Io Capitano (Eu, Capitão, 2023) conta a saga de dois jovens senegaleses de 16 anos, os primos Seydou e Moussa, que desejam deixar seu país em busca de melhores condições de vida na Europa, mais especificamente na Itália, embora não tenham, ainda, dimensão do que significa empreender essa jornada, que deixa um rastro de miséria, lástima e morte por onde passa. Assim, no caminho, eles enfrentam todo tipo de desumanização ao tentar emigrar ilegalmente atravessando sinuosos ambientes urbanos e a amplidão interminável do deserto do Saara e do mar Mediterrâneo, o que impõe, reiteradamente, aos personagens um dilema labiríntico entre prosseguir, retroceder ou permanecer no mesmo lugar.
O retrato da jornada dos jovens Seydou e Moussa feita pelo diretor Matteo Garrone é marcado estruturalmente pela dinâmica de um road movie. Principalmente no primeiro ato, inclusive, o roteiro parece se preocupar mais com o acúmulo de situações e cenários do que em conectá-los de maneira cadenciada. O tom adotado é predominantemente naturalista, mas flerta, também, com o realismo fantástico, em cenas impregnadas pela imaginação do protagonista Seydou e até por um tom espiritual, que canaliza a violência generalizada que testemunhamos e a transforma em matéria onírica. Esses são os momentos de maior vigor do filme, que ocorrem apenas esporadicamente, já que, de maneira geral, paira uma certa imposição na abordagem que a torna vaga. Isso fica evidente na montagem, que insiste em utilizar fades (fusões) na transição de, rigorosamente, todas as cenas do primeiro ato, de modo que seu efeito visual e sensorial parece despropositado, meramente caprichoso, um vício de linguagem.
A alternância de cenas contrastantes nesse início é visível: danças repletas de leveza e cenas dos adolescentes trabalhando como pedreiros; Seydou e Moussa compondo músicas e depois travando embates com os adultos ao redor, que tentam convencê-los a não prosseguir com a ideia da viagem. Ao final de cada momento, quando a fusão acontece e uma imagem transcorre em outra suavemente, a parcela de dureza desses acontecimentos parece se dissipar e enfraquecer outros momentos que soam mais apropriados para essa técnica de transição. Na visita dos meninos a um cemitério, quando dialogam com os mortos, por exemplo, a passagem lenta de um plano a outro imprime a tentativa dos personagens de transcender, de extrapolar a objetividade material da realidade, ou indica prostração e fadiga com as passagens temporais nas cenas do deserto e da estrada.
No que diz respeito à narrativa, somos colocados ao lado de Seydou e Moussa de maneira a entrar em contato com a realidade brutal que o filme denuncia, mas tal denúncia jamais é maior que a humanidade dos personagens que a encarnam, já que Garrone enquadra, também, sua elaboração onírica, internalizada, a expressão de individualidade que afasta a possibilidade destes serem apenas rostos indistinguíveis na multidão. Apesar do filme mostrar que é essa a condição a qual estão submetidos, seu movimento é de não lhes sepultar, mas sim fazer coro com eles e com sua imaginação em meio ao caos.
Novamente, entretanto, as implicações de tal abordagem são ambíguas. Por um lado, pode-se afirmar que, ao final, prevalece o elogio a um heroísmo individual ingênuo, encarnado no título e na cena final – “eu sou o capitão”, delineando um indivíduo capaz de superar a precariedade de seu meio pela simples força de sua vontade – mas, por outro lado, isso seria ignorar a dimensão coletiva de cada encontro que o protagonista tem. A sequência que melhor descreve essa corrente é a em que ele busca por Moussa em Trípoli: passando por diversas comunidades de senegaleses, a câmera se detém, sutilmente, diante do rosto de cada pessoa que indica a Seydou onde ele pode encontrar o primo. Mais uma vez, uma situação angustiante, que é registrada enquanto tal, mas de maneira a salientar individualidades em um ambiente de negação da existência social (literalmente, nesse caso, já que pessoas negras não são aceitas nos hospitais da capital da Líbia).
Dois momentos que se destacam, ainda, pela sua grandiloquência, são as passagens pelo deserto e pelo mar, uma antítese e complemento da outra. No Saara, os imigrantes são praticamente largados à própria sorte para caminhar em direção à Líbia e, naturalmente, a caminhada torna-se dispersa, com algumas pessoas ficando para trás, exauridas. A dinâmica dessas cenas remete a um outro filme indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2024, Sociedade da Neve (2023, J. A. Bayona), no qual a brancura da neve ofusca o horizonte, intransponível pela cordilheira dos Andes. No caso de Io Capitano, o amarelo da areia é a cor que predomina e que confere languidez à presença humana, ao passo que o horizonte nunca parece mudar, representando o horizonte social imposto aos personagens. Ao final, já no Mediterrâneo, quando Seydou é designado para pilotar o barco ilegal que os levará à Itália, as pessoas se amontoam no espaço pequeno do convés e, ali apinhadas, isoladas pela imensidão do mar, logo iniciam um vozerio descontrolado, ao contrário do emudecimento do grupo do deserto, ambos marcas do sufocamento desumano que sofreram, ora silenciados, ora submetidos a uma espécie de Babel.
Assim, concentração e dispersão sintetizam o movimento da narrativa, em sua ambígua oscilação entre a individualidade e a coletividade, colocando frente a frente humanidade, natureza e, novamente, humanidade, já que foi em decorrência da própria ação humana e da desigualdade socioeconômica que os personagens se colocaram diante de tamanhos riscos. Com isso, o filme entende e transmite a complexidade engendrada na simples decisão entre mover-se e não sair do lugar, mote primordial do dilema de Seydou, Moussa e de incontáveis outras pessoas que se lançaram a esse périplo movediço.
Land of Bad (Zona de Risco, 2024) é um filme de guerra que conta a história de Kinney (Liam Hemsworth), um oficial do exército estadunidense que, pela primeira vez, integra uma operação de resgate das forças armadas nas Filipinas, em busca de um agente da CIA feito refém. Logo a missão degringola e ele se vê isolado na selva sendo acompanhado, da base, pelo capitão Reaper (Russell Crowe), piloto de drone que se afeiçoa ao jovem e o guia na tentativa de retornar em segurança.
Responsável por coordenar a ação do apoio aéreo no combate, Kinney desempenha a função de mediar, para o espectador, a complexidade do embate: inexperiente, ele pergunta, comenta e recebe explicações sobre detalhes do armamento e da operação que contextualizam as terminologias, as motivações e a dinâmica da operação para o espectador, a fim de torná-la compreensível e mais palatável. No entanto, o efeito colateral dessas explicações é não só a hipersimplificação dos dilemas morais em questão, mas também uma diluição da abordagem de direção, que se torna sensivelmente ambígua, chegando até mesmo ao contraditório.
Em uma das primeiras interações do grupo de soldados, tem-se uma discussão sobre o uso da tecnologia na guerra. O soldado Bishop acha que o uso exagerado da tecnologia tira da guerra seu elemento humano, passional, ao passo que Kinney lhe contrapõe, dizendo que ela serve justamente para tornar o confronto menos mortífero e mais eficiente, amenizando sua brutalidade – ou seja, uma defesa da própria função desempenhada por ele. A tréplica de Bishop é de que esta é uma visão ingênua, carregada de teoria e de pouca prática, pois a morte ocorre de um jeito ou de outro, e a barbárie prevalece, sendo o descobrimento dessa realidade a síntese do arco de Kinney. Logo após esse diálogo, que evidencia a natureza crua e áspera da guerra, o primeiro grande showdown do filme acontece e, então, sua irreflexão estética transparece no uso da câmera lenta, quando o tiroteio começa. O mesmo personagem que profere aquelas palavras é agora filmado em câmera lenta, atirando com precisão no inimigo, de modo a ressaltar a plasticidade de seu ato. A execução do tiro e a evacuação da cápsula de bala ganham o ar estilizado de um espetáculo. O mesmo se aplica à maneira como os mísseis caem em magníficas explosões, cuja destruição – e poder de destruição – parece ser saboreada pelo filme. A intenção dramática e o virtuosismo da técnica dão lugar à sua percepção enquanto artifício vazio, contrário à dimensão atroz do conflito apregoada pelo discurso de Bishop minutos antes.
Nesse sentido, a abordagem da ação parece oscilar entre nos condicionar à posição do protagonista e nos fornecer uma visualização total do espaço através da decupagem. Na verdade, uma coisa parece neutralizar o potencial da outra: uma vez que não estamos sempre identificados à posição de Kinney, não experimentamos seu sufoco na intensidade que ele experimenta, pois os planos logo nos alçam a visões aéreas dos inimigos e diluem o horror potencial contido em sua condição de isolamento, o que resulta em uma ação cujos momentos inspirados se esvaem rapidamente. Ao mesmo tempo, ao acompanhá-lo de perto com uma câmera na mão, o filme enfraquece a grandiosidade da ação, arquitetada pela multiplicidade de visões estilizadas no espaço, fornecidas pela montagem.
Há quem possa dizer, contudo, que esta segunda abordagem diz respeito à contraparte narrativa de Kinney, o arredio capitão Reaper. Sentado na cabine de comando, lugar privilegiado de onde visualiza e maneja a operação através de drones, ele é a voz da experiência, os olhos que tudo veem, e a relação dos dois é o pilar mais sólido do filme. Sua obstinação se torna a do público, e a presença carismática de Russell Crowe o torna quase um coprotagonista, desvelando os fios emocionais de Kinney e afeiçoando-se a ele praticamente como a um filho (“tenho oito filhos e mais um a caminho”, ele diz, referindo-se à sua mulher grávida, mas numa frase perfeitamente aplicável ao jovem, que, por coincidência ou não, perdeu o pai pouco antes da missão). Sua função narrativa parece conferir esse sentido de família a alguns de seus colegas e, consequentemente, à instituição que representam, o exército americano, com direito a um discurso patriótico no final. Apesar de resultar em humor, essa sequência não deixa de passar por um sentimentalismo apressado pela montagem, já que a emoção sólida e genuína transmitida no rosto de Crowe logo dá lugar ao retorno triunfante dos soldados, que passa a ser intercalado com o discurso, uma escolha que revela pouca sensibilidade do diretor William Eubank ao próprio material, à entrega de seus atores e às dinâmicas que sua trama desenhou.
