -, há muitos motivos para permanecer imerso na narrativa.
A violência é um desses motivos, mas a expectativa por conclusões também. O diretor não decepciona em nenhuma destas dimensões. Jason Statham pode ser limitado a este tipo de personagem, mas o interpreta muitíssimo bem: confiamos na dor que o motiva e somos tragados pelo furacão de violência a que reage mais do que provoca. Já o elenco de apoio é certeiro, com destaque a Holt McCallany (de Mindhunter) e Scott Eastwood (filho do Clint), em mais um trabalho expressivo e envolvente de Guy Ritchie.
O que é um caubói sem chapéu, sela ou cavalo? A pergunta é a base para tentar compreender o dilema que atravessa Brady, que após um acidente no rodeio com sérias sequelas recebeu um ultimato: se você continuar montando cavalos, inevitavelmente terá um destino trágico. Depois de conhecer a história de Brady enquanto filmava seu primeiro filme, Chloé Zhao decidiu passar o verniz da ficção em cima do drama do caubói e chegou a esta meditação acerca do que é um homem sem propósito.
Ao lado de atores não profissionais que interpretam versões próximas mas não idênticas de si mesmos (ex. Lane Scott, o amigo de Brady, está de fato numa cadeira de rodas com limitação de mobilidade e comunicação MAS não por causa de um acidente de cavalo, e sim de carro), Chloé Zhao realizou um estudo de personagem, sociocultural sobre aquela comunidade marginalizada em um Estados Unidos bem diferente daquele a que nós estamos acostumados. Sem realizar juízo de valor, apenas observando o desenrolar da vida na Dacota do Sul, a diretora criou uma obra empática sobre pessoas cuja identidade está ameaçada em busca de um velho oeste bem diferente daquele por onde passeou John Wayne.
Mesmo sem ser profissional, Brady evidencia o dilema do personagem de forma clara. Ele está em estado vegetativo de forma consciente, ou um sonâmbulo sem aquilo que acredita definir sua personalidade. Ao menos tempo, vemos como lida com o pai, que o ama mas não sabe demonstrar, a irmã no espectro autista, os amigos que o incentivam a isto ou aquilo e os admiradores que lhe recordam do valor que crê não mais ter. A fotografia de Joshua James Richards, companheiro da diretora, é habilidoso em utilizar apenas a luz solar para estabelecer este mundo natural em que o homem é apenas um pequeno borrão na paisagem.
Afinal, dentre 8 bilhões de pessoas, o que poderia tornar especial a jornada de uma pessoa média em um dos estados mais pobres dos Estados Unidos? A resposta é fácil: uma direção sensível, poética e alérgica a sentimentalismo.
A diversidade é um caminho rápido para que as histórias agradáveis ou os clichês confortáveis a que estamos acostumados ganhem contornos que não esperávamos pelo mero fato de estarmos noutra realidade, que não aquela de nossas bolhas ou as que o cinema apresenta/ou repetidas vezes. Isto porque No Ritmo do Coração (que em inglês se chama CODA, acrônimo para filho/a de pais surdos) não altera a busca por um sonho, a jornada de amadurecimento e autodescoberta ou as relações familiares vistas em comédias dramáticas parecidas, mas ao situar isto em uma família de surdos (salvo a filha caçula), o filme consegue parecer inédito, mesmo não o sendo.
Ao menos inédito em execução, já que o filme é uma refilmagem do belga A Família Bélier. Não que isto diminua suas qualidades, pois os dramas apresentados são adaptados à realidade americana: ao invés de uma fazenda, os Rossi ganham a vida com a pesca, e daí já surgem muitas questões. Não apenas os Rossi são marginalizados e excluídos pelos pares ouvintes, como a própria atividade deles exige a presença de um destes para, por exemplo, responder aos chamados da guarda costeira. Quer dizer, a surdez exige um custo incremental à atividade que é inexistente aos ouvintes, um elemento constatado, não militado. Além disto, o próprio conflito central é admirável, pois Ruby é cantora em uma família que não pode escutar sua voz.
A poesia melancólica que existe aí provoca duas das melhores e mais emocionantes cenas deste ano, uma que envolve uma apresentação a partir do ponto de vista de seus pais e outra relacionada ao toque que aproxima dois mundos que habitam dentro de uma mesma família. É uma dramédia cativante, musical, honesta e respeitosa à comunidade surda ao evitar abordar seus personagens como se fossem indefesos.
Um dos melhores filmes do ano e a prova de que nem toda refilmagem precisa ser descartada.
Eu sempre considerei a maior parte da franquia Velozes e Furiosos como bipolar e até então não havia encontrado a forma certa de me expressar. É que se a narrativa brinca com a suspensão de descrença de um modo fantasioso - muitas das vezes somente precisamos de um tico disto -, os personagens parecem existir dentro de um universo pretensioso, sisudo, em que dramas familiares sufocam onde deveria haver entretenimento.
Dá para perceber isso em como a duração dos filmes da série sempre parece ser maior do que precisariam, estrangulando sequências de ação mais e mais impressionantes entre um enfadonho blá blá blá que ouvimos não uma, nem duas, mas oito vezes a respeito da importância de família. No meio do caminho, mais personagens ressuscitados além de flashbacks que mais atrapalham por quebrarem o ritmo da narrativa para, só agora, no nono episódio, introduzir um personagem cuja importância seria, no mínimo, digna de uma menção honrosa nos filmes passados.
As cenas de ação empolgam, em especial aquela que acontece no clímax - já que a primeira termina de uma maneira mais absurda do que pilotar um carro no espaço. A partir de um dispositivo físico introduzido no roteiro e cujo funcionamento, confesso, desafiou as leis da física mais elementares a ponto de ninguém mais importar e somente curtir, a sequência do clímax é de uma escala e duração ambiciosas e que certamente exigiu meses de preparo, coordenação e execução milimétrica.
Entretanto não é essa sequência de ação, nem outras menores espalhadas na narrativa, que justifique 140 minutos enfadonhos, quando deveriam ser excitantes. Se o roteiro tomasse menos anabolizantes, talvez pudesse ser exatamente o divertimento que estávamos precisando.
Imagine a situação: seu cônjuge de quarenta e tantos anos, com doença de Alzheimer e institucionalizado em uma clínica especializada, esquece estar casada e se apaixona por outra pessoa. A dramaticidade é evidente mas evita se transformar uma dramalhão água com açúcar nas mãos da diretora Sarah Polley; em vez disto, é tema de um estudo da e a respeito da memória.
Enquanto Grant, o marido, é inundado pelas memórias do que viveu com a esposa Fiona, para ela estas memórias não persistiram. Assim, esquecer se torna a chave para viver no presente e recomeçar; para Grant, porém, é o martírio que o obriga a viver no passado enquanto espectador da felicidade de sua esposa. Além disso, os esqueletos guardados por Grant dentro do armário e o processo de deterioração da memória do adultério são as maneiras de libertação de Fiona das amarguras de um casamento imperfeito.
Sarah Polley traduz a contradição que o esquecimento representa de modo delicado e poético, sem abdicar de romantismo ou até mesmo de um conveniente senso de humor. Além disso, não esquece o senso de tragédia que é despedir-se, em vida, de sua esposa, mas também a oportunidade de renascimento que isto proporciona. Um despido das mágoas do passado, como um quadro em branco, como a neve.
Eu entendo a frustração de quem esperava que o documentário sobre Michael Schumacher trouxesse informações acerca do estado de saúde do piloto de fórmula 1 depois de um acidente tê-lo colocado em coma e posto um véu opaco sobre a situação. Mas há poesia nesta privacidade, pois é como se o documentário respeitasse a personalidade reservada do automobilista.
