Análise fílmica de "A Queda da Casa de Usher" - 1° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1TO8hW4A4eCK7eIxB5k4vLKw_HgEDuU3v/view?usp=sharing (3 páginas, com spoilers)
Isso aqui foi massa. Já na imagem inicial tem uma sugestividade que joga com a nossa intuição em algumas direções de um jeito bem expressivo e que vai além disso quando, literalmente, se concretiza no final para além de uma sugestão onírica. Quer dizer, em retrospecto dá até pra dizer que existe um certo sufoco de pesadelo no curta todo que nos faz refletir se em algum momento sequer saímos do sonho do começo. Isso transmite uma ideia desse cotidiano como aquilo do que ele não consegue escapar, que o aprisiona e confunde, algo que a pintura e os diálogos também fazem. O estilo da pintura, que não é fotorrealista, nos dá a ver o mundo sob uma ótica turva, embaçada, altamente subjetiva. Os diálogos, também pouco inteligíveis (como muitas vezes em sonhos compreendemos trechos do que os outros falam ou nos lembramos de partes), nos inserem na perspectiva do protagonista, atordoado a todo tempo por seus arredores, em constante dessintonia com eles.
quando vem aquela imagem final da bolha orbitante, o curta ressintoniza a existência do personagem,
numa sequência que transborda de um desenvolvimento narrativo causal (que mostraria ele resolvendo seus problemas) para uma dinâmica metafórica do fantástico que parece mostrar um processo de estafa e catarse de modo mais aberto e puramente sensorial. Além disso, ele faz o uso da pintura transbordar do que poderia ser um mero artifício para tornar o filme mais "artístico" e menos banal para realizar uma sequência que só se torna possível, no contexto brasileiro de produção de filmes (principalmente dos independentes), através dessa linguagem fantástica, que independe do registro concreto de uma câmera e permite
O que mais me chamou atenção na montagem de Soberba foi o uso de “fade to black” para os momentos entre os quais um tempo considerável teria decorrido. Não à toa é um recurso que apenas aparece após 25 minutos de filme, ou seja, durante todo o primeiro ato, justamente porque uma montagem que pretende ser narrativa não colocaria uma “pausa” no meio de seu esforço de construir uma apresentação dos personagens e de suas relações. Isso comprometeria a sensação de continuidade, de causalidade entre cada ação que o narrador primeiro pontua para depois silenciar-se e nos deixar ver qual consequência terá o que comentou. Então, é apenas depois de estarmos situados na trama (já sabendo que George se interessou por Lucy, que a paixão de sua mãe Isabel por Eugene não passou e que sua tia Fanny também continua interessada pelo inventor) que esse recurso entra como uma solução proveitosa para nos indicar que podemos respirar e nos preparar para o próximo pedaço de história que irá se suceder. (...) -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Link para ver o curta - https://www.youtube.com/watch?v=7kqxSXgD9ZA
Assisti ao curta sem procurar do que se tratava, pois acho que isso me faz chegar mais aberto para as possibilidades que o filme venha a provocar e também não pesquisei nada depois. Não falo espanhol, então talvez algo tenha passado despercebido nos poucos diálogos. O que me chamou mais atenção no curta “Alumbramiento” foi o modo como ele estabelece uma montagem de ecos com um forte senso onírico e de memórias que se embaralham. O tique-taque de um relógio marcado visualmente por seu pêndulo ressoa no relógio que uma criança desenha em seu pulso, o modo como a mulher se movimenta na cama é continuado pelo balançar dos pés da costureira, o som da grama sendo cortada parece se misturar ao movimento de uma corda sendo trançada. Num primeiro momento, é difícil precisar se o sangue na barriga é da mulher, do bebê, ou de outra pessoa. Imagens e sons se misturam de modo que nos confundimos e nos deslocalizamos tanto no espaço das cenas quanto em suas temporalidades, o que se assemelha a uma atmosfera de sonho ou mesmo de lembranças longínquas, que lampejam na mente em flashes por vezes imprecisos e misteriosos. Com uma fusão na montagem, ao mesmo tempo em que perfura o tecido e marca o nome da criança que acaba de chegar, a agulha da máquina de costura perfura a barriga do bebê, que sangra. Isso me pareceu apontar para uma condição de violência desse mundo em que a criança acaba de chegar e já é submetida. Um mundo em guerra, em que a imagem de um menino trançando uma corda a partir de seu dedão mais parece um enforcamento. Um mundo hostil em que desde o nascimento os homens já estão fadados à fadiga do trabalho ou da guerra. E a mãe, já sabendo os destinos que o esperam, teme por seu filho. A aflição que ela demonstra parece contaminar todas as imagens na primeira metade do filme e paira uma sensação de pesadelo diante da possibilidade da vida de um filho se esvair, do relógio chegar ao último batimento de seus ponteiros e encerrar uma existência tão nova. Foi com essa densidade que “Alumbramiento” me impactou. As alternâncias que faz entre diferentes imagens e sons, pessoas e situações não parecem ter uma conexão muito imediata num primeiro momento, mas passam a se interligar a partir de uma confecção, na montagem, que as faz reverberar umas nas outras. Assim, somos sensibilizados justamente pela ausência de uma explicação lógica explícita ou de uma estrutura linear na montagem, que enfraqueceriam substancialmente o efeito dessa composição turva e misteriosa. -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Auto de Resistência é um filme forte e, no que se refere à montagem, me chama atenção o modo como ele potencializa nossa empatia pelas personagens, principalmente pelas mães. Naturalmente, eu já tenderia a tomar o lado delas mesmo se o documentário fizesse um esforço de assumir uma postura mais “neutra”, mas o fato é que, principalmente nas cenas dentro do tribunal, enquanto os policiais falam, os cortes para a reação das mães são cirúrgicos para materializar sua dor diante de nós e fazer com que a sintamos também. Além disso, é potente também o modo como, por vezes, as gravações das situações de violência são deixadas completas na tela. Ao invés de picotar tais filmagens para dinamizar o ritmo ou amenizar nossa tensão, o filme deixa-as por inteiro diante de nós, aproximando-nos da posição em que estavam as pessoas que as gravaram, imergindo-nos desconfortavelmente nas situações, que são deixadas lá, cruas, não para chocar de modo sensacionalista, mas para deixar transparecer sua gravidade. Nesse sentido, isso se distancia de uma abordagem midiática do material, que se preocuparia em “avançar” para as partes mais interessantes, para não perder o espectador, não deixá-lo entediado quando aparentemente nada estivesse acontecendo. É um documentário que busca uma sensibilização menos imediata de quem assiste, que deixa transparecer a densidade e austeridade de seu assunto e das situações, que está interessada na humanidade dentro dessas tragédias, fazendo-nos sentir sua extrema e extenuante complexidade. -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
É interessante notar como o filme “Side by Side” alterna as visões e opiniões acerca da questão película x digital, de modo a colocá-las, literalmente, lado a lado, deixando espaço para ambos os posicionamentos explicarem seus motivos sem impor ao espectador um juízo definitivo sobre o que deve pensar. Esse choque de visões também proporciona uma experiência muito imersiva na medida em que, quando estamos por certo tempo engajados na linha de raciocínio de um grupo de entrevistados, quando parecemos começar a ser convencidos, vem do outro lado um argumento que também é compreensível. Isso faz com que nos interessemos pelas possibilidades do que vai ser dito, faz com que queiramos prestar atenção a fim de que tenhamos um entendimento mais amplo das questões apresentadas. Em determinado momento, quando fala da etapa de tratamento de cor, o filme mostra uma colorista profissional mexendo no DaVinci e utilizando a função power window para alterar a cor das árvores no canto de um plano. Isso é algo que aprendi literalmente semana passada e me empolgou ver uma profissional fazendo algo que não está tão distante do nosso alcance no mesmo software. Me animou ver que algo que eu imaginava ser muito complexo e difícil, na verdade é mais simples e exatamente o que é usado em filmes que admiro. O fazer cinematográfico agora me parece de fato mais próximo, como eu sonhava há alguns anos, algo, inclusive, comentado pelo filme, ele diz que as pessoas poderão fazer seus filmes mais facilmente e com boas ferramentas. Pois bem, agora podemos. -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Link para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" de 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Presente de Deus" e "Bloco do Isolamento").
www.youtube.com/watch?v=meGwrwavtnI
3° e último curta na ordem do vídeo (minutagem: 23:47).
Link para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" com 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Bloco do Isolamento" e "Mais um Domingo".
De longe, um dos canais com o conteúdo mais bem trabalhado que eu já vi. O Max tem uma preocupação em realmente discutir filmes e séries com aprofundamento, com um tom super calmo nos vídeos que é extremamente acolhedor. E ainda equilibra as temáticas do canal entre obras mais populares e outras mais alternativas... Bom demais!
A expressividade desse filme é algo impressionante, principalmente com a montagem e a fotografia. Juntas, elas permitem que os planos transpareçam a emoção que pretendem, sem precisarem, de modo geral, colocar intertítulos o tempo todo dizendo qual a sensação em cena. O jogo de preparação e entrega que a montagem vai criando torna o filme muito imersivo e consegue até extrair emoção de objetos inanimados como os canhões filmados frontalmente, ameaçadores, prestes a atirar, ou as estátuas de leões que, mostradas rapidamente na tela, parecem assustadas com sua iminente destruição. Isso sem contar com o incrível uso das sombras, que evocam diferentes emoções (como luto, medo e glória) ao longo da história e aparecem precisamente em momentos de grande intensidade dramática, funcionando quase como marcadores dos pontos de virada e conferindo ao filme uma forte coesão narrativa.
Sim, tem uma romantização em torno do espírito da revolução, mas é bem menos manipulativo e pedagógico na forma com que transmite isso. É um filme extremamente envolvente e consegue passar um senso genuíno e singelo de grandiosidade e coletividade. Simplesmente foda.
Como é engenhoso o tal do Buster Keaton, viu. Toda a sequência dele sonhando e começando a entrar no filme é o ápice disso pra mim (além, é claro, das acrobacias perigosas que são de tirar o fôlego). Mas só a inventividade técnica da sequência no cinema já é potente o suficiente pra nos deixar impressionados e ansiosos pelo que mais pode vir. Ao usar a metalinguagem pra conectar o mundo dentro da tela com o fora dela, ele satiriza a natureza dessa forma de arte tão nova à época. O corte é usado ao mesmo tempo no filme que estamos vendo e no filme passando dentro dele, se auto evidenciando como uma descontinuidade, mas, ao mesmo tempo, borrando uma noção exata dela: a câmera permanece o tempo todo parada, longe da tela e no mesmo enquadramento e, quando protagonista entra no filme, entendemos que provavelmente aquele cenário interno à tela é do próprio set onde está sendo gravado o cinema, fingindo ser uma projeção. Porém, logo as ambientações ali mostradas passam a ser externas e não poderiam ser construídas no set, ou seja, elas foram projetadas ali de uma gravação feita antes. É necessário um corte para unificar a sala falsa e o filme projetado, mas essa mudança é imperceptível e, assim, a mágica do cinema acontece. Sem contar que as posições de Keaton com o passar dos cortes são perfeitamente continuadas, configurando uma brincadeira muito bem orquestrada com a natureza manipulável do material cinematográfico.
É interessante como o filme vai criando um senso lúdico através de um engessamento que aos poucos se transforma em algo de fato fantástico, principalmente no terceiro ato, criando uma mistura curiosa de gêneros como a comédia, o drama e a fantasia e transitando bem entre eles. A inocência travessa da protagonista e suas consequências são um meio para a retomada de valores familiares tradicionais:
ainda que o desenrolar da trama culmine nos pais entendendo que não precisam ser tão duros com a filha, isso acontece para mostrar um ideal de família, uma que consegue se unir no final, de forma romântica e esperançosa. É uma narrativa clássica como muitas outras que crê numa família inabalável e inseparável e idealiza isso no cinema com uma conclusão redentora,
o que é mais difícil de digerir hoje em dia, depois de mais de um século, com nosso olhar mais descrente. Ainda assim, a maneira expressiva como o filme conta essa história me fez gostar bastante dele.
É interessante como ele apreende e representa, na sua linguagem, essa moral rígida que define princípios e valores absolutos. Vemos isso através de frases como as da aula ("a veracidade é o coração da moralidade" e "a procrastinação é ladra do tempo") e também de uma distinção bem clara entre ações e personagens do bem e outros do mal.
No delírio de Gwen, por exemplo, existe a terra das crianças solitárias e a terra das crianças felizes, mas não existe um intermediário.
Cada personagem tem sua função bem definida (alguns estereotipados, como a mãe) e até a forma como são chamados é categórica também: "the organ grinder", "the plumber", "Gwen, the poor little rich girl", esse último repetido inúmeras vezes ao longo da história. São figuras às quais não se atribui tanta "densidade psicológica" mas a ideia é justamente representar, e não mostrar com realismo. É como se o filme colocasse essas alcunhas nos personagens para os colocar como partes de uma fábula e as próprias descrições que vem antes ou entre as cenas funcionam como falas de um narrador, começando com "na casa de tudo, exceto do amor, habitava Gwendolyn, a pobre menina rica". Ela tinha tudo, mas não tinha nenhum amor, uma dicotomia bastante categórica bastante clássica, que faz surgir do rígido o lúdico e que se interessa por dramas, situações e lições bastante identificáveis e generalizadas, sem tanta especificidade (não genérico, mas sim absoluto), que vão culminar na prevalência do amor, num ideal de família e humanidade.
Assim, o filme salta aos olhos e nos envolve com os cenários imaginativos do final, os intertítulos que fazem parecer que estamos lendo um livro pop up, a atuação expressiva de Mary Pickford, a montagem inventiva (como na cena em que o pai pensa em se matar, por exemplo, em que sua imaginação se materializa com uma sobreposição) e o uso inteligente das cores para evocar imediatamente algumas sensações. Tem um começo um tanto mecânico e ilustrativo, como se, ao apresentar os personagens, estivesse colocando peças no tabuleiro, sem conseguir interrelacionar muito bem essas apresentações, mas isso é algo extremamente pontual. No fim das contas, é uma história cativante e divertida. Não é a mais marcante do mundo mas me envolveu bastante com a estética imaginosa, digna do modo de uma criança de ver o mundo ao seu redor.
