Depois de ter assistido o surpreendente Invocação do Mal, Annabelle realmente fica bem pra trás. Claro, ele foi produzido para ser independente, mas ele ignora dois dos princípios mais legais que regem o primeiro: os exorcistas e a verossimilhança. Uma máquina de costura simplesmente aumenta sua velocidade sem razão diegética alguma, só porque o cineasta quer que a tensão aumente: isso é esfregar a trapaça na cara do espectador. A boneca, apesar de assustadora, se revela não importante, no fim das contas, porque o demônio não precisa dela para agir. Aliás, ele age fisicamente, o que é bastante apelativo e sem graça porque, já que é assim, ele poderia fazer praticamente o que bem quisesse. O rosto do demônio é carregado demais de computação gráfica, o que compromete completamente o envolvimento sensorial do espectador com a cena.
E o pior dos aspectos negativos: a personagem da livraria que é um elemento de enganação desde o começo. Dá a entender que ela conhece o universo e pode combater o inimigo, mas decepciona e sabota o próprio filme. Ela é uma peça avulsa à narrativa, um recurso mal desenvolvido e covarde pro desfecho, em que ninguém se importa com seu drama e definitivamente não convence ninguém de que sua decisão final seria aceitável. Terrível construção.
Acho que a sessão vale exclusivamente pelas referências que faz a outros do gênero como "O Bebê de Rosemary", "Chucky" e até mesmo a Charles Manson, e algumas raras cenas que no decorrer da madrugada me surpreenderam. A cena do elevador como ideia é bastante funcional e a maneira como é filmada é uma das poucas coisas realmente boas do filme. O jeito é esperar por Invocação do Mal 2 pra ver se Annabelle foi um pequeno grande descuido ou se o primeiro Invocação do Mal que foi uma jogada de sorte.
Brilhante história que desafia tabus e determinismos estúpidos da sociedade. O garoto que precisa ir atrás de quem realmente é trocando o boxe pelo balé. Uma escolha de êxito improvável em um universo onde todos estão lutando o tempo todo - e portanto as luvas deveriam ser mais úteis que os sapatos. A perseverança do garoto é bonita porque é pura e legítima, só sendo possível de transparência por ser uma criança ainda não lapidada pelos padrões do mundo. Além disso, mesmo sendo solitário, é valente o suficiente para encarar de frente as adversidades (ainda que seja no sapateado). Tudo fica ainda mais sólido com a cuidadosa construção do personagem que vai desde o seu olhar, ora reprimido, ora sonhador, às suas fraquezas humanas, seus trejeitos infantis e suas respostas inocentes. Nesse aspecto, um olhar atento pode encontrar uma enorme riqueza em Billy.
Basicamente, o que mais cativa na obra é a delicadeza poética que Daldry consegue articular, construindo cenas magníficas, de uma sensibilidade cinematográfica máxima, admirável e invejável. Tem algo de mágico na textura da película, algo de envolvente na trilha sonora, que parece que estamos assistindo a um clássico da Disney em uma instância de verdade possível. Acompanhar a jornada corajosa de Elliot é uma experiência definitivamente encantadora. A cena em que Billy é colocado em cima da mesa para dançar diante dos muros psicológicos certamente ocupa agora uma das posições mais altas das melhores cenas do cinema que eu já vi. A dança que enfrenta o preconceito do pai, o ônibus partindo, o pai furando a greve, a briga com a professora, tudo é tão intenso que foi até difícil enxergar a tela através das lágrimas - ainda que serenas. Não sei se gosto de como o final é construído mas, no geral, é algo de se ficar realmente maravilhado.
Achei um total desperdício de tempo, além de me sentir explorado por Hollywood como nunca fui anteriormente. Quase nada efetivamente importante acontece o filme inteiro, fica a nítida sensação de que só fizeram essa primeira parte para ganhar dinheiro. Tipo, DESCARADAMENTE, preenchendo com muita enrolação.
Nem a admirável atuação da Jennifer Lawrence salvou este e, ao lado dele, os últimos dois são obras-primas. Esse 3º provavelmente é a fruta podre da cesta, porque eu ainda torço por um bom 4º filme.
Quando eu vi o pôster, pensei que seria algo como "Drive" que, no final das contas, tem mesmo alguma semelhança. Essa foi minha única expectativa antes de assistir o filme porque - ainda bem - não tinha assistido o trailer, que agora vejo que é feito de spoilers que estragariam muito da experiência. Recomendo que, se ainda for tempo, também adote esse procedimento.
O filme mostra a evolução de uma ambição cega por sobrevivência, dinheiro e sucesso respectivamente que vai corroendo a capacidade de empatia pela humanidade. Jornais ganham audiência em cima do sangue de outros, empresas conseguem progresso extraindo o máximo da vida de seus funcionários, a exploração canibalesca do capitalismo. O tema é batido, mas a maneira como é tratado é bem interessante. A analogia conta com uma empresa vermelha em alta velocidade que persegue seus objetivos de alto risco e, se o funcionário falha, todo o sistema vai para a direção errada. Dependendo do caso, seu erro pode significar uma morte social e profissional.
Lou, persistente e adaptável, é um representante daqueles que dirigem esse tipo de empresa. Estrategista cruel, negociador terrorista, de simpatia artificial, distúrbios reprimidos, persuasão fria, equilíbrio aparente, solidário egoísta, sistemático e objetivo. Sem dúvida uma das melhores oportunidades de Jake Gyllenhaal mostrar suas capacidades como intérprete - e mostrou. O anti-herói de expressão doente e pedinte, vilão em potencial, rastejando pela noite tentando se agarrar a qualquer atrativo conveniente é um dos grandes êxitos do filme. Com tudo isso, o personagem ficou realmente impecável.
Gilroy foi habilidoso em contextualizar as peças do jogo e ativar os desdobramentos que incitam a tensão da narrativa, que melhora numa progressão surpreendente. É uma pena que a cena do espelho não tenha sido para fins de apreciação, mas as perseguições e a alegoria da obra fazem compensar. A trilha sonora me causou um estranhamento enorme, mas quando eu entendi que a ironia e surgiram os vestígios de humor negro, ela passou a fazer sentido.
Se eu disser que conheço vários empresários como Lou e sou cinegrafista freelancer, não preciso mais dizer o quanto me relacionei com o filme - e assim viro suspeito. Excelente trabalho.
O filme sofre do mesmo problema da grande maioria das biografias: um amontoado de resumos que dificilmente me dá tempo de sentir o que está em jogo. Percebi que isso seria recorrente a partir da cena do baile, no começo, onde desperdiçam uma analogia com o brilho das estrelas, o que daria uma cena linda se fosse trabalhada para ser apreciada cinematograficamente. Também tive um pequeno problema com os diálogos que constantemente estão pressionando o personagem a dizer coisas inteligentes e reflexivas o tempo todo. Cada pequena cena é muito romântica e aflorada, o que artificializa os personagens como representações de pessoas que não habitam a ficção. E pra encerrar a sessão de desaprovações, o recurso reverso no final foi bastante previsível e poderia ter se pensado em uma forma menos óbvia e mais criativa, eu acho, apesar de fazer bastante sentido poeticamente.
Gostei muito da interpretação de Redmayne, principalmente quando só se é capaz de fazê-lo pelos olhares e pequenos gestos. Seu sorriso foi ficando cada vez mais cativante, assim como também consegui sentir simpatia por todos os outros personagens - tarefa difícil de se fazer em uma situação dessas. Além disso, a semelhança com o verdadeiro Hawking também me surpreendeu. Acho que a direção às vezes deixa algumas cenas prematuras ou mal aplicadas, assim como a que ele levanta pra pegar a caneta na imaginação, mas acerta em algumas outras mais simples, como o seu constrangimento pela dificuldade de jantar à mesa e tenta subir as escadas, várias no processo de separação ou quando na maioria das que os filhos estão presentes. Deixo meu rápido elogio à pós produção no que se refere ao tratamento de cor específico pra cada cena ou ambiente em sintonia ao estado emocional. A trilha sonora foi um aspecto bastante positivo e que conseguiu contribuir pra que eu me envolvesse afetivamente com o drama e com a bela mensagem da obra.
