Io Capitano (Eu, Capitão, 2023) conta a saga de dois jovens senegaleses de 16 anos, os primos Seydou e Moussa, que desejam deixar seu país em busca de melhores condições de vida na Europa, mais especificamente na Itália, embora não tenham, ainda, dimensão do que significa empreender essa jornada, que deixa um rastro de miséria, lástima e morte por onde passa. Assim, no caminho, eles enfrentam todo tipo de desumanização ao tentar emigrar ilegalmente atravessando sinuosos ambientes urbanos e a amplidão interminável do deserto do Saara e do mar Mediterrâneo, o que impõe, reiteradamente, aos personagens um dilema labiríntico entre prosseguir, retroceder ou permanecer no mesmo lugar.
O retrato da jornada dos jovens Seydou e Moussa feita pelo diretor Matteo Garrone é marcado estruturalmente pela dinâmica de um road movie. Principalmente no primeiro ato, inclusive, o roteiro parece se preocupar mais com o acúmulo de situações e cenários do que em conectá-los de maneira cadenciada. O tom adotado é predominantemente naturalista, mas flerta, também, com o realismo fantástico, em cenas impregnadas pela imaginação do protagonista Seydou e até por um tom espiritual, que canaliza a violência generalizada que testemunhamos e a transforma em matéria onírica. Esses são os momentos de maior vigor do filme, que ocorrem apenas esporadicamente, já que, de maneira geral, paira uma certa imposição na abordagem que a torna vaga. Isso fica evidente na montagem, que insiste em utilizar fades (fusões) na transição de, rigorosamente, todas as cenas do primeiro ato, de modo que seu efeito visual e sensorial parece despropositado, meramente caprichoso, um vício de linguagem.
A alternância de cenas contrastantes nesse início é visível: danças repletas de leveza e cenas dos adolescentes trabalhando como pedreiros; Seydou e Moussa compondo músicas e depois travando embates com os adultos ao redor, que tentam convencê-los a não prosseguir com a ideia da viagem. Ao final de cada momento, quando a fusão acontece e uma imagem transcorre em outra suavemente, a parcela de dureza desses acontecimentos parece se dissipar e enfraquecer outros momentos que soam mais apropriados para essa técnica de transição. Na visita dos meninos a um cemitério, quando dialogam com os mortos, por exemplo, a passagem lenta de um plano a outro imprime a tentativa dos personagens de transcender, de extrapolar a objetividade material da realidade, ou indica prostração e fadiga com as passagens temporais nas cenas do deserto e da estrada.
No que diz respeito à narrativa, somos colocados ao lado de Seydou e Moussa de maneira a entrar em contato com a realidade brutal que o filme denuncia, mas tal denúncia jamais é maior que a humanidade dos personagens que a encarnam, já que Garrone enquadra, também, sua elaboração onírica, internalizada, a expressão de individualidade que afasta a possibilidade destes serem apenas rostos indistinguíveis na multidão. Apesar do filme mostrar que é essa a condição a qual estão submetidos, seu movimento é de não lhes sepultar, mas sim fazer coro com eles e com sua imaginação em meio ao caos.
Novamente, entretanto, as implicações de tal abordagem são ambíguas. Por um lado, pode-se afirmar que, ao final, prevalece o elogio a um heroísmo individual ingênuo, encarnado no título e na cena final – “eu sou o capitão”, delineando um indivíduo capaz de superar a precariedade de seu meio pela simples força de sua vontade – mas, por outro lado, isso seria ignorar a dimensão coletiva de cada encontro que o protagonista tem. A sequência que melhor descreve essa corrente é a em que ele busca por Moussa em Trípoli: passando por diversas comunidades de senegaleses, a câmera se detém, sutilmente, diante do rosto de cada pessoa que indica a Seydou onde ele pode encontrar o primo. Mais uma vez, uma situação angustiante, que é registrada enquanto tal, mas de maneira a salientar individualidades em um ambiente de negação da existência social (literalmente, nesse caso, já que pessoas negras não são aceitas nos hospitais da capital da Líbia).
Dois momentos que se destacam, ainda, pela sua grandiloquência, são as passagens pelo deserto e pelo mar, uma antítese e complemento da outra. No Saara, os imigrantes são praticamente largados à própria sorte para caminhar em direção à Líbia e, naturalmente, a caminhada torna-se dispersa, com algumas pessoas ficando para trás, exauridas. A dinâmica dessas cenas remete a um outro filme indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2024, Sociedade da Neve (2023, J. A. Bayona), no qual a brancura da neve ofusca o horizonte, intransponível pela cordilheira dos Andes. No caso de Io Capitano, o amarelo da areia é a cor que predomina e que confere languidez à presença humana, ao passo que o horizonte nunca parece mudar, representando o horizonte social imposto aos personagens. Ao final, já no Mediterrâneo, quando Seydou é designado para pilotar o barco ilegal que os levará à Itália, as pessoas se amontoam no espaço pequeno do convés e, ali apinhadas, isoladas pela imensidão do mar, logo iniciam um vozerio descontrolado, ao contrário do emudecimento do grupo do deserto, ambos marcas do sufocamento desumano que sofreram, ora silenciados, ora submetidos a uma espécie de Babel.
Assim, concentração e dispersão sintetizam o movimento da narrativa, em sua ambígua oscilação entre a individualidade e a coletividade, colocando frente a frente humanidade, natureza e, novamente, humanidade, já que foi em decorrência da própria ação humana e da desigualdade socioeconômica que os personagens se colocaram diante de tamanhos riscos. Com isso, o filme entende e transmite a complexidade engendrada na simples decisão entre mover-se e não sair do lugar, mote primordial do dilema de Seydou, Moussa e de incontáveis outras pessoas que se lançaram a esse périplo movediço.
Land of Bad (Zona de Risco, 2024) é um filme de guerra que conta a história de Kinney (Liam Hemsworth), um oficial do exército estadunidense que, pela primeira vez, integra uma operação de resgate das forças armadas nas Filipinas, em busca de um agente da CIA feito refém. Logo a missão degringola e ele se vê isolado na selva sendo acompanhado, da base, pelo capitão Reaper (Russell Crowe), piloto de drone que se afeiçoa ao jovem e o guia na tentativa de retornar em segurança.
Responsável por coordenar a ação do apoio aéreo no combate, Kinney desempenha a função de mediar, para o espectador, a complexidade do embate: inexperiente, ele pergunta, comenta e recebe explicações sobre detalhes do armamento e da operação que contextualizam as terminologias, as motivações e a dinâmica da operação para o espectador, a fim de torná-la compreensível e mais palatável. No entanto, o efeito colateral dessas explicações é não só a hipersimplificação dos dilemas morais em questão, mas também uma diluição da abordagem de direção, que se torna sensivelmente ambígua, chegando até mesmo ao contraditório.