Assim, a ideia de realismo quase documental, impressa nos letreiros iniciais de Zona de Risco – que explicam o conflito e nos dizem “há uma guerra acontecendo, apenas não sabemos” -, prefigura um tom que não condiz com a natureza espetaculosa de momentos cruciais do filme e da ação. O terrorista Saeed Hashimi, o antagonista máximo, discursa sobre as bombas sem rosto dos Estados Unidos e a ética que ele pratica em resposta a isso, dizendo que matar também o afeta e que, justamente por isso, prefere criar intimidade com quem executa, pois “resultados reais são criados cara a cara”. Tudo isso não é suficiente para, de fato, dar alguma personalidade aos terroristas filipinos, já que esse mesmo personagem decapita, de maneira sádica, uma mulher e quase faz o mesmo a uma criança, enquanto as explosões dos mísseis americanos são festejadas pela mise-en-scène quase como se atingissem um mal abstrato, ao invés de vidas humanas. Essa pretensa profundidade psicológica ou moral, desenhada por tais cenas, termina por parecer nada mais que um mero rascunho, ensaio de uma obra que de fato desdobre a complexidade inicial de suas próprias ideias.
" O sonho é um caos. Não entendo sua linguagem, que embaralha qualquer exegese. Esforço-me por decifrá-lo, sem resultado. Mal sei do que penso saber. Paciência, meu mister não é interpretar a vida ao pé da letra. Ou descrever uma terra que não é a minha. Pronto, como dizem os portugueses.
Termino constatando que a matéria onírica, ao avanço do ponteiro do minuto, esvanece e termina guardando na memória detalhes perecíveis". - Nélida Piñon no livro "Uma Furtiva Lágrima", capítulo A Urgência do Caos.
" Fred: Gosto de recordar as coisas da minha maneira. Policial: O que quer dizer com isso? Fred: Do jeito que eu as recordo... Não necessariamente como aconteceram."
"Nós do Projeto Amaro gostaríamos de agradecer, primeiramente, ao Instituto Cervantes por nos receber de maneira tão generosa, para uma sessão que nos parecia fazer sentido desde a primeira vez que viemos aqui, no aniversário da escritora Nélida Piñon, em maio desse ano, a convite da professora Karla Vasconcelos. Nélida foi aluna do Colégio Santo Amaro e, assim como viria a ocorrer aqui no Instituto Cervantes, a biblioteca da escola foi batizada em seu nome e, mesmo com o fechamento do Colégio e sua transformação em campus da Universidade Veiga de Almeida, o nome foi mantido.
Essa simples correlação entre as duas instituições delineia para nós o caminho de Nélida, que enquanto uma figura ilustre de nossa literatura, nunca se esquece de suas origens, pelo contrário, carregava-as aonde ia. Na inauguração da biblioteca com seu nome aqui no Instituto Cervantes, Nélida disse: 'A história, de verdade, é apenas provisoriamente minha e nós que narramos temos o compromisso ético, em relação ao futuro, de não permitir que uma só história morra, nenhuma história pode fenecer, porque isso significaria eliminar o coração das pessoas. Todo mundo vive na expectativa de que surja uma autora, um autor, que vá preservar sua história. Não se pode viver impunemente, sem que alguém colha os rastros, os restos, as sobras da história da humanidade'. Com esse espírito, sua memória pessoal e a memória dos séculos se confundiam, eram partes inseparáveis dela.
E foi nesse rastro de memória que trilhamos, por vezes sentindo a verdade do que Nélida disse em nossa entrevista, 'A memória é um milagre', quando encontrávamos fotos dos lugares que conhecíamos intimamente antes mesmo de serem construídos, e depoimentos que pareciam ter sido destinados a integrarem este documentário. Que tenham sobrevivido na lembrança de uma senhora de 102 anos, Zeny, ou nos álbuns de fotos delicadamente organizados pela irmã Theresinha Barbosa, nos víamos arrebatados por um sentimento de sorte e de consonância com algo que atravessava o tempo, uma história que, efetivamente, começa no dia 15 de janeiro de 1923.
Eu me lembro de quando estávamos no Ensino Médio e o professor de literatura, nosso querido Carlucho, passou o livro 'Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra' como leitura bimestral e ali o autor moçambicano Mia Couto escreveu 'o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós a casa mora'. A escola é um período particular para cada um, e para algumas pessoas ela pode ser apenas um obstáculo a ser superado, mas para nós representava uma espécie de lar. Eu terminei de ler esse livro na biblioteca Nélida Piñon, num recreio, e hoje também relaciono essa frase à trajetória de Nélida, uma mulher que dizia não querer passar muito tempo sob um mesmo teto, mas que fez da Espanha, do Brasil, do Santo Amaro, lugares que, verdadeiramente, a constituíam profundamente. Ela lhes reverenciava, transparecendo um sentimento nítido em tantas outras pessoas que conhecemos nessa jornada, perpassadas por um sentido de pertencimento em relação à escola enquanto um lugar fundacional, espaço de comunhão de vivências e aprendizados.
E, assim, com muito suor, fizemos este filme. Com uma equipe de cerca de 40 pessoas, o apoio incondicional das irmãs e da Associação de ex-alunos, com um financiamento coletivo apoiado por 120 pessoas, e uma equipe de universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO. Evocando Mia Couto mais uma vez, fizemos assim, '(...) com base em momentos, em lembranças, porque esses episódios não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei a minha alma de futuro'. E assim fez uma centena de gerações, cujas histórias apresentamos a vocês agora, as lembranças de nosso eterno Santo Amaro, o 'colégio da memória'."
Exibido no auditório do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, no evento "Rastros da Memória", sessão seguida de debate com os professores e pesquisadores Rafael Mattoso (ex-professor de História do Colégio Santo Amaro e historiador), Karla Vasconcelos da Silva (diretora do Arquivo Nélida Piñon) e Elianne Ivo (professora de Montagem do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense).
"E tu, Colégio, da memória nossa jamais te apagarás"
Documentário exibido dez dias após a data do Centenário de início das aulas do Colégio Santo Amaro, em 1° de março de 1923. Foram duas sessões lotadas de ex-alunos, professores, freiras, funcionários, familiares e equipe do filme, num cinema (o Estação NET Botafogo) no mesmo bairro onde ficava a escola, Botafogo.
Uma alegria sem fim, surgida da dor e saudade que o fechamento da escola trouxe, mas que finalmente pôde desaguar nessa singela despedida.
"Todo mundo dando adeus pro Colégio".
01/04/2023: Exibido no auditório do antigo Colégio Santo Amaro, hoje o campus Botafogo da Universidade Veiga de Almeida. Na sequência, debate mediado por Maurício Fernandes, com a participação de Luiz Salgueiro, Mateus Rameh, Beatriz Pittas, Mariana Nunes, João Vitor Braga (coordenadores do projeto), Rafael Mattoso (pesquisador do filme) e Daniel Batista (produtor musical da trilha sonora).
27/05/2023: Exibição no SESC Castanhal, no Pará, na programação do Olhar Film Festival.
07/08/2023: Exibição para convidados no Cinema da Fundação (Museu do Homem do Nordeste), em Recife, Pernambuco, junto com o curta "Lá e de Volta Outra Vez". Na sequência, debate com Mateus Rameh e Marília Rameh.
09/08/2023: Exibição na Academia Santa Gertrudes para as turmas do Ensino Médio (essa foi a primeira escola no Brasil da Congregação das Irmãs Beneditinas de Tutzing). Olinda, Pernambuco.
A farsa delineia contornos épicos e místicos sobre a Paraty do fim do século XIX, a Paraty de Ruy Guerra, os sonhos da república que começava, o espírito nacional encrustado na hipocrisia contumaz de Dom Orestes, o desiludido esperançoso.
Que coletânea de grandes frases e momentos de uma irreverência cirúrgica no seu próprio tempo e pra posteridade...
A dupla de narradores-locutores tem uma presença tão forte no filme que chegam a compor um trio de protagonistas junto com o Luz, engendrados numa dinâmica que faz de tudo pretexto pro gozo, pra brincadeira, pra jogar tudo pelos ares e explodir o terceiro "imundo" (como foi lido antes da sessão). Mas qualquer brincadeira que se testemunha aqui é feita também com muita seriedade, no rigor de fazer sem regras, "um lixo sem limites". Pra ficar só no exemplo dos narradores, foram dois os momentos que me chamaram atenção nessa revisão, pra além do constante bate-voltra entre eles.
1) Quando um personagem sai do quadro com um rádio no braço e, ao mesmo tempo, deixamos de ouvir o som da narração, no meio de uma frase cujo raciocínio estávamos acompanhando durante a cena toda. 2) Quando Luz e Janete Jane estão no carro e o narrador o interpela: "Luz Vermelha, qual é o seu jogo, pistoleiro mascarado?", ao que o personagem responde "Aí está, tenho jogo nenhum".
Fora ambos os momentos, salvo alguma outra exceção que eu não lembrado, a impressão que temos é de que a narração é, a princípio, sempre extra-diegética. Porém, pontualmente nesses 2 exemplos, ela se insinua no ambiente da cena e quebra essa possível regra que parecia ter ficado estabelecida antes (e se é assim até no detalhe de certos momentos, macroscopicamente, no escopo geral do filme, isso fica ainda mais nítido). Na verdade, a constância, o nível de detalhamento, de liberdade e de insolência dessa narração nos fazem senti-la com uma proximidade quase fronteiriça de algumas cenas, sem se colocar num lugar isento, meramente contextual, e nem exatamente íntimo, pessoal ou sentimentalista (talvez apenas quando cede lugar ao bandido e olhe lá). A intimidade aqui diz respeito mais a um espírito que permeia absolutamente tudo no rastro de poluição que Luz deixa (ou melhor, sublinha) na metrópole. Um espírito que tudo congrega e tudo viola, na verve de uma irreverência criadora, fundacional, de uma postura e visão cinematográficas irrefreáveis em seu caráter moderno, respondendo frontalmente ao seu momento histórico.
Escreve Luz Vermelha, resoluta, direta e tranquilamente: se algo ficar no caminho,
Isso é uma descrição da ação, que vem no intertítulo, não é uma fala, mas achei forte em meio ao contexto do filme.
Certamente a trilha ruidosa e nauseante do Ruy Gardnier (feita especialmente pra essa sessão) evidencia ainda mais um caráter de perturbação que permeia os ambientes e a jornada através do inferno, compondo-o como um verdadeiro domínio do horror, pra além de qualquer falta de disposição do olhar contemporâneo pras imagens dos primeiros filmes e os primeiros efeitos do cinema. Pelo contrário, eles são ainda impressionantes e a força maior do filme, já que o desenrolar dele reside justamente no efeito visual que as horrendas paisagens infernais podem proporcionar na tela, mais do que no desenvolvimento narrativo propriamente dito de Dante.