"Você está no jardim das crianças solitárias, na floresta dos sonhos. Aqui, as coisas aparecem como elas realmente são"
A primeira cena me fez pensar que o tom do filme seria bem mais soturno, mas isso logo é desconstruído e, uma vez que percebi que se tratava de outra coisa, fiquei curioso para saber como Juliana Rojas iria conciliar uma abordagem mais agradável com um cenário do qual se espera o sinistro. Para minha surpresa, ela faz isso muito bem.
Para concretizar isso, ela aposta num visual mais limpo, menos cru do que um cemitério sugeriria, uma fotografia digital bastante nítida e definida que busca não a brutalidade da morte, mas sim que possíveis relações se dão entre os que a rodeiam. É uma fotografia que eu gosto muito e parece o início do estilo que a diretora e Marco Dutra buscariam depois em “As Boas Maneiras”. Além disso, principalmente, existe uma certa infantilidade burlesca no modo como as dinâmicas do filme são encenadas, não só os números musicais, isso passa para as cenas num geral, o que confere leveza à trama. É quase como se fosse um conto infantil para crianças dormirem, ou mesmo uma peça quase infantil, onde o cemitério é como o palco onde se desenrola a ação e os personagens entram e são apresentados de maneira bastante marcada. Mas não chega a ser totalmente isso por causa das partes mais “adultas” que a trama traz, como o enredo administrativo ou, mais especificamente,
Essa, aliás, é uma cena que demonstra muito bem a natureza do filme e a dinâmica em que se ampara sua condução, já que é algo absurdo e impensável que mistura o repugnante ao cômico, produzindo uma série de situações inusitadas que equilibram bem atmosferas mais em humoradas com outras um pouco mais dramáticas
(como a cena em que Deodato toca órgão depois da partida de Jaqueline)
e outras mais enervantes (como o começo da cena em que Deodato está vigiando o cemitério).
A única coisa que me incomodou foram as atuações de Eduardo Gomes (Deodato) e Luciana Paes (Jaqueline) que, no intuito de conferir leveza às cenas, variam pouco em entonação e expressões, o que, embora contribua proveitosamente para uma certa teatralidade, torna a relação entre eles menos envolvente e seu final menos impactante. Essas repetições dão menos expressividade a eles, o que, num filme com uma proposta única como essa, soa não tão bem trabalhado. Porém, como o filme não tem grandes pretensões de profundidade e está mais interessado em propiciar uma experiência inusitada e curiosa, isso não chega a ser um grande problema.
Assim, a história de Sinfonia da Necrópole é quase um pretexto para as situações, o que funciona bem porque ela não é deixada de lado, mas sim usada para possibilitar e amparar uma comédia romântica musical passada num cemitério. É um filme muito divertido.
Segundo filme de Juliana Rojas e Marco Dutra que assisto e é impressionante a sensibilidade deles para o terror e a dosagem de suas particularidades em cada filme. Aqui, esse clima é insinuado a partir de um anestesiamento na encenação que reflete a insensibilidade (muitas vezes inconsciente) das relações de dominação e opressão entre empregador e empregado, mãe e filha, marido e mulher. Sem pensar antes de falar, os personagens estão sempre soltando falas que não percebem conter algum tipo de ofensa, que podem até ter a intenção de serem amigáveis, mas que poderiam muito bem não ser ditas. A câmera sempre fazendo movimentos lentos, a ausência de trilha sonora, a fotografia com seus tons pouco vibrantes, muitas vezes filmando os personagens de costas, tudo comunica uma frieza apática, a qual revela um estado subjacente e normalizado de conflito social que é insustentável e que nem os próprios personagens aguentam, mas têm de permanecer nele para sobreviver. Consequentemente, cansados e desesperados, não conseguem ter um tato afável em suas interações.
Nesse sentido, a cena final é perfeita, a melhor dirigida do filme para mim: o mercado de trabalho exaure e, para manter-nos à sua disposição, inventa técnicas motivacionais que nos deixam numa eterna esperança ilusória. Essa não é, necessariamente, a intenção do palestrante nem de quem o colocou ali, mas é o que de fato acontece: na prática, aquelas pessoas não importam e a guerra entre elas é benéfica para quem não tem de passar por subjugações humilhantes por terem uma condição financeira menor. A fala “a gente joga o perfil no banco de dados e a partir daí todas as empresas podem acessar” é representada na prática, com o primeiro enquadramento da cena final mostrando inúmeros homens sem rosto (por estarem de costas) vendo uma palestra sobre como lidar com o mercado de trabalho. Eles não são mais pessoas possíveis, são números que precisam acreditar que têm agência e que podem construir seu caminho para o sucesso libertando seu lado primitivo, mas, na verdade, continuarão presos nessa roda extenuante, num ciclo cansativo que pode trazer qualquer um à beira da loucura. É o processo de desumanização, que é tema do filme, sendo potencializado pela fotografia e anunciando o desfecho que aquela cena teria: os trabalhadores sendo encorajados a se bestializarem, a deixarem para trás seu lado humano. É tão ridículo quanto atual, não sendo raro encontrar as mesmíssimas cenas com alguns coachs na internet…
É nesse contexto que os elementos que se aproximam do terror funcionam tão bem: essa ideia de aprisionamento e de algo subjacente que está prestes a estourar é trabalhada a partir da degradação do espaço físico do trabalho, trazendo uma estranheza que nos provoca a pensar se ela descambará assumidamente para o sobrenatural, mas isso nunca acontece, o que pode ser frustrante e inconclusivo para alguns. Para mim, no entanto, só reforça esse estado de um limiar que precisa ser rompido mas que é segurado por quem detêm o poder de verdade (que, aliás, nunca aparece, está sempre distante). Os animais empalhados que aparecem no museu são como os próprios trabalhadores, mortificados em sua própria pele, cansados e aconselhados a permanecerem inertes, sendo colocados por outros em seus lugares para serem observados e vigiados por aqueles que os posicionaram ali. As baratas mortas, os vermes entupindo o encanamento debaixo do chão e o lobisomem escondido na parede não ganham nenhuma revelação prática sobre seu significado, não é, por exemplo, alguém tentando sabotar aquele lugar, mas sim uma representação que tem um efeito mais sensorial e metafórico. Essas são heranças carregadas pelo lugar que já estavam ali antes mesmo dos personagens chegarem e que, gradualmente, corroem sua paz. Da mesma forma, as insensibilidades das relações de dominação são passadas de geração a geração, abrigadas e reproduzidas em cada pessoa que ocupe sua posição nas hierarquias sociais. É interessante como o filme consegue abordar isso da maneira mais desesperada e consequencial do que o caminho mais fácil indicaria. Os exploradores não são vilanizados, os explorados não são passivamente vitimizados, nem vice-versa. No ato de colocar rédeas uns sobre os outros, essas classes vão entrando em choque e o filme torna-se muito mais justo com suas representações ao, por exemplo, fazer o funcionário demitido voltar para causar aflição à sua antiga chefe.
As únicas coisas que fizeram o filme não ser perfeito para mim foram algumas atuações, como a da avó, diálogos e cenas que são muito diretos e perdem a sutileza, o que, essencialmente, não é um problema, mas num filme que trabalha o processo de questões implícitas no cotidiano virem à tona, esses elementos tornam-se um pouco apressados e soltos na trama. Mas isso é algo muito pontual, porque, na maioria das vezes, esses diálogos demonstram uma normalização dissimulada que é justamente o que mantém a desigualdade e o racismo velados.
Ao fim, Juliana Rojas e Marco Dutra, com a linguagem que adotam para o filme, nos fazem sentir efetivamente que “trabalhar cansa”, trazendo uma perspectiva de como a manutenção das estruturas em si é trabalhosa e como há um sentido de trabalho na própria convivência, em que há a necessidade de se fazer aquilo que muitas vezes não se quer para haver a manutenção de uma normalidade aparente, o que, frequentemente, é o que leva essas relações à derrocada, visto que precisam de fôlego para respirar e a resposta não está em fazer tudo o que convier, isso leva a um mimo individualista que também é danoso para o convívio. A resposta se equilibra entre o pessoal e o coletivo, mas esse não é um filme interessado em respostas, mas sim em absurdos. Assim, apesar de seu ritmo lento, Trabalhar Cansa me manteve intrigado do início ao fim pela atmosfera de estranheza e hostilidade que jazia debaixo da banalidade entorpecida, uma hostilidade que é bastante evidente, mas que para os personagens, por estarem mergulhados nela, torna-se comum. Presenciamos os limites sendo levados a quase romper e a tensão de andar à beira abre caminho para mais possibilidades do que se houvesse respostas definitivas porque, nessa confusão, o mistério do que virá depois é assustador.
Scorsese não dá uma fora né... Pelo menos não nos filmes que vi até agora. E esse, particularmente, me cativou bastante.
Ele usa muito bem a movimentação da câmera, a montagem e a trilha sonora para criar um senso de continuidade e constância que reflete a perenidade da figura do Dalai-lama. Isso gera um estado meditativo que nos imerge naquele meio religioso e em sua filosofia de não violência: com o uso das transições suaves entre os planos, a trilha sonora constante praticamente do início ao fim e a câmera sempre buscando o movimento da cena, cria-se uma unidade muito forte que preza pela serenidade, nos conectando ao protagonista de maneira contagiante e inspiradora. É como se esse ideal pacifista se traduzisse nos elementos cinematográficos e eles também almejassem-no, colocando-se numa busca constante e incansável para alcançá-lo. É interessante como Scorsese consegue retratar respeitosamente essa cultura, de modo que não parece um olhar que estranha suas manifestações, mas sim as integra, estando quase intrínseco a elas, o que, consequentemente, faz com que fiquemos muito mais envolvidos com a trama.
É como se o filme traduzisse em suas sensações a própria materialidade da cultura tibetana e da filosofia budista: a fluidez da câmera como a do movimento da água e da fumaça que sai de suas velas, as transições suaves entre os planos como os tecidos que recaem de forma delicada sobre seus corpos, toda a riqueza de cores, cenários e figurinos busca a consonância com a existência e uma compaixão por todas as coisas. Essa essência é muito bem captada e transmitida pelo filme.
No entanto, apesar dessa condução agradável, a constância dos elementos dilui o impacto de algumas cenas e sequências chave, como a coroação do protagonista. A escolha por essa linguagem torna mais difícil fazer momentos se tornarem mais climácticos, já que grandes oscilações fugiriam da abordagem que o filme propõe. Isso fez, então, com que eu não percebesse que ele se encaminhava para o fim e criou uma expectativa em mim que não foi plenamente cumprida, fazendo o final soar ligeiramente súbito. Por outro lado, isso demonstra uma consciência da história de sua efemeridade e renovação: os momentos virão e passarão, assim como as mandalas feitas pelos monges, subitamente desfeitas, num ato de desapego ao instante e aceitação do que é passageiro. É nessa condição que vive o Dalai-lama, nessa sabedoria paciente e compassiva que não se apega tanto aos momentos em si, mas sim na possibilidade de suas reverberações serem bondosas e amenizarem o sofrimento dos seres. Kundun sabe que, quando ele morrer, haverá outro Dalai-lama, um outro depois desse e assim sucessivamente. E cada um será coroado e um dia também, repentinamente, descansará. Em seu tempo, humildemente, cuidam dos seus e padecem compassivamente de suas dores também.
" - A não violência leva muito tempo. - Temos esse tempo, Sua Santidade? - Até hoje, não sei. "
O tempo é um nó que quanto mais se tenta desatar, mais se embola.
Que estudo fascinante da memória como um amálgama e um retalho. Esse filme antecipa muitas das discussões que Dark veio popularizar nos últimos anos. É do tipo de ficção científica que prova onde de fato reside o poder das histórias: em sua inventividade imaginativa para ensaiar um universo consistente e não necessariamente nos recursos de altos orçamentos para mostrar um mundo apenas de forma concreta, explícita e rasa, como fez George Lucas no episódio I de Star Wars, ao se deslumbrar com as possibilidades dos efeitos especiais, mas esquecendo de trabalhá-las para além de meros objetos decorativos e vazios. É preciso saber trabalhar os meios para se contar de maneira efetiva essas histórias e isso Chris Marker faz muito bem.
O uso de fotografias ao invés de imagens filmadas confere ao filme um tom fragmentado que se encaixa perfeitamente não só com a natureza da memória, mas também do sonho, numa investigação profundamente existencial que está sempre confusa e incerta de si mesma. Essa incerteza, alcançada também pela trilha sonora enigmática, vai gerando uma sensação vertiginosa de transe que nos coloca na pele do protagonista, o qual é agredido pelas experiências temporais e pela manipulação que sofre.
Assim, o filme reflete, com suas imagens e atmosferas oníricas, sobre a persistência da memória e a ressonância que o mundo encontra em nós:
a guerra e o esfacelamento da terra marcam nesse homem uma lembrança incerta, mas que nunca vai embora - a da mulher que o encantara. Mas também esse encanto era um desejo incitado, plantado nele por aqueles que o aprisionaram, então o filme também questiona se há arbítrio de fato ou não, se ele é livre para querer o que quer ou se o quer por desejo de outros.
O final desse filme me arrebatou. Ele acaba no momento perfeito, numa revelação cíclica e derradeira que dá sentido à mistura entre o universal e o íntimo, algo que, como num sonho, nos confunde e, ao mesmo tempo, elucida e nos torna mais cientes de nós mesmos.
"Esta é uma história de um homem marcado por uma imagem da infância"
O filme utiliza muito bem uma estrutura de capítulos para, com sua montagem, explorar o tema da busca às raízes e da ancestralidade. Nesse processo, as linhas entre o passado e o presente se misturam e se amalgamam, o que torna a experiência instigante e envolvente.
