Em certo momento da história dos filmes de casa mal assombrada, algum roteirista deve ter pensado que seria divertido brincar com a apreensão do espectador com terrores falsos ou inofensivos, tipo a chave do carro desaparecer e reaparecer ou a bolinha de tênis que estava embaixo da cama aparecer sobre esta.
Só que estamos em 2021. A experiência cinematográfica evoluiu com a linguagem do cinema e, mesmo assim, roteiros como o deste Mudança Mortal permanecem estanques. Eles apostam em subterfúgios bobos e que nem movem a história a frente, nem desenvolvem os personagens, nem produzem alguma forma de tensão.
(Ainda por cima estes sustos são imensos furos de roteiro que não fazem sentido após conhecermos qual a explicação dos fenômenos ocorridos na casa recém adquirida por um casal em crise após a esposa trair o marido).
O que seria um terror descartável, semelhante ao meme da família correndo feliz para morar em uma casa assombrada, fica ofensivo, quando o roteiro utiliza o fato de o marido não crer nos fenômenos testemunhados pela esposa como metáfora da perda de confiança após a traição. Pior, ainda responsabiliza a esposa adúltera pela situação - a partir da análise do que aconteceu antes -, enquanto passa o maior pano para o adultério do marido - relembre da visita feita pela protagonista à vendedora da casa.
É um terror que não aterroriza, com uma fotografia horrorosa (clara demais de dia; azulada demais a noite) e uma mentalidade do século XIX.
Apesar de a matéria prima da contação de histórias serem as pessoas, algumas narrativas parecem amar estar perto de gente de verdade. Se Dora permanece fechada dentro de si, Central do Brasil mostra qual o poder existe a partir do contato verdadeiro. Um que Dora nega àqueles cujas cartas entulha dentro de sua gaveta, até conhecer o jovem Josué.
A dinâmica entre Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira é onde reside o coração desta fábula melancólica acerca da importância da mensagem, do mensageiro e da memória. Josué é a mensagem; Dora, a mensageira; enquanto isto, a memória é construída na estrada enquanto partem do Rio de Janeiro em direção à cidade onde mora o pai do garoto recém órfão de mãe. Dora desconfia do êxito da missão ou mesmo de seu propósito, mas como a carteira que aprende que é, não desiste de entregar a correspondência no destino certo.
Ao redor deles, rostos de pessoas que estariam invisíveis na multidão se não fosse o olhar gentil de Walter Salles, auxiliado pela fotografia calorosa do mestre Walter Carvalho. Cada marca de expressão, cada sorriso, cada fio de cabelo desgrenhado reforça as histórias que são aquilo que carregamos conosco no fim do dia. Histórias que se transformam em memórias. Memórias que aumentam o nosso amor pela vida.
Central do Brasil parece mais distante do que é. Como sociedade, além de não existirem mais notas de 1 real, também abdicamos da palavra escrita, do ato de escrever uma carta a quem amamos, do altruísmo de se entregar ao outro. As memórias se tornaram mais fugidias, pois as experiências também se tornaram descartáveis. Assim, este drama resgata o poder do agora e da construção de um laço indelével, enquanto revela, nas estradas e romarias, um Brasil desconhecido e a promessa de uma história que jamais será esquecida.
Eu entendo o sentimento de inconformismo leva Ray a partir numa cruzada de vingança de um homem sozinho contra a Big Pharma, o apelido dado às corporações do setor farmacêutico que, como corvos, vírus ou cânceres, enriquece a partir do infortúnio de milhares de famílias. Em vez de medicamentos e tratamento acessíveis, a garantia de que ou você morre da doença ou entra em falência. Assim, é até mais contemporâneo vingar-se de CEOs indiferentes do que da máfia russa ou japonesa, que ao menos ainda tinham algum código de honra.
Só que nem a melhor das intenções, nem cenas de ação honestas (ao menos até certo momento) e executadas com segurança compensam seu roteiro desastrado. Já começa com a suspensão de descrença em acreditar na premissa quase absurda, passeia pela trapalhice policial e termina em furos no roteiro inaceitáveis.
Da onde surgiu a retroescavadeira que fecha o túnel no jogo do bicho e como, dentro das circunstâncias apresentadas no filme, esse veículo poderia estar ali?
Como, em 2021, o FBI aceitaria a confissão de uma pessoa coagida com uma arma no pescoço? E como desapareceria o fato de que a pessoa responsável por homicídios pode viajar a vontade de avião?
Isto porque nem falei do elefante branco no meio da sala. Não, não é o Jason Momoa - que é um ator carismático como o estereótipo clássico do brutamontes com um bom coração -, nem Isabela Merced, a Dora a aventureira, nem o vilão que parece ter saído de algum filme de Jason Bourne, mas o tipo de reviravolta que tenta parecer espertalhona com uma montagem retrospectiva, toda cheia de si, que parece dizer com o sorrisinho cafajeste de canto de boca "viram, vocês não perceberam isso".
Justiça em Família tenta ser socialmente engajado e aparentar mais inteligente do que é, enquanto trapaceia o público - e o bom senso. Mas é só mais um filme de vingança esquecível e que não resiste a uma análise aprofundada, igual às relações entre política e empresas.
Eu admiro as superproduções que me colocam para pensar muito além das reflexões expositivas propostas no roteiro. Nesta comédia de ação, fala-se muito da importância do homem médio, de como o homem vira máquina e perde a liberdade dentro do sistema capitalista - que busca maximizar vendas a todo custo, nem que para isto engane os clientes e invista na violência como alternativa -, da mulher gamer, dos trolls etc. Mas de todas as reflexões, a que mais gostei é fruto de uma hipocrisia, e nem é uma má hipocrisia, é apenas regra do jogo.
Em certo instante, o personagem interpretado por Taika Waititi justifica qual a lógica de negócios da sua empresa: produzir somente aquilo que o público deseja. Bem, estamos falando do vilão, enquanto a dupla de programadores independentes que teve a criação roubada procura revolucionar a experiência dos games, a partir da proposição de um jogo original. Ou seja, o mesmo roteiro que apenas repete todo o blockbuster é ainda o que critica a falta de criatividade da indústria do cinema (a partir da metáfora dos games). O roteiro que defende os games não violentos em favor da observação dos NPCs é também um roteiro que aposta na violência como forma de ganhar experiência ou na resolução do clímax.
Free Guy não poderia ser a metáfora do game contemplativo, pois isto seria um fracasso de bilheteria colossal. Criticar a própria atitude que adota é o tipo de tiro no pé que apenas um diretor tão mergulhado na indústria faria. Shawn Levy não é um sujeito criativo; sua função é só de apontar a câmera e deixar Ryan Reynolds ser Ryan Reynolds, Jodie Comer conquistar aqueles não conquistados por Killing Eve, e deixar as boas sacadas do roteiro florescerem. Ele não é o diretor que tapará o buraco óbvio do roteiro, a ponto de exigir machadas em servidores quando um puxão na tomada resolveria.
Quer dizer que o filme não é divertido? Nunca! Eu ri e me empolguei, e ainda fiquei feliz em saber que parte do público-alvo do filme, os trolls gamers, são criticados de forma literal e escrachada (a forma como entendem). Mas não dá para amar um filme hipócrita, por mais que eu queira.
Filmes sobre amadurecimento costumam ser contados através de um prisma etário que distancia a direção da história contada. Por motivos óbvios dentro do cinema, não são jovens que contam acerca de seu amadurecimento, mas pessoas mais velhas que enxergam a transição sexual, emocional e psicológica da adolescência à idade adulta com o olhar nostálgico de quem já viveu, não de quem está vivendo.
Califórnia tem disto, mas tem também um olhar empático de Marina Person à juventude dos anos 80 (a sua), a partir de objetos de cena e canções representativas, mas que não sufocam o amadurecimento de Teca. A ênfase de Marina são os personagens; o mundo que os cerca individualiza aquela existência, mas os sentimentos que ressoam com intensidade. A inadequação com o próprio corpo, a dificuldade em ter a iniciação sexual, o silêncio em relação à doença do tio amado.
A cidade americana que dá nome ao filme é a metáfora do escapismo em direção ao local ideal, de uma utopia que, para Marina, vem ainda numa nostalgia. Uma época em que gravávamos fitas cassete para as pessoas que amávamos, em que escrever cartas e cartões postais era um ato de presença. Existe uma calorosidade que vem da paixão da direção pela história e passa à relação dos personagens e nossa com eles.
A direção tem, na profundidade de campo rasa, a ideia de isolamento e de que o amadurecimento é no tempo de cada. Já a câmera na mão revela a instabilidade emocional típica daquele período da vida. Além disto, Clara Gallo, Caio Horowicz e Caio Blat oferecem atuações mais naturalistas de personagens que vivem dramas próximos dos nossos. É um filme sobre amar o processo de transformação, não é a toa que inicia e termina com o plano-detalhe do olhar de uma adolescente e termina com o de uma mulher.
Steven Soderbergh não inventa a roda no gênero do crime, mas ele certamente dá uma sacudida aqui e acolá enquanto transporte seus espectadores para o cinema noir que era feito nos anos 30, 40 e 50. Ninguém poderia confiar em ninguém. A ganância costumava ser o pecado mais capital, depois da confiança. E você poderia usar uma reviravolta no roteiro que colocasse tudo em perspectiva, ou não.
Depois que você se acostuma com o formato anamórfico, em que a imagem é comprimida para caber dentro de um quadro definido, no motivo de haver tantas deformidades nos cantos da tela - que após algum tempo acabam ficando mais charmosas -, Nenhum Passo em Falso é uma delícia de assistir. Muito por conta de seu superelenco, com Don Cheadle em um papel que seria inimaginável na Hollywood daquele período, Benício Del Toro, David Harbour, Jon Hamm, Brendan Fraser - que engordou para estrelar o novo filme de Darren Aronofsky - e uma participação especial caprichadíssima.
Caprichosa também é a fotografia, e Steven Soderbergh (sob o pseudônimo Peter Andrews) estabelece uma linguagem visual apaixonante. Os contrastes entre claro e escuro sempre ditaram a tônica deste gênero, mas agora, com cores expressivas, parecem ainda mais marcantes. A luz justificada de abajures e afins cria uma espécie de âncora onde podemos repousar nossos olhares enquanto o elenco permanece nas sombras, onde suas intenções são melhor mascaradas e dissimuladas.
É difícil confiar em alguém e é por isto que a resolução da narrativa reside neste elo que une duas pessoas num mundo preparado para apunhalá-los pelas costas. Claro que, entre traições e reviravoltas, é difícil saber quem está enganando quem, o que mantém o espectador alerta por esta viagem ao cinema clássico nos dias de hoje.
Como amadurecer cercado pelos espinhos de um padrasto abusivo? Esta adaptação da autobiografia escrita por Tobias Wolff não coloca açúcar num relacionamento abusivo, nem se revela condescendente consigo mesmo. O roteiro adaptado retrata um homem em harmonia com o adolescente que um dia foi: sensível, apesar de desordeiro ou mesmo trapaceiro; consciente em reconhecer não poder medir força com o padrasto, Dwight, embora até se esforce em tentar estabelecer alguma relação com alguém mesquinho, rancoroso, preconceituoso e violento.
A narração de Leonardo DiCaprio, ao invés de um ator na idade adulta, confere a ideia de presente a uma história sobre o ontem e todas as experiências, boas ou ruins, que maturam um adolescente no homem que será. E se o autor das memórias não se enxergava como santo ou vítima, Leonardo DiCaprio não ousaria fazer isto. Apesar de ser doce e carinhoso com a mãe, Toby julga-a, normalmente pelo olhar, em razão das decisões que os colocaram no caminho de Dwight. Ele sabe que a mãe é vítima, mas isto não o impede de demonstrar ressentimento, na forma que adolescentes melhor fazem.