O plano final é especialmente épico nesse sentido, com a silhueta dos dois personagens e da saída da caverna a mostrar o fim daquela jornada: sem que saiamos com eles de volta para o mundo, o peso das catacumbas permanece, não sendo possível retornar a uma normalidade completa depois de tamanha perdição testemunhada. E mais, uma perdição que só poderia ser vista de tal forma, ainda que guarde cenas inteiras essencialmente teatrais, pela câmera cinematográfica na abertura luminosa (da lente e da caverna). Num salto, vamos da saída da caverna à imortalização de Dante em monumento. Num instante, temos de relance uma última consagração monumental, num retalho documental que também tem a possibilidade de ser integrado ao filme pela ampliação do espaço cênico para além dos limites do palco, juntando diferentes localidades justamente através da arte que pode tomar as imagens do mundo propriamente dito. Um fim apropriado para concluir uma história já consagrada, de modo a não passar despercebido que, dessa vez, a essa altura da História, ela nos chega pela tela do cinema.
Injustamente massacrado. Não é espetacular, mas principalmente nos momentos mais inspirados, na fotografia e nas atuações (especialmente do Vince Vaughn e do William H. Macy) consegue criar uma atmosfera bastante inquietante e sombria. Ele não parece querer se igualar ao original nem superá-lo, pelo contrário, os momentos em que tenta fazer algo totalmente próprio e novo parecem mal enxertados e (novamente) jogam pra baixo a força que vinha sendo construída. Me refiro aos planos aleatórios nas cenas de assassinato, que ao mesmo tempo nos deslocalizam (isso num filme que não pede essa disruptividade, que pela própria natureza do seu desenrolar já gera dúvidas e ambiguidades suficientemente potentes) e relembram que estamos vendo outra coisa, algo impuro, que não é exatamente nosso bom e velho conhecido "Psicose". Esses e outros momentos fazem o filme oscilar entre a caricatura involuntária, a invenção desnecessária e a tensão sólida e genuína, que é particular na medida em que se deixa fluir como se propõe a ser, diferente de quando tenta explicitar sua autoconsciência, como deixam transparecer os cacoetes de Marion em seu olhar, por exemplo, e um ou outro cacoete de Norman. É como se eles comentassem a cena que já conhecemos enquanto a vivem - enfatizando um ou outro gesto que já é forte por si só - ao invés de simplesmente vivê-la e nos deixar observá-la "como uma de suas aves embalsamadas".
O cinema moderno em "Nós que nos Amávamos Tanto": do vigor experimentalista cômico à desilusão dramática. Análise fílmica de "Nós que nos Amávamos Tanto" - 2° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1H_GUJoyNiBlhmHz6xpaHpcF4ej5ntAna/view?usp=sharing
Análise fílmica de "A Queda da Casa de Usher" - 1° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1TO8hW4A4eCK7eIxB5k4vLKw_HgEDuU3v/view?usp=sharing (3 páginas, com spoilers)
O que mais me chamou atenção na montagem de Soberba foi o uso de “fade to black” para os momentos entre os quais um tempo considerável teria decorrido. Não à toa é um recurso que apenas aparece após 25 minutos de filme, ou seja, durante todo o primeiro ato, justamente porque uma montagem que pretende ser narrativa não colocaria uma “pausa” no meio de seu esforço de construir uma apresentação dos personagens e de suas relações. Isso comprometeria a sensação de continuidade, de causalidade entre cada ação que o narrador primeiro pontua para depois silenciar-se e nos deixar ver qual consequência terá o que comentou. Então, é apenas depois de estarmos situados na trama (já sabendo que George se interessou por Lucy, que a paixão de sua mãe Isabel por Eugene não passou e que sua tia Fanny também continua interessada pelo inventor) que esse recurso entra como uma solução proveitosa para nos indicar que podemos respirar e nos preparar para o próximo pedaço de história que irá se suceder. (...) -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Auto de Resistência é um filme forte e, no que se refere à montagem, me chama atenção o modo como ele potencializa nossa empatia pelas personagens, principalmente pelas mães. Naturalmente, eu já tenderia a tomar o lado delas mesmo se o documentário fizesse um esforço de assumir uma postura mais “neutra”, mas o fato é que, principalmente nas cenas dentro do tribunal, enquanto os policiais falam, os cortes para a reação das mães são cirúrgicos para materializar sua dor diante de nós e fazer com que a sintamos também. Além disso, é potente também o modo como, por vezes, as gravações das situações de violência são deixadas completas na tela. Ao invés de picotar tais filmagens para dinamizar o ritmo ou amenizar nossa tensão, o filme deixa-as por inteiro diante de nós, aproximando-nos da posição em que estavam as pessoas que as gravaram, imergindo-nos desconfortavelmente nas situações, que são deixadas lá, cruas, não para chocar de modo sensacionalista, mas para deixar transparecer sua gravidade. Nesse sentido, isso se distancia de uma abordagem midiática do material, que se preocuparia em “avançar” para as partes mais interessantes, para não perder o espectador, não deixá-lo entediado quando aparentemente nada estivesse acontecendo. É um documentário que busca uma sensibilização menos imediata de quem assiste, que deixa transparecer a densidade e austeridade de seu assunto e das situações, que está interessada na humanidade dentro dessas tragédias, fazendo-nos sentir sua extrema e extenuante complexidade. -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
É interessante notar como o filme “Side by Side” alterna as visões e opiniões acerca da questão película x digital, de modo a colocá-las, literalmente, lado a lado, deixando espaço para ambos os posicionamentos explicarem seus motivos sem impor ao espectador um juízo definitivo sobre o que deve pensar. Esse choque de visões também proporciona uma experiência muito imersiva na medida em que, quando estamos por certo tempo engajados na linha de raciocínio de um grupo de entrevistados, quando parecemos começar a ser convencidos, vem do outro lado um argumento que também é compreensível. Isso faz com que nos interessemos pelas possibilidades do que vai ser dito, faz com que queiramos prestar atenção a fim de que tenhamos um entendimento mais amplo das questões apresentadas. Em determinado momento, quando fala da etapa de tratamento de cor, o filme mostra uma colorista profissional mexendo no DaVinci e utilizando a função power window para alterar a cor das árvores no canto de um plano. Isso é algo que aprendi literalmente semana passada e me empolgou ver uma profissional fazendo algo que não está tão distante do nosso alcance no mesmo software. Me animou ver que algo que eu imaginava ser muito complexo e difícil, na verdade é mais simples e exatamente o que é usado em filmes que admiro. O fazer cinematográfico agora me parece de fato mais próximo, como eu sonhava há alguns anos, algo, inclusive, comentado pelo filme, ele diz que as pessoas poderão fazer seus filmes mais facilmente e com boas ferramentas. Pois bem, agora podemos. -Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
A expressividade desse filme é algo impressionante, principalmente com a montagem e a fotografia. Juntas, elas permitem que os planos transpareçam a emoção que pretendem, sem precisarem, de modo geral, colocar intertítulos o tempo todo dizendo qual a sensação em cena. O jogo de preparação e entrega que a montagem vai criando torna o filme muito imersivo e consegue até extrair emoção de objetos inanimados como os canhões filmados frontalmente, ameaçadores, prestes a atirar, ou as estátuas de leões que, mostradas rapidamente na tela, parecem assustadas com sua iminente destruição. Isso sem contar com o incrível uso das sombras, que evocam diferentes emoções (como luto, medo e glória) ao longo da história e aparecem precisamente em momentos de grande intensidade dramática, funcionando quase como marcadores dos pontos de virada e conferindo ao filme uma forte coesão narrativa.
Sim, tem uma romantização em torno do espírito da revolução, mas é bem menos manipulativo e pedagógico na forma com que transmite isso. É um filme extremamente envolvente e consegue passar um senso genuíno e singelo de grandiosidade e coletividade. Simplesmente foda.
Como é engenhoso o tal do Buster Keaton, viu. Toda a sequência dele sonhando e começando a entrar no filme é o ápice disso pra mim (além, é claro, das acrobacias perigosas que são de tirar o fôlego). Mas só a inventividade técnica da sequência no cinema já é potente o suficiente pra nos deixar impressionados e ansiosos pelo que mais pode vir. Ao usar a metalinguagem pra conectar o mundo dentro da tela com o fora dela, ele satiriza a natureza dessa forma de arte tão nova à época. O corte é usado ao mesmo tempo no filme que estamos vendo e no filme passando dentro dele, se auto evidenciando como uma descontinuidade, mas, ao mesmo tempo, borrando uma noção exata dela: a câmera permanece o tempo todo parada, longe da tela e no mesmo enquadramento e, quando protagonista entra no filme, entendemos que provavelmente aquele cenário interno à tela é do próprio set onde está sendo gravado o cinema, fingindo ser uma projeção. Porém, logo as ambientações ali mostradas passam a ser externas e não poderiam ser construídas no set, ou seja, elas foram projetadas ali de uma gravação feita antes. É necessário um corte para unificar a sala falsa e o filme projetado, mas essa mudança é imperceptível e, assim, a mágica do cinema acontece. Sem contar que as posições de Keaton com o passar dos cortes são perfeitamente continuadas, configurando uma brincadeira muito bem orquestrada com a natureza manipulável do material cinematográfico.
É interessante como o filme vai criando um senso lúdico através de um engessamento que aos poucos se transforma em algo de fato fantástico, principalmente no terceiro ato, criando uma mistura curiosa de gêneros como a comédia, o drama e a fantasia e transitando bem entre eles. A inocência travessa da protagonista e suas consequências são um meio para a retomada de valores familiares tradicionais:
ainda que o desenrolar da trama culmine nos pais entendendo que não precisam ser tão duros com a filha, isso acontece para mostrar um ideal de família, uma que consegue se unir no final, de forma romântica e esperançosa. É uma narrativa clássica como muitas outras que crê numa família inabalável e inseparável e idealiza isso no cinema com uma conclusão redentora,
o que é mais difícil de digerir hoje em dia, depois de mais de um século, com nosso olhar mais descrente. Ainda assim, a maneira expressiva como o filme conta essa história me fez gostar bastante dele.