Em uma das primeiras interações do grupo de soldados, tem-se uma discussão sobre o uso da tecnologia na guerra. O soldado Bishop acha que o uso exagerado da tecnologia tira da guerra seu elemento humano, passional, ao passo que Kinney lhe contrapõe, dizendo que ela serve justamente para tornar o confronto menos mortífero e mais eficiente, amenizando sua brutalidade – ou seja, uma defesa da própria função desempenhada por ele. A tréplica de Bishop é de que esta é uma visão ingênua, carregada de teoria e de pouca prática, pois a morte ocorre de um jeito ou de outro, e a barbárie prevalece, sendo o descobrimento dessa realidade a síntese do arco de Kinney. Logo após esse diálogo, que evidencia a natureza crua e áspera da guerra, o primeiro grande showdown do filme acontece e, então, sua irreflexão estética transparece no uso da câmera lenta, quando o tiroteio começa. O mesmo personagem que profere aquelas palavras é agora filmado em câmera lenta, atirando com precisão no inimigo, de modo a ressaltar a plasticidade de seu ato. A execução do tiro e a evacuação da cápsula de bala ganham o ar estilizado de um espetáculo. O mesmo se aplica à maneira como os mísseis caem em magníficas explosões, cuja destruição – e poder de destruição – parece ser saboreada pelo filme. A intenção dramática e o virtuosismo da técnica dão lugar à sua percepção enquanto artifício vazio, contrário à dimensão atroz do conflito apregoada pelo discurso de Bishop minutos antes.
Nesse sentido, a abordagem da ação parece oscilar entre nos condicionar à posição do protagonista e nos fornecer uma visualização total do espaço através da decupagem. Na verdade, uma coisa parece neutralizar o potencial da outra: uma vez que não estamos sempre identificados à posição de Kinney, não experimentamos seu sufoco na intensidade que ele experimenta, pois os planos logo nos alçam a visões aéreas dos inimigos e diluem o horror potencial contido em sua condição de isolamento, o que resulta em uma ação cujos momentos inspirados se esvaem rapidamente. Ao mesmo tempo, ao acompanhá-lo de perto com uma câmera na mão, o filme enfraquece a grandiosidade da ação, arquitetada pela multiplicidade de visões estilizadas no espaço, fornecidas pela montagem.
Há quem possa dizer, contudo, que esta segunda abordagem diz respeito à contraparte narrativa de Kinney, o arredio capitão Reaper. Sentado na cabine de comando, lugar privilegiado de onde visualiza e maneja a operação através de drones, ele é a voz da experiência, os olhos que tudo veem, e a relação dos dois é o pilar mais sólido do filme. Sua obstinação se torna a do público, e a presença carismática de Russell Crowe o torna quase um coprotagonista, desvelando os fios emocionais de Kinney e afeiçoando-se a ele praticamente como a um filho (“tenho oito filhos e mais um a caminho”, ele diz, referindo-se à sua mulher grávida, mas numa frase perfeitamente aplicável ao jovem, que, por coincidência ou não, perdeu o pai pouco antes da missão). Sua função narrativa parece conferir esse sentido de família a alguns de seus colegas e, consequentemente, à instituição que representam, o exército americano, com direito a um discurso patriótico no final. Apesar de resultar em humor, essa sequência não deixa de passar por um sentimentalismo apressado pela montagem, já que a emoção sólida e genuína transmitida no rosto de Crowe logo dá lugar ao retorno triunfante dos soldados, que passa a ser intercalado com o discurso, uma escolha que revela pouca sensibilidade do diretor William Eubank ao próprio material, à entrega de seus atores e às dinâmicas que sua trama desenhou.
Assim, a ideia de realismo quase documental, impressa nos letreiros iniciais de Zona de Risco – que explicam o conflito e nos dizem “há uma guerra acontecendo, apenas não sabemos” -, prefigura um tom que não condiz com a natureza espetaculosa de momentos cruciais do filme e da ação. O terrorista Saeed Hashimi, o antagonista máximo, discursa sobre as bombas sem rosto dos Estados Unidos e a ética que ele pratica em resposta a isso, dizendo que matar também o afeta e que, justamente por isso, prefere criar intimidade com quem executa, pois “resultados reais são criados cara a cara”. Tudo isso não é suficiente para, de fato, dar alguma personalidade aos terroristas filipinos, já que esse mesmo personagem decapita, de maneira sádica, uma mulher e quase faz o mesmo a uma criança, enquanto as explosões dos mísseis americanos são festejadas pela mise-en-scène quase como se atingissem um mal abstrato, ao invés de vidas humanas. Essa pretensa profundidade psicológica ou moral, desenhada por tais cenas, termina por parecer nada mais que um mero rascunho, ensaio de uma obra que de fato desdobre a complexidade inicial de suas próprias ideias.
" O sonho é um caos. Não entendo sua linguagem, que embaralha qualquer exegese. Esforço-me por decifrá-lo, sem resultado. Mal sei do que penso saber. Paciência, meu mister não é interpretar a vida ao pé da letra. Ou descrever uma terra que não é a minha. Pronto, como dizem os portugueses.
Termino constatando que a matéria onírica, ao avanço do ponteiro do minuto, esvanece e termina guardando na memória detalhes perecíveis". - Nélida Piñon no livro "Uma Furtiva Lágrima", capítulo A Urgência do Caos.
" Fred: Gosto de recordar as coisas da minha maneira. Policial: O que quer dizer com isso? Fred: Do jeito que eu as recordo... Não necessariamente como aconteceram."
"Nós do Projeto Amaro gostaríamos de agradecer, primeiramente, ao Instituto Cervantes por nos receber de maneira tão generosa, para uma sessão que nos parecia fazer sentido desde a primeira vez que viemos aqui, no aniversário da escritora Nélida Piñon, em maio desse ano, a convite da professora Karla Vasconcelos. Nélida foi aluna do Colégio Santo Amaro e, assim como viria a ocorrer aqui no Instituto Cervantes, a biblioteca da escola foi batizada em seu nome e, mesmo com o fechamento do Colégio e sua transformação em campus da Universidade Veiga de Almeida, o nome foi mantido.
Essa simples correlação entre as duas instituições delineia para nós o caminho de Nélida, que enquanto uma figura ilustre de nossa literatura, nunca se esquece de suas origens, pelo contrário, carregava-as aonde ia. Na inauguração da biblioteca com seu nome aqui no Instituto Cervantes, Nélida disse: 'A história, de verdade, é apenas provisoriamente minha e nós que narramos temos o compromisso ético, em relação ao futuro, de não permitir que uma só história morra, nenhuma história pode fenecer, porque isso significaria eliminar o coração das pessoas. Todo mundo vive na expectativa de que surja uma autora, um autor, que vá preservar sua história. Não se pode viver impunemente, sem que alguém colha os rastros, os restos, as sobras da história da humanidade'. Com esse espírito, sua memória pessoal e a memória dos séculos se confundiam, eram partes inseparáveis dela.