Por exemplo, quando Nawal é presa, a prisão é mostrada pelo lado de fora e pensamos que vamos acompanhar seus momentos ali logo na sequência. No entanto, quando corta para dentro da prisão, já estamos acompanhando a filha dela visitando o lugar.
Há também uma austeridade trágica que permeia a trama e vai gradativamente aumentando e se transformando: no começo, a tensão é palpável pelas mágoas da relação complicada entre a mãe e os filhos. Depois, a visão deles vai se transformando, tornando-se mais compreensiva, e essa austeridade passa a se dar nos próprios acontecimentos trágicos e brutais da narrativa. Essa característica da história vai ganhando contornos melancólicos, dada a violência e a destruição que assolam os personagens e que são brilhantemente interpretadas por seus atores. A câmera parece respeitar a dor profunda que, por exemplo, Nawal sente ao revisitar a árvore onde se encontrava com seu "amante". Existe ali uma compaixão pelo que poderia ter sido que é arrasadora diante do que de fato ocorreu e da necessidade que ela tem de se embrutecer para seguir em frente e permanecer viva.
Villeneuve conduz muito bem essa dinâmica almagamática entre passado e presente, entre raízes e frutos, que é perfeita para trazer à tona a depravação causada pela guerra: essas crianças são frutos dela e de seus horrores. Uma guerra religiosa que não poderia ser melhor sintetizada em suas deturpações morais e sociais
do que num violento estupro incestuoso. A religião, que deveria ser um instrumento promotor da paz e de uma condição fraterna de vida, é usada para alastrar a destruição. Essa contradição é colocada imageticamente de maneira muito impactante numa imagem que permanece na minha cabeça até agora: cristãos atirando com armas cobertas por figuras como Jesus e Maria, como se tivessem a benção de seu manto protetor respaldando tais atrocidades.
É interessante também como o filme consegue fazer essa contraposição entre vida e morte em elementos como a água e o fogo. Ambos permeiam a história dos protagonistas em momentos-chave dela: Nawal presencia o incêndio do ônibus e vê as cinzas do orfanato. Ou seja, é como se o fogo dos Incêndios que dão nome ao filme e devasta a vida por onde passa fosse a angústia que esmorece essa mulher por dentro. Jeanne e Simon, por outro lado, são constantemente associados à água. No seu nascimento, seriam jogados num rio, atirados para a morte, mas escapam e isso acaba não acontecendo. Então, é curioso como a narrativa subverte esse destino trágico e torna a água um lugar de lucidez para eles, um lugar de suspensão em que espairecem e se conectam a seu íntimo. O primeiro flashback do filme começa com Jeanne nadando na piscina, flutuando em suspensão. Ou seja, o processo de rememorar, que acaba por se tornar o mote do filme, tem seu início a partir desse contato elementar com o íntimo, que é alcançado pela suspensão momentânea do caos ao redor. O mesmo acontece quando eles pulam na piscina depois de descobrirem que são os gêmeos nascidos na prisão: eles vão ali para absorver e refletir sobre essa descoberta. Ou seja, a água é o lugar que os areja e revigora, promovendo esse encontro consigo mesmos, para que possam prosseguir com sua jornada. Aliás, o filme coloca isso de forma muito sutil e singela: quando a enfermeira fala que "Nawal deu à luz gêmeos na prisão" corta para ambos pulando na piscina em posição fetal com uma luz forte atrás deles, numa representação visual da vida que lhes foi dada pela mãe, endossando a ideia da água como o lugar de reconectar-se à origem, ao princípio de suas existências, numa imagem primal. Eles apenas podem ter a vida que têm e procurar esse descanso na água porque sua mãe teve uma vida duríssima e sobreviveu à destruição que a cercava. É nessa compreensão que reside a compaixão dos gêmeos por ela no final. Eles finalmente conhecem-na e, assim, conhecem a si mesmos também.
"Incêndios", dessa maneira, equilibra muito bem forma e conteúdo, conseguindo trazer densidade à sua substância e nos emocionar com sua potência dramática, através de uma linguagem contida e parcimoniosa que revela as dores subjacentes que endureciam os personagens. É um filme muito marcante, algo que, a essa altura, certamente já se provou característico de Denis Villeneuve.
Uma das coisas mais interessantes de Se eu fosse você, para mim, é como ele usa bem uma estrutura espelhada. Ao vermos nossa imagem refletida, vemos o nosso inverso e é essa ideia de inversões que o filme trabalha tão bem. Ela transparece em diversos elementos, o que faz com que a premissa seja explorada para além de piadas óbvias: quando Cláudio e Helena falam juntos, a câmera muda de eixo e assume a "visão" do espelho, como se, daquele momento em diante, fôssemos entrar nessa absurda realidade invertida, em que um vai tomar o lugar do outro. Todo o início do filme se pauta numa preparação em que somos apresentados à rotina daquela família para depois vermos como os personagens vão reagir a essas ações na situação da troca de corpos. Isso vai sempre impulsionando a trama e oferecendo muito fôlego a ela, tendo em vista o constrangimento inerente a essa premissa: queremos ver como esse espelhamento vai se dar e de que modo os personagens vão sair dos problemas que se apresentarem, os quais causam uma sensação de vergonha alheia que fisga nosso interesse por querermos saber como ela vai se resolver. Isso faz com que a encenação um tanto caricata não seja tão incômoda quanto em outros filmes de comédia, já que ela soa apropriada para uma história tão absurda.
Dentro disso, o filme se equilibra bem na dinâmica entre os protagonistas. Intercalando as cenas dos dois de maneira complementar, a montagem estabelece não só um espelhamento, não só um paralelismo, mas também uma influência mútua entre as situações, tanto sensorialmente quanto objetivamente no universo do filme quando os personagens se ligam perguntando o que devem fazer. É quase um jogo de pingue pongue entre essas situações, em que a maneira como Cláudio lida com um problema é rebatida e carregada para a cena de Helena, numa tensão constante, até que consigam sentar juntos para debater a situação. É nessa necessidade de atenção constante ao próprio comportamento que o filme encontra seu humor e nos conecta aos personagens: uma rebatida perdida, um passo fora dessa linha tênue poderia acarretar perdas irreparáveis na agência e no cotidiano deles.
Encontrando o tom dessa dinâmica, o filme desenvolve bem as questões de gênero que a premissa intui. É de se esperar que fossem aparecer situações como uma mulher fazendo xixi no corpo de um homem ou um homem se acostumando a usar salto alto, mas isso não é um problema, porque, quando elas acontecem, surgem de modo orgânico na trama e conseguem ser engraçadas, o que é mérito tanto da direção de Daniel Filho quanto das atuações. Essas situações pegam os estereótipos que Cláudio e Helena são de seus gêneros e constroem um caminho mais compreensivo e solidário para a relação dos dois. Eu, particularmente, não esperava encontrar em um filme como esse uma proposta de se problematizar, ainda que de maneira não tão contundente, o machismo. Ainda mais em 2006, quando essa ainda não era uma questão tão debatida quanto hoje Pressuposições como essa talvez não sejam muito produtivas... No entanto,
a conclusão aponta para uma definição de "sensibilidade feminina" que, ao meu ver, é discutível, na medida em que a composição do que é masculino e do que é feminino é mais turva do que isso faz parecer. Essa "sensibilidade feminina" é bem intencionada quando dita. É uma expressão quer reconhecer o valor da mulher, mas ainda remete a uma manutenção da visão do feminino como símbolo da delicadeza, como se sua capacidade de atuação dissesse respeito essencialmente a isso, algo que, desde então, tem sido mais desconstruído.
Apesar disso, dentro do que o filme deu conta de refletir à sua época, ele consegue entreter e ser bastante cuidadoso no humor, o que mostra que não é preciso ser ofensivo para fazer o público rir. Quando aparecem piadas machistas, por exemplo, o filme não nos quer dando risada delas, mas sim observando que reflexão os personagens vão tirar delas. Mais do que rir com essas piadas, nós rimos delas, o que nos mostra, mesmo que levemente, como certos modos de estar no mundo já não fazem tanto sentido.
Uma pequena coisa que me incomodou é que, logo depois da troca, as atuações de Tony Ramos e Glória Pires me pareceram um tanto contraintuitivas. No início, quando estão se acostumando aos corpos um do outro, eles parecem manter seus trejeitos originais mesmo interpretando outras pessoas. Cláudio é expansivo, fala muito e fala rápido, enquanto Helena é mais introspectiva e séria por causa de sua frustração com o casamento. Quando Tony Ramos está interpretando Helena, ele continua falando rápido e muito, só que com a voz mais fina e os movimentos mais soltos (mas ainda expansivos). Glória Pires, nesse momento, fala de forma mais bruta, mas ainda com poucas palavras e séria, o que não faz sentido já que ela estava interpretando Cláudio, que usa seu senso de humor para esconder as dificuldades pelas quais está passando. Depois, isso melhora, mas num primeiro momento me causou estranheza porque achei que, inicialmente, os dois se comportariam exatamente do jeito como são mas num corpo diferente, para só então irem se acostumando ao novo corpo. Imagino que isso tenha acontecido porque os dois carregavam um pouco de si para cada um dos personagens e não conseguiram se desvencilhar completamente das próprias características ao assumir as do outro. Se isso não melhorasse, o filme certamente desmoronaria, mas, felizmente, os dois acertam o tom e a jornada fica cada vez mais cativante e divertida.
apesar da apresentação da campanha ter um desfecho um tanto brega com a fala "Não captura a alma feminina, vai mais além. Entende o homem que há em toda mulher e a mulher que existe em todo homem" e apesar da resolução do coral parecer um pouco fácil demais,
"Se eu fosse você" certamente vale a pena. Parece que, aqui, as comédias da globo ainda não tinham tresloucado e ainda se preocupavam em trabalhar uma estrutura narrativa com uma boa progressão, que não fosse repleta de aleatoriedades preguiçosas e desonestas com o público. O filme usa de maneira inteligente essa estrutura de espelhos e inversões, reverberando e comparando seus momentos ao longo da trama para questionar e brincar com o que nos define: nossa imagem ou nosso interior? Ou, ainda, o que resulta de ambos? E, principalmente, o que constitui o masculino e o feminino? Há mais utilidade em dar ouvidos a ambos, de forma equilibrada, do que em tomar posições absolutas e unilaterais. No fim, cada um de nós é um estranho ímpar e o ato de buscar compreender o que se passa com o outro, não importando quem seja, e a desconstrução dessa vaidade masculina contraproducente faz com que possamos vislumbrar por uma fresta um futuro frutífero e um pouco mais aprazível.
Com uma identidade única, Azougue Nazaré é uma ode à liberdade e, para abordá-la, trabalha a partir de dualidades numa estrutura relativamente livre também: a religião evangélica que engessa as relações e inclusive se mostra hipócrita e oportunista é contrastada com o maracatu que propõe o encontro e uma leveza maiores, com seus membros tendo relações muito sinceras; os corpos rígidos dos evangélicos contrapostos à corporalidade vibrante do maracatu. Tudo isso é muito bem sintetizado na figura de Catita: na primeira cena em que chega em casa, fecha atrás de si um portão com grades, como se aquilo fosse uma prisão para ele, um lugar onde não pode ser quem é e tem de se trancafiar não só num espaço físico, mas também na maneira de se vestir. A partir disso, a câmera parece clamar por uma liberdade dos corpos, evocando uma urgência irreverente por ela em seus movimentos ágeis e no fato de não se estabilizar durante a maior parte do tempo, sempre com um leve tremor, num estilo de câmera na mão. É como se ela agitasse o grupo do maracatu e incitasse em seus membros a coragem para buscar aquilo com que se sentem bem.
É interessante também como, ao mesmo tempo, o filme se propõe a valorizar a irreverência como forma de resistência e a reverenciar e homenagear a cultura do maracatu: ao trazer o folclore e, principalmente, a figura protetora do caboclo de lança como uma entidade quase lendária, o filme engrandece essas tradições. Há um flerte muito marcante com o sobrenatural que, apoiado na trilha sonora e no figurino, faz a experiência carregar em si um efeito entorpecente eufórico, culminando numa disruptividade que termina por caracterizar a proposta narrativa do filme: o final, por exemplo, toma uma liberdade poética digna dos efeitos de uma bebida alucinógena… É com esses elementos sobrenaturais e com essa disruptividade que o filme é ao mesmo tempo homenageia a cultura do maracatu e mostra a sua potência irrefreável.
No entanto, a montagem fez com que o final não fosse tão forte para mim quanto poderia. A alternância entre os trechos mais fantásticos e os mais realistas não encontra muita fluidez e a sensação de progressão fica prejudicada. A estrutura segmentada vai gerando uma expectativa que nunca é tão satisfatoriamente cumprida quanto poderia: as aparições dos caboclos, por exemplo, têm uma atmosfera e uma força dramática inquietantes, mas suas não vemos muito do que suas ações causaram. Certos acontecimentos parecem vir repentinamente e não ter muitas consequências, chegando até a soar avulsos em alguns momentos,
como a queimada na mata pelo grupo cristão enfurecido e o apagão na cidade.
Isso fez com que a sensação libertadora que o final deseja passar não se firmasse efetivasse em mim.
Por outro lado, a percepção de que esses momentos drásticos não parecem ter impactos práticos tão evidentes faz sentido dentro da ideia de disruptividade onírica, ou seja, há um senso de rompimento em relação à causalidade de alguns eventos, em relação à noção sequencial deles, que gera e impulsiona um descolamento do real junto aos elementos sobrenaturais. Isso também reforça as dualidades que o filme trabalha, uma vez que tais momentos podem ser interpretados como a representação do imaginário e do estado de espírito daquela população e daqueles personagens. É um estado de conflito e de choque entre essas duas religiosidades que se reflete tanto em suas ações como em seus modos de vida, um choque que se dá até em situações banais do cotidiano, como a conversa entre o pastor e os mestres na praça.