É interessante como ele apreende e representa, na sua linguagem, essa moral rígida que define princípios e valores absolutos. Vemos isso através de frases como as da aula ("a veracidade é o coração da moralidade" e "a procrastinação é ladra do tempo") e também de uma distinção bem clara entre ações e personagens do bem e outros do mal.
No delírio de Gwen, por exemplo, existe a terra das crianças solitárias e a terra das crianças felizes, mas não existe um intermediário.
Cada personagem tem sua função bem definida (alguns estereotipados, como a mãe) e até a forma como são chamados é categórica também: "the organ grinder", "the plumber", "Gwen, the poor little rich girl", esse último repetido inúmeras vezes ao longo da história. São figuras às quais não se atribui tanta "densidade psicológica" mas a ideia é justamente representar, e não mostrar com realismo. É como se o filme colocasse essas alcunhas nos personagens para os colocar como partes de uma fábula e as próprias descrições que vem antes ou entre as cenas funcionam como falas de um narrador, começando com "na casa de tudo, exceto do amor, habitava Gwendolyn, a pobre menina rica". Ela tinha tudo, mas não tinha nenhum amor, uma dicotomia bastante categórica bastante clássica, que faz surgir do rígido o lúdico e que se interessa por dramas, situações e lições bastante identificáveis e generalizadas, sem tanta especificidade (não genérico, mas sim absoluto), que vão culminar na prevalência do amor, num ideal de família e humanidade.
Assim, o filme salta aos olhos e nos envolve com os cenários imaginativos do final, os intertítulos que fazem parecer que estamos lendo um livro pop up, a atuação expressiva de Mary Pickford, a montagem inventiva (como na cena em que o pai pensa em se matar, por exemplo, em que sua imaginação se materializa com uma sobreposição) e o uso inteligente das cores para evocar imediatamente algumas sensações. Tem um começo um tanto mecânico e ilustrativo, como se, ao apresentar os personagens, estivesse colocando peças no tabuleiro, sem conseguir interrelacionar muito bem essas apresentações, mas isso é algo extremamente pontual. No fim das contas, é uma história cativante e divertida. Não é a mais marcante do mundo mas me envolveu bastante com a estética imaginosa, digna do modo de uma criança de ver o mundo ao seu redor.
"Você está no jardim das crianças solitárias, na floresta dos sonhos. Aqui, as coisas aparecem como elas realmente são"
A primeira cena me fez pensar que o tom do filme seria bem mais soturno, mas isso logo é desconstruído e, uma vez que percebi que se tratava de outra coisa, fiquei curioso para saber como Juliana Rojas iria conciliar uma abordagem mais agradável com um cenário do qual se espera o sinistro. Para minha surpresa, ela faz isso muito bem.
Para concretizar isso, ela aposta num visual mais limpo, menos cru do que um cemitério sugeriria, uma fotografia digital bastante nítida e definida que busca não a brutalidade da morte, mas sim que possíveis relações se dão entre os que a rodeiam. É uma fotografia que eu gosto muito e parece o início do estilo que a diretora e Marco Dutra buscariam depois em “As Boas Maneiras”. Além disso, principalmente, existe uma certa infantilidade burlesca no modo como as dinâmicas do filme são encenadas, não só os números musicais, isso passa para as cenas num geral, o que confere leveza à trama. É quase como se fosse um conto infantil para crianças dormirem, ou mesmo uma peça quase infantil, onde o cemitério é como o palco onde se desenrola a ação e os personagens entram e são apresentados de maneira bastante marcada. Mas não chega a ser totalmente isso por causa das partes mais “adultas” que a trama traz, como o enredo administrativo ou, mais especificamente,
Essa, aliás, é uma cena que demonstra muito bem a natureza do filme e a dinâmica em que se ampara sua condução, já que é algo absurdo e impensável que mistura o repugnante ao cômico, produzindo uma série de situações inusitadas que equilibram bem atmosferas mais em humoradas com outras um pouco mais dramáticas
(como a cena em que Deodato toca órgão depois da partida de Jaqueline)
e outras mais enervantes (como o começo da cena em que Deodato está vigiando o cemitério).
A única coisa que me incomodou foram as atuações de Eduardo Gomes (Deodato) e Luciana Paes (Jaqueline) que, no intuito de conferir leveza às cenas, variam pouco em entonação e expressões, o que, embora contribua proveitosamente para uma certa teatralidade, torna a relação entre eles menos envolvente e seu final menos impactante. Essas repetições dão menos expressividade a eles, o que, num filme com uma proposta única como essa, soa não tão bem trabalhado. Porém, como o filme não tem grandes pretensões de profundidade e está mais interessado em propiciar uma experiência inusitada e curiosa, isso não chega a ser um grande problema.
Assim, a história de Sinfonia da Necrópole é quase um pretexto para as situações, o que funciona bem porque ela não é deixada de lado, mas sim usada para possibilitar e amparar uma comédia romântica musical passada num cemitério. É um filme muito divertido.
Segundo filme de Juliana Rojas e Marco Dutra que assisto e é impressionante a sensibilidade deles para o terror e a dosagem de suas particularidades em cada filme. Aqui, esse clima é insinuado a partir de um anestesiamento na encenação que reflete a insensibilidade (muitas vezes inconsciente) das relações de dominação e opressão entre empregador e empregado, mãe e filha, marido e mulher. Sem pensar antes de falar, os personagens estão sempre soltando falas que não percebem conter algum tipo de ofensa, que podem até ter a intenção de serem amigáveis, mas que poderiam muito bem não ser ditas. A câmera sempre fazendo movimentos lentos, a ausência de trilha sonora, a fotografia com seus tons pouco vibrantes, muitas vezes filmando os personagens de costas, tudo comunica uma frieza apática, a qual revela um estado subjacente e normalizado de conflito social que é insustentável e que nem os próprios personagens aguentam, mas têm de permanecer nele para sobreviver. Consequentemente, cansados e desesperados, não conseguem ter um tato afável em suas interações.
Nesse sentido, a cena final é perfeita, a melhor dirigida do filme para mim: o mercado de trabalho exaure e, para manter-nos à sua disposição, inventa técnicas motivacionais que nos deixam numa eterna esperança ilusória. Essa não é, necessariamente, a intenção do palestrante nem de quem o colocou ali, mas é o que de fato acontece: na prática, aquelas pessoas não importam e a guerra entre elas é benéfica para quem não tem de passar por subjugações humilhantes por terem uma condição financeira menor. A fala “a gente joga o perfil no banco de dados e a partir daí todas as empresas podem acessar” é representada na prática, com o primeiro enquadramento da cena final mostrando inúmeros homens sem rosto (por estarem de costas) vendo uma palestra sobre como lidar com o mercado de trabalho. Eles não são mais pessoas possíveis, são números que precisam acreditar que têm agência e que podem construir seu caminho para o sucesso libertando seu lado primitivo, mas, na verdade, continuarão presos nessa roda extenuante, num ciclo cansativo que pode trazer qualquer um à beira da loucura. É o processo de desumanização, que é tema do filme, sendo potencializado pela fotografia e anunciando o desfecho que aquela cena teria: os trabalhadores sendo encorajados a se bestializarem, a deixarem para trás seu lado humano. É tão ridículo quanto atual, não sendo raro encontrar as mesmíssimas cenas com alguns coachs na internet…
É nesse contexto que os elementos que se aproximam do terror funcionam tão bem: essa ideia de aprisionamento e de algo subjacente que está prestes a estourar é trabalhada a partir da degradação do espaço físico do trabalho, trazendo uma estranheza que nos provoca a pensar se ela descambará assumidamente para o sobrenatural, mas isso nunca acontece, o que pode ser frustrante e inconclusivo para alguns. Para mim, no entanto, só reforça esse estado de um limiar que precisa ser rompido mas que é segurado por quem detêm o poder de verdade (que, aliás, nunca aparece, está sempre distante). Os animais empalhados que aparecem no museu são como os próprios trabalhadores, mortificados em sua própria pele, cansados e aconselhados a permanecerem inertes, sendo colocados por outros em seus lugares para serem observados e vigiados por aqueles que os posicionaram ali. As baratas mortas, os vermes entupindo o encanamento debaixo do chão e o lobisomem escondido na parede não ganham nenhuma revelação prática sobre seu significado, não é, por exemplo, alguém tentando sabotar aquele lugar, mas sim uma representação que tem um efeito mais sensorial e metafórico. Essas são heranças carregadas pelo lugar que já estavam ali antes mesmo dos personagens chegarem e que, gradualmente, corroem sua paz. Da mesma forma, as insensibilidades das relações de dominação são passadas de geração a geração, abrigadas e reproduzidas em cada pessoa que ocupe sua posição nas hierarquias sociais. É interessante como o filme consegue abordar isso da maneira mais desesperada e consequencial do que o caminho mais fácil indicaria. Os exploradores não são vilanizados, os explorados não são passivamente vitimizados, nem vice-versa. No ato de colocar rédeas uns sobre os outros, essas classes vão entrando em choque e o filme torna-se muito mais justo com suas representações ao, por exemplo, fazer o funcionário demitido voltar para causar aflição à sua antiga chefe.
As únicas coisas que fizeram o filme não ser perfeito para mim foram algumas atuações, como a da avó, diálogos e cenas que são muito diretos e perdem a sutileza, o que, essencialmente, não é um problema, mas num filme que trabalha o processo de questões implícitas no cotidiano virem à tona, esses elementos tornam-se um pouco apressados e soltos na trama. Mas isso é algo muito pontual, porque, na maioria das vezes, esses diálogos demonstram uma normalização dissimulada que é justamente o que mantém a desigualdade e o racismo velados.
Ao fim, Juliana Rojas e Marco Dutra, com a linguagem que adotam para o filme, nos fazem sentir efetivamente que “trabalhar cansa”, trazendo uma perspectiva de como a manutenção das estruturas em si é trabalhosa e como há um sentido de trabalho na própria convivência, em que há a necessidade de se fazer aquilo que muitas vezes não se quer para haver a manutenção de uma normalidade aparente, o que, frequentemente, é o que leva essas relações à derrocada, visto que precisam de fôlego para respirar e a resposta não está em fazer tudo o que convier, isso leva a um mimo individualista que também é danoso para o convívio. A resposta se equilibra entre o pessoal e o coletivo, mas esse não é um filme interessado em respostas, mas sim em absurdos. Assim, apesar de seu ritmo lento, Trabalhar Cansa me manteve intrigado do início ao fim pela atmosfera de estranheza e hostilidade que jazia debaixo da banalidade entorpecida, uma hostilidade que é bastante evidente, mas que para os personagens, por estarem mergulhados nela, torna-se comum. Presenciamos os limites sendo levados a quase romper e a tensão de andar à beira abre caminho para mais possibilidades do que se houvesse respostas definitivas porque, nessa confusão, o mistério do que virá depois é assustador.