É impressionante ver a naturalidade das relações tanto com o ambiente quanto entre eles mesmos. As condições dos intérpretes trazem muita verdade e crueza ao olhar. Ver a deformação inocente, a aridez do desamparo, crianças com responsabilidades adultas - trocando minas por metralhadoras. Faz repensar a nossa existência cultural, política, econômica, geográfica e principalmente humana.
Pra levantar depois desse filme foi como se de repente eu precisasse de muletas.
Muuuito bom! Não só pela premissa ousada, mas também pela proposta metafórica. Se esses programas de entrevistas americanos são todos roteirizados, fakes, nada melhor do que o mestre da farsa pra derrotar (com palavras) um grande dissimulador, mentiroso e manipulador. Superou minhas expectativas.
Gostei muito de como algumas sutilezas periféricas se deram e como os personagens vão ocupando espaço na trama. Roteiro interessante, com muito suspense e reviravoltas. Se você puder ignorar alguns malabarismos narrativos que só são possíveis no cinema, o filme é excelente! Aliás, eu adoro todos os filmes do Jaume Collet-Serra.
Sou suspeito a dizer por ser encantado com a Vera e por respeitar o James Wan depois de "Sentença de Morte". Foi bom ver um pouco mais da pequena Mackenzie também. Eu queria um filme só pra me distrair e encontrei uma obra muito interessante e realmente assustadora. Assistir sozinho de madrugada parece amplificar tudo, a ponto de se arrepiar só com o suspense. Afinal, quem não se borraria com a ideia de que "tem alguém atrás da porta e está olhando pra gente?". Acho que o roteiro tem a sensibilidade de criar situações bastante assustadoras por serem cotidianas e portanto fazem parte do nosso imaginário comum. Claro que pra isso foi preciso se apropriar de inúmeros clichês (casa mal-assombrada, cachorro, porão, exorcismo, guarda-roupa, espelho, debaixo da cama, etc.) mas de alguma forma articulados de forma criativa. O jogo das palmas, por exemplo, talvez seja um diferencial interessante.
Mas nem tudo são flores também. É muito estranho que os personagens não comentem sobre as situações bizarras que acontecem com eles. Por exemplo, as meninas não contam pros pais que uma bruxa capirota saltou de cima do guarda-roupa pra cima de uma delas. A mãe das meninas, Carolyn, não conta pra ninguém sobre o ocorrido no porão, nem pros exorcistas, e por aí vai. E me incomodou mais ainda o ator que interpreta seu marido, Roger, que fica com cara de piquenique de domingo nas cenas mais tensas de sua esposa possuída. A cadeira flutua, vira de cabeça pra baixo e ele fica com cara de "já tá gravando, gente?". Mais: qual era a necessidade da cena do padre se ele de fato não vai fazer diferença nenhuma dali pra frente? Era só colocar o personagem Ed dizendo que conseguiu convencê-lo. Também acho que a Annabelle fica à margem da história de forma que mais confunde do que acrescenta, fica uma questão avulsa à situação central do filme, se não tivesse não faria diferença nenhuma. E por fim, o exorcismo ocorreu de forma muito romântica e improvável, além do desfecho ignorar completamente todos os outros demais espíritos sofridos que habitavam a casa. Daí eu pensei: é por isso que vai ter o 2. Mas não, os exorcistas estarão em um caso diferente.
De forma geral, me simpatizei bastante com o filme, acho que tem muito dos filmes contemporâneos de terror, em que temos a câmera nervosa, com uma mistura da pegada dos clássicos que inclusive usavam o mesmo recurso de zoom. Tem um roteiro envolvente, um ritmo excelente e dá pra se assustar. Portanto, apesar dos pesares, recomendo como uma melhores franquias em potencial do gênero.
O mínimo que eu posso dizer é que subestimei essa animação. Excelente gráfico, ação o tempo todo e um roteiro coeso e preciso. Inclusive, a minha vantagem, acredito, foi não saber quase nada do universo Batman (eu só agora descobri quem é o Redhood) e portanto estar sujeito à surpresa. Me deu motivos pra acreditar que existem outras histórias tão incríveis e inteligentes quando essa. Recomendo.
Contos fantásticos que fazem um retrato sarcástico e bem humorado da vingança em suas diversas formas e ocasiões. Muito divertidos, intrigantes e ácidos, têm atores brilhantes executando roteiros sensacionais.
O filme aborda a discussão acerca dos conflitos entre israelenses e palestinos. O título de referência mitológica (Sansão) faz alusão à máxima “Olho por Olho, Dente por Dente”, lei criada na Mesopotâmia que determinava que cada punição seria equivalente ao dano cometido, afim de conter a vingança desproporcional. A todo momento Avi Mograbi se apresenta como portador da câmera e tem soberano poder na montagem e no discurso da obra. Entretanto, a investigação parece surgir a partir de dois impulsos principais: o de combater, que o motiva, e o de compreender, que o pondera.
O início é marcado por uma conversa no telefone entre o diretor e um amigo palestino, que descreve uma situação psicologicamente tensa e não só dá o tom ao tema abordado, mas também sugere a relação de diálogo pela qual Mograbi almeja estabelecer com a cultura vizinha. Na investida do documentarista em conhecer o cenário com intimidade, faz uma abordagem participativa, seja na rápida conversa com uma senhora idosa frustrada com a vida que leva, ou no incômodo que representa em confronto com soldados militares. Seu cinema é indissociável do campo político, mas que tem profundas raízes da experiência pessoal e cotidiana. Nesse sentido, Mograbi acolhe a mise-en-scène do outro a partir da sua.
Avi filma jovens turistas americanos em uma visita à fortaleza de Masada em que vários guias, no decorrer do filme, evocam a história para explicá-los o cenário que veem enquanto Mograbi nos contextualiza do tema. Mesclando a encenação-construída e a encenação-direta, a montagem alternada relaciona os antepassados às condições de existência atuais mediante o conflito atual, como se não fosse suficiente apenas recontar o passado, mas também experienciar o presente para ser capaz de mover em direção ao futuro, numa espécie de esperança pelo fim do conflito. Após o adeus do guia turístico, da última cena, Mograbi dedica o filme a seus filhos, uma mensagem às próximas gerações.
Apesar disso, o que Avi encontra durante seu percurso é a negação. A todo momento o documentarista e a câmera se deparam com situações de impedimento, seja o de gravar, de lavrar, de passar pelos portões, de ser atendido por uma ambulância ou de simplesmente olhar para trás. A possibilidade de convivência é minada. É como se qualquer avanço estivesse atrofiado pelo cárcere cultural e político de suas tradições revanchistas. Exemplo disso é uma música do show de rock que apresenta uma letra irredutivelmente vingativa e revela portanto um empoderamento irracional dos sentimentos de rivalidade e hostilização às populações. Uma tradição amplamente disseminada, até mesmo nas escolas, como mostra Mograbi. A única e trágica resolução que apontam é a morte pelo suicídio, como alternativa honrada pela possibilidade de escolha.
Essa naturalidade com que palestinos lidam com a morte não é a mesma para os israelenses, pelo menos de acordo com os personagens do filme. Avi diz claramente que ama a vida e deseja continuar vivendo. Entretanto, o cinema verdade de Mograbi gerencia uma enunciação por vezes arriscada, que na maioria das vezes transforma a ação enquadrada; Sensorialmente temos a crença de que a arma de Avi é a câmera, seja para se defender ou atacar, seja para inibir ou agravar a situação. Na cena clímax, onde Avi enfrenta o descaso de soldados israelenses, o risco do real parece desaflorar das imagens uma vez que percebemos o próprio detentor da câmera se colocando em uma legítima situação de perigo. Sabemos que aquela corajosa intervenção do autor poderia causar consequências letais, tanto para um ser humano quanto para o próprio filme. Mograbi se manifesta através de seus impulsos éticos como personagem e, ao mesmo tempo, engata o documentário como potencial obra de utilidade transformadora.
Bela alegoria que atende a experiência do uso de drogas. Os olhares famintos, insaciáveis, já abdicando de qualquer sanidade, afundando cada vez mais, em passos cada vez maiores, até não se poder mais alcançar. Há um momento de hesitação, todos já cobertos de pó, mas totalmente atolados ao vício, dão sequência ao banquete. Toda a decência juntamente se vai, até o último andar abaixo da terra.