Sua mãe, Ellen Barkin, também está numa jornada de amadurecimento na idade adulta. Carolina, em meados dos anos 50, deve abandonar a dependência da figura masculina e a vida doméstica, e ser livre de acordo com seus próprios termos. Pior, deve se livrar do lar abusivo onde está, habitado por um homem que, nas entrelinhas, revela suas inadequações consigo mesmo. E Robert De Niro evita que Dwight só seja um vilão unidimensional, transformando-o neste poço de mágoa de si próprio. Um valentão que se troca com um adolescente e revive na memória brigas que afirmariam sua condição de alfa, mas de fato evidenciam a masculinidade frágil de um homem com problemas com sua sexualidade e mesmo sua insignificância moral.
Gosto da direção de Michael Caton Jones e de como deixar os atores livres para encontrar momentos emocionais e significativos. E, para quem gosta de estudar o amadurecimento da sociedade e do cinema em relação a temas sociais, este filme conjuga três épocas em uma: a década de 50, quando o filme é ambientado, a década de 90, quando já havia conquistas sociais, e os dias de hoje. O resultado é revelador.
A forma desta biografia vai contra à personalidade do biografado. Isto porque escolhas de Felipe Novaes são típicas do documentário careta, útil para obras institucionais ou em que a demonstração de autoridade seja a tônica, mas não para retratar figuras marginais, como Chorão se autodenominava.
A quantidade de entrevistas parece excessiva pois acrescentam pouco que ainda não conhecíamos - exceto o relato de João Gordo, a título de exemplo - ou que os registros de arquivo permitiam deduzir. Além disto, as entrevistas eram muito mais sobre a relação dos entrevistados com o Chorão do que sobre o músico, sua origem sobre o skate, sua ascensão na cena musical brasileira, sua morte precoce.
Chorão apenas se apresenta através dos vídeos escolhidos por Felipe Novaes e bem articulados dentro da biografia. Neste momento, a obra cumpre sua missão: de revelar o biografado nas entrelinhas da ação e ou do dito, a partir do olhar cuja intensidade começa a ceder espaço à melancolia ou na humildade em se sentar no chão do aeroporto.
O Chorão não se encontra nas entrevistas - infelizmente prejudiciais à curta duração de um projeto que deveria ser mais aprofundado -, mas sobre o skate, quando não desiste de acertar um salto, nos estúdios de gravação, em que cobrava dos outros o bastante que exigia de si, e nos palcos de seus shows. A biografia de Felipe Novaes é oportuna, bem intencionada e honesta em impedir que seja exibido um retrato higienizado de um cantor marginal, mas não impulsiva ou espontânea como o astro de rock, skatista e homem que Chorão foi.
Filmes sobre a falácia da terapia de reversão sexual (popularmente denominada "cura gay") costumam retratar a experiência traumática adotando o ponto de vista as vítimas, como Boy Erased: Uma Verdade Anulada e A Má Educação de Cameron Post, ótimos dramas baseados em histórias reais. Este documentário toma outro caminho ao ilustrar a história e vivência dos chamados "ex-gays", homossexuais "curados" e garotos propaganda de uma experiência que devassou a saúde mental de muitas pessoas e custou a vida de outras mais.
A argumentação da diretora Kristine Stolakis repete os passos dados dentro de grupos cristãos com um apoio de políticos conservadores, apresentando o projeto êxodo, sua popularização e os mecanismos adotados para convencimento da opinião pública que estava em cima do muro. O mais rasteiro era a associação entre homossexualidade à pedofilia e ao incesto, a ponto de sugerir que, se aprovados direitos LGBTQ+, todo o restante poderia ser e a família tradicional cristã seria destruída. Com o passar do tempo, a validade teológica e biológica do exposto se mostra mais absurda, com teorias que tentavam explicar a orientação sexual a partir de relações abusivas ou mesmo de aspectos da paternidade.
A força do documentário está em permitir que os atores-sociais (o termo usado para se denominar o personagem dos documentários) revelem o processo de retirada das travas que cegavam sua visão, ao mesmo tempo em que expõe o verdadeiro objetivo desta cruzada em favor da exclusão dos que não aderirem aos seus "ideais" (reutilizando as palavras do ex-presidente George W. Bush). A terra da liberdade é a terra da opressão, e Pray Away é um documentário necessário, mesmo porque, hoje, práticas iguais às criticadas continuam presente embora maquiadas.
Becket remete aos clássicos Intriga Internacional e O Fugitivo, quando um homem médio é atirado dentro de uma conspiração cuja dimensão mal percebe, a ponto de nem poder vivenciar o luto pelo acidente que causou a morte da esposa.
Onde havia turismo, há apenas o ímpeto de sobrevivência, o que exige atuação muito mais física do que emocional de John David Washington. O ator não desaponta, nós sentimos os machucados e o esforço físico dele enquanto passeia por toda a Grécia.
Não dá para curtir as belezas do país, que ficam em segundo plano de um thriller de ação cuja verossimilhança é arremessada da janela logo no acidente: Beckett somente encontra gregos que sabem conversar em inglês quando a narrativa assim exige e dissolve a luta pela morte da esposa numa correria desenfreada cuja politicagem atrapalha.
Entre extremistas de direita, falsas acusações contra comunistas, e o imperialismo mostrando sua face, sobra o roteiro expositivo demais e personagens tão canastrões que nem merecem maiores comentários. Eu fiquei vidrado em acompanhar as idas e vindas de Beckett, mas não podia ignorar o roteiro capenga, que nem aproveita a beleza da Grécia nem o esforço de John David Washington em conferir autenticidade a toda a ação.
Depois de 125 anos de cinema, todos os dramas já foram contados (embora não de todos os modos possíveis). O que a arte faz para se reinventar constantemente? A hibridização de histórias ou gêneros, como é o caso deste terror alemão, que mescla terror vampírico e o thriller de sequestre de aviões. De certo modo, relembra Um Drink no Inferno, embora este filme de Robert Rodriguez não se levasse a sério como faz este Céu Vermelho-Sangue.
Esta seriedade prejudica a narrativa, ao menos a partir do momento em que começam a ser disparados tiros dentro da aeronave. A forma como está montada a narrativa prejudica mais, já que, nos momentos de maior tensão, sempre há um flashback que devolve a narrativa ao passado para justificar a aspiração de anti-heroína da protagonista. Dentro desta busca por seriedade, o filme tenta mostrar-se relevante criticando a islamofobia, o capitalismo predatório na forma de um dos passageiros mais insuportáveis da ficção e a aparência externa como meio de identificar um monstro ao invés de fazê-lo por seus atos, mas seus melhores momentos são sempre aqueles em que se entrega aos próprios instintos de terror/thriller.
Além disso, gosto desta versão Nosferatu de vampiro, no lugar do glamour do Drácula ou dos vampiros da Anne Rice e afins, e é até apropriado que seja assim o visual da protagonista, pois dentro de uma narrativa violenta, sanguinária e implacável mesmo quando a vítima são crianças. A duração parece excessiva em relação ao que tem a oferecer e talvez a experiência seja comprometida por ter o desfecho sido deslocado ao início, dando conta do destino de um e outro personagem quebrando o mistério que poderia haver.
Se um monstro encarasse a própria maldade no espelho, será que continuaria sendo o monstro que é? Esta continuação do sucesso surpreendente de 2016 tenta responder esta pergunta. Já parte de uma decisão simples, mas importante: ao invés de ser apenas o Homem Cego, o personagem de Stephen Lang agora tem um nome, Norman. Verdadeiro ou não, isto já lhe confere um atributo humano que lhe faltava no antecessor. Mas até alguns monstros têm nome, então a narrativa também altera sua voz, mais frágil e contraditória com os atos de brutalidade que pratica. Muda ainda seu propósito.
Agora Norman não acorrenta mulheres (ao menos não com correntes físicas), nem assassina jovens adultos infelizes por decidiram roubar a casa errada. A violência dele tem a finalidade de proteger a jovem Phoenix, cujo nome deriva da ave mitológica que renascia das chamas (evidenciando que, embora Norman seja ótimo no que faz, não tem muita criatividade). Proteger uma garota indefesa é uma maneira de humanizar o monstro, ou torná-lo num anti-herói, contra uma gangue de traficantes de drogas e ex-soldados americanos (todos brancos, com exceção do latino que é quem tem a decisão honrada do bando, numa mudança de rótulo que muito me agrada).
Contudo, este outro Norman também enfraquece o filme. Enquanto no anterior, a minha "torcida" era deslocada do Homem Cego aos jovens em razão do grau do ilícito que praticavam, neste não. Embora haja uma reviravolta no roteiro que colocamos em dúvida a atitude de Norman, não mudei o lado de quem permaneci na narrativa. E logo, tudo vira uma espécie de Busca Implacável com mais gore e violência, com furos no roteiro por onde passariam caminhões (ex. um incêndio que não chama a atenção de bombeiros) e uma tendência de atribuir ao protagonista superpoderes dignos do Demolidor da Marvel.
De outro lado, por 95 minutos, permaneci na beira do assento, tenso, já que a narrativa aproveita cada instante para provocar mini enfartes numa penumbra visual atraente. Não tem o mesmo dom em criar uma penumbra narrativa, porém, e Norman é agora mais unidimensional do que antes senão no ato de mea culpa e de penitência, acentuado pela boa performance de Stephen Lang. É um passatempo intenso e brutal e nada mais.
Falar a respeito de si próprio é um trabalho dificílimo: você pode soar imodesto, presunçoso, arrogante e se distanciar do público que você deseja que te escute. Como alternativa, você pode apostar no humor ácido, na autodepreciação, na desvalorização, e embora encontre um quê de humanidade e as pessoas fiquem mais sintonizadas porque se divertirão, acabará perdendo o ponto de partida da reflexão que exige autoridade ou ao menos conhecimento de causa. "Quem sou eu" talvez seja a pergunta mais difícil a ser respondida ao lado de "O que tenho a oferecer", e só o fato de Val Kilmer se propor a isto, sem máscaras nem vaidades, já torna este documentário autobiográfico obrigatório.
O ator, mas agora me referirei a ele como artista, é contraditório do início ao fim. Ele abandonou os palcos por Hollywood, alcançou um estrelato dificílimo e aspirado por muitos, embora se ressinta de isto ter lhe tolhido a arte original que acreditava que poderia oferecer. Ele amarga o fato de sobreviver na memória dos fãs pelos papéis de seu passado, mas permanece, mesmo com dores físicas, autografando a mesma célebre frase inúmeras vezes com um sorriso no rosto. Ele recorda a afirmação dos nativos de que a imagem fotográfica retira a alma das pessoas, mas é o primeiro a filmar a si, como se drenasse, dia a dia, mais um pouco da própria alma.
Val Kilmer é contraditório como são os melhores personagens, e ainda que o documentário adote um tom simpático e ainda propagandístico - de o artista como defensor da arte pura, contra diretores comerciais, ao lado de lendas como Marlon Brando -, os vídeos coletados por toda a história e a montagem permitem atingirmos conclusões variadas a respeito do homem que se apresenta para nós. Mas dentre todos, ao menos há uma certeza: Val Kilmer nasceu para a dramaturgia e, talvez, quis a vida que seu principal papel tenha sido não como Batman, nem como o Santo, mas como si próprio.