Scorsese não dá uma fora né... Pelo menos não nos filmes que vi até agora. E esse, particularmente, me cativou bastante.
Ele usa muito bem a movimentação da câmera, a montagem e a trilha sonora para criar um senso de continuidade e constância que reflete a perenidade da figura do Dalai-lama. Isso gera um estado meditativo que nos imerge naquele meio religioso e em sua filosofia de não violência: com o uso das transições suaves entre os planos, a trilha sonora constante praticamente do início ao fim e a câmera sempre buscando o movimento da cena, cria-se uma unidade muito forte que preza pela serenidade, nos conectando ao protagonista de maneira contagiante e inspiradora. É como se esse ideal pacifista se traduzisse nos elementos cinematográficos e eles também almejassem-no, colocando-se numa busca constante e incansável para alcançá-lo. É interessante como Scorsese consegue retratar respeitosamente essa cultura, de modo que não parece um olhar que estranha suas manifestações, mas sim as integra, estando quase intrínseco a elas, o que, consequentemente, faz com que fiquemos muito mais envolvidos com a trama.
É como se o filme traduzisse em suas sensações a própria materialidade da cultura tibetana e da filosofia budista: a fluidez da câmera como a do movimento da água e da fumaça que sai de suas velas, as transições suaves entre os planos como os tecidos que recaem de forma delicada sobre seus corpos, toda a riqueza de cores, cenários e figurinos busca a consonância com a existência e uma compaixão por todas as coisas. Essa essência é muito bem captada e transmitida pelo filme.
No entanto, apesar dessa condução agradável, a constância dos elementos dilui o impacto de algumas cenas e sequências chave, como a coroação do protagonista. A escolha por essa linguagem torna mais difícil fazer momentos se tornarem mais climácticos, já que grandes oscilações fugiriam da abordagem que o filme propõe. Isso fez, então, com que eu não percebesse que ele se encaminhava para o fim e criou uma expectativa em mim que não foi plenamente cumprida, fazendo o final soar ligeiramente súbito. Por outro lado, isso demonstra uma consciência da história de sua efemeridade e renovação: os momentos virão e passarão, assim como as mandalas feitas pelos monges, subitamente desfeitas, num ato de desapego ao instante e aceitação do que é passageiro. É nessa condição que vive o Dalai-lama, nessa sabedoria paciente e compassiva que não se apega tanto aos momentos em si, mas sim na possibilidade de suas reverberações serem bondosas e amenizarem o sofrimento dos seres. Kundun sabe que, quando ele morrer, haverá outro Dalai-lama, um outro depois desse e assim sucessivamente. E cada um será coroado e um dia também, repentinamente, descansará. Em seu tempo, humildemente, cuidam dos seus e padecem compassivamente de suas dores também.
" - A não violência leva muito tempo. - Temos esse tempo, Sua Santidade? - Até hoje, não sei. "
O filme utiliza muito bem uma estrutura de capítulos para, com sua montagem, explorar o tema da busca às raízes e da ancestralidade. Nesse processo, as linhas entre o passado e o presente se misturam e se amalgamam, o que torna a experiência instigante e envolvente.
Por exemplo, quando Nawal é presa, a prisão é mostrada pelo lado de fora e pensamos que vamos acompanhar seus momentos ali logo na sequência. No entanto, quando corta para dentro da prisão, já estamos acompanhando a filha dela visitando o lugar.
Há também uma austeridade trágica que permeia a trama e vai gradativamente aumentando e se transformando: no começo, a tensão é palpável pelas mágoas da relação complicada entre a mãe e os filhos. Depois, a visão deles vai se transformando, tornando-se mais compreensiva, e essa austeridade passa a se dar nos próprios acontecimentos trágicos e brutais da narrativa. Essa característica da história vai ganhando contornos melancólicos, dada a violência e a destruição que assolam os personagens e que são brilhantemente interpretadas por seus atores. A câmera parece respeitar a dor profunda que, por exemplo, Nawal sente ao revisitar a árvore onde se encontrava com seu "amante". Existe ali uma compaixão pelo que poderia ter sido que é arrasadora diante do que de fato ocorreu e da necessidade que ela tem de se embrutecer para seguir em frente e permanecer viva.
Villeneuve conduz muito bem essa dinâmica almagamática entre passado e presente, entre raízes e frutos, que é perfeita para trazer à tona a depravação causada pela guerra: essas crianças são frutos dela e de seus horrores. Uma guerra religiosa que não poderia ser melhor sintetizada em suas deturpações morais e sociais
do que num violento estupro incestuoso. A religião, que deveria ser um instrumento promotor da paz e de uma condição fraterna de vida, é usada para alastrar a destruição. Essa contradição é colocada imageticamente de maneira muito impactante numa imagem que permanece na minha cabeça até agora: cristãos atirando com armas cobertas por figuras como Jesus e Maria, como se tivessem a benção de seu manto protetor respaldando tais atrocidades.
É interessante também como o filme consegue fazer essa contraposição entre vida e morte em elementos como a água e o fogo. Ambos permeiam a história dos protagonistas em momentos-chave dela: Nawal presencia o incêndio do ônibus e vê as cinzas do orfanato. Ou seja, é como se o fogo dos Incêndios que dão nome ao filme e devasta a vida por onde passa fosse a angústia que esmorece essa mulher por dentro. Jeanne e Simon, por outro lado, são constantemente associados à água. No seu nascimento, seriam jogados num rio, atirados para a morte, mas escapam e isso acaba não acontecendo. Então, é curioso como a narrativa subverte esse destino trágico e torna a água um lugar de lucidez para eles, um lugar de suspensão em que espairecem e se conectam a seu íntimo. O primeiro flashback do filme começa com Jeanne nadando na piscina, flutuando em suspensão. Ou seja, o processo de rememorar, que acaba por se tornar o mote do filme, tem seu início a partir desse contato elementar com o íntimo, que é alcançado pela suspensão momentânea do caos ao redor. O mesmo acontece quando eles pulam na piscina depois de descobrirem que são os gêmeos nascidos na prisão: eles vão ali para absorver e refletir sobre essa descoberta. Ou seja, a água é o lugar que os areja e revigora, promovendo esse encontro consigo mesmos, para que possam prosseguir com sua jornada. Aliás, o filme coloca isso de forma muito sutil e singela: quando a enfermeira fala que "Nawal deu à luz gêmeos na prisão" corta para ambos pulando na piscina em posição fetal com uma luz forte atrás deles, numa representação visual da vida que lhes foi dada pela mãe, endossando a ideia da água como o lugar de reconectar-se à origem, ao princípio de suas existências, numa imagem primal. Eles apenas podem ter a vida que têm e procurar esse descanso na água porque sua mãe teve uma vida duríssima e sobreviveu à destruição que a cercava. É nessa compreensão que reside a compaixão dos gêmeos por ela no final. Eles finalmente conhecem-na e, assim, conhecem a si mesmos também.
"Incêndios", dessa maneira, equilibra muito bem forma e conteúdo, conseguindo trazer densidade à sua substância e nos emocionar com sua potência dramática, através de uma linguagem contida e parcimoniosa que revela as dores subjacentes que endureciam os personagens. É um filme muito marcante, algo que, a essa altura, certamente já se provou característico de Denis Villeneuve.
Uma das coisas mais interessantes de Se eu fosse você, para mim, é como ele usa bem uma estrutura espelhada. Ao vermos nossa imagem refletida, vemos o nosso inverso e é essa ideia de inversões que o filme trabalha tão bem. Ela transparece em diversos elementos, o que faz com que a premissa seja explorada para além de piadas óbvias: quando Cláudio e Helena falam juntos, a câmera muda de eixo e assume a "visão" do espelho, como se, daquele momento em diante, fôssemos entrar nessa absurda realidade invertida, em que um vai tomar o lugar do outro. Todo o início do filme se pauta numa preparação em que somos apresentados à rotina daquela família para depois vermos como os personagens vão reagir a essas ações na situação da troca de corpos. Isso vai sempre impulsionando a trama e oferecendo muito fôlego a ela, tendo em vista o constrangimento inerente a essa premissa: queremos ver como esse espelhamento vai se dar e de que modo os personagens vão sair dos problemas que se apresentarem, os quais causam uma sensação de vergonha alheia que fisga nosso interesse por querermos saber como ela vai se resolver. Isso faz com que a encenação um tanto caricata não seja tão incômoda quanto em outros filmes de comédia, já que ela soa apropriada para uma história tão absurda.
Dentro disso, o filme se equilibra bem na dinâmica entre os protagonistas. Intercalando as cenas dos dois de maneira complementar, a montagem estabelece não só um espelhamento, não só um paralelismo, mas também uma influência mútua entre as situações, tanto sensorialmente quanto objetivamente no universo do filme quando os personagens se ligam perguntando o que devem fazer. É quase um jogo de pingue pongue entre essas situações, em que a maneira como Cláudio lida com um problema é rebatida e carregada para a cena de Helena, numa tensão constante, até que consigam sentar juntos para debater a situação. É nessa necessidade de atenção constante ao próprio comportamento que o filme encontra seu humor e nos conecta aos personagens: uma rebatida perdida, um passo fora dessa linha tênue poderia acarretar perdas irreparáveis na agência e no cotidiano deles.
Encontrando o tom dessa dinâmica, o filme desenvolve bem as questões de gênero que a premissa intui. É de se esperar que fossem aparecer situações como uma mulher fazendo xixi no corpo de um homem ou um homem se acostumando a usar salto alto, mas isso não é um problema, porque, quando elas acontecem, surgem de modo orgânico na trama e conseguem ser engraçadas, o que é mérito tanto da direção de Daniel Filho quanto das atuações. Essas situações pegam os estereótipos que Cláudio e Helena são de seus gêneros e constroem um caminho mais compreensivo e solidário para a relação dos dois. Eu, particularmente, não esperava encontrar em um filme como esse uma proposta de se problematizar, ainda que de maneira não tão contundente, o machismo. Ainda mais em 2006, quando essa ainda não era uma questão tão debatida quanto hoje Pressuposições como essa talvez não sejam muito produtivas... No entanto,
a conclusão aponta para uma definição de "sensibilidade feminina" que, ao meu ver, é discutível, na medida em que a composição do que é masculino e do que é feminino é mais turva do que isso faz parecer. Essa "sensibilidade feminina" é bem intencionada quando dita. É uma expressão quer reconhecer o valor da mulher, mas ainda remete a uma manutenção da visão do feminino como símbolo da delicadeza, como se sua capacidade de atuação dissesse respeito essencialmente a isso, algo que, desde então, tem sido mais desconstruído.