Dentro de sua proposta, este documentário é emocionante e edificante ao proporcionar um olhar na vida de um talento nato na direção em alta velocidade. Alguém arrojado a ponto de trapacear inconscientemente, quem sabe, para vencer a qualquer custo. Eu, ainda quando apaixonado por fórmula 1, tive meus sentimentos ambivalentes em torno de Michael: ora reconhecia sua genialidade, ora percebia a arrogância e desonestidade detrás da competitividade.
Ainda bem que este documentário não mudou este meu pensamento, mas tornou mais intrigante o personagem (muito além da ideia de um Dick Vigarista que era vendida nas manhãs da Globo aos domingos). O Schumacher do documentário é intenso, silencioso como humano e barulhento como piloto; é apaixonado e falível, e o trio de diretores encontra um obstáculo que se torna o núcleo do documentário, pois todos os heróis, por mais improváveis que sejam, precisam matar os dragões de suas histórias.
A frente da escuderia Ferrari, o piloto enfrentou seu maior obstáculo e ao encontrar aí o caminho para o clímax da narrativa, o documentário cria uma experiência empolgante e humanizada em retratar a vida e a carreira de uma lenda. Com omissões, é claro, mas, como filme que é, o documentário biográfico também tem seu recorte. Errados somos nós em criarmos expectativas.
É compreensível a pressa em comparar esta comédia dramática autobiográfica com O Diabo veste Prada a partir de semelhanças indiscutíveis: a relação entre a assistente sonhadora e a chefe; a presença de um o namorado que atrasa a jornada da heroína e de coadjuvantes no escritório que a apaziguam; mesmo uma visita inesperada na residência trabalha com o mesmo signo, a falta de maquiagem, a fim de tecer um comentário sobre aquelas mulheres poderosas. Contudo, se o Diabo veste Prada exibia a relação abusiva dentro da editora e de como Miranda era, ela própria, vítima de uma estrutura massacrante que a impedia até de estar com os filhos, Um Ano em Nova York é mais ameno, reconfortante até, por tratar da responsabilidade do autor para com aqueles tocados por sua obra.
Eu consigo visualizar o esforço do diretor Philippe Falardeau em evitar a comparação que pode até ter sido desejada pelos produtores, já que facilitaria vender o filme. A ambientação na Nova York dos anos 90 um tico antes da informatização do mercado editorial resgata o prazer pré internet da leitura e de sentir a textura dos livros, enquanto Margaret Qualley e Sigourney Weaver constroem uma relação bastante honesta de respeito mútuo, ainda que caracterizada por uma hierarquia e por um atrito geracional. Margaret não oprime Joanna, somente exerce o seu ofício da forma que conhece, algumas vezes mais dura, porém não desrespeitosa.
A narrativa é acolhedora e confortável, atributos que Joanna buscou em Nova York e encontrou de formas menos evidentes. É também poética, igual a protagonista, em como introduz as cartas não lidas mas não oferece conclusividade a elas senão no gesto inocente de Joanna. É uma forma de oferecer esta perspectiva sem falsear seu resultado, enquanto também proporciona uma viagem no tempo a esta Nova York da literatura e apresenta, agora com a devida atenção, o talento de Margaret Qualley.
É difícil manter um distanciamento emocional de uma aventura com que cresci e que devo ter visto uma dúzia de vezes, mas bastou Os Goonies chegar na Netflix, pá, eu precisava rever.
Acho até que serve para perceber como o cinema infantil contemporâneo tem involuído para a infantilização dos menores, já que o roteiro de Christopher Columbus (baseado em uma história de Steven Spielberg) não poupa a trupe de crianças desajustadas de trombar com cadáveres, de sofrer tortura psicológica diante de três bandidos inescrupulosos nem de estar em risco de morte a todo momento.
Hoje, Os Goonies é ainda mais relevante porque valoriza a amizade física, não virtual, a aventura, não a simulação dos videogames, e a coragem para que esta geração de heróis inesperados possa salvar seus pais da ameaça de despejo. De sua forma, o filme dirigido pelo saudoso Richard Donner celebra a busca pelo tesouro, que pode significar somente estar, por mais um dia, na companhia de amigos queridos.
A trilha sonora de John Williams também é um capricho, em um filme que reconhece a importância da amizade a frente da aventura. Até há poucas piadas que envelheceram mal, porém a ideia de que amigos não enxergam aparência, mas o coração, e de que o melhor sorriso é aquele dado com a pessoa, não às custas delas, fortalecem ainda mais um clássico do cinema de aventura juvenil como nunca antes visto.
Kate não é a primeira pessoa a ser envenenada e ter xis horas de vida antes de descobrir quem é o responsável.
Kate não é a primeira assassina profissional, na forma de um exército de uma mulher só, contra meio mundo de pessoas que querem matá-la.
Kate não é a primeira profissional que sofreu as consequências de ter sua regra de ouro, a única, desrespeitada.
Kate definitivamente não é original, nem mesmo surpreendente, mas é igual à protagonista: incrivelmente focado naquilo que é, de tal forma que compensa qualquer limitação decorrente da falta de ambição do projeto. Mary Elizabeth Winstead tem o vigor de uma jovem Sigourney Weaver, embora aqui não exiba o mesmo carisma.
As cenas de ação andam na linha de John Wick, com Kate eleita como a máquina de matar da vez, sob o pano de fundo de uma Tóquio néon e sem maiores diferenças em comparação com qualquer metrópole a noite.
Kate é um contracheque rápido para o elenco, especialmente Woody Harrelson, e um entretenimento enlatado que ocupa 100 minutos de um dia. Às vezes eu não sei nem o que dizer sobre um filme ou série que, por não inspirar nenhuma emoção genuína em mim, torna até sem propósito o que faço.
Eu costumo ter ressalvas com o gênero biográfico, ainda mais quando a personalidade biografada está viva e em atividade. Se o risco de parecer chapa branca é grande com personalidades falecidas, imagine se o biografado está sentado diante de você contando causos de sua vida? É claro que Miguel Faria Jr. não poderia evitar ser condescendente em sua entrevista com Chico Buarque, nem se aprofundar mais em assuntos sensíveis, mas este documentário parece encontrar uma outra forma de conquistar o espectador: ouvir Chico em sua própria voz.
É que Chico é apaixonante demais, e quando começa a recordar o passado e as histórias, muitas das vezes é transportado para elas e comunica isto a partir de emoção, sensibilidade e até gargalhadas. Viajamos desde a gênese de Chico na bossa nova, ao período da ditadura até os dias atuais, de um poeta mais protelador, mas não menos encantador. Chico enxerga o hoje sem pessimismo, nem romantismo: ele conversa sobre a música contemporânea, sobre o ofício de cantor, compositor e escritor, sobre a democracia, família, netos de forma franca.
Entreatos, Miguel Faria Jr. monta um cenário em que diversos artistas homenageiam Chico cantando suas composições: Péricles, Adriana Calcanhoto, ele próprio. É um documentário com objetivo único de homenagear, sem a intenção de investigar os cantos mais sombrios do artista. Ao trazer esta honestidade para primeiro plano, desarma quem queria criticar qualquer omissão e convida para curtir 2 horas na companhia de uma personalidade singular na história brasileira.
Quanto vale a vida de cada uma das milhares de vítimas, fatais ou que sofreram ferimentos físicos ou psicológicos, do 11 de setembro? Esta é a pergunta que procura responder o advogado Ken Feinberg, mestre especial do fundo indenizatório destas vítimas, enquanto desenvolve uma fórmula objetiva que satisfaça gregos e troianos e respeite as individualidades de cada situação. Seu trabalho é dificílimo, melhor dizendo impossível; entretanto, enxergar a situação com lentes humanas, em vez de burocráticas, este sim é um obstáculo superável.