Eu, igual a vocês, fui bombardeado por postagens nas redes sociais sobre um "novo terror de gafanhotos carnívoros" etc. E, igual a vocês, em algum momento confabulei na minha cabeça algumas expectativas (sim, não é porque digo para não criarem expectativas que às vezes não caio em armadilhas). E, é óbvio, se você fabricou ideias de um terror-B deve ter saído xingando porque A Nuvem não correspondeu ao que vocês esperavam.
Este mundo de informações em excesso, sinopses, trailers, ainda vai matar a experiência de se surpreender com a arte. Bem, A Nuvem, produção francesa, encontra em uma fazenda de gafanhotos uma forma de desenvolver uma alegoria da mãe viúva, que deve dobrar seu trabalho para cuidar da família. Gafanhotos são o que resta a Virginie para criar seus dois filhos, ainda que isto impacte no cotidiano deles no colégio e na relação mãe e filhos. Pois é, nada de filme de terror-B (que, adianto, não é demérito algum), mas um drama com elementos de terror de monstros.
O espaço aberto comprime a capacidade de agir e pensar de Virginie, que descobre que a produção de gafanhotos aumenta em quantidade e qualidade os insetos consomem sangue humano. Assim, este terror dramático começa a namorar uma espécie de A Pequena Loja dos Horrores, mas no lugar da planta carnívora que resolvia os problemas de seu frustrado protagonista, gafanhotos se posam como resposta à obsessão de Virginie. Em razão do isolamento dela, físico e emocional, muito passa despercebido até não passar mais. Quem dita este ritmo é a construção psicológica de Virginie e o relacionamento conturbado com a filha, Laura.
O caminho que ambas percorrerão é violento e tem o naturalismo do cinema francês, que ganha o acréscimo do elemento fantástico e que exige a suspensão da descrença do espectador. Isto porque a narrativa é menos sobre gafanhotos carnívoros (parabéns aos envolvidos que venderam e divulgaram assim), e mais sobre pessoas e o sacrifício em várias camadas que as mães realizam em nome de seus filhos.
A privatização da Vale do Rio Doce é o ponto de partida para debater a prestabilidade humana enxergada no trabalho e em razão do tempo. Não digo o tempo cronológico, mas o tempo de mudanças sociais: no Brasil, durante o final dos anos 90, houve processos de privatização de muitas empresas estatais que modificaram o cenário brasileiro. Os valores mais liberais na economia desaguaram na sociedade, e logo o homem perdeu a âncora na empresa onde trabalhava há 10, 20, 30 anos, o sentimento de camaradagem cedeu o lugar à concorrência também interna em que colegas de trabalho competiam, bem além do campinho de futebol onde se divertiam no fi do expediente. Este cenário é debatido a partir de um exemplo concreto pelo diretor Vinícius Reis, em Homem Onça.
Na trama, Pedro é um empregado de uma estatal recém privatizada e que começa a enxergá-la entrar em inanição de pessoal, para ser competitiva no mercado de ações (que não enxerga pessoas, nem famílias, somente números). Pedro até tenta se posicionar contra a mudança, mas não pode impedir o imutável. Seu conflito, portanto, é consigo mesmo, em tentar se encontrar dentro deste cenário de terra arrasada, depois de descobrir ter sido uma mentira seus 20 e tantos anos de vida. Isto justifica a escolha da estrutura da narrativa, dividida em dois marcos temporais, que revelam como Pedro perambula como uma onça por entre a floresta em chamas.
Pedro é a própria onça, que caminha em sentido contrário nos trilhos antes de ser arrastado pelo trem do progresso. A onça é também este Brasil, que vende seu patrimônio para o mercado estrangeiro, posição criticada por Vinícius Reis. Entretanto, ao invés de abordar a narrativa do ponto de vista de Kátia, a funcionária demitida e não reposicionada no mercado de trabalho, ou de Dantas, o gerente do empreendimento que aceita a demissão com praticamente um indenização milionária, o roteiro se volta a Pedro, o intermediário chefe de uma equipe pequena e familiar. Seus figurinos amarrotados e destoantes revelam este homem desalinhado com os diretores em postos equivalentes ou mais altos, enquanto também desconfortável nesta "pele" de executivo que não é de onça.
Já a fotografia de João Atala sufoca Pedro no interior dos cubículos da fictícia Gás do Brasil, enquanto o design de produção de Tainá Xavier esvazia as salas de trabalho. É bastante intrigante como esta aparente contradição visual - como se sufocar se há mais espaço para respirar? -, atua a favor da narrativa: o vazio é do personagem, não de quem vê, o espectador. Uma cena que ilustra isto com clareza é o momento em que Pedro chuta a bola dentro da sala vazia, gesto a ser reproduzido pelo enteado noutro momento como forma de manifestar frustração. Neste instante, apenas o espiamos à distância, mal podemos ver onde a bola bate. É que o vazio também oprime. Do lado de fora, Pedro não tem melhor sorte: a fotografia o coloca nos cantos diante de arranha-céus que devoram a paisagem, de forma irônica com o projeto com que o personagem sonhava.
Contudo, sonho mesmo é ter um ator como Chico Díaz protagonista: Chico é hábil como este Dom Quixote que esgrima contra um moinho invisível, o capitalismo neolibral, e com o passar do tempo, acusa os golpes que sofre por não saber se adaptar a este tempo de mudanças. As consequências são ainda maiores, nesta estrada cheia de baixos e o desejo de retornar à natureza original. Ao lado dele, destacam-se Sílvia Buarque e Emílio de Mello, personagens que também refletem o comportamento de parte desta classe média diante do cenário em transformação.
Nesta jornada em que não há respostas do lado de fora, um Homem Onça igual a Pedro precisa encarar para dentro de si. Com um filme belo, poético e contemporâneo igual a este, o Festival de Gramado começa com o pé direito.
Algumas viagem não têm destino. Algumas estrada somente conduzem para dentro de nós mesmos. Em Paris, Texas, o errante Travis caminha pelo deserto, de maneira que até questionamos se existe realismo em 4 anos no deserto, desapegado de qualquer ambição de ser humano: ele não come, ele não dorme, ele não se comunica. Ele está no estágio de suspensão do ser, até não estar mais. Quando é reencontrado pelo irmão e recordado que seu filho já tem 7 anos, Travis se reaproxima do homem que já foi e começa a reassumir a autonomia da estrada que irá trilhar.
Uma das obras-primas do alemão Wim Wenders passeia pelo deserto do Texas, e descobre, no vazio da paisagem ensolarada, equivalente ao vazio existencial, da perda de propósito, da desumanização. Os planos abertos contemplam cenários onde nada floresce; há somente poeira. As estradas parecem levar a locais dos quais Travis deseja só fugir, daí porque insiste em permanecer do lado de fora ou, quando muito, do lado de dentro contemplando o exterior. É que Travis tem esta doença do deslocamento crônico. Enquanto caminha, não lembra do que fez, nem de quem é. Contudo, esta imperturbável e misteriosa atuação de Harry Dean Stanton tem também espaço para o sensível.
Este filme de estrada (ou road movie) leva a sério a máxima: não é o destino, nem o motivo que importam, é o percurso, enquanto tenta extrair sem número de simbolismo com a sociedade daquela época. Há abundantes dispositivos que retransmitem a voz (orelhão, walkie talkie, gravador), assim como há o choque brutal entre ideal e real, pois há duas Paris, dois pais, duas Américas: aquela do sonho norte-americano, em que famílias permanecem juntas, e aquela destinada ao deserto.
Igual às estradas, a estrutura do roteiro de Sam Shepard é sinuosa e errática. É como se descobrisse quem são os personagens, enquanto datilografava páginas. Isto produz algo honesto consigo mesmo, que evita respostas fáceis para perguntas difíceis, quiçá às vezes omitindo e deixando as conclusões para o espectador. Somente resta o drama do homem que, após enxergar no espelho quem realmente é, correu para o deserto com medo de si mesmo, até que fosse reencontrado. Se este retorno à sociedade o redimirá ou o condenará em definitivo, aí cabe a cada um decidir. Quando filmes fazem algo assim, é porque se está diante de algo especial.
Um marinheiro parte numa viagem acompanhado de dois exploradores à procura de uma misteriosa lenda, objeto do desejo de um inescrupuloso membro da nobreza. No caminho, aprendem a conviver uns com os outros enquanto sobrevivem aos obstáculos postos em seu caminho, inclusive homens imortais que buscam a forma de quebra sua maldição.
Com alguns retoques aqui e acolá, Jungle Cruise poderia se passar por reboot de Piratas do Caribe - deve até ser dentro da política de mercado da Disney, após Johnny Depp perder seu prestígio e uma continuação da franquia se revelar nula sem Jack Sparrow. Até chego me surpreendo que Michael Green (indicado ao Oscar pelo roteiro de Logan, e roteirista de Blade Runner 2049 e Assassinato no Expresso Oriente) e a dupla John Requa e Glenn Ficarra (os criadores de This Is Us) tenham assinado conjuntamente este roteiro, que tenta repetir a fórmula bem sucedida de aventura, fantasia e bom humor.
Porém, Dwayne Johnson, uma montanha de carisma cinematográfico, não tem a malícia e ironia de Johnny Depp, indispensáveis para que o inicialmente dissimulado, depois heroico Capitão Frank seja sucedido na missão de conquistar o público. Emily Blunt saí-se melhor, e Lily é o tipo de estereótipo feminino contemporânea da Disney: autônoma até depender da figura masculina (seja pela força física, seja pela política da época). Embora faça algum sentido que seja assim, o que não faz é a Disney, em pleno 2021, bolar "humor" a partir dos gostos e trejeitos de um personagem homossexual, interpretado por Jack Whitehall (que pensei ser, o filme inteiro, Sam Riley).
No restante do tempo, Jungle Cruise tem cenas bem movimentadas - as melhores não estão contaminadas pelo exagero de efeitos visuais computadorizados -, momentos divertidos de humor pastelão - mais uma vez tentando repetir, pela forma, o acerto de Piratas do Caribe - e química entre Emily e Dwayne, porém nada que fará a Disney a tirar da cartola mais uma franquia.
A diretora gaulesa Prano Bailey-Bond criou um terror bastante expressivo em como a internalização da culpa termina por produzir consequências desastrosas na liberdade de expressão do próximo. A diretora adota para si a missão de desmistificar a premissa de que a violência na arte inspira a violência na vida real, e devolve ao indivíduo a responsabilidade pelos atos que comete.
Desta forma, a maneira de se vestir, o corte de cabelo e a forma de se portar da censora Enid, responsável por editar cenas de violência e de sexo nos snuff filmes, denota a mulher reprimida e trágica incapaz de conter todo o transbordamento da culpa que sente dentro de si. E, ao lado de filmes iguais a Santa Maud, este explora o caminho sem volta de quem impõe crenças e valores individuais a toda à coletividade, e as consequências violentas decorrentes disto.
A narrativa limita a profundidade de campo de Enid a ponto de mantê-la sozinha no quadro e desconfortavelmente próxima do espectador, e até tenta simpatizar, embora discorde, com a crença de que a censura prévia reduziria a violência na sociedade. O que é mau gosto para uns é a expressão artística de realizadores que precisam expurgar de si os temas que os aterrorizam, e quanto mais Enid caí dentro da espiral da loucura de seus próprios atos, mais percebemos que a violência não está na arte, mas no indivíduo que deveria ter ido buscar psicoterapia ou um psiquiatra.
Com isto, Prano Bailey-Bond desenvolve uma narrativa estilizada, em que percebemos a loucura penetrando nos poros de Enid, a partir de opções de câmera e da iluminação néon e que convergem na máxima encenação visual da censura nos 3 minutos finais. Uma das cenas mais poderosas do terror deste ano, reveladora de que, por mais que censuremos todas as violências nos filmes, isto não tornará o mundo menos violento. Jogue a luz mais quente, os abraços mais apertados que quiser, a alienação não modifica a realidade. Somente a esconde para que não possamos fazer nada a respeito.
