Este precioso filme é, ele todo, um libelo humanista, uma declaração de fé na capacidade do homem de fazer o bem e uma defesa inegável da paz e um grito anti-belicista. Mas veja, esse filme é também uma alegoria da Segunda Guerra, da qual o diretor George Stevens participou, encarando seus horrores de frente.
Tomemos a família Starret e os demais colonos como a Europa, os invasores capitaneados por Ryker como a Alemanha Nazista e Hitler. Shane é os EUA, um forasteiro - como eram os americanos na Europa - que chega para defender os habitantes locais de uma ameaça que não é estrangeira: uma vilão que também é nativo e que tem como objetivo ampliar suas terras. Um vião que enxerga aqueles que não são parte dos seus e que se opõem aos seus interesses como seres inferiores, obstáculos a serem tirados do caminho.
Para muitas pessoas, todo aquele que é radicalmente diferente, moralmente, intelectualmente, culturalmente, é considerado inferior, desprezível ou burro. No filme, Ryker e seus comparsas tinham essa visão em relação aos colonos. E os colonos deviam ter a mesma opinião a respeito do Ryker. Na Segunda Guerra, Hitler fazia esse mesmo julgamento em relação aos judeus, por exemplo.
Infelizmente, durante a história humana, nossa espécie sempre partiu para a guerra, para a agressão, para o extermínio do outro, do diferente, em vez de tentar compreende-lo, aceita-lo e ajuda-lo. Por outro lado, o outro, ao tomarmo-nos também como "o outro", muitas vezes se recusa também a aceitar, a tolerar. Aí, neste impasse, na divergência, temos a guerra, o conflito. Dizem que quando um não quer, dois não brigam. Bom, pode até ser que eles não briguem, mas para que um mate o outro, basta que um queira. A vida, enfim é cruel e nada democrática.
No filme, Ryker e seus comparsas equivalem a Hitler e os nazista. São o mal maior, absoluto, total, que não pode ser redimido, curado, e precisa, portanto, ser exterminado. Shane é equivale ao exército dos EUA, que teve papel definitivo na derrota alemã. É o mal necessário, a força bruta empregada em nome de um bem maior.
Um filme que conta, por meio da história de uma família, uma parte da história de uma nação. Essa curta sinopse poderia perfeitamente descrever diversos filmes, mas talvez E o vento Levou e Assim Caminha a Humanidade sejam os mais notórios. Este Cimarron, porém, surpreende pois, apesar de ser um western clássico na maior parte de sua duração, apresenta em sua trama elementos - ao meu ver - pouco comuns e bastante ousados para época.
Alguns o acusam levianamente de ser um filme machista, racista e preconceituoso, quando na verdade ele não é nada disso. Os indígenas não são, em momento algum do filme, retratados como selvagens sanguinários, tal como na quase totalidade dos faroestes já feitos, a exemplo de No Tempo das Diligencias. Ao contrário, são defendidos pelo protagonista Yancey Cravat em diversas cenas.
O modo como o filme retrata os negros é mais realista e fiel aos fatos do que propriamente racista, afinal naquela época, nos EUA, os negros, livres ou não, era tratados exatamente daquele modo, ou até mesmo pior. Basta nos lembrarmos de filmes como 12 Anos de Escravidão. Filmes como o superestimado E o vento Levou, são inequivocadamente mais racistas e preconceiturosos, pois retratam os escravos como seres passivos e felizes em sua condição de subserviencia.
As cenas envolvendo as meretrizes lideradas por Dixie Lee, especialmente a do julgamento de Lee, que acaba sendo acusada de imoralidade por grupo de mulheres defensoras da ''moral de dos bons costumes'', e tem sua defesa feita também por Yancey Cravat, é um ousado momento de feminismo e ataque ao falso moralismo que impera nas sociedades humanas há tanto tempo quanto a própria prostituição. Há ainda a ''cutucada marota'' que o roteiro dá no anti-semitismo - outra característica também ainda presente na sociedade estadunidense. Basta lembrarmos do clássico A Luz é para Todos, de Elia Kazan.
Outra acusação injustamente dirigida ao filme é que o seu título não teria sentido algum. Mas apesar de no filme isso não ser colocado de modo explícito, a palavra Cimarron, além de ser um apelido de Yancey e posteriormente o nome dado ao seu filho mais velho, também é uma palavra espanhola que pode significar uma denominação dada a um animal que havia sido domesticado, mas que fugiu e se tornou selvagem, ou uma planta que cresce no campo ou na selva, sem intervenção humana, ou ainda um ''lugar turbulento''.
Os defeitos que podem ser apontados no filme são os mesmos existentes em praticamente qualquer faroeste feito nessa époco e nas décadas posteriores: a omissão do massacre dos povos inígenas durante a expansão territorial, a história sendo contatada sempre a partir do olhar do ''homem branco'', retratado como desbravador heróico. Apesar disso, Cimarron é um faroeste épico com surpreende toques de militancia pró-feminista e defesa dos direitos civis de minorias.
Acho esse filme um porre, filme esquizofrenico, irritante, parece um carro alegórico feito pelo Joãozinho Trinta depois de tomar ecstasy. Aliás, Baz Luhrmann está mais pra carnavalesco do que pra cineasta. O que ele fez com O Grande Gatsby é digno de pena. Pura confeitaria vazia e enjoativa. Austrália, por exemplo, é, pra mim, um dos piores filmes de todos os tempos.
Acabei de assistir e fiquei fascinado. Não é só um dos melhores filmes de 2014 e um dos meus favoritos ao Oscar: é um dos melhores filmes qua já vi, e olha que assistir filmes é coisa que eu levo muito à sério. Mas não vá ao cinema esperando um filme de super-herói, pois esse filme não trata disso - ao menos, não de um tipo convencional de herói. É um filme ágil, inteligentíssimo, cheio de momentos inusitados e divertidos, magistralmente dirigido por Iñarritu e interpretado pelo brilhante elenco. E ainda é diferente de tudo o que eu já vi. Atenção às questões que ele propõe sobre a diferença entre arte e entretenimento (são mesmo coisas opostas?), sobre o fazer ou a labuta artística e sobre as relações entre a crítica e o artista, entre o artista e sua obra, entre o público e a obra, entre o público e o artista... enfim... Sem dúvida um filme para se ver, rever e ficar dias com ele na cabeça, matutando...