Achei interessante o pôster com o rinoceronte, não só por pesar entre duas e três toneladas, mas também por ser um animal que não tem uma boa visão, deita na lama, não é muito inteligente e nenhum outro consegue deter.
História fantástica contada de uma maneira admirável, em destaque a montagem paralela que vai revelando gradativamente as peças do quebra-cabeça. Também me chamou a atenção as incríveis interpretações. Preciso assistir de novo pra tirar algumas dúvidas mas recomendo o filme. Surpreendente.
É curioso perceber hoje, que já assisto com tantos anos de atraso, a infinidade de filmes que fizeram referência a Acossado, como mais notável exemplo, na minha opinião brasileira, "O Bandido da Luz Vermelha" (1968). Também parece ser a essência do primeiro longa de Scorcese, "Quem Bate à Minha Porta" (1967), tanto na composição dos personagens e da trama quanto na intenção estética com forte valorização da poesia cinematográfica e desapego à narrativa clássica. Porque percebe-se claramente que Godard não dá a mínima pras cenas que geram os conflitos policiais de Poiccard (inclusive até os executa de forma resumida), não tendo a intenção de criar com elas suspense ou emoção. Seu real interesse está nas ações que ele assume pelo amor, para Patricia.
Falando um pouco dos integrantes da obra, é interessante destacar o atrito ideológico criado entre Michel como vagabundo machista e Patricia como símbolo feminista (cabelo curto, independente, vários parceiros sexuais). Em relação aos diálogos, me agrada a interação cotidiana, reflexiva, mas em alguns momentos discordei das ideias, em outros achei forçado e não acho que seja o forte do filme, ainda que seja uma de suas prioridades. Acho que se faz uma poesia muito mais bela e precisa em "Viver a Vida" (1962). Godard, que inclusive faz uma ponta interpretando o delator dos protagonistas, também é ambivalente no modo de se produzir, uma vez que realiza alguns planos-longo cronometrados, demonstrando domínio técnico, e ao mesmo tempo transparece muita liberdade para improviso, intervenções e adaptações. Eu até acharia engraçado se a montagem fragmentada, um dos principais elementos que o consagra como ruptura cinematográfica, fosse um recurso para resolver problemas de produção e eles decidiram assumir a opção estética durante o processo. Mas não tem como saber se foi premeditado por Godard ou não (obviamente ele e adoradores dirão que foi).
Tinha maiores expectativas mas reconheço sua beleza e seus méritos. Clássico da Nouvelle Vague, praticamente precursor de um movimento importante que buscava repensar o cinema.
Um filme no mínimo doentio forjado pelo glamour bizarro da zoeira. Uma metralhadora de memes, frases quotáveis, atitudes e gestos memoráveis de um espetáculo pavorosamente mal executado de humor negro. Um duelo entre os mais pervertidos e depravados vilões surpreendentemente maluco e funcional. Brilhantemente ruim.
Projeto super desafiador, não só de transmitir uma mensagem e se fazer entender, mas também agradar como cinema. O dogma 95 vem questionar o modelo industrial hollywoodiano numa trama que dialoga muito bem com a proposta, uma vez que se trata de uma reflexão existencial sobre a negação da normas sociais. O filme denuncia muito da personalidade cinematográfica de Von Trier, sendo inquieto, provocador, um incômodo, tendência de sua -no mínimo - notável filmografia.
No meio de tanta loucura, depois que comecei a entender sobre o que era o filme, ele me conquistou cena após cena, seja pelo inusitado cômico ou pelo inusitado belo, como se contrastam bem na cena da orgia com a entrega de Jeppe e Josephine. Deixei-me fascinar por vários personagens, ri de suas maluquices e me contagiei por um certo desejo de inocência feliz ausente de maldade. Um grupo que ingenuamente buscava a liberdade recorrendo ao idiota dentro de si, uma espécie de autossabotagem, uma busca não só pelo estado mental, mas também social, que se ampara na ideia de permissão. Ideia brilhante.
O termo pejorativo idiota vem do grego e representa o indivíduo que vive em reclusão, cujas únicas preocupações dizem respeito a sua vida privada, não participando das decisões da sociedade. Volto à Hollywood e a cultura que a alimenta.
Eu ainda arriscaria dizer que o grupo parece fragmentos de um alter-ego de Lars, com seu sarcasmo ousado, seus ataques e surtos, sua inventividade conflituosa, seu ímpeto de rebelia na instabilidade, seus amores e perversões, seus apegos e abandonos. Apesar de ter sido difícil me adaptar no começo como espectador, achei a experiência fantástica, comovente e sobretudo recompensadora.
Roteiros geniais, ideias fantásticas. Gosto de ficar tentando identificar as conexões entre os episódios. O primeiro e segundo são sensacionais, incríveis. O terceiro fica um pouco a baixo mas também acima da média. Recomendo fortemente.
o_o Essa foi a minha expressão em várias cenas que achei extraordinárias.
É curioso ver resquícios de Inception ou Batman na nova produção de Nolan. McConaughey, depois de True Detective, já era de se esperar de que ele seria sensacional. Se tem furo ou não no roteiro, to pouco me importando. Achei a ideia fantástica, relações bem construídas e diálogos bacanas. Efeitos visuais estonteantes e Hans Zimmer deixa tudo mais intenso e singular. Tinha uma relutância com filmes de naves e espaço mas isso acaba depois de Gravidade e Interestelar.
Das vantagens de ir ao cinema sozinho: no final do filme me vi sorrindo, com o rosto todo molhado de lágrimas e segurando firme os braços da cadeira.
Na década de 60 ganha destaque o chamado cinema verdade, presente ao campo documentário, em que se tem um encontro transparente entre a equipe realizadora e o tema de interesse. Os realizadores passam a fazer parte do filme na medida em que se mantém no filme durante as interações, equiparando-se aos demais personagens e evidenciando o atrito de perspectivas. Ao se assumirem enquanto presença investigadora pertencentes a um contexto primeiro (ponto de partida), busca-se maior honestidade nas relações captadas pela câmera, desmistificando em alguma instância o poder ilusionista do cinema. Essa, talvez seja uma das marcas mais interessantes em “Cabra Marcado Para Morrer”, título inspirado no poema de Ferreira Gullar, em que é possível enxergar com alguma clareza os impulsos do antecampo. A partir disso, o filme consegue se aproximar de uma forte ideia de verossimilhança – o possível verdadeiro – no que se refere a uma impressão de realidade.
O começo do filme é marcado por uma linguagem expositiva em que se dedica a contextualizar o espectador narrando acontecimentos do passado e que vão justificar a investigação a seguir. Vários recortes de jornais e imagens ilustrativas vão dando suporte à narração, chamada “voz de Deus”, que definem o período de 1955 a 1964, ano em que a primeira versão de “Cabra Marcado Para Morrer” foi interrompida devido a uma investida militar. Conhecemos, a partir de então, a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, assassinado em 1962, o qual inspirou a realização do primeiro projeto do filme. A ficção, gravada em Galiléia, seria interpretada por não atores que representariam a si mesmos, exceto por João Pedro, já falecido, que seria interpretado por João Mariano, único integrante que não participava da liga. Curiosamente, mesmo após a conversão para documentário, quase 18 anos depois, a versão final do filme também se apropria de personagens que também vivem a própria identidade. Todos pertencentes a um cotidiano comum, são pessoas não extraordinárias.
Uma das primeiras missões de Coutinho é reencontrar os participantes do filme e exibir para eles as imagens do primeiro filme interrompido, resultado de duas semanas de filmagem que sobreviveram à abordagem militar. Aqui, podemos começar a organizar algumas diretrizes que a narrativa abrange, colocando em contato a história de um filme inacabado com a história do próprio filme atual sendo feito, o que acentua a carga metalinguística da produção. Isso é importante porque o filme “esteve tão suscetível aos acontecimentos do país quanto as pessoas estiveram”, aponta Marina Meliande para a Contracampo, em que ele não “simplesmente retrata um contexto, mas que se constrói em um momento crucial de reformulação deste, fazendo-se cúmplice dele também.” Nessa linha, é possível ainda um flerte com uma abordagem reflexiva (ainda das categorias de Bill Nichols), uma vez que faz referências a si mesmo e seu modo de produção.
