Mesmo quando uma animação tem público-alvo infanto-juvenil, isto não quer dizer que adultos não possam perceber o que os olhares dos pequenos ignoram, tão encantados, perdoem o trocadilho, com as cores e superpoderes da família Madrigal. É que Encanto é uma alegoria à ansiedade que se manifesta de formas variadas para quem enxerga de fora.
É que a protagonista, Mirabel, sente-se inferiorizada com o fato de que sua família tem superpoderes, mas ela não, embora isto a cegue para o fato de que todos também têm problemas. Diferentes dos seus, porém. Há quem esteja estafado por não conseguir dizer não aos pedidos da comunidade - a pálpebra que treme é um sintoma comum de estresse. Há quem viva tentando ser a pessoa perfeita quando só gostaria de ser ela mesma. Há quem tema tanto o futuro que prefere esconder-se do presente.
Assim, além da beleza óbvia da animação Encanto está a lição de moral de que, apesar de a grama do vizinho parecer sempre mais verde, isto não significa que este não tenha problemas que, muitas vezes, têm receio de comunicar. E o superpoder de Maribel é o da empatia, da escuta, da aproximação dos membros de sua família a ponto de fazê-los abrir o coração para suas dores.
Pena, porém, que o roteiro não tem um antagonista que pareça ameaçar a jornada de Maribel, o que tornaria a recompensa mais gostosa de ser apreciada, e tudo se resolva em um anti-clímax. Contudo, as músicas compostas por Lin-Manuel Miranda, a valorização da família considerados os obstáculos de comunicação apresentados e a representatividade mais do que capacitam o filme a ter êxito com pais e filhos.
Ah, com relação ao curta-metragem que antecede o filme. UOU, acho que merece uma crítica dele própria (não apenas um parágrafo).
Não existe fórmula milagrosa para lidar com traumas. Existe somente o primeiro passo que se dá em direção à cura, através da terapia. Este documentário explora uma forma de terapia que envolve a dramatização e reconstituição do evento traumático e como isto se torna fundamental para que seis homens superem, ou iniciem o processo de superação, do abuso sexual que sofreram na infância por padres católicos.
O documentário é terapêutico até para quem assiste. Acompanhar a trajetória de seis homens, que encaram este fantasma em seu passado, enquanto se fortalecem um na dor do outro, é um dos pontos alto do cinema em 2021. São personalidades antagônicas que se complementam enquanto revisitam o passado para restaurar o seu presente.
E isto vem com uma dose de catarse que alguns podem não estar preparados, ainda mais quando acompanhado de interpretações e ramificações maiores do que consigo debater em 2000 caracteres. Por exemplo, um dos abusados reencena o abuso interpretando a figura de um padre abusador, enquanto outro reencontra o seu eu criança e confronta a figura do abusador como se fosse uma figura protetora.
Como disse, não existe fórmula, só o primeiro passo em direção à cura, a catarse e, sim, a responsabilização de todos aqueles que utilizam a batina para cometer crimes sexuais contra crianças bem como aqueles que acobertam crimes hediondos iguais a este. Com filmes iguais a este, ao menos no tribunal do povo, existe alguma forma de justiça.
Por diversas vezes, em Casa Gucci, pensava que Ryan Murphy poderia ter tido mais êxito do que Ridley Scott adaptando a história do império da moda em minissérie. Como há uma teia de relações, interesses e subtramas, a duração mal cobre a superfície dos acontecimentos como deveria, tornando superficial o que deveria ser complexo.
A evidência está em como Patrizia se torna pivô ou bode expiatório dos infortúnios da família, como se o aparecimento dela na vida do herdeiro Maurizio houvesse desorganizado o que antes funcionava como um relógio. Ao culpá-la, exclusivamente, durante a maior parte da trama, Ridley Scott passa pano para Maurizio, Paolo, Aldo, homens manipuláveis diante de uma alpinista social que, após tudo, somente queria estar com a pessoa que ama nem que precisasse chantageá-lo emocionalmente. Não fica mais simplório do que isto.
Não estou querendo isentar Patrizia de sua culpa, apenas dividi-la com o marido, igualmente interesseiro, e não o homem levado pela mulher com que casou a esfaquear nas costas, metaforicamente, sua família. É tanto que, a partir de certo momento, Maurizio mostra quem de fato é, e quando isto acontece, a mudança é súbita porque até então ele havia parecido apenas ingênuo e imaturo. Isto prejudica a narrativa de forma irreparável, transformando um caso complexo em um retrato só enviesado de Patrizia.
Lady Gaga está bem, enquanto Adam Driver continua a sina de interpretar homens canalhas em 2021 (depois de Annette e O Último Duelo). Jared Leto transforma-se fisicamente em Paolo, embora seja deixado na mão por um personagem criado como um tolo quando não era assim (Paolo que criou o emblema da Gucci), enquanto Al Pacino e Jeremy Irons recorrem à experiência como atalho para desenvolverem seus personagens.
Ridley Scott até acerta no tom do melodrama e no não refinamento de Patrizia, que contradizem a sofisticação do império Gucci e os valores defendidos pela marca. Além disto, os valores técnicos do filme são irrepreensíveis, mas isto é o mínimo a se esperar de um diretor com 50 anos de experiência e uma visão míope de um caso fascinante.
Por 2 horas, o filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008 coloca o espectador literalmente dentro dos muros de uma escola pública nos arredores de Paris, que mais parece uma prisão. Com grades nas janelas, sem que haja o céu ou o horizonte, e com o pátio retratado a partir de ângulos altos que remetem ao monitoramento dos presídios de forma semelhante ao pátio onde detentos tomam banho de sol, o drama dirigido por Laurent Cantet obriga-nos a repensar o modelo educacional tradicional.
A partir de uma dinâmica que envolve atores amadores interpretando versões exageradas de si mesmo, o filme apresenta uma escolha de elenco improvável e intrigante: François Bégaudeau, professor e autor do livro e roteiro, interpreta o protagonista, François Marin, um professor bem intencionado mas que não consegue navegar por dentro de um sistema educacional falido.
Criticado, desafiado e desmoralizado, François reage com a pretensa superioridade que decorre da hierarquia em sala de aula, e não de atributos que conquistassem os alunos (como John Keating fazia em Sociedade dos Poetas Mortos). Embora desafie seus alunos a pensar, refletir e contra-argumentar, François não admite opiniões diversas e age com ironia ou desdém, diminuindo as conquistas e até ofendendo os alunos. Fora da sala, François é indisciplinado, não colaborativo, covarde em não defender um aluno prestes a ser expulso enquanto se socorre nas regras de um sistema que o protege e pune o aluno.
Entre os Muros da Escola é um drama que exige refletirmos qual a educação que desejamos. Será se uma que cultue a obediência e disciplina irrestrita ou uma que estimula o saber, a troca de ideias, inteligências múltiplas? Com a imagem da sala vazia e a certeza de que muitos não aprenderam nada enquanto sentavam, diariamente, nas mesmas cadeiras aprendendo sobre algo que não empregariam em suas vidas, o filme, que é de 2008, ainda se torna mais urgente quando pensamos na juventude de hoje.
A biografia de Jonathan Larson, que escreveu a peça da Broadway Rent, assume uma forma incomum mas nem por isto menos envolvente. Com um formato que remete ao stand-up em como Jonathan abre o coração à audiência - que somos nós -, o filme tenta aproximar ainda mais o criador e biografado do público.
Nem precisaria disso, já que a história universal de um homem que acredita que, na idade em que está, não completou tudo aquilo que havia planejado para si é a mais universal que há. Soma-se a isto a atuação de Andrew Garfield, ator que consegue, sem muito esforço, ser este tipo meio comum, meio artsy, que enxerga sua namorada e seus amigos amadurecerem e se transformaram na Nova York dos anos 90 enquanto permanece empacado, com sonhos e ambições que ainda veriam a luz do dia.
A musicalidade de Lin-Manuel Miranda, que dirige seu primeiro filme, auxilia a retratar o fluxo de pensamento de Jonathan enquanto lidava com alegrias, frustrações e decepções, tentando racionalizá-las através de canções. É um processo de autodescoberta, acompanhado de alguma dose de sofrimento, mas recompensada por uma atuação de destaque e por uma direção que, embora pese a mão aqui e acolá, sabe onde descansa o centro emocional do filme.
Aos 83 anos, Paul Verhoeven não mudará seu predicado artístico: a forma como violência e sexo estão inequivocamente relacionados à experiência humana. Ao trazer estes temas para dentro da Igreja Católica do século XVII, com a história real da freira que dá norma ao filme, o diretor com certeza provocaria reações raivosas de parte da comunidade cristã. Seria apelidado de profanador, muito embora não haja tanta profanidade assim em Benedetta para quem já conheça o autor.
A partir da freira vivida pela enigmática Virignie Efira, Verhoeven critica o óbvio: as contradições e hipocrisias da Igreja, que não se envergonha de alguns pecados (a avareza em vender espaços no convento para quem paga mais, a inveja e violência entre freiras, a luxúria dos homens que ditam as regras, a tortura para extrair confissões de dentro das entranhas das mulheres), mas corre para condenar outros, quando envolve duas mulheres que começam uma relação amorosa e sexual.
A partir da maneira com que ilustra a relação de Benedetta com Jesus, cujos sonhos e delírios acordados fragmentados reforçam a defesa de que nenhuma forma de amor consensual é pecaminosa, o nosso olhar preconceituoso que é, o diretor associa isto à chegada da peste, que vem nos céus como um apocalipse divino. É uma mistura de fantasia - a partir da percepção de uns - com conteúdo histórico, sem que esta fidedignidade estraga a moldura artística.