O presente gosta de encarar o passado em busca de respostas ao seu vazio existencial. Não é por menos que revisitamos memórias, nossas ou dos outros, para tentar aplacar o desejo em encontrar o propósito em erros e acertos. Este olhar ao ontem costuma revelar-se em uma pedra no sapato do contador de histórias, porque exige maior poder de síntese (cada história terá menos tempo de tela, então não pode demorar para mostrar para o que veio) e alguma articulação, direta ou indireta, que justifique a estrutura bi-temporal.
Este romance de Augustine Frizzell não é As Horas, assim como Jojo Moyes não é Virginia Woolf: até não há dificuldade em preencher os vazios que aproximam Jennifer e Anthony, nem em absorver a postura passivo-agressiva do marido Laurence, pois já estamos familiarizados com esposas troféu e casamentos por conveniência, é que falta a liga com a investigação da jornalista Ellie, que serve apenas de veículo ao roteiro para expressar o passado ao espectador.
O amor à vida de Jennifer falta a Ellie, mais um construto moderno voltado à eficiência, não a contemplação: nos vazios onde Jennifer desabrochava, Ellie se sufocaria, pois necessita consumir aquele romance em vez de viver algo próprio. Ellie é o hoje, ansiosa e sem tempo para perder na pesquisa, mas que esquece de agendá-la. Jennifer é o ontem, com tempo suficiente para flertar através de cartas e esperar a concretização do amor, seja qual o tempo for. Ellie é levada a relacionamentos vazios com homens cujo nome não lembra; Jennifer tem 'Boot', nome que jamais esqueceria.
A própria narrativa força esta forma de comparação, e a balança pesa para o ontem, por mais que o hoje revele sua importância no terceiro ato. Se no passado temos a fotografia e design de produção sofisticados e envolventes, o presente é apenas frio, chuvoso e impessoal. Enquanto isto, Shailene Woodley revela muito mais dentro de uma prisão de aparência do que Felicity Jones, dentro da prisão de seus sentimentos. É até injusto comparar, mas ao tornar a narrativa refém do passado, a direção de Augustine Frizzell condena o romance a ser o que foi, não o que poderia ser.
No mundo perfeito, mexicanos, dominicanos ou cubanos não precisariam fugir de seus países em busca de condições melhores ou do sonho americano nos mesmos Estados Unidos, cuja geopolítica ajudou a contribuir para o empobrecimento daquelas nações. Lin-Manuel Miranda não vive neste mundo perfeito, mas refletiu acerca de qual seria o mundo ideal para os imigrantes: se o retorno às raízes ou se o enraizamento no solo de outro país?
Em um Bairro de Nova York fantasia através da linguagem musical uma comunidade insular, em que não parecem não haver criminalidade nem problemas sociais, apenas a boa vontade e o sacrifício de uns para com os outros. Não deixa de ser um mundo perfeito, apesar de este independer de medidas do poder público, mas do compromisso de um ajudar o outro. A ausência de figuras representativas do Estado, de forma determinante digo, simboliza o esquecimento deste bairro e sua insularidade, vista no apagão que perdura por dias antes de ser solucionado (durante o momento de maior comunhão dentre todos).
Assim, a peça da Broadway adaptada para os cinemas apresenta este ideal admirável de comunidade, a partir de personagens interpretados por atores carismáticos (como não cair de amores pela avó Claudia?) e do otimismo inabalável de que, unidos, ao som da música e dança que representa sua cultura, é possível superar qualquer obstáculo. Nisto, o musical de Jon M. Chu (Podres de Rico) se torna uma espécie de vitrine de como minorias e grupos subrepresentados deveriam agir para se fazerem ouvir na sociedade dividida hoje em dia.
E, mesmo que a coreografia das canções não aproveite tanto as possibilidades que a linguagem cinematográfica oferece em comparação com o teatro, a força de suas letras permanece presente como lembrança de um artista que tanto tem feito para provar que as raízes de um povo acompanham-no para onde quer que ele vá.
No mesmo em que tivemos Nunca Raramente Às Vezes Sempre, que evitou tingir de cores vibrantes a temática do aborto, também houve Unpregnant, que debate o mesmo assunto, mas na via da comédia. É oportuno questionar se este gênero é o mais apropriado para discutir este assunto caríssimo à sociedade contemporânea, porém me parece inegável que o gênero auxilia na penetração do tema pelo público que não assistiria ao filmaço que citei no início. A estrada da comédia ajuda também em criticar situações e comportamentos através da sátira.
Dentro disto, Unpregnant aceita esta posição "menor" da comédia em relação ao drama (para fins de ilustração, não que eu acredite nisso), e obtém resultados tão eficazes quanto, sobretudo porque a direção de Rachel Lee Goldenberg sabe exatamente em quais momentos pode e não pode brincar. Além disto, quando ironiza alguns comportamentos, Rachel não tem receio de parecer expositiva: o melhor exemplo disto é Kevin, o namorado da protagonista, mas também o grupo de amigas em torno do qual se cerca para conservar intacta sua popularidade. É o emprego do estereótipo pelo estereótipos, a fim de expor uma parte daquela sociedade colegial.
O roteiro também acerta em pontuar a importância da honestidade e de amizades autênticas, e Haley Lu Richardson (atriz que rebatiza a palavra carisma desde que a conheci em Columbus) e Barbie Ferreira formam uma dupla agradável de acompanhar, mesmo quando sujeitas a clichês e resoluções convenientes que não parecem fazer jus a elas. A elas, a presença sempre espirituosa de Giancarlo Esposito, que pode interpretar quem quer que seja que terá minha atenção, e você tem um filme adolescente divertido, movimentado e com muito a nos ensinar ou satirizar.
O amor dos traídos é mais ético do que o amor dos traidores? É uma pergunta que habita o íntimo do casal protagonista, depois de descobrirem estarem sendo traídos por seus esposos, e decidirem imaginar as etapas que levaram ao adultério. A construção de um romance em que não há a consumação do amor (ao menos não de maneira visível), mas apenas o estímulo afetivo e intelectual mútuo reforça a ideia de paixão platônica em uma obra-prima que também estimula a percepção do espectador por entre suas brechas.
O diretor Wong Kar Wai compreende que é na espontaneidade do momento anterior que pode haver o afeto genuíno, assim a câmera estabelece-se como intrusa naquele espaço congestionado: em vez de observar, espia por entre portas entreabertas, detrás de cortinas, ou na calada da noite enquanto o casal protagonista se afasta em câmera lenta. Manter-se escondida reforça a ideia de amor proibido, de uma maneira que, não são apenas as convenções sociais e morais que impedem o amor, mas também o próprio cenário abarrotado de objetos de cena que dificulta o deslocamento dos personagens entre o cenário.
Este amor sufocado é bem representado pelos cheongsams, o típico vestido com que a Sra. Chan se apresenta ao mundo e que se estende até seu pescoço, em estampas que correspondem ao estado de espírito em determinado instante: as formas geométricas ilustram o amor conveniente; formas florais, a paixão; cores frias e quentes, os sentimentos que tem dentro de si. Com isto também as cores, no contraste entre o verde (símbolo da harmonia, na China, mas também do adultério) e o vermelho (a cor utilizada pelas noivas no casamento), e a trilha sonora, que emoldura um romance que existe apenas na ideia.
O filme tem um desenvolvimento livre e desacompanhado do tempo, como se os indicativos do relógios fossem apenas lembranças de que o tempo tem regras diferentes dentro da história, e alguns momentos se eternizam, outros se apagam. Como o amor. A isto, a decisão de não revelar o rosto dos esposos adúlteros, mas mantê-los presentes somente para que saibamos de sua existência, criando um senso de distanciamento do que proporcionou a aproximação da Sra. Chan e do Sr. Chow e que sobreviveu na memória e nos segredos que o tempo guarda de nós para si mesmo.
É muito perturbadora esta versão 2.0 do body horror herdada por Brandon Cronenberg de seu pai, David (A Mosca, eXistenZ que o digam). A alta tecnologia aliada e interesses anti-éticos norteiam uma organização que assume o controle do corpo das pessoas (a possessão) a fim de praticarem crimes que irão beneficiar terceiros e corporações.
Brandon toma cautela para esclarecer a tecnologia, consequências e contratempos, sem parecer exageradamente expositivo, deixando as explicações às imagens e ao intrigante trabalho de som da narrativa. Depois de sedimentar as regras do universo narrativo, Brandon pode começar a analisar suas implicações na vida dos personagens, mais especificamente da protagonista Tasya Vos, interpretada por Andrea Riseborough com um niilismo blasé que provoca a sensação de que a profissional faz o que faz por não estar confortável no próprio corpo.
É o tipo de reflexão que filmes iguais a este proporcionam, ainda mais porque a vertigem que a personagem experimenta é semelhante a de quem sai do mundo virtual (dos avatares das redes sociais, ex.) e deve enfrentar o deslocamento provocado por interações reais, que exigem que um pareça quem não é. O terror está no gore, manifestado em como Brandon filma a violência sangrenta, mas também na perda da identidade expressada nas alucinações provocadas pela possessão.
Enquanto isto, o filme propõe abordagens estilísticas bastante curiosas que reforçam o desconforto do espectador diante da narrativa, das consequências de sua conclusão e, mais ainda, de como Tasya Vos reage diante delas. A possessão, portanto, é a máscara final que autoriza alguém ser quem é, nada mais do que um avatar de certa forma.
Os primeiros minutos dão a impressão de se tratar da abordagem convencional do criminoso seduzido pela oportunidade redentora, quando decide proteger uma prostitua da morte certa. E a situação complica-se assim que esta decide assumir a responsabilidade pela irmãzinha dentro de um lar abusivo. Faca e queijo posicionados pro thriller de crime, antes de este realizar uma manobra em torno das próprias expectativas criadas pelos 20 primeiros minutos.
Pode ser o material original, adaptado do livro homônimo, conjugado com a direção da francesa Mélanie Laurent, mas Galveston realmente parece original em como trabalha elementos familiares numa narrativa imprevisível. A construção dos personagens se mescla com o interior dos Estados Unidos, tomado pela miserabilidade, perda de esperança e valores corrompidos, senão por alguns que ainda conservam a moral intacta (ainda que embrutecida pela experiência, o caso da gerente do hotel).
Enquanto a narrativa enxerga esta realidade como componente das decisões tomadas pelos personagens, que sabem habitar em mundo mais selvagem do que humano, os dramas internos dos personagens são estabelecidos com autenticidade, subvertendo os clichês que utiliza. Para tanto, recorre a atuações desiludidas, em graus distintos, de Ben Foster e Elle Fanning, além de um senso de comprometimento em recorrer ao realismo para desenvolver causas e efeitos na trama.
O que leva a história a arrebatadores 20 minutos finais, que mostram a verdadeira face do sonho americano que, apesar das boas memórias do protagonista, não parece haver chegado na cidade de Galveston.
Mudança Mortal
2.4 196 Assista AgoraEm certo momento da história dos filmes de casa mal assombrada, algum roteirista deve ter pensado que seria divertido brincar com a apreensão do espectador com terrores falsos ou inofensivos, tipo a chave do carro desaparecer e reaparecer ou a bolinha de tênis que estava embaixo da cama aparecer sobre esta.
Só que estamos em 2021. A experiência cinematográfica evoluiu com a linguagem do cinema e, mesmo assim, roteiros como o deste Mudança Mortal permanecem estanques. Eles apostam em subterfúgios bobos e que nem movem a história a frente, nem desenvolvem os personagens, nem produzem alguma forma de tensão.
