Em Nanny, o terror é a ferramenta escolhida para discutir a situação de Aisha (Anna Diop), uma imigrante ilegal senegalesa, que consegue um emprego de babá para um casal rico em Manhattan com a intenção de viabilizar a vinda do filho, que ficou sob os cuidados de sua família no Senegal. À medida que a trama avança, a relação com os patrões desanda e uma presença sobrenatural ameaça o desejo de Aisha em se reunir com o filho, colocando em risco até a pequena Rose, de 5 anos.
Logo chama a atenção a ambientação do designer de produção Jonathan Guggenheim, que torna impessoal, frio e hostil o apartamento onde moram Amy (Michelle Monaghan) e Adam (Morgan Spector), apesar de ser amplo e espaçoso. A ironia ainda está presente no figurino com que conhecemos Amy: um macacão alvo como a neve, enquanto constrói uma relação de proximidade falsa com Aisha, ao recebê-la com um abraço. Já Mark, ausente da família e recluso dentro do escritório, demonstra ter segundas intenções para como Aisha.
Engana-se, porém, quem pensa que Aisha se coloca na posição de vítima. O roteiro escrito por Nikyatu Jusu, que também dirige, cria uma protagonista ciente dos direitos que possui. Aisha se impõe à família, não aceita o pagamento abaixo do combinado em razão de horas extras acumuladas, muito menos a crítica de Amy ao modificar a alimentação de Rosa para a comida que prepara e compra com o dinheiro do próprio bolso. Além disso, não tarda para que haja uma briga de egos entre Amy e Aisha ante a preferência de Rose pela última, com quem convive a maior parte do tempo. É uma crítica em mão dupla: primeiro, aos pais que terceirizam a criação dos filhos; depois, à Aisha, que abre mão (temporariamente) do filho a fim de cuidar da filha dos outros, deixando-o também aos cuidados de terceira pessoa.
Inclusive, o ciúme do garoto literalmente transborda em linguagem de terror. Aisha acredita que o cômodo que ocupa está sendo inundado; noutro momento, que uma sereia a agarra em direção ao fundo do mar; Aisha ainda avista a sombra de uma aranha gigante na parede ou uma cobra na cama. Alguns destes momentos envolvem a água, que desempenha uma função específica na trama, outros parecem inseridos casuisticamente e pouco comunicam em termos de metáfora. No lugar, tem um papel mais diretor em criar a atmosfera de delírio da protagonista, acentuada pela trilha sonora de Bartłomiej Gliniak e Tanerélle, que combina sons desconcertantes com instrumentos musicais senegaleses, e a direção de fotografia de Rina Yang, cujas cores e iluminação expressivas conferem ares expressionistas ao terror de Aisha.
Ainda assim, não há como ignorar a sensação de falta de estrutura da narrativa, incapaz de interligar a vida pessoal de Aisha - o relacionamento com Malik (Sinqua Walls) - com a vida profissional. A sensação que tive é de que o trabalho de babá sufoca a vida pessoal - o que faz sentido, é verdade -, embora não haja instante em que Aisha demonstra inconformismo quanto a isto. Além do mais, Nikyatu Jusu trabalha tanto em cima da reviravolta, em que oferecerá uma explicação para os fenômenos sobrenaturais (alguns deles, pelo menos), que quando chegou tive a impressão de que havia desvendado o que ia acontecer bastante tempo antes.
Para piorar, alguns dos eventos são acomodados na narrativa de qualquer jeito, sob a parca justificativa de se tratarem de alucinações. Ora, na casa vigiada 24 horas por dia, qual a forma de justificar erguer a faca para a pequena Rose, mesmo que estivesse sendo tomada por visões sobrenaturais? A necessidade de criar momentos impactantes, sobretudo no ato final, prejudica a construção do terror mas não dilui a força que há na atuação de Anna Diop e na discussão trazida à primeiro plano sobre a terceirização da criação dos filhos e a culpa decorrente da negligência parental.
Além de conquistar a merecida indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original, Entre Facas e Segredos ainda criou um séquito de fãs fiéis de Benoît Blanc, o detetive interpretado por Daniel Craig, e revitalizou o prazer do espectador em assistir a whodunits que já havia sido alimentado dois anos antes por Kenneth Brannagh e a sua adaptação de O Assassinato no Expresso do Oriente. Contudo, Rian Johnson não estava só interessado em desmascarar o assassino (o who), mas no modo como este realizou o crime e pôde permanecer oculto (o how) e nas engrenagens cinematográficas que estimulam o espectador a participar da resolução do mistério, um quebra-cabeças cujas peças estão sobre a mesa embora não tenhamos a mesma malícia e percepção de Benoît. Tamanho sucesso levou a Netflix a dar carta branca ao diretor para criar duas continuações e ainda engordou a poupança de Daniel Craig com o cachê de $100 milhões de dólares.
A primeira dessas sequências é Glass Onion: Um Mistério Knives Out (ah, esses horrorosos subtítulos brasileiros!), em que o bilionário Milen Bron (Edward Norton) convida seus amigos (ou deveria dizer “amigos”) para um final de semana na ilha remota onde habita. A influenciadora Birdie Jay (Kate Hudson, em uma versão contemporânea da Magda, de Sai de Baixo), o youtuber armamentista Duke Cody (Dave Bautista, ator de que gosto mais a cada filme) e sua namorada Whiskey (Madelyn Cline), a política Claire (Kathryn Hahn), o cientista Lionel (Leslie Odom Jr.) e a misteriosa Cassandra (Janelle Monáe). Benoît também é convidado para viajar ao encontro, sob a promessa de que terá um crime para desvendar. O detetive aceita na hora, pois, durante o período de isolamento do Covid-19, permaneceu em casa, enlouquecendo enquanto resolvia palavras cruzadas de jornal e jogos de mistério.
Um dos aspectos de que gosto na sequência é como Rian Johnson desenvolve quem é Benoît além das nuances que havíamos percebido no original: a vida doméstica, a orientação sexual a partir da participação de um cameo inesperado e o desejo patológico de resolver mistérios e de restaurar ordem ao caos posterior ao cometimento de crimes. Neste aspecto, ainda que o mistério de Glass Onion seja confessadamente inferior ao do original – inclusive, Benoît afirma e reitera a estupidez do criminoso -, o roteiro não o é no esforço de subverter as expectativas do espectador e ser disruptivo. Novas perguntas são feitas além de quem e como cometeu o crime, mas quem será a vítima e por que está sendo cometido?
A propósito, a disrupção está na essência do filme temática, no bordão de Milen Bron ou no fato de que aqueles reunidos atuam fora do sistema, e formalmente: Rian Johnson manipula o espectador adulterando a imagem, apresentado um acontecimento de maneira diferente a que havia sido apresentado antes ou introduzindo eventos sob ponto de vista diferente (se não cito exemplos é para os poupar de spoilers ou de pistas que farão você prestar atenção no que citei e perder a graça da brincadeira). Existe até o personagem que alerta o público para ignorá-lo. Mas, se a imagem ou a estrutura dos eventos é adulterada, como solucionar o crime? Rian sabe que aí está a pegadinha da comédia criminal, pois dependemos da genialidade de Benoît que colocará os pontos nos is no terceiro ato. Por este motivo, os personagens dirigem-se a Benoît como se estivessem quebrando a quarta parede, pois, na análise final, nada mais são do que duplos do espectador.
Entretanto, diferente de Entre Facas e Segredos, Glass Onion perde fôlego quando apela ao flashback longuíssimo e esclarecedor no centro da trama para proporcionar informações e a releitura dos acontecimentos que não possuía. Apesar de indispensável à solução do mistério, o flashback quebra o ritmo da ação e exige uma retomada da narrativa que cria um engodo no centro da trama.
Por outro lado, Rian Johnson diverte-se com a masculinidade frágil de Duke Cody, cuja arma na sunga é compensatória da genitália, ou de Milen Bron, enquadrando a sua cintura detrás da escultura de vidro de um pato (talvez de um ganso?), que simboliza a flacidez do sexo do personagem. Como gosto de Edward Norton. O ator é a cereja do bolo da comédia, com a oportunidade de revisitar o Narrador de Clube da Luta (no quadro da parede), brincar de ser Steve Jobs e até mesmo de ser cosplay do personagem de Tom Cruise em Magnólia, um guru sexual que ensinava os homens a dominarem as mulheres. Esta encenação é apropriada para a narrativa introduzir um vilão burro, embora se julgue inteligente e esperto, realizando a metáfora que há no título.
Pois uma cebola de vidro é o objeto contraditório cuja verdade transparece em seu centro e não exige qualquer esforço em retirar as camadas para chegarmos nela. O problema é que, com um diretor com domínio pleno e irrestrito de como manipular o olhar e a percepção do espectador, precisamos da ajuda de um Benoît Blanc para mostrar onde está o óbvio nesta divertida continuação.
Muitos diretores têm empregado o cinema como um processo terapêutico para recordar quem foram, enquanto discutem sua relação com a arte. É verdade que a arte já contém pedaços do autor, seja nos temas discutidos, seja em aspectos que os envolvem. Contudo, de uns tempos para cá, diretores têm empregado a sua vida e as suas experiências diretas ou indiretas como matéria prima da narrativa cinematográfica, “deixando” os bastidores para se tornarem heróis das histórias que contam. Se Roma somente adotava a perspectiva de Alfonso Cuarón dirigida à secretária doméstica de sua residência em um período específico no México, Belfast, Armageddon Time e The Fabelmans trazem os diretores ao centro da ação. Mas a obra autobiográfica de Steven Spielberg dá um passo além: no lugar do olhar ingênuo e condescendente infantil a temas sensíveis (a guerra civil na Irlanda ou a discriminação racial nos Estados Unidos), a apreciação de questões familiares do ponto de vista mais maduro adolescente ou jovem adulto.
O roteiro co-escrito por Spielberg ao lado de Tony Kushner (de Amor, Sublime Amor, Lincoln e Munique) inicia quando Sam, criança, vai com os pais pela primeira vez aos cinemas para assistir a O Maior Espetáculo da Terra. Apesar do temor de Sam com as pessoas gigantes na tela, o garoto fascina-se de tal maneira com a imagem que tenta reproduzir o acidente férreo na narrativa e registrá-lo em imagem, incentivado pela mãe a utilizar a câmera 16mm do pai. Aí é plantada a semente de Steven Spielberg para quem a câmera é instrumento de enfrentamento de traumas, pois ao exercer controle sobre a imagem produzida (refletida na palma de sua mão em determinado momento), controla também aquilo que o aflige, assusta e angustia. E The Fabelmans é a forma definitiva de fazer isso, desnudando a sua história e dominando a fração do mundo diante de si.
A narrativa é o modo de Steven Spielberg avaliar a relação que teve com o pai, Burt (Paul Dano), um workaholic cujas promoções obrigaram a família a se mudar de cidade para cidade até chegarem a Los Angeles e cujo pragmatismo orientou o pensamento prático de Sam. Ou a relação com a mãe, Mitzi (Michelle William, no papel típico pelo qual a Academia gosta de premiar), de quem obteve o incentivo e herdou o amor à arte, embora ainda com uma pitada de ressentimento com o relacionamento extraconjugal com Bennie (Seth Rogen, enxergado não como um destruidor de lares, mas como um sujeito divertido e por quem é fácil se envolver). Ou enfrentar o bullying antissemita que sofria no colégio. A imagem é o dispositivo que revela a verdade, não fatos, mas a verdade do autor, formulada a partir do produto de memórias, emoções e percepções.
Não falta domínio técnico à narrativa repleta dos elementos formais característicos da obra do diretor. No início do filme, Spielberg sublinha a forma como enxerga as crianças em seus filmes, enquadrando-as à altura do olhar, forçando o espectador a identificar-se com Sam e obrigando o pai Burt a descer ao nível dele, em vez de a câmera ser movimentada em sua direção. Ao lado do diretor de fotografia e colaborador habitual Janusz Kamiński, Spielberg transforma em tema recorrente (leitmotif) o agigantamento dos personagens que Sam tanto temia quando era criança. As figuras de autoridade são enquadradas de baixo para cima - a exemplo do pai, de Logan, ou dele próprio, no terceiro ato, quando acredita ter dominado a arte da imagem. Isso sem esquecer a brincadeira que realiza com o conceito de horizonte da imagem, convidando um diretor a interpretar o diretor da Era de Ouro no qual Spielberg se inspiraria.
No âmbito da sensibilidade, Spielberg atenua a pieguice do drama de amadurecimento com pitadas de humor (Judd Hirsch está impagável como o tio Boris, em um papel que devolverá o ator veterano ao Oscar mais de 4 décadas após ser indicado por Gente como a Gente). Já a metalinguagem, enquanto revisita os filmes caseiros que produziu, obrigou-o a utilizar a criatividade e os recursos práticos de outrora para criar o que hoje produz, com facilidade, através de efeitos visuais computadorizados. Isso sem contar com as referências aos seus trabalhos: de Tubarão, nas filmagens na praia do vídeo escolar, a Amor, Sublime Amor, na dança no colégio.
Já o elenco é afortunado em contar com atores profissionais talentosos e atores jovens (ou amadores) ainda melhores: Mateo Zoryon Francis-DeFord é adorável e expressivo como o jovem Sammy, enquanto Gabriel LaBelle tem carisma e presença para interpretar a versão adolescente. Contudo, é Chloe East, que vive Mônica, a namorada de Sam, que conquista o espectador com sua atuação extrovertida e divertida.
Apesar de o filme parecer autoindulgente como autobiografias naturalmente tendem a ser, na realidade The Fabelmans é uma carta de amor e empatia do diretor septuagenário à si mesmo, à família e à arte que ama, fruto da ciência, espontaneidade, criatividade, bom humor e sentimentalismo na medida certa. Se Steven Spielberg sempre criou obras-primas que justificassem os (raríssimos) tropeços de sua carreira, este, ao lado de Munique, são as grandes criações do autor neste século.