E foi nesse rastro de memória que trilhamos, por vezes sentindo a verdade do que Nélida disse em nossa entrevista, 'A memória é um milagre', quando encontrávamos fotos dos lugares que conhecíamos intimamente antes mesmo de serem construídos, e depoimentos que pareciam ter sido destinados a integrarem este documentário. Que tenham sobrevivido na lembrança de uma senhora de 102 anos, Zeny, ou nos álbuns de fotos delicadamente organizados pela irmã Theresinha Barbosa, nos víamos arrebatados por um sentimento de sorte e de consonância com algo que atravessava o tempo, uma história que, efetivamente, começa no dia 15 de janeiro de 1923.
Eu me lembro de quando estávamos no Ensino Médio e o professor de literatura, nosso querido Carlucho, passou o livro 'Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra' como leitura bimestral e ali o autor moçambicano Mia Couto escreveu 'o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós a casa mora'. A escola é um período particular para cada um, e para algumas pessoas ela pode ser apenas um obstáculo a ser superado, mas para nós representava uma espécie de lar. Eu terminei de ler esse livro na biblioteca Nélida Piñon, num recreio, e hoje também relaciono essa frase à trajetória de Nélida, uma mulher que dizia não querer passar muito tempo sob um mesmo teto, mas que fez da Espanha, do Brasil, do Santo Amaro, lugares que, verdadeiramente, a constituíam profundamente. Ela lhes reverenciava, transparecendo um sentimento nítido em tantas outras pessoas que conhecemos nessa jornada, perpassadas por um sentido de pertencimento em relação à escola enquanto um lugar fundacional, espaço de comunhão de vivências e aprendizados.
E, assim, com muito suor, fizemos este filme. Com uma equipe de cerca de 40 pessoas, o apoio incondicional das irmãs e da Associação de ex-alunos, com um financiamento coletivo apoiado por 120 pessoas, e uma equipe de universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO. Evocando Mia Couto mais uma vez, fizemos assim, '(...) com base em momentos, em lembranças, porque esses episódios não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei a minha alma de futuro'. E assim fez uma centena de gerações, cujas histórias apresentamos a vocês agora, as lembranças de nosso eterno Santo Amaro, o 'colégio da memória'."
Exibido no auditório do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, no evento "Rastros da Memória", sessão seguida de debate com os professores e pesquisadores Rafael Mattoso (ex-professor de História do Colégio Santo Amaro e historiador), Karla Vasconcelos da Silva (diretora do Arquivo Nélida Piñon) e Elianne Ivo (professora de Montagem do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense).
"E tu, Colégio, da memória nossa jamais te apagarás"
Documentário exibido dez dias após a data do Centenário de início das aulas do Colégio Santo Amaro, em 1° de março de 1923. Foram duas sessões lotadas de ex-alunos, professores, freiras, funcionários, familiares e equipe do filme, num cinema (o Estação NET Botafogo) no mesmo bairro onde ficava a escola, Botafogo.
Uma alegria sem fim, surgida da dor e saudade que o fechamento da escola trouxe, mas que finalmente pôde desaguar nessa singela despedida.
"Todo mundo dando adeus pro Colégio".
01/04/2023: Exibido no auditório do antigo Colégio Santo Amaro, hoje o campus Botafogo da Universidade Veiga de Almeida. Na sequência, debate mediado por Maurício Fernandes, com a participação de Luiz Salgueiro, Mateus Rameh, Beatriz Pittas, Mariana Nunes, João Vitor Braga (coordenadores do projeto), Rafael Mattoso (pesquisador do filme) e Daniel Batista (produtor musical da trilha sonora).
27/05/2023: Exibição no SESC Castanhal, no Pará, na programação do Olhar Film Festival.
07/08/2023: Exibição para convidados no Cinema da Fundação (Museu do Homem do Nordeste), em Recife, Pernambuco, junto com o curta "Lá e de Volta Outra Vez". Na sequência, debate com Mateus Rameh e Marília Rameh.
09/08/2023: Exibição na Academia Santa Gertrudes para as turmas do Ensino Médio (essa foi a primeira escola no Brasil da Congregação das Irmãs Beneditinas de Tutzing). Olinda, Pernambuco.
A farsa delineia contornos épicos e místicos sobre a Paraty do fim do século XIX, a Paraty de Ruy Guerra, os sonhos da república que começava, o espírito nacional encrustado na hipocrisia contumaz de Dom Orestes, o desiludido esperançoso.
Imagens de um terror quase abstrato, o ápice de um desenvolvimento diferente do da música, a qual vai de uma leve inquietação a uma catarse, culminando em aplausos do público, mas tanto imagem como som convergem na criação de um único efeito bizarro. Estranhamente, isso deságua num encerramento potencialmente cômico, na medida em que os aplausos se contrastam com a expressão de um cachorro espectando chocado o dilaceramento de seu semelhante. O zoom out parece nos reinserir naquele espaço enquanto público que possa ter se descolado do filme ao testemunhar uma cena tão brutal, gratuita e animalesca, já que o olhar ganha, mesmo que desolado, um novo amparo na expressão humanizada do animal desnorteado.
Ele parece ter presenciado ao acaso o grupo de jovens, o que sugere aquele cenário como um lugar onde mesmo a brutalidade pode ter virado rotineira, desejada nos sorrisos juvenis, mas o filme não perde de vista essa figura similar a nós, espectadores, que tomamos tal pesadelo como uma aberração desvairada ao simplesmente assistir um curta.
Observando o sentido inverso, nota-se que há aí um movimento duplo: ele também não nos isenta de uma participação no ato violento, não nos enquadra apenas num olhar exterior, mas sim nos confronta com visões muito próximas da atrocidade, como cúmplices em potencial de uma ação desumana, ainda que queiramos nos distanciar daqueles jovens e dizer que aquilo se enquadraria apenas como "monstruosidade", portanto fora do nosso campo de ação. O plano do dente do cachorro na mão é especialmente forte nesse sentido, se assemelhando a um ponto de vista direto do personagem e, através dele, o nosso. Esse jogo de participação e distanciamento faz da experiência de Juvenília um enigma, uma zona turva ao mesmo tempo que explícita, mas, sobretudo, algo incontornável.
Que coletânea de grandes frases e momentos de uma irreverência cirúrgica no seu próprio tempo e pra posteridade...