Deste modo, este belo thriller dramático da diretora Sara Colangelo acerta em reproduzir o tédio burocrático a partir de cores de baixa saturação, sem vida, com um esverdeado misturado às cinzas que continuam a cair sobre a vida daquelas pessoas. Quanto vale? é um filme sobre o poder da escuta como forma de remediar situações irremediáveis; não é que Ken seja uma pessoa má, pelo contrário, só que não escuta as pessoas que mais precisam ser escutadas e delega isto a terceiros que, em razão deste processo, são transformados.
Esta história real que desconhecia sobre o 11 de setembro é, assim, uma exemplificação do poder do cinema quando toca o espectador que se abre ao inesperado. E tem ao menos 3 atuações dignas de nota: Michael Keaton, bastante a vontade em sua arrogância e mais ainda em sua humildade; Stanley Tucci, que se dispõe a ser a voz da razão; e Laura Benanti, que, por causa de um segundo de hesitação, antecipa ao espectador a revelação que saberemos a respeito de seu marido. São atuações poderosas em um drama que tenta colocar o espectador em condição de desconforto, a considerar como Sara posiciona a câmera, muitas das vezes cortando parte do rosto de Ken enquanto numa conversa.
Ao mesmo tempo, é também um drama que sabe transformar o ato de criar uma regulamentação em uma corrida eletrizante contra o tempo - a partir de 2 variáveis: o tempo restante e a quantidade de adesões ao fundo que precisa ser no mínimo 80%. Qualquer narrativa que faça do ato de legislar algo interessante e envolvente merece uma espiada, ainda mais quando a história fala tanto a respeito de humanidade.
Eu consigo somente imaginar a sensação que deve ser, para um diretor, ter uma liberdade criativa irrestrita para narrar a história que deseja, com o orçamento que precisa, independente de palpites e intervenções da produção e de qualquer dependência de bilheterias para validar seu trabalho. Depois de enriquecer o caixa da Warner com Invocação do Mal 1 e 2 e Aquaman, James Wan ganhou carta branca e orçamento significativo de U$ 40 milhões para realizar um giallo: um subgênero italiano, muito estilizado e violento, que misturava policial, thriller e terror e envolvia a caçada a um assassino em série cuja identidade era conservada em segredo até o clímax. Talvez não seja o filme que a Warner desejava produzir – imagino que quisessem um terror de casa mal assombrada –, mas é o filme que o terror precisava, até para evitar que caísse novamente na zona de conforto de anos anteriores.
Crítica sem spoilers no Cinemacomcritica . com . br!
Da mesma forma ocorrida em Pantera Negra, com Shang-Chi a Marvel tem a responsabilidade em retratar uma cultura que, até então, nunca teve representatividade heroica dentro do cinema norte-americano. É ótimo que isto aconteça, embora Shang-Chi tropece em estereótipos parecidos que Xu Wenwu critica em certo momento. Eu vou explicar. Enquanto Pantera Negra conjugou etnicidade à tecnologia, Shang-Chi apenas repete os modos de representação chinesa, de Kung-Fu Panda até o recente Raya, O Último Dragão.
A Ta Lo da narrativa tem menos personalidade do que Wakanda. Salvo sua fauna exótica, não existe nada especial no design de produção que filmes melhores não tenham retratado com exuberância cultural e histórica. Sem este elemento cultural - que enriquecia uma jornada já batida com T'Challa -, a de Shaun/Shang-Chi é morna, requentada e simplória, com meia-dúzia de flashbacks que servem para engrossar um enredo com poucos encantos. Na realidade, o melhor do roteiro está em como se costura aos demais filmes da Marvel com o retorno de um certo personagem e diálogos divertidos ainda mais quando saem da boca de Awkwafina.
Na verdade, não há nada errado no desenrolar da narrativa, que segue à risca a jornada do herói - da fuga à relutância, do sacrifício à vitória -, nem também maiores virtudes. O kung-fu é competente, mas perto do que o cinema de Hong Kong já apresentou, parece uma versão China in Box americanizado pela direção de Destin Daniel Cretton (que nem experiência no assunto tem). Inclusive, tem as mensagens de biscoito da sorte, sobre mirar em algo ou aceitar seu destino como formas de estabelecer conflitos de seus personagens. O humor funciona, porém daquele jeito da Marvel, atenuando o que deveria ser tratado com maior seriedade, ainda mais tratando de criaturas que devoram as almas das pessoas.
Entretanto, mesmo mediano, Shang-Chi tem, arrisco dizer, um dos maiores acertos de um filme da Marvel: a escalação de Tony Leung como o "verdadeiro" Mandarim. É um ator que comunica facilmente qual o conflito do antagonista a partir de uma troca de olhares, sem empalidecer também nas cenas mais físicas. Tony trata esta fantasia com a mesma seriedade que faria com um romance dramático de Wong Kar Wai, com o desenvolvimento de um homem conflituoso, violento e amoroso a sua forma, que eleva não somente a narrativa - graças à ambição potencialmente destrutiva - , como a jornada de amadurecimento do filho.
A diretora Nadine Labaki chamou Cafarnaum (cidade bíblica onde Jesus realizou milagres mas também sinônimo de caos) de ativismo cinematográfico. Seu discurso não é da boca para fora, e mesmo que não seja capaz de alterar a realidade de Beirute, pode conscientizar a partir do poder da câmera de lançar luz em realidades desconfortáveis provocadas diretamente ou não por nossas ações e omissões. Dói ver pessoas, especialmente crianças, em situação de miséria, e Nadine, cineasta com interesse sociopolítico, tencionou seu inconformismo em uma construção poderosa dentro de uma realidade que parece a nossa.
Nadine inicia com o processo civil movido por Zain, um garoto preso de uns 12 anos, contra os pais por terem-no concebido neste mundo infeliz. É uma alegoria sobre a negligência paterna que passeia sobre perigosa linha que divide o olhar inocente, ainda que corrompido, de Zain do ponto de vista crítico de Nadine contra as instituições sociais elitistas - a um juiz é dado o poder de julgar condições indignas que jamais vivenciou - e as famílias tradicionais - que normalizam o casamento de uma garota que recém menstruou com um homem muito mais velho.
Cafarnaum é contraditório e precisa ser, pois não existem soluções fáceis à problemática discutida. Os pais não são culpados, somente vítimas de um mesmo sistema que os impede de enxergar adiante. Entretanto, são responsáveis, conjuntamente com o Estado que nem reconhece a existência de Zain (ele não tem certidão de nascimento). Não existir é uma expressão da invisibilidade daqueles que habitam a margem da sociedade, tidos por párias ou verdades inconvenientes, tendo no "super-herói", o Homem-Barata, uma metáfora vívida disto.
A intensidade da narrativa é ainda maior diante das opções estéticas de uma filmagem realista, com a câmera em punho no meio das ruas, sem iluminação artificial e mínima interferência na dinâmica daquele cenário. A montagem intensifica o sofrimento, coroado pela atuação de Zain Al Rafeea, ator não profissional descoberto por Nadine, e que teve melhor sorte que seu personagem, após ser reassentado com a família na Noruega.
Esta realidade ao estilo Cinderela, porém, é raridade diante do soco no estômago que é Cafarnaum.
O Último Duelo
3.9 325Apesar de se tratar de um filme ambientado no século XIV, O Último Duelo não parece muito diferente do mundo atual. A dúvida lançada diante da corajosa assertiva de uma mulher de que fora estuprada, a humilhação pública de ter suas entranhas reviradas, quando inquirida por homens que a obrigam a reviver a violência (veio à lembrança um caso judicial bastante recente), a falta de sororidade, estes são temas que ressoam com mais força na narrativa do que a colisão de versões.