Claro que uma imagem cuja base é talhada para virar um acessório sexual escandalizará uns. Mas é o desejo do diretor: revelar como o desconforto é dirigido à arte, igual naquele tempo fora ao amor lésbico, ao invés de àqueles que de fato deturpam os ensinamentos cristãos. Pois não é o amor que deve ser punido; é quem o proíbe.
Embora o roteiro seja a primeira vítima do espectador, em outras vezes não reconhecemos a habilidade com que a trama e os personagens se desenvolvem além de um campo de visão pragmático. 7 Prisioneiros é um excelente exemplo para se analisar como uma premissa que parecia modesta se articula para revelar uma situação sociopolítica e individual.
Sem entrar em spoilers, 7 Prisioneiros revela didaticamente como nasce o que a justiça denomina de trabalho análogo à escravidão, em que homens e mulheres, nacionais ou estrangeiros, perdem a liberdade em razão de "dívidas" contraídas com o empregador. Se é mais comum o crime no meio rural, a narrativa trata de deslocar isto para o ambiente urbano, com atuações impressionantes de Christian Malheiros, Rodrigo Santoro e Lucas Oranmian.
A narrativa é opressiva e não se envergonha da objetividade de seus símbolos, quando a porta do quartinho onde convivem se revela uma grade que não deve nada a um presídio. O linguajar cinematográfico mais explícito não é demérito enquanto mecanismo de exposição de uma realidade que está debaixo dos olhos da sociedade, que envolve polícia, política e burocracia fiscal como os meios de garantir que um empreendimento igual a este conviva dentro de uma metrópole dita civilizada como São Paulo.
Fechar os olhos é tudo o que o diretor Alexandre Moratto não faz. E, sem dever em nada à realidade, constrói protagonista e antagonista exuberantes, que dialogam na base da força, a princípio, para então passar a fazê-lo no campo das ideias. Não existe maniqueísmo, nem romantização de Luca ou Mateus. Dentro da selva social, ambos são homens que aprenderam a se adaptar às circunstâncias, mesmo que isto implique em atitudes que os desumanizam/ram. Ver o veneno de Luca corroer Mateus é, sem dúvida, um dos pontos alto do cinema brasileiro em um filme que expõe o pus dos cânceres da sociedade.
Apesar da relevante busca pela própria identidade e pela verdade, a diretora Lacey Schwartz Delgado se mostra insensível com a história e os sentimentos de seus pais, enquanto tratora seus passados.
Na avalanche de denúncias sobre abusos e assédios na indústria do entretenimento e do esporte, Brian Banks pode parecer inoportuno, porque realiza exatamente o oposto: mostra como uma denunciação caluniosa de crime sexual pode destruir a vida e sonho de um homem justo.
Entretanto, ainda que sob a maquiagem da pieguice hollywoodiana, a dupla biografia do personagem-título e do advogado que coordena o projeto de inocência é eficiente em tentar, até como pode, recorrer à figura do branco salvador. Chega até a se justificar ao espectador: eu fiz tudo o que pude sozinho, cita Aldis Hodge. Seja como for, revelou-se um drama tocante, mesmo que sem desviar, nem um milímetro, da fórmula hollywoodiana de se fazer este tipo de filme.
Curioso que Barbara Hershey, a mãe de Nina em Cisne Negro, tenha sido escalada para estrelar um filme sobre uma ex-bailarina voluntariamente institucionalizada em uma clínica de repouso e que começa a ter visões macabras que podem, ou não, estar relacionadas com a progressão de sua doença de Parkinson.
Dentro das regras do gênero, a narrativa percorre os dois mundos, o fantástico e o metafórico, sem desprezar este ou aquele, enquanto Barbara Hershey compromete-se com um papel incomum, já que as estrelas do terror sempre são jovens ou, quando não, jovens adultos. Este medo de envelhecer, deteriorar, não ser mais jovem é levado ao extremo, ainda que comprometido por um terceiro ato apressado e pela brevidade da narrativa (81 minutos).
Entendo a pergunta óbvia: como me envolver com o drama do sujeito multimilionário que tostou o dinheiro de tantos multimilionários, com o esquema de pirâmide mais longevo e sofisticado de tempos recentes? A resposta é: Robert De Niro.
Claro que a narrativa de Barry Levinson (de Bom dia, Vietnã e Rain Man) tem um gosto azedo quando penetra na camada mais inacessível da sociedade, nos almoços nas mansões à beira da praia, com lagosta e champanhe, o que torna praticamente impossível qualquer forma de identificação com o protagonista. Mas revela, de uma maneira ou de outra, um panorama psicológico bastante impressionante de um homem que não se importava com ninguém, apenas consigo mesmo.
Muito disto depende da atuação cirúrgica de De Niro, que já inicia a narrativa atrás das grades, para então retroceder aos acontecimentos que derrubaram o castelo de cartas que havia montado. O retrato é de um homem poderoso, que economiza o tom de voz autoritário para os momentos que julga apropriados, e mantém os entes queridos no escuro (o que o filme realiza, de forma literal, quando apaga as luzes sobre sua esposa, vivida por Michelle Pfeiffer). Ele trafega a narrativa como um marionetista cujas cordas foram cortadas e que perdeu, então, o controle dos eventos.
O filme é sóbrio na maior parte do tempo, diminuindo a profundidade de campo para tentar deixar, mais e mais, Bernie sozinho. No restante, a narrativa encontra ainda um espaço para sonhos surreais e tragédias shakesperianas no interior de uma família, instantes que não parecem propor uma aproximação do espectador junto daquele homem (isto me soaria até desonesto de Barry Levinson) justo porque, no fim das contas, a pergunta feita ao final evidencia exatamente qual a opinião do filme em relação a Bernie.
Está na hora de refletir a respeito do entretenimento e de como esta palavra passou a ser empregada para escusar um mundo de filmes ou séries preguiçosos e mal acabados, que não sabem o que fazer com seus talentos.
Ah, Márcio, deixa de ser chato. Nem todo filme é para refletir, alguns são apenas para curtir por 2 horas. Sempre que vocês falam isto, um roteiro divertido do quilate Piratas do Caribe, John Wick ou Missão: Impossível é engavetado para que um esforço igual a Alerta Vermelho surja.
Com 200 milhões em orçamento, Alerta Vermelho deveria ter direção, roteiro e efeitos visuais melhores em vez de se aproveitar do carisma e notoriedade de seu trio de astros para tentar salvá-lo da mediocridade e falta de criatividade: lutas e trocas de tiros e perseguições de carro caretas, fundos verde com touros ou veículos digitais mal acabados e viagens ao redor do mundo que, porém, haja qualquer identidade nos lugares visitados (exceto quando falamos da América Latina, quando a execução encontra a discriminação).
Dwayne Johnson franze a testa o filme inteiro tentando dar vida a seu personagem, mas sem se esforçar, enquanto Gal Gadot arqueia suas sobrancelhas e prepara o carão para compensar o talento limitado. A química que existe entre eles é inexistente, e só tem um respiro com Ryan Reynolds que repete o mesmo papel desde Deadpool (apesar de não ser eu que o criticarei enquanto continuar acertando metade das tiradas que dispara).
Se mesmo o trio de super astros, que deve ter custado metade deste orçamento, não se desafia a transformar o filme em algo melhor, que dirá então do diretor Rawson Marshall Thurber (de filmes derivados como Um Espiã e Meio, Arranha-Céu e Família do Bagulho, seu mais divertido trabalho). Alerta Vermelho é só uma colagem de cenas de ação que já vimos em filmes melhores interpretada por atores que já estiveram igualmente melhores. Não me entreteve, é só um desperdício de 200 milhões de dólares.
Esta produção dinamarquesa esforça-se em ser, ao mesmo tempo, uma comédia de humor ácido, um filme típico de vingança e um drama sobre paternidade, e alcança bons resultados em todos estes níveis. É intensa e violenta, divertida sem parecer deslocada e com o tempero dramático correto.
Faz o espectador refletir sobre o que chamaria de filme anti-vingança, em que não importa o autor do ato criminoso que colocou o anti-herói neste caminho. O que importa é a sensação de recompensa que retira quando descarrega suas armas naqueles que enxerga serem os vilões. Devolve, portanto, este tipo de história à origem com Desejo de Matar, em que Charles Bronson não se vingava, exatamente, de quem havia matado sua esposa, mas de todos aqueles que julgava que poderiam cometer o mesmo crime.
O que eu fiz para você, pergunta o vilão em certo momento, e não tem resposta que apazigue a raiva que o soldado interpretado pelo sempre eficiente Mads Mikkelsen sente. Existe só o desejo de descarregar a adrenalina através do gatilho da arma, como se a vingança fosse esta droga que impede o protagonista de vivenciar o luto. Isto fortalece o tema discutido, sem empobrecer o que o público espera deste tipo de filme.
Ao mesmo tempo, o filme insere um trio de personagens que divertem mas sem abrir mão de profundidade. São alívios-cômico não porque o filme precisa disso, mas porque o humor é a forma de lidarem com os sofrimentos e as humilhações por que passaram. Tudo funciona como um relógio preciso, em que até a numerologia da estatística e o acaso fortuito jogam dentro das regras estabelecidas por um filme que tem muito, muito mais a dizer do que parece à primeira vista.
O mérito de muitos filmes está em tornar sua narrativa tão críptica que podemos enxergá-la por ângulos iguais e ainda assim obter resultados diferentes. E Donnie Darko, apesar da inexperiência da direção de Richard Kelly, é um destes exemplos que continuam a desafiar a nossa percepção a partir da figura central de um rapaz confuso e de seu amigo imaginário, que o alerta de que o mundo acabará em 28 dias.