Uma terceira cabeça da narrativa surge com a nova missão de Coutinho: encontrar a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira, refugiada em 1964 para o Rio Grande do Norte e todos os seus filhos que se perdeu contato desde então. A partir daí, temos a prevalência de uma abordagem intensamente participativa em que não só ouvimos a voz do entrevistador, como também muitas vezes ele está presente na composição da câmera. Como Jhon Grierson defende, para conhecer o tema com intimidade, é preciso tempo e Coutinho coleta imagens, entrevistas e informações durante alguns anos, até finalmente lançar o filme em 1984. Em termos de documentário moderno, faz-se um cinema vivido, em que a experiência é capaz de transformar a vida de todos os envolvidos. O diretor estabelece uma espécie de intimidade cordial com Elisabeth e sua família, em uma relação que parece equilibrar a abordagem antropológica com a jornalística, traço típico do documentário clássico. Em uma cena onde se procura uma das filhas de Elisabeth, a equipe entra no estabelecimento no qual ela trabalha e Coutinho a aborda de forma repentina, já com todos os equipamentos acionados, o que sugere uma grande espontaneidade da abordagem que se assemelha com a característica do ao vivo, relacionada, mais uma vez, ao conceito de documentário moderno.
Em um outro trecho do filme, um dos filhos de Elisabeth, Abraão, faz um discurso pulsante e exige que o montador não censure sua mensagem de que “nenhum sistema de governo presta para o pobre”. Eduardo Coutinho imediatamente responde positivamente, garantindo-lhe a presença de sua fala no filme. Mais tarde, constata verbalmente que as intervenções de Abraão influíam no clima da entrevista. Alguns outros personagens também estabelecem condições para aparecer no filme, o diretor narrador aponta o fato mas não entra em detalhes. Esses são alguns exemplos de quais são as escolhas éticas pelas quais o filme se orienta, incluindo o cumprimento do compromisso de voltar ao projeto anos depois e, junto aos antigos participantes, finalmente concluir o filme. Um trecho ainda mais curioso é a entrevista de João Mariano, que se mostra bastante recluso e avulso ao perfil dos outros entrevistados, sua palavra é interrompida pelo diretor em função da necessidade de um ajuste de áudio e a montagem não suprime o momento constrangedor, quando após uma longa e incômoda pausa, Mariano volta a conversar.
O primeiro recurso que Coutinho usa para tentar conquistar e convencer as pessoas a contribuírem para o filme é pela apresentação de fotografias do passado, salvas por um integrante da equipe da época das filmagens do Cabra anterior. Trata-se de um dispositivo que evoca uma parte considerável de memória afetiva e estabelece um vínculo de validade dos personagens com a investigação - que tem como um dos objetivos a revelação. Memória essa que também alude a uma época dolorida do povo que foi vítima da ditadura no país que durou mais de 20 anos. Em uma instância de maior afastamento do drama familiar, podemos enxergar o filme como uma grande homenagem à luta e à sobrevivência de um filme político com apelo humano. Ganhou prêmios no Festival de Berlim, em Gramado e em vários outros festivais de países como França, Portugal e Cuba, carregando consigo uma imensa relevância histórica e uma enorme contribuição para o cinema brasileiro.
Um filme feito sob encomenda para a biblioteca, mas com uma pitadinha subversiva de Resnais. Planos magistrais, beleza imponente em cada detalhe, mise-en-scène cuidadosamente arquitetada, lembra até os planos de Cidadão Kane. Particularmente eu tive a impressão de estar assistindo aos processos de uma fábrica, privilegia os objetos ao invés dos rostos, a humanidade sistematizada em papeis, etapas, estantes, processos, carimbos. Os guardas circulando: estamos em um presídio? Ou como o amigo ali embaixo disse, trata-se de uma fortaleza contra o esquecimento? A numeração. Talvez estivesse falando dos judeus em campos de concentração. Talvez estivesse falando de como nos organizamos em sociedade, com nossas regras, normas, burocracias e padrões. Se está imperfeito, não serve. Um texto que gera uma reflexão existencial muito abrangente, cabível a diversas interpretações. Domínio estético impecável, ensaio fascinante.
Título de destaque nacional, é um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema brasileiro e tem direção assinada por Bruno Barreto quando ainda em seus 19 anos. A partir do bem sucedido romance homônimo de Jorge Amado, publicado em 1966, dez anos depois a adaptação conta com atores como Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça interpretando o trio amoroso.
A primeira coisa que me surpreendeu no filme foi o seu ritmo ponderado, mesmo com uma estrutura um pouco novelesca, que respeita a psicologia da personagem e valoriza o silêncio reflexivo. Não assisti a versão do cinema mais recente da história, de 98, mas imagino que os cortes devem ser mais dinâmicos, ações mais objetivas, por se tratar de produções de teor comercial, gênero humor e apelo televisivo.
Em segundo lugar, me incomodou a condescendência da personagem Florípedes (Flor) com seu primeiro e infiel marido, um malandro dissimulado, mulherengo, cafajeste e viciado em jogos. A perspectiva é totalmente masculina quando reserva um vasto trecho do filme para mostrar a conduta de Vadinho, em que as mulheres são vistas apenas como recursos sexuais. A própria prostituta do outro lado da rua é tida como privilegiada pelos homens porque faz sexo anal, mas em uma briga doméstica Vadinho xinga Flor de puta. Roba-lhe o dinheiro por agressão e basta uma serenata bêbada qualquer que a bobinha volta para os braços de seu vagabundo.
Mais tarde, vamos ter o personagem Theodoro, homem culto, responsável e de bons costumes, com toda a sua baranguisse, inabilidade sexual e tradições arcaicas. Falam sobre Theodoro ser o provedor da casa e bancar a nova esposa, a sogra acha um absurdo que Flor queira ainda trabalhar, o que denuncia aspectos machistas de uma época. Contudo, o filme aponta para uma certa liberdade sexual da personagem como mulher, quando vê incentivo de amigas para se relacionar com um homem após o luto e o desfecho que visa satisfazer com equilíbrio as demandas sociais e sexuais da personagem, subvertendo a poligamia mais típica.
Dona Flor é uma personagem que acaba também sendo usada como ferramenta de ligação, uma ponte que dá suporte aos palcos que privilegiam os dois maridos, cada um a seu tempo. Florípedes torna-se secundária na passividade das ações, na benevolente aceitação de todas as forças que a pressionam, seu potencial protagonismo é atrofiado numa apática e tímida manifestação de suas intenções e desejos. Ainda em termos de narrativa, a história só se torna realmente interessante com mais de uma hora e meia de filme, pra lá dos ¾, quando Flor efetivamente tem a experiência do retorno de seu falecido. Um clímax que refresca o drama e o humor mas que dura muito pouco, acumulando praticamente todo seu potencial poético em poucos minutos, ao invés de esparramar a inusitada situação por uma duração maior.
Não me chamou atenção em termos cinematográficos e nem me agradou como entretenimento, mas reconheço que o sucesso da obra revela um aspecto social pelo qual o Brasil vivia na época, ainda na presença da ditadura. Resgata a característica musical das antigas chanchadas e a carga erótica dos filmes baratos em uma apropriação de construção popular. A pornochanchada como a alternativa possível para movimentar o encarcerado cinema nacional.
Annabelle
2.7 2,7K Assista AgoraDepois de ter assistido o surpreendente Invocação do Mal, Annabelle realmente fica bem pra trás. Claro, ele foi produzido para ser independente, mas ele ignora dois dos princípios mais legais que regem o primeiro: os exorcistas e a verossimilhança. Uma máquina de costura simplesmente aumenta sua velocidade sem razão diegética alguma, só porque o cineasta quer que a tensão aumente: isso é esfregar a trapaça na cara do espectador. A boneca, apesar de assustadora, se revela não importante, no fim das contas, porque o demônio não precisa dela para agir. Aliás, ele age fisicamente, o que é bastante apelativo e sem graça porque, já que é assim, ele poderia fazer praticamente o que bem quisesse. O rosto do demônio é carregado demais de computação gráfica, o que compromete completamente o envolvimento sensorial do espectador com a cena.