Assim, Azougue Nazaré trabalha muito bem uma liberdade estética para abordar sua temática libertadora na narrativa. Nesse sentido, o filme encontra espaço para desenvolver seus personagens tanto através do drama como do humor, se valendo até de elementos de terror para construir sua mística. Essa mistura de tons que caracteriza dinâmicas de relações essencialmente pernambucanas (quem sabe até nordestinas, mas não me arrisco a falar pelo nordeste todo), com uma rudeza que, frequentemente, é carregada de muito afeto. No fim, a preocupação do filme é mais com uma experiência sensorial potente do que com um final completamente amarrado. Isso, na verdade, poderia amarrar seu espírito livre, que se manifesta através da dança e da cultura tão características. Porém, para alcançar um efeito sensorial poderoso, o filme poderia ter trabalhado melhor uma estrutura que puxasse o freio com menos frequência e, ao invés disso, pisasse no acelerador para se deixar fluir até culminar num fim ainda mais catártico. De qualquer forma, é uma proposta única que se concretiza de forma marcante. Fico curioso para ver os próximos filmes que Tiago Melo vier a dirigir.
Todo o "primeiro ato", no caso a parte que é um filme dentro filme, me causou muita aflição. O diretor consegue imprimir um senso de falta de sentido e despedida muito forte em todo o segmento que precede a tentativa de suicídio. Ele faz isso a partir de uma certa casualidade aparente que acaba por se tornar brutal quando percebemos o profundo e angustiante desamparo em que Sang-Won e Yeong-Sil encontram-se. Esse desamparo faz com que a morte, nos termos em que a planejam, não seja algo horrendo para eles a princípio. O pensamento de que ela pode finalmente trazer um sentido grandioso às suas vidas insignificantes é naturalizado por eles e a forma também natural como Hong Sang-soo filma isso torna todo o segmento ainda mais pesado de acompanhar: nós sabemos que aquilo é absurdo, mas os personagens já estão psicologicamente fragilizados a tal ponto que parecem anestesiados ao horror dos próprios planos. Depois de falharem na tentativa de transar, Songwan sonha com uma mulher que veste vermelho, aqui possivelmente entendido como a cor do amor. Ela lhe oferece uma maçã. Ela é a própria serpente oferecendo o fruto proibido, então ele recusa e, depois disso, quando acorda e machuca Yeong-Sil em outra tentativa de transar, propõe que devem morrer castos, sem fazer amor. É como se seu amor fosse impossível, fadado à ruína, como se desfrutar daquele prazer fosse de fato proibido e a única forma de vivenciar algo significativo seria através da morte, quase como uma redenção pelas vidas desprovidas de virtudes que levaram até ali, pelas tentações que sofreram. É nesse senso de perdição entorpecida que reside a potência dramática do primeiro segmento que me causou tanta aflição.
Além disso, a abordagem parcimoniosa na encenação traz um realismo que se encaixa muito bem à trama intimista do filme e à sua temática, conferindo à narrativa uma fluidez entre o real e o ficcional. Tal fluidez é traduzida visualmente pelo uso do zoom: ao aproximar ou afastar o zoom, Hong Sang-soo nos coloca dentro daquela realidade através da câmera, redirecionando nosso olhar para enfatizar o que as ações, por si sós, já transparecem. Quando ele faz isso, testemunhamos aquela situação diante de nós como se estivéssemos espiando-a, quase de maneira voyeurista. Por isso, quando acontece a virada da primeira para a segunda parte, ela não é anunciada, é extremamente discreta e o diretor continua usando a mesma linguagem na câmera: sem nem percebermos, o que era um filme dentro de um filme já passou a ser a realidade dos personagens, ou seja, o limiar entre a realidade e a ficção é impreciso e ambos se misturam. Esse vai ser o próprio mote da história, que é traduzido brilhantemente pelo visual do filme.
Assim, na segunda parte, o filme mantém seu pulso narrativo não mais através da iminência de um evento trágico, mas das readaptações que o público tem que fazer para entender o que era parte do filme e o que era próprio da realidade. Isso gera um senso de desorientação e instabilidade que deixa a trama ainda mais estimulante e nos coloca na pele do novo protagonista: Dong-su. É aí que o filme se torna o exemplo perfeito do ditado "a arte imita a vida que imita a arte", quando os personagens perguntam se certas ações são "como no filme": é como se as coisas fossem sacralizadas quando colocadas na tela grande. Elas são evidenciadas, tomadas como modelo e colocadas num patamar “digno de ser representado”, dada a magnitude da potência sensorial que uma sala de cinema possibilita transmitir. Elementos como o cigarro Marlboro vermelho, o modo como apertam as mãos, a própria trama do suicídio foram vividos e inventados por Dong-su ou foram imitados por ele? Não há uma definição para o público porque não há também para o personagem, esses limites se turvam, se misturam e se confundem para ele, que vai entrando cada vez mais na obsessão de emular os eventos do filme na tentativa de sentir que também pode ser importante. Isso até ouvir que talvez não tivesse entendido o filme de fato. Ele estava pensando em tudo a partir dos próprios egoísmos, de suas visões unilaterais e egocêntricas, algo que é comentado por Yeong-Sil quando ela diz que "quando você faz parte de um grupo de diretores, acaba pensando assim. Basta encontrar uma coincidência para pensar que é por sua causa". Essa também é uma questão do filme.
Esses artistas, esses cineastas anseiam por uma tragicidade quase teatral, fantasiam romanticamente com ela e vivem as próprias vidas nessa intensidade trágica ou buscando-a: uma tragicidade que os tire da banalidade do cotidiano e que traga mais importância pra própria existência, conferindo mais sentido a ela. Desse modo, perde-se a medida do que é concreto e próprio da realidade, havendo dificuldade em aceitar sua crueza, é como se Dong-su desejasse viver num filme, numa utopia fílmica onde não necessariamente tudo é bom, perfeito e os finais são felizes, mas sim onde tudo é significativo. Ele não pode ter a história, tal como viu no cinema, porque ela é fictícia e, portanto, inalcançável e intangível, porém, justamente por isso ele quer tê-la ainda mais, porque é "proibida", quase divina em sua elegância... É por isso que ele fica tão obcecado pela atriz, porque ela é um anjo e ele, ao próprio ver, um mortal, uma pessoa comum que almeja um lugar de prestígio que o tire dessa condição em que, por se sentir envolto em trivialidade, ele se enxerga como fracassado. Então, quando ele descobre que a atriz não tem cicatrizes, que ela não é uma figura misteriosa com segredos obscuros e que ela é uma mulher normal como qualquer outra, ele perde um pouco do encanto e passa a conseguir olhar de maneira mais empática para os outros, revisando a conduta que teve com Yeong-sil de buscá-la para que servisse às próprias necessidades. É por isso que o final é tão bom, porque ele percebe que precisa refletir para sair de tudo isso, para viver bastante. Para, quem sabe, finalmente entender o filme e a verdade humana que ele traz, num exercício de compaixão pelas vidas alheias e pelas histórias contadas no cinema.
Esse é um filme que, além de ter muito a dizer, tem uma forma intrigante e provocativa de dizer. Alcança muita profundidade a partir de uma linguagem simples e intimista, mostrando que o cinema é livre, menos calculado do que alguns tentam fazer parecer, e suas possibilidades, infinitas. Fiquei curioso para conferir outros filmes de Hong Sang-soo. Acho que comecei bem.
As beiras da existência foram exploradas aqui. Essa série, para mim, beira a perfeição. A única coisa que me incomoda um pouco é a repetição das mesmas frases tantas vezes em pouco tempo. Eles conseguiriam transmitir a mesma ideia com outras palavras nos momentos menos significativos, para que as frases que queriam evidenciar tivessem mais impacto quando fossem ditas, o que fortaleceria ainda mais o senso de renovação e progressão que a série traz em outros elementos. Não que essas falas não tenham impacto, pelo contrário, elas têm, mas a repetição as desgasta e as banaliza, chegando a ficarem previsíveis em certos momentos (exemplos:
"O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano" e "Somos um par perfeito, nunca duvide disso").
Reconheço que isso faz sentido dentro da ideia de que "tudo se repete" e nos termos absolutos que a série vai alcançando, mas, ainda assim, acho que essa coerência seria mantida e os diálogos seriam ainda mais enriquecidos caso fossem vestidos de outras formas, a fim de deixar falas específicas guardadas para momentos-chave e, assim, torná-los ainda mais icônicos.
À parte isso, é um espetáculo. A natureza cada vez mais grandiloquente e profética da série faz com que sua encenação, em todos os seus elementos, tenha sentido para nós espectadores. Em outros contextos, os diálogos, as atuações e a trilha sonora, por exemplo, poderiam soar pretensiosos e piegas em alguns momentos, mas, no caso de Dark, eles atingem um efeito poderoso no espectador justamente por estarem em consonância com uma trama profundamente existencial. O relativo realismo da primeira temporada vai cedendo espaço para uma dinâmica de absolutos que funciona muito bem para revelar os reais escopos dos acontecimentos e potencializá-los. Falar que "aquilo é tudo e, ao mesmo tempo, nada" pode soar só vazio, preguiçoso e pretensamente filosófico, mas aqui esse tipo de interpretação faz sentido porque a série vai construindo isso gradativamente, para que saibamos os pormenores desse tudo e nada, para saber e sentir como esse tudo e nada se atravessam. Eles operam a partir das dicotomias entre luz e sombras, verdades e mentiras, vida e morte e, para representar essas dialéticas, Dark soube utilizar muito bem o poder das imagens. Com um efeito retumbante em seu rigor estético, a fotografia capta os mistérios do tempo de forma assombrosa e, aliando-se à montagem, transmite a sensação de imponência pujante dos cenários das sociedades secretas, da igreja, da floresta, da caverna, entre outros. Se não me falha a memória, não houve, em nenhum momento, o uso de transições graduais na edição (fades) e isso é só mais uma das inúmeras provas do quão bem arquitetada essa série foi. Os cortes secos têm uma natureza definitiva inerente a eles, ou seja, quando são utilizados, há uma mudança absoluta e categórica na imagem, o que reforça a condição perpétua e irrevogável do ciclo temporal e traz ainda mais impacto aos planos quando eles vêm.
Além disso, a série coloca uma boa dose de exposição quanto às suas particularidades científicas e estabelece bem seus princípios a fim de que possa evidenciar e fortalecer seus temas ao mesmo tempo íntimos e grandiosos. Ou seja, ao explicar como a viagem no tempo é possível e como os paradoxos se constroem, a trama usa todo esse contexto absurdo para explorar questões extremamente relacionáveis e humanas e se alça aos confins da realidade. Ela consegue fazer isso justamente porque temos nortes e definições científicas que são usados como bases possibilitadoras e propulsoras, como um meio para desenvolver temas muito profundos, os quais tecem uma história que nos emociona por trazer o íntimo através do cósmico, do grandioso. Sempre nessa condução, a singeleza e a dureza encontram seu espaço entre os acontecimentos da série e o final é incrivelmente satisfatório, nos fazendo refletir sobre a natureza do destino tanto em âmbitos individuais quanto universais.
No fim, a guerra é um ciclo vicioso, onde o conflito é despropositado e ineficiente: enquanto os personagens continuam se digladiando, o sofrimento e a destruição se alastram e se perpetuam. Seus desentendimentos geram cada vez mais ressentimentos, eternamente, num ciclo da morte. É preciso que alguém ceda. Que alguém rompa com o impulso da vingança. Apenas o perdão concilia e permite a união, através da qual se alcança o descanso e a paz. É isso que dar a outra face significa: não revidar. Recuar e redirecionar a dor. Quando Adam e Eva deixam de se encarar como inimigos e abnegam seus egoísmos, conseguem juntar-se e, efetivamente, concretizar um plano sem falhar no final, sacrificando-se em prol de toda a humanidade. Assim, todos os elementos bíblicos que a série coloca vão além de um simples ornamento estiloso e elegante e demonstram sua pertinência intrínseca à narrativa. Deus é absoluto em sua onipotência, onipresença e onisciência, então faz sentido que a série esteja repleta de símbolos religiosos porque é em seus significados que ela se ampara para construir sua trama e faz muito sentido também que, em seu momento derradeiro, a história lance mão do instrumento da justiça cristã: o perdão. Diz Adam que "A morte é incompreensível, mas podemos fazer as pazes com ela. Tudo o que nós fizemos será esquecido no final" justamente porque eles se arrependeram de suas ações horrendas e brutais e buscaram se redimir, perdoando a si mesmos e aos outros e salvando os três mundos da destruição perpétua. Então, de forma quase literal, os personagens ao pó retornam e alcançam o paraíso.
Apesar do ritmo da primeira metade da terceira temporada não ser tão cadenciado quanto as outras duas vinham progressivamente fazendo, essa desacelerada se mostra compreensível para que certos acontecimentos não soassem aleatórios, como, por exemplo, o fato de Silja ser irmã de Jonas. Caso o desenvolvimento do drama da presença de Hannah em 1953 fosse apressado, não sentiríamos o peso de suas decisões nem o impacto que o acúmulo dos acontecimentos fez para que Egon virasse um alcoólatra. Nós nos importamos ainda mais com Silja porque sabemos de onde ela veio e a complexidade das relações que a originaram e que se desdobraram nas mais variadas consequências. Esse gigantesco e complexo jogo de manipulação foi magistralmente arquitetado e conduzido por Baran Bo Odar e Jantje Friese, de modo tão satisfatório que percebemos como eles sempre souberam o que estavam fazendo e não prometeram algo que não seriam capazes de entregar. A série prova que não é o que acontece que importa mais, mas como acontece. Pensando em todas as estruturas da série, em tudo que é estabelecido desde o início, já era de se esperar que fosse haver um terceiro mundo. Na verdade, seria até estranho se não houvesse. Mas, quando ele é mostrado, é tão emocionante e singelo que percebemos que o objetivo de todo esse mistério não era ser indecifrável, mas sim ser recompensador e envolvente a ponto de valer a pena testemunhar seu desemaranhar. Tudo veio em três partes e, então, a série se concluiu apoiando-se nos pilares Jonas, Martha e Claudia.