A dupla de narradores-locutores tem uma presença tão forte no filme que chegam a compor um trio de protagonistas junto com o Luz, engendrados numa dinâmica que faz de tudo pretexto pro gozo, pra brincadeira, pra jogar tudo pelos ares e explodir o terceiro "imundo" (como foi lido antes da sessão). Mas qualquer brincadeira que se testemunha aqui é feita também com muita seriedade, no rigor de fazer sem regras, "um lixo sem limites". Pra ficar só no exemplo dos narradores, foram dois os momentos que me chamaram atenção nessa revisão, pra além do constante bate-voltra entre eles.
1) Quando um personagem sai do quadro com um rádio no braço e, ao mesmo tempo, deixamos de ouvir o som da narração, no meio de uma frase cujo raciocínio estávamos acompanhando durante a cena toda. 2) Quando Luz e Janete Jane estão no carro e o narrador o interpela: "Luz Vermelha, qual é o seu jogo, pistoleiro mascarado?", ao que o personagem responde "Aí está, tenho jogo nenhum".
Fora ambos os momentos, salvo alguma outra exceção que eu não lembrado, a impressão que temos é de que a narração é, a princípio, sempre extra-diegética. Porém, pontualmente nesses 2 exemplos, ela se insinua no ambiente da cena e quebra essa possível regra que parecia ter ficado estabelecida antes (e se é assim até no detalhe de certos momentos, macroscopicamente, no escopo geral do filme, isso fica ainda mais nítido). Na verdade, a constância, o nível de detalhamento, de liberdade e de insolência dessa narração nos fazem senti-la com uma proximidade quase fronteiriça de algumas cenas, sem se colocar num lugar isento, meramente contextual, e nem exatamente íntimo, pessoal ou sentimentalista (talvez apenas quando cede lugar ao bandido e olhe lá). A intimidade aqui diz respeito mais a um espírito que permeia absolutamente tudo no rastro de poluição que Luz deixa (ou melhor, sublinha) na metrópole. Um espírito que tudo congrega e tudo viola, na verve de uma irreverência criadora, fundacional, de uma postura e visão cinematográficas irrefreáveis em seu caráter moderno, respondendo frontalmente ao seu momento histórico.
Escreve Luz Vermelha, resoluta, direta e tranquilamente: se algo ficar no caminho,
Filme visto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em sessão dupla com o filme "L'Inferno" (1911). Link para assistir ao curta: https://www.youtube.com/watch?v=eGz9OhIIEXc
Isso é uma descrição da ação, que vem no intertítulo, não é uma fala, mas achei forte em meio ao contexto do filme.
Certamente a trilha ruidosa e nauseante do Ruy Gardnier (feita especialmente pra essa sessão) evidencia ainda mais um caráter de perturbação que permeia os ambientes e a jornada através do inferno, compondo-o como um verdadeiro domínio do horror, pra além de qualquer falta de disposição do olhar contemporâneo pras imagens dos primeiros filmes e os primeiros efeitos do cinema. Pelo contrário, eles são ainda impressionantes e a força maior do filme, já que o desenrolar dele reside justamente no efeito visual que as horrendas paisagens infernais podem proporcionar na tela, mais do que no desenvolvimento narrativo propriamente dito de Dante.
O plano final é especialmente épico nesse sentido, com a silhueta dos dois personagens e da saída da caverna a mostrar o fim daquela jornada: sem que saiamos com eles de volta para o mundo, o peso das catacumbas permanece, não sendo possível retornar a uma normalidade completa depois de tamanha perdição testemunhada. E mais, uma perdição que só poderia ser vista de tal forma, ainda que guarde cenas inteiras essencialmente teatrais, pela câmera cinematográfica na abertura luminosa (da lente e da caverna). Num salto, vamos da saída da caverna à imortalização de Dante em monumento. Num instante, temos de relance uma última consagração monumental, num retalho documental que também tem a possibilidade de ser integrado ao filme pela ampliação do espaço cênico para além dos limites do palco, juntando diferentes localidades justamente através da arte que pode tomar as imagens do mundo propriamente dito. Um fim apropriado para concluir uma história já consagrada, de modo a não passar despercebido que, dessa vez, a essa altura da História, ela nos chega pela tela do cinema.
O cara mete um stop-motion em 1908 (e faz isso em outros curtas também). As esculturas se fazendo sozinhas conseguem ser, até hoje, um surpreendente exemplar do regime de mostração, uma atração digna do adjetivo "moderno" no título, um "próximo passo" na arte de esculpir que é possibilitado pela arte cinematográfica e seus artifícios. Uma automação a partir da tecnologia?
Injustamente massacrado. Não é espetacular, mas principalmente nos momentos mais inspirados, na fotografia e nas atuações (especialmente do Vince Vaughn e do William H. Macy) consegue criar uma atmosfera bastante inquietante e sombria. Ele não parece querer se igualar ao original nem superá-lo, pelo contrário, os momentos em que tenta fazer algo totalmente próprio e novo parecem mal enxertados e (novamente) jogam pra baixo a força que vinha sendo construída. Me refiro aos planos aleatórios nas cenas de assassinato, que ao mesmo tempo nos deslocalizam (isso num filme que não pede essa disruptividade, que pela própria natureza do seu desenrolar já gera dúvidas e ambiguidades suficientemente potentes) e relembram que estamos vendo outra coisa, algo impuro, que não é exatamente nosso bom e velho conhecido "Psicose". Esses e outros momentos fazem o filme oscilar entre a caricatura involuntária, a invenção desnecessária e a tensão sólida e genuína, que é particular na medida em que se deixa fluir como se propõe a ser, diferente de quando tenta explicitar sua autoconsciência, como deixam transparecer os cacoetes de Marion em seu olhar, por exemplo, e um ou outro cacoete de Norman. É como se eles comentassem a cena que já conhecemos enquanto a vivem - enfatizando um ou outro gesto que já é forte por si só - ao invés de simplesmente vivê-la e nos deixar observá-la "como uma de suas aves embalsamadas".
Eu, Capitão
4.0 68https://oca.observatorio.uff.br/?p=5184
Io Capitano (Eu, Capitão, 2023) conta a saga de dois jovens senegaleses de 16 anos, os primos Seydou e Moussa, que desejam deixar seu país em busca de melhores condições de vida na Europa, mais especificamente na Itália, embora não tenham, ainda, dimensão do que significa empreender essa jornada, que deixa um rastro de miséria, lástima e morte por onde passa. Assim, no caminho, eles enfrentam todo tipo de desumanização ao tentar emigrar ilegalmente atravessando sinuosos ambientes urbanos e a amplidão interminável do deserto do Saara e do mar Mediterrâneo, o que impõe, reiteradamente, aos personagens um dilema labiríntico entre prosseguir, retroceder ou permanecer no mesmo lugar.