Seria Donnie esquizofrênico ou profético? Seria Donnie um rapaz comum tentando amadurecer dentro de uma comunidade hipócrita, que parece premiar a mediocridade e não a individualidade, ou um super-herói que é capaz de enxergar buracos de minhoca e viajar no espaço tempo para salvar aqueles que ama? Nenhuma destas alternativas pode ser descartada porque a bem construída narrativa de Richard Kelly premia qualquer interpretação.
A sua fotografia espectral e melancólica, combinada com a montagem que brinca com o conceito de tempo, acelerando-o ou o retardando a depender do contexto, e a seleção de canções que sublinham a trajetória do protagonista cria uma espécie de ambiente fantástico de horror (a capa do livro de IT - A Coisa não deixa dúvida quanto a isto) e ficção-científica (a partir das menções à teoria de Einstein). Mas também um ambiente em que se discute saúde mental, livre arbítrio e determinismo com base em uma doutrina cristã.
O mundo de Donnie é um mosaico fraturado, em que coadjuvantes vêm e vão, com seus dilemas e suas vitórias, que não perturbam a jornada semi-messiânica de um protagonista, uma espécie de Cristo às avessas, inclinado a fazer o que for possível para salvar aqueles que ama. Do quê? Este é o mistério de Donnie Darko, mas podemos ficar sem respondê-lo enquanto apreciamos a criação, até hoje cultuada, de Richard Kelly e de um jovem Jake Gyllenhaal.
É reconfortante reencontrar uma comédia clássica e perceber que seu humor não envelheceu. Pelo contrário, continua atual e divertido como as regras estabelecidas pelos irmãos Coen para um de seus trabalhos mais icônicos.
Descompromissados com relações de causa e efeito e aquele realismo meio camisa de força, os irmãos Coen atiram em muitos alvos com sua narrativa menos coesa e coerente e mais psicodélica. Em um momento, estamos no interior de uma mansão; noutro, dentro do ateliê de uma artista, na pista de boliche, na casa de um pornógrafo ou mesmo no estacionamento diante de uma gangue de niilistas (ou "niilistas").
Nada faz sentido na epopeia de um sujeito a toa, que escolheu viver a margem da sociedade bebendo sua bebida preferida, jogando boliche e dirigindo pelas ruas de Los Angeles, enquanto tenta compensação por seu tapete arruinado. E nem é para fazer. O objetivo do filme é criticar a obsessão do espectador por um fio coerente de história com cenas de humor particularmente irônicas e que contextualizam a sociedade a época da narrativa.
Jeff Bridges, John Goodman e Steve Buscemi se destacam com personagens contraditórios: um surfista que parece nunca haver visto um mar, um judeu convertido que admira o ethos nazista, um jogador de boliche que nunca joga boliche. Em meio a isto, o talento dos irmãos Coen para criar cenas que funcionam no nível do texto escrito, da imagem e também da crítica à apatia norte-americana, à política externa e à matriz econômica que tornou um cartão de supermercado como a carteira de identidade do protagonista.
A costura, ao invés de se desgastar com o tempo, fortaleceu-se e fez desta uma das mais cultuadas comédias de tempos modernos. Um viva ao humor inteligente, à liberdade criativa e ao estado alterado da imagem desbloqueando todo o potencial da arte cinematográfica. Tudo isto em vez da caretice de sempre.
Jeymes Samuel havia debutado com o média metragem They Die by Dawn, também um faroeste negro, revisionista, como o ótimo e mal traduzido Vingança & Castigo (sério, é este o melhor que as pessoas conseguem traduzir The Harder they Fall?).
Jeymes rememora personagens negros e históricos do velho oeste e os insere numa ficção que celebra o cinema de Quentin Tarantino - não só no plano mais famoso de Bastardos Inglórios, mas no tema da vingança e na tentativa de estofar com mais violência e reviravoltas o subgênero do faroeste spaghetti com a moldura do clássico oeste norte-americano - enquanto também encontra uma identidade própria e cheia de estilo, difícil de não admirar.
É o estilo como o conteúdo, porque se os personagens não escapam a estereótipos dos caubóis do velho oeste (o pistoleiro moral que deseja vingar-se; o fora da lei cruel, mas cansado; o gatilho mais rápido; o xerife que me remeteu a Wyatt Earp), eles são empregados a serviço de uma narrativa jovial, dinâmica e, no bom sentido, anacrônica. É como se os dias de hoje inundassem os de ontem, a partir da seleção de músicas e dos elementos de linguagem cinematográfica, para criar uma experiência de cinema ímpar a partir do já conhecido.
E cada personagem no super elenco tem seu momento de destaque, com o protagonismo de Jonathan Majors (que se fortalece como um dos atores mais interessantes da atualidade) e a experiência de Idris Elba, Regina King e Delroy Lindo misturada em um cenário divertido em que a cidade habitada por pessoas brancas é... toda branca. Não tem como não se entreter com um faroeste que se diverte consigo próprio, enquanto proporciona uma releitura de mitos do oeste que este mesmo gênero falhou em recordar em 1 século de história.
A estreia de Wagner Moura na direção é muito mais ação e tesão, do que razão. Bem parecido com o canto do hino nacional com inconformismo e raiva lacrimejantes contra um país que ataca os seus.
O Marighella de Wagner Moura e Seu Jorge é contraditório, e isto é bom. É um homem cuja sensibilidade foi torturada pelo DOPS e que sobrevive à base da memória da promessa que fez - um dispositivo do roteiro cujo desfecho é conhecido até se você desconhecer a história nacional - e do desejo de incitar a luta armada contra o governo ditatorial. Ao mesmo tempo, Marighella é tomado menos como protagonista do que o grupo que organiza, como se o roteiro optasse (com razão) pelo homem ação do que pelo homem emoção.
E ação é o que o filme proporciona, até de forma excessiva. A partir de uma fotografia - cuja paleta de cores drena as cores senão dos figurins de Bella - que acompanha o desenrolar dos eventos de pertinho, sem muitos cortes, com cenas particularmente fortes e incômodas de que gostaria de desviar os olhos, Wagner Moura não adoça a violência subversiva de Marighella, nem atenua a truculência e até o sadismo da polícia e do DOPS.
Embora seja um filme de "eles contra nós", em que os papéis são binários (ou mau ou mal necessário), existe um desenvolvimento dos personagens dentro das limitações impostas pela ação: ainda que não saibamos nada a respeito de Bruno Gagliasso, a maneira com que se comporta, com que pratica a violência, com que desdenha os Estados Unidos embora requeira sua ajuda financeira, associado à ótima performance do ator, revelam tudo o que precisamos saber sobre ele.
É mais político do que a maioria dos filmes e, por isto, a maquiagem histórica de alguns eventos ou personagens poderá incomodar, ou não, quem não souber ou quiser dissociar os fatos da maneira com que Wagner Moura os enxerga. Talvez aí esteja a maior riqueza de Marighella: revelar a visão inquieta, inconformada e raivosa do diretor, revelada na perda da inocência, na violência e no martírio voluntário.
Depois de conversar com uma bola de vôlei, agora Tom Hanks parte para aventuras mais ambiciosas: ensinar um robô a sobreviver em um mundo pós-apocalíptico.
Brincadeiras a parte, e por maiores que sejam as semelhanças com Eu Sou Lenda (afora os vampiros), Finch é uma ficção-científica ciente de sua limitação e de seu potencial, explorando-o com sensibilidade para proporcionar um dos filmes mais fofos do ano. (Não é todo dia que alguém define um filme como fofo, certo?)
O mérito da narrativa está em se manter no curso determinado pelo protagonista, em vez de se seduzir pela oportunidade de explorar o mundo apocalíptico com maior intensidade. Finch é misantrópico e este traço de personalidade é coerente com o hermetismo narrativo, existente no figurino que precisa utilizar para sobreviver no mundo lá fora e na abordagem simples e objetiva de Miguel Sapochnik (diretor de alguns episódios de Game of Thrones).
Visualmente, não há nada novo em como o mundo está em pedaços em razão da ação humana e o que resta da humanidade persiste na relação entre humano, cachorro e robô. Por falar neste, Jeff tem um visual mais artesanal, como se menos preocupado com a aparência externa e mais com o sentimento. Parece os robôs do cinema de Michael Blomkamp: realistas, com o esqueleto tecnológico a mostra, em vez de terem uma aparência artificial.
O mais impressionante é como Caleb Landry Jones tornou humano Jeff. O ator interpretou o personagem com a técnica de captura de performance, e isto trouxe autenticidade enquanto atuava ao lado de Tom Hanks. Por falar nele, o veterano ator proporciona sensibilidade, mas também aspereza, para fechar com chave de ouro um filme de propósito encantadoramente simples e executado com esse mesmo princípio em uma ficção-científica com coração imenso.
No interior de uma limusine, o Sr. Oscar se prepara para participar de encenações que falam sobre o ofício do ator, mas revelam pouco de quem este homem verdadeiramente é. Mal o vemos senão nesses breves momentos, vivenciado apenas em razão da beleza do gesto. O dilema de Oscar é a inexistência além da performance.
No curso de um dia, o diretor Leos Carax propõe uma viagem que namora o surrealismo enquanto manifesta seu amor ao cinema. A narrativa possui uma lógica interna desafiada pela lógica que rege cada uma de suas partes, pois Leos não assina qualquer contrato de realismo, verossimilhança ou mesmo fantasia ou absurdismo com o espectador. Em um momento, vemos um pai que busca a filha numa festa; noutro, um assassino e a vítima são "a mesma pessoa".