A carreira de Darren Aronofsky é o testemunho de sua habilidade em penetrar no íntimo dos personagens estudados em busca do que dirige suas obsessões e ansiedades, sem realizar pré-julgamentos nem concessões. A começar com o matemático de Pi, que buscou achar a resposta da existência detrás do número matemático, à bailarina de Cisne Negro, com o sonho de executar perfeitamente os passos do clássico Lago dos Cisnes, aos dependentes químicos de Réquiem para um Sonho e ao aventureiro em busca da eternidade em A Fonte da Vida, Aronofsky adapta a forma de seu cinema ao universo dos protagonistas. Daí o motivo de a forma de O Lutador, naturalista até, contrasta com a de mãe!, realista fantástica de horror, até chegarmos em The Whale, adaptação da peça de Samuel D. Hunter.
Nele, Brendan Fraser interpreta Charlie, um professor de literatura com obesidade mórbida, que ganha a vida como professor em cursos on-line e sobrevive no apartamento onde mora graças aos cuidados da enfermeira Liz (Hong Chau), irmão de seu ex-companheiro falecido. Certa vez, Charlie é visitado pelo missionário Thomas (Ty Perkins), que bate em sua porta e o socorre quando está tendo um ataque de pânico. A iminência da morte confere a Charlie o desejo de restabelecer os laços com a filha, Ellie (Sadie Sink), rompidos depois do divórcio com a mãe (Samantha Morton).
Não é a primeira vez que Darren Aronofsky trabalha com relações entre pais e filhos: havia feito isto em O Lutador, em que o autodestrutivo Mickey Rourke tentava reconectar-se com a filha, vivida por Evan Rachel Wood, ou em Cisne Negro, em que a relação com a mãe era foco de angústia para a personagem de Natalie Portman. Agora, a relação é melodramática (não no sentido pejorativo), pois nasce na dissolução do casamento e na distância entre pai e filha. Uma distância que Charlie deverá percorrer, literal e metaforicamente, caso deseje redimir-se.
Assim, apesar de ser um filme de câmara, ambientado em um mesmo ambiente, The Whale não é monótono (no sentido pejorativo da palavra, repito). Darren Aronofsky é competente em expandir e comprimir o espaço do apartamento quando a narrativa assim exige. Deste modo, a encenação explora o apartamento seguindo os movimentos vagarosos de Charlie e, ao mesmo tempo, ilustra a rotina do protagonista e a falta de mobilidade inerente a pessoas com obesidade mórbida, com acessórios que o auxiliem a deitar e levantar da cama ou a apoiar-se de pé no banho. Apesar de o espaço ser fixo, o tempo é fluido, ainda que corra linearmente: os cochilos do protagonista interrompem o fluxo da ação e criam a sensação de estarmos em um estágio moribundo, entre a vida e a morte, apropriada a esta semana da vida de Charlie.
Em frente às câmeras, Brendan Fraser ocupa a imagem de duas formas: fisicamente, diante da fisionomia do personagem, do tamanho da tela 4×3, bastante apertada e claustrofóbica, e dos primeiros planos em que o rosto do personagem ocupa a imagem por completo; mas também emocionalmente, pois a atuação delicada do ator esforça-se em ilustrar um homem que enxerga positivamente a tragédia em que está. Apesar de haver momentos de entrega à compulsão alimentar, a consequência da ansiedade por que atravessa, Charlie esforça-se em enxergar o belo até no comportamento grotesco da filha, que o humilha com frequência.
Por falar em Charlie, a direção prepara o espectador para o instante em que encontraremos Brendan Fraser na pele prostética do personagem. Durante uma aula do curso lecionado, a câmera aproxima-se da tela preta onde deveria estar a imagem de Charlie, sob o pretexto de que a webcam está danificada, e penetra na escuridão para jogar luz no personagem. Ao enxergar o ator, pude sentir dor e trauma, confirmado na incapacidade de realizar atividades corriqueiras, a exemplo de alcançar a chave que caiu sob a mesa. A maquiagem disfarça os pontos em que a roupa prostética encontra a pele do ator, enquanto modifica sua aparência: o cabelo escasso, as dobras no pescoço e o suor acumulado, as escaras visíveis durante o banho. Já Brendan aprende a caminhar e a se movimentar com o excesso de peso, e passa ao espectador a dificuldade inerente à obesidade mórbida.
Já o título remete à Moby Dick, o clássico escrito por Herman Melville, cujo ensaio Charlie lê e relê com a intenção de combater os constantes ataques de pânico. A razão será explicada na conclusão de The Whale, que subverte a forma até então apresentada – por exemplo, a falta de iluminação cede espaço à iluminação intensa – para alcançar, acredito, a conclusão mais positiva e esperançosa do cinema do diretor desde A Fonte da Vida. Um fim à altura de um protagonista cujos sofrimento e esperança conservamos dentro de nós, tal como as faces de uma mesma moeda.
A internet popularizou o adjetivo épico como sinônimo de memorável ou fantástico para classificar aventuras de super-heróis de encher os olhos do espectador, adotando o termo utilizado para designar o gênero cinematográfico de Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Gladiador e Coração Valente. Estes épicos são aventuras históricas e heróicas, com recriação cuidadosa de época, figurinos e cenários e cenas de ação ambiciosas, em que uma pessoa ou um grupo de pessoas enfrenta uma estrutura opressora na forma de leis ou de estados soberanos.
Entretanto, se você pesquisar na história do gênero, não encontrará épicos protagonizados por pessoas negras porque a indústria tratou de apagar sua história e seu heroísmo. Se O Nascimento de uma Nação (2016) apresentava o verniz da narrativa épica, A Mulher Rei é que melhor aproveita a característica do gênero ao trazer a história das Ahosi, as guerreiras do Reino do Daomé, que inspiraram as mesmas Dora Milaje de Pantera Negra (2018). Alvo de boicote devido a alegada falta de autenticidade da participação das Ahosi no combate à escravidão do povo africano pelos europeus, a trama inicia quando a jovem Nawi (Mdebu), depois de rejeitar o casamento arranjado pela família, é entregue ao exército liderado por Nanisca (Davis).
O roteiro de Dana Stevens emprega o recurso da personagem alienígena (Nawi), a fim de reproduzir o olhar desbravador do público ávido a conhecer o funcionamento e a dinâmica daquela comunidade regida pelo Rei Ghezo (Boyega), cuja confiança irrestrita na liderança de Nanisca a torna a monarca do exército de mulheres guerreiras. As Ahosi são a tropa de elite e linha de defesa contra o império em expansão de Oyo, cuja riqueza decorre da venda de homens e mulheres capturados ao comércio de escravos europeu, contra o qual Nanisca se coloca frontalmente. Ao invés de prosperar com a exploração do próximo, por que não com o comércio de óleo de palma?, propõe Nanisca. É uma proposta recebida com desconfiança e reticências pelo Rei.
Dessa forma, enquanto Nanisca, ao lado de Amenza (Atim), administra questões políticas e organiza a investida contra Oyo, Nawi é adotada sob as asas da guerreira Izogie (Lynch), que respeita e com quem aprende o que significa ser Ahosi. O design de produção de Akin McKenzie reconstrói o reinado de Daomé no ano de 1823, com figurinos rústicos costurados a mão, espadas e machetes de lâminas irregulares e penteados remissivos à personalidade das guerreiras. Enquanto isso, as coreografias de luta e a recriação da época compensam o desenvolvimento mais preguiçoso dos personagens e das subtramas: Amenza é a mulher sábia e política; Izogie, a brava e corajosa; Nawi, ingênua, embora moderna na utilização da pólvora; Nanisca, a líder honrada e de expressão fechada (a mulher badass, se preferir). As subtramas também não inspiram suspiros: há o romance entre Nawi e o escravagista pardo mas arrependido, ou a relação dela com Nanisca, com toque de rebeldia e insubordinação.
Também desgosto de como a direção de Gina Prince-Bythewood (de The Old Guard) adota o idioma que não o inglês para retratar o Outro, ou o inimigo, porque isto parece caminhar contra o tema narrativo de união contra o invasor europeu, que teria plantado a semente da desunião entre os povos do continente africano. Inclusive, repare em como a direção mostra os cadáveres negros no chão como símbolo da quantidade de vidas mortas para subsidiar um comerciante imoral e criminoso não importa em qual época que seja.
Em contrapartida, gosto de como a narrativa trabalha a igualdade entre homens e mulheres como princípio de fundação de Daomé, governado no mito por regentes de sexos opostos. Não precisa ser profeta para antecipar para onde a narrativa guiará o público, até porque o título não esconde esta ambição, mas é interessante em como há contradições esculpidas na submissão da Ahosi ao Rei Ghezo e na existência de exércitos rivais, que disputam a frente das ações de Daomé antes de entenderem que precisam se unir contra um inimigo em comum.
Ainda que A Mulher Rei não seja historicamente fiel, tampouco foram os épicos citados no parágrafo inicial, que também possuem sua parcela de reinvenções e omissões, e apresentam narrativas irregulares e elementos questionáveis. Assim, apesar de irregular e de às vezes incoerente, não há como ignorar o acréscimo do intenso e envolvente A Mulher Rei na tradição do gênero épico que enfim tem a oportunidade de contar as histórias que antes não pudemos conhecer.
Resta a Daisy Edgar-Jones (da ótima minissérie Normal People e do terror Fresh) a tarefa de adicionar algum nível de profundidade à encenação pedestre e água com açúcar de um drama sobre a superação de adversidades maiúsculas – o abuso e abandono familiar, a negligência social e a solitude em ambiente inicialmente hostil – até a descoberta da própria voz.
Se o ápice do cinema de super-heróis fosse nos anos 80 e 90, Sylvester Stallone teria sido um dos protagonistas. O ator estrelou a adaptação de Juiz Dredd, O Juiz, recebido com má aceitação do público e da crítica, e agora, a 4 anos de completar 80 anos, estrela Samaritano, que explora as possibilidades restantes do subgênero antes da exaustão e inevitável declínio.
Um terror que discute o papel do cinema na história e na criação de história e a atração do espectador através do olhar, sem, em momento algum, envergonhar-se da natureza da proposta narrativa que, se apresentada por um roteirista que não à altura de Jordan Peele, seria descartada de plano por produtores cegos às possibilidades infinitas da arte do impossível.
Alguns filmes têm a característica de não provocar nem aprovação, nem rejeição a ponto de inspirar uma crítica criada com paixão. Faz sentido, o frio desta Suécia pós-apocalíptica enrijeceu minha emoção, enquanto acompanhamos um grupo (para-)militar que deve levar um dispositivo misterioso (como o pé de coelho em Missão: Impossível) para deslocar a balança da guerra favorável a quem ainda mantém laços com o Estado.
A descontextualização promovida pelo roteiro não prejudica a narrativa, já que o objetivo da direção de Adam Berg não é expor as razões, nem as circunstâncias que levaram ao estado atual da sociedade no país. Seu desejo é de acompanhar o desejo de uma mãe, disposta a atravessar inúmeros obstáculos que colocam a sua vida em risco, com a promessa de que poderá se reencontrar com a filha.
Pouco importa qual a funcionalidade do dispositivo ou quem é quem naquele destacamento, pois Noomi Rapace oferece intensidade a sua personagem a partir da forma intensa com que enfrenta o que é posto diante de si. Mas falta à narrativa qualquer identidade visual que diferencie este de filmes análogos - tudo recoberto com a paleta invernal, a escuridão, cenas de ação eficientes mas protocolares.
Só o que resgata o filme da própria mediocridade é o desfecho mais ambicioso e tematicamente apropriado à visão cética e pessimista do Estado, e de como só o que resta à protagonista é o romantismo (literário) de acreditar reaver o livre arbítrio de sua vida.
O black horror denomina um subgênero do terror habituado em discutir a experiência da pessoa negra sobretudo nos Estados Unidos, diante do racismo, explícito e estrutural, que permeia aquela sociedade. Corra!, A Lenda de Candyman, O Que Ficou para Trás são exemplos de um gênero que utiliza metáforas para retratar a história da pessoa negra dentro de uma sociedade majoritariamente branca.
E Fantasmas do Passado, da diretora estreante em longas-metragens Mariama Diallo, faz isto de uma forma exemplo em revisitar temas já debatidos mas de uma forma ainda mais aguda. A história acompanha 3 mulheres negras (aluna, professora, diretora) vítimas de um racismo velado - com esta ou aquela exceção - em abraços falsamente quentes de colegas de classe ou do trabalho, e como estas 3 não conseguem enfrentar o mal que paira sobre elas porque não aprendem a trabalhar juntas.
Tome Jasmine, que por advir de um subúrbio de classe média alta, crê não pode ser vítima e, portanto, dispensa a ajuda da diretora Gail, que assiste à residência onde habita ser devorado por dentro por larvas de insetos (como a sociedade também é consumida pelo racismo). As dinâmicas andam paralelamente, embora se entrecruzem para montar um todo do desamparo que é ser destacado por ser diferente. No caso dentro de uma universidade majoritariamente branca e que utiliza a representatividade da boca para fora, apenas.
Ao mesmo tempo, as únicas pessoas negras são aquelas em posição de servitude: cozinheiras, serventes, zeladores, jardineiros, criando a tensão racial que a diretora almeja discutir. Uma da ausência de uma fraternidade transformadora e que poderá ajudá-las a enfrentar o pesadelo desta narrativa, banhado em um vermelho expressivo e incandescente típico do inferno, sem jump scares, mas uma atmosfera cheia de uma violência racial não dita, subentendida, insinuada.
É uma estreia promissora de mais uma jovem diretora que tem muito o que falar através da linguagem do terror.
Do que mais gosto na direção de Joe Carnahan é como resgata os mitos do velho oeste, adaptados dentro de um filme policial contemporâneo. Joe não tem medo de buscar nos anos 80 e 90 suas inspirações para um bom tiroteio, não tem receio de inserir o humor inconsequente e ácido, e faz isto enquanto reverencia uma das heroínas mais fo** do gênero: a implacável Val.