O retrato da jornada dos jovens Seydou e Moussa feita pelo diretor Matteo Garrone é marcado estruturalmente pela dinâmica de um road movie. Principalmente no primeiro ato, inclusive, o roteiro parece se preocupar mais com o acúmulo de situações e cenários do que em conectá-los de maneira cadenciada. O tom adotado é predominantemente naturalista, mas flerta, também, com o realismo fantástico, em cenas impregnadas pela imaginação do protagonista Seydou e até por um tom espiritual, que canaliza a violência generalizada que testemunhamos e a transforma em matéria onírica. Esses são os momentos de maior vigor do filme, que ocorrem apenas esporadicamente, já que, de maneira geral, paira uma certa imposição na abordagem que a torna vaga. Isso fica evidente na montagem, que insiste em utilizar fades (fusões) na transição de, rigorosamente, todas as cenas do primeiro ato, de modo que seu efeito visual e sensorial parece despropositado, meramente caprichoso, um vício de linguagem.
A alternância de cenas contrastantes nesse início é visível: danças repletas de leveza e cenas dos adolescentes trabalhando como pedreiros; Seydou e Moussa compondo músicas e depois travando embates com os adultos ao redor, que tentam convencê-los a não prosseguir com a ideia da viagem. Ao final de cada momento, quando a fusão acontece e uma imagem transcorre em outra suavemente, a parcela de dureza desses acontecimentos parece se dissipar e enfraquecer outros momentos que soam mais apropriados para essa técnica de transição. Na visita dos meninos a um cemitério, quando dialogam com os mortos, por exemplo, a passagem lenta de um plano a outro imprime a tentativa dos personagens de transcender, de extrapolar a objetividade material da realidade, ou indica prostração e fadiga com as passagens temporais nas cenas do deserto e da estrada.
No que diz respeito à narrativa, somos colocados ao lado de Seydou e Moussa de maneira a entrar em contato com a realidade brutal que o filme denuncia, mas tal denúncia jamais é maior que a humanidade dos personagens que a encarnam, já que Garrone enquadra, também, sua elaboração onírica, internalizada, a expressão de individualidade que afasta a possibilidade destes serem apenas rostos indistinguíveis na multidão. Apesar do filme mostrar que é essa a condição a qual estão submetidos, seu movimento é de não lhes sepultar, mas sim fazer coro com eles e com sua imaginação em meio ao caos.
Novamente, entretanto, as implicações de tal abordagem são ambíguas. Por um lado, pode-se afirmar que, ao final, prevalece o elogio a um heroísmo individual ingênuo, encarnado no título e na cena final – “eu sou o capitão”, delineando um indivíduo capaz de superar a precariedade de seu meio pela simples força de sua vontade – mas, por outro lado, isso seria ignorar a dimensão coletiva de cada encontro que o protagonista tem. A sequência que melhor descreve essa corrente é a em que ele busca por Moussa em Trípoli: passando por diversas comunidades de senegaleses, a câmera se detém, sutilmente, diante do rosto de cada pessoa que indica a Seydou onde ele pode encontrar o primo. Mais uma vez, uma situação angustiante, que é registrada enquanto tal, mas de maneira a salientar individualidades em um ambiente de negação da existência social (literalmente, nesse caso, já que pessoas negras não são aceitas nos hospitais da capital da Líbia).
Dois momentos que se destacam, ainda, pela sua grandiloquência, são as passagens pelo deserto e pelo mar, uma antítese e complemento da outra. No Saara, os imigrantes são praticamente largados à própria sorte para caminhar em direção à Líbia e, naturalmente, a caminhada torna-se dispersa, com algumas pessoas ficando para trás, exauridas. A dinâmica dessas cenas remete a um outro filme indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2024, Sociedade da Neve (2023, J. A. Bayona), no qual a brancura da neve ofusca o horizonte, intransponível pela cordilheira dos Andes. No caso de Io Capitano, o amarelo da areia é a cor que predomina e que confere languidez à presença humana, ao passo que o horizonte nunca parece mudar, representando o horizonte social imposto aos personagens. Ao final, já no Mediterrâneo, quando Seydou é designado para pilotar o barco ilegal que os levará à Itália, as pessoas se amontoam no espaço pequeno do convés e, ali apinhadas, isoladas pela imensidão do mar, logo iniciam um vozerio descontrolado, ao contrário do emudecimento do grupo do deserto, ambos marcas do sufocamento desumano que sofreram, ora silenciados, ora submetidos a uma espécie de Babel.
Assim, concentração e dispersão sintetizam o movimento da narrativa, em sua ambígua oscilação entre a individualidade e a coletividade, colocando frente a frente humanidade, natureza e, novamente, humanidade, já que foi em decorrência da própria ação humana e da desigualdade socioeconômica que os personagens se colocaram diante de tamanhos riscos. Com isso, o filme entende e transmite a complexidade engendrada na simples decisão entre mover-se e não sair do lugar, mote primordial do dilema de Seydou, Moussa e de incontáveis outras pessoas que se lançaram a esse périplo movediço.
Zona de Risco
3.3 33 Assista Agorahttps://oca.observatorio.uff.br/?p=5060
(Contém spoilers)
Land of Bad (Zona de Risco, 2024) é um filme de guerra que conta a história de Kinney (Liam Hemsworth), um oficial do exército estadunidense que, pela primeira vez, integra uma operação de resgate das forças armadas nas Filipinas, em busca de um agente da CIA feito refém. Logo a missão degringola e ele se vê isolado na selva sendo acompanhado, da base, pelo capitão Reaper (Russell Crowe), piloto de drone que se afeiçoa ao jovem e o guia na tentativa de retornar em segurança.
Responsável por coordenar a ação do apoio aéreo no combate, Kinney desempenha a função de mediar, para o espectador, a complexidade do embate: inexperiente, ele pergunta, comenta e recebe explicações sobre detalhes do armamento e da operação que contextualizam as terminologias, as motivações e a dinâmica da operação para o espectador, a fim de torná-la compreensível e mais palatável. No entanto, o efeito colateral dessas explicações é não só a hipersimplificação dos dilemas morais em questão, mas também uma diluição da abordagem de direção, que se torna sensivelmente ambígua, chegando até mesmo ao contraditório.