Bastardos Inglórios não é apenas um filme sobre vingança. Bastardos Inglórios não é igual a todos os filmes do Tarantino - e ainda que o fosse, estaria necessariamente desprovido de qualidades? Todavia, trata-se de um filme no qual Tarantino demonstra notável evolução, indo além do seu arsenal corriqueiro (os filmes B de artes marciais, por exemplo, e elementos a cultura pop, como músicas da Madona), dotado de nostalgia e saudosismo, e parte para uma temática dita mais "séria", já explorada à exaustão pelo cinema de arte, especialmente na profundamente semita hollywood: o nazismo e o holocausto. Neste seu filme, Tarantino burla radical e malandramente a norma dos filmes desse gênero, inserindo um humor mais ácido que aquele no qual Benigni mergulha o seu A Vida é Bela (La Vita è Bella, 1997). E o faz demonstrando impressionante, ousado e fluente uso da linguagem em suas variáveis através da linguagem que já provara dominar anteriormente: a cinematográfica.
Quando assistimos a qualquer sob o holocausto e os horrores cometidos pelos nazistas, a despeito da satisfação causada pelo deleite de uma obra artística, sentimo-nos tristes, pesados, incompletos, por mais que o final seja tecnicamente feliz, como acontece em A Vida é Bela, por exemplo. Falta-nos a catarse propiciada pela punição dada ao vilão. Em geral, não torcemos apenas para que o herói/protagonista saia-se bem. Torcemos também para o vilão/antagonista se F#@#$§#@&%&%!
O problema de filmes baseados em fatos reais, como o caso daqueles que abordam o holocausto, é a necessidade de certa atenção aos fatos históricos. Em se tratando de filmes baseados em histórias reais, essa limitação à realidade (ou à sua versão) é ainda maior, como é o caso dos soberbos O Diário de Anne Frank (The Diary of Anne Frank, 1959), A Lista de Schindler (Schindler's List, 1993) e O Pianista (The Pianist, 2002). Em se tratando de vilões tão monstruosos, temíveis e execrados como os nazistas, essa certa sede de vingança se torna ainda maior e, consequentemente, tanto maior tem sido o sabor da decepção, a cada filme em cujo final vemos vilões escaparem sem punição, como aconteceu com Menghelle e Hitler, por exemplo, cujos reais paradeiros após a Segunda Guerra até hoje não passam de hipóteses almejando o status de teoria.
Por escolher trabalhar com um roteiro original, escrito por ele mesmo, Tarantino, quebra este pacto com a veracidade histórica para nos entregar aquela ansiada catarse. O simples fato de a cúpula nazista, em seu filme, ser massacrada dentro de um cinema é, por si só, um mote brilhantemente, mas arriscado. Afinal, é historicamente verificável que muitos nazistas não receberam nenhuma punição por seus crimes e seu paradeiro é incerto. A cena final do filme, portanto, proporciona ao expectador uma catarse adiada por mais de 50 anos e que a realidade e a história jamais poderiam dar: a vingança final, sangrenta e insana, contra os detestáveis nazistas. E essa catarse, porém, que só foi possível por meio de um filme, acontece dentro de um cinema, o cinema administrado por uma mulher judia sobrevivente - enfim, temos aqui a metalinguagem.
Não bastasse isso, durante todo o roteiro Tarantino brinca com a linguagem, fazendo das palavras e dos sentidos ocultos nos signos, símbolos e sinais que usamos constantemente para nos comunicar, tornarem-se o centro da ação e da tensão no filme. Na cena que abre o filme, vemos o fazendeiro francês Perrier LaPadite (Denis Menochet) recebendo a inesperada visita do Coronel Hans Landa (Christoph Waltz), conhecido como “o caçador de judeus”. O contexto é a França sob ocupação nazista e a visita deve-se à uma razão: monsieur LaPadite é suspeito de esconder judeus - mais especificamente, a família Dreyfus. Como quem nada tem a temer – e sem nenhum outra opção - o fazendeiro aceita receber o coronel em sua casa. Sentados à mesa, oferece-lhe algo para beber. A escolha do militar nazista é inusitada: ele pede um inocente copo de leite. A intenção do diretor, porém, vai além de simplesmente produzir um momento de humor absurdo com a visão de um inescrupuloso nazista sorvendo um copo de leite. Para, Tarantino, o copo de leite é um símbolo que representa algo maior e muito pior, e é com símbolos como um copo que leite, que ele construirá a narrativa de seu filme – um filme repleto de camadas, de entrelinhas, de sentidos ocultos a serem decifrados.
Há alguns anos, supremacistas brancos, especialmente nos Estados Unidos, adotaram o leite como símbolo de sua aclamada superioridade racial. Sua crença se baseia na mutação que faz com que alguns grupos humanos produzam uma enzima chamada “lactase”, que permite a digestão do leite, por meio da quebra da “lactose”, que é o açúcar do leite. Os supremacistas brancos acreditam-se evolutivamente superiores pelo fato de haver uma correlação geográfica e histórica da tolerância ao leite, com a identidade étnica branca.
De acordo com pesquisadores como Jared Diamond, nos livros O Terceiro Chimpanzé e Armas, Germes e Aço, há milhares de anos, nossos ancestrais ingeriam apenas leite materno, somente durante os primeiros anos de vida. A domesticação da cabra, há cerca de 10.500 anos, no Oriente Médio, e do o gado, na Europa, há cerca de 7.500 anos atrás, fez do leite desses animais um elemento importante da alimentação humana. A partir de então, a seleção natural favoreceu, nestes grupos, aqueles indivíduos que possuíam uma mutação que os tornava capazes de “tolerar” a lactose. Desse modo, os indivíduos intolerantes à lactose são, portanto, aqueles que não têm essa mutação genética.