Internamente coerentes e coesas, são as misturas e os embates entre o interior pessoal e o exterior universal que definem Dark para mim e fazem-na uma série tão memorável, são esses amálgamas entre passado, presente e futuro milimetricamente simultâneos, entre a ciência e a religião, o tangível e o metafísico todos de uma só vez e ao mesmo tempo equilibrados. No fim, mesmo em nossa abismal insignificância, possuímos uma dimensão cósmica dentro de nós que, secretamente, levaremos guardada conosco no íntimo de nossas memórias. Assim foi com Jonas e Martha, ecoando no infinito o beijo no lago e sua primeira noite. Essa série, para mim, beira a perfeição. As beiras da existência foram exploradas aqui.
A Queda da Casa de Usher
3.7 55Análise fílmica de "A Queda da Casa de Usher" - 1° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1TO8hW4A4eCK7eIxB5k4vLKw_HgEDuU3v/view?usp=sharing
(3 páginas, com spoilers)
Bolha
3.4 1Isso aqui foi massa. Já na imagem inicial tem uma sugestividade que joga com a nossa intuição em algumas direções de um jeito bem expressivo e que vai além disso quando, literalmente, se concretiza no final para além de uma sugestão onírica. Quer dizer, em retrospecto dá até pra dizer que existe um certo sufoco de pesadelo no curta todo que nos faz refletir se em algum momento sequer saímos do sonho do começo. Isso transmite uma ideia desse cotidiano como aquilo do que ele não consegue escapar, que o aprisiona e confunde, algo que a pintura e os diálogos também fazem. O estilo da pintura, que não é fotorrealista, nos dá a ver o mundo sob uma ótica turva, embaçada, altamente subjetiva. Os diálogos, também pouco inteligíveis (como muitas vezes em sonhos compreendemos trechos do que os outros falam ou nos lembramos de partes), nos inserem na perspectiva do protagonista, atordoado a todo tempo por seus arredores, em constante dessintonia com eles.
Assim,
quando vem aquela imagem final da bolha orbitante, o curta ressintoniza a existência do personagem,
alçar vôo ao espaço sem custos astronômicos.
Soberba
3.8 75 Assista AgoraO que mais me chamou atenção na montagem de Soberba foi o uso de “fade to black” para os momentos entre os quais um tempo considerável teria decorrido. Não à toa é um recurso que apenas aparece após 25 minutos de filme, ou seja, durante todo o primeiro ato, justamente porque uma montagem que pretende ser narrativa não colocaria uma “pausa” no meio de seu esforço de construir uma apresentação dos personagens e de suas relações. Isso comprometeria a sensação de continuidade, de causalidade entre cada ação que o narrador primeiro pontua para depois silenciar-se e nos deixar ver qual consequência terá o que comentou. Então, é apenas depois de estarmos situados na trama (já sabendo que George se interessou por Lucy, que a paixão de sua mãe Isabel por Eugene não passou e que sua tia Fanny também continua interessada pelo inventor) que esse recurso entra como uma solução proveitosa para nos indicar que podemos respirar e nos preparar para o próximo pedaço de história que irá se suceder. (...)
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Alumbramiento
4.1 1Link para ver o curta - https://www.youtube.com/watch?v=7kqxSXgD9ZA
Assisti ao curta sem procurar do que se tratava, pois acho que isso me faz chegar mais aberto para as possibilidades que o filme venha a provocar e também não pesquisei nada depois. Não falo espanhol, então talvez algo tenha passado despercebido nos poucos diálogos.
O que me chamou mais atenção no curta “Alumbramiento” foi o modo como ele estabelece uma montagem de ecos com um forte senso onírico e de memórias que se embaralham. O tique-taque de um relógio marcado visualmente por seu pêndulo ressoa no relógio que uma criança desenha em seu pulso, o modo como a mulher se movimenta na cama é continuado pelo balançar dos pés da costureira, o som da grama sendo cortada parece se misturar ao movimento de uma corda sendo trançada. Num primeiro momento, é difícil precisar se o sangue na barriga é da mulher, do bebê, ou de outra pessoa. Imagens e sons se misturam de modo que nos confundimos e nos deslocalizamos tanto no espaço das cenas quanto em suas temporalidades, o que se assemelha a uma atmosfera de sonho ou mesmo de lembranças longínquas, que lampejam na mente em flashes por vezes imprecisos e misteriosos.
Com uma fusão na montagem, ao mesmo tempo em que perfura o tecido e marca o nome da criança que acaba de chegar, a agulha da máquina de costura perfura a barriga do bebê, que sangra. Isso me pareceu apontar para uma condição de violência desse mundo em que a criança acaba de chegar e já é submetida. Um mundo em guerra, em que a imagem de um menino trançando uma corda a partir de seu dedão mais parece um enforcamento. Um mundo hostil em que desde o nascimento os homens já estão fadados à fadiga do trabalho ou da guerra. E a mãe, já sabendo os destinos que o esperam, teme por seu filho. A aflição que ela demonstra parece contaminar todas as imagens na primeira metade do filme e paira uma sensação de pesadelo diante da possibilidade da vida de um filho se esvair, do relógio chegar ao último batimento de seus ponteiros e encerrar uma existência tão nova.
Foi com essa densidade que “Alumbramiento” me impactou. As alternâncias que faz entre diferentes imagens e sons, pessoas e situações não parecem ter uma conexão muito imediata num primeiro momento, mas passam a se interligar a partir de uma confecção, na montagem, que as faz reverberar umas nas outras. Assim, somos sensibilizados justamente pela ausência de uma explicação lógica explícita ou de uma estrutura linear na montagem, que enfraqueceriam substancialmente o efeito dessa composição turva e misteriosa.
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Auto de Resistência
4.5 26Auto de Resistência é um filme forte e, no que se refere à montagem, me chama atenção o modo como ele potencializa nossa empatia pelas personagens, principalmente pelas mães. Naturalmente, eu já tenderia a tomar o lado delas mesmo se o documentário fizesse um esforço de assumir uma postura mais “neutra”, mas o fato é que, principalmente nas cenas dentro do tribunal, enquanto os policiais falam, os cortes para a reação das mães são cirúrgicos para materializar sua dor diante de nós e fazer com que a sintamos também.
Além disso, é potente também o modo como, por vezes, as gravações das situações de violência são deixadas completas na tela. Ao invés de picotar tais filmagens para dinamizar o ritmo ou amenizar nossa tensão, o filme deixa-as por inteiro diante de nós, aproximando-nos da posição em que estavam as pessoas que as gravaram, imergindo-nos desconfortavelmente nas situações, que são deixadas lá, cruas, não para chocar de modo sensacionalista, mas para deixar transparecer sua gravidade. Nesse sentido, isso se distancia de uma abordagem midiática do material, que se preocuparia em “avançar” para as partes mais interessantes, para não perder o espectador, não deixá-lo entediado quando aparentemente nada estivesse acontecendo. É um documentário que busca uma sensibilização menos imediata de quem assiste, que deixa transparecer a densidade e austeridade de seu assunto e das situações, que está interessada na humanidade dentro dessas tragédias, fazendo-nos sentir sua extrema e extenuante complexidade.
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Lado a Lado
4.1 60É interessante notar como o filme “Side by Side” alterna as visões e opiniões acerca da questão película x digital, de modo a colocá-las, literalmente, lado a lado, deixando espaço para ambos os posicionamentos explicarem seus motivos sem impor ao espectador um juízo definitivo sobre o que deve pensar. Esse choque de visões também proporciona uma experiência muito imersiva na medida em que, quando estamos por certo tempo engajados na linha de raciocínio de um grupo de entrevistados, quando parecemos começar a ser convencidos, vem do outro lado um argumento que também é compreensível. Isso faz com que nos interessemos pelas possibilidades do que vai ser dito, faz com que queiramos prestar atenção a fim de que tenhamos um entendimento mais amplo das questões apresentadas.
Em determinado momento, quando fala da etapa de tratamento de cor, o filme mostra uma colorista profissional mexendo no DaVinci e utilizando a função power window para alterar a cor das árvores no canto de um plano. Isso é algo que aprendi literalmente semana passada e me empolgou ver uma profissional fazendo algo que não está tão distante do nosso alcance no mesmo software. Me animou ver que algo que eu imaginava ser muito complexo e difícil, na verdade é mais simples e exatamente o que é usado em filmes que admiro. O fazer cinematográfico agora me parece de fato mais próximo, como eu sonhava há alguns anos, algo, inclusive, comentado pelo filme, ele diz que as pessoas poderão fazer seus filmes mais facilmente e com boas ferramentas. Pois bem, agora podemos.
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
TODODIA
4.0 1Link para assistir ao filme:
https://vimeo.com/57205273
Mais um Domingo
2.4 3 Assista AgoraLink para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" de 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Presente de Deus" e "Bloco do Isolamento").
www.youtube.com/watch?v=meGwrwavtnI
3° e último curta na ordem do vídeo (minutagem: 23:47).
Bloco do Isolamento
4.5 1Link para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" de 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Presente de Deus" e "Mais um Domingo").
www.youtube.com/watch?v=meGwrwavtnI&t=48s
1° curta na ordem do vídeo.
Presente de Deus
5.0 2Link para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" com 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Bloco do Isolamento" e "Mais um Domingo".
www.youtube.com/watch?v=meGwrwavtnI&t
2° curta na ordem do vídeo (minutagem: 09:54).
Milton Freire, Um Grito Além da História
4.3 1Visto na 24° mostra de Cinema de Tiradentes. https://mostratiradentes.com.br/filme/milton-freire-um-grito-alem-da-historia/
EntrePlanos
5.0 1De longe, um dos canais com o conteúdo mais bem trabalhado que eu já vi. O Max tem uma preocupação em realmente discutir filmes e séries com aprofundamento, com um tom super calmo nos vídeos que é extremamente acolhedor. E ainda equilibra as temáticas do canal entre obras mais populares e outras mais alternativas... Bom demais!
O Encouraçado Potemkin
4.2 342 Assista AgoraA expressividade desse filme é algo impressionante, principalmente com a montagem e a fotografia. Juntas, elas permitem que os planos transpareçam a emoção que pretendem, sem precisarem, de modo geral, colocar intertítulos o tempo todo dizendo qual a sensação em cena. O jogo de preparação e entrega que a montagem vai criando torna o filme muito imersivo e consegue até extrair emoção de objetos inanimados como os canhões filmados frontalmente, ameaçadores, prestes a atirar, ou as estátuas de leões que, mostradas rapidamente na tela, parecem assustadas com sua iminente destruição. Isso sem contar com o incrível uso das sombras, que evocam diferentes emoções (como luto, medo e glória) ao longo da história e aparecem precisamente em momentos de grande intensidade dramática, funcionando quase como marcadores dos pontos de virada e conferindo ao filme uma forte coesão narrativa.
Sim, tem uma romantização em torno do espírito da revolução, mas é bem menos manipulativo e pedagógico na forma com que transmite isso. É um filme extremamente envolvente e consegue passar um senso genuíno e singelo de grandiosidade e coletividade. Simplesmente foda.
Bancando o Águia
4.5 135 Assista AgoraComo é engenhoso o tal do Buster Keaton, viu. Toda a sequência dele sonhando e começando a entrar no filme é o ápice disso pra mim (além, é claro, das acrobacias perigosas que são de tirar o fôlego). Mas só a inventividade técnica da sequência no cinema já é potente o suficiente pra nos deixar impressionados e ansiosos pelo que mais pode vir. Ao usar a metalinguagem pra conectar o mundo dentro da tela com o fora dela, ele satiriza a natureza dessa forma de arte tão nova à época. O corte é usado ao mesmo tempo no filme que estamos vendo e no filme passando dentro dele, se auto evidenciando como uma descontinuidade, mas, ao mesmo tempo, borrando uma noção exata dela: a câmera permanece o tempo todo parada, longe da tela e no mesmo enquadramento e, quando protagonista entra no filme, entendemos que provavelmente aquele cenário interno à tela é do próprio set onde está sendo gravado o cinema, fingindo ser uma projeção. Porém, logo as ambientações ali mostradas passam a ser externas e não poderiam ser construídas no set, ou seja, elas foram projetadas ali de uma gravação feita antes. É necessário um corte para unificar a sala falsa e o filme projetado, mas essa mudança é imperceptível e, assim, a mágica do cinema acontece. Sem contar que as posições de Keaton com o passar dos cortes são perfeitamente continuadas, configurando uma brincadeira muito bem orquestrada com a natureza manipulável do material cinematográfico.
Rica e Pobre
4.1 1É interessante como o filme vai criando um senso lúdico através de um engessamento que aos poucos se transforma em algo de fato fantástico, principalmente no terceiro ato, criando uma mistura curiosa de gêneros como a comédia, o drama e a fantasia e transitando bem entre eles. A inocência travessa da protagonista e suas consequências são um meio para a retomada de valores familiares tradicionais:
ainda que o desenrolar da trama culmine nos pais entendendo que não precisam ser tão duros com a filha, isso acontece para mostrar um ideal de família, uma que consegue se unir no final, de forma romântica e esperançosa. É uma narrativa clássica como muitas outras que crê numa família inabalável e inseparável e idealiza isso no cinema com uma conclusão redentora,
É interessante como ele apreende e representa, na sua linguagem, essa moral rígida que define princípios e valores absolutos. Vemos isso através de frases como as da aula ("a veracidade é o coração da moralidade" e "a procrastinação é ladra do tempo") e também de uma distinção bem clara entre ações e personagens do bem e outros do mal.
No delírio de Gwen, por exemplo, existe a terra das crianças solitárias e a terra das crianças felizes, mas não existe um intermediário.