(Ainda por cima estes sustos são imensos furos de roteiro que não fazem sentido após conhecermos qual a explicação dos fenômenos ocorridos na casa recém adquirida por um casal em crise após a esposa trair o marido).
O que seria um terror descartável, semelhante ao meme da família correndo feliz para morar em uma casa assombrada, fica ofensivo, quando o roteiro utiliza o fato de o marido não crer nos fenômenos testemunhados pela esposa como metáfora da perda de confiança após a traição. Pior, ainda responsabiliza a esposa adúltera pela situação - a partir da análise do que aconteceu antes -, enquanto passa o maior pano para o adultério do marido - relembre da visita feita pela protagonista à vendedora da casa.
É um terror que não aterroriza, com uma fotografia horrorosa (clara demais de dia; azulada demais a noite) e uma mentalidade do século XIX.
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraApesar de a matéria prima da contação de histórias serem as pessoas, algumas narrativas parecem amar estar perto de gente de verdade. Se Dora permanece fechada dentro de si, Central do Brasil mostra qual o poder existe a partir do contato verdadeiro. Um que Dora nega àqueles cujas cartas entulha dentro de sua gaveta, até conhecer o jovem Josué.
A dinâmica entre Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira é onde reside o coração desta fábula melancólica acerca da importância da mensagem, do mensageiro e da memória. Josué é a mensagem; Dora,
a mensageira; enquanto isto, a memória é construída na estrada enquanto partem do Rio de Janeiro em direção à cidade onde mora o pai do garoto recém órfão de mãe. Dora desconfia do êxito da missão ou mesmo de seu propósito, mas como a carteira que aprende que é, não desiste de entregar a correspondência no destino certo.
Ao redor deles, rostos de pessoas que estariam invisíveis na multidão se não fosse o olhar gentil de Walter Salles, auxiliado pela fotografia calorosa do mestre Walter Carvalho. Cada marca de expressão, cada sorriso, cada fio de cabelo desgrenhado reforça as histórias que são aquilo que carregamos conosco no fim do dia. Histórias que se transformam em memórias. Memórias que aumentam o nosso amor pela vida.
Central do Brasil parece mais distante do que é. Como sociedade, além de não existirem mais notas de 1 real, também abdicamos da palavra escrita, do ato de escrever uma carta a quem amamos, do altruísmo de se entregar ao outro. As memórias se tornaram mais fugidias, pois as experiências também se tornaram descartáveis. Assim, este drama resgata o poder do agora e da construção de um laço indelével, enquanto revela, nas estradas e romarias, um Brasil desconhecido e a promessa de uma história que jamais será esquecida.
Justiça em Família
2.7 169 Assista AgoraEu entendo o sentimento de inconformismo leva Ray a partir numa cruzada de vingança de um homem sozinho contra a Big Pharma, o apelido dado às corporações do setor farmacêutico que, como corvos, vírus ou cânceres, enriquece a partir do infortúnio de milhares de famílias. Em vez de medicamentos e tratamento acessíveis, a garantia de que ou você morre da doença ou entra em falência. Assim, é até mais contemporâneo vingar-se de CEOs indiferentes do que da máfia russa ou japonesa, que ao menos ainda tinham algum código de honra.
Só que nem a melhor das intenções, nem cenas de ação honestas (ao menos até certo momento) e executadas com segurança compensam seu roteiro desastrado. Já começa com a suspensão de descrença em acreditar na premissa quase absurda, passeia pela trapalhice policial e termina em furos no roteiro inaceitáveis.
Da onde surgiu a retroescavadeira que fecha o túnel no jogo do bicho e como, dentro das circunstâncias apresentadas no filme, esse veículo poderia estar ali?
Como, em 2021, o FBI aceitaria a confissão de uma pessoa coagida com uma arma no pescoço? E como desapareceria o fato de que a pessoa responsável por homicídios pode viajar a vontade de avião?
Isto porque nem falei do elefante branco no meio da sala. Não, não é o Jason Momoa - que é um ator carismático como o estereótipo clássico do brutamontes com um bom coração -, nem Isabela Merced, a Dora a aventureira, nem o vilão que parece ter saído de algum filme de Jason Bourne, mas o tipo de reviravolta que tenta parecer espertalhona com uma montagem retrospectiva, toda cheia de si, que parece dizer com o sorrisinho cafajeste de canto de boca "viram, vocês não perceberam isso".
Justiça em Família tenta ser socialmente engajado e aparentar mais inteligente do que é, enquanto trapaceia o público - e o bom senso. Mas é só mais um filme de vingança esquecível e que não resiste a uma análise aprofundada, igual às relações entre política e empresas.
Free Guy - Assumindo o Controle
3.5 578 Assista AgoraEu admiro as superproduções que me colocam para pensar muito além das reflexões expositivas propostas no roteiro. Nesta comédia de ação, fala-se muito da importância do homem médio, de como o homem vira máquina e perde a liberdade dentro do sistema capitalista - que busca maximizar vendas a todo custo, nem que para isto engane os clientes e invista na violência como alternativa -, da mulher gamer, dos trolls etc. Mas de todas as reflexões, a que mais gostei é fruto de uma hipocrisia, e nem é uma má hipocrisia, é apenas regra do jogo.
Em certo instante, o personagem interpretado por Taika Waititi justifica qual a lógica de negócios da sua empresa: produzir somente aquilo que o público deseja. Bem, estamos falando do vilão, enquanto a dupla de programadores independentes que teve a criação roubada procura revolucionar a experiência dos games, a partir da proposição de um jogo original. Ou seja, o mesmo roteiro que apenas repete todo o blockbuster é ainda o que critica a falta de criatividade da indústria do cinema (a partir da metáfora dos games). O roteiro que defende os games não violentos em favor da observação dos NPCs é também um roteiro que aposta na violência como forma de ganhar experiência ou na resolução do clímax.
Free Guy não poderia ser a metáfora do game contemplativo, pois isto seria um fracasso de bilheteria colossal. Criticar a própria atitude que adota é o tipo de tiro no pé que apenas um diretor tão mergulhado na indústria faria. Shawn Levy não é um sujeito criativo; sua função é só de apontar a câmera e deixar Ryan Reynolds ser Ryan Reynolds, Jodie Comer conquistar aqueles não conquistados por Killing Eve, e deixar as boas sacadas do roteiro florescerem. Ele não é o diretor que tapará o buraco óbvio do roteiro, a ponto de exigir machadas em servidores quando um puxão na tomada resolveria.
Quer dizer que o filme não é divertido? Nunca! Eu ri e me empolguei, e ainda fiquei feliz em saber que parte do público-alvo do filme, os trolls gamers, são criticados de forma literal e escrachada (a forma como entendem). Mas não dá para amar um filme hipócrita, por mais que eu queira.
Califórnia
3.5 302Filmes sobre amadurecimento costumam ser contados através de um prisma etário que distancia a direção da história contada. Por motivos óbvios dentro do cinema, não são jovens que contam acerca de seu amadurecimento, mas pessoas mais velhas que enxergam a transição sexual, emocional e psicológica da adolescência à idade adulta com o olhar nostálgico de quem já viveu, não de quem está vivendo.
Califórnia tem disto, mas tem também um olhar empático de Marina Person à juventude dos anos 80 (a sua), a partir de objetos de cena e canções representativas, mas que não sufocam o amadurecimento de Teca. A ênfase de Marina são os personagens; o mundo que os cerca individualiza aquela existência, mas os sentimentos que ressoam com intensidade. A inadequação com o próprio corpo, a dificuldade em ter a iniciação sexual, o silêncio em relação à doença do tio amado.
A cidade americana que dá nome ao filme é a metáfora do escapismo em direção ao local ideal, de uma utopia que, para Marina, vem ainda numa nostalgia. Uma época em que gravávamos fitas cassete para as pessoas que amávamos, em que escrever cartas e cartões postais era um ato de presença. Existe uma calorosidade que vem da paixão da direção pela história e passa à relação dos personagens e nossa com eles.
A direção tem, na profundidade de campo rasa, a ideia de isolamento e de que o amadurecimento é no tempo de cada. Já a câmera na mão revela a instabilidade emocional típica daquele período da vida. Além disto, Clara Gallo, Caio Horowicz e Caio Blat oferecem atuações mais naturalistas de personagens que vivem dramas próximos dos nossos. É um filme sobre amar o processo de transformação, não é a toa que inicia e termina com o plano-detalhe do olhar de uma adolescente e termina com o de uma mulher.
Nem um Passo em Falso
3.2 96 Assista AgoraSteven Soderbergh não inventa a roda no gênero do crime, mas ele certamente dá uma sacudida aqui e acolá enquanto transporte seus espectadores para o cinema noir que era feito nos anos 30, 40 e 50. Ninguém poderia confiar em ninguém. A ganância costumava ser o pecado mais capital, depois da confiança. E você poderia usar uma reviravolta no roteiro que colocasse tudo em perspectiva, ou não.
Depois que você se acostuma com o formato anamórfico, em que a imagem é comprimida para caber dentro de um quadro definido, no motivo de haver tantas deformidades nos cantos da tela - que após algum tempo acabam ficando mais charmosas -, Nenhum Passo em Falso é uma delícia de assistir. Muito por conta de seu superelenco, com Don Cheadle em um papel que seria inimaginável na Hollywood daquele período, Benício Del Toro, David Harbour, Jon Hamm, Brendan Fraser - que engordou para estrelar o novo filme de Darren Aronofsky - e uma participação especial caprichadíssima.
Caprichosa também é a fotografia, e Steven Soderbergh (sob o pseudônimo Peter Andrews) estabelece uma linguagem visual apaixonante. Os contrastes entre claro e escuro sempre ditaram a tônica deste gênero, mas agora, com cores expressivas, parecem ainda mais marcantes. A luz justificada de abajures e afins cria uma espécie de âncora onde podemos repousar nossos olhares enquanto o elenco permanece nas sombras, onde suas intenções são melhor mascaradas e dissimuladas.
É difícil confiar em alguém e é por isto que a resolução da narrativa reside neste elo que une duas pessoas num mundo preparado para apunhalá-los pelas costas. Claro que, entre traições e reviravoltas, é difícil saber quem está enganando quem, o que mantém o espectador alerta por esta viagem ao cinema clássico nos dias de hoje.
O Despertar de um Homem
3.7 260 Assista AgoraComo amadurecer cercado pelos espinhos de um padrasto abusivo? Esta adaptação da autobiografia escrita por Tobias Wolff não coloca açúcar num relacionamento abusivo, nem se revela condescendente consigo mesmo. O roteiro adaptado retrata um homem em harmonia com o adolescente que um dia foi: sensível, apesar de desordeiro ou mesmo trapaceiro; consciente em reconhecer não poder medir força com o padrasto, Dwight, embora até se esforce em tentar estabelecer alguma relação com alguém mesquinho, rancoroso, preconceituoso e violento.
A narração de Leonardo DiCaprio, ao invés de um ator na idade adulta, confere a ideia de presente a uma história sobre o ontem e todas as experiências, boas ou ruins, que maturam um adolescente no homem que será. E se o autor das memórias não se enxergava como santo ou vítima, Leonardo DiCaprio não ousaria fazer isto. Apesar de ser doce e carinhoso com a mãe, Toby julga-a, normalmente pelo olhar, em razão das decisões que os colocaram no caminho de Dwight. Ele sabe que a mãe é vítima, mas isto não o impede de demonstrar ressentimento, na forma que adolescentes melhor fazem.