No caso do consumo do leite bovino, essa mutação apareceu em comunidades primitivas de pastores na Europa. Por isso, entre povos nativos da África, das Américas, da Austrália e de grande parte da Ásia, essa mutação é inexistente e populações descendentes dessas regiões apresentam maior taxa de intolerância à lactose. Mas isso não significa, absolutamente, que as pessoas tolerantes à lactose sejam evolutivamente superiores àquelas que não são. Se essa conclusão fosse verdadeira, os indivíduos intolerantes à ela já teriam simplesmente sido extintos pela seleção natural.
Contudo, isso não impediu que movimento supremacista branco dos EUA, que se autodenomina "alt-right", adotasse o leite como um símbolo. Há alguns anos, no 4Chan, fórum da Deep Web onde esses supremacistas planejam ataques como o de Christchurch, na Nova Zelândia, no dia 15 de Março de 2019, que deixou 51 mortos, um “poema” racista foi úblicado. Ele dizia: "as rosas são vermelhas, o Barack é meio preto; se você não pode beber leite, precisa voltar”. Neste mesmo fórum da Deep Web, outros tópicos de discussão de supremacistas brancos apresentam um mapa do mundo que destaca as regiões onde há populações com tolerância e intolerância à lactose. Atualmente, em redes sociais como o Twitter, Facebook e Instagran, o copo de leite figura, ao lado do medo “Pepe the Frog” como símbolo dos supremacistas brancos.
Na década de 1920, um panfleto do Conselho Nacional de Laticínios dos EUA, dizia que as pessoas que usam grandes quantidades de leite em sua dieta seriam “progressivas na ciência e em todas as atividades do intelecto humano". O livro História da Agricultura do Estado de Nova York, publicado em 1933 afirmava: “Um olhar casual sobre as raças das pessoas parece mostrar que aqueles que usam muito leite são os mais fortes física, mental e fisicamente, e os mais duradouros do mundo. De todas as raças, os arianos parecem ter sido os bebedores mais pesados de leite e os maiores usuários de manteiga e queijo, um fato que pode em parte explicar o rápido e alto desenvolvimento dessa divisão de seres humanos. ”
Por seu turno, a socióloga Melanie DuPuis afirmou que o leite estava simbolicamente ligada aos corpos de pele branca que eram mais capazes de digeri-la devido a uma mutação genética conhecida como “persistência da lactase”. Segundo ela, as propagandas de leite do início do século XX perpetuaram esse estereótipo, muitas vezes justapondo imagens de pessoas de aparência saudável e pele clara com pessoas de aparência doentia e pele mais escura. “Ao declarar o leite perfeito”, diz DuPuis, “os europeus brancos do norte anunciaram sua própria perfeição”. Segundo ela, o leite foi central para a construção do moderno estado-nação ocidental, controlado por uma elite branca de origem europeia.
Por fim, se por um lado, o consumo de laticínios simboliza, na mentalidade dos supremacistas e racistas, a superioridade branca, por outro lado, o consumo de vegetais como a soja representa, há muito tempo, o oposto: fraqueza, inferioridade intelectual, negritude e até mesmo emasculação. Defensores de superadas teorias eugenistas do século XIX, para justificar o colonialismo britânico, dividiam o mundo em "comedores de carne intelectualmente superiores e comedores inferiores de plantas". Neste ínterim, os povos asiática, que tem na soja, no sorgo e no arroz, a base de sua dieta, era classificados na última categoria humana.
Todavia o copo de leite não é o único símbolo explorado por Tarantino. Todo o filme é um profundo e complexo estudo semiótico no qual o diretor explora a linguagem quanto representação e o cinema enquanto representação e linguagem. Voltando à magistral cena inicial, a conversa entre Hans Landa e LaPadite, que se alterna entre o francês e o inglês, como numa queda de braço verbal, onde um interlocutor tenta, por meio de palavras cujo sentido muitas vezes é velado, tenta subjugar o outro os esquivar-se dele. Assim, Tarantino explora a versatilidade da linguagem e também sua complexidade: às palavras, somam-se a entonação, a expressão facial, o olhar. Todos elementos que se combinam numa infinidade de variáveis quando se quer dizer algo. Atento à cada um desses elementos, Landa vai espreitando LaPadite, fazendo com que ele se denuncie. Finalmente, depois de um longo embate, Landa subjuga LaPadite e persuade a delatar, usando apenas os olhos, o esconderijo da família judia que ele esconde.
Outro exemplo é a cena em que o personagem de Fassbender pede mais alguns copos de cerveja e, pelo como como sinaliza com os dedos a quantidade desejada, acaba acidentalmente entregando sua identidade oculta. Do mesmo, o uso de símbolos como um copo de leite, um sinal numérico com os dedos ou determinado sotaque, são elementos utilizados para identificação do que é tolerável ou aceitável, e do que é intolerável ou inaceitável: uma identidade, um grupo étnico, uma ideologia, etc. Usamos símbolos para identificar os desejados e os indesejados, os superiores e os inferiores, os aliados e os adversários.
No seu jogo de signos, Tarantino abre espaço não apenas para a intepretação destes, mas principalmente para sua subversão. A começar por subverter a estratégia nazista de marcar os judeus com a estrela de Davi, para que eles sejam reconhecidos e identificados. Tarantino usa essa tática contra os nazistas, ao fazer com que os integrantes dos Bastardos cacem nazistas e marquem suas testas com a suástica cortada com faca. Com isso, Tarantino argumenta que nazistas, fascistas, supremacistas e racistas não podem ficar oculto nas sombras, maquinando genocídios, impunes para propagar seu discurso de ódio. Não se tolera nazistas, fascistas, supremacistas e racistas. Com nazistas, fascistas, supremacistas e racistas, não deve haver empatia, respeito ou solidariedade. Nazistas, fascistas, supremacistas e racistas devem ser marcados, identificados e, se possível eliminados.