E o pior dos aspectos negativos: a personagem da livraria que é um elemento de enganação desde o começo. Dá a entender que ela conhece o universo e pode combater o inimigo, mas decepciona e sabota o próprio filme. Ela é uma peça avulsa à narrativa, um recurso mal desenvolvido e covarde pro desfecho, em que ninguém se importa com seu drama e definitivamente não convence ninguém de que sua decisão final seria aceitável. Terrível construção.
Acho que a sessão vale exclusivamente pelas referências que faz a outros do gênero como "O Bebê de Rosemary", "Chucky" e até mesmo a Charles Manson, e algumas raras cenas que no decorrer da madrugada me surpreenderam. A cena do elevador como ideia é bastante funcional e a maneira como é filmada é uma das poucas coisas realmente boas do filme. O jeito é esperar por Invocação do Mal 2 pra ver se Annabelle foi um pequeno grande descuido ou se o primeiro Invocação do Mal que foi uma jogada de sorte.
Billy Elliot
4.2 966 Assista AgoraBrilhante história que desafia tabus e determinismos estúpidos da sociedade. O garoto que precisa ir atrás de quem realmente é trocando o boxe pelo balé. Uma escolha de êxito improvável em um universo onde todos estão lutando o tempo todo - e portanto as luvas deveriam ser mais úteis que os sapatos. A perseverança do garoto é bonita porque é pura e legítima, só sendo possível de transparência por ser uma criança ainda não lapidada pelos padrões do mundo. Além disso, mesmo sendo solitário, é valente o suficiente para encarar de frente as adversidades (ainda que seja no sapateado). Tudo fica ainda mais sólido com a cuidadosa construção do personagem que vai desde o seu olhar, ora reprimido, ora sonhador, às suas fraquezas humanas, seus trejeitos infantis e suas respostas inocentes. Nesse aspecto, um olhar atento pode encontrar uma enorme riqueza em Billy.
Basicamente, o que mais cativa na obra é a delicadeza poética que Daldry consegue articular, construindo cenas magníficas, de uma sensibilidade cinematográfica máxima, admirável e invejável. Tem algo de mágico na textura da película, algo de envolvente na trilha sonora, que parece que estamos assistindo a um clássico da Disney em uma instância de verdade possível. Acompanhar a jornada corajosa de Elliot é uma experiência definitivamente encantadora. A cena em que Billy é colocado em cima da mesa para dançar diante dos muros psicológicos certamente ocupa agora uma das posições mais altas das melhores cenas do cinema que eu já vi. A dança que enfrenta o preconceito do pai, o ônibus partindo, o pai furando a greve, a briga com a professora, tudo é tão intenso que foi até difícil enxergar a tela através das lágrimas - ainda que serenas. Não sei se gosto de como o final é construído mas, no geral, é algo de se ficar realmente maravilhado.
Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1
3.8 2,4K Assista AgoraAchei um total desperdício de tempo, além de me sentir explorado por Hollywood como nunca fui anteriormente. Quase nada efetivamente importante acontece o filme inteiro, fica a nítida sensação de que só fizeram essa primeira parte para ganhar dinheiro. Tipo, DESCARADAMENTE, preenchendo com muita enrolação.
Nem a admirável atuação da Jennifer Lawrence salvou este e, ao lado dele, os últimos dois são obras-primas. Esse 3º provavelmente é a fruta podre da cesta, porque eu ainda torço por um bom 4º filme.
Quanto Mais Quente Melhor
4.3 853 Assista AgoraUm dos mais admiráveis roteiros de humor que eu já vi. Fantástico.
O Abutre
4.0 2,5K Assista AgoraQuando eu vi o pôster, pensei que seria algo como "Drive" que, no final das contas, tem mesmo alguma semelhança. Essa foi minha única expectativa antes de assistir o filme porque - ainda bem - não tinha assistido o trailer, que agora vejo que é feito de spoilers que estragariam muito da experiência. Recomendo que, se ainda for tempo, também adote esse procedimento.
O filme mostra a evolução de uma ambição cega por sobrevivência, dinheiro e sucesso respectivamente que vai corroendo a capacidade de empatia pela humanidade. Jornais ganham audiência em cima do sangue de outros, empresas conseguem progresso extraindo o máximo da vida de seus funcionários, a exploração canibalesca do capitalismo. O tema é batido, mas a maneira como é tratado é bem interessante. A analogia conta com uma empresa vermelha em alta velocidade que persegue seus objetivos de alto risco e, se o funcionário falha, todo o sistema vai para a direção errada. Dependendo do caso, seu erro pode significar uma morte social e profissional.
Lou, persistente e adaptável, é um representante daqueles que dirigem esse tipo de empresa. Estrategista cruel, negociador terrorista, de simpatia artificial, distúrbios reprimidos, persuasão fria, equilíbrio aparente, solidário egoísta, sistemático e objetivo. Sem dúvida uma das melhores oportunidades de Jake Gyllenhaal mostrar suas capacidades como intérprete - e mostrou. O anti-herói de expressão doente e pedinte, vilão em potencial, rastejando pela noite tentando se agarrar a qualquer atrativo conveniente é um dos grandes êxitos do filme. Com tudo isso, o personagem ficou realmente impecável.
Gilroy foi habilidoso em contextualizar as peças do jogo e ativar os desdobramentos que incitam a tensão da narrativa, que melhora numa progressão surpreendente. É uma pena que a cena do espelho não tenha sido para fins de apreciação, mas as perseguições e a alegoria da obra fazem compensar. A trilha sonora me causou um estranhamento enorme, mas quando eu entendi que a ironia e surgiram os vestígios de humor negro, ela passou a fazer sentido.
Se eu disser que conheço vários empresários como Lou e sou cinegrafista freelancer, não preciso mais dizer o quanto me relacionei com o filme - e assim viro suspeito. Excelente trabalho.
A Teoria de Tudo
4.1 3,4K Assista AgoraO filme sofre do mesmo problema da grande maioria das biografias: um amontoado de resumos que dificilmente me dá tempo de sentir o que está em jogo. Percebi que isso seria recorrente a partir da cena do baile, no começo, onde desperdiçam uma analogia com o brilho das estrelas, o que daria uma cena linda se fosse trabalhada para ser apreciada cinematograficamente. Também tive um pequeno problema com os diálogos que constantemente estão pressionando o personagem a dizer coisas inteligentes e reflexivas o tempo todo. Cada pequena cena é muito romântica e aflorada, o que artificializa os personagens como representações de pessoas que não habitam a ficção. E pra encerrar a sessão de desaprovações, o recurso reverso no final foi bastante previsível e poderia ter se pensado em uma forma menos óbvia e mais criativa, eu acho, apesar de fazer bastante sentido poeticamente.
Gostei muito da interpretação de Redmayne, principalmente quando só se é capaz de fazê-lo pelos olhares e pequenos gestos. Seu sorriso foi ficando cada vez mais cativante, assim como também consegui sentir simpatia por todos os outros personagens - tarefa difícil de se fazer em uma situação dessas. Além disso, a semelhança com o verdadeiro Hawking também me surpreendeu. Acho que a direção às vezes deixa algumas cenas prematuras ou mal aplicadas, assim como a que ele levanta pra pegar a caneta na imaginação, mas acerta em algumas outras mais simples, como o seu constrangimento pela dificuldade de jantar à mesa e tenta subir as escadas, várias no processo de separação ou quando na maioria das que os filhos estão presentes. Deixo meu rápido elogio à pós produção no que se refere ao tratamento de cor específico pra cada cena ou ambiente em sintonia ao estado emocional. A trilha sonora foi um aspecto bastante positivo e que conseguiu contribuir pra que eu me envolvesse afetivamente com o drama e com a bela mensagem da obra.
Tartarugas Podem Voar
4.4 162É impressionante ver a naturalidade das relações tanto com o ambiente quanto entre eles mesmos. As condições dos intérpretes trazem muita verdade e crueza ao olhar. Ver a deformação inocente, a aridez do desamparo, crianças com responsabilidades adultas - trocando minas por metralhadoras. Faz repensar a nossa existência cultural, política, econômica, geográfica e principalmente humana.