Sua mãe, Ellen Barkin, também está numa jornada de amadurecimento na idade adulta. Carolina, em meados dos anos 50, deve abandonar a dependência da figura masculina e a vida doméstica, e ser livre de acordo com seus próprios termos. Pior, deve se livrar do lar abusivo onde está, habitado por um homem que, nas entrelinhas, revela suas inadequações consigo mesmo. E Robert De Niro evita que Dwight só seja um vilão unidimensional, transformando-o neste poço de mágoa de si próprio. Um valentão que se troca com um adolescente e revive na memória brigas que afirmariam sua condição de alfa, mas de fato evidenciam a masculinidade frágil de um homem com problemas com sua sexualidade e mesmo sua insignificância moral.
Gosto da direção de Michael Caton Jones e de como deixar os atores livres para encontrar momentos emocionais e significativos. E, para quem gosta de estudar o amadurecimento da sociedade e do cinema em relação a temas sociais, este filme conjuga três épocas em uma: a década de 50, quando o filme é ambientado, a década de 90, quando já havia conquistas sociais, e os dias de hoje. O resultado é revelador.
Chorão: Marginal Alado
3.8 179 Assista AgoraA forma desta biografia vai contra à personalidade do biografado. Isto porque escolhas de Felipe Novaes são típicas do documentário careta, útil para obras institucionais ou em que a demonstração de autoridade seja a tônica, mas não para retratar figuras marginais, como Chorão se autodenominava.
A quantidade de entrevistas parece excessiva pois acrescentam pouco que ainda não conhecíamos - exceto o relato de João Gordo, a título de exemplo - ou que os registros de arquivo permitiam deduzir. Além disto, as entrevistas eram muito mais sobre a relação dos entrevistados com o Chorão do que sobre o músico, sua origem sobre o skate, sua ascensão na cena musical brasileira, sua morte precoce.
Chorão apenas se apresenta através dos vídeos escolhidos por Felipe Novaes e bem articulados dentro da biografia. Neste momento, a obra cumpre sua missão: de revelar o biografado nas entrelinhas da ação e ou do dito, a partir do olhar cuja intensidade começa a ceder espaço à melancolia ou na humildade em se sentar no chão do aeroporto.
O Chorão não se encontra nas entrevistas - infelizmente prejudiciais à curta duração de um projeto que deveria ser mais aprofundado -, mas sobre o skate, quando não desiste de acertar um salto, nos estúdios de gravação, em que cobrava dos outros o bastante que exigia de si, e nos palcos de seus shows. A biografia de Felipe Novaes é oportuna, bem intencionada e honesta em impedir que seja exibido um retrato higienizado de um cantor marginal, mas não impulsiva ou espontânea como o astro de rock, skatista e homem que Chorão foi.
Pray Away
3.5 45 Assista AgoraFilmes sobre a falácia da terapia de reversão sexual (popularmente denominada "cura gay") costumam retratar a experiência traumática adotando o ponto de vista as vítimas, como Boy Erased: Uma Verdade Anulada e A Má Educação de Cameron Post, ótimos dramas baseados em histórias reais. Este documentário toma outro caminho ao ilustrar a história e vivência dos chamados "ex-gays", homossexuais "curados" e garotos propaganda de uma experiência que devassou a saúde mental de muitas pessoas e custou a vida de outras mais.
A argumentação da diretora Kristine Stolakis repete os passos dados dentro de grupos cristãos com um apoio de políticos conservadores, apresentando o projeto êxodo, sua popularização e os mecanismos adotados para convencimento da opinião pública que estava em cima do muro. O mais rasteiro era a associação entre homossexualidade à pedofilia e ao incesto, a ponto de sugerir que, se aprovados direitos LGBTQ+, todo o restante poderia ser e a família tradicional cristã seria destruída. Com o passar do tempo, a validade teológica e biológica do exposto se mostra mais absurda, com teorias que tentavam explicar a orientação sexual a partir de relações abusivas ou mesmo de aspectos da paternidade.
A força do documentário está em permitir que os atores-sociais (o termo usado para se denominar o personagem dos documentários) revelem o processo de retirada das travas que cegavam sua visão, ao mesmo tempo em que expõe o verdadeiro objetivo desta cruzada em favor da exclusão dos que não aderirem aos seus "ideais" (reutilizando as palavras do ex-presidente George W. Bush). A terra da liberdade é a terra da opressão, e Pray Away é um documentário necessário, mesmo porque, hoje, práticas iguais às criticadas continuam presente embora maquiadas.
Beckett
3.1 166 Assista AgoraBecket remete aos clássicos Intriga Internacional e O Fugitivo, quando um homem médio é atirado dentro de uma conspiração cuja dimensão mal percebe, a ponto de nem poder vivenciar o luto pelo acidente que causou a morte da esposa.
Onde havia turismo, há apenas o ímpeto de sobrevivência, o que exige atuação muito mais física do que emocional de John David Washington. O ator não desaponta, nós sentimos os machucados e o esforço físico dele enquanto passeia por toda a Grécia.
Não dá para curtir as belezas do país, que ficam em segundo plano de um thriller de ação cuja verossimilhança é arremessada da janela logo no acidente: Beckett somente encontra gregos que sabem conversar em inglês quando a narrativa assim exige e dissolve a luta pela morte da esposa numa correria desenfreada cuja politicagem atrapalha.
Entre extremistas de direita, falsas acusações contra comunistas, e o imperialismo mostrando sua face, sobra o roteiro expositivo demais e personagens tão canastrões que nem merecem maiores comentários. Eu fiquei vidrado em acompanhar as idas e vindas de Beckett, mas não podia ignorar o roteiro capenga, que nem aproveita a beleza da Grécia nem o esforço de John David Washington em conferir autenticidade a toda a ação.
Céu Vermelho-Sangue
3.0 482 Assista AgoraDepois de 125 anos de cinema, todos os dramas já foram contados (embora não de todos os modos possíveis). O que a arte faz para se reinventar constantemente? A hibridização de histórias ou gêneros, como é o caso deste terror alemão, que mescla terror vampírico e o thriller de sequestre de aviões. De certo modo, relembra Um Drink no Inferno, embora este filme de Robert Rodriguez não se levasse a sério como faz este Céu Vermelho-Sangue.
Esta seriedade prejudica a narrativa, ao menos a partir do momento em que começam a ser disparados tiros dentro da aeronave. A forma como está montada a narrativa prejudica mais, já que, nos momentos de maior tensão, sempre há um flashback que devolve a narrativa ao passado para justificar a aspiração de anti-heroína da protagonista. Dentro desta busca por seriedade, o filme tenta mostrar-se relevante criticando a islamofobia, o capitalismo predatório na forma de um dos passageiros mais insuportáveis da ficção e a aparência externa como meio de identificar um monstro ao invés de fazê-lo por seus atos, mas seus melhores momentos são sempre aqueles em que se entrega aos próprios instintos de terror/thriller.
Além disso, gosto desta versão Nosferatu de vampiro, no lugar do glamour do Drácula ou dos vampiros da Anne Rice e afins, e é até apropriado que seja assim o visual da protagonista, pois dentro de uma narrativa violenta, sanguinária e implacável mesmo quando a vítima são crianças. A duração parece excessiva em relação ao que tem a oferecer e talvez a experiência seja comprometida por ter o desfecho sido deslocado ao início, dando conta do destino de um e outro personagem quebrando o mistério que poderia haver.
O Homem nas Trevas 2
3.0 465 Assista AgoraSe um monstro encarasse a própria maldade no espelho, será que continuaria sendo o monstro que é? Esta continuação do sucesso surpreendente de 2016 tenta responder esta pergunta. Já parte de uma decisão simples, mas importante: ao invés de ser apenas o Homem Cego, o personagem de Stephen Lang agora tem um nome, Norman. Verdadeiro ou não, isto já lhe confere um atributo humano que lhe faltava no antecessor. Mas até alguns monstros têm nome, então a narrativa também altera sua voz, mais frágil e contraditória com os atos de brutalidade que pratica. Muda ainda seu propósito.
Agora Norman não acorrenta mulheres (ao menos não com correntes físicas), nem assassina jovens adultos infelizes por decidiram roubar a casa errada. A violência dele tem a finalidade de proteger a jovem Phoenix, cujo nome deriva da ave mitológica que renascia das chamas (evidenciando que, embora Norman seja ótimo no que faz, não tem muita criatividade). Proteger uma garota indefesa é uma maneira de humanizar o monstro, ou torná-lo num anti-herói, contra uma gangue de traficantes de drogas e ex-soldados americanos (todos brancos, com exceção do latino que é quem tem a decisão honrada do bando, numa mudança de rótulo que muito me agrada).
Contudo, este outro Norman também enfraquece o filme. Enquanto no anterior, a minha "torcida" era deslocada do Homem Cego aos jovens em razão do grau do ilícito que praticavam, neste não. Embora haja uma reviravolta no roteiro que colocamos em dúvida a atitude de Norman, não mudei o lado de quem permaneci na narrativa. E logo, tudo vira uma espécie de Busca Implacável com mais gore e violência, com furos no roteiro por onde passariam caminhões (ex. um incêndio que não chama a atenção de bombeiros) e uma tendência de atribuir ao protagonista superpoderes dignos do Demolidor da Marvel.
De outro lado, por 95 minutos, permaneci na beira do assento, tenso, já que a narrativa aproveita cada instante para provocar mini enfartes numa penumbra visual atraente. Não tem o mesmo dom em criar uma penumbra narrativa, porém, e Norman é agora mais unidimensional do que antes senão no ato de mea culpa e de penitência, acentuado pela boa performance de Stephen Lang. É um passatempo intenso e brutal e nada mais.
P.S. Há uma cena adicional após os créditos.
Val
4.0 52Falar a respeito de si próprio é um trabalho dificílimo: você pode soar imodesto, presunçoso, arrogante e se distanciar do público que você deseja que te escute. Como alternativa, você pode apostar no humor ácido, na autodepreciação, na desvalorização, e embora encontre um quê de humanidade e as pessoas fiquem mais sintonizadas porque se divertirão, acabará perdendo o ponto de partida da reflexão que exige autoridade ou ao menos conhecimento de causa. "Quem sou eu" talvez seja a pergunta mais difícil a ser respondida ao lado de "O que tenho a oferecer", e só o fato de Val Kilmer se propor a isto, sem máscaras nem vaidades, já torna este documentário autobiográfico obrigatório.
O ator, mas agora me referirei a ele como artista, é contraditório do início ao fim. Ele abandonou os palcos por Hollywood, alcançou um estrelato dificílimo e aspirado por muitos, embora se ressinta de isto ter lhe tolhido a arte original que acreditava que poderia oferecer. Ele amarga o fato de sobreviver na memória dos fãs pelos papéis de seu passado, mas permanece, mesmo com dores físicas, autografando a mesma célebre frase inúmeras vezes com um sorriso no rosto. Ele recorda a afirmação dos nativos de que a imagem fotográfica retira a alma das pessoas, mas é o primeiro a filmar a si, como se drenasse, dia a dia, mais um pouco da própria alma.
Val Kilmer é contraditório como são os melhores personagens, e ainda que o documentário adote um tom simpático e ainda propagandístico - de o artista como defensor da arte pura, contra diretores comerciais, ao lado de lendas como Marlon Brando -, os vídeos coletados por toda a história e a montagem permitem atingirmos conclusões variadas a respeito do homem que se apresenta para nós. Mas dentre todos, ao menos há uma certeza: Val Kilmer nasceu para a dramaturgia e, talvez, quis a vida que seu principal papel tenha sido não como Batman, nem como o Santo, mas como si próprio.