Nesse sentido, temos o elemento mais comum à obra de Tarantino: a vingança. Na trama, temos a vingança da jovem Shoshanna, única sobrevivente da família Dreyfuss, contra Hans Landa. Em sua vingança, Tarantino realiza a sua. A vingança de Shoshanna contra seu inimigo nazista é a vingança cinematográfica do diretor com todos os Nazistas. É uma vingança subversiva, por meio da qual Tarantino altera os conhecidos rumos da história para dar o merecido castigo à escória hitlerista.
Com esse filme, portanto, vemos que Tarantino amadureceu, e ainda que esteja para brincadeiras, elas não são banais, nem tolas. A cena final, em que o tenente Aldo Reine olha para a câmera (posicionada num contra plongée característico do diretor) e diz "acho que esta é minha obra-prima", após marcar, merecidamente, a testa de um nazista cruel e ardiloso que pretendia sair impune (como muitos, ao final, saíram) é, como dizem por aí, "o Auge"!
No Country for Old Man é um grande filme, mas sua falta de obviedade naturalmente afasta os apreciadores de obras mais "mastigadinhas". O final, no qual o vilão não é punido, como muitos esperaram e como é tão comum no cinema hollywoodiano, deixou alguns perplexos e outros decepcionados. Essa foi uma das coisas que eu mais ouvi nas críticas ao filme feitas por aqueles que não gostaram dele, pois para muitos o vilão precisa ter um final trágico, que moralize a história e propicie uma catarse ao expectador. Mas isso não acontece. Contudo, esse é dos pontos nos quais reside a força e o apelo do filme.
Primeiramente, é bom ter em mente que o personagem de Josh Brolin não é o protagonista, apesar da narrativa gerar em torno dele. O principal personagem é o de Tommy Lee Jones, e toda a história é contada do ponto de vista dele, e portanto analisada sob os valores dele. Ele é o velho homem que não entende mais o mundo em que vive. Ele é o velho homem deslocado em sem lugar na sociedade atual, onde os valores nos quais ele fora criado estão se esvaindo.
Na cena final do filme, quando ele visita um velho amigo que, assim como ele, havia sido um "homem da lei" e que estava numa cadeira de rodas por causa de um tiro que levou em serviço, o xerife narra um sonho que teve. Nesse sonho ele está cavalgando com seu pai, que também era xerife, numa noite escura e muito fria, e seu pai está carregando uma tocha. Esse sonho é muito simbólico e elucidativo daquela que é essência do filme: no mundo de hoje, no qual a violência se banalizou, os valores tradicionais, a moral, a retidão, estão perdidos e aqueles que os quiserem manter terão muita dificuldade em se adaptar.
Não há, enfim, lugar para gente velha, mas não no sentido cronológico, e sim paradigmático. É um filme duro, áspero, no qual os irmãos Coen brilhantemente expõem sua visão pessimista e cínica do mundo. Obra-prima!
Muitas pessoas não gostam ou não gostaram de O Iluminado por duas razões: ou esperaram dele um filme de terror+suspense do modo padrão, ou porque esperaram uma adaptação fiel do livro de Stephen King. Contudo, ao Kubrick não interessava nem fazer um coisa, nem outra. No livro, por exemplo, o personagem de Jack Torrence está num hotel assombrado por fantasmas/espíritos, e acaba sendo possuído por esse mal, que o leva a empreender uma chacina. Mas essa ideia de uma mal externo ao homem que o leva a cometer coisas horríveis é o oposto do que Kubrick pensava e que está demonstrado em sua filmografia. Para Kubrick o mal é algo intrínsico ao homem e esse mal só é controlado de um modo muito precário pela normas sociais. Em seu filme, portanto, Kubrick nos dá uma outra perspectiva do que acontece naquele hotel. O isolamento leva à ausência de normas que controlem os instintos mais primitivos e animalescos do homem, que, desprovido do senso e do controle da civilidade, deixará tomar-se por esse mal que traz em sua âmago. Por isso, os medo que o filme gera e o susto que ele provoca é mais profundo que os sustos e medos pontuais dos tradicionais filmes de terror, pois mostra que o mal é o homem e está nele, e, portanto, está em todos nós. Assim, o que nos arrepia é saber que Jack Torrence pode ser qualquer um de nós. Como disse Thomas Hobbes: "o homem é o lobo do homem".
Um excelente filme! Pena que algumas pessoas insistem em comparar com o primeiro filme da série, de 1979, se privando de apreciar as qualidades próprias de cada um. Aliens - O Resgate é tão bom quanto Aliens - O Oitavo Passageiro. São filmes com propostas diferentes, mas muito sólidos. Ridley Scott fez um supense calcado na idéia de um invasor, de "um corpo estranho", que ecoou fundo numa geração que viu a AIDS surgir e se espalhar, no final da década de 1970. Já James Cameron quis fazer um filme mais de aventura que de suspense, calcado num conceito profundo de maternidade, de procriação, de manutenção de espécie. O atuação de Sigourney é impressionante, o embate entre ela e a Alien Rainha explicita todos esses conceitos que mencionei. No primeiro filme, a idéia chave era "sobreviver à presença de um ser estranho", enquanto no segundo era "sobreviver em um mundo estranho".
Um filme subestimado, exatamente por que foi compreendido por pouquíssimas pessoas. Apesar do que ele aparenta em sua superfície, seu tema não é a sexualidade. A questão que ele trata é mais profunda e abrangente: da relação entre o que somos e o que aparentamos ser, entre o trazemos por dentro (contradições, dores, angústias, conflitos, carências) e o que revelamos por fora (ideais de perfeição, sorrisos forçados, aparências...). É o absurdo que nasce do fato de que, nem sempre, corpo e alma, carne e espírito, se completam, se coadunam. A existência, enfim, é um doloroso e constante processo de adaptação à realidade - ou entre duas realidades, a externa e a interna.
Os Brutos Também Amam
4.0 184 Assista AgoraEste precioso filme é, ele todo, um libelo humanista, uma declaração de fé na capacidade do homem de fazer o bem e uma defesa inegável da paz e um grito anti-belicista. Mas veja, esse filme é também uma alegoria da Segunda Guerra, da qual o diretor George Stevens participou, encarando seus horrores de frente.