Em uma das primeiras interações do grupo de soldados, tem-se uma discussão sobre o uso da tecnologia na guerra. O soldado Bishop acha que o uso exagerado da tecnologia tira da guerra seu elemento humano, passional, ao passo que Kinney lhe contrapõe, dizendo que ela serve justamente para tornar o confronto menos mortífero e mais eficiente, amenizando sua brutalidade – ou seja, uma defesa da própria função desempenhada por ele. A tréplica de Bishop é de que esta é uma visão ingênua, carregada de teoria e de pouca prática, pois a morte ocorre de um jeito ou de outro, e a barbárie prevalece, sendo o descobrimento dessa realidade a síntese do arco de Kinney. Logo após esse diálogo, que evidencia a natureza crua e áspera da guerra, o primeiro grande showdown do filme acontece e, então, sua irreflexão estética transparece no uso da câmera lenta, quando o tiroteio começa. O mesmo personagem que profere aquelas palavras é agora filmado em câmera lenta, atirando com precisão no inimigo, de modo a ressaltar a plasticidade de seu ato. A execução do tiro e a evacuação da cápsula de bala ganham o ar estilizado de um espetáculo. O mesmo se aplica à maneira como os mísseis caem em magníficas explosões, cuja destruição – e poder de destruição – parece ser saboreada pelo filme. A intenção dramática e o virtuosismo da técnica dão lugar à sua percepção enquanto artifício vazio, contrário à dimensão atroz do conflito apregoada pelo discurso de Bishop minutos antes.
Nesse sentido, a abordagem da ação parece oscilar entre nos condicionar à posição do protagonista e nos fornecer uma visualização total do espaço através da decupagem. Na verdade, uma coisa parece neutralizar o potencial da outra: uma vez que não estamos sempre identificados à posição de Kinney, não experimentamos seu sufoco na intensidade que ele experimenta, pois os planos logo nos alçam a visões aéreas dos inimigos e diluem o horror potencial contido em sua condição de isolamento, o que resulta em uma ação cujos momentos inspirados se esvaem rapidamente. Ao mesmo tempo, ao acompanhá-lo de perto com uma câmera na mão, o filme enfraquece a grandiosidade da ação, arquitetada pela multiplicidade de visões estilizadas no espaço, fornecidas pela montagem.
Há quem possa dizer, contudo, que esta segunda abordagem diz respeito à contraparte narrativa de Kinney, o arredio capitão Reaper. Sentado na cabine de comando, lugar privilegiado de onde visualiza e maneja a operação através de drones, ele é a voz da experiência, os olhos que tudo veem, e a relação dos dois é o pilar mais sólido do filme. Sua obstinação se torna a do público, e a presença carismática de Russell Crowe o torna quase um coprotagonista, desvelando os fios emocionais de Kinney e afeiçoando-se a ele praticamente como a um filho (“tenho oito filhos e mais um a caminho”, ele diz, referindo-se à sua mulher grávida, mas numa frase perfeitamente aplicável ao jovem, que, por coincidência ou não, perdeu o pai pouco antes da missão). Sua função narrativa parece conferir esse sentido de família a alguns de seus colegas e, consequentemente, à instituição que representam, o exército americano, com direito a um discurso patriótico no final. Apesar de resultar em humor, essa sequência não deixa de passar por um sentimentalismo apressado pela montagem, já que a emoção sólida e genuína transmitida no rosto de Crowe logo dá lugar ao retorno triunfante dos soldados, que passa a ser intercalado com o discurso, uma escolha que revela pouca sensibilidade do diretor William Eubank ao próprio material, à entrega de seus atores e às dinâmicas que sua trama desenhou.
Assim, a ideia de realismo quase documental, impressa nos letreiros iniciais de Zona de Risco – que explicam o conflito e nos dizem “há uma guerra acontecendo, apenas não sabemos” -, prefigura um tom que não condiz com a natureza espetaculosa de momentos cruciais do filme e da ação. O terrorista Saeed Hashimi, o antagonista máximo, discursa sobre as bombas sem rosto dos Estados Unidos e a ética que ele pratica em resposta a isso, dizendo que matar também o afeta e que, justamente por isso, prefere criar intimidade com quem executa, pois “resultados reais são criados cara a cara”. Tudo isso não é suficiente para, de fato, dar alguma personalidade aos terroristas filipinos, já que esse mesmo personagem decapita, de maneira sádica, uma mulher e quase faz o mesmo a uma criança, enquanto as explosões dos mísseis americanos são festejadas pela mise-en-scène quase como se atingissem um mal abstrato, ao invés de vidas humanas. Essa pretensa profundidade psicológica ou moral, desenhada por tais cenas, termina por parecer nada mais que um mero rascunho, ensaio de uma obra que de fato desdobre a complexidade inicial de suas próprias ideias.
Estrada Perdida
4.1 469 Assista Agora" O sonho é um caos. Não entendo sua linguagem, que embaralha qualquer exegese. Esforço-me por decifrá-lo, sem resultado. Mal sei do que penso saber. Paciência, meu mister não é interpretar a vida ao pé da letra. Ou descrever uma terra que não é a minha. Pronto, como dizem os portugueses.
Termino constatando que a matéria onírica, ao avanço do ponteiro do minuto, esvanece e termina guardando na memória detalhes perecíveis".
- Nélida Piñon no livro "Uma Furtiva Lágrima", capítulo A Urgência do Caos.
" Fred: Gosto de recordar as coisas da minha maneira.
Policial: O que quer dizer com isso?
Fred: Do jeito que eu as recordo... Não necessariamente como aconteceram."
Amaro: O Colégio da Memória
4.8 228/09/2023:
Texto lido na abertura da sessão:
"Nós do Projeto Amaro gostaríamos de agradecer, primeiramente, ao Instituto Cervantes
por nos receber de maneira tão generosa, para uma sessão que nos parecia fazer sentido desde a primeira vez que viemos aqui, no aniversário da escritora Nélida Piñon, em maio desse ano, a convite da professora Karla Vasconcelos. Nélida foi aluna do Colégio Santo Amaro e, assim como viria a ocorrer aqui no Instituto Cervantes, a biblioteca da escola foi batizada em seu nome e, mesmo com o fechamento do Colégio e sua transformação em campus da Universidade Veiga de Almeida, o nome foi mantido.
Essa simples correlação entre as duas instituições delineia para nós o caminho de Nélida,
que enquanto uma figura ilustre de nossa literatura, nunca se esquece de suas origens, pelo contrário, carregava-as aonde ia. Na inauguração da biblioteca com seu nome aqui no Instituto Cervantes, Nélida disse: 'A história, de verdade, é apenas provisoriamente minha e nós que narramos temos o compromisso ético, em relação ao futuro, de não permitir que uma só história morra, nenhuma história pode fenecer, porque isso significaria eliminar o coração das pessoas. Todo mundo vive na expectativa de que surja uma autora, um autor, que vá preservar sua história. Não se pode viver impunemente, sem que alguém colha os rastros, os restos, as sobras da história da humanidade'. Com esse espírito, sua memória pessoal e a memória dos séculos se confundiam, eram partes inseparáveis dela.