A Nuvem
2.7 233 Assista AgoraEu, igual a vocês, fui bombardeado por postagens nas redes sociais sobre um "novo terror de gafanhotos carnívoros" etc. E, igual a vocês, em algum momento confabulei na minha cabeça algumas expectativas (sim, não é porque digo para não criarem expectativas que às vezes não caio em armadilhas). E, é óbvio, se você fabricou ideias de um terror-B deve ter saído xingando porque A Nuvem não correspondeu ao que vocês esperavam.
Este mundo de informações em excesso, sinopses, trailers, ainda vai matar a experiência de se surpreender com a arte. Bem, A Nuvem, produção francesa, encontra em uma fazenda de gafanhotos uma forma de desenvolver uma alegoria da mãe viúva, que deve dobrar seu trabalho para cuidar da família. Gafanhotos são o que resta a Virginie para criar seus dois filhos, ainda que isto impacte no cotidiano deles no colégio e na relação mãe e filhos. Pois é, nada de filme de terror-B (que, adianto, não é demérito algum), mas um drama com elementos de terror de monstros.
O espaço aberto comprime a capacidade de agir e pensar de Virginie, que descobre que a produção de gafanhotos aumenta em quantidade e qualidade os insetos consomem sangue humano. Assim, este terror dramático começa a namorar uma espécie de A Pequena Loja dos Horrores, mas no lugar da planta carnívora que resolvia os problemas de seu frustrado protagonista, gafanhotos se posam como resposta à obsessão de Virginie. Em razão do isolamento dela, físico e emocional, muito passa despercebido até não passar mais. Quem dita este ritmo é a construção psicológica de Virginie e o relacionamento conturbado com a filha, Laura.
O caminho que ambas percorrerão é violento e tem o naturalismo do cinema francês, que ganha o acréscimo do elemento fantástico e que exige a suspensão da descrença do espectador. Isto porque a narrativa é menos sobre gafanhotos carnívoros (parabéns aos envolvidos que venderam e divulgaram assim), e mais sobre pessoas e o sacrifício em várias camadas que as mães realizam em nome de seus filhos.
Homem Onça
3.3 14A privatização da Vale do Rio Doce é o ponto de partida para debater a prestabilidade humana enxergada no trabalho e em razão do tempo. Não digo o tempo cronológico, mas o tempo de mudanças sociais: no Brasil, durante o final dos anos 90, houve processos de privatização de muitas empresas estatais que modificaram o cenário brasileiro. Os valores mais liberais na economia desaguaram na sociedade, e logo o homem perdeu a âncora na empresa onde trabalhava há 10, 20, 30 anos, o sentimento de camaradagem cedeu o lugar à concorrência também interna em que colegas de trabalho competiam, bem além do campinho de futebol onde se divertiam no fi do expediente. Este cenário é debatido a partir de um exemplo concreto pelo diretor Vinícius Reis, em Homem Onça.
Na trama, Pedro é um empregado de uma estatal recém privatizada e que começa a enxergá-la entrar em inanição de pessoal, para ser competitiva no mercado de ações (que não enxerga pessoas, nem famílias, somente números). Pedro até tenta se posicionar contra a mudança, mas não pode impedir o imutável. Seu conflito, portanto, é consigo mesmo, em tentar se encontrar dentro deste cenário de terra arrasada, depois de descobrir ter sido uma mentira seus 20 e tantos anos de vida. Isto justifica a escolha da estrutura da narrativa, dividida em dois marcos temporais, que revelam como Pedro perambula como uma onça por entre a floresta em chamas.
Pedro é a própria onça, que caminha em sentido contrário nos trilhos antes de ser arrastado pelo trem do progresso. A onça é também este Brasil, que vende seu patrimônio para o mercado estrangeiro, posição criticada por Vinícius Reis. Entretanto, ao invés de abordar a narrativa do ponto de vista de Kátia, a funcionária demitida e não reposicionada no mercado de trabalho, ou de Dantas, o gerente do empreendimento que aceita a demissão com praticamente um indenização milionária, o roteiro se volta a Pedro, o intermediário chefe de uma equipe pequena e familiar. Seus figurinos amarrotados e destoantes revelam este homem desalinhado com os diretores em postos equivalentes ou mais altos, enquanto também desconfortável nesta "pele" de executivo que não é de onça.
Já a fotografia de João Atala sufoca Pedro no interior dos cubículos da fictícia Gás do Brasil, enquanto o design de produção de Tainá Xavier esvazia as salas de trabalho. É bastante intrigante como esta aparente contradição visual - como se sufocar se há mais espaço para respirar? -, atua a favor da narrativa: o vazio é do personagem, não de quem vê, o espectador. Uma cena que ilustra isto com clareza é o momento em que Pedro chuta a bola dentro da sala vazia, gesto a ser reproduzido pelo enteado noutro momento como forma de manifestar frustração. Neste instante, apenas o espiamos à distância, mal podemos ver onde a bola bate. É que o vazio também oprime. Do lado de fora, Pedro não tem melhor sorte: a fotografia o coloca nos cantos diante de arranha-céus que devoram a paisagem, de forma irônica com o projeto com que o personagem sonhava.
Contudo, sonho mesmo é ter um ator como Chico Díaz protagonista: Chico é hábil como este Dom Quixote que esgrima contra um moinho invisível, o capitalismo neolibral, e com o passar do tempo, acusa os golpes que sofre por não saber se adaptar a este tempo de mudanças. As consequências são ainda maiores, nesta estrada cheia de baixos e o desejo de retornar à natureza original. Ao lado dele, destacam-se Sílvia Buarque e Emílio de Mello, personagens que também refletem o comportamento de parte desta classe média diante do cenário em transformação.
Nesta jornada em que não há respostas do lado de fora, um Homem Onça igual a Pedro precisa encarar para dentro de si. Com um filme belo, poético e contemporâneo igual a este, o Festival de Gramado começa com o pé direito.
Paris, Texas
4.3 696 Assista AgoraAlgumas viagem não têm destino. Algumas estrada somente conduzem para dentro de nós mesmos. Em Paris, Texas, o errante Travis caminha pelo deserto, de maneira que até questionamos se existe realismo em 4 anos no deserto, desapegado de qualquer ambição de ser humano: ele não come, ele não dorme, ele não se comunica. Ele está no estágio de suspensão do ser, até não estar mais. Quando é reencontrado pelo irmão e recordado que seu filho já tem 7 anos, Travis se reaproxima do homem que já foi e começa a reassumir a autonomia da estrada que irá trilhar.
Uma das obras-primas do alemão Wim Wenders passeia pelo deserto do Texas, e descobre, no vazio da paisagem ensolarada, equivalente ao vazio existencial, da perda de propósito, da desumanização. Os planos abertos contemplam cenários onde nada floresce; há somente poeira. As estradas parecem levar a locais dos quais Travis deseja só fugir, daí porque insiste em permanecer do lado de fora ou, quando muito, do lado de dentro contemplando o exterior. É que Travis tem esta doença do deslocamento crônico. Enquanto caminha, não lembra do que fez, nem de quem é. Contudo, esta imperturbável e misteriosa atuação de Harry Dean Stanton tem também espaço para o sensível.
Este filme de estrada (ou road movie) leva a sério a máxima: não é o destino, nem o motivo que importam, é o percurso, enquanto tenta extrair sem número de simbolismo com a sociedade daquela época. Há abundantes dispositivos que retransmitem a voz (orelhão, walkie talkie, gravador), assim como há o choque brutal entre ideal e real, pois há duas Paris, dois pais, duas Américas: aquela do sonho norte-americano, em que famílias permanecem juntas, e aquela destinada ao deserto.
Igual às estradas, a estrutura do roteiro de Sam Shepard é sinuosa e errática. É como se descobrisse quem são os personagens, enquanto datilografava páginas. Isto produz algo honesto consigo mesmo, que evita respostas fáceis para perguntas difíceis, quiçá às vezes omitindo e deixando as conclusões para o espectador. Somente resta o drama do homem que, após enxergar no espelho quem realmente é, correu para o deserto com medo de si mesmo, até que fosse reencontrado. Se este retorno à sociedade o redimirá ou o condenará em definitivo, aí cabe a cada um decidir. Quando filmes fazem algo assim, é porque se está diante de algo especial.
Jungle Cruise
3.1 352 Assista AgoraUm marinheiro parte numa viagem acompanhado de dois exploradores à procura de uma misteriosa lenda, objeto do desejo de um inescrupuloso membro da nobreza. No caminho, aprendem a conviver uns com os outros enquanto sobrevivem aos obstáculos postos em seu caminho, inclusive homens imortais que buscam a forma de quebra sua maldição.
Com alguns retoques aqui e acolá, Jungle Cruise poderia se passar por reboot de Piratas do Caribe - deve até ser dentro da política de mercado da Disney, após Johnny Depp perder seu prestígio e uma continuação da franquia se revelar nula sem Jack Sparrow. Até chego me surpreendo que Michael Green (indicado ao Oscar pelo roteiro de Logan, e roteirista de Blade Runner 2049 e Assassinato no Expresso Oriente) e a dupla John Requa e Glenn Ficarra (os criadores de This Is Us) tenham assinado conjuntamente este roteiro, que tenta repetir a fórmula bem sucedida de aventura, fantasia e bom humor.
Porém, Dwayne Johnson, uma montanha de carisma cinematográfico, não tem a malícia e ironia de Johnny Depp, indispensáveis para que o inicialmente dissimulado, depois heroico Capitão Frank seja sucedido na missão de conquistar o público. Emily Blunt saí-se melhor, e Lily é o tipo de estereótipo feminino contemporânea da Disney: autônoma até depender da figura masculina (seja pela força física, seja pela política da época). Embora faça algum sentido que seja assim, o que não faz é a Disney, em pleno 2021, bolar "humor" a partir dos gostos e trejeitos de um personagem homossexual, interpretado por Jack Whitehall (que pensei ser, o filme inteiro, Sam Riley).
No restante do tempo, Jungle Cruise tem cenas bem movimentadas - as melhores não estão contaminadas pelo exagero de efeitos visuais computadorizados -, momentos divertidos de humor pastelão - mais uma vez tentando repetir, pela forma, o acerto de Piratas do Caribe - e química entre Emily e Dwayne, porém nada que fará a Disney a tirar da cartola mais uma franquia.
Censor
3.1 123A diretora gaulesa Prano Bailey-Bond criou um terror bastante expressivo em como a internalização da culpa termina por produzir consequências desastrosas na liberdade de expressão do próximo. A diretora adota para si a missão de desmistificar a premissa de que a violência na arte inspira a violência na vida real, e devolve ao indivíduo a responsabilidade pelos atos que comete.
Desta forma, a maneira de se vestir, o corte de cabelo e a forma de se portar da censora Enid, responsável por editar cenas de violência e de sexo nos snuff filmes, denota a mulher reprimida e trágica incapaz de conter todo o transbordamento da culpa que sente dentro de si. E, ao lado de filmes iguais a Santa Maud, este explora o caminho sem volta de quem impõe crenças e valores individuais a toda à coletividade, e as consequências violentas decorrentes disto.
A narrativa limita a profundidade de campo de Enid a ponto de mantê-la sozinha no quadro e desconfortavelmente próxima do espectador, e até tenta simpatizar, embora discorde, com a crença de que a censura prévia reduziria a violência na sociedade. O que é mau gosto para uns é a expressão artística de realizadores que precisam expurgar de si os temas que os aterrorizam, e quanto mais Enid caí dentro da espiral da loucura de seus próprios atos, mais percebemos que a violência não está na arte, mas no indivíduo que deveria ter ido buscar psicoterapia ou um psiquiatra.