Apesar disso, dentro do que o filme deu conta de refletir à sua época, ele consegue entreter e ser bastante cuidadoso no humor, o que mostra que não é preciso ser ofensivo para fazer o público rir. Quando aparecem piadas machistas, por exemplo, o filme não nos quer dando risada delas, mas sim observando que reflexão os personagens vão tirar delas. Mais do que rir com essas piadas, nós rimos delas, o que nos mostra, mesmo que levemente, como certos modos de estar no mundo já não fazem tanto sentido.
Uma pequena coisa que me incomodou é que, logo depois da troca, as atuações de Tony Ramos e Glória Pires me pareceram um tanto contraintuitivas. No início, quando estão se acostumando aos corpos um do outro, eles parecem manter seus trejeitos originais mesmo interpretando outras pessoas. Cláudio é expansivo, fala muito e fala rápido, enquanto Helena é mais introspectiva e séria por causa de sua frustração com o casamento. Quando Tony Ramos está interpretando Helena, ele continua falando rápido e muito, só que com a voz mais fina e os movimentos mais soltos (mas ainda expansivos). Glória Pires, nesse momento, fala de forma mais bruta, mas ainda com poucas palavras e séria, o que não faz sentido já que ela estava interpretando Cláudio, que usa seu senso de humor para esconder as dificuldades pelas quais está passando. Depois, isso melhora, mas num primeiro momento me causou estranheza porque achei que, inicialmente, os dois se comportariam exatamente do jeito como são mas num corpo diferente, para só então irem se acostumando ao novo corpo. Imagino que isso tenha acontecido porque os dois carregavam um pouco de si para cada um dos personagens e não conseguiram se desvencilhar completamente das próprias características ao assumir as do outro. Se isso não melhorasse, o filme certamente desmoronaria, mas, felizmente, os dois acertam o tom e a jornada fica cada vez mais cativante e divertida.
apesar da apresentação da campanha ter um desfecho um tanto brega com a fala "Não captura a alma feminina, vai mais além. Entende o homem que há em toda mulher e a mulher que existe em todo homem" e apesar da resolução do coral parecer um pouco fácil demais,
"Se eu fosse você" certamente vale a pena. Parece que, aqui, as comédias da globo ainda não tinham tresloucado e ainda se preocupavam em trabalhar uma estrutura narrativa com uma boa progressão, que não fosse repleta de aleatoriedades preguiçosas e desonestas com o público. O filme usa de maneira inteligente essa estrutura de espelhos e inversões, reverberando e comparando seus momentos ao longo da trama para questionar e brincar com o que nos define: nossa imagem ou nosso interior? Ou, ainda, o que resulta de ambos? E, principalmente, o que constitui o masculino e o feminino? Há mais utilidade em dar ouvidos a ambos, de forma equilibrada, do que em tomar posições absolutas e unilaterais. No fim, cada um de nós é um estranho ímpar e o ato de buscar compreender o que se passa com o outro, não importando quem seja, e a desconstrução dessa vaidade masculina contraproducente faz com que possamos vislumbrar por uma fresta um futuro frutífero e um pouco mais aprazível.
Eu, Capitão
4.0 70 Assista Agorahttps://oca.observatorio.uff.br/?p=5184
Io Capitano (Eu, Capitão, 2023) conta a saga de dois jovens senegaleses de 16 anos, os primos Seydou e Moussa, que desejam deixar seu país em busca de melhores condições de vida na Europa, mais especificamente na Itália, embora não tenham, ainda, dimensão do que significa empreender essa jornada, que deixa um rastro de miséria, lástima e morte por onde passa. Assim, no caminho, eles enfrentam todo tipo de desumanização ao tentar emigrar ilegalmente atravessando sinuosos ambientes urbanos e a amplidão interminável do deserto do Saara e do mar Mediterrâneo, o que impõe, reiteradamente, aos personagens um dilema labiríntico entre prosseguir, retroceder ou permanecer no mesmo lugar.
O retrato da jornada dos jovens Seydou e Moussa feita pelo diretor Matteo Garrone é marcado estruturalmente pela dinâmica de um road movie. Principalmente no primeiro ato, inclusive, o roteiro parece se preocupar mais com o acúmulo de situações e cenários do que em conectá-los de maneira cadenciada. O tom adotado é predominantemente naturalista, mas flerta, também, com o realismo fantástico, em cenas impregnadas pela imaginação do protagonista Seydou e até por um tom espiritual, que canaliza a violência generalizada que testemunhamos e a transforma em matéria onírica. Esses são os momentos de maior vigor do filme, que ocorrem apenas esporadicamente, já que, de maneira geral, paira uma certa imposição na abordagem que a torna vaga. Isso fica evidente na montagem, que insiste em utilizar fades (fusões) na transição de, rigorosamente, todas as cenas do primeiro ato, de modo que seu efeito visual e sensorial parece despropositado, meramente caprichoso, um vício de linguagem.
A alternância de cenas contrastantes nesse início é visível: danças repletas de leveza e cenas dos adolescentes trabalhando como pedreiros; Seydou e Moussa compondo músicas e depois travando embates com os adultos ao redor, que tentam convencê-los a não prosseguir com a ideia da viagem. Ao final de cada momento, quando a fusão acontece e uma imagem transcorre em outra suavemente, a parcela de dureza desses acontecimentos parece se dissipar e enfraquecer outros momentos que soam mais apropriados para essa técnica de transição. Na visita dos meninos a um cemitério, quando dialogam com os mortos, por exemplo, a passagem lenta de um plano a outro imprime a tentativa dos personagens de transcender, de extrapolar a objetividade material da realidade, ou indica prostração e fadiga com as passagens temporais nas cenas do deserto e da estrada.
No que diz respeito à narrativa, somos colocados ao lado de Seydou e Moussa de maneira a entrar em contato com a realidade brutal que o filme denuncia, mas tal denúncia jamais é maior que a humanidade dos personagens que a encarnam, já que Garrone enquadra, também, sua elaboração onírica, internalizada, a expressão de individualidade que afasta a possibilidade destes serem apenas rostos indistinguíveis na multidão. Apesar do filme mostrar que é essa a condição a qual estão submetidos, seu movimento é de não lhes sepultar, mas sim fazer coro com eles e com sua imaginação em meio ao caos.
Novamente, entretanto, as implicações de tal abordagem são ambíguas. Por um lado, pode-se afirmar que, ao final, prevalece o elogio a um heroísmo individual ingênuo, encarnado no título e na cena final – “eu sou o capitão”, delineando um indivíduo capaz de superar a precariedade de seu meio pela simples força de sua vontade – mas, por outro lado, isso seria ignorar a dimensão coletiva de cada encontro que o protagonista tem. A sequência que melhor descreve essa corrente é a em que ele busca por Moussa em Trípoli: passando por diversas comunidades de senegaleses, a câmera se detém, sutilmente, diante do rosto de cada pessoa que indica a Seydou onde ele pode encontrar o primo. Mais uma vez, uma situação angustiante, que é registrada enquanto tal, mas de maneira a salientar individualidades em um ambiente de negação da existência social (literalmente, nesse caso, já que pessoas negras não são aceitas nos hospitais da capital da Líbia).
Dois momentos que se destacam, ainda, pela sua grandiloquência, são as passagens pelo deserto e pelo mar, uma antítese e complemento da outra. No Saara, os imigrantes são praticamente largados à própria sorte para caminhar em direção à Líbia e, naturalmente, a caminhada torna-se dispersa, com algumas pessoas ficando para trás, exauridas. A dinâmica dessas cenas remete a um outro filme indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2024, Sociedade da Neve (2023, J. A. Bayona), no qual a brancura da neve ofusca o horizonte, intransponível pela cordilheira dos Andes. No caso de Io Capitano, o amarelo da areia é a cor que predomina e que confere languidez à presença humana, ao passo que o horizonte nunca parece mudar, representando o horizonte social imposto aos personagens. Ao final, já no Mediterrâneo, quando Seydou é designado para pilotar o barco ilegal que os levará à Itália, as pessoas se amontoam no espaço pequeno do convés e, ali apinhadas, isoladas pela imensidão do mar, logo iniciam um vozerio descontrolado, ao contrário do emudecimento do grupo do deserto, ambos marcas do sufocamento desumano que sofreram, ora silenciados, ora submetidos a uma espécie de Babel.
Assim, concentração e dispersão sintetizam o movimento da narrativa, em sua ambígua oscilação entre a individualidade e a coletividade, colocando frente a frente humanidade, natureza e, novamente, humanidade, já que foi em decorrência da própria ação humana e da desigualdade socioeconômica que os personagens se colocaram diante de tamanhos riscos. Com isso, o filme entende e transmite a complexidade engendrada na simples decisão entre mover-se e não sair do lugar, mote primordial do dilema de Seydou, Moussa e de incontáveis outras pessoas que se lançaram a esse périplo movediço.
Zona de Risco
3.3 35 Assista Agorahttps://oca.observatorio.uff.br/?p=5060
(Contém spoilers)
Land of Bad (Zona de Risco, 2024) é um filme de guerra que conta a história de Kinney (Liam Hemsworth), um oficial do exército estadunidense que, pela primeira vez, integra uma operação de resgate das forças armadas nas Filipinas, em busca de um agente da CIA feito refém. Logo a missão degringola e ele se vê isolado na selva sendo acompanhado, da base, pelo capitão Reaper (Russell Crowe), piloto de drone que se afeiçoa ao jovem e o guia na tentativa de retornar em segurança.
Responsável por coordenar a ação do apoio aéreo no combate, Kinney desempenha a função de mediar, para o espectador, a complexidade do embate: inexperiente, ele pergunta, comenta e recebe explicações sobre detalhes do armamento e da operação que contextualizam as terminologias, as motivações e a dinâmica da operação para o espectador, a fim de torná-la compreensível e mais palatável. No entanto, o efeito colateral dessas explicações é não só a hipersimplificação dos dilemas morais em questão, mas também uma diluição da abordagem de direção, que se torna sensivelmente ambígua, chegando até mesmo ao contraditório.