E foi nesse rastro de memória que trilhamos, por vezes sentindo a verdade do que Nélida
disse em nossa entrevista, 'A memória é um milagre', quando encontrávamos fotos dos lugares que conhecíamos intimamente antes mesmo de serem construídos, e depoimentos que pareciam ter sido destinados a integrarem este documentário. Que tenham sobrevivido na lembrança de uma senhora de 102 anos, Zeny, ou nos álbuns de fotos delicadamente organizados pela irmã Theresinha Barbosa, nos víamos arrebatados por um sentimento de sorte e de consonância com algo que atravessava o tempo, uma história que, efetivamente, começa no dia 15 de janeiro de 1923.
Eu me lembro de quando estávamos no Ensino Médio e o professor de literatura, nosso
querido Carlucho, passou o livro 'Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra' como leitura bimestral e ali o autor moçambicano Mia Couto escreveu 'o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós a casa mora'. A escola é um período particular para cada um, e para algumas pessoas ela pode ser apenas um obstáculo a ser superado, mas para nós representava uma espécie de lar. Eu terminei de ler esse livro na biblioteca Nélida Piñon, num recreio, e hoje também relaciono essa frase à trajetória de Nélida, uma mulher que dizia não querer passar muito tempo sob um mesmo teto, mas que fez da Espanha, do Brasil, do Santo Amaro, lugares que, verdadeiramente, a constituíam profundamente. Ela lhes reverenciava, transparecendo um sentimento nítido em tantas outras pessoas que conhecemos nessa jornada, perpassadas por um sentido de pertencimento em relação à escola enquanto um lugar fundacional, espaço de comunhão de vivências e aprendizados.
E, assim, com muito suor, fizemos este filme. Com uma equipe de cerca de 40 pessoas,
o apoio incondicional das irmãs e da Associação de ex-alunos, com um financiamento coletivo apoiado por 120 pessoas, e uma equipe de universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO. Evocando Mia Couto mais uma vez, fizemos assim, '(...) com base em momentos, em lembranças, porque esses episódios não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei a minha alma de futuro'. E assim fez uma centena de gerações, cujas histórias apresentamos a vocês agora, as lembranças de nosso eterno Santo Amaro, o 'colégio da memória'."
Exibido no auditório do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, no evento "Rastros da Memória", sessão seguida de debate com os professores e pesquisadores Rafael Mattoso (ex-professor de História do Colégio Santo Amaro e historiador), Karla Vasconcelos da Silva (diretora do Arquivo Nélida Piñon) e Elianne Ivo (professora de Montagem do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense).
A Carcaça da La Ursa
4.7 1Link para assistir:
https://vimeo.com/557404209?share=copy
Dique
4.3 1Link para assistir: https://vimeo.com/505090572
Amaro: O Colégio da Memória
4.8 211/03/2023:
"E tu, Colégio, da memória nossa jamais te apagarás"
Documentário exibido dez dias após a data do Centenário de início das aulas do Colégio Santo Amaro, em 1° de março de 1923. Foram duas sessões lotadas de ex-alunos, professores, freiras, funcionários, familiares e equipe do filme, num cinema (o Estação NET Botafogo) no mesmo bairro onde ficava a escola, Botafogo.
Uma alegria sem fim, surgida da dor e saudade que o fechamento da escola trouxe, mas que finalmente pôde desaguar nessa singela despedida.
"Todo mundo dando adeus pro Colégio".
01/04/2023:
Exibido no auditório do antigo Colégio Santo Amaro, hoje o campus Botafogo da Universidade Veiga de Almeida. Na sequência, debate mediado por Maurício Fernandes, com a participação de Luiz Salgueiro, Mateus Rameh, Beatriz Pittas, Mariana Nunes, João Vitor Braga (coordenadores do projeto), Rafael Mattoso (pesquisador do filme) e Daniel Batista (produtor musical da trilha sonora).
27/05/2023:
Exibição no SESC Castanhal, no Pará, na programação do Olhar Film Festival.
07/08/2023:
Exibição para convidados no Cinema da Fundação (Museu do Homem do Nordeste), em Recife, Pernambuco, junto com o curta "Lá e de Volta Outra Vez". Na sequência, debate com Mateus Rameh e Marília Rameh.
09/08/2023:
Exibição na Academia Santa Gertrudes para as turmas do Ensino Médio (essa foi
a primeira escola no Brasil da Congregação das Irmãs Beneditinas de Tutzing). Olinda, Pernambuco.
A Bela Palomera
3.5 2A farsa delineia contornos épicos e místicos sobre a Paraty do fim do século XIX, a Paraty de Ruy Guerra, os sonhos da república que começava, o espírito nacional encrustado na hipocrisia contumaz de Dom Orestes, o desiludido esperançoso.
Juvenília
3.4 9Imagens de um terror quase abstrato, o ápice de um desenvolvimento diferente do da música, a qual vai de uma leve inquietação a uma catarse, culminando em aplausos do público, mas tanto imagem como som convergem na criação de um único efeito bizarro. Estranhamente, isso deságua num encerramento potencialmente cômico, na medida em que os aplausos se contrastam com a expressão de um cachorro espectando chocado o dilaceramento de seu semelhante. O zoom out parece nos reinserir naquele espaço enquanto público que possa ter se descolado do filme ao testemunhar uma cena tão brutal, gratuita e animalesca, já que o olhar ganha, mesmo que desolado, um novo amparo na expressão humanizada do animal desnorteado.
Ele parece ter presenciado ao acaso o grupo de jovens, o que sugere aquele cenário como um lugar onde mesmo a brutalidade pode ter virado rotineira, desejada nos sorrisos juvenis, mas o filme não perde de vista essa figura similar a nós, espectadores, que tomamos tal pesadelo como uma aberração desvairada ao simplesmente assistir um curta.
Observando o sentido inverso, nota-se que há aí um movimento duplo: ele também não nos isenta de uma participação no ato violento, não nos enquadra apenas num olhar exterior, mas sim nos confronta com visões muito próximas da atrocidade, como cúmplices em potencial de uma ação desumana, ainda que queiramos nos distanciar daqueles jovens e dizer que aquilo se enquadraria apenas como "monstruosidade", portanto fora do nosso campo de ação. O plano do dente do cachorro na mão é especialmente forte nesse sentido, se assemelhando a um ponto de vista direto do personagem e, através dele, o nosso. Esse jogo de participação e distanciamento faz da experiência de Juvenília um enigma, uma zona turva ao mesmo tempo que explícita, mas, sobretudo, algo incontornável.
Pobre Pierrot
3.9 261° filme visto em uma aula presencial na UFF, no IACS, na aula de animação.
Como é bom finalmente estar lá...
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 263 Assista Agora"Um lixo sem limites, senhoras e senhores".
Que coletânea de grandes frases e momentos de uma irreverência cirúrgica no seu próprio tempo e pra posteridade...