Assim, o filme salta aos olhos e nos envolve com os cenários imaginativos do final, os intertítulos que fazem parecer que estamos lendo um livro pop up, a atuação expressiva de Mary Pickford, a montagem inventiva (como na cena em que o pai pensa em se matar, por exemplo, em que sua imaginação se materializa com uma sobreposição) e o uso inteligente das cores para evocar imediatamente algumas sensações. Tem um começo um tanto mecânico e ilustrativo, como se, ao apresentar os personagens, estivesse colocando peças no tabuleiro, sem conseguir interrelacionar muito bem essas apresentações, mas isso é algo extremamente pontual. No fim das contas, é uma história cativante e divertida. Não é a mais marcante do mundo mas me envolveu bastante com a estética imaginosa, digna do modo de uma criança de ver o mundo ao seu redor.
"Você está no jardim das crianças solitárias, na floresta dos sonhos. Aqui, as coisas aparecem como elas realmente são"
Sinfonia da Necrópole
3.5 109A primeira cena me fez pensar que o tom do filme seria bem mais soturno, mas isso logo é desconstruído e, uma vez que percebi que se tratava de outra coisa, fiquei curioso para saber como Juliana Rojas iria conciliar uma abordagem mais agradável com um cenário do qual se espera o sinistro. Para minha surpresa, ela faz isso muito bem.
Para concretizar isso, ela aposta num visual mais limpo, menos cru do que um cemitério sugeriria, uma fotografia digital bastante nítida e definida que busca não a brutalidade da morte, mas sim que possíveis relações se dão entre os que a rodeiam. É uma fotografia que eu gosto muito e parece o início do estilo que a diretora e Marco Dutra buscariam depois em “As Boas Maneiras”. Além disso, principalmente, existe uma certa infantilidade burlesca no modo como as dinâmicas do filme são encenadas, não só os números musicais, isso passa para as cenas num geral, o que confere leveza à trama. É quase como se fosse um conto infantil para crianças dormirem, ou mesmo uma peça quase infantil, onde o cemitério é como o palco onde se desenrola a ação e os personagens entram e são apresentados de maneira bastante marcada. Mas não chega a ser totalmente isso por causa das partes mais “adultas” que a trama traz, como o enredo administrativo ou, mais especificamente,
o sexo no carro funerário.
(como a cena em que Deodato toca órgão depois da partida de Jaqueline)
A única coisa que me incomodou foram as atuações de Eduardo Gomes (Deodato) e Luciana Paes (Jaqueline) que, no intuito de conferir leveza às cenas, variam pouco em entonação e expressões, o que, embora contribua proveitosamente para uma certa teatralidade, torna a relação entre eles menos envolvente e seu final menos impactante. Essas repetições dão menos expressividade a eles, o que, num filme com uma proposta única como essa, soa não tão bem trabalhado. Porém, como o filme não tem grandes pretensões de profundidade e está mais interessado em propiciar uma experiência inusitada e curiosa, isso não chega a ser um grande problema.
Assim, a história de Sinfonia da Necrópole é quase um pretexto para as situações, o que funciona bem porque ela não é deixada de lado, mas sim usada para possibilitar e amparar uma comédia romântica musical passada num cemitério. É um filme muito divertido.
Trabalhar Cansa
3.6 208A tensão anda à beira.
Segundo filme de Juliana Rojas e Marco Dutra que assisto e é impressionante a sensibilidade deles para o terror e a dosagem de suas particularidades em cada filme.
Aqui, esse clima é insinuado a partir de um anestesiamento na encenação que reflete a insensibilidade (muitas vezes inconsciente) das relações de dominação e opressão entre empregador e empregado, mãe e filha, marido e mulher. Sem pensar antes de falar, os personagens estão sempre soltando falas que não percebem conter algum tipo de ofensa, que podem até ter a intenção de serem amigáveis, mas que poderiam muito bem não ser ditas. A câmera sempre fazendo movimentos lentos, a ausência de trilha sonora, a fotografia com seus tons pouco vibrantes, muitas vezes filmando os personagens de costas, tudo comunica uma frieza apática, a qual revela um estado subjacente e normalizado de conflito social que é insustentável e que nem os próprios personagens aguentam, mas têm de permanecer nele para sobreviver. Consequentemente, cansados e desesperados, não conseguem ter um tato afável em suas interações.
Nesse sentido, a cena final é perfeita, a melhor dirigida do filme para mim: o mercado de trabalho exaure e, para manter-nos à sua disposição, inventa técnicas motivacionais que nos deixam numa eterna esperança ilusória. Essa não é, necessariamente, a intenção do palestrante nem de quem o colocou ali, mas é o que de fato acontece: na prática, aquelas pessoas não importam e a guerra entre elas é benéfica para quem não tem de passar por subjugações humilhantes por terem uma condição financeira menor. A fala “a gente joga o perfil no banco de dados e a partir daí todas as empresas podem acessar” é representada na prática, com o primeiro enquadramento da cena final mostrando inúmeros homens sem rosto (por estarem de costas) vendo uma palestra sobre como lidar com o mercado de trabalho. Eles não são mais pessoas possíveis, são números que precisam acreditar que têm agência e que podem construir seu caminho para o sucesso libertando seu lado primitivo, mas, na verdade, continuarão presos nessa roda extenuante, num ciclo cansativo que pode trazer qualquer um à beira da loucura. É o processo de desumanização, que é tema do filme, sendo potencializado pela fotografia e anunciando o desfecho que aquela cena teria: os trabalhadores sendo encorajados a se bestializarem, a deixarem para trás seu lado humano. É tão ridículo quanto atual, não sendo raro encontrar as mesmíssimas cenas com alguns coachs na internet…
É nesse contexto que os elementos que se aproximam do terror funcionam tão bem: essa ideia de aprisionamento e de algo subjacente que está prestes a estourar é trabalhada a partir da degradação do espaço físico do trabalho, trazendo uma estranheza que nos provoca a pensar se ela descambará assumidamente para o sobrenatural, mas isso nunca acontece, o que pode ser frustrante e inconclusivo para alguns. Para mim, no entanto, só reforça esse estado de um limiar que precisa ser rompido mas que é segurado por quem detêm o poder de verdade (que, aliás, nunca aparece, está sempre distante). Os animais empalhados que aparecem no museu são como os próprios trabalhadores, mortificados em sua própria pele, cansados e aconselhados a permanecerem inertes, sendo colocados por outros em seus lugares para serem observados e vigiados por aqueles que os posicionaram ali. As baratas mortas, os vermes entupindo o encanamento debaixo do chão e o lobisomem escondido na parede não ganham nenhuma revelação prática sobre seu significado, não é, por exemplo, alguém tentando sabotar aquele lugar, mas sim uma representação que tem um efeito mais sensorial e metafórico. Essas são heranças carregadas pelo lugar que já estavam ali antes mesmo dos personagens chegarem e que, gradualmente, corroem sua paz. Da mesma forma, as insensibilidades das relações de dominação são passadas de geração a geração, abrigadas e reproduzidas em cada pessoa que ocupe sua posição nas hierarquias sociais. É interessante como o filme consegue abordar isso da maneira mais desesperada e consequencial do que o caminho mais fácil indicaria. Os exploradores não são vilanizados, os explorados não são passivamente vitimizados, nem vice-versa. No ato de colocar rédeas uns sobre os outros, essas classes vão entrando em choque e o filme torna-se muito mais justo com suas representações ao, por exemplo, fazer o funcionário demitido voltar para causar aflição à sua antiga chefe.
As únicas coisas que fizeram o filme não ser perfeito para mim foram algumas atuações, como a da avó, diálogos e cenas que são muito diretos e perdem a sutileza, o que, essencialmente, não é um problema, mas num filme que trabalha o processo de questões implícitas no cotidiano virem à tona, esses elementos tornam-se um pouco apressados e soltos na trama. Mas isso é algo muito pontual, porque, na maioria das vezes, esses diálogos demonstram uma normalização dissimulada que é justamente o que mantém a desigualdade e o racismo velados.
Ao fim, Juliana Rojas e Marco Dutra, com a linguagem que adotam para o filme, nos fazem sentir efetivamente que “trabalhar cansa”, trazendo uma perspectiva de como a manutenção das estruturas em si é trabalhosa e como há um sentido de trabalho na própria convivência, em que há a necessidade de se fazer aquilo que muitas vezes não se quer para haver a manutenção de uma normalidade aparente, o que, frequentemente, é o que leva essas relações à derrocada, visto que precisam de fôlego para respirar e a resposta não está em fazer tudo o que convier, isso leva a um mimo individualista que também é danoso para o convívio. A resposta se equilibra entre o pessoal e o coletivo, mas esse não é um filme interessado em respostas, mas sim em absurdos.
Assim, apesar de seu ritmo lento, Trabalhar Cansa me manteve intrigado do início ao fim pela atmosfera de estranheza e hostilidade que jazia debaixo da banalidade entorpecida, uma hostilidade que é bastante evidente, mas que para os personagens, por estarem mergulhados nela, torna-se comum. Presenciamos os limites sendo levados a quase romper e a tensão de andar à beira abre caminho para mais possibilidades do que se houvesse respostas definitivas porque, nessa confusão, o mistério do que virá depois é assustador.
Kundun
3.4 52Scorsese não dá uma fora né... Pelo menos não nos filmes que vi até agora. E esse, particularmente, me cativou bastante.
Ele usa muito bem a movimentação da câmera, a montagem e a trilha sonora para criar um senso de continuidade e constância que reflete a perenidade da figura do Dalai-lama. Isso gera um estado meditativo que nos imerge naquele meio religioso e em sua filosofia de não violência: com o uso das transições suaves entre os planos, a trilha sonora constante praticamente do início ao fim e a câmera sempre buscando o movimento da cena, cria-se uma unidade muito forte que preza pela serenidade, nos conectando ao protagonista de maneira contagiante e inspiradora. É como se esse ideal pacifista se traduzisse nos elementos cinematográficos e eles também almejassem-no, colocando-se numa busca constante e incansável para alcançá-lo. É interessante como Scorsese consegue retratar respeitosamente essa cultura, de modo que não parece um olhar que estranha suas manifestações, mas sim as integra, estando quase intrínseco a elas, o que, consequentemente, faz com que fiquemos muito mais envolvidos com a trama.
É como se o filme traduzisse em suas sensações a própria materialidade da cultura tibetana e da filosofia budista: a fluidez da câmera como a do movimento da água e da fumaça que sai de suas velas, as transições suaves entre os planos como os tecidos que recaem de forma delicada sobre seus corpos, toda a riqueza de cores, cenários e figurinos busca a consonância com a existência e uma compaixão por todas as coisas. Essa essência é muito bem captada e transmitida pelo filme.
No entanto, apesar dessa condução agradável, a constância dos elementos dilui o impacto de algumas cenas e sequências chave, como a coroação do protagonista. A escolha por essa linguagem torna mais difícil fazer momentos se tornarem mais climácticos, já que grandes oscilações fugiriam da abordagem que o filme propõe. Isso fez, então, com que eu não percebesse que ele se encaminhava para o fim e criou uma expectativa em mim que não foi plenamente cumprida, fazendo o final soar ligeiramente súbito.
Por outro lado, isso demonstra uma consciência da história de sua efemeridade e renovação: os momentos virão e passarão, assim como as mandalas feitas pelos monges, subitamente desfeitas, num ato de desapego ao instante e aceitação do que é passageiro. É nessa condição que vive o Dalai-lama, nessa sabedoria paciente e compassiva que não se apega tanto aos momentos em si, mas sim na possibilidade de suas reverberações serem bondosas e amenizarem o sofrimento dos seres. Kundun sabe que, quando ele morrer, haverá outro Dalai-lama, um outro depois desse e assim sucessivamente. E cada um será coroado e um dia também, repentinamente, descansará. Em seu tempo, humildemente, cuidam dos seus e padecem compassivamente de suas dores também.
" - A não violência leva muito tempo.
- Temos esse tempo, Sua Santidade?
- Até hoje, não sei. "
A Pista
4.5 185O tempo é um nó que quanto mais se tenta desatar, mais se embola.
Que estudo fascinante da memória como um amálgama e um retalho. Esse filme antecipa muitas das discussões que Dark veio popularizar nos últimos anos. É do tipo de ficção científica que prova onde de fato reside o poder das histórias: em sua inventividade imaginativa para ensaiar um universo consistente e não necessariamente nos recursos de altos orçamentos para mostrar um mundo apenas de forma concreta, explícita e rasa, como fez George Lucas no episódio I de Star Wars, ao se deslumbrar com as possibilidades dos efeitos especiais, mas esquecendo de trabalhá-las para além de meros objetos decorativos e vazios. É preciso saber trabalhar os meios para se contar de maneira efetiva essas histórias e isso Chris Marker faz muito bem.
O uso de fotografias ao invés de imagens filmadas confere ao filme um tom fragmentado que se encaixa perfeitamente não só com a natureza da memória, mas também do sonho, numa investigação profundamente existencial que está sempre confusa e incerta de si mesma. Essa incerteza, alcançada também pela trilha sonora enigmática, vai gerando uma sensação vertiginosa de transe que nos coloca na pele do protagonista, o qual é agredido pelas experiências temporais e pela manipulação que sofre.
Assim, o filme reflete, com suas imagens e atmosferas oníricas, sobre a persistência da memória e a ressonância que o mundo encontra em nós:
a guerra e o esfacelamento da terra marcam nesse homem uma lembrança incerta, mas que nunca vai embora - a da mulher que o encantara. Mas também esse encanto era um desejo incitado, plantado nele por aqueles que o aprisionaram, então o filme também questiona se há arbítrio de fato ou não, se ele é livre para querer o que quer ou se o quer por desejo de outros.
O final desse filme me arrebatou. Ele acaba no momento perfeito, numa revelação cíclica e derradeira que dá sentido à mistura entre o universal e o íntimo, algo que, como num sonho, nos confunde e, ao mesmo tempo, elucida e nos torna mais cientes de nós mesmos.