Pois se Ridley Scott almejava realizar seu Rashomon, a verdade está evidenciada pelo próprio diretor quando introduz a terceira parte, o que pareceria tornar obsoletas as anteriores. Pareceria! Já que sua intenção é revelar que a dignidade de Marguerite não era nada senão o estágio derradeiro de um conjunto de atritos sociais e patrimoniais germinados muito antes. Aqueles homens mesquinhos e pequenos estavam mais preocupados com o orgulho e uma pretensa honra do que com o destino apresentado diante de uma mulher. A vendeta é a razão do duelo, não Marguerite, uma mera desculpa para tanto.
Com 3 versões, a partir de um roteiro co-escrito por Nicole Holofcener e os amigos Matt Damon e Ben Affleck, Ridley Scott promove mais um épico histórico que, acredito, seja capaz de dirigir de olhos vendados: a fotografia acinzentada colorida apenas por cores pastéis de vestidos de Marguerite - o detalhe da bochecha rosada chama-me a atenção -, a montagem caótica do campo de batalho e a cena do duelo digna da tensão praticada em Gladiador.
Seu trabalho de direção é facilitado por atuações marcantes: Matt Damon apropria-se do estereótipo do homem médio americano no campo de batalha francês, revelando-se bruto, insensível e com um sentimento de injustiça e inferioridade por não participar do círculo nobre. Já Adam Driver é ardiloso e político - deveriam ser sinônimos - para escalar os degraus do poder e manter o público em permanente estado de alerta quanto a suas intenções, até cometer um crime vil e repreensível. E se Ben Affleck diverte-se com um tipo maneirista e em ser desafeto de seu melhor amigo na vida real, Jodie Comer tem uma performance dolorosamente irrepreensível enquanto toma ciência de como funciona o mundo dos homens.
Ainda que seja extenso e pese a mão no símbolo da égua no cio ou do retrato vívido da violência contra a mulher, O Último Duelo justifica a duração nos 25 minutos finais e em todos os closes em Marguerite, que encontra, em Jodie Comer, uma atriz apta a dar vida ao mito.
Halloween Kills: O Terror Continua
3.0 683 Assista AgoraApós um soft reboot morno, o diretor David Gordon Green acertou em cheio ao reencontrar Michael Meyers como um símbolo da maldade e do medo que instila a comunidade de Haddonfield a se transformar no próprio monstro. Com a estrutura caótica pertinente com a narrativa, Michael emerge das chamas - de forma surpreendentemente crível -para continuar sua cruzada pelo restante da noite de Halloween.
A faca permanece afiada, e a cena em que Michael testa diferentes lâminas até encontrar sua favorita é uma evidência da essência que carrega dentro de si. Mas entre os corpos que abandona sem vida no meio do caminho, o foco da narrativa está em analisar como a comunidade responde quando não confia mais nas autoridades policiais e toma a justiça nas próprias mãos.
David Gordon Green é respeitoso com os policiais, que permanecem atônitos e de mãos atadas diante do coro enraivecido, cego ao fato de que o reflexo no espelho não é muito diferente do que Michael tem enxergado por décadas. É o período de pós-justiça, com consequências devastadoras ainda mais considerada a personagem que seria a mais virtuosa da narrativa e no que esta se transforma.
O filme preserva o entretenimento escapista de quem procura, no slasher, a escusa para ver um assassino mascarado destilando um banho de sangue, enquanto propõe uma discussão, até certo ponto expositiva, mas não desnecessária, acerca da sociedade animalesca contemporânea. Haddonfield transformou-se neste manicômio, um barril de pólvora que revela o pior a partir do reflexo do bicho papão que o aterroriza. É a metáfora do poço: encare-o o bastante até este encará-lo de volta, pois, por mais justa que pareça a cruzada contra quem personifica o mal extrema, o resultado de Halloween Kills só reforça como é tênue a linha que separa a justiça do justiçamento.
Intrusion
2.5 196Este thriller é bem intencionado em como tentar atacar um câncer doméstico através da linguagem do mistério, mas não propõe nada além do óbvio enquanto faz isto.
A direção tenta estabelecer um diálogo com o cenário desértico a partir de planos externos em que a vastidão se torna opressiva, enquanto realça a opulência onde fora construída a mansão onde moram Freida Pinto e Logan Marshall-Green. Mas a beleza destas passagens ou o design de produção passam longe de socorrer os graves problemas desse roteiro.
A começar pelo mistério tacanha, que deve surpreender apenas quem nunca assistiu a nenhum filme antes. Depois, a tomada de decisões da protagonista é pra lá de inverossímil, em uma sucessão de trapalhadas que rivalizam sua trajetória com a investigação da polícia (ora, até parece que a construção de um marco arquitetônico como é esta casa não atrairia atenção, notícias e pistas, certo?).
As atuações não atrapalham, mas tampouco são boas o bastante para ajudar o mau desenvolvimento dos personagens - agora com spoilers -
e tapar o buraco da reviravolta tomada por somente um encanamento problemática e ainda por cima. Eu admiro como o roteiro se apropria do debate sobre misoginia, violência doméstica e sororidade, mas da forma como foi feito, era melhor não.
Primer
3.5 489 Assista AgoraO desejo de decodificar o cinema e entender minuciosamente tudo o que acontece na trama, para estabelecer qualquer relação emocional com a obra, ainda matará a arte e a transformará em mera equação. A complexidade inerente de Primer em atar bem firme os nós das linhas temporais é desafiadora para quem gosta de quebra-cabeças, mas só.
A compreensão integral do roteiro de Shane Carruth é insignificante para entender o que a narrativa revela quando dois amigos e sócios, Aaron e Abe, constroem uma máquina do tempo na garagem de casa, utilizando-a para voltar no tempo e faturar na bolsa de valores. É uma forma de serem recompensados do modo como acreditam merecer.
Pensado assim, Primer é uma narrativa universal do mundo capitalista em que a esmagadora maioria das pessoas não é retribuída, financeira ou moralmente. A universalidade também é expressa na ruptura entre os amigos, que enxergam a invenção como uma alternativa para obter resultados diferentes.
Quem domina a linha temporal, domina o tempo, commodity preciosa no mundo de hoje em que precisamos nos duplicar ou triplicar a fim de sermos produtivos. Com isto em mente e apenas 7 mil dólares no bolso, Shane Carruth criou uma narrativa que desafia a percepção e exige múltiplas revisitações. Não só para tentar decifrar os mistérios, mas para enxergar como uma amizade pode ser dissolvida diante da ganância e do controle. Uma consequência triste da sociedade que põe amigos para concorrer um contra o outro.
O Culpado
3.0 451 Assista AgoraO Culpado é mais sobre a trama, e sua reviravolta, do que sobre atmosfera de thriller; é mais sobre Joe, do que sobre o trabalho a que está designado. Estes elementos já colocam o filme noutra direção que o original dinamarquês de 2018, uma refilmagem de aparência, não de essência.
É até melhor que refilmagens tenham abordagens diferentes porque isto permite distinguir como o cinema americano se diferencia em razão de seu individualismo do cinema de boa parte do restante do mundo. Em O Culpado, a chamada de emergência serve de pano de fundo para que Joe entre em termos consigo mesmo, mais do que para enfatizar que mesmo um policial recriminável poderia fazer o bem na situação em que está.
Então, a direção de Antoine Fuqua (de Dia de Treinamento e O Protetor) encena o oposto do ofício de Joe: em vez de ajudar o próximo apesar de si mesmo, O Culpado é sobre ajudar a si a partir do próximo. Não estou fazendo juízo de qualidade com isto, apenas constatando como a mão norte-americana pode alterar um filme sem modificar significativamente a história.
Sim, a narrativa é eficiente e nervosa, ainda que óbvia ao contrapor Joe diante de persianas que o colocam na situação de prisioneiro. E tem uma atuação competente de Jake Gyllenhaal, embora a bombinha de asma seja um dos elementos que prejudica o desenvolvimento de seu personagem em razão do excesso. De toda forma, se você não conferiu o original, talvez curta mais.