Assim, o contrato que Leos assina é com o poder da crítica (e também homenagem) a partir de imagens potentes e de como estas namoram umas com as outras. Não é um filme para ser explicado, é para ser sentido, absorvido, como se estivéssemos acessando os sonhos do diretor (que é o personagem que acorda na cena inicial), muito além do transe dos espectadores dormindo no cinema. Não existe racionalidade nos sonhos, então por que haveria quando estes sonhos viram realidade fílmica?
O motor sagrado da experiência é Denis Lavant, ator fetiche de Leos, e que se transforma em 11 pessoas como se só trocasse de roupa. A qualidade de seu trabalho é indiscutível porque suas encenações são verossímeis, articuladas para que os personagens apropriem-se parcial e temporariamente do corpo do intérprete, deixando só a impressão breve de quem é Oscar. O vazio. O nada prestes a ser consumido em mais um ato.
Eu tento puxar da memória quando os estúdios decidiram que os filmes que deveriam entreter precisariam de 2, 3 horas para fazê-lo. Claro, há narrativa que fazem por merecer a duração, mas este não é o caso com Exército de Ladrões, a prequel de Army of the Dead centrado no ladrão de bancos Dieter.
Interpretado por Matthias Schweighöfer - que também dirige o filme! -, Dieter é o exemplo de um coadjuvante divertido alçado à condição de protagonista. Ainda que divida a cena com um exército (ou "exército") menor do que os 11 de Danny Oceans, Dieter ainda tem a ingenuidade e paixão necessárias para se destacar entre personagens com carisma nulo, com exceção de Nathalie Emmanuel que precisa desesperadamente de uma produção à altura de seu talento.
O filme esforça-se para ser uma brincadeira metalinguística com os filmes de assalto, como Pânico fez com os slashers movies. Ou seja, ele tenta ser um filme do gênero enquanto também reflete sobre as convenções e clichês dele. Não é muito bem sucedido no processo, embora valha pela tentativa, especialmente quando enxergamos a relação de Dieter com os cofres (utilizando efeitos visuais que penetram em seus mecanismos e revelam seus segredos).
O roteiro é formatado como um videogame com fases, em que todos os eventos ficam explicadinhos como se ainda estivéssemos no colégio. Além disto, os personagens não fogem dos arquétipos, até nos (previsíveis) pontos de virada da trama. Mas não dá para negar que o filme é divertido muito graças à abordagem visual de Matthias Schweighöfer.
Precisaria ter 2 horas e 6 minutos? Não. Mas aí exigir demais que Dieter, além de roubar os cofres mais complexos do mundo, mude também toda uma mentalidade da indústria de cinema atual.
É sintomático perceber que o motivo por que alguns rejeitaram esta produção romena tenha sido por ser menos filme de sobrevivência e resgate, mais estudo de personagem, bem adaptado com tendência existente no cinema romeno de eleger, como antagonista, o sistema corrupto no país.
Este drama alegadamente baseado em fatos reais tem no centro um personagem por quem facilmente antipatizamos, em razão de usar o prestígio político para benefício individual, não coletivo. Insatisfeito com o trabalho da equipe de resgate que busca o paradeiro de seu filho e sua namorada, Mircea decide utilizar ilegalmente instrumentos sofisticados de busca que poderiam ser úteis para toda a sociedade.
Mircea é confrontado pela imprensa e também por pais que poderiam utilizar a tecnologia para encontrarem sua filha com rapidez, e o filme enfatiza o conflito moral: quais valores estaria disposto a barganhar para salvar um ente querido? Com isto, vêm as consequências, como a preterição do filho não nascido em favor daquele que exige as suas atenções no momento e um retrato de um país em que a corrupção é a principal moeda de troca.
Desde que assistiu à versão de David Lynch de 1984, Denis Villeneuve confessou ter sonhado adaptar a obra-prima da ficção-científica Duna. Tal sonho é perceptível na reverência e solenidade da narrativa, mesmo que isto signifique sacrificar a alma em favor do corpo.
Certas escolhas visuais tornam isso evidente em como, em planos bem abertos, os personagens são diminuídos diante das naves, dos coletores de especiaria e dos Shai Hulud, os vermes de areia. Não ajuda a direção que as tramas maquiavélicas movidas por ganância, inveja e poder, ou por sentimentos de lealdade e coragem, sejam construídas sobre arquétipos conhecidos que conduzem à atuação blasé de Timothée Chalamet, no típico personagem messiânico que coloca uma barreira insuperável diante do espectador.
Ter um elenco com Oscar Isaac, Jason Momoa, Josh Brolin, Zendaya e mais intérpretes talentosos ajuda a narrativa a ter âncoras facilmente identificáveis, mas nenhum dos atores consegue incutir personalidade e profundidade nos personagem com exceção de Rebecca Ferguson. Sem vida ou emoção, não existe peso dramático nas cenas de ação e a narrativa se torna um deserto de esterilidade igual a Arrakis.
Ainda assim, Duna é um arroubo cinematográfico impossível de ser ignorado. Seus efeitos visuais e sonoros impressionam com a escala épica mesmo para quem já está familiarizado com óperas espaciais (tipo Star Wars). A fotografia é arrebatadora, enquanto a trilha sonora de Hans Zimmer, ainda que aposte em temas étnicos e tribais óbvios, consegue abraçar o ambicioso escopo do projeto. Afora isto, adoro a forma como o design de produção remete à idade média mesmo que estejamos no 10º milênio da humanidade, ajudando a estabelecer a metáfora da colonização por conquistadores europeus e ainda trazer ecológica no subtexto.
Apesar de meus olhos terem se maravilhado com o espetáculo, meu coração permaneceu inerte com o desejo de que isto mude na sequência.
A batalha judicial de Britney Spears para desfazer sua curadoria já rendeu 3 documentários, dois disponíveis: Framing Britney Spears, lançado na Globoplay, Toxic: Britney Spears' Battle for Freedom, por enquanto inédito no Brasil, e esta obra da Netflix. Dá para aprender bastane sobre documentários comparando as abordagens.
Enquanto Framing era sensacionalista, Britney vs Spears não adota a forma paparazzi para narrar a história da artista. É mais investigado e jornalístico, partindo de documentos confidenciais e expondo outras facetas que o antecessor não permitia enxergar. Além disto, Britney vs Spears vai direto ao ponto: depois de documentar o divórcio dela com Kevin Federline, parte para analisar as circunstâncias que levaram seu pai a assumir sua curadoria.
A Britney aparenta mais ativa no documentário, através daqueles que falavam por ela. Não há o panorama psicológico definitivo sobre ela - talvez isto jamais seja revelado -, nem detalhes sobre a personalidade de seu pai, o vilão da história, por optar em permanecer calado diante de quem quer que seja. A percepção que temos é a de quem está fora, que parte de interpretações e suposições para chega à conclusão das cineastas.
Isto reforça a ideia de como Britney possuía muitos aliados, antes de serem corrompidos ou afastados dela, e de que o silêncio dela já era suficiente para compreendermos o significado de estar 13 anos presa da liberdade de ditar os rumos de sua vida.
Entulhar um roteiro de reviravoltas pode parecer uma alternativa para que o espectador permaneça atento diante das surpresas. No entanto, plot twists nunca foram sinônimos de qualidade narrativa. É a maneira como são plantados e regados para então frutificar em revelações que não esperávamos que é a chave.
O thriller erótico Observadores juveniliza Janela Indiscreta ou Dublê de Corpo. Não só no elenco - nada convincente, por exemplo: Ben Hardy ser um gênio da fotografia quando mais parece um modelo de foto de cueca que o trabalho é tirar a camisa -, mas no espírito de que melhor ter muito plot twist do que pensar na verossimilhança deles.
Até dá para comprar a ideia (esperada, até) da primeira reviravolta, mas não os caminhos que levam a esta e nem o comportamento de personagens, que não agem como as mesmas pessoas agiriam nas mesmas circunstâncias. Para piorar, as surpresas vêm a reboque de comportamentos subjetivos, dificilmente previsíveis, como acertar a hora exata de retornar para casa e dar de cara com algo na janela.
Nada se compara com a moralidade narrativa: Michael Mohan até tem a cabeça no lugar certo quando critica quem vive a vida dos outros, e não a sua, utilizando-se de um símbolo asiático que serve para revelar a visão de quem enxerga um recorte só e ilustrar as consequências da ação da protagonista. Contudo, Michael é infeliz ao responsabilizar as ações nas personagens femininas enquanto os masculinos só seguem o baile ou são atropelados por ele.
Se Michael ilustra Pippa como a mulher cuja obsessão está associada à sexualidade, não correspondida pelo companheiro, é também quem está disposta a apagar o desenho inocente do casal para continuar a viver a vida dos outros, não a sua. Não soa justo, nem é convincente. É só a vitória do imediatismo do plot twist, nem que para isto precise de um roteiro tacanha igual a esse.
Encanto
3.8 804Mesmo quando uma animação tem público-alvo infanto-juvenil, isto não quer dizer que adultos não possam perceber o que os olhares dos pequenos ignoram, tão encantados, perdoem o trocadilho, com as cores e superpoderes da família Madrigal. É que Encanto é uma alegoria à ansiedade que se manifesta de formas variadas para quem enxerga de fora.