A narrativa inspira-se em O Álamo e Assalto ao 13º DP, além do faroeste spaghetti de Sergio Leone, para contar uma história com data e hora de terminar: no intervalo de uma noite, mafioso, assassino contrato, polícia e meio mundo vão trocar tiros até o duelo final. Não falta adrenalina em um filme que não exige muito do charme sacana de Gerard Butler, de Frank Grillo, que se tornou um astro do cinema de ação B, de Toby Huss, como um daqueles psicopatas divertidinhos.
E, claro, Alexis Louder! Sua Val é uma força da natureza que mantém a calma mesmo em momentos agudos e em que a vida estará em risco. É uma neo-pistoleira do faroeste, que respira fundo antes de decidir o que fará e que parece ter tudo sob controle graças à sobriedade e frieza com que encara esta noite sangrenta.
O filme não se estende além do necessário, sabe o que tem de fazer para ser eficiente, não milita em voz alta, mas em ações, e ainda conclui com a oportunidade de que vejamos Val de novo. Eu já estou ansioso por isso.
A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam. Apesar de oriunda de um soldado nazista, esta citação é uma máxima em qualquer conflito. E O Bombardeio a ilustra muito bem.
Já na véspera do final da 2ª Guerra Mundial, com os resquícios de forças alemães sendo combatidas dentro do continente europeu por tropas da resistência aliadas à Inglaterra, um quartel general da polícia nazista é o alvo e a missão parece simples. Mas o prólogo do drama de guerra deixa claro que não é bem assim.
Depois que um caça metralha um táxi de civis, um garoto desenvolve uma afasia que o impede de falar. Enquanto isto, uma freira questiona a sua fé, um oficial nazista a sua filiação ao regime, pais e filhos vivem tranquilamente, pois já normalizaram a rotina promovida pela guerra.
Essas vidas são pinceladas e se tornam modelos do que a narrativa pretende questionar. Como acreditar em Deus no mundo que mais parece haver sido abandonado por Ele? Como recuperar a fala se não há mais gritos que podem ser ouvidos? A articulação das personagens leva a ação ao evento que dá nome ao título e que, em virtude de um erro, causa uma tragédia em que os mais inocentes se tornam vítimas.
O Bombardeio não poupa o espectador. Demanda empatia em aceitar o "heroísmo" de um soldado nazista, critica os Aliadas por haverem agido com negligência, questiona a fé no mundo dos homens e ainda proporciona angústia na forma do que cai do céu (bombas, destroços, terror). Não recear o que vem do céu, mas o que vem dos homens, é a forma de sobreviver o pesadelo deste drama de guerra dinamarquês. Ao reconhecer que a maldade não provém de uma força mística, mas de nós mesmos, a narrativa propõe uma conclusão forte e impiedosa.
O mistério de Águas Profundas é sustentado sobre a maneira como Vic assiste e reage à sexualidade da esposa Melinda, que parece (repito, parece!) torturar o marido com o acúmulo de parceiros extraconjugais. Neste relacionamento patológico, jogam um homem apático, contente em enxergar e convulsionar por dentro o prazer da esposa, uma mulher sufocada em uma vida que não desejava mas à qual fora atraída, e uma filhinha que já demonstra a contaminação pelo desamor que une os pais.
Águas Profundas acerta quando anda na corda bamba entre o prazer de assistir ao prazer do outro e a constatação de saber que este prazer não é compartilhado consigo. E mesmo que a câmera fetichize Ana de Armas, como a maioria dos diretores (homens) que a dirigiram, pelo menos isto faz sentido dentro da lógica da narrativa ao revelar o olhar de Vic a ela. Aliás, Adrian Lyne tenta e, a meu ver consegue, desarmar a armadilha de ser acusado de sexista em focalizar a crítica em Vic, ao invés de penetrar debaixo do que move Melinda, um enigma.
Igual a filmes passados (Proposta Indecente, Lolita e Infidelidade, com que este filme tem similaridade), Adrian Lyne critica homens patéticos e, estes sim, sexistas, que enxergam mulheres (e até crianças, no caso de Lolita) como um objeto de seu prazer. Um prazer manifestado de forma voyeur às vezes - a inspiração da obra do diretor é Hitchcock - um prazer que priva a liberdade e subjuga a mulher ao parceiro. Acho que, no fundo, Adrian sabe caminha em território minado, então toma a decisão acertada de entrar na psiquê do homem. (E quando tentou penetrar na da mulher, em Atração Fatal, realizou o seu, ironicamente, melhor e mais sexista filme).
Águas Profundas funciona dentro do véu de mistério com que cobre as ações de Vic. Um mistério que acompanha até o hobby na criação de caramujos, animais pegajosos e venenosos, iguais a ele. E Adrian emprega Ben Affleck muito bem, valendo-se do porte avantajado do ator combinado com olhares mortos. Ana de Armas comunica-se da mesma forma: pelo olhar, e a troca final é significativa assim como a frase que emoldura a intenção do thriller: pois se Melinda não teme Vic é porque entende que, se este matou seu amante, é por amá-la. Um amor doentio ainda é amor, deve pensar.
Pena que Águas Profundas escorrega feio na borda da piscina quando insere um flashback que remove, a força, a dúvida que existia em nós. E mais, com um encontro fortuito na floresta e uma das perseguições mais estúpidas de que me recordo, Águas Profundas arruína parte do prazer existente na narrativa, que, ainda assim, é um thriller eficiente sobre um relacionamento canceroso.
Por detrás da fábula fantástica deste conto paralelo ao do Rei Arthur, existe a história de um jovem adulto que insiste em não amadurecer e permanecer com um estilo de vida desregrado e irresponsável. Daí porque este trabalho de David Lowery (Sombras da Vida) encontra eco no mundo de hoje em como, mais e mais, homens continuam agindo e comportando-se como adolescentes quando deveriam agir com responsabilidade.
A fantasia é a forma de retratar esta jornada espiritual de Sir Gawain, deixando ao espectador a tarefa de significar a raposa, as gigantes ou o cavaleiro verde do título. David Lowery, tal como não pretendia dar respostas ao fantasma debaixo do lençol, reforça o poder da imagem e o modo como envolve nossos sentidos: em certo momento, vemos a câmera girar 360º em torno do corpo de um personagem, que vira um esqueleto antes de retornar à forma humana. O que David desejava, os espectadores se perguntam. Não há resposta explícita para isto. Uns podem interpretar como "se Gawain permanecer inerte, irá morrer", outros podem associar com o giro do terceiro ato que evidencia o que poderia ser versus o que de fato é.
Sem gabarito, A Lenda do Cavaleiro Verde desapontará quem gosta de seu filme explicado e recompensará quem está disposto a viajar em uma odisseia com uma fotografia reflexiva, uma ênfase em parte ambiental, em parte vertida à podridão do caráter, e uma direção tão enigmática quanto a decisão do Cavaleiro Verde no fim do filme. Mas o ritmo, ah o ritmo, é incerto. Ora contemplativa, ora voltada à ação mais direta, a montagem é insegura em sua abordagem e termina por estender sequências cujos argumentos havia sido exauridos instantes antes a bem de uma forma prolixa que estende a duração para 130 minutos.
É um ritmo que sentimos e que desgasta a potência da jornada de Gawain, que basicamente se resume a: aceitar seu destino, ou seja, amadurecer no homem que deve ser, ou permanecer sob a saia da mãe e a boa graça do rei, como covarde imaturo que teima em ser.
Tubarão é menos um terror sobre homem versus natureza, mais sobre a conquista do medo. É menos sobre um tubarão assassino, mais sobre a atitude irresponsável do prefeito em manter as praias abertas e gozar o boom da economia no verão. É menos sobre o tubarão, mais sobre três homens tentando resolver suas diferenças somente para descobrir que, incapazes de unir forças, o heroísmo relutante, individualista e sortudo que salvaria o dia.
O clássico de Steven Spielberg amadureceu de tal forma que continua sendo paradigma para filmes similares: além do contexto econômico e humano em que se apoia, o fato de os tubarões animatronics haverem mau funcionado, permitiu que Spielberg investisse menos em efeitos e mais na sugestão. É um terror que não deve aos exemplares de Alfred Hitchcock por compreender que o medo é mais eficiente quando está construído dentro de nossa imaginação.
Além da maestria em compor imagens e movimentar a câmera, que viria a ser a marca registrada do diretor, Spielberg também constrói significados dentro da imagem a cada momento em que o xerife Brody encara o mar e a vastidão do que o espera por pilares que lembram a boca de um tubarão ou mesmo pelo esqueleto de uma destas máquinas de matar. E a coragem do jovem Spielberg (aos 27 anos) impressiona, já que não hesita em ameaçar a vida de crianças quando o roteiro exige esta crueldade para mostrar ao espectador que nenhuma viva alma está segura.
Além disto, o trio de atores centrais, Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw, entende cada particularidade de seus personagens que os transforma em mais do que arquétipos (o homem médio colocado entre um rico e presunçoso cientista e um operário ex-combatente de guerra).
Tubarão é um clássico nascido na pior das condições - o orçamento quadruplicou, o tempo de produção triplicou em razão das filmagens em alto mar e dos problemas com os tubarões mecânicos - e é a prova de que um artista nato, mesmo que inexperiente, retira o melhor que pode da arte cinematográfico quando estimula o cérebro, não o olhar imediatista, com o terror do desconhecido. É aquilo, menos costuma ser mais, especialmente nas mãos de um cara como Spielberg.
É difícil reproduzir, em tempos de do pós-horror, terror psicológico ou elevado - termos discriminatórios utilizados indiscriminadamente por alguns críticos e produtores de conteúdo para diferenciar um terror metafórico, sociopolítico, de outro satisfeito com as ferramentas do gênero -, as circunstâncias percebidas por Wes Craven e que fizeram de Pânico um marco no gênero.
Não é apenas a metalinguagem pela metalinguagem, mas como esta serve de meio e fim para discussão do cinema slasher, em que algum mascarado toca o terror na juventude de uma cidadezinha. Incapazes de refazer Pânico em um tempo em que a cabeça do público mudou, a dupla de diretores desta versão percebe que a melhor alternativa é deslocar a crítica a outra tendência, a dos soft reboots ou requências (continuações que não reiniciam mas homenageiam o origina, e só ele, com a reconstituição de cenas e o retorno de atores-legado).
Não que Pânico 4 já não houvesse feito isto, tão bem quanto, é só que esta versão é mais consciente do filme que é e esta liberdade auxilia a subverter expectativas desde a cena inicial até a última. Não falta gore nem o desejo de desmascarar o/os assassino/s, nem de torcer pela morte do Ghostface (por mais doentio que seja escrever isto). Se a série nunca demonstrou a vocação de realizar crítica social, apenas cinematográfica, esta requência abraça isto com uma crítica dirigida ao fãs alienados por fóruns de debates, cegos pelo cânone que reverenciam a ponto de não perceberem que a arte não é um fã-service, um buffet de referências a ser consumido.
Arte é coragem. Se existem fãs de Pânico, é porque Wes Craven não se dobrou a convenções e criou suas regras. Então, enquanto diverte como entretenimento que é, Pânico apunhala o tipo de fã que criticou Os Últimos Jedis por ousar. Se na forma e execução, Pânico é mais do mesmo - isto é bom! -, na essência é um terror maduro que reconhece a verdadeira identidade dos assassinos mascarados de hoje em dia.
A brutalidade policial é um tema recorrente da produção documental norte-americana, tantos são os crimes cometidos de farda contra, em particular, a comunidade negra, na prova cabal de racismo sistêmico.
Este documentário convida o espectador a conhecer dois casos, ambos em Cleveland. O primeiro, que é a linha mestre da narrativa, o de duas pessoas negras, desarmadas, assassinadas com 137 tiros, por 13 policiais depois de serem perseguidores por mais de 60 viaturas. Coisa boa não devem ter feito, já começa a questionar o tiozão do WhatsApp. O que eles fizeram foram ter um carro com escapamento defeituoso, cujo som parecia com o disparo de uma arma de fogo. Além deste, o assassinato de um garoto de 12 anos que brincava com uma pistola de ar comprimido no parque público.
A narrativa recorda as circunstâncias do caso, a partir do ponto de vista dos familiares das vítimas, dos promotores, do sindicato que representa a polícia, do julgamento e da opinião pública a partir do programa de rádio do recém falecido ativista Mansfield Frazier. É o documentário que ferve o sangue de quem assiste, enxerga onde começa e termina a verdade e que muito deve ser reformado na polícia americana para que volte a ser (já foi?) mais justa e digna.
Se tirada a camada de contação de história e enxergado o subtexto de drama autobiográfico - como costumam ser, em maior ou menor grau, os filmes de Woody Allen -, O Festival de Amor acaba sendo um retrato desapaixonado de um autor na velhice e desencantado com a arte contemporânea e a própria vida, mas que continua se dedicando ao cinema por não saber realizar diferente.
Woody utiliza Wallace Shawn como alter-ego - o que é um presente ao ator veterano, acostumado a interpretar papéis de menor relevância e aquém ao seu talento - para discutir a mortalidade, uma temática que o aflige, mas que não parece amedrontá-lo. A morte literal, e todas as implicações woodyallenianas em tratar todos os demais problemas da vida como menores diante dela, e a metafórica de um relacionamento, cujo cadáver é conservado por conveniência por Mort e Sue. E ainda a morte do cinema, a partir da homenagem aos seus cineastas favoritos.
Por se passar em San Sebastian, durante o festival que leva o nome da cidade, as recriações de clássicos de Orson Welles, François Truffaut, Godard, Ingmar Bergman, Luís Buñuel e Fellini ressalta a importância do cinema europeu para proporcionar o amadurecimento do cinema americano além dos finais felizes. Claro, Woody se coloca, através de Wallace, como este conhecedor da arte cinematográfica dita "de qualidade" e promove uma crítica ao cinema espetáculo que palestra detrás de centenas de milhões de orçamento, como se a utilização da arte para defender que "a guerra é ruim" envergonhasse os antigos mestres de outrora cujos filmes Woody devorava. Não é a mensagem, é a obviedade dela.