Pra levantar depois desse filme foi como se de repente eu precisasse de muletas.
A Entrevista
3.1 1,0K Assista AgoraMuuuito bom! Não só pela premissa ousada, mas também pela proposta metafórica. Se esses programas de entrevistas americanos são todos roteirizados, fakes, nada melhor do que o mestre da farsa pra derrotar (com palavras) um grande dissimulador, mentiroso e manipulador. Superou minhas expectativas.
Sem Escalas
3.5 902 Assista AgoraGostei muito de como algumas sutilezas periféricas se deram e como os personagens vão ocupando espaço na trama. Roteiro interessante, com muito suspense e reviravoltas. Se você puder ignorar alguns malabarismos narrativos que só são possíveis no cinema, o filme é excelente! Aliás, eu adoro todos os filmes do Jaume Collet-Serra.
Invocação do Mal
3.8 3,9K Assista AgoraNão fiz controle de spoilers.
Sou suspeito a dizer por ser encantado com a Vera e por respeitar o James Wan depois de "Sentença de Morte". Foi bom ver um pouco mais da pequena Mackenzie também. Eu queria um filme só pra me distrair e encontrei uma obra muito interessante e realmente assustadora. Assistir sozinho de madrugada parece amplificar tudo, a ponto de se arrepiar só com o suspense. Afinal, quem não se borraria com a ideia de que "tem alguém atrás da porta e está olhando pra gente?".
Acho que o roteiro tem a sensibilidade de criar situações bastante assustadoras por serem cotidianas e portanto fazem parte do nosso imaginário comum. Claro que pra isso foi preciso se apropriar de inúmeros clichês (casa mal-assombrada, cachorro, porão, exorcismo, guarda-roupa, espelho, debaixo da cama, etc.) mas de alguma forma articulados de forma criativa. O jogo das palmas, por exemplo, talvez seja um diferencial interessante.
Mas nem tudo são flores também. É muito estranho que os personagens não comentem sobre as situações bizarras que acontecem com eles. Por exemplo, as meninas não contam pros pais que uma bruxa capirota saltou de cima do guarda-roupa pra cima de uma delas. A mãe das meninas, Carolyn, não conta pra ninguém sobre o ocorrido no porão, nem pros exorcistas, e por aí vai. E me incomodou mais ainda o ator que interpreta seu marido, Roger, que fica com cara de piquenique de domingo nas cenas mais tensas de sua esposa possuída. A cadeira flutua, vira de cabeça pra baixo e ele fica com cara de "já tá gravando, gente?". Mais: qual era a necessidade da cena do padre se ele de fato não vai fazer diferença nenhuma dali pra frente? Era só colocar o personagem Ed dizendo que conseguiu convencê-lo. Também acho que a Annabelle fica à margem da história de forma que mais confunde do que acrescenta, fica uma questão avulsa à situação central do filme, se não tivesse não faria diferença nenhuma. E por fim, o exorcismo ocorreu de forma muito romântica e improvável, além do desfecho ignorar completamente todos os outros demais espíritos sofridos que habitavam a casa. Daí eu pensei: é por isso que vai ter o 2. Mas não, os exorcistas estarão em um caso diferente.
De forma geral, me simpatizei bastante com o filme, acho que tem muito dos filmes contemporâneos de terror, em que temos a câmera nervosa, com uma mistura da pegada dos clássicos que inclusive usavam o mesmo recurso de zoom. Tem um roteiro envolvente, um ritmo excelente e dá pra se assustar. Portanto, apesar dos pesares, recomendo como uma melhores franquias em potencial do gênero.
Batman Contra o Capuz Vermelho
4.0 341 Assista AgoraO mínimo que eu posso dizer é que subestimei essa animação. Excelente gráfico, ação o tempo todo e um roteiro coeso e preciso. Inclusive, a minha vantagem, acredito, foi não saber quase nada do universo Batman (eu só agora descobri quem é o Redhood) e portanto estar sujeito à surpresa. Me deu motivos pra acreditar que existem outras histórias tão incríveis e inteligentes quando essa. Recomendo.
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraContos fantásticos que fazem um retrato sarcástico e bem humorado da vingança em suas diversas formas e ocasiões. Muito divertidos, intrigantes e ácidos, têm atores brilhantes executando roteiros sensacionais.
Por Um Dos Meus Olhos
4.2 1 Assista AgoraO filme aborda a discussão acerca dos conflitos entre israelenses e palestinos. O título de referência mitológica (Sansão) faz alusão à máxima “Olho por Olho, Dente por Dente”, lei criada na Mesopotâmia que determinava que cada punição seria equivalente ao dano cometido, afim de conter a vingança desproporcional. A todo momento Avi Mograbi se apresenta como portador da câmera e tem soberano poder na montagem e no discurso da obra. Entretanto, a investigação parece surgir a partir de dois impulsos principais: o de combater, que o motiva, e o de compreender, que o pondera.
O início é marcado por uma conversa no telefone entre o diretor e um amigo palestino, que descreve uma situação psicologicamente tensa e não só dá o tom ao tema abordado, mas também sugere a relação de diálogo pela qual Mograbi almeja estabelecer com a cultura vizinha. Na investida do documentarista em conhecer o cenário com intimidade, faz uma abordagem participativa, seja na rápida conversa com uma senhora idosa frustrada com a vida que leva, ou no incômodo que representa em confronto com soldados militares. Seu cinema é indissociável do campo político, mas que tem profundas raízes da experiência pessoal e cotidiana. Nesse sentido, Mograbi acolhe a mise-en-scène do outro a partir da sua.
Avi filma jovens turistas americanos em uma visita à fortaleza de Masada em que vários guias, no decorrer do filme, evocam a história para explicá-los o cenário que veem enquanto Mograbi nos contextualiza do tema. Mesclando a encenação-construída e a encenação-direta, a montagem alternada relaciona os antepassados às condições de existência atuais mediante o conflito atual, como se não fosse suficiente apenas recontar o passado, mas também experienciar o presente para ser capaz de mover em direção ao futuro, numa espécie de esperança pelo fim do conflito. Após o adeus do guia turístico, da última cena, Mograbi dedica o filme a seus filhos, uma mensagem às próximas gerações.
Apesar disso, o que Avi encontra durante seu percurso é a negação. A todo momento o documentarista e a câmera se deparam com situações de impedimento, seja o de gravar, de lavrar, de passar pelos portões, de ser atendido por uma ambulância ou de simplesmente olhar para trás. A possibilidade de convivência é minada. É como se qualquer avanço estivesse atrofiado pelo cárcere cultural e político de suas tradições revanchistas. Exemplo disso é uma música do show de rock que apresenta uma letra irredutivelmente vingativa e revela portanto um empoderamento irracional dos sentimentos de rivalidade e hostilização às populações. Uma tradição amplamente disseminada, até mesmo nas escolas, como mostra Mograbi. A única e trágica resolução que apontam é a morte pelo suicídio, como alternativa honrada pela possibilidade de escolha.
Essa naturalidade com que palestinos lidam com a morte não é a mesma para os israelenses, pelo menos de acordo com os personagens do filme. Avi diz claramente que ama a vida e deseja continuar vivendo. Entretanto, o cinema verdade de Mograbi gerencia uma enunciação por vezes arriscada, que na maioria das vezes transforma a ação enquadrada; Sensorialmente temos a crença de que a arma de Avi é a câmera, seja para se defender ou atacar, seja para inibir ou agravar a situação. Na cena clímax, onde Avi enfrenta o descaso de soldados israelenses, o risco do real parece desaflorar das imagens uma vez que percebemos o próprio detentor da câmera se colocando em uma legítima situação de perigo. Sabemos que aquela corajosa intervenção do autor poderia causar consequências letais, tanto para um ser humano quanto para o próprio filme. Mograbi se manifesta através de seus impulsos éticos como personagem e, ao mesmo tempo, engata o documentário como potencial obra de utilidade transformadora.
Próximo Piso
4.0 60Bela alegoria que atende a experiência do uso de drogas. Os olhares famintos, insaciáveis, já abdicando de qualquer sanidade, afundando cada vez mais, em passos cada vez maiores, até não se poder mais alcançar. Há um momento de hesitação, todos já cobertos de pó, mas totalmente atolados ao vício, dão sequência ao banquete. Toda a decência juntamente se vai, até o último andar abaixo da terra.