"Esta é uma história de um homem marcado por uma imagem da infância"
Incêndios
4.5 1,9K Assista AgoraO filme utiliza muito bem uma estrutura de capítulos para, com sua montagem, explorar o tema da busca às raízes e da ancestralidade. Nesse processo, as linhas entre o passado e o presente se misturam e se amalgamam, o que torna a experiência instigante e envolvente.
Por exemplo, quando Nawal é presa, a prisão é mostrada pelo lado de fora e pensamos que vamos acompanhar seus momentos ali logo na sequência. No entanto, quando corta para dentro da prisão, já estamos acompanhando a filha dela visitando o lugar.
Há também uma austeridade trágica que permeia a trama e vai gradativamente aumentando e se transformando: no começo, a tensão é palpável pelas mágoas da relação complicada entre a mãe e os filhos. Depois, a visão deles vai se transformando, tornando-se mais compreensiva, e essa austeridade passa a se dar nos próprios acontecimentos trágicos e brutais da narrativa. Essa característica da história vai ganhando contornos melancólicos, dada a violência e a destruição que assolam os personagens e que são brilhantemente interpretadas por seus atores. A câmera parece respeitar a dor profunda que, por exemplo, Nawal sente ao revisitar a árvore onde se encontrava com seu "amante". Existe ali uma compaixão pelo que poderia ter sido que é arrasadora diante do que de fato ocorreu e da necessidade que ela tem de se embrutecer para seguir em frente e permanecer viva.
Villeneuve conduz muito bem essa dinâmica almagamática entre passado e presente, entre raízes e frutos, que é perfeita para trazer à tona a depravação causada pela guerra: essas crianças são frutos dela e de seus horrores. Uma guerra religiosa que não poderia ser melhor sintetizada em suas deturpações morais e sociais
do que num violento estupro incestuoso. A religião, que deveria ser um instrumento promotor da paz e de uma condição fraterna de vida, é usada para alastrar a destruição. Essa contradição é colocada imageticamente de maneira muito impactante numa imagem que permanece na minha cabeça até agora: cristãos atirando com armas cobertas por figuras como Jesus e Maria, como se tivessem a benção de seu manto protetor respaldando tais atrocidades.
É interessante também como o filme consegue fazer essa contraposição entre vida e morte em elementos como a água e o fogo. Ambos permeiam a história dos protagonistas em momentos-chave dela: Nawal presencia o incêndio do ônibus e vê as cinzas do orfanato. Ou seja, é como se o fogo dos Incêndios que dão nome ao filme e devasta a vida por onde passa fosse a angústia que esmorece essa mulher por dentro. Jeanne e Simon, por outro lado, são constantemente associados à água. No seu nascimento, seriam jogados num rio, atirados para a morte, mas escapam e isso acaba não acontecendo. Então, é curioso como a narrativa subverte esse destino trágico e torna a água um lugar de lucidez para eles, um lugar de suspensão em que espairecem e se conectam a seu íntimo. O primeiro flashback do filme começa com Jeanne nadando na piscina, flutuando em suspensão. Ou seja, o processo de rememorar, que acaba por se tornar o mote do filme, tem seu início a partir desse contato elementar com o íntimo, que é alcançado pela suspensão momentânea do caos ao redor. O mesmo acontece quando eles pulam na piscina depois de descobrirem que são os gêmeos nascidos na prisão: eles vão ali para absorver e refletir sobre essa descoberta. Ou seja, a água é o lugar que os areja e revigora, promovendo esse encontro consigo mesmos, para que possam prosseguir com sua jornada. Aliás, o filme coloca isso de forma muito sutil e singela: quando a enfermeira fala que "Nawal deu à luz gêmeos na prisão" corta para ambos pulando na piscina em posição fetal com uma luz forte atrás deles, numa representação visual da vida que lhes foi dada pela mãe, endossando a ideia da água como o lugar de reconectar-se à origem, ao princípio de suas existências, numa imagem primal. Eles apenas podem ter a vida que têm e procurar esse descanso na água porque sua mãe teve uma vida duríssima e sobreviveu à destruição que a cercava. É nessa compreensão que reside a compaixão dos gêmeos por ela no final. Eles finalmente conhecem-na e, assim, conhecem a si mesmos também.
"Incêndios", dessa maneira, equilibra muito bem forma e conteúdo, conseguindo trazer densidade à sua substância e nos emocionar com sua potência dramática, através de uma linguagem contida e parcimoniosa que revela as dores subjacentes que endureciam os personagens. É um filme muito marcante, algo que, a essa altura, certamente já se provou característico de Denis Villeneuve.
"Meus amores, onde começa sua história?"
Se Eu Fosse Você
3.1 861Uma das coisas mais interessantes de Se eu fosse você, para mim, é como ele usa bem uma estrutura espelhada. Ao vermos nossa imagem refletida, vemos o nosso inverso e é essa ideia de inversões que o filme trabalha tão bem. Ela transparece em diversos elementos, o que faz com que a premissa seja explorada para além de piadas óbvias: quando Cláudio e Helena falam juntos, a câmera muda de eixo e assume a "visão" do espelho, como se, daquele momento em diante, fôssemos entrar nessa absurda realidade invertida, em que um vai tomar o lugar do outro. Todo o início do filme se pauta numa preparação em que somos apresentados à rotina daquela família para depois vermos como os personagens vão reagir a essas ações na situação da troca de corpos. Isso vai sempre impulsionando a trama e oferecendo muito fôlego a ela, tendo em vista o constrangimento inerente a essa premissa: queremos ver como esse espelhamento vai se dar e de que modo os personagens vão sair dos problemas que se apresentarem, os quais causam uma sensação de vergonha alheia que fisga nosso interesse por querermos saber como ela vai se resolver. Isso faz com que a encenação um tanto caricata não seja tão incômoda quanto em outros filmes de comédia, já que ela soa apropriada para uma história tão absurda.
Dentro disso, o filme se equilibra bem na dinâmica entre os protagonistas. Intercalando as cenas dos dois de maneira complementar, a montagem estabelece não só um espelhamento, não só um paralelismo, mas também uma influência mútua entre as situações, tanto sensorialmente quanto objetivamente no universo do filme quando os personagens se ligam perguntando o que devem fazer. É quase um jogo de pingue pongue entre essas situações, em que a maneira como Cláudio lida com um problema é rebatida e carregada para a cena de Helena, numa tensão constante, até que consigam sentar juntos para debater a situação. É nessa necessidade de atenção constante ao próprio comportamento que o filme encontra seu humor e nos conecta aos personagens: uma rebatida perdida, um passo fora dessa linha tênue poderia acarretar perdas irreparáveis na agência e no cotidiano deles.
Encontrando o tom dessa dinâmica, o filme desenvolve bem as questões de gênero que a premissa intui. É de se esperar que fossem aparecer situações como uma mulher fazendo xixi no corpo de um homem ou um homem se acostumando a usar salto alto, mas isso não é um problema, porque, quando elas acontecem, surgem de modo orgânico na trama e conseguem ser engraçadas, o que é mérito tanto da direção de Daniel Filho quanto das atuações. Essas situações pegam os estereótipos que Cláudio e Helena são de seus gêneros e constroem um caminho mais compreensivo e solidário para a relação dos dois. Eu, particularmente, não esperava encontrar em um filme como esse uma proposta de se problematizar, ainda que de maneira não tão contundente, o machismo. Ainda mais em 2006, quando essa ainda não era uma questão tão debatida quanto hoje Pressuposições como essa talvez não sejam muito produtivas... No entanto,
a conclusão aponta para uma definição de "sensibilidade feminina" que, ao meu ver, é discutível, na medida em que a composição do que é masculino e do que é feminino é mais turva do que isso faz parecer. Essa "sensibilidade feminina" é bem intencionada quando dita. É uma expressão quer reconhecer o valor da mulher, mas ainda remete a uma manutenção da visão do feminino como símbolo da delicadeza, como se sua capacidade de atuação dissesse respeito essencialmente a isso, algo que, desde então, tem sido mais desconstruído.
Uma pequena coisa que me incomodou é que, logo depois da troca, as atuações de Tony Ramos e Glória Pires me pareceram um tanto contraintuitivas. No início, quando estão se acostumando aos corpos um do outro, eles parecem manter seus trejeitos originais mesmo interpretando outras pessoas. Cláudio é expansivo, fala muito e fala rápido, enquanto Helena é mais introspectiva e séria por causa de sua frustração com o casamento. Quando Tony Ramos está interpretando Helena, ele continua falando rápido e muito, só que com a voz mais fina e os movimentos mais soltos (mas ainda expansivos). Glória Pires, nesse momento, fala de forma mais bruta, mas ainda com poucas palavras e séria, o que não faz sentido já que ela estava interpretando Cláudio, que usa seu senso de humor para esconder as dificuldades pelas quais está passando. Depois, isso melhora, mas num primeiro momento me causou estranheza porque achei que, inicialmente, os dois se comportariam exatamente do jeito como são mas num corpo diferente, para só então irem se acostumando ao novo corpo. Imagino que isso tenha acontecido porque os dois carregavam um pouco de si para cada um dos personagens e não conseguiram se desvencilhar completamente das próprias características ao assumir as do outro. Se isso não melhorasse, o filme certamente desmoronaria, mas, felizmente, os dois acertam o tom e a jornada fica cada vez mais cativante e divertida.
No final,
apesar da apresentação da campanha ter um desfecho um tanto brega com a fala "Não captura a alma feminina, vai mais além. Entende o homem que há em toda mulher e a mulher que existe em todo homem" e apesar da resolução do coral parecer um pouco fácil demais,
Há mais utilidade em dar ouvidos a ambos, de forma equilibrada, do que em tomar posições absolutas e unilaterais. No fim, cada um de nós é um estranho ímpar e o ato de buscar compreender o que se passa com o outro, não importando quem seja, e a desconstrução dessa vaidade masculina contraproducente faz com que possamos vislumbrar por uma fresta um futuro frutífero e um pouco mais aprazível.
Azougue Nazaré
3.9 34Com uma identidade única, Azougue Nazaré é uma ode à liberdade e, para abordá-la, trabalha a partir de dualidades numa estrutura relativamente livre também: a religião evangélica que engessa as relações e inclusive se mostra hipócrita e oportunista é contrastada com o maracatu que propõe o encontro e uma leveza maiores, com seus membros tendo relações muito sinceras; os corpos rígidos dos evangélicos contrapostos à corporalidade vibrante do maracatu. Tudo isso é muito bem sintetizado na figura de Catita: na primeira cena em que chega em casa, fecha atrás de si um portão com grades, como se aquilo fosse uma prisão para ele, um lugar onde não pode ser quem é e tem de se trancafiar não só num espaço físico, mas também na maneira de se vestir. A partir disso, a câmera parece clamar por uma liberdade dos corpos, evocando uma urgência irreverente por ela em seus movimentos ágeis e no fato de não se estabilizar durante a maior parte do tempo, sempre com um leve tremor, num estilo de câmera na mão. É como se ela agitasse o grupo do maracatu e incitasse em seus membros a coragem para buscar aquilo com que se sentem bem.
É interessante também como, ao mesmo tempo, o filme se propõe a valorizar a irreverência como forma de resistência e a reverenciar e homenagear a cultura do maracatu: ao trazer o folclore e, principalmente, a figura protetora do caboclo de lança como uma entidade quase lendária, o filme engrandece essas tradições. Há um flerte muito marcante com o sobrenatural que, apoiado na trilha sonora e no figurino, faz a experiência carregar em si um efeito entorpecente eufórico, culminando numa disruptividade que termina por caracterizar a proposta narrativa do filme: o final, por exemplo, toma uma liberdade poética digna dos efeitos de uma bebida alucinógena… É com esses elementos sobrenaturais e com essa disruptividade que o filme é ao mesmo tempo homenageia a cultura do maracatu e mostra a sua potência irrefreável.
No entanto, a montagem fez com que o final não fosse tão forte para mim quanto poderia. A alternância entre os trechos mais fantásticos e os mais realistas não encontra muita fluidez e a sensação de progressão fica prejudicada. A estrutura segmentada vai gerando uma expectativa que nunca é tão satisfatoriamente cumprida quanto poderia: as aparições dos caboclos, por exemplo, têm uma atmosfera e uma força dramática inquietantes, mas suas não vemos muito do que suas ações causaram. Certos acontecimentos parecem vir repentinamente e não ter muitas consequências, chegando até a soar avulsos em alguns momentos,
como a queimada na mata pelo grupo cristão enfurecido e o apagão na cidade.
Por outro lado, a percepção de que esses momentos drásticos não parecem ter impactos práticos tão evidentes faz sentido dentro da ideia de disruptividade onírica, ou seja, há um senso de rompimento em relação à causalidade de alguns eventos, em relação à noção sequencial deles, que gera e impulsiona um descolamento do real junto aos elementos sobrenaturais. Isso também reforça as dualidades que o filme trabalha, uma vez que tais momentos podem ser interpretados como a representação do imaginário e do estado de espírito daquela população e daqueles personagens. É um estado de conflito e de choque entre essas duas religiosidades que se reflete tanto em suas ações como em seus modos de vida, um choque que se dá até em situações banais do cotidiano, como a conversa entre o pastor e os mestres na praça.
Assim, Azougue Nazaré trabalha muito bem uma liberdade estética para abordar sua temática libertadora na narrativa. Nesse sentido, o filme encontra espaço para desenvolver seus personagens tanto através do drama como do humor, se valendo até de elementos de terror para construir sua mística. Essa mistura de tons que caracteriza dinâmicas de relações essencialmente pernambucanas (quem sabe até nordestinas, mas não me arrisco a falar pelo nordeste todo), com uma rudeza que, frequentemente, é carregada de muito afeto.