Eu não discordo inteiramente de Woody, embora a teoria - utilizar um festival de cinema como instrumento para um festival de homenagens - seja melhor do que a prática, já que Woody se mostra preguiçoso em sua curadoria de trechos... óbvios. Eu até entenderia se o público-alvo dessa dramédia fosse aquele mesmo que seu protagonista critica. Não é.
Woody, que a esta altura parece haver esgotado seus temas, requenta o adultério de Meia-Noite em Paris, embora noutro figurino, e alimenta quem o acusa de sexista. Em contrapartida, seus diálogos continuam afiados ("Ele quer criar um filme que acabará com a guerra entre Israel e Palestina!", "Ah, então ele está fazendo uma ficção-científica?") e sua encenação ainda mais madura, com planos longos, bem fotografados por Vittorio Storaro (rachei na cena do consultório médico, durante a ligação telefônica à médica).
Como fã da obra de Woody Allen, eu me alegro somente em continuar assistindo a seus filmes, ainda que desleixados, preguiçosos e menos inventivos ou polidos do que tinham o potencial de ser. E, mesmo com filmes assim, não há dúvida de que Woody já está, há muito tempo, no mesmo patamar dos ídolos cinematográficos que homenageou.
A violência policial é apenas um dos muitos sintomas da doença do Estado brasileiro, e o diretor Caio Cobra diagnostica, didaticamente, quem são os culpados, as mazelas que devem ser combatidas e utiliza Bianca Comparato como porta voz.
Só que criticar a falta de educação e de oportunidades ou o descaso das autoridades que lucram com a guerra nas comunidades não é descobrir o fogo. É mencionar o óbvio, tanto quanto narrar Intervenção a partir do ponto de vista de uma personagem idealista que, ante a realidade brutal e o pragmatismo de um chefe de boa índole e más ações, derrete neste caldeirão diante do espectador.
Eu gosto de algumas decisões de Caio Cobra, como omitir a presença de autoridades ao máximo de forma análoga a como desaparecem da vida das comunidades exceto em aparições na televisão ou dentro do fórum. Já outras decisões são indefensáveis, a exemplo da "inocente" atingida no fogo cruzado e apresentada como membro do tráfico de drogas. Não é que, naquela situação, ela não poderia ser inocente, é só que isto reduz o impacto do acontecido.
Intervenção tem as cenas de ação convencionais no morro, que ficaram popularizadas por Tropa de Elite e recondicionadas em Alemão, e tenta humanizar a polícia através dos membros e da fragilidade institucional de uma organização que aprova calouros para agirem em áreas para veteranos. Não é uma má ideia, embora não leve a nenhum lugar que já não conheçamos.
Dentre todos os (cômodos) caminhos para realizar uma continuação, Lana Wachoswki escolheu o menos óbvio: desconstruir o clássico de 1999 sem desafiá-lo de frente. É que The Matrix Resurrections é uma continuação direta e nostálgica - resgatando momentos do original a partir da reprodução de vídeos da trilogia e também da reimaginação pela encenação de momentos que parecem déja vu daqueles - porém nem por isto se acanha em ser apenas mais do mesmo.
Onde havia filosofia, agora existe a crítica ao materialismo artístico, na crítica à apropriação do gosto do público pela indústria da arte como a forma de "entregar" apenas o que deseja "consumir". Lembra do que discutíamos semana passada sobre oferta e demanda, pois é, é isto o que a narrativa debate, utilizando-se como contra-exemplo para tentar convencer o público a abrir a mente ao diferente. Além disto, onde havia ação, agora há amor. As cenas de ação, executadas com menos qualidade do que na trilogia original, apostam em cortes mais rápidos, mais difíceis de serem apreciados por inteiro. A inovação tecnológica é esquecida e mesmo criticada, a exemplo do bullet time que tanto fez auê em 1999. Resta Neo e Trinity como os motores da narrativa e que inspiram a devoção de Bugs e dos demais como se fôssemos nós.
Enquanto o original bebia da fonte de Alice no País das Maravilhas, este prefere Alice através do Espelho - item que desempenha papel maior do que antes -, em como Neo busca despertar Trinity do transe que é o equivalente a tentar despertar o espectador da mesmice que, na opinião de Lana Wachowski, tem sido o cinema. E não apenas este, mas também as ramificações noutras artes (os games, por exemplo).
Assim, embora não seja revolucionário como o de 1999, que informou a produção de ficção-científica e ação e os efeitos visuais dos 20 anos passados, The Matrix Resurrections é ambicioso. Poderia ter aceitado a missão de "reparar" os erro apontados por alguns na trilogia original, mas preferiu pegar o fan service, retrabalhá-lo de formas inesperadas e proporcionar a continuação mais inusitada de uma superprodução de que me recordo enquanto escrevo (Thor: Ragnarok andou por este caminho, mas sua mudança era de abordagem, não de espírito).
É uma obra originalíssima mesmo sendo uma sequência, adaptada para refletir os valores de hoje, não os de ontem, removendo aquilo que pareça binário na guerra entre humanos e máquinas e usando o amor como forma de curar os males do mundo, o que Lana, ao lado da irmã Lily, já havia ensaiado em Sense8. É um filme que tem crescido a cada dia em que penso nele, e não duvido que quando o revir, goste ainda mais.
O tema mais importante tratado em Canto do Cisne não é abordado de frente pela narrativa. Ele é sublinhado por nossa percepção enquanto receptores da obra de arte que apresenta a relação do protagonista diante do procedimento de enfrentamento do luto (remissivo a Black Mirror). A narrativa toma por ponto de vista o de Cameron, que vítima de uma doença terminal, decide clonar-se para que sua família não sinta a dor de sua morte. Ao longo de 100 minutos, encaramos como este homem lida com a ideia de despedida e se relaciona com aquele "algoz" que o afasta de sua família para poder continuar a história que havia construído.
Este duelo de ideias é fortalecido pela atuação competente de Mahershala Ali, além de participações de Awkwafina (uma das participantes do experimento) e Glenn Close (quem chefia). Mas, nem de longe, o drama dele é o que me chamou mais atenção nesta ficção-científica, que como todo bom filme do gênero, precisa provocar questões morais, éticas e filosóficas. No caso, apesar de a narrativa não meter o dedo no vespeiro que é um homem tomar a decisão de que a família não vivencia o luto, o espectador (eu no caso) fiz isto com muito prazer.
Já que fala muito sobre o tipo de marido/pai Cameron é/era, que toma uma decisão egoísta de decidir o que a família deve viver e o que não deve. O luto é um elemento formador do caráter a partir do sofrimento e saudade que um ente querido provoca ao se despedir, e esta espécie de luto "reverso", que é a despedida de Cameron dos entes queridos é trabalhada como espelho para analisarmos o processo que está sendo tirado de sua esposa e filho em troca de um conto de fadas. Mesmo que o filme se acovarde de tocar nisto com a hombridade que deveria, o fato de provocar este questionamento já revela a força da narrativa.
Além disso, gosto de como o design de produção adota um visual limpo, minimalista, que lembra a mesma Apple que distribui o filme e que comenta sobre esta visão binária de Cameron em não enxergar o conflito ético que sua decisão provoca ao seu redor. É como se visse a si mesmo como um príncipe encantado e não percebesse que também pode ser o dragão que está tomando de sua família o direito de poder viver o luto.
Gosto de como Joachim Trier (Oslo 31 de agosto, Mais Forte que Bombas) generosamente desenvolveu um estudo de personagem sobre Julie, mesmo correndo o risco de errar a mão. A questão do lugar de fala vem a mente, mas desde que o artista trabalhe com empatia, a chance de desandar a receita diminui consideravelmente. Aqui, a partir de capítulos subdivididos, o diretor propõe um olhar abrangente em 12 capítulos (que podem ser sugestivos dos 12 meses do ano, e assim dar esta sensação de totalidade).
O conflito dramático pode existir em função de um relacionamento, já que a crise da narrativa inicia a partir de um flerte em uma festa, mas a direção não tenta resumir Julie a isto. Existe muito do que este desejo e que se materializa em como ela enxerga a vida de modo inseguro, até ansioso, tentando decidir qual será sua profissão, com quem quer se relacionar, como se sente consigo mesmo. O sucesso de Joachim está em entender os dilemas que qualquer pessoa sente no mundo de hoje e adaptá-los à personagem, sem julgá-la, enquanto reconhecer que, por ser mulher, enfrenta desafios diferentes do que seriam caso fosse homem.
A atuação de Renate Reinsve, que venceu o prêmio no festival de Cannes do ano passado, tem uma naturalidade gravitacional, que arrasta o espectador para a sua órbita onde permanece enquanto assiste a mundanidade de sua vida como se fosse uma peça de William Shakespeare. Julie é atraente como personagem por ser um espelho a mulheres, e também homens, que correm para encontrar seu lugar no mundo. E Renate compõe a personagem com um misto da exploração do eu, similar à curiosidade de Amélie Poulain, com uma resignação de quem não tenta pedir desculpas, que lembra a Fleabag, ao perceber as escolhas que tomou como parte de quem ela é, muito mais do que um conjunto binário de certos e errados.
Como faltam comédias românticas iguais a esta, que abraçam o espectador com o desejo de ver o casal título junto diante das dificuldades apresentadas. A partir da composição de Renato Russo, cujas passagens são reproduzidas sem o alarde de parecerem um fan service (Eduardo joga futebol de botão com seu avô de um jeito bem casual, enquanto Mônica fala de Bauhaus e Nouvelle Vague dentro de uma conversa casual), temos um romance que, semelhante ao visto em Licorice Pizza, desafia o conceito de maturidade quando coloca uma mulher adulta relacionando-se com um jovem à beira de prestar vestibular.
É uma premissa que revela o estado emocional de Mônica depois da perda do pai e como este caminho sombrio a leva a conhecer um jovem de alma vibrante, cuja ingenuidade típica da idade representa aqueles mesmos valores que buscam no amor. Enquanto vemos o romance florescer a partir da osmose de cultura, conhecimento e vontade de enxergar o mundo a partir de um olhar mais simples que flui de uma parte para outra e vice-versa, o conflito que os ameaça é bem melhor elaborado do que mentiras, traições ou outros romances. Já que a imaturidade e mesmo a dureza do coração são obstáculos tratados com realismo e naturalidade por René Simões.
A direção é gostosa, por resgatar um período nostálgico do tempo inspirado pela canção, mas é também remissiva aos dias de hoje, já que tudo o que está acontecendo é em um período simultâneo ao regime militar, cujas raízes ainda podem ser enxergadas expostas na cabeça de muitos. Tudo criado a partir de um contraste que favorece a beleza dos quadros, sem esquecer a densidade e textura emocionais necessárias para que o romance de Eduardo e Mônica não seja apenas água com açúcar.
E disto não tem nada, muito por conta da atuação de Alice Braga. Difícil não se apaixonar pela composição da atriz, que mescla um inconformismo com rebeldia de quem deseja criar o caminho do sucesso rejeitando aquele estabelecido pela mãe (e pelas normas sociais e tradicionais), embora não deixe transparecer um retrato unidimensional de uma mulher forte e inabalável. Sua Mônica sente; sua tristeza machuca, seus sorrisos contagiam. Já Gabriel Leone tem um papel mais difícil porque Eduardo tem uma trajetória mais óbvia, tentando provar a Mônica (e a nós) que sua idade não é sinônimo de unidimensionalidade. Assim, Gabriel trabalha as expectativas óbvias que criamos em torno dele e não as subverte. Pelo contrário, pede que enxerguemos além delas e encontremos o jovem idealista e apaixonado que um dia podemos ter sido.
No processo, René, Alice e Gabriel transformam a canção que embalou amores e romances no filme que deveria ser, fazendo jus a Renato Russo sem deixar de ter identidade própria.
Além de já haver assistido a histórias de amadurecimento além da conta, também estou familiarizado com a ideia de escrever de si mesmo com a autocrítica em relação a seus atos e calorosidade quanto àqueles que estiveram juntos nesta caminhada. Este trabalho dirigido por George Clooney, que a cada filme perde a personalidade apresentada em Boa Noite, Boa Sorte e Tudo pelo Poder, bate nas mesmas teclas mas com atuações que cativam por nos pegarem desprevenidos: Christopher Lloyd e sobretudo Ben Affleck ajudam esta narrativa a agradar, mesmo quando se mantém no conforto do lugar comum.
O roteiro é estrutura na memória distante de JR, quando é obrigado a se mudar, com a mãe, para a residência do avô, e na memória próxima, já na faculdade, quando decide que irá escrever as memórias acerca de sua vida. Pode haver histórias de vida mais cinematográficas do que a de JR, mas não há como diminuir a trajetória individual de cada um, e George Clooney tenta manter um otimismo inabalável pela narrativa - nem que nuvens espessas cubram aquela família.
Melhor do que o texto propriamente dito é a reconstrução de época, evocada nas canções do período e nos figurinos - mas, de novo, nada que não houvéssemos visto antes e até melhor, considerando o êxito de Licorice Pizza, lançado no mesmo ano e que tem uma abordagem semelhante. De todo modo, mesmo que aquém às possibilidades de seu diretor, este drama tem o benefício do aconchego. E tem estado mais e mais infrequente encontrar filmes gentis e carinhosos com os personagens que povoam seus mundos, mesmo que este mundo não seja tão interessante quanto outros.
A Babá
3.0 97 Assista AgoraEm Nanny, o terror é a ferramenta escolhida para discutir a situação de Aisha (Anna Diop), uma imigrante ilegal senegalesa, que consegue um emprego de babá para um casal rico em Manhattan com a intenção de viabilizar a vinda do filho, que ficou sob os cuidados de sua família no Senegal. À medida que a trama avança, a relação com os patrões desanda e uma presença sobrenatural ameaça o desejo de Aisha em se reunir com o filho, colocando em risco até a pequena Rose, de 5 anos.