Guerra ao Terror
3.5 1,4K Assista AgoraKathryn Bigelow, neste jovem clássico vencedor do Oscar, estabeleceu regras narrativas e estilísticas que norteariam o cinema que retratasse a guerra do Iraque, o mais ilegítimo dos conflitos militares americanos desde que se aventurou nas selvas do Vietnã.
A diretora entendeu que a sujeira da guerra, política, moral e óbvia, exigiria uma abordagem idem. Assim, ao empregar múltiplas câmeras na mão articuladas pela montagem desorientadora, a encenação de Kathryn estabelece a ação no espaço e a movimentação incessante e caótica a fim de situar o espectador à certa distância, mas perto o bastante da psique do trio de soldados, que representam arquétipos da guerra contemporânea.
James, o protagonista de Jeremy Renner, é o xerife do velho oeste, ora deslocado a Bagdá, que atua de forma inconsequente e individualista a fim de cumprir sua missão. É o personagem mais gravemente ferido - do trio -, pois mal percebe que a guerra se tornou seu lar, afastando-o da vida doméstica, da família e de relações humanas significativas.
Ao estabelecer a estrutura em torno de esquetes em que James tenta desarmar as mais variadas bombas ou se posicionar dentro do campo de batalha, é como se a narrativa evidenciasse que só isto importa, de fato, na vida do personagem. Todo o restante pode subtraído, sem qualquer prejuízo. O desenvolvimento de James se faz em ação, não fora dela.
Essa estrutura favorece a construção da tensão crescente, de novo com méritos à montagem, enquanto tenta arrancar James da frieza racional que precisa se submeter para decidir qual fio cortar de um IED. Com elementos de ação e faroeste embutidos em uma narrativa de guerra, a diretora revisita o gênero e atribui-lhe significados antes não apresentados com esta mesma consistência.
Guerra ao Terror, cujo título em inglês significa Armário da Dor, é um retrato implacável e angustiante de mortes, em vida, de pessoas que param de funcionar como agentes da sociedade para se tornarem as peças substituíveis do exército americano ávido para lubrificar sua máquina de guerra com mais insumos humanos. Ainda que a diretora não milite contra ou a favor da guerra, James, Sanborn e Eldrige são provas cabais de seu posicionamento. É uma obra paradigmática e irrepreensível.
Ninguém Sai Vivo
2.4 201Existem muitos traumas que cercam a experiência de Ambar nos Estados Unidos: o sentimento de culpa por haver abandonado a mãe no leito de morte, a condição de imigrante em um país hostil que a deseja somente como mão de obra barata para serviços que os americanos não desejam realizar, a violência contra a mulher praticada por homens que têm seus interesses particulares. Quando a encontramos, Ambar tem dificuldade em renovar o período de aluguel porque não tem carteira de identidade e, para conseguir falsificar em que conste haver nascido no Texas (não em Ohio), precisa desembolsar 3 mil dólares. Isto a empurra a morar em uma pensão para mulheres, estranhamente comandada por um homem, onde começa a testemunhar eventos estranhos relacionados a um artefato latino.
O diretor Santiago Menghini, estreante em longas-metragens e que trabalhou em curtas-metragens e na supervisão de efeitos especiais, transforma a experiência de Ambar em um pesadelo sob a iluminação precária que oscila em circunstâncias bastantes específicas. Com a visibilidade comprometida com relação a parte do que acontece no escuro da pensão, Ambar tateia no escuro como também testa sorte em permanecer no país ilegalmente. Prova disto é depositar a fé em alguém que a trairá e impactará, negativamente, na chance minúscula que tem de usufruiu o idealista sonho americano. Ao menos o chefe da tecelaria onde trabalha é honesto por não esconder sua opressão diária.
Quem interpreta Ambar é a atriz mexicana Cristina Rodlo, com boas participações nas séries Muito Velho para Morrer Jovem e The Terror, além de na refilmagem Miss Bala. Cristina evita o caminho percorrido da protagonista indefesa e adota uma postura combativa, ainda que ausentes os recurso de combate. Ela não somente teme o inesperado, procura enxergá-lo como reflexo da própria situação, enquanto ainda barganha sua forma de sobreviver. Já Marc Menchaca, de The Ozark, tenta conferir dignidade ao antagonista, colocando-o como agente e refém de um sistema de opressão de que acredita não poder escapar, porque deve retribuir algo que recebeu no passado (mas não entro em maiores detalhes para evitar spoilers).
O filme é a segunda adaptação de uma obra literária de Adam Nevill - a anterior, O Ritual, também está disponível na Netfilx -, com o roteiro assinado por Jon Croker e Fernanda Coppel, que podem desconhecer a situação dos imigrantes e a (escassa, mas existente) rede de apoio, embora saibam como tornar macabro o que aparentava ser um terror-metáfora. Na literalidade chocante, o drama de Ambar se torna vívido e pungente, e também enigmático, em como corrige a passada e abre caminho à protagonista em uma terra que não é sua.
O Menino que Matou Meus Pais
3.0 514 Assista AgoraO diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
A Menina que Matou os Pais
3.1 678 Assista AgoraO diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
A Princesa Prometida
3.7 327 Assista AgoraO conto de fadas é uma narrativa descontextualizada do mundo em que vivemos hoje, mas céus, como este clássico é gostoso. Deve ser o misto de ingenuidade e literariedade trazidos por Rob Reiner. Ele sabe que seu filme, mesmo em 1987, estava perigosamente perto de ser datado, então aborda os seus personagens com um humor crítico e desconstruído sem perder a essência do jogo com príncipe, princesa plebeia, plebeu pirata, bem como o elemento afetivo e inocente do filme.
Rob Reiner também se dedica ao aspecto literário. Até poderia ir direto ao ponto da história, mas isto tiraria o charme de encaderná-la no interior de outra história: a de uma criança adoentada e viciada em videogames que recebe o avô, que o presenteia com o livro que havia lido para seu pai. O garoto não gosta das cenas em que o casal central se beija e prefere a aventura, e passamos a enxergar o mundo através do olhar imaginativo de uma criança, construído a partir da voz de seu avô. O conto de fadas é então um pacto maior do que entre só leitor e escritor, inclui a comunhão familiar e a experiência cinematográfica.
Dentro das páginas do conto de fadas, a fantasia é quente, cativante e se apoia em um quarteto de atores carismáticos. É o tipo de filme mais carente nos dias de hoje: o que oferece entretenimento, sem qualquer agenda adicional. Uma aventura fantástica objetiva. Sem símbolos ou metáforas, resta o amor verdadeiro e o momento entre avô e neto em torno do amor pelo contar histórias. Ao desligar o jogo, resta o mundo da imaginação fruto da literatura para onde escapam os que buscam sonhar.
Infiltrado
3.6 318 Assista AgoraDesde que estreou nos longas-metragens, Guy Ritchie descartou a abordagem convencional do cinema de gângster para adotar uma estrutura caracterizada por um mosaico de personagens e percursos narrativos concorrentes, complementares e entrecortados de forma caótica. Isto não é demérito. O caos de Ritchie é o reflexo da tomada decisória que, ao melhor estilo efeito borboleta, causa consequências indiretas até mais do que diretas. Em Infiltrado, as causas e os efeitos estão separados pelo tempo e Jason Statham é como o anjo vingador que se coloca como juiz e carrasco.
O que motiva este homem, o espectador se pergunta, enquanto as respostas vão sendo fornecidas e mais problemas apresentados à medida em que a narrativa anda para trás ou para os lados revelando facetas desconhecidas que resultaram no presente. Tudo é amarrado com bastante competência por Guy, que também assina o roteiro, e, ainda que não haja a aspereza de seus dois primeiros clássicos - Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch - Porcos e Diamantes -, há muitos motivos para permanecer imerso na narrativa.