No fim, a preocupação do filme é mais com uma experiência sensorial potente do que com um final completamente amarrado. Isso, na verdade, poderia amarrar seu espírito livre, que se manifesta através da dança e da cultura tão características. Porém, para alcançar um efeito sensorial poderoso, o filme poderia ter trabalhado melhor uma estrutura que puxasse o freio com menos frequência e, ao invés disso, pisasse no acelerador para se deixar fluir até culminar num fim ainda mais catártico. De qualquer forma, é uma proposta única que se concretiza de forma marcante. Fico curioso para ver os próximos filmes que Tiago Melo vier a dirigir.
Conto de Cinema
3.5 18 Assista AgoraPrimeiro filme de Hong Sang-soo que vi e sinto que comecei muito bem.
Todo o "primeiro ato", no caso a parte que é um filme dentro filme, me causou muita aflição. O diretor consegue imprimir um senso de falta de sentido e despedida muito forte em todo o segmento que precede a tentativa de suicídio. Ele faz isso a partir de uma certa casualidade aparente que acaba por se tornar brutal quando percebemos o profundo e angustiante desamparo em que Sang-Won e Yeong-Sil encontram-se. Esse desamparo faz com que a morte, nos termos em que a planejam, não seja algo horrendo para eles a princípio. O pensamento de que ela pode finalmente trazer um sentido grandioso às suas vidas insignificantes é naturalizado por eles e a forma também natural como Hong Sang-soo filma isso torna todo o segmento ainda mais pesado de acompanhar: nós sabemos que aquilo é absurdo, mas os personagens já estão psicologicamente fragilizados a tal ponto que parecem anestesiados ao horror dos próprios planos.
Depois de falharem na tentativa de transar, Songwan sonha com uma mulher que veste vermelho, aqui possivelmente entendido como a cor do amor. Ela lhe oferece uma maçã. Ela é a própria serpente oferecendo o fruto proibido, então ele recusa e, depois disso, quando acorda e machuca Yeong-Sil em outra tentativa de transar, propõe que devem morrer castos, sem fazer amor. É como se seu amor fosse impossível, fadado à ruína, como se desfrutar daquele prazer fosse de fato proibido e a única forma de vivenciar algo significativo seria através da morte, quase como uma redenção pelas vidas desprovidas de virtudes que levaram até ali, pelas tentações que sofreram. É nesse senso de perdição entorpecida que reside a potência dramática do primeiro segmento que me causou tanta aflição.
Além disso, a abordagem parcimoniosa na encenação traz um realismo que se encaixa muito bem à trama intimista do filme e à sua temática, conferindo à narrativa uma fluidez entre o real e o ficcional. Tal fluidez é traduzida visualmente pelo uso do zoom: ao aproximar ou afastar o zoom, Hong Sang-soo nos coloca dentro daquela realidade através da câmera, redirecionando nosso olhar para enfatizar o que as ações, por si sós, já transparecem. Quando ele faz isso, testemunhamos aquela situação diante de nós como se estivéssemos espiando-a, quase de maneira voyeurista. Por isso, quando acontece a virada da primeira para a segunda parte, ela não é anunciada, é extremamente discreta e o diretor continua usando a mesma linguagem na câmera: sem nem percebermos, o que era um filme dentro de um filme já passou a ser a realidade dos personagens, ou seja, o limiar entre a realidade e a ficção é impreciso e ambos se misturam. Esse vai ser o próprio mote da história, que é traduzido brilhantemente pelo visual do filme.
Assim, na segunda parte, o filme mantém seu pulso narrativo não mais através da iminência de um evento trágico, mas das readaptações que o público tem que fazer para entender o que era parte do filme e o que era próprio da realidade. Isso gera um senso de desorientação e instabilidade que deixa a trama ainda mais estimulante e nos coloca na pele do novo protagonista: Dong-su. É aí que o filme se torna o exemplo perfeito do ditado "a arte imita a vida que imita a arte", quando os personagens perguntam se certas ações são "como no filme": é como se as coisas fossem sacralizadas quando colocadas na tela grande. Elas são evidenciadas, tomadas como modelo e colocadas num patamar “digno de ser representado”, dada a magnitude da potência sensorial que uma sala de cinema possibilita transmitir.
Elementos como o cigarro Marlboro vermelho, o modo como apertam as mãos, a própria trama do suicídio foram vividos e inventados por Dong-su ou foram imitados por ele? Não há uma definição para o público porque não há também para o personagem, esses limites se turvam, se misturam e se confundem para ele, que vai entrando cada vez mais na obsessão de emular os eventos do filme na tentativa de sentir que também pode ser importante. Isso até ouvir que talvez não tivesse entendido o filme de fato. Ele estava pensando em tudo a partir dos próprios egoísmos, de suas visões unilaterais e egocêntricas, algo que é comentado por Yeong-Sil quando ela diz que "quando você faz parte de um grupo de diretores, acaba pensando assim. Basta encontrar uma coincidência para pensar que é por sua causa". Essa também é uma questão do filme.
Esses artistas, esses cineastas anseiam por uma tragicidade quase teatral, fantasiam romanticamente com ela e vivem as próprias vidas nessa intensidade trágica ou buscando-a: uma tragicidade que os tire da banalidade do cotidiano e que traga mais importância pra própria existência, conferindo mais sentido a ela. Desse modo, perde-se a medida do que é concreto e próprio da realidade, havendo dificuldade em aceitar sua crueza, é como se Dong-su desejasse viver num filme, numa utopia fílmica onde não necessariamente tudo é bom, perfeito e os finais são felizes, mas sim onde tudo é significativo. Ele não pode ter a história, tal como viu no cinema, porque ela é fictícia e, portanto, inalcançável e intangível, porém, justamente por isso ele quer tê-la ainda mais, porque é "proibida", quase divina em sua elegância... É por isso que ele fica tão obcecado pela atriz, porque ela é um anjo e ele, ao próprio ver, um mortal, uma pessoa comum que almeja um lugar de prestígio que o tire dessa condição em que, por se sentir envolto em trivialidade, ele se enxerga como fracassado. Então, quando ele descobre que a atriz não tem cicatrizes, que ela não é uma figura misteriosa com segredos obscuros e que ela é uma mulher normal como qualquer outra, ele perde um pouco do encanto e passa a conseguir olhar de maneira mais empática para os outros, revisando a conduta que teve com Yeong-sil de buscá-la para que servisse às próprias necessidades. É por isso que o final é tão bom, porque ele percebe que precisa refletir para sair de tudo isso, para viver bastante. Para, quem sabe, finalmente entender o filme e a verdade humana que ele traz, num exercício de compaixão pelas vidas alheias e pelas histórias contadas no cinema.
Esse é um filme que, além de ter muito a dizer, tem uma forma intrigante e provocativa de dizer. Alcança muita profundidade a partir de uma linguagem simples e intimista, mostrando que o cinema é livre, menos calculado do que alguns tentam fazer parecer, e suas possibilidades, infinitas. Fiquei curioso para conferir outros filmes de Hong Sang-soo. Acho que comecei bem.
Dark (3ª Temporada)
4.3 1,3KAs beiras da existência foram exploradas aqui. Essa série, para mim, beira a perfeição. A única coisa que me incomoda um pouco é a repetição das mesmas frases tantas vezes em pouco tempo. Eles conseguiriam transmitir a mesma ideia com outras palavras nos momentos menos significativos, para que as frases que queriam evidenciar tivessem mais impacto quando fossem ditas, o que fortaleceria ainda mais o senso de renovação e progressão que a série traz em outros elementos. Não que essas falas não tenham impacto, pelo contrário, elas têm, mas a repetição as desgasta e as banaliza, chegando a ficarem previsíveis em certos momentos (exemplos:
"O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano" e "Somos um par perfeito, nunca duvide disso").
À parte isso, é um espetáculo. A natureza cada vez mais grandiloquente e profética da série faz com que sua encenação, em todos os seus elementos, tenha sentido para nós espectadores. Em outros contextos, os diálogos, as atuações e a trilha sonora, por exemplo, poderiam soar pretensiosos e piegas em alguns momentos, mas, no caso de Dark, eles atingem um efeito poderoso no espectador justamente por estarem em consonância com uma trama profundamente existencial. O relativo realismo da primeira temporada vai cedendo espaço para uma dinâmica de absolutos que funciona muito bem para revelar os reais escopos dos acontecimentos e potencializá-los. Falar que "aquilo é tudo e, ao mesmo tempo, nada" pode soar só vazio, preguiçoso e pretensamente filosófico, mas aqui esse tipo de interpretação faz sentido porque a série vai construindo isso gradativamente, para que saibamos os pormenores desse tudo e nada, para saber e sentir como esse tudo e nada se atravessam. Eles operam a partir das dicotomias entre luz e sombras, verdades e mentiras, vida e morte e, para representar essas dialéticas, Dark soube utilizar muito bem o poder das imagens. Com um efeito retumbante em seu rigor estético, a fotografia capta os mistérios do tempo de forma assombrosa e, aliando-se à montagem, transmite a sensação de imponência pujante dos cenários das sociedades secretas, da igreja, da floresta, da caverna, entre outros. Se não me falha a memória, não houve, em nenhum momento, o uso de transições graduais na edição (fades) e isso é só mais uma das inúmeras provas do quão bem arquitetada essa série foi. Os cortes secos têm uma natureza definitiva inerente a eles, ou seja, quando são utilizados, há uma mudança absoluta e categórica na imagem, o que reforça a condição perpétua e irrevogável do ciclo temporal e traz ainda mais impacto aos planos quando eles vêm.
Além disso, a série coloca uma boa dose de exposição quanto às suas particularidades científicas e estabelece bem seus princípios a fim de que possa evidenciar e fortalecer seus temas ao mesmo tempo íntimos e grandiosos. Ou seja, ao explicar como a viagem no tempo é possível e como os paradoxos se constroem, a trama usa todo esse contexto absurdo para explorar questões extremamente relacionáveis e humanas e se alça aos confins da realidade. Ela consegue fazer isso justamente porque temos nortes e definições científicas que são usados como bases possibilitadoras e propulsoras, como um meio para desenvolver temas muito profundos, os quais tecem uma história que nos emociona por trazer o íntimo através do cósmico, do grandioso.
Sempre nessa condução, a singeleza e a dureza encontram seu espaço entre os acontecimentos da série e o final é incrivelmente satisfatório, nos fazendo refletir sobre a natureza do destino tanto em âmbitos individuais quanto universais.
No fim, a guerra é um ciclo vicioso, onde o conflito é despropositado e ineficiente: enquanto os personagens continuam se digladiando, o sofrimento e a destruição se alastram e se perpetuam. Seus desentendimentos geram cada vez mais ressentimentos, eternamente, num ciclo da morte. É preciso que alguém ceda. Que alguém rompa com o impulso da vingança. Apenas o perdão concilia e permite a união, através da qual se alcança o descanso e a paz. É isso que dar a outra face significa: não revidar. Recuar e redirecionar a dor. Quando Adam e Eva deixam de se encarar como inimigos e abnegam seus egoísmos, conseguem juntar-se e, efetivamente, concretizar um plano sem falhar no final, sacrificando-se em prol de toda a humanidade. Assim, todos os elementos bíblicos que a série coloca vão além de um simples ornamento estiloso e elegante e demonstram sua pertinência intrínseca à narrativa. Deus é absoluto em sua onipotência, onipresença e onisciência, então faz sentido que a série esteja repleta de símbolos religiosos porque é em seus significados que ela se ampara para construir sua trama e faz muito sentido também que, em seu momento derradeiro, a história lance mão do instrumento da justiça cristã: o perdão. Diz Adam que "A morte é incompreensível, mas podemos fazer as pazes com ela. Tudo o que nós fizemos será esquecido no final" justamente porque eles se arrependeram de suas ações horrendas e brutais e buscaram se redimir, perdoando a si mesmos e aos outros e salvando os três mundos da destruição perpétua. Então, de forma quase literal, os personagens ao pó retornam e alcançam o paraíso.
Apesar do ritmo da primeira metade da terceira temporada não ser tão cadenciado quanto as outras duas vinham progressivamente fazendo, essa desacelerada se mostra compreensível para que certos acontecimentos não soassem aleatórios, como, por exemplo, o fato de Silja ser irmã de Jonas. Caso o desenvolvimento do drama da presença de Hannah em 1953 fosse apressado, não sentiríamos o peso de suas decisões nem o impacto que o acúmulo dos acontecimentos fez para que Egon virasse um alcoólatra. Nós nos importamos ainda mais com Silja porque sabemos de onde ela veio e a complexidade das relações que a originaram e que se desdobraram nas mais variadas consequências. Esse gigantesco e complexo jogo de manipulação foi magistralmente arquitetado e conduzido por Baran Bo Odar e Jantje Friese, de modo tão satisfatório que percebemos como eles sempre souberam o que estavam fazendo e não prometeram algo que não seriam capazes de entregar. A série prova que não é o que acontece que importa mais, mas como acontece. Pensando em todas as estruturas da série, em tudo que é estabelecido desde o início, já era de se esperar que fosse haver um terceiro mundo. Na verdade, seria até estranho se não houvesse. Mas, quando ele é mostrado, é tão emocionante e singelo que percebemos que o objetivo de todo esse mistério não era ser indecifrável, mas sim ser recompensador e envolvente a ponto de valer a pena testemunhar seu desemaranhar. Tudo veio em três partes e, então, a série se concluiu apoiando-se nos pilares Jonas, Martha e Claudia.
Internamente coerentes e coesas, são as misturas e os embates entre o interior pessoal e o exterior universal que definem Dark para mim e fazem-na uma série tão memorável, são esses amálgamas entre passado, presente e futuro milimetricamente simultâneos, entre a ciência e a religião, o tangível e o metafísico todos de uma só vez e ao mesmo tempo equilibrados. No fim, mesmo em nossa abismal insignificância, possuímos uma dimensão cósmica dentro de nós que, secretamente, levaremos guardada conosco no íntimo de nossas memórias. Assim foi com Jonas e Martha, ecoando no infinito o beijo no lago e sua primeira noite. Essa série, para mim, beira a perfeição. As beiras da existência foram exploradas aqui.