Logo chama a atenção a ambientação do designer de produção Jonathan Guggenheim, que torna impessoal, frio e hostil o apartamento onde moram Amy (Michelle Monaghan) e Adam (Morgan Spector), apesar de ser amplo e espaçoso. A ironia ainda está presente no figurino com que conhecemos Amy: um macacão alvo como a neve, enquanto constrói uma relação de proximidade falsa com Aisha, ao recebê-la com um abraço. Já Mark, ausente da família e recluso dentro do escritório, demonstra ter segundas intenções para como Aisha.
Engana-se, porém, quem pensa que Aisha se coloca na posição de vítima. O roteiro escrito por Nikyatu Jusu, que também dirige, cria uma protagonista ciente dos direitos que possui. Aisha se impõe à família, não aceita o pagamento abaixo do combinado em razão de horas extras acumuladas, muito menos a crítica de Amy ao modificar a alimentação de Rosa para a comida que prepara e compra com o dinheiro do próprio bolso. Além disso, não tarda para que haja uma briga de egos entre Amy e Aisha ante a preferência de Rose pela última, com quem convive a maior parte do tempo. É uma crítica em mão dupla: primeiro, aos pais que terceirizam a criação dos filhos; depois, à Aisha, que abre mão (temporariamente) do filho a fim de cuidar da filha dos outros, deixando-o também aos cuidados de terceira pessoa.
Inclusive, o ciúme do garoto literalmente transborda em linguagem de terror. Aisha acredita que o cômodo que ocupa está sendo inundado; noutro momento, que uma sereia a agarra em direção ao fundo do mar; Aisha ainda avista a sombra de uma aranha gigante na parede ou uma cobra na cama. Alguns destes momentos envolvem a água, que desempenha uma função específica na trama, outros parecem inseridos casuisticamente e pouco comunicam em termos de metáfora. No lugar, tem um papel mais diretor em criar a atmosfera de delírio da protagonista, acentuada pela trilha sonora de Bartłomiej Gliniak e Tanerélle, que combina sons desconcertantes com instrumentos musicais senegaleses, e a direção de fotografia de Rina Yang, cujas cores e iluminação expressivas conferem ares expressionistas ao terror de Aisha.
Ainda assim, não há como ignorar a sensação de falta de estrutura da narrativa, incapaz de interligar a vida pessoal de Aisha - o relacionamento com Malik (Sinqua Walls) - com a vida profissional. A sensação que tive é de que o trabalho de babá sufoca a vida pessoal - o que faz sentido, é verdade -, embora não haja instante em que Aisha demonstra inconformismo quanto a isto. Além do mais, Nikyatu Jusu trabalha tanto em cima da reviravolta, em que oferecerá uma explicação para os fenômenos sobrenaturais (alguns deles, pelo menos), que quando chegou tive a impressão de que havia desvendado o que ia acontecer bastante tempo antes.
Para piorar, alguns dos eventos são acomodados na narrativa de qualquer jeito, sob a parca justificativa de se tratarem de alucinações. Ora, na casa vigiada 24 horas por dia, qual a forma de justificar erguer a faca para a pequena Rose, mesmo que estivesse sendo tomada por visões sobrenaturais? A necessidade de criar momentos impactantes, sobretudo no ato final, prejudica a construção do terror mas não dilui a força que há na atuação de Anna Diop e na discussão trazida à primeiro plano sobre a terceirização da criação dos filhos e a culpa decorrente da negligência parental.
Glass Onion: Um Mistério Knives Out
3.5 652 Assista AgoraAlém de conquistar a merecida indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original, Entre Facas e Segredos ainda criou um séquito de fãs fiéis de Benoît Blanc, o detetive interpretado por Daniel Craig, e revitalizou o prazer do espectador em assistir a whodunits que já havia sido alimentado dois anos antes por Kenneth Brannagh e a sua adaptação de O Assassinato no Expresso do Oriente. Contudo, Rian Johnson não estava só interessado em desmascarar o assassino (o who), mas no modo como este realizou o crime e pôde permanecer oculto (o how) e nas engrenagens cinematográficas que estimulam o espectador a participar da resolução do mistério, um quebra-cabeças cujas peças estão sobre a mesa embora não tenhamos a mesma malícia e percepção de Benoît. Tamanho sucesso levou a Netflix a dar carta branca ao diretor para criar duas continuações e ainda engordou a poupança de Daniel Craig com o cachê de $100 milhões de dólares.
A primeira dessas sequências é Glass Onion: Um Mistério Knives Out (ah, esses horrorosos subtítulos brasileiros!), em que o bilionário Milen Bron (Edward Norton) convida seus amigos (ou deveria dizer “amigos”) para um final de semana na ilha remota onde habita. A influenciadora Birdie Jay (Kate Hudson, em uma versão contemporânea da Magda, de Sai de Baixo), o youtuber armamentista Duke Cody (Dave Bautista, ator de que gosto mais a cada filme) e sua namorada Whiskey (Madelyn Cline), a política Claire (Kathryn Hahn), o cientista Lionel (Leslie Odom Jr.) e a misteriosa Cassandra (Janelle Monáe). Benoît também é convidado para viajar ao encontro, sob a promessa de que terá um crime para desvendar. O detetive aceita na hora, pois, durante o período de isolamento do Covid-19, permaneceu em casa, enlouquecendo enquanto resolvia palavras cruzadas de jornal e jogos de mistério.
Um dos aspectos de que gosto na sequência é como Rian Johnson desenvolve quem é Benoît além das nuances que havíamos percebido no original: a vida doméstica, a orientação sexual a partir da participação de um cameo inesperado e o desejo patológico de resolver mistérios e de restaurar ordem ao caos posterior ao cometimento de crimes. Neste aspecto, ainda que o mistério de Glass Onion seja confessadamente inferior ao do original – inclusive, Benoît afirma e reitera a estupidez do criminoso -, o roteiro não o é no esforço de subverter as expectativas do espectador e ser disruptivo. Novas perguntas são feitas além de quem e como cometeu o crime, mas quem será a vítima e por que está sendo cometido?
A propósito, a disrupção está na essência do filme temática, no bordão de Milen Bron ou no fato de que aqueles reunidos atuam fora do sistema, e formalmente: Rian Johnson manipula o espectador adulterando a imagem, apresentado um acontecimento de maneira diferente a que havia sido apresentado antes ou introduzindo eventos sob ponto de vista diferente (se não cito exemplos é para os poupar de spoilers ou de pistas que farão você prestar atenção no que citei e perder a graça da brincadeira). Existe até o personagem que alerta o público para ignorá-lo. Mas, se a imagem ou a estrutura dos eventos é adulterada, como solucionar o crime? Rian sabe que aí está a pegadinha da comédia criminal, pois dependemos da genialidade de Benoît que colocará os pontos nos is no terceiro ato. Por este motivo, os personagens dirigem-se a Benoît como se estivessem quebrando a quarta parede, pois, na análise final, nada mais são do que duplos do espectador.
Entretanto, diferente de Entre Facas e Segredos, Glass Onion perde fôlego quando apela ao flashback longuíssimo e esclarecedor no centro da trama para proporcionar informações e a releitura dos acontecimentos que não possuía. Apesar de indispensável à solução do mistério, o flashback quebra o ritmo da ação e exige uma retomada da narrativa que cria um engodo no centro da trama.
Por outro lado, Rian Johnson diverte-se com a masculinidade frágil de Duke Cody, cuja arma na sunga é compensatória da genitália, ou de Milen Bron, enquadrando a sua cintura detrás da escultura de vidro de um pato (talvez de um ganso?), que simboliza a flacidez do sexo do personagem. Como gosto de Edward Norton. O ator é a cereja do bolo da comédia, com a oportunidade de revisitar o Narrador de Clube da Luta (no quadro da parede), brincar de ser Steve Jobs e até mesmo de ser cosplay do personagem de Tom Cruise em Magnólia, um guru sexual que ensinava os homens a dominarem as mulheres. Esta encenação é apropriada para a narrativa introduzir um vilão burro, embora se julgue inteligente e esperto, realizando a metáfora que há no título.
Pois uma cebola de vidro é o objeto contraditório cuja verdade transparece em seu centro e não exige qualquer esforço em retirar as camadas para chegarmos nela. O problema é que, com um diretor com domínio pleno e irrestrito de como manipular o olhar e a percepção do espectador, precisamos da ajuda de um Benoît Blanc para mostrar onde está o óbvio nesta divertida continuação.
Os Fabelmans
4.0 388Muitos diretores têm empregado o cinema como um processo terapêutico para recordar quem foram, enquanto discutem sua relação com a arte. É verdade que a arte já contém pedaços do autor, seja nos temas discutidos, seja em aspectos que os envolvem. Contudo, de uns tempos para cá, diretores têm empregado a sua vida e as suas experiências diretas ou indiretas como matéria prima da narrativa cinematográfica, “deixando” os bastidores para se tornarem heróis das histórias que contam. Se Roma somente adotava a perspectiva de Alfonso Cuarón dirigida à secretária doméstica de sua residência em um período específico no México, Belfast, Armageddon Time e The Fabelmans trazem os diretores ao centro da ação. Mas a obra autobiográfica de Steven Spielberg dá um passo além: no lugar do olhar ingênuo e condescendente infantil a temas sensíveis (a guerra civil na Irlanda ou a discriminação racial nos Estados Unidos), a apreciação de questões familiares do ponto de vista mais maduro adolescente ou jovem adulto.
O roteiro co-escrito por Spielberg ao lado de Tony Kushner (de Amor, Sublime Amor, Lincoln e Munique) inicia quando Sam, criança, vai com os pais pela primeira vez aos cinemas para assistir a O Maior Espetáculo da Terra. Apesar do temor de Sam com as pessoas gigantes na tela, o garoto fascina-se de tal maneira com a imagem que tenta reproduzir o acidente férreo na narrativa e registrá-lo em imagem, incentivado pela mãe a utilizar a câmera 16mm do pai. Aí é plantada a semente de Steven Spielberg para quem a câmera é instrumento de enfrentamento de traumas, pois ao exercer controle sobre a imagem produzida (refletida na palma de sua mão em determinado momento), controla também aquilo que o aflige, assusta e angustia. E The Fabelmans é a forma definitiva de fazer isso, desnudando a sua história e dominando a fração do mundo diante de si.
A narrativa é o modo de Steven Spielberg avaliar a relação que teve com o pai, Burt (Paul Dano), um workaholic cujas promoções obrigaram a família a se mudar de cidade para cidade até chegarem a Los Angeles e cujo pragmatismo orientou o pensamento prático de Sam. Ou a relação com a mãe, Mitzi (Michelle William, no papel típico pelo qual a Academia gosta de premiar), de quem obteve o incentivo e herdou o amor à arte, embora ainda com uma pitada de ressentimento com o relacionamento extraconjugal com Bennie (Seth Rogen, enxergado não como um destruidor de lares, mas como um sujeito divertido e por quem é fácil se envolver). Ou enfrentar o bullying antissemita que sofria no colégio. A imagem é o dispositivo que revela a verdade, não fatos, mas a verdade do autor, formulada a partir do produto de memórias, emoções e percepções.
Não falta domínio técnico à narrativa repleta dos elementos formais característicos da obra do diretor. No início do filme, Spielberg sublinha a forma como enxerga as crianças em seus filmes, enquadrando-as à altura do olhar, forçando o espectador a identificar-se com Sam e obrigando o pai Burt a descer ao nível dele, em vez de a câmera ser movimentada em sua direção. Ao lado do diretor de fotografia e colaborador habitual Janusz Kamiński, Spielberg transforma em tema recorrente (leitmotif) o agigantamento dos personagens que Sam tanto temia quando era criança. As figuras de autoridade são enquadradas de baixo para cima - a exemplo do pai, de Logan, ou dele próprio, no terceiro ato, quando acredita ter dominado a arte da imagem. Isso sem esquecer a brincadeira que realiza com o conceito de horizonte da imagem, convidando um diretor a interpretar o diretor da Era de Ouro no qual Spielberg se inspiraria.
No âmbito da sensibilidade, Spielberg atenua a pieguice do drama de amadurecimento com pitadas de humor (Judd Hirsch está impagável como o tio Boris, em um papel que devolverá o ator veterano ao Oscar mais de 4 décadas após ser indicado por Gente como a Gente). Já a metalinguagem, enquanto revisita os filmes caseiros que produziu, obrigou-o a utilizar a criatividade e os recursos práticos de outrora para criar o que hoje produz, com facilidade, através de efeitos visuais computadorizados. Isso sem contar com as referências aos seus trabalhos: de Tubarão, nas filmagens na praia do vídeo escolar, a Amor, Sublime Amor, na dança no colégio.
Já o elenco é afortunado em contar com atores profissionais talentosos e atores jovens (ou amadores) ainda melhores: Mateo Zoryon Francis-DeFord é adorável e expressivo como o jovem Sammy, enquanto Gabriel LaBelle tem carisma e presença para interpretar a versão adolescente. Contudo, é Chloe East, que vive Mônica, a namorada de Sam, que conquista o espectador com sua atuação extrovertida e divertida.
Apesar de o filme parecer autoindulgente como autobiografias naturalmente tendem a ser, na realidade The Fabelmans é uma carta de amor e empatia do diretor septuagenário à si mesmo, à família e à arte que ama, fruto da ciência, espontaneidade, criatividade, bom humor e sentimentalismo na medida certa. Se Steven Spielberg sempre criou obras-primas que justificassem os (raríssimos) tropeços de sua carreira, este, ao lado de Munique, são as grandes criações do autor neste século.
A Baleia
4.0 1,0K Assista AgoraA carreira de Darren Aronofsky é o testemunho de sua habilidade em penetrar no íntimo dos personagens estudados em busca do que dirige suas obsessões e ansiedades, sem realizar pré-julgamentos nem concessões. A começar com o matemático de Pi, que buscou achar a resposta da existência detrás do número matemático, à bailarina de Cisne Negro, com o sonho de executar perfeitamente os passos do clássico Lago dos Cisnes, aos dependentes químicos de Réquiem para um Sonho e ao aventureiro em busca da eternidade em A Fonte da Vida, Aronofsky adapta a forma de seu cinema ao universo dos protagonistas. Daí o motivo de a forma de O Lutador, naturalista até, contrasta com a de mãe!, realista fantástica de horror, até chegarmos em The Whale, adaptação da peça de Samuel D. Hunter.