Tomemos a família Starret e os demais colonos como a Europa, os invasores capitaneados por Ryker como a Alemanha Nazista e Hitler. Shane é os EUA, um forasteiro - como eram os americanos na Europa - que chega para defender os habitantes locais de uma ameaça que não é estrangeira: uma vilão que também é nativo e que tem como objetivo ampliar suas terras. Um vião que enxerga aqueles que não são parte dos seus e que se opõem aos seus interesses como seres inferiores, obstáculos a serem tirados do caminho.
Para muitas pessoas, todo aquele que é radicalmente diferente, moralmente, intelectualmente, culturalmente, é considerado inferior, desprezível ou burro. No filme, Ryker e seus comparsas tinham essa visão em relação aos colonos. E os colonos deviam ter a mesma opinião a respeito do Ryker. Na Segunda Guerra, Hitler fazia esse mesmo julgamento em relação aos judeus, por exemplo.
Infelizmente, durante a história humana, nossa espécie sempre partiu para a guerra, para a agressão, para o extermínio do outro, do diferente, em vez de tentar compreende-lo, aceita-lo e ajuda-lo. Por outro lado, o outro, ao tomarmo-nos também como "o outro", muitas vezes se recusa também a aceitar, a tolerar. Aí, neste impasse, na divergência, temos a guerra, o conflito. Dizem que quando um não quer, dois não brigam. Bom, pode até ser que eles não briguem, mas para que um mate o outro, basta que um queira. A vida, enfim é cruel e nada democrática.
No filme, Ryker e seus comparsas equivalem a Hitler e os nazista. São o mal maior, absoluto, total, que não pode ser redimido, curado, e precisa, portanto, ser exterminado. Shane é equivale ao exército dos EUA, que teve papel definitivo na derrota alemã. É o mal necessário, a força bruta empregada em nome de um bem maior.
Cimarron
3.1 36 Assista AgoraUm filme que conta, por meio da história de uma família, uma parte da história de uma nação. Essa curta sinopse poderia perfeitamente descrever diversos filmes, mas talvez E o vento Levou e Assim Caminha a Humanidade sejam os mais notórios. Este Cimarron, porém, surpreende pois, apesar de ser um western clássico na maior parte de sua duração, apresenta em sua trama elementos - ao meu ver - pouco comuns e bastante ousados para época.
Alguns o acusam levianamente de ser um filme machista, racista e preconceituoso, quando na verdade ele não é nada disso. Os indígenas não são, em momento algum do filme, retratados como selvagens sanguinários, tal como na quase totalidade dos faroestes já feitos, a exemplo de No Tempo das Diligencias. Ao contrário, são defendidos pelo protagonista Yancey Cravat em diversas cenas.
O modo como o filme retrata os negros é mais realista e fiel aos fatos do que propriamente racista, afinal naquela época, nos EUA, os negros, livres ou não, era tratados exatamente daquele modo, ou até mesmo pior. Basta nos lembrarmos de filmes como 12 Anos de Escravidão. Filmes como o superestimado E o vento Levou, são inequivocadamente mais racistas e preconceiturosos, pois retratam os escravos como seres passivos e felizes em sua condição de subserviencia.
As cenas envolvendo as meretrizes lideradas por Dixie Lee, especialmente a do julgamento de Lee, que acaba sendo acusada de imoralidade por grupo de mulheres defensoras da ''moral de dos bons costumes'', e tem sua defesa feita também por Yancey Cravat, é um ousado momento de feminismo e ataque ao falso moralismo que impera nas sociedades humanas há tanto tempo quanto a própria prostituição. Há ainda a ''cutucada marota'' que o roteiro dá no anti-semitismo - outra característica também ainda presente na sociedade estadunidense. Basta lembrarmos do clássico A Luz é para Todos, de Elia Kazan.
Outra acusação injustamente dirigida ao filme é que o seu título não teria sentido algum. Mas apesar de no filme isso não ser colocado de modo explícito, a palavra Cimarron, além de ser um apelido de Yancey e posteriormente o nome dado ao seu filho mais velho, também é uma palavra espanhola que pode significar uma denominação dada a um animal que havia sido domesticado, mas que fugiu e se tornou selvagem, ou uma planta que cresce no campo ou na selva, sem intervenção humana, ou ainda um ''lugar turbulento''.
Os defeitos que podem ser apontados no filme são os mesmos existentes em praticamente qualquer faroeste feito nessa époco e nas décadas posteriores: a omissão do massacre dos povos inígenas durante a expansão territorial, a história sendo contatada sempre a partir do olhar do ''homem branco'', retratado como desbravador heróico. Apesar disso, Cimarron é um faroeste épico com surpreende toques de militancia pró-feminista e defesa dos direitos civis de minorias.
Moulin Rouge: Amor em Vermelho
4.1 1,8K Assista AgoraAcho esse filme um porre, filme esquizofrenico, irritante, parece um carro alegórico feito pelo Joãozinho Trinta depois de tomar ecstasy. Aliás, Baz Luhrmann está mais pra carnavalesco do que pra cineasta. O que ele fez com O Grande Gatsby é digno de pena. Pura confeitaria vazia e enjoativa. Austrália, por exemplo, é, pra mim, um dos piores filmes de todos os tempos.
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
3.8 3,4K Assista AgoraAcabei de assistir e fiquei fascinado. Não é só um dos melhores filmes de 2014 e um dos meus favoritos ao Oscar: é um dos melhores filmes qua já vi, e olha que assistir filmes é coisa que eu levo muito à sério.
Mas não vá ao cinema esperando um filme de super-herói, pois esse filme não trata disso - ao menos, não de um tipo convencional de herói. É um filme ágil, inteligentíssimo, cheio de momentos inusitados e divertidos, magistralmente dirigido por Iñarritu e interpretado pelo brilhante elenco. E ainda é diferente de tudo o que eu já vi.