Com isto, Prano Bailey-Bond desenvolve uma narrativa estilizada, em que percebemos a loucura penetrando nos poros de Enid, a partir de opções de câmera e da iluminação néon e que convergem na máxima encenação visual da censura nos 3 minutos finais. Uma das cenas mais poderosas do terror deste ano, reveladora de que, por mais que censuremos todas as violências nos filmes, isto não tornará o mundo menos violento. Jogue a luz mais quente, os abraços mais apertados que quiser, a alienação não modifica a realidade. Somente a esconde para que não possamos fazer nada a respeito.
A Última Carta de Amor
3.4 156 Assista AgoraO presente gosta de encarar o passado em busca de respostas ao seu vazio existencial. Não é por menos que revisitamos memórias, nossas ou dos outros, para tentar aplacar o desejo em encontrar o propósito em erros e acertos. Este olhar ao ontem costuma revelar-se em uma pedra no sapato do contador de histórias, porque exige maior poder de síntese (cada história terá menos tempo de tela, então não pode demorar para mostrar para o que veio) e alguma articulação, direta ou indireta, que justifique a estrutura bi-temporal.
Este romance de Augustine Frizzell não é As Horas, assim como Jojo Moyes não é Virginia Woolf: até não há dificuldade em preencher os vazios que aproximam Jennifer e Anthony, nem em absorver a postura passivo-agressiva do marido Laurence, pois já estamos familiarizados com esposas troféu e casamentos por conveniência, é que falta a liga com a investigação da jornalista Ellie, que serve apenas de veículo ao roteiro para expressar o passado ao espectador.
O amor à vida de Jennifer falta a Ellie, mais um construto moderno voltado à eficiência, não a contemplação: nos vazios onde Jennifer desabrochava, Ellie se sufocaria, pois necessita consumir aquele romance em vez de viver algo próprio. Ellie é o hoje, ansiosa e sem tempo para perder na pesquisa, mas que esquece de agendá-la. Jennifer é o ontem, com tempo suficiente para flertar através de cartas e esperar a concretização do amor, seja qual o tempo for. Ellie é levada a relacionamentos vazios com homens cujo nome não lembra; Jennifer tem 'Boot', nome que jamais esqueceria.
A própria narrativa força esta forma de comparação, e a balança pesa para o ontem, por mais que o hoje revele sua importância no terceiro ato. Se no passado temos a fotografia e design de produção sofisticados e envolventes, o presente é apenas frio, chuvoso e impessoal. Enquanto isto, Shailene Woodley revela muito mais dentro de uma prisão de aparência do que Felicity Jones, dentro da prisão de seus sentimentos. É até injusto comparar, mas ao tornar a narrativa refém do passado, a direção de Augustine Frizzell condena o romance a ser o que foi, não o que poderia ser.
Em um Bairro de Nova York
3.6 125 Assista AgoraNo mundo perfeito, mexicanos, dominicanos ou cubanos não precisariam fugir de seus países em busca de condições melhores ou do sonho americano nos mesmos Estados Unidos, cuja geopolítica ajudou a contribuir para o empobrecimento daquelas nações. Lin-Manuel Miranda não vive neste mundo perfeito, mas refletiu acerca de qual seria o mundo ideal para os imigrantes: se o retorno às raízes ou se o enraizamento no solo de outro país?
Em um Bairro de Nova York fantasia através da linguagem musical uma comunidade insular, em que não parecem não haver criminalidade nem problemas sociais, apenas a boa vontade e o sacrifício de uns para com os outros. Não deixa de ser um mundo perfeito, apesar de este independer de medidas do poder público, mas do compromisso de um ajudar o outro. A ausência de figuras representativas do Estado, de forma determinante digo, simboliza o esquecimento deste bairro e sua insularidade, vista no apagão que perdura por dias antes de ser solucionado (durante o momento de maior comunhão dentre todos).
Assim, a peça da Broadway adaptada para os cinemas apresenta este ideal admirável de comunidade, a partir de personagens interpretados por atores carismáticos (como não cair de amores pela avó Claudia?) e do otimismo inabalável de que, unidos, ao som da música e dança que representa sua cultura, é possível superar qualquer obstáculo. Nisto, o musical de Jon M. Chu (Podres de Rico) se torna uma espécie de vitrine de como minorias e grupos subrepresentados deveriam agir para se fazerem ouvir na sociedade dividida hoje em dia.
E, mesmo que a coreografia das canções não aproveite tanto as possibilidades que a linguagem cinematográfica oferece em comparação com o teatro, a força de suas letras permanece presente como lembrança de um artista que tanto tem feito para provar que as raízes de um povo acompanham-no para onde quer que ele vá.
Desgrávida
3.6 84No mesmo em que tivemos Nunca Raramente Às Vezes Sempre, que evitou tingir de cores vibrantes a temática do aborto, também houve Unpregnant, que debate o mesmo assunto, mas na via da comédia. É oportuno questionar se este gênero é o mais apropriado para discutir este assunto caríssimo à sociedade contemporânea, porém me parece inegável que o gênero auxilia na penetração do tema pelo público que não assistiria ao filmaço que citei no início. A estrada da comédia ajuda também em criticar situações e comportamentos através da sátira.
Dentro disto, Unpregnant aceita esta posição "menor" da comédia em relação ao drama (para fins de ilustração, não que eu acredite nisso), e obtém resultados tão eficazes quanto, sobretudo porque a direção de Rachel Lee Goldenberg sabe exatamente em quais momentos pode e não pode brincar. Além disto, quando ironiza alguns comportamentos, Rachel não tem receio de parecer expositiva: o melhor exemplo disto é Kevin, o namorado da protagonista, mas também o grupo de amigas em torno do qual se cerca para conservar intacta sua popularidade. É o emprego do estereótipo pelo estereótipos, a fim de expor uma parte daquela sociedade colegial.
O roteiro também acerta em pontuar a importância da honestidade e de amizades autênticas, e Haley Lu Richardson (atriz que rebatiza a palavra carisma desde que a conheci em Columbus) e Barbie Ferreira formam uma dupla agradável de acompanhar, mesmo quando sujeitas a clichês e resoluções convenientes que não parecem fazer jus a elas. A elas, a presença sempre espirituosa de Giancarlo Esposito, que pode interpretar quem quer que seja que terá minha atenção, e você tem um filme adolescente divertido, movimentado e com muito a nos ensinar ou satirizar.
Amor à Flor da Pele
4.3 498 Assista AgoraO amor dos traídos é mais ético do que o amor dos traidores? É uma pergunta que habita o íntimo do casal protagonista, depois de descobrirem estarem sendo traídos por seus esposos, e decidirem imaginar as etapas que levaram ao adultério. A construção de um romance em que não há a consumação do amor (ao menos não de maneira visível), mas apenas o estímulo afetivo e intelectual mútuo reforça a ideia de paixão platônica em uma obra-prima que também estimula a percepção do espectador por entre suas brechas.
O diretor Wong Kar Wai compreende que é na espontaneidade do momento anterior que pode haver o afeto genuíno, assim a câmera estabelece-se como intrusa naquele espaço congestionado: em vez de observar, espia por entre portas entreabertas, detrás de cortinas, ou na calada da noite enquanto o casal protagonista se afasta em câmera lenta. Manter-se escondida reforça a ideia de amor proibido, de uma maneira que, não são apenas as convenções sociais e morais que impedem o amor, mas também o próprio cenário abarrotado de objetos de cena que dificulta o deslocamento dos personagens entre o cenário.
Este amor sufocado é bem representado pelos cheongsams, o típico vestido com que a Sra. Chan se apresenta ao mundo e que se estende até seu pescoço, em estampas que correspondem ao estado de espírito em determinado instante: as formas geométricas ilustram o amor conveniente; formas florais, a paixão; cores frias e quentes, os sentimentos que tem dentro de si. Com isto também as cores, no contraste entre o verde (símbolo da harmonia, na China, mas também do adultério) e o vermelho (a cor utilizada pelas noivas no casamento), e a trilha sonora, que emoldura um romance que existe apenas na ideia.
O filme tem um desenvolvimento livre e desacompanhado do tempo, como se os indicativos do relógios fossem apenas lembranças de que o tempo tem regras diferentes dentro da história, e alguns momentos se eternizam, outros se apagam. Como o amor. A isto, a decisão de não revelar o rosto dos esposos adúlteros, mas mantê-los presentes somente para que saibamos de sua existência, criando um senso de distanciamento do que proporcionou a aproximação da Sra. Chan e do Sr. Chow e que sobreviveu na memória e nos segredos que o tempo guarda de nós para si mesmo.
Possessor
3.4 302 Assista AgoraÉ muito perturbadora esta versão 2.0 do body horror herdada por Brandon Cronenberg de seu pai, David (A Mosca, eXistenZ que o digam). A alta tecnologia aliada e interesses anti-éticos norteiam uma organização que assume o controle do corpo das pessoas (a possessão) a fim de praticarem crimes que irão beneficiar terceiros e corporações.
Brandon toma cautela para esclarecer a tecnologia, consequências e contratempos, sem parecer exageradamente expositivo, deixando as explicações às imagens e ao intrigante trabalho de som da narrativa. Depois de sedimentar as regras do universo narrativo, Brandon pode começar a analisar suas implicações na vida dos personagens, mais especificamente da protagonista Tasya Vos, interpretada por Andrea Riseborough com um niilismo blasé que provoca a sensação de que a profissional faz o que faz por não estar confortável no próprio corpo.
É o tipo de reflexão que filmes iguais a este proporcionam, ainda mais porque a vertigem que a personagem experimenta é semelhante a de quem sai do mundo virtual (dos avatares das redes sociais, ex.) e deve enfrentar o deslocamento provocado por interações reais, que exigem que um pareça quem não é. O terror está no gore, manifestado em como Brandon filma a violência sangrenta, mas também na perda da identidade expressada nas alucinações provocadas pela possessão.
Enquanto isto, o filme propõe abordagens estilísticas bastante curiosas que reforçam o desconforto do espectador diante da narrativa, das consequências de sua conclusão e, mais ainda, de como Tasya Vos reage diante delas. A possessão, portanto, é a máscara final que autoriza alguém ser quem é, nada mais do que um avatar de certa forma.
Galveston: Destinos Cruzados
3.1 51 Assista AgoraOs primeiros minutos dão a impressão de se tratar da abordagem convencional do criminoso seduzido pela oportunidade redentora, quando decide proteger uma prostitua da morte certa. E a situação complica-se assim que esta decide assumir a responsabilidade pela irmãzinha dentro de um lar abusivo. Faca e queijo posicionados pro thriller de crime, antes de este realizar uma manobra em torno das próprias expectativas criadas pelos 20 primeiros minutos.
Pode ser o material original, adaptado do livro homônimo, conjugado com a direção da francesa Mélanie Laurent, mas Galveston realmente parece original em como trabalha elementos familiares numa narrativa imprevisível. A construção dos personagens se mescla com o interior dos Estados Unidos, tomado pela miserabilidade, perda de esperança e valores corrompidos, senão por alguns que ainda conservam a moral intacta (ainda que embrutecida pela experiência, o caso da gerente do hotel).
Enquanto a narrativa enxerga esta realidade como componente das decisões tomadas pelos personagens, que sabem habitar em mundo mais selvagem do que humano, os dramas internos dos personagens são estabelecidos com autenticidade, subvertendo os clichês que utiliza. Para tanto, recorre a atuações desiludidas, em graus distintos, de Ben Foster e Elle Fanning, além de um senso de comprometimento em recorrer ao realismo para desenvolver causas e efeitos na trama.
O que leva a história a arrebatadores 20 minutos finais, que mostram a verdadeira face do sonho americano que, apesar das boas memórias do protagonista, não parece haver chegado na cidade de Galveston.