Em uma das primeiras interações do grupo de soldados, tem-se uma discussão sobre o uso da tecnologia na guerra. O soldado Bishop acha que o uso exagerado da tecnologia tira da guerra seu elemento humano, passional, ao passo que Kinney lhe contrapõe, dizendo que ela serve justamente para tornar o confronto menos mortífero e mais eficiente, amenizando sua brutalidade – ou seja, uma defesa da própria função desempenhada por ele. A tréplica de Bishop é de que esta é uma visão ingênua, carregada de teoria e de pouca prática, pois a morte ocorre de um jeito ou de outro, e a barbárie prevalece, sendo o descobrimento dessa realidade a síntese do arco de Kinney. Logo após esse diálogo, que evidencia a natureza crua e áspera da guerra, o primeiro grande showdown do filme acontece e, então, sua irreflexão estética transparece no uso da câmera lenta, quando o tiroteio começa. O mesmo personagem que profere aquelas palavras é agora filmado em câmera lenta, atirando com precisão no inimigo, de modo a ressaltar a plasticidade de seu ato. A execução do tiro e a evacuação da cápsula de bala ganham o ar estilizado de um espetáculo. O mesmo se aplica à maneira como os mísseis caem em magníficas explosões, cuja destruição – e poder de destruição – parece ser saboreada pelo filme. A intenção dramática e o virtuosismo da técnica dão lugar à sua percepção enquanto artifício vazio, contrário à dimensão atroz do conflito apregoada pelo discurso de Bishop minutos antes.
Nesse sentido, a abordagem da ação parece oscilar entre nos condicionar à posição do protagonista e nos fornecer uma visualização total do espaço através da decupagem. Na verdade, uma coisa parece neutralizar o potencial da outra: uma vez que não estamos sempre identificados à posição de Kinney, não experimentamos seu sufoco na intensidade que ele experimenta, pois os planos logo nos alçam a visões aéreas dos inimigos e diluem o horror potencial contido em sua condição de isolamento, o que resulta em uma ação cujos momentos inspirados se esvaem rapidamente. Ao mesmo tempo, ao acompanhá-lo de perto com uma câmera na mão, o filme enfraquece a grandiosidade da ação, arquitetada pela multiplicidade de visões estilizadas no espaço, fornecidas pela montagem.
Há quem possa dizer, contudo, que esta segunda abordagem diz respeito à contraparte narrativa de Kinney, o arredio capitão Reaper. Sentado na cabine de comando, lugar privilegiado de onde visualiza e maneja a operação através de drones, ele é a voz da experiência, os olhos que tudo veem, e a relação dos dois é o pilar mais sólido do filme. Sua obstinação se torna a do público, e a presença carismática de Russell Crowe o torna quase um coprotagonista, desvelando os fios emocionais de Kinney e afeiçoando-se a ele praticamente como a um filho (“tenho oito filhos e mais um a caminho”, ele diz, referindo-se à sua mulher grávida, mas numa frase perfeitamente aplicável ao jovem, que, por coincidência ou não, perdeu o pai pouco antes da missão). Sua função narrativa parece conferir esse sentido de família a alguns de seus colegas e, consequentemente, à instituição que representam, o exército americano, com direito a um discurso patriótico no final. Apesar de resultar em humor, essa sequência não deixa de passar por um sentimentalismo apressado pela montagem, já que a emoção sólida e genuína transmitida no rosto de Crowe logo dá lugar ao retorno triunfante dos soldados, que passa a ser intercalado com o discurso, uma escolha que revela pouca sensibilidade do diretor William Eubank ao próprio material, à entrega de seus atores e às dinâmicas que sua trama desenhou.
Assim, a ideia de realismo quase documental, impressa nos letreiros iniciais de Zona de Risco – que explicam o conflito e nos dizem “há uma guerra acontecendo, apenas não sabemos” -, prefigura um tom que não condiz com a natureza espetaculosa de momentos cruciais do filme e da ação. O terrorista Saeed Hashimi, o antagonista máximo, discursa sobre as bombas sem rosto dos Estados Unidos e a ética que ele pratica em resposta a isso, dizendo que matar também o afeta e que, justamente por isso, prefere criar intimidade com quem executa, pois “resultados reais são criados cara a cara”. Tudo isso não é suficiente para, de fato, dar alguma personalidade aos terroristas filipinos, já que esse mesmo personagem decapita, de maneira sádica, uma mulher e quase faz o mesmo a uma criança, enquanto as explosões dos mísseis americanos são festejadas pela mise-en-scène quase como se atingissem um mal abstrato, ao invés de vidas humanas. Essa pretensa profundidade psicológica ou moral, desenhada por tais cenas, termina por parecer nada mais que um mero rascunho, ensaio de uma obra que de fato desdobre a complexidade inicial de suas próprias ideias.
Estrada Perdida
4.1 469 Assista Agora" O sonho é um caos. Não entendo sua linguagem, que embaralha qualquer exegese. Esforço-me por decifrá-lo, sem resultado. Mal sei do que penso saber. Paciência, meu mister não é interpretar a vida ao pé da letra. Ou descrever uma terra que não é a minha. Pronto, como dizem os portugueses.
Termino constatando que a matéria onírica, ao avanço do ponteiro do minuto, esvanece e termina guardando na memória detalhes perecíveis".
- Nélida Piñon no livro "Uma Furtiva Lágrima", capítulo A Urgência do Caos.
" Fred: Gosto de recordar as coisas da minha maneira.
Policial: O que quer dizer com isso?
Fred: Do jeito que eu as recordo... Não necessariamente como aconteceram."
Amaro: O Colégio da Memória
4.8 228/09/2023:
Texto lido na abertura da sessão:
"Nós do Projeto Amaro gostaríamos de agradecer, primeiramente, ao Instituto Cervantes
por nos receber de maneira tão generosa, para uma sessão que nos parecia fazer sentido desde a primeira vez que viemos aqui, no aniversário da escritora Nélida Piñon, em maio desse ano, a convite da professora Karla Vasconcelos. Nélida foi aluna do Colégio Santo Amaro e, assim como viria a ocorrer aqui no Instituto Cervantes, a biblioteca da escola foi batizada em seu nome e, mesmo com o fechamento do Colégio e sua transformação em campus da Universidade Veiga de Almeida, o nome foi mantido.
Essa simples correlação entre as duas instituições delineia para nós o caminho de Nélida,
que enquanto uma figura ilustre de nossa literatura, nunca se esquece de suas origens, pelo contrário, carregava-as aonde ia. Na inauguração da biblioteca com seu nome aqui no Instituto Cervantes, Nélida disse: 'A história, de verdade, é apenas provisoriamente minha e nós que narramos temos o compromisso ético, em relação ao futuro, de não permitir que uma só história morra, nenhuma história pode fenecer, porque isso significaria eliminar o coração das pessoas. Todo mundo vive na expectativa de que surja uma autora, um autor, que vá preservar sua história. Não se pode viver impunemente, sem que alguém colha os rastros, os restos, as sobras da história da humanidade'. Com esse espírito, sua memória pessoal e a memória dos séculos se confundiam, eram partes inseparáveis dela.
E foi nesse rastro de memória que trilhamos, por vezes sentindo a verdade do que Nélida
disse em nossa entrevista, 'A memória é um milagre', quando encontrávamos fotos dos lugares que conhecíamos intimamente antes mesmo de serem construídos, e depoimentos que pareciam ter sido destinados a integrarem este documentário. Que tenham sobrevivido na lembrança de uma senhora de 102 anos, Zeny, ou nos álbuns de fotos delicadamente organizados pela irmã Theresinha Barbosa, nos víamos arrebatados por um sentimento de sorte e de consonância com algo que atravessava o tempo, uma história que, efetivamente, começa no dia 15 de janeiro de 1923.
Eu me lembro de quando estávamos no Ensino Médio e o professor de literatura, nosso
querido Carlucho, passou o livro 'Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra' como leitura bimestral e ali o autor moçambicano Mia Couto escreveu 'o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós a casa mora'. A escola é um período particular para cada um, e para algumas pessoas ela pode ser apenas um obstáculo a ser superado, mas para nós representava uma espécie de lar. Eu terminei de ler esse livro na biblioteca Nélida Piñon, num recreio, e hoje também relaciono essa frase à trajetória de Nélida, uma mulher que dizia não querer passar muito tempo sob um mesmo teto, mas que fez da Espanha, do Brasil, do Santo Amaro, lugares que, verdadeiramente, a constituíam profundamente. Ela lhes reverenciava, transparecendo um sentimento nítido em tantas outras pessoas que conhecemos nessa jornada, perpassadas por um sentido de pertencimento em relação à escola enquanto um lugar fundacional, espaço de comunhão de vivências e aprendizados.
E, assim, com muito suor, fizemos este filme. Com uma equipe de cerca de 40 pessoas,
o apoio incondicional das irmãs e da Associação de ex-alunos, com um financiamento coletivo apoiado por 120 pessoas, e uma equipe de universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO. Evocando Mia Couto mais uma vez, fizemos assim, '(...) com base em momentos, em lembranças, porque esses episódios não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei a minha alma de futuro'. E assim fez uma centena de gerações, cujas histórias apresentamos a vocês agora, as lembranças de nosso eterno Santo Amaro, o 'colégio da memória'."
Exibido no auditório do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, no evento "Rastros da Memória", sessão seguida de debate com os professores e pesquisadores Rafael Mattoso (ex-professor de História do Colégio Santo Amaro e historiador), Karla Vasconcelos da Silva (diretora do Arquivo Nélida Piñon) e Elianne Ivo (professora de Montagem do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense).
Amaro: O Colégio da Memória
4.8 211/03/2023:
"E tu, Colégio, da memória nossa jamais te apagarás"
Documentário exibido dez dias após a data do Centenário de início das aulas do Colégio Santo Amaro, em 1° de março de 1923. Foram duas sessões lotadas de ex-alunos, professores, freiras, funcionários, familiares e equipe do filme, num cinema (o Estação NET Botafogo) no mesmo bairro onde ficava a escola, Botafogo.
Uma alegria sem fim, surgida da dor e saudade que o fechamento da escola trouxe, mas que finalmente pôde desaguar nessa singela despedida.
"Todo mundo dando adeus pro Colégio".