É que a protagonista, Mirabel, sente-se inferiorizada com o fato de que sua família tem superpoderes, mas ela não, embora isto a cegue para o fato de que todos também têm problemas. Diferentes dos seus, porém. Há quem esteja estafado por não conseguir dizer não aos pedidos da comunidade - a pálpebra que treme é um sintoma comum de estresse. Há quem viva tentando ser a pessoa perfeita quando só gostaria de ser ela mesma. Há quem tema tanto o futuro que prefere esconder-se do presente.
Assim, além da beleza óbvia da animação Encanto está a lição de moral de que, apesar de a grama do vizinho parecer sempre mais verde, isto não significa que este não tenha problemas que, muitas vezes, têm receio de comunicar. E o superpoder de Maribel é o da empatia, da escuta, da aproximação dos membros de sua família a ponto de fazê-los abrir o coração para suas dores.
Pena, porém, que o roteiro não tem um antagonista que pareça ameaçar a jornada de Maribel, o que tornaria a recompensa mais gostosa de ser apreciada, e tudo se resolva em um anti-clímax. Contudo, as músicas compostas por Lin-Manuel Miranda, a valorização da família considerados os obstáculos de comunicação apresentados e a representatividade mais do que capacitam o filme a ter êxito com pais e filhos.
Ah, com relação ao curta-metragem que antecede o filme. UOU, acho que merece uma crítica dele própria (não apenas um parágrafo).
No Caminho da Cura
3.6 9 Assista AgoraNão existe fórmula milagrosa para lidar com traumas. Existe somente o primeiro passo que se dá em direção à cura, através da terapia. Este documentário explora uma forma de terapia que envolve a dramatização e reconstituição do evento traumático e como isto se torna fundamental para que seis homens superem, ou iniciem o processo de superação, do abuso sexual que sofreram na infância por padres católicos.
O documentário é terapêutico até para quem assiste. Acompanhar a trajetória de seis homens, que encaram este fantasma em seu passado, enquanto se fortalecem um na dor do outro, é um dos pontos alto do cinema em 2021. São personalidades antagônicas que se complementam enquanto revisitam o passado para restaurar o seu presente.
E isto vem com uma dose de catarse que alguns podem não estar preparados, ainda mais quando acompanhado de interpretações e ramificações maiores do que consigo debater em 2000 caracteres. Por exemplo, um dos abusados reencena o abuso interpretando a figura de um padre abusador, enquanto outro reencontra o seu eu criança e confronta a figura do abusador como se fosse uma figura protetora.
Como disse, não existe fórmula, só o primeiro passo em direção à cura, a catarse e, sim, a responsabilização de todos aqueles que utilizam a batina para cometer crimes sexuais contra crianças bem como aqueles que acobertam crimes hediondos iguais a este. Com filmes iguais a este, ao menos no tribunal do povo, existe alguma forma de justiça.
Casa Gucci
3.2 706 Assista AgoraPor diversas vezes, em Casa Gucci, pensava que Ryan Murphy poderia ter tido mais êxito do que Ridley Scott adaptando a história do império da moda em minissérie. Como há uma teia de relações, interesses e subtramas, a duração mal cobre a superfície dos acontecimentos como deveria, tornando superficial o que deveria ser complexo.
A evidência está em como Patrizia se torna pivô ou bode expiatório dos infortúnios da família, como se o aparecimento dela na vida do herdeiro Maurizio houvesse desorganizado o que antes funcionava como um relógio. Ao culpá-la, exclusivamente, durante a maior parte da trama, Ridley Scott passa pano para Maurizio, Paolo, Aldo, homens manipuláveis diante de uma alpinista social que, após tudo, somente queria estar com a pessoa que ama nem que precisasse chantageá-lo emocionalmente. Não fica mais simplório do que isto.
Não estou querendo isentar Patrizia de sua culpa, apenas dividi-la com o marido, igualmente interesseiro, e não o homem levado pela mulher com que casou a esfaquear nas costas, metaforicamente, sua família. É tanto que, a partir de certo momento, Maurizio mostra quem de fato é, e quando isto acontece, a mudança é súbita porque até então ele havia parecido apenas ingênuo e imaturo. Isto prejudica a narrativa de forma irreparável, transformando um caso complexo em um retrato só enviesado de Patrizia.
Lady Gaga está bem, enquanto Adam Driver continua a sina de interpretar homens canalhas em 2021 (depois de Annette e O Último Duelo). Jared Leto transforma-se fisicamente em Paolo, embora seja deixado na mão por um personagem criado como um tolo quando não era assim (Paolo que criou o emblema da Gucci), enquanto Al Pacino e Jeremy Irons recorrem à experiência como atalho para desenvolverem seus personagens.
Ridley Scott até acerta no tom do melodrama e no não refinamento de Patrizia, que contradizem a sofisticação do império Gucci e os valores defendidos pela marca. Além disto, os valores técnicos do filme são irrepreensíveis, mas isto é o mínimo a se esperar de um diretor com 50 anos de experiência e uma visão míope de um caso fascinante.
Entre os Muros da Escola
3.9 363 Assista AgoraPor 2 horas, o filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008 coloca o espectador literalmente dentro dos muros de uma escola pública nos arredores de Paris, que mais parece uma prisão. Com grades nas janelas, sem que haja o céu ou o horizonte, e com o pátio retratado a partir de ângulos altos que remetem ao monitoramento dos presídios de forma semelhante ao pátio onde detentos tomam banho de sol, o drama dirigido por Laurent Cantet obriga-nos a repensar o modelo educacional tradicional.
A partir de uma dinâmica que envolve atores amadores interpretando versões exageradas de si mesmo, o filme apresenta uma escolha de elenco improvável e intrigante: François Bégaudeau, professor e autor do livro e roteiro, interpreta o protagonista, François Marin, um professor bem intencionado mas que não consegue navegar por dentro de um sistema educacional falido.
Criticado, desafiado e desmoralizado, François reage com a pretensa superioridade que decorre da hierarquia em sala de aula, e não de atributos que conquistassem os alunos (como John Keating fazia em Sociedade dos Poetas Mortos). Embora desafie seus alunos a pensar, refletir e contra-argumentar, François não admite opiniões diversas e age com ironia ou desdém, diminuindo as conquistas e até ofendendo os alunos. Fora da sala, François é indisciplinado, não colaborativo, covarde em não defender um aluno prestes a ser expulso enquanto se socorre nas regras de um sistema que o protege e pune o aluno.
Entre os Muros da Escola é um drama que exige refletirmos qual a educação que desejamos. Será se uma que cultue a obediência e disciplina irrestrita ou uma que estimula o saber, a troca de ideias, inteligências múltiplas? Com a imagem da sala vazia e a certeza de que muitos não aprenderam nada enquanto sentavam, diariamente, nas mesmas cadeiras aprendendo sobre algo que não empregariam em suas vidas, o filme, que é de 2008, ainda se torna mais urgente quando pensamos na juventude de hoje.
tick, tick... BOOM!
3.8 450A biografia de Jonathan Larson, que escreveu a peça da Broadway Rent, assume uma forma incomum mas nem por isto menos envolvente. Com um formato que remete ao stand-up em como Jonathan abre o coração à audiência - que somos nós -, o filme tenta aproximar ainda mais o criador e biografado do público.
Nem precisaria disso, já que a história universal de um homem que acredita que, na idade em que está, não completou tudo aquilo que havia planejado para si é a mais universal que há. Soma-se a isto a atuação de Andrew Garfield, ator que consegue, sem muito esforço, ser este tipo meio comum, meio artsy, que enxerga sua namorada e seus amigos amadurecerem e se transformaram na Nova York dos anos 90 enquanto permanece empacado, com sonhos e ambições que ainda veriam a luz do dia.
A musicalidade de Lin-Manuel Miranda, que dirige seu primeiro filme, auxilia a retratar o fluxo de pensamento de Jonathan enquanto lidava com alegrias, frustrações e decepções, tentando racionalizá-las através de canções. É um processo de autodescoberta, acompanhado de alguma dose de sofrimento, mas recompensada por uma atuação de destaque e por uma direção que, embora pese a mão aqui e acolá, sabe onde descansa o centro emocional do filme.
Benedetta
3.5 198 Assista AgoraAos 83 anos, Paul Verhoeven não mudará seu predicado artístico: a forma como violência e sexo estão inequivocamente relacionados à experiência humana. Ao trazer estes temas para dentro da Igreja Católica do século XVII, com a história real da freira que dá norma ao filme, o diretor com certeza provocaria reações raivosas de parte da comunidade cristã. Seria apelidado de profanador, muito embora não haja tanta profanidade assim em Benedetta para quem já conheça o autor.
A partir da freira vivida pela enigmática Virignie Efira, Verhoeven critica o óbvio: as contradições e hipocrisias da Igreja, que não se envergonha de alguns pecados (a avareza em vender espaços no convento para quem paga mais, a inveja e violência entre freiras, a luxúria dos homens que ditam as regras, a tortura para extrair confissões de dentro das entranhas das mulheres), mas corre para condenar outros, quando envolve duas mulheres que começam uma relação amorosa e sexual.
A partir da maneira com que ilustra a relação de Benedetta com Jesus, cujos sonhos e delírios acordados fragmentados reforçam a defesa de que nenhuma forma de amor consensual é pecaminosa, o nosso olhar preconceituoso que é, o diretor associa isto à chegada da peste, que vem nos céus como um apocalipse divino. É uma mistura de fantasia - a partir da percepção de uns - com conteúdo histórico, sem que esta fidedignidade estraga a moldura artística.
Claro que uma imagem cuja base é talhada para virar um acessório sexual escandalizará uns. Mas é o desejo do diretor: revelar como o desconforto é dirigido à arte, igual naquele tempo fora ao amor lésbico, ao invés de àqueles que de fato deturpam os ensinamentos cristãos. Pois não é o amor que deve ser punido; é quem o proíbe.