A violência é um desses motivos, mas a expectativa por conclusões também. O diretor não decepciona em nenhuma destas dimensões. Jason Statham pode ser limitado a este tipo de personagem, mas o interpreta muitíssimo bem: confiamos na dor que o motiva e somos tragados pelo furacão de violência a que reage mais do que provoca. Já o elenco de apoio é certeiro, com destaque a Holt McCallany (de Mindhunter) e Scott Eastwood (filho do Clint), em mais um trabalho expressivo e envolvente de Guy Ritchie.
Domando o Destino
3.8 78 Assista AgoraO que é um caubói sem chapéu, sela ou cavalo? A pergunta é a base para tentar compreender o dilema que atravessa Brady, que após um acidente no rodeio com sérias sequelas recebeu um ultimato: se você continuar montando cavalos, inevitavelmente terá um destino trágico. Depois de conhecer a história de Brady enquanto filmava seu primeiro filme, Chloé Zhao decidiu passar o verniz da ficção em cima do drama do caubói e chegou a esta meditação acerca do que é um homem sem propósito.
Ao lado de atores não profissionais que interpretam versões próximas mas não idênticas de si mesmos (ex. Lane Scott, o amigo de Brady, está de fato numa cadeira de rodas com limitação de mobilidade e comunicação MAS não por causa de um acidente de cavalo, e sim de carro), Chloé Zhao realizou um estudo de personagem, sociocultural sobre aquela comunidade marginalizada em um Estados Unidos bem diferente daquele a que nós estamos acostumados. Sem realizar juízo de valor, apenas observando o desenrolar da vida na Dacota do Sul, a diretora criou uma obra empática sobre pessoas cuja identidade está ameaçada em busca de um velho oeste bem diferente daquele por onde passeou John Wayne.
Mesmo sem ser profissional, Brady evidencia o dilema do personagem de forma clara. Ele está em estado vegetativo de forma consciente, ou um sonâmbulo sem aquilo que acredita definir sua personalidade. Ao menos tempo, vemos como lida com o pai, que o ama mas não sabe demonstrar, a irmã no espectro autista, os amigos que o incentivam a isto ou aquilo e os admiradores que lhe recordam do valor que crê não mais ter. A fotografia de Joshua James Richards, companheiro da diretora, é habilidoso em utilizar apenas a luz solar para estabelecer este mundo natural em que o homem é apenas um pequeno borrão na paisagem.
Afinal, dentre 8 bilhões de pessoas, o que poderia tornar especial a jornada de uma pessoa média em um dos estados mais pobres dos Estados Unidos? A resposta é fácil: uma direção sensível, poética e alérgica a sentimentalismo.
No Ritmo do Coração
4.1 751 Assista AgoraA diversidade é um caminho rápido para que as histórias agradáveis ou os clichês confortáveis a que estamos acostumados ganhem contornos que não esperávamos pelo mero fato de estarmos noutra realidade, que não aquela de nossas bolhas ou as que o cinema apresenta/ou repetidas vezes. Isto porque No Ritmo do Coração (que em inglês se chama CODA, acrônimo para filho/a de pais surdos) não altera a busca por um sonho, a jornada de amadurecimento e autodescoberta ou as relações familiares vistas em comédias dramáticas parecidas, mas ao situar isto em uma família de surdos (salvo a filha caçula), o filme consegue parecer inédito, mesmo não o sendo.
Ao menos inédito em execução, já que o filme é uma refilmagem do belga A Família Bélier. Não que isto diminua suas qualidades, pois os dramas apresentados são adaptados à realidade americana: ao invés de uma fazenda, os Rossi ganham a vida com a pesca, e daí já surgem muitas questões. Não apenas os Rossi são marginalizados e excluídos pelos pares ouvintes, como a própria atividade deles exige a presença de um destes para, por exemplo, responder aos chamados da guarda costeira. Quer dizer, a surdez exige um custo incremental à atividade que é inexistente aos ouvintes, um elemento constatado, não militado. Além disto, o próprio conflito central é admirável, pois Ruby é cantora em uma família que não pode escutar sua voz.
A poesia melancólica que existe aí provoca duas das melhores e mais emocionantes cenas deste ano, uma que envolve uma apresentação a partir do ponto de vista de seus pais e outra relacionada ao toque que aproxima dois mundos que habitam dentro de uma mesma família. É uma dramédia cativante, musical, honesta e respeitosa à comunidade surda ao evitar abordar seus personagens como se fossem indefesos.
Um dos melhores filmes do ano e a prova de que nem toda refilmagem precisa ser descartada.
Velozes e Furiosos 9
2.8 415 Assista AgoraEu sempre considerei a maior parte da franquia Velozes e Furiosos como bipolar e até então não havia encontrado a forma certa de me expressar. É que se a narrativa brinca com a suspensão de descrença de um modo fantasioso - muitas das vezes somente precisamos de um tico disto -, os personagens parecem existir dentro de um universo pretensioso, sisudo, em que dramas familiares sufocam onde deveria haver entretenimento.
Dá para perceber isso em como a duração dos filmes da série sempre parece ser maior do que precisariam, estrangulando sequências de ação mais e mais impressionantes entre um enfadonho blá blá blá que ouvimos não uma, nem duas, mas oito vezes a respeito da importância de família. No meio do caminho, mais personagens ressuscitados além de flashbacks que mais atrapalham por quebrarem o ritmo da narrativa para, só agora, no nono episódio, introduzir um personagem cuja importância seria, no mínimo, digna de uma menção honrosa nos filmes passados.
As cenas de ação empolgam, em especial aquela que acontece no clímax - já que a primeira termina de uma maneira mais absurda do que pilotar um carro no espaço. A partir de um dispositivo físico introduzido no roteiro e cujo funcionamento, confesso, desafiou as leis da física mais elementares a ponto de ninguém mais importar e somente curtir, a sequência do clímax é de uma escala e duração ambiciosas e que certamente exigiu meses de preparo, coordenação e execução milimétrica.
Entretanto não é essa sequência de ação, nem outras menores espalhadas na narrativa, que justifique 140 minutos enfadonhos, quando deveriam ser excitantes. Se o roteiro tomasse menos anabolizantes, talvez pudesse ser exatamente o divertimento que estávamos precisando.
Longe Dela
3.9 133Imagine a situação: seu cônjuge de quarenta e tantos anos, com doença de Alzheimer e institucionalizado em uma clínica especializada, esquece estar casada e se apaixona por outra pessoa. A dramaticidade é evidente mas evita se transformar uma dramalhão água com açúcar nas mãos da diretora Sarah Polley; em vez disto, é tema de um estudo da e a respeito da memória.
Enquanto Grant, o marido, é inundado pelas memórias do que viveu com a esposa Fiona, para ela estas memórias não persistiram. Assim, esquecer se torna a chave para viver no presente e recomeçar; para Grant, porém, é o martírio que o obriga a viver no passado enquanto espectador da felicidade de sua esposa. Além disso, os esqueletos guardados por Grant dentro do armário e o processo de deterioração da memória do adultério são as maneiras de libertação de Fiona das amarguras de um casamento imperfeito.
Sarah Polley traduz a contradição que o esquecimento representa de modo delicado e poético, sem abdicar de romantismo ou até mesmo de um conveniente senso de humor. Além disso, não esquece o senso de tragédia que é despedir-se, em vida, de sua esposa, mas também a oportunidade de renascimento que isto proporciona. Um despido das mágoas do passado, como um quadro em branco, como a neve.