Achei interessante o pôster com o rinoceronte, não só por pesar entre duas e três toneladas, mas também por ser um animal que não tem uma boa visão, deita na lama, não é muito inteligente e nenhum outro consegue deter.
Incêndios
4.5 1,9K Assista AgoraHistória fantástica contada de uma maneira admirável, em destaque a montagem paralela que vai revelando gradativamente as peças do quebra-cabeça. Também me chamou a atenção as incríveis interpretações. Preciso assistir de novo pra tirar algumas dúvidas mas recomendo o filme. Surpreendente.
Acossado
4.1 510 Assista AgoraÉ curioso perceber hoje, que já assisto com tantos anos de atraso, a infinidade de filmes que fizeram referência a Acossado, como mais notável exemplo, na minha opinião brasileira, "O Bandido da Luz Vermelha" (1968). Também parece ser a essência do primeiro longa de Scorcese, "Quem Bate à Minha Porta" (1967), tanto na composição dos personagens e da trama quanto na intenção estética com forte valorização da poesia cinematográfica e desapego à narrativa clássica. Porque percebe-se claramente que Godard não dá a mínima pras cenas que geram os conflitos policiais de Poiccard (inclusive até os executa de forma resumida), não tendo a intenção de criar com elas suspense ou emoção. Seu real interesse está nas ações que ele assume pelo amor, para Patricia.
Falando um pouco dos integrantes da obra, é interessante destacar o atrito ideológico criado entre Michel como vagabundo machista e Patricia como símbolo feminista (cabelo curto, independente, vários parceiros sexuais). Em relação aos diálogos, me agrada a interação cotidiana, reflexiva, mas em alguns momentos discordei das ideias, em outros achei forçado e não acho que seja o forte do filme, ainda que seja uma de suas prioridades. Acho que se faz uma poesia muito mais bela e precisa em "Viver a Vida" (1962). Godard, que inclusive faz uma ponta interpretando o delator dos protagonistas, também é ambivalente no modo de se produzir, uma vez que realiza alguns planos-longo cronometrados, demonstrando domínio técnico, e ao mesmo tempo transparece muita liberdade para improviso, intervenções e adaptações. Eu até acharia engraçado se a montagem fragmentada, um dos principais elementos que o consagra como ruptura cinematográfica, fosse um recurso para resolver problemas de produção e eles decidiram assumir a opção estética durante o processo. Mas não tem como saber se foi premeditado por Godard ou não (obviamente ele e adoradores dirão que foi).
Tinha maiores expectativas mas reconheço sua beleza e seus méritos. Clássico da Nouvelle Vague, praticamente precursor de um movimento importante que buscava repensar o cinema.
Pink Flamingos
3.4 879Um filme no mínimo doentio forjado pelo glamour bizarro da zoeira. Uma metralhadora de memes, frases quotáveis, atitudes e gestos memoráveis de um espetáculo pavorosamente mal executado de humor negro. Um duelo entre os mais pervertidos e depravados vilões surpreendentemente maluco e funcional.
Brilhantemente ruim.
"Give me more questions".
Os Idiotas
3.5 283 Assista AgoraProjeto super desafiador, não só de transmitir uma mensagem e se fazer entender, mas também agradar como cinema. O dogma 95 vem questionar o modelo industrial hollywoodiano numa trama que dialoga muito bem com a proposta, uma vez que se trata de uma reflexão existencial sobre a negação da normas sociais. O filme denuncia muito da personalidade cinematográfica de Von Trier, sendo inquieto, provocador, um incômodo, tendência de sua -no mínimo - notável filmografia.
No meio de tanta loucura, depois que comecei a entender sobre o que era o filme, ele me conquistou cena após cena, seja pelo inusitado cômico ou pelo inusitado belo, como se contrastam bem na cena da orgia com a entrega de Jeppe e Josephine. Deixei-me fascinar por vários personagens, ri de suas maluquices e me contagiei por um certo desejo de inocência feliz ausente de maldade. Um grupo que ingenuamente buscava a liberdade recorrendo ao idiota dentro de si, uma espécie de autossabotagem, uma busca não só pelo estado mental, mas também social, que se ampara na ideia de permissão. Ideia brilhante.
O termo pejorativo idiota vem do grego e representa o indivíduo que vive em reclusão, cujas únicas preocupações dizem respeito a sua vida privada, não participando das decisões da sociedade. Volto à Hollywood e a cultura que a alimenta.
Eu ainda arriscaria dizer que o grupo parece fragmentos de um alter-ego de Lars, com seu sarcasmo ousado, seus ataques e surtos, sua inventividade conflituosa, seu ímpeto de rebelia na instabilidade, seus amores e perversões, seus apegos e abandonos. Apesar de ter sido difícil me adaptar no começo como espectador, achei a experiência fantástica, comovente e sobretudo recompensadora.
Black Mirror (2ª Temporada)
4.4 753 Assista AgoraRoteiros geniais, ideias fantásticas. Gosto de ficar tentando identificar as conexões entre os episódios. O primeiro e segundo são sensacionais, incríveis. O terceiro fica um pouco a baixo mas também acima da média. Recomendo fortemente.
Master Class
5Vish. Agora que o Mike morreu...
Interestelar
4.3 5,7K Assista Agorao_o
Essa foi a minha expressão em várias cenas que achei extraordinárias.
É curioso ver resquícios de Inception ou Batman na nova produção de Nolan. McConaughey, depois de True Detective, já era de se esperar de que ele seria sensacional. Se tem furo ou não no roteiro, to pouco me importando. Achei a ideia fantástica, relações bem construídas e diálogos bacanas. Efeitos visuais estonteantes e Hans Zimmer deixa tudo mais intenso e singular. Tinha uma relutância com filmes de naves e espaço mas isso acaba depois de Gravidade e Interestelar.
Das vantagens de ir ao cinema sozinho: no final do filme me vi sorrindo, com o rosto todo molhado de lágrimas e segurando firme os braços da cadeira.
Cabra Marcado Para Morrer
4.5 253Um texto que elaborei para aula de documentário, talvez possa ser útil pra quem quer analisar o filme.
Na década de 60 ganha destaque o chamado cinema verdade, presente ao campo documentário, em que se tem um encontro transparente entre a equipe realizadora e o tema de interesse. Os realizadores passam a fazer parte do filme na medida em que se mantém no filme durante as interações, equiparando-se aos demais personagens e evidenciando o atrito de perspectivas. Ao se assumirem enquanto presença investigadora pertencentes a um contexto primeiro (ponto de partida), busca-se maior honestidade nas relações captadas pela câmera, desmistificando em alguma instância o poder ilusionista do cinema. Essa, talvez seja uma das marcas mais interessantes em “Cabra Marcado Para Morrer”, título inspirado no poema de Ferreira Gullar, em que é possível enxergar com alguma clareza os impulsos do antecampo. A partir disso, o filme consegue se aproximar de uma forte ideia de verossimilhança – o possível verdadeiro – no que se refere a uma impressão de realidade.
O começo do filme é marcado por uma linguagem expositiva em que se dedica a contextualizar o espectador narrando acontecimentos do passado e que vão justificar a investigação a seguir. Vários recortes de jornais e imagens ilustrativas vão dando suporte à narração, chamada “voz de Deus”, que definem o período de 1955 a 1964, ano em que a primeira versão de “Cabra Marcado Para Morrer” foi interrompida devido a uma investida militar. Conhecemos, a partir de então, a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, assassinado em 1962, o qual inspirou a realização do primeiro projeto do filme. A ficção, gravada em Galiléia, seria interpretada por não atores que representariam a si mesmos, exceto por João Pedro, já falecido, que seria interpretado por João Mariano, único integrante que não participava da liga. Curiosamente, mesmo após a conversão para documentário, quase 18 anos depois, a versão final do filme também se apropria de personagens que também vivem a própria identidade. Todos pertencentes a um cotidiano comum, são pessoas não extraordinárias.