7 Prisioneiros
3.9 318Embora o roteiro seja a primeira vítima do espectador, em outras vezes não reconhecemos a habilidade com que a trama e os personagens se desenvolvem além de um campo de visão pragmático. 7 Prisioneiros é um excelente exemplo para se analisar como uma premissa que parecia modesta se articula para revelar uma situação sociopolítica e individual.
Sem entrar em spoilers, 7 Prisioneiros revela didaticamente como nasce o que a justiça denomina de trabalho análogo à escravidão, em que homens e mulheres, nacionais ou estrangeiros, perdem a liberdade em razão de "dívidas" contraídas com o empregador. Se é mais comum o crime no meio rural, a narrativa trata de deslocar isto para o ambiente urbano, com atuações impressionantes de Christian Malheiros, Rodrigo Santoro e Lucas Oranmian.
A narrativa é opressiva e não se envergonha da objetividade de seus símbolos, quando a porta do quartinho onde convivem se revela uma grade que não deve nada a um presídio. O linguajar cinematográfico mais explícito não é demérito enquanto mecanismo de exposição de uma realidade que está debaixo dos olhos da sociedade, que envolve polícia, política e burocracia fiscal como os meios de garantir que um empreendimento igual a este conviva dentro de uma metrópole dita civilizada como São Paulo.
Fechar os olhos é tudo o que o diretor Alexandre Moratto não faz. E, sem dever em nada à realidade, constrói protagonista e antagonista exuberantes, que dialogam na base da força, a princípio, para então passar a fazê-lo no campo das ideias. Não existe maniqueísmo, nem romantização de Luca ou Mateus. Dentro da selva social, ambos são homens que aprenderam a se adaptar às circunstâncias, mesmo que isto implique em atitudes que os desumanizam/ram. Ver o veneno de Luca corroer Mateus é, sem dúvida, um dos pontos alto do cinema brasileiro em um filme que expõe o pus dos cânceres da sociedade.
Mentira Branca
3.8 4 Assista AgoraApesar da relevante busca pela própria identidade e pela verdade, a diretora Lacey Schwartz Delgado se mostra insensível com a história e os sentimentos de seus pais, enquanto tratora seus passados.
Brian Banks: Um Sonho Interrompido
3.9 36 Assista AgoraNa avalanche de denúncias sobre abusos e assédios na indústria do entretenimento e do esporte, Brian Banks pode parecer inoportuno, porque realiza exatamente o oposto: mostra como uma denunciação caluniosa de crime sexual pode destruir a vida e sonho de um homem justo.
Entretanto, ainda que sob a maquiagem da pieguice hollywoodiana, a dupla biografia do personagem-título e do advogado que coordena o projeto de inocência é eficiente em tentar, até como pode, recorrer à figura do branco salvador. Chega até a se justificar ao espectador: eu fiz tudo o que pude sozinho, cita Aldis Hodge. Seja como for, revelou-se um drama tocante, mesmo que sem desviar, nem um milímetro, da fórmula hollywoodiana de se fazer este tipo de filme.
A Mansão
2.5 100Curioso que Barbara Hershey, a mãe de Nina em Cisne Negro, tenha sido escalada para estrelar um filme sobre uma ex-bailarina voluntariamente institucionalizada em uma clínica de repouso e que começa a ter visões macabras que podem, ou não, estar relacionadas com a progressão de sua doença de Parkinson.
Dentro das regras do gênero, a narrativa percorre os dois mundos, o fantástico e o metafórico, sem desprezar este ou aquele, enquanto Barbara Hershey compromete-se com um papel incomum, já que as estrelas do terror sempre são jovens ou, quando não, jovens adultos. Este medo de envelhecer, deteriorar, não ser mais jovem é levado ao extremo, ainda que comprometido por um terceiro ato apressado e pela brevidade da narrativa (81 minutos).
O Mago das Mentiras
3.6 102 Assista AgoraEntendo a pergunta óbvia: como me envolver com o drama do sujeito multimilionário que tostou o dinheiro de tantos multimilionários, com o esquema de pirâmide mais longevo e sofisticado de tempos recentes? A resposta é: Robert De Niro.
Claro que a narrativa de Barry Levinson (de Bom dia, Vietnã e Rain Man) tem um gosto azedo quando penetra na camada mais inacessível da sociedade, nos almoços nas mansões à beira da praia, com lagosta e champanhe, o que torna praticamente impossível qualquer forma de identificação com o protagonista. Mas revela, de uma maneira ou de outra, um panorama psicológico bastante impressionante de um homem que não se importava com ninguém, apenas consigo mesmo.
Muito disto depende da atuação cirúrgica de De Niro, que já inicia a narrativa atrás das grades, para então retroceder aos acontecimentos que derrubaram o castelo de cartas que havia montado. O retrato é de um homem poderoso, que economiza o tom de voz autoritário para os momentos que julga apropriados, e mantém os entes queridos no escuro (o que o filme realiza, de forma literal, quando apaga as luzes sobre sua esposa, vivida por Michelle Pfeiffer). Ele trafega a narrativa como um marionetista cujas cordas foram cortadas e que perdeu, então, o controle dos eventos.
O filme é sóbrio na maior parte do tempo, diminuindo a profundidade de campo para tentar deixar, mais e mais, Bernie sozinho. No restante, a narrativa encontra ainda um espaço para sonhos surreais e tragédias shakesperianas no interior de uma família, instantes que não parecem propor uma aproximação do espectador junto daquele homem (isto me soaria até desonesto de Barry Levinson) justo porque, no fim das contas, a pergunta feita ao final evidencia exatamente qual a opinião do filme em relação a Bernie.
Alerta Vermelho
3.1 528Está na hora de refletir a respeito do entretenimento e de como esta palavra passou a ser empregada para escusar um mundo de filmes ou séries preguiçosos e mal acabados, que não sabem o que fazer com seus talentos.
Ah, Márcio, deixa de ser chato. Nem todo filme é para refletir, alguns são apenas para curtir por 2 horas. Sempre que vocês falam isto, um roteiro divertido do quilate Piratas do Caribe, John Wick ou Missão: Impossível é engavetado para que um esforço igual a Alerta Vermelho surja.
Com 200 milhões em orçamento, Alerta Vermelho deveria ter direção, roteiro e efeitos visuais melhores em vez de se aproveitar do carisma e notoriedade de seu trio de astros para tentar salvá-lo da mediocridade e falta de criatividade: lutas e trocas de tiros e perseguições de carro caretas, fundos verde com touros ou veículos digitais mal acabados e viagens ao redor do mundo que, porém, haja qualquer identidade nos lugares visitados (exceto quando falamos da América Latina, quando a execução encontra a discriminação).
Dwayne Johnson franze a testa o filme inteiro tentando dar vida a seu personagem, mas sem se esforçar, enquanto Gal Gadot arqueia suas sobrancelhas e prepara o carão para compensar o talento limitado. A química que existe entre eles é inexistente, e só tem um respiro com Ryan Reynolds que repete o mesmo papel desde Deadpool (apesar de não ser eu que o criticarei enquanto continuar acertando metade das tiradas que dispara).
Se mesmo o trio de super astros, que deve ter custado metade deste orçamento, não se desafia a transformar o filme em algo melhor, que dirá então do diretor Rawson Marshall Thurber (de filmes derivados como Um Espiã e Meio, Arranha-Céu e Família do Bagulho, seu mais divertido trabalho). Alerta Vermelho é só uma colagem de cenas de ação que já vimos em filmes melhores interpretada por atores que já estiveram igualmente melhores. Não me entreteve, é só um desperdício de 200 milhões de dólares.
Loucos por Justiça
3.7 91 Assista AgoraEsta produção dinamarquesa esforça-se em ser, ao mesmo tempo, uma comédia de humor ácido, um filme típico de vingança e um drama sobre paternidade, e alcança bons resultados em todos estes níveis. É intensa e violenta, divertida sem parecer deslocada e com o tempero dramático correto.
Faz o espectador refletir sobre o que chamaria de filme anti-vingança, em que não importa o autor do ato criminoso que colocou o anti-herói neste caminho. O que importa é a sensação de recompensa que retira quando descarrega suas armas naqueles que enxerga serem os vilões. Devolve, portanto, este tipo de história à origem com Desejo de Matar, em que Charles Bronson não se vingava, exatamente, de quem havia matado sua esposa, mas de todos aqueles que julgava que poderiam cometer o mesmo crime.
O que eu fiz para você, pergunta o vilão em certo momento, e não tem resposta que apazigue a raiva que o soldado interpretado pelo sempre eficiente Mads Mikkelsen sente. Existe só o desejo de descarregar a adrenalina através do gatilho da arma, como se a vingança fosse esta droga que impede o protagonista de vivenciar o luto. Isto fortalece o tema discutido, sem empobrecer o que o público espera deste tipo de filme.
Ao mesmo tempo, o filme insere um trio de personagens que divertem mas sem abrir mão de profundidade. São alívios-cômico não porque o filme precisa disso, mas porque o humor é a forma de lidarem com os sofrimentos e as humilhações por que passaram. Tudo funciona como um relógio preciso, em que até a numerologia da estatística e o acaso fortuito jogam dentro das regras estabelecidas por um filme que tem muito, muito mais a dizer do que parece à primeira vista.
Donnie Darko
4.2 3,8K Assista AgoraO mérito de muitos filmes está em tornar sua narrativa tão críptica que podemos enxergá-la por ângulos iguais e ainda assim obter resultados diferentes. E Donnie Darko, apesar da inexperiência da direção de Richard Kelly, é um destes exemplos que continuam a desafiar a nossa percepção a partir da figura central de um rapaz confuso e de seu amigo imaginário, que o alerta de que o mundo acabará em 28 dias.