Schumacher
3.8 69Eu entendo a frustração de quem esperava que o documentário sobre Michael Schumacher trouxesse informações acerca do estado de saúde do piloto de fórmula 1 depois de um acidente tê-lo colocado em coma e posto um véu opaco sobre a situação. Mas há poesia nesta privacidade, pois é como se o documentário respeitasse a personalidade reservada do automobilista.
Dentro de sua proposta, este documentário é emocionante e edificante ao proporcionar um olhar na vida de um talento nato na direção em alta velocidade. Alguém arrojado a ponto de trapacear inconscientemente, quem sabe, para vencer a qualquer custo. Eu, ainda quando apaixonado por fórmula 1, tive meus sentimentos ambivalentes em torno de Michael: ora reconhecia sua genialidade, ora percebia a arrogância e desonestidade detrás da competitividade.
Ainda bem que este documentário não mudou este meu pensamento, mas tornou mais intrigante o personagem (muito além da ideia de um Dick Vigarista que era vendida nas manhãs da Globo aos domingos). O Schumacher do documentário é intenso, silencioso como humano e barulhento como piloto; é apaixonado e falível, e o trio de diretores encontra um obstáculo que se torna o núcleo do documentário, pois todos os heróis, por mais improváveis que sejam, precisam matar os dragões de suas histórias.
A frente da escuderia Ferrari, o piloto enfrentou seu maior obstáculo e ao encontrar aí o caminho para o clímax da narrativa, o documentário cria uma experiência empolgante e humanizada em retratar a vida e a carreira de uma lenda. Com omissões, é claro, mas, como filme que é, o documentário biográfico também tem seu recorte. Errados somos nós em criarmos expectativas.
Um Ano em Nova York
3.4 29É compreensível a pressa em comparar esta comédia dramática autobiográfica com O Diabo veste Prada a partir de semelhanças indiscutíveis: a relação entre a assistente sonhadora e a chefe; a presença de um o namorado que atrasa a jornada da heroína e de coadjuvantes no escritório que a apaziguam; mesmo uma visita inesperada na residência trabalha com o mesmo signo, a falta de maquiagem, a fim de tecer um comentário sobre aquelas mulheres poderosas. Contudo, se o Diabo veste Prada exibia a relação abusiva dentro da editora e de como Miranda era, ela própria, vítima de uma estrutura massacrante que a impedia até de estar com os filhos, Um Ano em Nova York é mais ameno, reconfortante até, por tratar da responsabilidade do autor para com aqueles tocados por sua obra.
Eu consigo visualizar o esforço do diretor Philippe Falardeau em evitar a comparação que pode até ter sido desejada pelos produtores, já que facilitaria vender o filme. A ambientação na Nova York dos anos 90 um tico antes da informatização do mercado editorial resgata o prazer pré internet da leitura e de sentir a textura dos livros, enquanto Margaret Qualley e Sigourney Weaver constroem uma relação bastante honesta de respeito mútuo, ainda que caracterizada por uma hierarquia e por um atrito geracional. Margaret não oprime Joanna, somente exerce o seu ofício da forma que conhece, algumas vezes mais dura, porém não desrespeitosa.
A narrativa é acolhedora e confortável, atributos que Joanna buscou em Nova York e encontrou de formas menos evidentes. É também poética, igual a protagonista, em como introduz as cartas não lidas mas não oferece conclusividade a elas senão no gesto inocente de Joanna. É uma forma de oferecer esta perspectiva sem falsear seu resultado, enquanto também proporciona uma viagem no tempo a esta Nova York da literatura e apresenta, agora com a devida atenção, o talento de Margaret Qualley.
Os Goonies
4.1 1,3K Assista AgoraÉ difícil manter um distanciamento emocional de uma aventura com que cresci e que devo ter visto uma dúzia de vezes, mas bastou Os Goonies chegar na Netflix, pá, eu precisava rever.
Acho até que serve para perceber como o cinema infantil contemporâneo tem involuído para a infantilização dos menores, já que o roteiro de Christopher Columbus (baseado em uma história de Steven Spielberg) não poupa a trupe de crianças desajustadas de trombar com cadáveres, de sofrer tortura psicológica diante de três bandidos inescrupulosos nem de estar em risco de morte a todo momento.
Hoje, Os Goonies é ainda mais relevante porque valoriza a amizade física, não virtual, a aventura, não a simulação dos videogames, e a coragem para que esta geração de heróis inesperados possa salvar seus pais da ameaça de despejo. De sua forma, o filme dirigido pelo saudoso Richard Donner celebra a busca pelo tesouro, que pode significar somente estar, por mais um dia, na companhia de amigos queridos.
A trilha sonora de John Williams também é um capricho, em um filme que reconhece a importância da amizade a frente da aventura. Até há poucas piadas que envelheceram mal, porém a ideia de que amigos não enxergam aparência, mas o coração, e de que o melhor sorriso é aquele dado com a pessoa, não às custas delas, fortalecem ainda mais um clássico do cinema de aventura juvenil como nunca antes visto.
Kate
3.3 301 Assista AgoraKate não é a primeira pessoa a ser envenenada e ter xis horas de vida antes de descobrir quem é o responsável.
Kate não é a primeira assassina profissional, na forma de um exército de uma mulher só, contra meio mundo de pessoas que querem matá-la.
Kate não é a primeira profissional que sofreu as consequências de ter sua regra de ouro, a única, desrespeitada.
Kate definitivamente não é original, nem mesmo surpreendente, mas é igual à protagonista: incrivelmente focado naquilo que é, de tal forma que compensa qualquer limitação decorrente da falta de ambição do projeto. Mary Elizabeth Winstead tem o vigor de uma jovem Sigourney Weaver, embora aqui não exiba o mesmo carisma.
As cenas de ação andam na linha de John Wick, com Kate eleita como a máquina de matar da vez, sob o pano de fundo de uma Tóquio néon e sem maiores diferenças em comparação com qualquer metrópole a noite.
Kate é um contracheque rápido para o elenco, especialmente Woody Harrelson, e um entretenimento enlatado que ocupa 100 minutos de um dia. Às vezes eu não sei nem o que dizer sobre um filme ou série que, por não inspirar nenhuma emoção genuína em mim, torna até sem propósito o que faço.
Chico: Artista Brasileiro
4.3 85Eu costumo ter ressalvas com o gênero biográfico, ainda mais quando a personalidade biografada está viva e em atividade. Se o risco de parecer chapa branca é grande com personalidades falecidas, imagine se o biografado está sentado diante de você contando causos de sua vida? É claro que Miguel Faria Jr. não poderia evitar ser condescendente em sua entrevista com Chico Buarque, nem se aprofundar mais em assuntos sensíveis, mas este documentário parece encontrar uma outra forma de conquistar o espectador: ouvir Chico em sua própria voz.
É que Chico é apaixonante demais, e quando começa a recordar o passado e as histórias, muitas das vezes é transportado para elas e comunica isto a partir de emoção, sensibilidade e até gargalhadas. Viajamos desde a gênese de Chico na bossa nova, ao período da ditadura até os dias atuais, de um poeta mais protelador, mas não menos encantador. Chico enxerga o hoje sem pessimismo, nem romantismo: ele conversa sobre a música contemporânea, sobre o ofício de cantor, compositor e escritor, sobre a democracia, família, netos de forma franca.
Entreatos, Miguel Faria Jr. monta um cenário em que diversos artistas homenageiam Chico cantando suas composições: Péricles, Adriana Calcanhoto, ele próprio. É um documentário com objetivo único de homenagear, sem a intenção de investigar os cantos mais sombrios do artista. Ao trazer esta honestidade para primeiro plano, desarma quem queria criticar qualquer omissão e convida para curtir 2 horas na companhia de uma personalidade singular na história brasileira.
Quanto Vale?