Atenção às questões que ele propõe sobre a diferença entre arte e entretenimento (são mesmo coisas opostas?), sobre o fazer ou a labuta artística e sobre as relações entre a crítica e o artista, entre o artista e sua obra, entre o público e a obra, entre o público e o artista... enfim...
Sem dúvida um filme para se ver, rever e ficar dias com ele na cabeça, matutando...
Bastardos Inglórios
4.4 4,9K Assista AgoraBastardos Inglórios não é apenas um filme sobre vingança. Bastardos Inglórios não é igual a todos os filmes do Tarantino - e ainda que o fosse, estaria necessariamente desprovido de qualidades? Todavia, trata-se de um filme no qual Tarantino demonstra notável evolução, indo além do seu arsenal corriqueiro (os filmes B de artes marciais, por exemplo, e elementos a cultura pop, como músicas da Madona), dotado de nostalgia e saudosismo, e parte para uma temática dita mais "séria", já explorada à exaustão pelo cinema de arte, especialmente na profundamente semita hollywood: o nazismo e o holocausto. Neste seu filme, Tarantino burla radical e malandramente a norma dos filmes desse gênero, inserindo um humor mais ácido que aquele no qual Benigni mergulha o seu A Vida é Bela (La Vita è Bella, 1997). E o faz demonstrando impressionante, ousado e fluente uso da linguagem em suas variáveis através da linguagem que já provara dominar anteriormente: a cinematográfica.
Quando assistimos a qualquer sob o holocausto e os horrores cometidos pelos nazistas, a despeito da satisfação causada pelo deleite de uma obra artística, sentimo-nos tristes, pesados, incompletos, por mais que o final seja tecnicamente feliz, como acontece em A Vida é Bela, por exemplo. Falta-nos a catarse propiciada pela punição dada ao vilão. Em geral, não torcemos apenas para que o herói/protagonista saia-se bem. Torcemos também para o vilão/antagonista se F#@#$§#@&%&%!
O problema de filmes baseados em fatos reais, como o caso daqueles que abordam o holocausto, é a necessidade de certa atenção aos fatos históricos. Em se tratando de filmes baseados em histórias reais, essa limitação à realidade (ou à sua versão) é ainda maior, como é o caso dos soberbos O Diário de Anne Frank (The Diary of Anne Frank, 1959), A Lista de Schindler (Schindler's List, 1993) e O Pianista (The Pianist, 2002). Em se tratando de vilões tão monstruosos, temíveis e execrados como os nazistas, essa certa sede de vingança se torna ainda maior e, consequentemente, tanto maior tem sido o sabor da decepção, a cada filme em cujo final vemos vilões escaparem sem punição, como aconteceu com Menghelle e Hitler, por exemplo, cujos reais paradeiros após a Segunda Guerra até hoje não passam de hipóteses almejando o status de teoria.
Por escolher trabalhar com um roteiro original, escrito por ele mesmo, Tarantino, quebra este pacto com a veracidade histórica para nos entregar aquela ansiada catarse. O simples fato de a cúpula nazista, em seu filme, ser massacrada dentro de um cinema é, por si só, um mote brilhantemente, mas arriscado. Afinal, é historicamente verificável que muitos nazistas não receberam nenhuma punição por seus crimes e seu paradeiro é incerto. A cena final do filme, portanto, proporciona ao expectador uma catarse adiada por mais de 50 anos e que a realidade e a história jamais poderiam dar: a vingança final, sangrenta e insana, contra os detestáveis nazistas. E essa catarse, porém, que só foi possível por meio de um filme, acontece dentro de um cinema, o cinema administrado por uma mulher judia sobrevivente - enfim, temos aqui a metalinguagem.
Não bastasse isso, durante todo o roteiro Tarantino brinca com a linguagem, fazendo das palavras e dos sentidos ocultos nos signos, símbolos e sinais que usamos constantemente para nos comunicar, tornarem-se o centro da ação e da tensão no filme.
Na cena que abre o filme, vemos o fazendeiro francês Perrier LaPadite (Denis Menochet) recebendo a inesperada visita do Coronel Hans Landa (Christoph Waltz), conhecido como “o caçador de judeus”. O contexto é a França sob ocupação nazista e a visita deve-se à uma razão: monsieur LaPadite é suspeito de esconder judeus - mais especificamente, a família Dreyfus. Como quem nada tem a temer – e sem nenhum outra opção - o fazendeiro aceita receber o coronel em sua casa. Sentados à mesa, oferece-lhe algo para beber. A escolha do militar nazista é inusitada: ele pede um inocente copo de leite. A intenção do diretor, porém, vai além de simplesmente produzir um momento de humor absurdo com a visão de um inescrupuloso nazista sorvendo um copo de leite. Para, Tarantino, o copo de leite é um símbolo que representa algo maior e muito pior, e é com símbolos como um copo que leite, que ele construirá a narrativa de seu filme – um filme repleto de camadas, de entrelinhas, de sentidos ocultos a serem decifrados.
Há alguns anos, supremacistas brancos, especialmente nos Estados Unidos, adotaram o leite como símbolo de sua aclamada superioridade racial. Sua crença se baseia na mutação que faz com que alguns grupos humanos produzam uma enzima chamada “lactase”, que permite a digestão do leite, por meio da quebra da “lactose”, que é o açúcar do leite. Os supremacistas brancos acreditam-se evolutivamente superiores pelo fato de haver uma correlação geográfica e histórica da tolerância ao leite, com a identidade étnica branca.
De acordo com pesquisadores como Jared Diamond, nos livros O Terceiro Chimpanzé e Armas, Germes e Aço, há milhares de anos, nossos ancestrais ingeriam apenas leite materno, somente durante os primeiros anos de vida. A domesticação da cabra, há cerca de 10.500 anos, no Oriente Médio, e do o gado, na Europa, há cerca de 7.500 anos atrás, fez do leite desses animais um elemento importante da alimentação humana. A partir de então, a seleção natural favoreceu, nestes grupos, aqueles indivíduos que possuíam uma mutação que os tornava capazes de “tolerar” a lactose. Desse modo, os indivíduos intolerantes à lactose são, portanto, aqueles que não têm essa mutação genética.