Seria Donnie esquizofrênico ou profético? Seria Donnie um rapaz comum tentando amadurecer dentro de uma comunidade hipócrita, que parece premiar a mediocridade e não a individualidade, ou um super-herói que é capaz de enxergar buracos de minhoca e viajar no espaço tempo para salvar aqueles que ama? Nenhuma destas alternativas pode ser descartada porque a bem construída narrativa de Richard Kelly premia qualquer interpretação.
A sua fotografia espectral e melancólica, combinada com a montagem que brinca com o conceito de tempo, acelerando-o ou o retardando a depender do contexto, e a seleção de canções que sublinham a trajetória do protagonista cria uma espécie de ambiente fantástico de horror (a capa do livro de IT - A Coisa não deixa dúvida quanto a isto) e ficção-científica (a partir das menções à teoria de Einstein). Mas também um ambiente em que se discute saúde mental, livre arbítrio e determinismo com base em uma doutrina cristã.
O mundo de Donnie é um mosaico fraturado, em que coadjuvantes vêm e vão, com seus dilemas e suas vitórias, que não perturbam a jornada semi-messiânica de um protagonista, uma espécie de Cristo às avessas, inclinado a fazer o que for possível para salvar aqueles que ama. Do quê? Este é o mistério de Donnie Darko, mas podemos ficar sem respondê-lo enquanto apreciamos a criação, até hoje cultuada, de Richard Kelly e de um jovem Jake Gyllenhaal.
O Grande Lebowski
3.9 1,1K Assista AgoraÉ reconfortante reencontrar uma comédia clássica e perceber que seu humor não envelheceu. Pelo contrário, continua atual e divertido como as regras estabelecidas pelos irmãos Coen para um de seus trabalhos mais icônicos.
Descompromissados com relações de causa e efeito e aquele realismo meio camisa de força, os irmãos Coen atiram em muitos alvos com sua narrativa menos coesa e coerente e mais psicodélica. Em um momento, estamos no interior de uma mansão; noutro, dentro do ateliê de uma artista, na pista de boliche, na casa de um pornógrafo ou mesmo no estacionamento diante de uma gangue de niilistas (ou "niilistas").
Nada faz sentido na epopeia de um sujeito a toa, que escolheu viver a margem da sociedade bebendo sua bebida preferida, jogando boliche e dirigindo pelas ruas de Los Angeles, enquanto tenta compensação por seu tapete arruinado. E nem é para fazer. O objetivo do filme é criticar a obsessão do espectador por um fio coerente de história com cenas de humor particularmente irônicas e que contextualizam a sociedade a época da narrativa.
Jeff Bridges, John Goodman e Steve Buscemi se destacam com personagens contraditórios: um surfista que parece nunca haver visto um mar, um judeu convertido que admira o ethos nazista, um jogador de boliche que nunca joga boliche. Em meio a isto, o talento dos irmãos Coen para criar cenas que funcionam no nível do texto escrito, da imagem e também da crítica à apatia norte-americana, à política externa e à matriz econômica que tornou um cartão de supermercado como a carteira de identidade do protagonista.
A costura, ao invés de se desgastar com o tempo, fortaleceu-se e fez desta uma das mais cultuadas comédias de tempos modernos. Um viva ao humor inteligente, à liberdade criativa e ao estado alterado da imagem desbloqueando todo o potencial da arte cinematográfica. Tudo isto em vez da caretice de sempre.
Vingança & Castigo
3.6 206 Assista AgoraJeymes Samuel havia debutado com o média metragem They Die by Dawn, também um faroeste negro, revisionista, como o ótimo e mal traduzido Vingança & Castigo (sério, é este o melhor que as pessoas conseguem traduzir The Harder they Fall?).
Jeymes rememora personagens negros e históricos do velho oeste e os insere numa ficção que celebra o cinema de Quentin Tarantino - não só no plano mais famoso de Bastardos Inglórios, mas no tema da vingança e na tentativa de estofar com mais violência e reviravoltas o subgênero do faroeste spaghetti com a moldura do clássico oeste norte-americano - enquanto também encontra uma identidade própria e cheia de estilo, difícil de não admirar.
É o estilo como o conteúdo, porque se os personagens não escapam a estereótipos dos caubóis do velho oeste (o pistoleiro moral que deseja vingar-se; o fora da lei cruel, mas cansado; o gatilho mais rápido; o xerife que me remeteu a Wyatt Earp), eles são empregados a serviço de uma narrativa jovial, dinâmica e, no bom sentido, anacrônica. É como se os dias de hoje inundassem os de ontem, a partir da seleção de músicas e dos elementos de linguagem cinematográfica, para criar uma experiência de cinema ímpar a partir do já conhecido.
E cada personagem no super elenco tem seu momento de destaque, com o protagonismo de Jonathan Majors (que se fortalece como um dos atores mais interessantes da atualidade) e a experiência de Idris Elba, Regina King e Delroy Lindo misturada em um cenário divertido em que a cidade habitada por pessoas brancas é... toda branca. Não tem como não se entreter com um faroeste que se diverte consigo próprio, enquanto proporciona uma releitura de mitos do oeste que este mesmo gênero falhou em recordar em 1 século de história.
Marighella
3.9 1,1K Assista AgoraA estreia de Wagner Moura na direção é muito mais ação e tesão, do que razão. Bem parecido com o canto do hino nacional com inconformismo e raiva lacrimejantes contra um país que ataca os seus.
O Marighella de Wagner Moura e Seu Jorge é contraditório, e isto é bom. É um homem cuja sensibilidade foi torturada pelo DOPS e que sobrevive à base da memória da promessa que fez - um dispositivo do roteiro cujo desfecho é conhecido até se você desconhecer a história nacional - e do desejo de incitar a luta armada contra o governo ditatorial. Ao mesmo tempo, Marighella é tomado menos como protagonista do que o grupo que organiza, como se o roteiro optasse (com razão) pelo homem ação do que pelo homem emoção.
E ação é o que o filme proporciona, até de forma excessiva. A partir de uma fotografia - cuja paleta de cores drena as cores senão dos figurins de Bella - que acompanha o desenrolar dos eventos de pertinho, sem muitos cortes, com cenas particularmente fortes e incômodas de que gostaria de desviar os olhos, Wagner Moura não adoça a violência subversiva de Marighella, nem atenua a truculência e até o sadismo da polícia e do DOPS.
Embora seja um filme de "eles contra nós", em que os papéis são binários (ou mau ou mal necessário), existe um desenvolvimento dos personagens dentro das limitações impostas pela ação: ainda que não saibamos nada a respeito de Bruno Gagliasso, a maneira com que se comporta, com que pratica a violência, com que desdenha os Estados Unidos embora requeira sua ajuda financeira, associado à ótima performance do ator, revelam tudo o que precisamos saber sobre ele.
É mais político do que a maioria dos filmes e, por isto, a maquiagem histórica de alguns eventos ou personagens poderá incomodar, ou não, quem não souber ou quiser dissociar os fatos da maneira com que Wagner Moura os enxerga. Talvez aí esteja a maior riqueza de Marighella: revelar a visão inquieta, inconformada e raivosa do diretor, revelada na perda da inocência, na violência e no martírio voluntário.
Finch
3.6 221 Assista AgoraDepois de conversar com uma bola de vôlei, agora Tom Hanks parte para aventuras mais ambiciosas: ensinar um robô a sobreviver em um mundo pós-apocalíptico.
Brincadeiras a parte, e por maiores que sejam as semelhanças com Eu Sou Lenda (afora os vampiros), Finch é uma ficção-científica ciente de sua limitação e de seu potencial, explorando-o com sensibilidade para proporcionar um dos filmes mais fofos do ano. (Não é todo dia que alguém define um filme como fofo, certo?)
O mérito da narrativa está em se manter no curso determinado pelo protagonista, em vez de se seduzir pela oportunidade de explorar o mundo apocalíptico com maior intensidade. Finch é misantrópico e este traço de personalidade é coerente com o hermetismo narrativo, existente no figurino que precisa utilizar para sobreviver no mundo lá fora e na abordagem simples e objetiva de Miguel Sapochnik (diretor de alguns episódios de Game of Thrones).
Visualmente, não há nada novo em como o mundo está em pedaços em razão da ação humana e o que resta da humanidade persiste na relação entre humano, cachorro e robô. Por falar neste, Jeff tem um visual mais artesanal, como se menos preocupado com a aparência externa e mais com o sentimento. Parece os robôs do cinema de Michael Blomkamp: realistas, com o esqueleto tecnológico a mostra, em vez de terem uma aparência artificial.
O mais impressionante é como Caleb Landry Jones tornou humano Jeff. O ator interpretou o personagem com a técnica de captura de performance, e isto trouxe autenticidade enquanto atuava ao lado de Tom Hanks. Por falar nele, o veterano ator proporciona sensibilidade, mas também aspereza, para fechar com chave de ouro um filme de propósito encantadoramente simples e executado com esse mesmo princípio em uma ficção-científica com coração imenso.
Holy Motors
3.9 652 Assista AgoraNo interior de uma limusine, o Sr. Oscar se prepara para participar de encenações que falam sobre o ofício do ator, mas revelam pouco de quem este homem verdadeiramente é. Mal o vemos senão nesses breves momentos, vivenciado apenas em razão da beleza do gesto. O dilema de Oscar é a inexistência além da performance.