A dupla de narradores-locutores tem uma presença tão forte no filme que chegam a compor um trio de protagonistas junto com o Luz, engendrados numa dinâmica que faz de tudo pretexto pro gozo, pra brincadeira, pra jogar tudo pelos ares e explodir o terceiro "imundo" (como foi lido antes da sessão). Mas qualquer brincadeira que se testemunha aqui é feita também com muita seriedade, no rigor de fazer sem regras, "um lixo sem limites". Pra ficar só no exemplo dos narradores, foram dois os momentos que me chamaram atenção nessa revisão, pra além do constante bate-voltra entre eles.
1) Quando um personagem sai do quadro com um rádio no braço e, ao mesmo tempo, deixamos de ouvir o som da narração, no meio de uma frase cujo raciocínio estávamos acompanhando durante a cena toda.
2) Quando Luz e Janete Jane estão no carro e o narrador o interpela: "Luz Vermelha, qual é o seu jogo, pistoleiro mascarado?", ao que o personagem responde "Aí está, tenho jogo nenhum".
Fora ambos os momentos, salvo alguma outra exceção que eu não lembrado, a impressão que temos é de que a narração é, a princípio, sempre extra-diegética. Porém, pontualmente nesses 2 exemplos, ela se insinua no ambiente da cena e quebra essa possível regra que parecia ter ficado estabelecida antes (e se é assim até no detalhe de certos momentos, macroscopicamente, no escopo geral do filme, isso fica ainda mais nítido). Na verdade, a constância, o nível de detalhamento, de liberdade e de insolência dessa narração nos fazem senti-la com uma proximidade quase fronteiriça de algumas cenas, sem se colocar num lugar isento, meramente contextual, e nem exatamente íntimo, pessoal ou sentimentalista (talvez apenas quando cede lugar ao bandido e olhe lá). A intimidade aqui diz respeito mais a um espírito que permeia absolutamente tudo no rastro de poluição que Luz deixa (ou melhor, sublinha) na metrópole. Um espírito que tudo congrega e tudo viola, na verve de uma irreverência criadora, fundacional, de uma postura e visão cinematográficas irrefreáveis em seu caráter moderno, respondendo frontalmente ao seu momento histórico.
Escreve Luz Vermelha, resoluta, direta e tranquilamente: se algo ficar no caminho,
"Atrawessarei vossas cabeças".
Umana Divina Geometria
3.0 1Filme visto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em sessão dupla com o filme "L'Inferno" (1911). Link para assistir ao curta: https://www.youtube.com/watch?v=eGz9OhIIEXc
Inferno
4.2 57"Os demônios perseguem os poetas"
Isso é uma descrição da ação, que vem no intertítulo, não é uma fala, mas achei forte em meio ao contexto do filme.
Certamente a trilha ruidosa e nauseante do Ruy Gardnier (feita especialmente pra essa sessão) evidencia ainda mais um caráter de perturbação que permeia os ambientes e a jornada através do inferno, compondo-o como um verdadeiro domínio do horror, pra além de qualquer falta de disposição do olhar contemporâneo pras imagens dos primeiros filmes e os primeiros efeitos do cinema. Pelo contrário, eles são ainda impressionantes e a força maior do filme, já que o desenrolar dele reside justamente no efeito visual que as horrendas paisagens infernais podem proporcionar na tela, mais do que no desenvolvimento narrativo propriamente dito de Dante.
O plano final é especialmente épico nesse sentido, com a silhueta dos dois personagens e da saída da caverna a mostrar o fim daquela jornada: sem que saiamos com eles de volta para o mundo, o peso das catacumbas permanece, não sendo possível retornar a uma normalidade completa depois de tamanha perdição testemunhada. E mais, uma perdição que só poderia ser vista de tal forma, ainda que guarde cenas inteiras essencialmente teatrais, pela câmera cinematográfica na abertura luminosa (da lente e da caverna). Num salto, vamos da saída da caverna à imortalização de Dante em monumento. Num instante, temos de relance uma última consagração monumental, num retalho documental que também tem a possibilidade de ser integrado ao filme pela ampliação do espaço cênico para além dos limites do palco, juntando diferentes localidades justamente através da arte que pode tomar as imagens do mundo propriamente dito. Um fim apropriado para concluir uma história já consagrada, de modo a não passar despercebido que, dessa vez, a essa altura da História, ela nos chega pela tela do cinema.
Escultores Modernos
3.4 1O cara mete um stop-motion em 1908 (e faz isso em outros curtas também). As esculturas se fazendo sozinhas conseguem ser, até hoje, um surpreendente exemplar do regime de mostração, uma atração digna do adjetivo "moderno" no título, um "próximo passo" na arte de esculpir que é possibilitado pela arte cinematográfica e seus artifícios. Uma automação a partir da tecnologia?
Psicose
3.1 466 Assista AgoraInjustamente massacrado. Não é espetacular, mas principalmente nos momentos mais inspirados, na fotografia e nas atuações (especialmente do Vince Vaughn e do William H. Macy) consegue criar uma atmosfera bastante inquietante e sombria. Ele não parece querer se igualar ao original nem superá-lo, pelo contrário, os momentos em que tenta fazer algo totalmente próprio e novo parecem mal enxertados e (novamente) jogam pra baixo a força que vinha sendo construída. Me refiro aos planos aleatórios nas cenas de assassinato, que ao mesmo tempo nos deslocalizam (isso num filme que não pede essa disruptividade, que pela própria natureza do seu desenrolar já gera dúvidas e ambiguidades suficientemente potentes) e relembram que estamos vendo outra coisa, algo impuro, que não é exatamente nosso bom e velho conhecido "Psicose". Esses e outros momentos fazem o filme oscilar entre a caricatura involuntária, a invenção desnecessária e a tensão sólida e genuína, que é particular na medida em que se deixa fluir como se propõe a ser, diferente de quando tenta explicitar sua autoconsciência, como deixam transparecer os cacoetes de Marion em seu olhar, por exemplo, e um ou outro cacoete de Norman. É como se eles comentassem a cena que já conhecemos enquanto a vivem - enfatizando um ou outro gesto que já é forte por si só - ao invés de simplesmente vivê-la e nos deixar observá-la "como uma de suas aves embalsamadas".
Rasga Mortalha
3.7 2Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/29
Hornzz
3.8 3Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: https://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/17
Aurora: A Rua que Queria Ser um Rio
4.8 3Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/7
Interiores.
3.8 1Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/19
Peixinho
4.8 1Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/22
Uma Força Extraordinária
2.5 1Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/28
Tambor ou Bola
3.2 1Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/25
Rumor de Estrelas
1Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/30
Mamãe Tem um Demônio
3.6 3Filme exibido no Festival de Cinema Sol Maior: http://www.festivalsolmaior.com.br/shorts/20