Nele, Brendan Fraser interpreta Charlie, um professor de literatura com obesidade mórbida, que ganha a vida como professor em cursos on-line e sobrevive no apartamento onde mora graças aos cuidados da enfermeira Liz (Hong Chau), irmão de seu ex-companheiro falecido. Certa vez, Charlie é visitado pelo missionário Thomas (Ty Perkins), que bate em sua porta e o socorre quando está tendo um ataque de pânico. A iminência da morte confere a Charlie o desejo de restabelecer os laços com a filha, Ellie (Sadie Sink), rompidos depois do divórcio com a mãe (Samantha Morton).
Não é a primeira vez que Darren Aronofsky trabalha com relações entre pais e filhos: havia feito isto em O Lutador, em que o autodestrutivo Mickey Rourke tentava reconectar-se com a filha, vivida por Evan Rachel Wood, ou em Cisne Negro, em que a relação com a mãe era foco de angústia para a personagem de Natalie Portman. Agora, a relação é melodramática (não no sentido pejorativo), pois nasce na dissolução do casamento e na distância entre pai e filha. Uma distância que Charlie deverá percorrer, literal e metaforicamente, caso deseje redimir-se.
Assim, apesar de ser um filme de câmara, ambientado em um mesmo ambiente, The Whale não é monótono (no sentido pejorativo da palavra, repito). Darren Aronofsky é competente em expandir e comprimir o espaço do apartamento quando a narrativa assim exige. Deste modo, a encenação explora o apartamento seguindo os movimentos vagarosos de Charlie e, ao mesmo tempo, ilustra a rotina do protagonista e a falta de mobilidade inerente a pessoas com obesidade mórbida, com acessórios que o auxiliem a deitar e levantar da cama ou a apoiar-se de pé no banho. Apesar de o espaço ser fixo, o tempo é fluido, ainda que corra linearmente: os cochilos do protagonista interrompem o fluxo da ação e criam a sensação de estarmos em um estágio moribundo, entre a vida e a morte, apropriada a esta semana da vida de Charlie.
Em frente às câmeras, Brendan Fraser ocupa a imagem de duas formas: fisicamente, diante da fisionomia do personagem, do tamanho da tela 4×3, bastante apertada e claustrofóbica, e dos primeiros planos em que o rosto do personagem ocupa a imagem por completo; mas também emocionalmente, pois a atuação delicada do ator esforça-se em ilustrar um homem que enxerga positivamente a tragédia em que está. Apesar de haver momentos de entrega à compulsão alimentar, a consequência da ansiedade por que atravessa, Charlie esforça-se em enxergar o belo até no comportamento grotesco da filha, que o humilha com frequência.
Por falar em Charlie, a direção prepara o espectador para o instante em que encontraremos Brendan Fraser na pele prostética do personagem. Durante uma aula do curso lecionado, a câmera aproxima-se da tela preta onde deveria estar a imagem de Charlie, sob o pretexto de que a webcam está danificada, e penetra na escuridão para jogar luz no personagem. Ao enxergar o ator, pude sentir dor e trauma, confirmado na incapacidade de realizar atividades corriqueiras, a exemplo de alcançar a chave que caiu sob a mesa. A maquiagem disfarça os pontos em que a roupa prostética encontra a pele do ator, enquanto modifica sua aparência: o cabelo escasso, as dobras no pescoço e o suor acumulado, as escaras visíveis durante o banho. Já Brendan aprende a caminhar e a se movimentar com o excesso de peso, e passa ao espectador a dificuldade inerente à obesidade mórbida.
Já o título remete à Moby Dick, o clássico escrito por Herman Melville, cujo ensaio Charlie lê e relê com a intenção de combater os constantes ataques de pânico. A razão será explicada na conclusão de The Whale, que subverte a forma até então apresentada – por exemplo, a falta de iluminação cede espaço à iluminação intensa – para alcançar, acredito, a conclusão mais positiva e esperançosa do cinema do diretor desde A Fonte da Vida. Um fim à altura de um protagonista cujos sofrimento e esperança conservamos dentro de nós, tal como as faces de uma mesma moeda.
A Mulher Rei
4.1 486 Assista AgoraA internet popularizou o adjetivo épico como sinônimo de memorável ou fantástico para classificar aventuras de super-heróis de encher os olhos do espectador, adotando o termo utilizado para designar o gênero cinematográfico de Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Gladiador e Coração Valente. Estes épicos são aventuras históricas e heróicas, com recriação cuidadosa de época, figurinos e cenários e cenas de ação ambiciosas, em que uma pessoa ou um grupo de pessoas enfrenta uma estrutura opressora na forma de leis ou de estados soberanos.
Entretanto, se você pesquisar na história do gênero, não encontrará épicos protagonizados por pessoas negras porque a indústria tratou de apagar sua história e seu heroísmo. Se O Nascimento de uma Nação (2016) apresentava o verniz da narrativa épica, A Mulher Rei é que melhor aproveita a característica do gênero ao trazer a história das Ahosi, as guerreiras do Reino do Daomé, que inspiraram as mesmas Dora Milaje de Pantera Negra (2018). Alvo de boicote devido a alegada falta de autenticidade da participação das Ahosi no combate à escravidão do povo africano pelos europeus, a trama inicia quando a jovem Nawi (Mdebu), depois de rejeitar o casamento arranjado pela família, é entregue ao exército liderado por Nanisca (Davis).
O roteiro de Dana Stevens emprega o recurso da personagem alienígena (Nawi), a fim de reproduzir o olhar desbravador do público ávido a conhecer o funcionamento e a dinâmica daquela comunidade regida pelo Rei Ghezo (Boyega), cuja confiança irrestrita na liderança de Nanisca a torna a monarca do exército de mulheres guerreiras. As Ahosi são a tropa de elite e linha de defesa contra o império em expansão de Oyo, cuja riqueza decorre da venda de homens e mulheres capturados ao comércio de escravos europeu, contra o qual Nanisca se coloca frontalmente. Ao invés de prosperar com a exploração do próximo, por que não com o comércio de óleo de palma?, propõe Nanisca. É uma proposta recebida com desconfiança e reticências pelo Rei.
Dessa forma, enquanto Nanisca, ao lado de Amenza (Atim), administra questões políticas e organiza a investida contra Oyo, Nawi é adotada sob as asas da guerreira Izogie (Lynch), que respeita e com quem aprende o que significa ser Ahosi. O design de produção de Akin McKenzie reconstrói o reinado de Daomé no ano de 1823, com figurinos rústicos costurados a mão, espadas e machetes de lâminas irregulares e penteados remissivos à personalidade das guerreiras. Enquanto isso, as coreografias de luta e a recriação da época compensam o desenvolvimento mais preguiçoso dos personagens e das subtramas: Amenza é a mulher sábia e política; Izogie, a brava e corajosa; Nawi, ingênua, embora moderna na utilização da pólvora; Nanisca, a líder honrada e de expressão fechada (a mulher badass, se preferir). As subtramas também não inspiram suspiros: há o romance entre Nawi e o escravagista pardo mas arrependido, ou a relação dela com Nanisca, com toque de rebeldia e insubordinação.
Também desgosto de como a direção de Gina Prince-Bythewood (de The Old Guard) adota o idioma que não o inglês para retratar o Outro, ou o inimigo, porque isto parece caminhar contra o tema narrativo de união contra o invasor europeu, que teria plantado a semente da desunião entre os povos do continente africano. Inclusive, repare em como a direção mostra os cadáveres negros no chão como símbolo da quantidade de vidas mortas para subsidiar um comerciante imoral e criminoso não importa em qual época que seja.
Em contrapartida, gosto de como a narrativa trabalha a igualdade entre homens e mulheres como princípio de fundação de Daomé, governado no mito por regentes de sexos opostos. Não precisa ser profeta para antecipar para onde a narrativa guiará o público, até porque o título não esconde esta ambição, mas é interessante em como há contradições esculpidas na submissão da Ahosi ao Rei Ghezo e na existência de exércitos rivais, que disputam a frente das ações de Daomé antes de entenderem que precisam se unir contra um inimigo em comum.
Ainda que A Mulher Rei não seja historicamente fiel, tampouco foram os épicos citados no parágrafo inicial, que também possuem sua parcela de reinvenções e omissões, e apresentam narrativas irregulares e elementos questionáveis. Assim, apesar de irregular e de às vezes incoerente, não há como ignorar o acréscimo do intenso e envolvente A Mulher Rei na tradição do gênero épico que enfim tem a oportunidade de contar as histórias que antes não pudemos conhecer.
Um Lugar Bem Longe Daqui
3.7 336 Assista AgoraResta a Daisy Edgar-Jones (da ótima minissérie Normal People e do terror Fresh) a tarefa de adicionar algum nível de profundidade à encenação pedestre e água com açúcar de um drama sobre a superação de adversidades maiúsculas – o abuso e abandono familiar, a negligência social e a solitude em ambiente inicialmente hostil – até a descoberta da própria voz.
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Samaritano
2.8 220 Assista AgoraSe o ápice do cinema de super-heróis fosse nos anos 80 e 90, Sylvester Stallone teria sido um dos protagonistas. O ator estrelou a adaptação de Juiz Dredd, O Juiz, recebido com má aceitação do público e da crítica, e agora, a 4 anos de completar 80 anos, estrela Samaritano, que explora as possibilidades restantes do subgênero antes da exaustão e inevitável declínio.
Crítica - cinemacomcritica .com .br
Não! Não Olhe!
3.5 1,3K Assista AgoraUm terror que discute o papel do cinema na história e na criação de história e a atração do espectador através do olhar, sem, em momento algum, envergonhar-se da natureza da proposta narrativa que, se apresentada por um roteirista que não à altura de Jordan Peele, seria descartada de plano por produtores cegos às possibilidades infinitas da arte do impossível.
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Caranguejo Negro
2.7 123 Assista AgoraAlguns filmes têm a característica de não provocar nem aprovação, nem rejeição a ponto de inspirar uma crítica criada com paixão. Faz sentido, o frio desta Suécia pós-apocalíptica enrijeceu minha emoção, enquanto acompanhamos um grupo (para-)militar que deve levar um dispositivo misterioso (como o pé de coelho em Missão: Impossível) para deslocar a balança da guerra favorável a quem ainda mantém laços com o Estado.
A descontextualização promovida pelo roteiro não prejudica a narrativa, já que o objetivo da direção de Adam Berg não é expor as razões, nem as circunstâncias que levaram ao estado atual da sociedade no país. Seu desejo é de acompanhar o desejo de uma mãe, disposta a atravessar inúmeros obstáculos que colocam a sua vida em risco, com a promessa de que poderá se reencontrar com a filha.
Pouco importa qual a funcionalidade do dispositivo ou quem é quem naquele destacamento, pois Noomi Rapace oferece intensidade a sua personagem a partir da forma intensa com que enfrenta o que é posto diante de si. Mas falta à narrativa qualquer identidade visual que diferencie este de filmes análogos - tudo recoberto com a paleta invernal, a escuridão, cenas de ação eficientes mas protocolares.
Só o que resgata o filme da própria mediocridade é o desfecho mais ambicioso e tematicamente apropriado à visão cética e pessimista do Estado, e de como só o que resta à protagonista é o romantismo (literário) de acreditar reaver o livre arbítrio de sua vida.
Fantasmas do Passado
2.8 37 Assista AgoraO black horror denomina um subgênero do terror habituado em discutir a experiência da pessoa negra sobretudo nos Estados Unidos, diante do racismo, explícito e estrutural, que permeia aquela sociedade. Corra!, A Lenda de Candyman, O Que Ficou para Trás são exemplos de um gênero que utiliza metáforas para retratar a história da pessoa negra dentro de uma sociedade majoritariamente branca.
E Fantasmas do Passado, da diretora estreante em longas-metragens Mariama Diallo, faz isto de uma forma exemplo em revisitar temas já debatidos mas de uma forma ainda mais aguda. A história acompanha 3 mulheres negras (aluna, professora, diretora) vítimas de um racismo velado - com esta ou aquela exceção - em abraços falsamente quentes de colegas de classe ou do trabalho, e como estas 3 não conseguem enfrentar o mal que paira sobre elas porque não aprendem a trabalhar juntas.
Tome Jasmine, que por advir de um subúrbio de classe média alta, crê não pode ser vítima e, portanto, dispensa a ajuda da diretora Gail, que assiste à residência onde habita ser devorado por dentro por larvas de insetos (como a sociedade também é consumida pelo racismo). As dinâmicas andam paralelamente, embora se entrecruzem para montar um todo do desamparo que é ser destacado por ser diferente. No caso dentro de uma universidade majoritariamente branca e que utiliza a representatividade da boca para fora, apenas.
Ao mesmo tempo, as únicas pessoas negras são aquelas em posição de servitude: cozinheiras, serventes, zeladores, jardineiros, criando a tensão racial que a diretora almeja discutir. Uma da ausência de uma fraternidade transformadora e que poderá ajudá-las a enfrentar o pesadelo desta narrativa, banhado em um vermelho expressivo e incandescente típico do inferno, sem jump scares, mas uma atmosfera cheia de uma violência racial não dita, subentendida, insinuada.
É uma estreia promissora de mais uma jovem diretora que tem muito o que falar através da linguagem do terror.
Fogo Cruzado
3.1 54 Assista AgoraDo que mais gosto na direção de Joe Carnahan é como resgata os mitos do velho oeste, adaptados dentro de um filme policial contemporâneo. Joe não tem medo de buscar nos anos 80 e 90 suas inspirações para um bom tiroteio, não tem receio de inserir o humor inconsequente e ácido, e faz isto enquanto reverencia uma das heroínas mais fo** do gênero: a implacável Val.