No curso de um dia, o diretor Leos Carax propõe uma viagem que namora o surrealismo enquanto manifesta seu amor ao cinema. A narrativa possui uma lógica interna desafiada pela lógica que rege cada uma de suas partes, pois Leos não assina qualquer contrato de realismo, verossimilhança ou mesmo fantasia ou absurdismo com o espectador. Em um momento, vemos um pai que busca a filha numa festa; noutro, um assassino e a vítima são "a mesma pessoa".
Assim, o contrato que Leos assina é com o poder da crítica (e também homenagem) a partir de imagens potentes e de como estas namoram umas com as outras. Não é um filme para ser explicado, é para ser sentido, absorvido, como se estivéssemos acessando os sonhos do diretor (que é o personagem que acorda na cena inicial), muito além do transe dos espectadores dormindo no cinema. Não existe racionalidade nos sonhos, então por que haveria quando estes sonhos viram realidade fílmica?
O motor sagrado da experiência é Denis Lavant, ator fetiche de Leos, e que se transforma em 11 pessoas como se só trocasse de roupa. A qualidade de seu trabalho é indiscutível porque suas encenações são verossímeis, articuladas para que os personagens apropriem-se parcial e temporariamente do corpo do intérprete, deixando só a impressão breve de quem é Oscar. O vazio. O nada prestes a ser consumido em mais um ato.
Exército de Ladrões: Invasão da Europa
3.2 181Eu tento puxar da memória quando os estúdios decidiram que os filmes que deveriam entreter precisariam de 2, 3 horas para fazê-lo. Claro, há narrativa que fazem por merecer a duração, mas este não é o caso com Exército de Ladrões, a prequel de Army of the Dead centrado no ladrão de bancos Dieter.
Interpretado por Matthias Schweighöfer - que também dirige o filme! -, Dieter é o exemplo de um coadjuvante divertido alçado à condição de protagonista. Ainda que divida a cena com um exército (ou "exército") menor do que os 11 de Danny Oceans, Dieter ainda tem a ingenuidade e paixão necessárias para se destacar entre personagens com carisma nulo, com exceção de Nathalie Emmanuel que precisa desesperadamente de uma produção à altura de seu talento.
O filme esforça-se para ser uma brincadeira metalinguística com os filmes de assalto, como Pânico fez com os slashers movies. Ou seja, ele tenta ser um filme do gênero enquanto também reflete sobre as convenções e clichês dele. Não é muito bem sucedido no processo, embora valha pela tentativa, especialmente quando enxergamos a relação de Dieter com os cofres (utilizando efeitos visuais que penetram em seus mecanismos e revelam seus segredos).
O roteiro é formatado como um videogame com fases, em que todos os eventos ficam explicadinhos como se ainda estivéssemos no colégio. Além disto, os personagens não fogem dos arquétipos, até nos (previsíveis) pontos de virada da trama. Mas não dá para negar que o filme é divertido muito graças à abordagem visual de Matthias Schweighöfer.
Precisaria ter 2 horas e 6 minutos? Não. Mas aí exigir demais que Dieter, além de roubar os cofres mais complexos do mundo, mude também toda uma mentalidade da indústria de cinema atual.
O Pai que Move Montanhas
2.1 60 Assista AgoraÉ sintomático perceber que o motivo por que alguns rejeitaram esta produção romena tenha sido por ser menos filme de sobrevivência e resgate, mais estudo de personagem, bem adaptado com tendência existente no cinema romeno de eleger, como antagonista, o sistema corrupto no país.
Este drama alegadamente baseado em fatos reais tem no centro um personagem por quem facilmente antipatizamos, em razão de usar o prestígio político para benefício individual, não coletivo. Insatisfeito com o trabalho da equipe de resgate que busca o paradeiro de seu filho e sua namorada, Mircea decide utilizar ilegalmente instrumentos sofisticados de busca que poderiam ser úteis para toda a sociedade.
Mircea é confrontado pela imprensa e também por pais que poderiam utilizar a tecnologia para encontrarem sua filha com rapidez, e o filme enfatiza o conflito moral: quais valores estaria disposto a barganhar para salvar um ente querido? Com isto, vêm as consequências, como a preterição do filho não nascido em favor daquele que exige as suas atenções no momento e um retrato de um país em que a corrupção é a principal moeda de troca.
Duna: Parte 1
3.8 1,6K Assista AgoraDesde que assistiu à versão de David Lynch de 1984, Denis Villeneuve confessou ter sonhado adaptar a obra-prima da ficção-científica Duna. Tal sonho é perceptível na reverência e solenidade da narrativa, mesmo que isto signifique sacrificar a alma em favor do corpo.
Certas escolhas visuais tornam isso evidente em como, em planos bem abertos, os personagens são diminuídos diante das naves, dos coletores de especiaria e dos Shai Hulud, os vermes de areia. Não ajuda a direção que as tramas maquiavélicas movidas por ganância, inveja e poder, ou por sentimentos de lealdade e coragem, sejam construídas sobre arquétipos conhecidos que conduzem à atuação blasé de Timothée Chalamet, no típico personagem messiânico que coloca uma barreira insuperável diante do espectador.
Ter um elenco com Oscar Isaac, Jason Momoa, Josh Brolin, Zendaya e mais intérpretes talentosos ajuda a narrativa a ter âncoras facilmente identificáveis, mas nenhum dos atores consegue incutir personalidade e profundidade nos personagem com exceção de Rebecca Ferguson. Sem vida ou emoção, não existe peso dramático nas cenas de ação e a narrativa se torna um deserto de esterilidade igual a Arrakis.
Ainda assim, Duna é um arroubo cinematográfico impossível de ser ignorado. Seus efeitos visuais e sonoros impressionam com a escala épica mesmo para quem já está familiarizado com óperas espaciais (tipo Star Wars). A fotografia é arrebatadora, enquanto a trilha sonora de Hans Zimmer, ainda que aposte em temas étnicos e tribais óbvios, consegue abraçar o ambicioso escopo do projeto. Afora isto, adoro a forma como o design de produção remete à idade média mesmo que estejamos no 10º milênio da humanidade, ajudando a estabelecer a metáfora da colonização por conquistadores europeus e ainda trazer ecológica no subtexto.
Apesar de meus olhos terem se maravilhado com o espetáculo, meu coração permaneceu inerte com o desejo de que isto mude na sequência.
Britney x Spears
3.6 115A batalha judicial de Britney Spears para desfazer sua curadoria já rendeu 3 documentários, dois disponíveis: Framing Britney Spears, lançado na Globoplay, Toxic: Britney Spears' Battle for Freedom, por enquanto inédito no Brasil, e esta obra da Netflix. Dá para aprender bastane sobre documentários comparando as abordagens.
Enquanto Framing era sensacionalista, Britney vs Spears não adota a forma paparazzi para narrar a história da artista. É mais investigado e jornalístico, partindo de documentos confidenciais e expondo outras facetas que o antecessor não permitia enxergar. Além disto, Britney vs Spears vai direto ao ponto: depois de documentar o divórcio dela com Kevin Federline, parte para analisar as circunstâncias que levaram seu pai a assumir sua curadoria.
A Britney aparenta mais ativa no documentário, através daqueles que falavam por ela. Não há o panorama psicológico definitivo sobre ela - talvez isto jamais seja revelado -, nem detalhes sobre a personalidade de seu pai, o vilão da história, por optar em permanecer calado diante de quem quer que seja. A percepção que temos é a de quem está fora, que parte de interpretações e suposições para chega à conclusão das cineastas.
Isto reforça a ideia de como Britney possuía muitos aliados, antes de serem corrompidos ou afastados dela, e de que o silêncio dela já era suficiente para compreendermos o significado de estar 13 anos presa da liberdade de ditar os rumos de sua vida.
Observadores
3.0 411 Assista AgoraEntulhar um roteiro de reviravoltas pode parecer uma alternativa para que o espectador permaneça atento diante das surpresas. No entanto, plot twists nunca foram sinônimos de qualidade narrativa. É a maneira como são plantados e regados para então frutificar em revelações que não esperávamos que é a chave.
O thriller erótico Observadores juveniliza Janela Indiscreta ou Dublê de Corpo. Não só no elenco - nada convincente, por exemplo: Ben Hardy ser um gênio da fotografia quando mais parece um modelo de foto de cueca que o trabalho é tirar a camisa -, mas no espírito de que melhor ter muito plot twist do que pensar na verossimilhança deles.
Até dá para comprar a ideia (esperada, até) da primeira reviravolta, mas não os caminhos que levam a esta e nem o comportamento de personagens, que não agem como as mesmas pessoas agiriam nas mesmas circunstâncias. Para piorar, as surpresas vêm a reboque de comportamentos subjetivos, dificilmente previsíveis, como acertar a hora exata de retornar para casa e dar de cara com algo na janela.
Nada se compara com a moralidade narrativa: Michael Mohan até tem a cabeça no lugar certo quando critica quem vive a vida dos outros, e não a sua, utilizando-se de um símbolo asiático que serve para revelar a visão de quem enxerga um recorte só e ilustrar as consequências da ação da protagonista. Contudo, Michael é infeliz ao responsabilizar as ações nas personagens femininas enquanto os masculinos só seguem o baile ou são atropelados por ele.
Se Michael ilustra Pippa como a mulher cuja obsessão está associada à sexualidade, não correspondida pelo companheiro, é também quem está disposta a apagar o desenho inocente do casal para continuar a viver a vida dos outros, não a sua. Não soa justo, nem é convincente. É só a vitória do imediatismo do plot twist, nem que para isto precise de um roteiro tacanha igual a esse.