3.5 50 Assista AgoraQuanto vale a vida de cada uma das milhares de vítimas, fatais ou que sofreram ferimentos físicos ou psicológicos, do 11 de setembro? Esta é a pergunta que procura responder o advogado Ken Feinberg, mestre especial do fundo indenizatório destas vítimas, enquanto desenvolve uma fórmula objetiva que satisfaça gregos e troianos e respeite as individualidades de cada situação. Seu trabalho é dificílimo, melhor dizendo impossível; entretanto, enxergar a situação com lentes humanas, em vez de burocráticas, este sim é um obstáculo superável.
Deste modo, este belo thriller dramático da diretora Sara Colangelo acerta em reproduzir o tédio burocrático a partir de cores de baixa saturação, sem vida, com um esverdeado misturado às cinzas que continuam a cair sobre a vida daquelas pessoas. Quanto vale? é um filme sobre o poder da escuta como forma de remediar situações irremediáveis; não é que Ken seja uma pessoa má, pelo contrário, só que não escuta as pessoas que mais precisam ser escutadas e delega isto a terceiros que, em razão deste processo, são transformados.
Esta história real que desconhecia sobre o 11 de setembro é, assim, uma exemplificação do poder do cinema quando toca o espectador que se abre ao inesperado. E tem ao menos 3 atuações dignas de nota: Michael Keaton, bastante a vontade em sua arrogância e mais ainda em sua humildade; Stanley Tucci, que se dispõe a ser a voz da razão; e Laura Benanti, que, por causa de um segundo de hesitação, antecipa ao espectador a revelação que saberemos a respeito de seu marido. São atuações poderosas em um drama que tenta colocar o espectador em condição de desconforto, a considerar como Sara posiciona a câmera, muitas das vezes cortando parte do rosto de Ken enquanto numa conversa.
Ao mesmo tempo, é também um drama que sabe transformar o ato de criar uma regulamentação em uma corrida eletrizante contra o tempo - a partir de 2 variáveis: o tempo restante e a quantidade de adesões ao fundo que precisa ser no mínimo 80%. Qualquer narrativa que faça do ato de legislar algo interessante e envolvente merece uma espiada, ainda mais quando a história fala tanto a respeito de humanidade.
Maligno
3.3 1,2KEu consigo somente imaginar a sensação que deve ser, para um diretor, ter uma liberdade criativa irrestrita para narrar a história que deseja, com o orçamento que precisa, independente de palpites e intervenções da produção e de qualquer dependência de bilheterias para validar seu trabalho. Depois de enriquecer o caixa da Warner com Invocação do Mal 1 e 2 e Aquaman, James Wan ganhou carta branca e orçamento significativo de U$ 40 milhões para realizar um giallo: um subgênero italiano, muito estilizado e violento, que misturava policial, thriller e terror e envolvia a caçada a um assassino em série cuja identidade era conservada em segredo até o clímax. Talvez não seja o filme que a Warner desejava produzir – imagino que quisessem um terror de casa mal assombrada –, mas é o filme que o terror precisava, até para evitar que caísse novamente na zona de conforto de anos anteriores.
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Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis
3.8 895 Assista AgoraDa mesma forma ocorrida em Pantera Negra, com Shang-Chi a Marvel tem a responsabilidade em retratar uma cultura que, até então, nunca teve representatividade heroica dentro do cinema norte-americano. É ótimo que isto aconteça, embora Shang-Chi tropece em estereótipos parecidos que Xu Wenwu critica em certo momento. Eu vou explicar. Enquanto Pantera Negra conjugou etnicidade à tecnologia, Shang-Chi apenas repete os modos de representação chinesa, de Kung-Fu Panda até o recente Raya, O Último Dragão.
A Ta Lo da narrativa tem menos personalidade do que Wakanda. Salvo sua fauna exótica, não existe nada especial no design de produção que filmes melhores não tenham retratado com exuberância cultural e histórica. Sem este elemento cultural - que enriquecia uma jornada já batida com T'Challa -, a de Shaun/Shang-Chi é morna, requentada e simplória, com meia-dúzia de flashbacks que servem para engrossar um enredo com poucos encantos. Na realidade, o melhor do roteiro está em como se costura aos demais filmes da Marvel com o retorno de um certo personagem e diálogos divertidos ainda mais quando saem da boca de Awkwafina.
Na verdade, não há nada errado no desenrolar da narrativa, que segue à risca a jornada do herói - da fuga à relutância, do sacrifício à vitória -, nem também maiores virtudes. O kung-fu é competente, mas perto do que o cinema de Hong Kong já apresentou, parece uma versão China in Box americanizado pela direção de Destin Daniel Cretton (que nem experiência no assunto tem). Inclusive, tem as mensagens de biscoito da sorte, sobre mirar em algo ou aceitar seu destino como formas de estabelecer conflitos de seus personagens. O humor funciona, porém daquele jeito da Marvel, atenuando o que deveria ser tratado com maior seriedade, ainda mais tratando de criaturas que devoram as almas das pessoas.
Entretanto, mesmo mediano, Shang-Chi tem, arrisco dizer, um dos maiores acertos de um filme da Marvel: a escalação de Tony Leung como o "verdadeiro" Mandarim. É um ator que comunica facilmente qual o conflito do antagonista a partir de uma troca de olhares, sem empalidecer também nas cenas mais físicas. Tony trata esta fantasia com a mesma seriedade que faria com um romance dramático de Wong Kar Wai, com o desenvolvimento de um homem conflituoso, violento e amoroso a sua forma, que eleva não somente a narrativa - graças à ambição potencialmente destrutiva - , como a jornada de amadurecimento do filho.
Um bom filme, ainda que seja mais do mesmo.
Cafarnaum
4.6 673 Assista AgoraA diretora Nadine Labaki chamou Cafarnaum (cidade bíblica onde Jesus realizou milagres mas também sinônimo de caos) de ativismo cinematográfico. Seu discurso não é da boca para fora, e mesmo que não seja capaz de alterar a realidade de Beirute, pode conscientizar a partir do poder da câmera de lançar luz em realidades desconfortáveis provocadas diretamente ou não por nossas ações e omissões. Dói ver pessoas, especialmente crianças, em situação de miséria, e Nadine, cineasta com interesse sociopolítico, tencionou seu inconformismo em uma construção poderosa dentro de uma realidade que parece a nossa.
Nadine inicia com o processo civil movido por Zain, um garoto preso de uns 12 anos, contra os pais por terem-no concebido neste mundo infeliz. É uma alegoria sobre a negligência paterna que passeia sobre perigosa linha que divide o olhar inocente, ainda que corrompido, de Zain do ponto de vista crítico de Nadine contra as instituições sociais elitistas - a um juiz é dado o poder de julgar condições indignas que jamais vivenciou - e as famílias tradicionais - que normalizam o casamento de uma garota que recém menstruou com um homem muito mais velho.
Cafarnaum é contraditório e precisa ser, pois não existem soluções fáceis à problemática discutida. Os pais não são culpados, somente vítimas de um mesmo sistema que os impede de enxergar adiante. Entretanto, são responsáveis, conjuntamente com o Estado que nem reconhece a existência de Zain (ele não tem certidão de nascimento). Não existir é uma expressão da invisibilidade daqueles que habitam a margem da sociedade, tidos por párias ou verdades inconvenientes, tendo no "super-herói", o Homem-Barata, uma metáfora vívida disto.
A intensidade da narrativa é ainda maior diante das opções estéticas de uma filmagem realista, com a câmera em punho no meio das ruas, sem iluminação artificial e mínima interferência na dinâmica daquele cenário. A montagem intensifica o sofrimento, coroado pela atuação de Zain Al Rafeea, ator não profissional descoberto por Nadine, e que teve melhor sorte que seu personagem, após ser reassentado com a família na Noruega.
Esta realidade ao estilo Cinderela, porém, é raridade diante do soco no estômago que é Cafarnaum.