A narrativa inspira-se em O Álamo e Assalto ao 13º DP, além do faroeste spaghetti de Sergio Leone, para contar uma história com data e hora de terminar: no intervalo de uma noite, mafioso, assassino contrato, polícia e meio mundo vão trocar tiros até o duelo final. Não falta adrenalina em um filme que não exige muito do charme sacana de Gerard Butler, de Frank Grillo, que se tornou um astro do cinema de ação B, de Toby Huss, como um daqueles psicopatas divertidinhos.
E, claro, Alexis Louder! Sua Val é uma força da natureza que mantém a calma mesmo em momentos agudos e em que a vida estará em risco. É uma neo-pistoleira do faroeste, que respira fundo antes de decidir o que fará e que parece ter tudo sob controle graças à sobriedade e frieza com que encara esta noite sangrenta.
O filme não se estende além do necessário, sabe o que tem de fazer para ser eficiente, não milita em voz alta, mas em ações, e ainda conclui com a oportunidade de que vejamos Val de novo. Eu já estou ansioso por isso.
O Bombardeio
3.8 157 Assista AgoraA guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam. Apesar de oriunda de um soldado nazista, esta citação é uma máxima em qualquer conflito. E O Bombardeio a ilustra muito bem.
Já na véspera do final da 2ª Guerra Mundial, com os resquícios de forças alemães sendo combatidas dentro do continente europeu por tropas da resistência aliadas à Inglaterra, um quartel general da polícia nazista é o alvo e a missão parece simples. Mas o prólogo do drama de guerra deixa claro que não é bem assim.
Depois que um caça metralha um táxi de civis, um garoto desenvolve uma afasia que o impede de falar. Enquanto isto, uma freira questiona a sua fé, um oficial nazista a sua filiação ao regime, pais e filhos vivem tranquilamente, pois já normalizaram a rotina promovida pela guerra.
Essas vidas são pinceladas e se tornam modelos do que a narrativa pretende questionar. Como acreditar em Deus no mundo que mais parece haver sido abandonado por Ele? Como recuperar a fala se não há mais gritos que podem ser ouvidos? A articulação das personagens leva a ação ao evento que dá nome ao título e que, em virtude de um erro, causa uma tragédia em que os mais inocentes se tornam vítimas.
O Bombardeio não poupa o espectador. Demanda empatia em aceitar o "heroísmo" de um soldado nazista, critica os Aliadas por haverem agido com negligência, questiona a fé no mundo dos homens e ainda proporciona angústia na forma do que cai do céu (bombas, destroços, terror). Não recear o que vem do céu, mas o que vem dos homens, é a forma de sobreviver o pesadelo deste drama de guerra dinamarquês. Ao reconhecer que a maldade não provém de uma força mística, mas de nós mesmos, a narrativa propõe uma conclusão forte e impiedosa.
Águas Profundas
2.5 362 Assista AgoraO mistério de Águas Profundas é sustentado sobre a maneira como Vic assiste e reage à sexualidade da esposa Melinda, que parece (repito, parece!) torturar o marido com o acúmulo de parceiros extraconjugais. Neste relacionamento patológico, jogam um homem apático, contente em enxergar e convulsionar por dentro o prazer da esposa, uma mulher sufocada em uma vida que não desejava mas à qual fora atraída, e uma filhinha que já demonstra a contaminação pelo desamor que une os pais.
Águas Profundas acerta quando anda na corda bamba entre o prazer de assistir ao prazer do outro e a constatação de saber que este prazer não é compartilhado consigo. E mesmo que a câmera fetichize Ana de Armas, como a maioria dos diretores (homens) que a dirigiram, pelo menos isto faz sentido dentro da lógica da narrativa ao revelar o olhar de Vic a ela. Aliás, Adrian Lyne tenta e, a meu ver consegue, desarmar a armadilha de ser acusado de sexista em focalizar a crítica em Vic, ao invés de penetrar debaixo do que move Melinda, um enigma.
Igual a filmes passados (Proposta Indecente, Lolita e Infidelidade, com que este filme tem similaridade), Adrian Lyne critica homens patéticos e, estes sim, sexistas, que enxergam mulheres (e até crianças, no caso de Lolita) como um objeto de seu prazer. Um prazer manifestado de forma voyeur às vezes - a inspiração da obra do diretor é Hitchcock - um prazer que priva a liberdade e subjuga a mulher ao parceiro. Acho que, no fundo, Adrian sabe caminha em território minado, então toma a decisão acertada de entrar na psiquê do homem. (E quando tentou penetrar na da mulher, em Atração Fatal, realizou o seu, ironicamente, melhor e mais sexista filme).
Águas Profundas funciona dentro do véu de mistério com que cobre as ações de Vic. Um mistério que acompanha até o hobby na criação de caramujos, animais pegajosos e venenosos, iguais a ele. E Adrian emprega Ben Affleck muito bem, valendo-se do porte avantajado do ator combinado com olhares mortos. Ana de Armas comunica-se da mesma forma: pelo olhar, e a troca final é significativa assim como a frase que emoldura a intenção do thriller: pois se Melinda não teme Vic é porque entende que, se este matou seu amante, é por amá-la. Um amor doentio ainda é amor, deve pensar.
Pena que Águas Profundas escorrega feio na borda da piscina quando insere um flashback que remove, a força, a dúvida que existia em nós. E mais, com um encontro fortuito na floresta e uma das perseguições mais estúpidas de que me recordo, Águas Profundas arruína parte do prazer existente na narrativa, que, ainda assim, é um thriller eficiente sobre um relacionamento canceroso.
A Lenda do Cavaleiro Verde
3.6 474 Assista AgoraPor detrás da fábula fantástica deste conto paralelo ao do Rei Arthur, existe a história de um jovem adulto que insiste em não amadurecer e permanecer com um estilo de vida desregrado e irresponsável. Daí porque este trabalho de David Lowery (Sombras da Vida) encontra eco no mundo de hoje em como, mais e mais, homens continuam agindo e comportando-se como adolescentes quando deveriam agir com responsabilidade.
A fantasia é a forma de retratar esta jornada espiritual de Sir Gawain, deixando ao espectador a tarefa de significar a raposa, as gigantes ou o cavaleiro verde do título. David Lowery, tal como não pretendia dar respostas ao fantasma debaixo do lençol, reforça o poder da imagem e o modo como envolve nossos sentidos: em certo momento, vemos a câmera girar 360º em torno do corpo de um personagem, que vira um esqueleto antes de retornar à forma humana. O que David desejava, os espectadores se perguntam. Não há resposta explícita para isto. Uns podem interpretar como "se Gawain permanecer inerte, irá morrer", outros podem associar com o giro do terceiro ato que evidencia o que poderia ser versus o que de fato é.
Sem gabarito, A Lenda do Cavaleiro Verde desapontará quem gosta de seu filme explicado e recompensará quem está disposto a viajar em uma odisseia com uma fotografia reflexiva, uma ênfase em parte ambiental, em parte vertida à podridão do caráter, e uma direção tão enigmática quanto a decisão do Cavaleiro Verde no fim do filme. Mas o ritmo, ah o ritmo, é incerto. Ora contemplativa, ora voltada à ação mais direta, a montagem é insegura em sua abordagem e termina por estender sequências cujos argumentos havia sido exauridos instantes antes a bem de uma forma prolixa que estende a duração para 130 minutos.
É um ritmo que sentimos e que desgasta a potência da jornada de Gawain, que basicamente se resume a: aceitar seu destino, ou seja, amadurecer no homem que deve ser, ou permanecer sob a saia da mãe e a boa graça do rei, como covarde imaturo que teima em ser.
Tubarão
3.7 1,2K Assista AgoraTubarão é menos um terror sobre homem versus natureza, mais sobre a conquista do medo. É menos sobre um tubarão assassino, mais sobre a atitude irresponsável do prefeito em manter as praias abertas e gozar o boom da economia no verão. É menos sobre o tubarão, mais sobre três homens tentando resolver suas diferenças somente para descobrir que, incapazes de unir forças, o heroísmo relutante, individualista e sortudo que salvaria o dia.
O clássico de Steven Spielberg amadureceu de tal forma que continua sendo paradigma para filmes similares: além do contexto econômico e humano em que se apoia, o fato de os tubarões animatronics haverem mau funcionado, permitiu que Spielberg investisse menos em efeitos e mais na sugestão. É um terror que não deve aos exemplares de Alfred Hitchcock por compreender que o medo é mais eficiente quando está construído dentro de nossa imaginação.
Além da maestria em compor imagens e movimentar a câmera, que viria a ser a marca registrada do diretor, Spielberg também constrói significados dentro da imagem a cada momento em que o xerife Brody encara o mar e a vastidão do que o espera por pilares que lembram a boca de um tubarão ou mesmo pelo esqueleto de uma destas máquinas de matar. E a coragem do jovem Spielberg (aos 27 anos) impressiona, já que não hesita em ameaçar a vida de crianças quando o roteiro exige esta crueldade para mostrar ao espectador que nenhuma viva alma está segura.
Além disto, o trio de atores centrais, Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw, entende cada particularidade de seus personagens que os transforma em mais do que arquétipos (o homem médio colocado entre um rico e presunçoso cientista e um operário ex-combatente de guerra).
Tubarão é um clássico nascido na pior das condições - o orçamento quadruplicou, o tempo de produção triplicou em razão das filmagens em alto mar e dos problemas com os tubarões mecânicos - e é a prova de que um artista nato, mesmo que inexperiente, retira o melhor que pode da arte cinematográfico quando estimula o cérebro, não o olhar imediatista, com o terror do desconhecido. É aquilo, menos costuma ser mais, especialmente nas mãos de um cara como Spielberg.
Pânico
3.4 1,1K Assista AgoraÉ difícil reproduzir, em tempos de do pós-horror, terror psicológico ou elevado - termos discriminatórios utilizados indiscriminadamente por alguns críticos e produtores de conteúdo para diferenciar um terror metafórico, sociopolítico, de outro satisfeito com as ferramentas do gênero -, as circunstâncias percebidas por Wes Craven e que fizeram de Pânico um marco no gênero.
Não é apenas a metalinguagem pela metalinguagem, mas como esta serve de meio e fim para discussão do cinema slasher, em que algum mascarado toca o terror na juventude de uma cidadezinha. Incapazes de refazer Pânico em um tempo em que a cabeça do público mudou, a dupla de diretores desta versão percebe que a melhor alternativa é deslocar a crítica a outra tendência, a dos soft reboots ou requências (continuações que não reiniciam mas homenageiam o origina, e só ele, com a reconstituição de cenas e o retorno de atores-legado).
Não que Pânico 4 já não houvesse feito isto, tão bem quanto, é só que esta versão é mais consciente do filme que é e esta liberdade auxilia a subverter expectativas desde a cena inicial até a última. Não falta gore nem o desejo de desmascarar o/os assassino/s, nem de torcer pela morte do Ghostface (por mais doentio que seja escrever isto). Se a série nunca demonstrou a vocação de realizar crítica social, apenas cinematográfica, esta requência abraça isto com uma crítica dirigida ao fãs alienados por fóruns de debates, cegos pelo cânone que reverenciam a ponto de não perceberem que a arte não é um fã-service, um buffet de referências a ser consumido.
Arte é coragem. Se existem fãs de Pânico, é porque Wes Craven não se dobrou a convenções e criou suas regras. Então, enquanto diverte como entretenimento que é, Pânico apunhala o tipo de fã que criticou Os Últimos Jedis por ousar. Se na forma e execução, Pânico é mais do mesmo - isto é bom! -, na essência é um terror maduro que reconhece a verdadeira identidade dos assassinos mascarados de hoje em dia.
137 Disparos
3.5 5 Assista AgoraA brutalidade policial é um tema recorrente da produção documental norte-americana, tantos são os crimes cometidos de farda contra, em particular, a comunidade negra, na prova cabal de racismo sistêmico.
Este documentário convida o espectador a conhecer dois casos, ambos em Cleveland. O primeiro, que é a linha mestre da narrativa, o de duas pessoas negras, desarmadas, assassinadas com 137 tiros, por 13 policiais depois de serem perseguidores por mais de 60 viaturas. Coisa boa não devem ter feito, já começa a questionar o tiozão do WhatsApp. O que eles fizeram foram ter um carro com escapamento defeituoso, cujo som parecia com o disparo de uma arma de fogo. Além deste, o assassinato de um garoto de 12 anos que brincava com uma pistola de ar comprimido no parque público.
A narrativa recorda as circunstâncias do caso, a partir do ponto de vista dos familiares das vítimas, dos promotores, do sindicato que representa a polícia, do julgamento e da opinião pública a partir do programa de rádio do recém falecido ativista Mansfield Frazier. É o documentário que ferve o sangue de quem assiste, enxerga onde começa e termina a verdade e que muito deve ser reformado na polícia americana para que volte a ser (já foi?) mais justa e digna.
O Festival do Amor
3.3 45 Assista AgoraSe tirada a camada de contação de história e enxergado o subtexto de drama autobiográfico - como costumam ser, em maior ou menor grau, os filmes de Woody Allen -, O Festival de Amor acaba sendo um retrato desapaixonado de um autor na velhice e desencantado com a arte contemporânea e a própria vida, mas que continua se dedicando ao cinema por não saber realizar diferente.
Woody utiliza Wallace Shawn como alter-ego - o que é um presente ao ator veterano, acostumado a interpretar papéis de menor relevância e aquém ao seu talento - para discutir a mortalidade, uma temática que o aflige, mas que não parece amedrontá-lo. A morte literal, e todas as implicações woodyallenianas em tratar todos os demais problemas da vida como menores diante dela, e a metafórica de um relacionamento, cujo cadáver é conservado por conveniência por Mort e Sue. E ainda a morte do cinema, a partir da homenagem aos seus cineastas favoritos.