No caso do consumo do leite bovino, essa mutação apareceu em comunidades primitivas de pastores na Europa. Por isso, entre povos nativos da África, das Américas, da Austrália e de grande parte da Ásia, essa mutação é inexistente e populações descendentes dessas regiões apresentam maior taxa de intolerância à lactose. Mas isso não significa, absolutamente, que as pessoas tolerantes à lactose sejam evolutivamente superiores àquelas que não são. Se essa conclusão fosse verdadeira, os indivíduos intolerantes à ela já teriam simplesmente sido extintos pela seleção natural.
Contudo, isso não impediu que movimento supremacista branco dos EUA, que se autodenomina "alt-right", adotasse o leite como um símbolo. Há alguns anos, no 4Chan, fórum da Deep Web onde esses supremacistas planejam ataques como o de Christchurch, na Nova Zelândia, no dia 15 de Março de 2019, que deixou 51 mortos, um “poema” racista foi úblicado. Ele dizia: "as rosas são vermelhas, o Barack é meio preto; se você não pode beber leite, precisa voltar”. Neste mesmo fórum da Deep Web, outros tópicos de discussão de supremacistas brancos apresentam um mapa do mundo que destaca as regiões onde há populações com tolerância e intolerância à lactose. Atualmente, em redes sociais como o Twitter, Facebook e Instagran, o copo de leite figura, ao lado do medo “Pepe the Frog” como símbolo dos supremacistas brancos.
Na década de 1920, um panfleto do Conselho Nacional de Laticínios dos EUA, dizia que as pessoas que usam grandes quantidades de leite em sua dieta seriam “progressivas na ciência e em todas as atividades do intelecto humano". O livro História da Agricultura do Estado de Nova York, publicado em 1933 afirmava: “Um olhar casual sobre as raças das pessoas parece mostrar que aqueles que usam muito leite são os mais fortes física, mental e fisicamente, e os mais duradouros do mundo. De todas as raças, os arianos parecem ter sido os bebedores mais pesados de leite e os maiores usuários de manteiga e queijo, um fato que pode em parte explicar o rápido e alto desenvolvimento dessa divisão de seres humanos. ”
Por seu turno, a socióloga Melanie DuPuis afirmou que o leite estava simbolicamente ligada aos corpos de pele branca que eram mais capazes de digeri-la devido a uma mutação genética conhecida como “persistência da lactase”. Segundo ela, as propagandas de leite do início do século XX perpetuaram esse estereótipo, muitas vezes justapondo imagens de pessoas de aparência saudável e pele clara com pessoas de aparência doentia e pele mais escura. “Ao declarar o leite perfeito”, diz DuPuis, “os europeus brancos do norte anunciaram sua própria perfeição”. Segundo ela, o leite foi central para a construção do moderno estado-nação ocidental, controlado por uma elite branca de origem europeia.
Por fim, se por um lado, o consumo de laticínios simboliza, na mentalidade dos supremacistas e racistas, a superioridade branca, por outro lado, o consumo de vegetais como a soja representa, há muito tempo, o oposto: fraqueza, inferioridade intelectual, negritude e até mesmo emasculação. Defensores de superadas teorias eugenistas do século XIX, para justificar o colonialismo britânico, dividiam o mundo em "comedores de carne intelectualmente superiores e comedores inferiores de plantas". Neste ínterim, os povos asiática, que tem na soja, no sorgo e no arroz, a base de sua dieta, era classificados na última categoria humana.
Todavia o copo de leite não é o único símbolo explorado por Tarantino. Todo o filme é um profundo e complexo estudo semiótico no qual o diretor explora a linguagem quanto representação e o cinema enquanto representação e linguagem. Voltando à magistral cena inicial, a conversa entre Hans Landa e LaPadite, que se alterna entre o francês e o inglês, como numa queda de braço verbal, onde um interlocutor tenta, por meio de palavras cujo sentido muitas vezes é velado, tenta subjugar o outro os esquivar-se dele. Assim, Tarantino explora a versatilidade da linguagem e também sua complexidade: às palavras, somam-se a entonação, a expressão facial, o olhar. Todos elementos que se combinam numa infinidade de variáveis quando se quer dizer algo. Atento à cada um desses elementos, Landa vai espreitando LaPadite, fazendo com que ele se denuncie. Finalmente, depois de um longo embate, Landa subjuga LaPadite e persuade a delatar, usando apenas os olhos, o esconderijo da família judia que ele esconde.
Outro exemplo é a cena em que o personagem de Fassbender pede mais alguns copos de cerveja e, pelo como como sinaliza com os dedos a quantidade desejada, acaba acidentalmente entregando sua identidade oculta. Do mesmo, o uso de símbolos como um copo de leite, um sinal numérico com os dedos ou determinado sotaque, são elementos utilizados para identificação do que é tolerável ou aceitável, e do que é intolerável ou inaceitável: uma identidade, um grupo étnico, uma ideologia, etc. Usamos símbolos para identificar os desejados e os indesejados, os superiores e os inferiores, os aliados e os adversários.
No seu jogo de signos, Tarantino abre espaço não apenas para a intepretação destes, mas principalmente para sua subversão. A começar por subverter a estratégia nazista de marcar os judeus com a estrela de Davi, para que eles sejam reconhecidos e identificados. Tarantino usa essa tática contra os nazistas, ao fazer com que os integrantes dos Bastardos cacem nazistas e marquem suas testas com a suástica cortada com faca. Com isso, Tarantino argumenta que nazistas, fascistas, supremacistas e racistas não podem ficar oculto nas sombras, maquinando genocídios, impunes para propagar seu discurso de ódio. Não se tolera nazistas, fascistas, supremacistas e racistas. Com nazistas, fascistas, supremacistas e racistas, não deve haver empatia, respeito ou solidariedade. Nazistas, fascistas, supremacistas e racistas devem ser marcados, identificados e, se possível eliminados.