Uma das primeiras missões de Coutinho é reencontrar os participantes do filme e exibir para eles as imagens do primeiro filme interrompido, resultado de duas semanas de filmagem que sobreviveram à abordagem militar. Aqui, podemos começar a organizar algumas diretrizes que a narrativa abrange, colocando em contato a história de um filme inacabado com a história do próprio filme atual sendo feito, o que acentua a carga metalinguística da produção. Isso é importante porque o filme “esteve tão suscetível aos acontecimentos do país quanto as pessoas estiveram”, aponta Marina Meliande para a Contracampo, em que ele não “simplesmente retrata um contexto, mas que se constrói em um momento crucial de reformulação deste, fazendo-se cúmplice dele também.” Nessa linha, é possível ainda um flerte com uma abordagem reflexiva (ainda das categorias de Bill Nichols), uma vez que faz referências a si mesmo e seu modo de produção.
Uma terceira cabeça da narrativa surge com a nova missão de Coutinho: encontrar a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira, refugiada em 1964 para o Rio Grande do Norte e todos os seus filhos que se perdeu contato desde então. A partir daí, temos a prevalência de uma abordagem intensamente participativa em que não só ouvimos a voz do entrevistador, como também muitas vezes ele está presente na composição da câmera. Como Jhon Grierson defende, para conhecer o tema com intimidade, é preciso tempo e Coutinho coleta imagens, entrevistas e informações durante alguns anos, até finalmente lançar o filme em 1984. Em termos de documentário moderno, faz-se um cinema vivido, em que a experiência é capaz de transformar a vida de todos os envolvidos. O diretor estabelece uma espécie de intimidade cordial com Elisabeth e sua família, em uma relação que parece equilibrar a abordagem antropológica com a jornalística, traço típico do documentário clássico. Em uma cena onde se procura uma das filhas de Elisabeth, a equipe entra no estabelecimento no qual ela trabalha e Coutinho a aborda de forma repentina, já com todos os equipamentos acionados, o que sugere uma grande espontaneidade da abordagem que se assemelha com a característica do ao vivo, relacionada, mais uma vez, ao conceito de documentário moderno.
Em um outro trecho do filme, um dos filhos de Elisabeth, Abraão, faz um discurso pulsante e exige que o montador não censure sua mensagem de que “nenhum sistema de governo presta para o pobre”. Eduardo Coutinho imediatamente responde positivamente, garantindo-lhe a presença de sua fala no filme. Mais tarde, constata verbalmente que as intervenções de Abraão influíam no clima da entrevista. Alguns outros personagens também estabelecem condições para aparecer no filme, o diretor narrador aponta o fato mas não entra em detalhes. Esses são alguns exemplos de quais são as escolhas éticas pelas quais o filme se orienta, incluindo o cumprimento do compromisso de voltar ao projeto anos depois e, junto aos antigos participantes, finalmente concluir o filme. Um trecho ainda mais curioso é a entrevista de João Mariano, que se mostra bastante recluso e avulso ao perfil dos outros entrevistados, sua palavra é interrompida pelo diretor em função da necessidade de um ajuste de áudio e a montagem não suprime o momento constrangedor, quando após uma longa e incômoda pausa, Mariano volta a conversar.
O primeiro recurso que Coutinho usa para tentar conquistar e convencer as pessoas a contribuírem para o filme é pela apresentação de fotografias do passado, salvas por um integrante da equipe da época das filmagens do Cabra anterior. Trata-se de um dispositivo que evoca uma parte considerável de memória afetiva e estabelece um vínculo de validade dos personagens com a investigação - que tem como um dos objetivos a revelação. Memória essa que também alude a uma época dolorida do povo que foi vítima da ditadura no país que durou mais de 20 anos. Em uma instância de maior afastamento do drama familiar, podemos enxergar o filme como uma grande homenagem à luta e à sobrevivência de um filme político com apelo humano. Ganhou prêmios no Festival de Berlim, em Gramado e em vários outros festivais de países como França, Portugal e Cuba, carregando consigo uma imensa relevância histórica e uma enorme contribuição para o cinema brasileiro.
Toda a Memória do Mundo
4.3 12Um filme feito sob encomenda para a biblioteca, mas com uma pitadinha subversiva de Resnais. Planos magistrais, beleza imponente em cada detalhe, mise-en-scène cuidadosamente arquitetada, lembra até os planos de Cidadão Kane. Particularmente eu tive a impressão de estar assistindo aos processos de uma fábrica, privilegia os objetos ao invés dos rostos, a humanidade sistematizada em papeis, etapas, estantes, processos, carimbos. Os guardas circulando: estamos em um presídio? Ou como o amigo ali embaixo disse, trata-se de uma fortaleza contra o esquecimento? A numeração. Talvez estivesse falando dos judeus em campos de concentração. Talvez estivesse falando de como nos organizamos em sociedade, com nossas regras, normas, burocracias e padrões. Se está imperfeito, não serve. Um texto que gera uma reflexão existencial muito abrangente, cabível a diversas interpretações. Domínio estético impecável, ensaio fascinante.
Dona Flor e Seus Dois Maridos
3.5 171 Assista AgoraTítulo de destaque nacional, é um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema brasileiro e tem direção assinada por Bruno Barreto quando ainda em seus 19 anos. A partir do bem sucedido romance homônimo de Jorge Amado, publicado em 1966, dez anos depois a adaptação conta com atores como Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça interpretando o trio amoroso.
A primeira coisa que me surpreendeu no filme foi o seu ritmo ponderado, mesmo com uma estrutura um pouco novelesca, que respeita a psicologia da personagem e valoriza o silêncio reflexivo. Não assisti a versão do cinema mais recente da história, de 98, mas imagino que os cortes devem ser mais dinâmicos, ações mais objetivas, por se tratar de produções de teor comercial, gênero humor e apelo televisivo.
Em segundo lugar, me incomodou a condescendência da personagem Florípedes (Flor) com seu primeiro e infiel marido, um malandro dissimulado, mulherengo, cafajeste e viciado em jogos. A perspectiva é totalmente masculina quando reserva um vasto trecho do filme para mostrar a conduta de Vadinho, em que as mulheres são vistas apenas como recursos sexuais. A própria prostituta do outro lado da rua é tida como privilegiada pelos homens porque faz sexo anal, mas em uma briga doméstica Vadinho xinga Flor de puta. Roba-lhe o dinheiro por agressão e basta uma serenata bêbada qualquer que a bobinha volta para os braços de seu vagabundo.
Mais tarde, vamos ter o personagem Theodoro, homem culto, responsável e de bons costumes, com toda a sua baranguisse, inabilidade sexual e tradições arcaicas. Falam sobre Theodoro ser o provedor da casa e bancar a nova esposa, a sogra acha um absurdo que Flor queira ainda trabalhar, o que denuncia aspectos machistas de uma época. Contudo, o filme aponta para uma certa liberdade sexual da personagem como mulher, quando vê incentivo de amigas para se relacionar com um homem após o luto e o desfecho que visa satisfazer com equilíbrio as demandas sociais e sexuais da personagem, subvertendo a poligamia mais típica.
Dona Flor é uma personagem que acaba também sendo usada como ferramenta de ligação, uma ponte que dá suporte aos palcos que privilegiam os dois maridos, cada um a seu tempo. Florípedes torna-se secundária na passividade das ações, na benevolente aceitação de todas as forças que a pressionam, seu potencial protagonismo é atrofiado numa apática e tímida manifestação de suas intenções e desejos. Ainda em termos de narrativa, a história só se torna realmente interessante com mais de uma hora e meia de filme, pra lá dos ¾, quando Flor efetivamente tem a experiência do retorno de seu falecido. Um clímax que refresca o drama e o humor mas que dura muito pouco, acumulando praticamente todo seu potencial poético em poucos minutos, ao invés de esparramar a inusitada situação por uma duração maior.
Não me chamou atenção em termos cinematográficos e nem me agradou como entretenimento, mas reconheço que o sucesso da obra revela um aspecto social pelo qual o Brasil vivia na época, ainda na presença da ditadura. Resgata a característica musical das antigas chanchadas e a carga erótica dos filmes baratos em uma apropriação de construção popular. A pornochanchada como a alternativa possível para movimentar o encarcerado cinema nacional.