Por se passar em San Sebastian, durante o festival que leva o nome da cidade, as recriações de clássicos de Orson Welles, François Truffaut, Godard, Ingmar Bergman, Luís Buñuel e Fellini ressalta a importância do cinema europeu para proporcionar o amadurecimento do cinema americano além dos finais felizes. Claro, Woody se coloca, através de Wallace, como este conhecedor da arte cinematográfica dita "de qualidade" e promove uma crítica ao cinema espetáculo que palestra detrás de centenas de milhões de orçamento, como se a utilização da arte para defender que "a guerra é ruim" envergonhasse os antigos mestres de outrora cujos filmes Woody devorava. Não é a mensagem, é a obviedade dela.
Eu não discordo inteiramente de Woody, embora a teoria - utilizar um festival de cinema como instrumento para um festival de homenagens - seja melhor do que a prática, já que Woody se mostra preguiçoso em sua curadoria de trechos... óbvios. Eu até entenderia se o público-alvo dessa dramédia fosse aquele mesmo que seu protagonista critica. Não é.
Woody, que a esta altura parece haver esgotado seus temas, requenta o adultério de Meia-Noite em Paris, embora noutro figurino, e alimenta quem o acusa de sexista. Em contrapartida, seus diálogos continuam afiados ("Ele quer criar um filme que acabará com a guerra entre Israel e Palestina!", "Ah, então ele está fazendo uma ficção-científica?") e sua encenação ainda mais madura, com planos longos, bem fotografados por Vittorio Storaro (rachei na cena do consultório médico, durante a ligação telefônica à médica).
Como fã da obra de Woody Allen, eu me alegro somente em continuar assistindo a seus filmes, ainda que desleixados, preguiçosos e menos inventivos ou polidos do que tinham o potencial de ser. E, mesmo com filmes assim, não há dúvida de que Woody já está, há muito tempo, no mesmo patamar dos ídolos cinematográficos que homenageou.
Intervenção
3.0 83 Assista AgoraA violência policial é apenas um dos muitos sintomas da doença do Estado brasileiro, e o diretor Caio Cobra diagnostica, didaticamente, quem são os culpados, as mazelas que devem ser combatidas e utiliza Bianca Comparato como porta voz.
Só que criticar a falta de educação e de oportunidades ou o descaso das autoridades que lucram com a guerra nas comunidades não é descobrir o fogo. É mencionar o óbvio, tanto quanto narrar Intervenção a partir do ponto de vista de uma personagem idealista que, ante a realidade brutal e o pragmatismo de um chefe de boa índole e más ações, derrete neste caldeirão diante do espectador.
Eu gosto de algumas decisões de Caio Cobra, como omitir a presença de autoridades ao máximo de forma análoga a como desaparecem da vida das comunidades exceto em aparições na televisão ou dentro do fórum. Já outras decisões são indefensáveis, a exemplo da "inocente" atingida no fogo cruzado e apresentada como membro do tráfico de drogas. Não é que, naquela situação, ela não poderia ser inocente, é só que isto reduz o impacto do acontecido.
Intervenção tem as cenas de ação convencionais no morro, que ficaram popularizadas por Tropa de Elite e recondicionadas em Alemão, e tenta humanizar a polícia através dos membros e da fragilidade institucional de uma organização que aprova calouros para agirem em áreas para veteranos. Não é uma má ideia, embora não leve a nenhum lugar que já não conheçamos.
Matrix Resurrections
2.8 1,3K Assista AgoraDentre todos os (cômodos) caminhos para realizar uma continuação, Lana Wachoswki escolheu o menos óbvio: desconstruir o clássico de 1999 sem desafiá-lo de frente. É que The Matrix Resurrections é uma continuação direta e nostálgica - resgatando momentos do original a partir da reprodução de vídeos da trilogia e também da reimaginação pela encenação de momentos que parecem déja vu daqueles - porém nem por isto se acanha em ser apenas mais do mesmo.
Onde havia filosofia, agora existe a crítica ao materialismo artístico, na crítica à apropriação do gosto do público pela indústria da arte como a forma de "entregar" apenas o que deseja "consumir". Lembra do que discutíamos semana passada sobre oferta e demanda, pois é, é isto o que a narrativa debate, utilizando-se como contra-exemplo para tentar convencer o público a abrir a mente ao diferente. Além disto, onde havia ação, agora há amor. As cenas de ação, executadas com menos qualidade do que na trilogia original, apostam em cortes mais rápidos, mais difíceis de serem apreciados por inteiro. A inovação tecnológica é esquecida e mesmo criticada, a exemplo do bullet time que tanto fez auê em 1999. Resta Neo e Trinity como os motores da narrativa e que inspiram a devoção de Bugs e dos demais como se fôssemos nós.
Enquanto o original bebia da fonte de Alice no País das Maravilhas, este prefere Alice através do Espelho - item que desempenha papel maior do que antes -, em como Neo busca despertar Trinity do transe que é o equivalente a tentar despertar o espectador da mesmice que, na opinião de Lana Wachowski, tem sido o cinema. E não apenas este, mas também as ramificações noutras artes (os games, por exemplo).
Assim, embora não seja revolucionário como o de 1999, que informou a produção de ficção-científica e ação e os efeitos visuais dos 20 anos passados, The Matrix Resurrections é ambicioso. Poderia ter aceitado a missão de "reparar" os erro apontados por alguns na trilogia original, mas preferiu pegar o fan service, retrabalhá-lo de formas inesperadas e proporcionar a continuação mais inusitada de uma superprodução de que me recordo enquanto escrevo (Thor: Ragnarok andou por este caminho, mas sua mudança era de abordagem, não de espírito).
É uma obra originalíssima mesmo sendo uma sequência, adaptada para refletir os valores de hoje, não os de ontem, removendo aquilo que pareça binário na guerra entre humanos e máquinas e usando o amor como forma de curar os males do mundo, o que Lana, ao lado da irmã Lily, já havia ensaiado em Sense8. É um filme que tem crescido a cada dia em que penso nele, e não duvido que quando o revir, goste ainda mais.
O Canto do Cisne
3.5 67 Assista AgoraO tema mais importante tratado em Canto do Cisne não é abordado de frente pela narrativa. Ele é sublinhado por nossa percepção enquanto receptores da obra de arte que apresenta a relação do protagonista diante do procedimento de enfrentamento do luto (remissivo a Black Mirror). A narrativa toma por ponto de vista o de Cameron, que vítima de uma doença terminal, decide clonar-se para que sua família não sinta a dor de sua morte. Ao longo de 100 minutos, encaramos como este homem lida com a ideia de despedida e se relaciona com aquele "algoz" que o afasta de sua família para poder continuar a história que havia construído.
Este duelo de ideias é fortalecido pela atuação competente de Mahershala Ali, além de participações de Awkwafina (uma das participantes do experimento) e Glenn Close (quem chefia). Mas, nem de longe, o drama dele é o que me chamou mais atenção nesta ficção-científica, que como todo bom filme do gênero, precisa provocar questões morais, éticas e filosóficas. No caso, apesar de a narrativa não meter o dedo no vespeiro que é um homem tomar a decisão de que a família não vivencia o luto, o espectador (eu no caso) fiz isto com muito prazer.
Já que fala muito sobre o tipo de marido/pai Cameron é/era, que toma uma decisão egoísta de decidir o que a família deve viver e o que não deve. O luto é um elemento formador do caráter a partir do sofrimento e saudade que um ente querido provoca ao se despedir, e esta espécie de luto "reverso", que é a despedida de Cameron dos entes queridos é trabalhada como espelho para analisarmos o processo que está sendo tirado de sua esposa e filho em troca de um conto de fadas. Mesmo que o filme se acovarde de tocar nisto com a hombridade que deveria, o fato de provocar este questionamento já revela a força da narrativa.
Além disso, gosto de como o design de produção adota um visual limpo, minimalista, que lembra a mesma Apple que distribui o filme e que comenta sobre esta visão binária de Cameron em não enxergar o conflito ético que sua decisão provoca ao seu redor. É como se visse a si mesmo como um príncipe encantado e não percebesse que também pode ser o dragão que está tomando de sua família o direito de poder viver o luto.
A Pior Pessoa do Mundo
4.0 601 Assista AgoraGosto de como Joachim Trier (Oslo 31 de agosto, Mais Forte que Bombas) generosamente desenvolveu um estudo de personagem sobre Julie, mesmo correndo o risco de errar a mão. A questão do lugar de fala vem a mente, mas desde que o artista trabalhe com empatia, a chance de desandar a receita diminui consideravelmente. Aqui, a partir de capítulos subdivididos, o diretor propõe um olhar abrangente em 12 capítulos (que podem ser sugestivos dos 12 meses do ano, e assim dar esta sensação de totalidade).
O conflito dramático pode existir em função de um relacionamento, já que a crise da narrativa inicia a partir de um flerte em uma festa, mas a direção não tenta resumir Julie a isto. Existe muito do que este desejo e que se materializa em como ela enxerga a vida de modo inseguro, até ansioso, tentando decidir qual será sua profissão, com quem quer se relacionar, como se sente consigo mesmo. O sucesso de Joachim está em entender os dilemas que qualquer pessoa sente no mundo de hoje e adaptá-los à personagem, sem julgá-la, enquanto reconhecer que, por ser mulher, enfrenta desafios diferentes do que seriam caso fosse homem.
A atuação de Renate Reinsve, que venceu o prêmio no festival de Cannes do ano passado, tem uma naturalidade gravitacional, que arrasta o espectador para a sua órbita onde permanece enquanto assiste a mundanidade de sua vida como se fosse uma peça de William Shakespeare. Julie é atraente como personagem por ser um espelho a mulheres, e também homens, que correm para encontrar seu lugar no mundo. E Renate compõe a personagem com um misto da exploração do eu, similar à curiosidade de Amélie Poulain, com uma resignação de quem não tenta pedir desculpas, que lembra a Fleabag, ao perceber as escolhas que tomou como parte de quem ela é, muito mais do que um conjunto binário de certos e errados.
Eduardo e Mônica
3.6 366Como faltam comédias românticas iguais a esta, que abraçam o espectador com o desejo de ver o casal título junto diante das dificuldades apresentadas. A partir da composição de Renato Russo, cujas passagens são reproduzidas sem o alarde de parecerem um fan service (Eduardo joga futebol de botão com seu avô de um jeito bem casual, enquanto Mônica fala de Bauhaus e Nouvelle Vague dentro de uma conversa casual), temos um romance que, semelhante ao visto em Licorice Pizza, desafia o conceito de maturidade quando coloca uma mulher adulta relacionando-se com um jovem à beira de prestar vestibular.
É uma premissa que revela o estado emocional de Mônica depois da perda do pai e como este caminho sombrio a leva a conhecer um jovem de alma vibrante, cuja ingenuidade típica da idade representa aqueles mesmos valores que buscam no amor. Enquanto vemos o romance florescer a partir da osmose de cultura, conhecimento e vontade de enxergar o mundo a partir de um olhar mais simples que flui de uma parte para outra e vice-versa, o conflito que os ameaça é bem melhor elaborado do que mentiras, traições ou outros romances. Já que a imaturidade e mesmo a dureza do coração são obstáculos tratados com realismo e naturalidade por René Simões.
A direção é gostosa, por resgatar um período nostálgico do tempo inspirado pela canção, mas é também remissiva aos dias de hoje, já que tudo o que está acontecendo é em um período simultâneo ao regime militar, cujas raízes ainda podem ser enxergadas expostas na cabeça de muitos. Tudo criado a partir de um contraste que favorece a beleza dos quadros, sem esquecer a densidade e textura emocionais necessárias para que o romance de Eduardo e Mônica não seja apenas água com açúcar.
E disto não tem nada, muito por conta da atuação de Alice Braga. Difícil não se apaixonar pela composição da atriz, que mescla um inconformismo com rebeldia de quem deseja criar o caminho do sucesso rejeitando aquele estabelecido pela mãe (e pelas normas sociais e tradicionais), embora não deixe transparecer um retrato unidimensional de uma mulher forte e inabalável. Sua Mônica sente; sua tristeza machuca, seus sorrisos contagiam. Já Gabriel Leone tem um papel mais difícil porque Eduardo tem uma trajetória mais óbvia, tentando provar a Mônica (e a nós) que sua idade não é sinônimo de unidimensionalidade. Assim, Gabriel trabalha as expectativas óbvias que criamos em torno dele e não as subverte. Pelo contrário, pede que enxerguemos além delas e encontremos o jovem idealista e apaixonado que um dia podemos ter sido.
No processo, René, Alice e Gabriel transformam a canção que embalou amores e romances no filme que deveria ser, fazendo jus a Renato Russo sem deixar de ter identidade própria.
Bar Doce Lar
3.5 132 Assista AgoraAlém de já haver assistido a histórias de amadurecimento além da conta, também estou familiarizado com a ideia de escrever de si mesmo com a autocrítica em relação a seus atos e calorosidade quanto àqueles que estiveram juntos nesta caminhada. Este trabalho dirigido por George Clooney, que a cada filme perde a personalidade apresentada em Boa Noite, Boa Sorte e Tudo pelo Poder, bate nas mesmas teclas mas com atuações que cativam por nos pegarem desprevenidos: Christopher Lloyd e sobretudo Ben Affleck ajudam esta narrativa a agradar, mesmo quando se mantém no conforto do lugar comum.
O roteiro é estrutura na memória distante de JR, quando é obrigado a se mudar, com a mãe, para a residência do avô, e na memória próxima, já na faculdade, quando decide que irá escrever as memórias acerca de sua vida. Pode haver histórias de vida mais cinematográficas do que a de JR, mas não há como diminuir a trajetória individual de cada um, e George Clooney tenta manter um otimismo inabalável pela narrativa - nem que nuvens espessas cubram aquela família.
Melhor do que o texto propriamente dito é a reconstrução de época, evocada nas canções do período e nos figurinos - mas, de novo, nada que não houvéssemos visto antes e até melhor, considerando o êxito de Licorice Pizza, lançado no mesmo ano e que tem uma abordagem semelhante. De todo modo, mesmo que aquém às possibilidades de seu diretor, este drama tem o benefício do aconchego. E tem estado mais e mais infrequente encontrar filmes gentis e carinhosos com os personagens que povoam seus mundos, mesmo que este mundo não seja tão interessante quanto outros.