Nesse sentido, temos o elemento mais comum à obra de Tarantino: a vingança. Na trama, temos a vingança da jovem Shoshanna, única sobrevivente da família Dreyfuss, contra Hans Landa. Em sua vingança, Tarantino realiza a sua. A vingança de Shoshanna contra seu inimigo nazista é a vingança cinematográfica do diretor com todos os Nazistas. É uma vingança subversiva, por meio da qual Tarantino altera os conhecidos rumos da história para dar o merecido castigo à escória hitlerista.
Com esse filme, portanto, vemos que Tarantino amadureceu, e ainda que esteja para brincadeiras, elas não são banais, nem tolas. A cena final, em que o tenente Aldo Reine olha para a câmera (posicionada num contra plongée característico do diretor) e diz "acho que esta é minha obra-prima", após marcar, merecidamente, a testa de um nazista cruel e ardiloso que pretendia sair impune (como muitos, ao final, saíram) é, como dizem por aí, "o Auge"!
Onde os Fracos Não Têm Vez
4.1 2,4K Assista AgoraNo Country for Old Man é um grande filme, mas sua falta de obviedade naturalmente afasta os apreciadores de obras mais "mastigadinhas". O final, no qual o vilão não é punido, como muitos esperaram e como é tão comum no cinema hollywoodiano, deixou alguns perplexos e outros decepcionados. Essa foi uma das coisas que eu mais ouvi nas críticas ao filme feitas por aqueles que não gostaram dele, pois para muitos o vilão precisa ter um final trágico, que moralize a história e propicie uma catarse ao expectador. Mas isso não acontece. Contudo, esse é dos pontos nos quais reside a força e o apelo do filme.
Primeiramente, é bom ter em mente que o personagem de Josh Brolin não é o protagonista, apesar da narrativa gerar em torno dele. O principal personagem é o de Tommy Lee Jones, e toda a história é contada do ponto de vista dele, e portanto analisada sob os valores dele. Ele é o velho homem que não entende mais o mundo em que vive. Ele é o velho homem deslocado em sem lugar na sociedade atual, onde os valores nos quais ele fora criado estão se esvaindo.
Na cena final do filme, quando ele visita um velho amigo que, assim como ele, havia sido um "homem da lei" e que estava numa cadeira de rodas por causa de um tiro que levou em serviço, o xerife narra um sonho que teve. Nesse sonho ele está cavalgando com seu pai, que também era xerife, numa noite escura e muito fria, e seu pai está carregando uma tocha. Esse sonho é muito simbólico e elucidativo daquela que é essência do filme: no mundo de hoje, no qual a violência se banalizou, os valores tradicionais, a moral, a retidão, estão perdidos e aqueles que os quiserem manter terão muita dificuldade em se adaptar.
Não há, enfim, lugar para gente velha, mas não no sentido cronológico, e sim paradigmático. É um filme duro, áspero, no qual os irmãos Coen brilhantemente expõem sua visão pessimista e cínica do mundo. Obra-prima!
O Iluminado
4.3 4,0K Assista AgoraMuitas pessoas não gostam ou não gostaram de O Iluminado por duas razões: ou esperaram dele um filme de terror+suspense do modo padrão, ou porque esperaram uma adaptação fiel do livro de Stephen King. Contudo, ao Kubrick não interessava nem fazer um coisa, nem outra. No livro, por exemplo, o personagem de Jack Torrence está num hotel assombrado por fantasmas/espíritos, e acaba sendo possuído por esse mal, que o leva a empreender uma chacina. Mas essa ideia de uma mal externo ao homem que o leva a cometer coisas horríveis é o oposto do que Kubrick pensava e que está demonstrado em sua filmografia. Para Kubrick o mal é algo intrínsico ao homem e esse mal só é controlado de um modo muito precário pela normas sociais. Em seu filme, portanto, Kubrick nos dá uma outra perspectiva do que acontece naquele hotel. O isolamento leva à ausência de normas que controlem os instintos mais primitivos e animalescos do homem, que, desprovido do senso e do controle da civilidade, deixará tomar-se por esse mal que traz em sua âmago. Por isso, os medo que o filme gera e o susto que ele provoca é mais profundo que os sustos e medos pontuais dos tradicionais filmes de terror, pois mostra que o mal é o homem e está nele, e, portanto, está em todos nós. Assim, o que nos arrepia é saber que Jack Torrence pode ser qualquer um de nós. Como disse Thomas Hobbes: "o homem é o lobo do homem".
Aliens: O Resgate
4.0 809 Assista AgoraUm excelente filme! Pena que algumas pessoas insistem em comparar com o primeiro filme da série, de 1979, se privando de apreciar as qualidades próprias de cada um. Aliens - O Resgate é tão bom quanto Aliens - O Oitavo Passageiro. São filmes com propostas diferentes, mas muito sólidos. Ridley Scott fez um supense calcado na idéia de um invasor, de "um corpo estranho", que ecoou fundo numa geração que viu a AIDS surgir e se espalhar, no final da década de 1970. Já James Cameron quis fazer um filme mais de aventura que de suspense, calcado num conceito profundo de maternidade, de procriação, de manutenção de espécie. O atuação de Sigourney é impressionante, o embate entre ela e a Alien Rainha explicita todos esses conceitos que mencionei. No primeiro filme, a idéia chave era "sobreviver à presença de um ser estranho", enquanto no segundo era "sobreviver em um mundo estranho".
A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista AgoraUm filme subestimado, exatamente por que foi compreendido por pouquíssimas pessoas. Apesar do que ele aparenta em sua superfície, seu tema não é a sexualidade. A questão que ele trata é mais profunda e abrangente: da relação entre o que somos e o que aparentamos ser, entre o trazemos por dentro (contradições, dores, angústias, conflitos, carências) e o que revelamos por fora (ideais de perfeição, sorrisos forçados, aparências...). É o absurdo que nasce do fato de que, nem sempre, corpo e alma, carne e espírito, se completam, se coadunam. A existência, enfim, é um doloroso e constante processo de adaptação à realidade - ou entre duas realidades, a externa e a interna.