01/04/2023:
Exibido no auditório do antigo Colégio Santo Amaro, hoje o campus Botafogo da Universidade Veiga de Almeida. Na sequência, debate mediado por Maurício Fernandes, com a participação de Luiz Salgueiro, Mateus Rameh, Beatriz Pittas, Mariana Nunes, João Vitor Braga (coordenadores do projeto), Rafael Mattoso (pesquisador do filme) e Daniel Batista (produtor musical da trilha sonora).
27/05/2023:
Exibição no SESC Castanhal, no Pará, na programação do Olhar Film Festival.
07/08/2023:
Exibição para convidados no Cinema da Fundação (Museu do Homem do Nordeste), em Recife, Pernambuco, junto com o curta "Lá e de Volta Outra Vez". Na sequência, debate com Mateus Rameh e Marília Rameh.
09/08/2023:
Exibição na Academia Santa Gertrudes para as turmas do Ensino Médio (essa foi
a primeira escola no Brasil da Congregação das Irmãs Beneditinas de Tutzing). Olinda, Pernambuco.
A Bela Palomera
3.5 2A farsa delineia contornos épicos e místicos sobre a Paraty do fim do século XIX, a Paraty de Ruy Guerra, os sonhos da república que começava, o espírito nacional encrustado na hipocrisia contumaz de Dom Orestes, o desiludido esperançoso.
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 264 Assista Agora"Um lixo sem limites, senhoras e senhores".
Que coletânea de grandes frases e momentos de uma irreverência cirúrgica no seu próprio tempo e pra posteridade...
A dupla de narradores-locutores tem uma presença tão forte no filme que chegam a compor um trio de protagonistas junto com o Luz, engendrados numa dinâmica que faz de tudo pretexto pro gozo, pra brincadeira, pra jogar tudo pelos ares e explodir o terceiro "imundo" (como foi lido antes da sessão). Mas qualquer brincadeira que se testemunha aqui é feita também com muita seriedade, no rigor de fazer sem regras, "um lixo sem limites". Pra ficar só no exemplo dos narradores, foram dois os momentos que me chamaram atenção nessa revisão, pra além do constante bate-voltra entre eles.
1) Quando um personagem sai do quadro com um rádio no braço e, ao mesmo tempo, deixamos de ouvir o som da narração, no meio de uma frase cujo raciocínio estávamos acompanhando durante a cena toda.
2) Quando Luz e Janete Jane estão no carro e o narrador o interpela: "Luz Vermelha, qual é o seu jogo, pistoleiro mascarado?", ao que o personagem responde "Aí está, tenho jogo nenhum".
Fora ambos os momentos, salvo alguma outra exceção que eu não lembrado, a impressão que temos é de que a narração é, a princípio, sempre extra-diegética. Porém, pontualmente nesses 2 exemplos, ela se insinua no ambiente da cena e quebra essa possível regra que parecia ter ficado estabelecida antes (e se é assim até no detalhe de certos momentos, macroscopicamente, no escopo geral do filme, isso fica ainda mais nítido). Na verdade, a constância, o nível de detalhamento, de liberdade e de insolência dessa narração nos fazem senti-la com uma proximidade quase fronteiriça de algumas cenas, sem se colocar num lugar isento, meramente contextual, e nem exatamente íntimo, pessoal ou sentimentalista (talvez apenas quando cede lugar ao bandido e olhe lá). A intimidade aqui diz respeito mais a um espírito que permeia absolutamente tudo no rastro de poluição que Luz deixa (ou melhor, sublinha) na metrópole. Um espírito que tudo congrega e tudo viola, na verve de uma irreverência criadora, fundacional, de uma postura e visão cinematográficas irrefreáveis em seu caráter moderno, respondendo frontalmente ao seu momento histórico.
Escreve Luz Vermelha, resoluta, direta e tranquilamente: se algo ficar no caminho,
"Atrawessarei vossas cabeças".
Inferno
4.2 57"Os demônios perseguem os poetas"
Isso é uma descrição da ação, que vem no intertítulo, não é uma fala, mas achei forte em meio ao contexto do filme.
Certamente a trilha ruidosa e nauseante do Ruy Gardnier (feita especialmente pra essa sessão) evidencia ainda mais um caráter de perturbação que permeia os ambientes e a jornada através do inferno, compondo-o como um verdadeiro domínio do horror, pra além de qualquer falta de disposição do olhar contemporâneo pras imagens dos primeiros filmes e os primeiros efeitos do cinema. Pelo contrário, eles são ainda impressionantes e a força maior do filme, já que o desenrolar dele reside justamente no efeito visual que as horrendas paisagens infernais podem proporcionar na tela, mais do que no desenvolvimento narrativo propriamente dito de Dante.
O plano final é especialmente épico nesse sentido, com a silhueta dos dois personagens e da saída da caverna a mostrar o fim daquela jornada: sem que saiamos com eles de volta para o mundo, o peso das catacumbas permanece, não sendo possível retornar a uma normalidade completa depois de tamanha perdição testemunhada. E mais, uma perdição que só poderia ser vista de tal forma, ainda que guarde cenas inteiras essencialmente teatrais, pela câmera cinematográfica na abertura luminosa (da lente e da caverna). Num salto, vamos da saída da caverna à imortalização de Dante em monumento. Num instante, temos de relance uma última consagração monumental, num retalho documental que também tem a possibilidade de ser integrado ao filme pela ampliação do espaço cênico para além dos limites do palco, juntando diferentes localidades justamente através da arte que pode tomar as imagens do mundo propriamente dito. Um fim apropriado para concluir uma história já consagrada, de modo a não passar despercebido que, dessa vez, a essa altura da História, ela nos chega pela tela do cinema.
Psicose
3.1 467 Assista AgoraInjustamente massacrado. Não é espetacular, mas principalmente nos momentos mais inspirados, na fotografia e nas atuações (especialmente do Vince Vaughn e do William H. Macy) consegue criar uma atmosfera bastante inquietante e sombria. Ele não parece querer se igualar ao original nem superá-lo, pelo contrário, os momentos em que tenta fazer algo totalmente próprio e novo parecem mal enxertados e (novamente) jogam pra baixo a força que vinha sendo construída. Me refiro aos planos aleatórios nas cenas de assassinato, que ao mesmo tempo nos deslocalizam (isso num filme que não pede essa disruptividade, que pela própria natureza do seu desenrolar já gera dúvidas e ambiguidades suficientemente potentes) e relembram que estamos vendo outra coisa, algo impuro, que não é exatamente nosso bom e velho conhecido "Psicose". Esses e outros momentos fazem o filme oscilar entre a caricatura involuntária, a invenção desnecessária e a tensão sólida e genuína, que é particular na medida em que se deixa fluir como se propõe a ser, diferente de quando tenta explicitar sua autoconsciência, como deixam transparecer os cacoetes de Marion em seu olhar, por exemplo, e um ou outro cacoete de Norman. É como se eles comentassem a cena que já conhecemos enquanto a vivem - enfatizando um ou outro gesto que já é forte por si só - ao invés de simplesmente vivê-la e nos deixar observá-la "como uma de suas aves embalsamadas".
O Segredo das Asas
3.2 1Link para ver: https://www.youtube.com/watch?v=ZPtAUTmudUw
Nós que nos Amávamos Tanto
4.4 79O cinema moderno em "Nós que nos Amávamos Tanto": do vigor experimentalista cômico à desilusão dramática.
Análise fílmica de "Nós que nos Amávamos Tanto" - 2° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1H_GUJoyNiBlhmHz6xpaHpcF4ej5ntAna/view?usp=sharing
(3 páginas, com spoilers)
A Queda da Casa de Usher
3.7 55Análise fílmica de "A Queda da Casa de Usher" - 1° Trabalho da disciplina de História do Cinema Mundial (2020.1), ministrada pelo professor Reinaldo Cardenuto (Universidade Federal Fluminense - UFF): https://drive.google.com/file/d/1TO8hW4A4eCK7eIxB5k4vLKw_HgEDuU3v/view?usp=sharing
(3 páginas, com spoilers)
Soberba
3.8 75 Assista AgoraO que mais me chamou atenção na montagem de Soberba foi o uso de “fade to black” para os momentos entre os quais um tempo considerável teria decorrido. Não à toa é um recurso que apenas aparece após 25 minutos de filme, ou seja, durante todo o primeiro ato, justamente porque uma montagem que pretende ser narrativa não colocaria uma “pausa” no meio de seu esforço de construir uma apresentação dos personagens e de suas relações. Isso comprometeria a sensação de continuidade, de causalidade entre cada ação que o narrador primeiro pontua para depois silenciar-se e nos deixar ver qual consequência terá o que comentou. Então, é apenas depois de estarmos situados na trama (já sabendo que George se interessou por Lucy, que a paixão de sua mãe Isabel por Eugene não passou e que sua tia Fanny também continua interessada pelo inventor) que esse recurso entra como uma solução proveitosa para nos indicar que podemos respirar e nos preparar para o próximo pedaço de história que irá se suceder. (...)
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Auto de Resistência
4.5 26Auto de Resistência é um filme forte e, no que se refere à montagem, me chama atenção o modo como ele potencializa nossa empatia pelas personagens, principalmente pelas mães. Naturalmente, eu já tenderia a tomar o lado delas mesmo se o documentário fizesse um esforço de assumir uma postura mais “neutra”, mas o fato é que, principalmente nas cenas dentro do tribunal, enquanto os policiais falam, os cortes para a reação das mães são cirúrgicos para materializar sua dor diante de nós e fazer com que a sintamos também.
Além disso, é potente também o modo como, por vezes, as gravações das situações de violência são deixadas completas na tela. Ao invés de picotar tais filmagens para dinamizar o ritmo ou amenizar nossa tensão, o filme deixa-as por inteiro diante de nós, aproximando-nos da posição em que estavam as pessoas que as gravaram, imergindo-nos desconfortavelmente nas situações, que são deixadas lá, cruas, não para chocar de modo sensacionalista, mas para deixar transparecer sua gravidade. Nesse sentido, isso se distancia de uma abordagem midiática do material, que se preocuparia em “avançar” para as partes mais interessantes, para não perder o espectador, não deixá-lo entediado quando aparentemente nada estivesse acontecendo. É um documentário que busca uma sensibilização menos imediata de quem assiste, que deixa transparecer a densidade e austeridade de seu assunto e das situações, que está interessada na humanidade dentro dessas tragédias, fazendo-nos sentir sua extrema e extenuante complexidade.
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Lado a Lado
4.1 60É interessante notar como o filme “Side by Side” alterna as visões e opiniões acerca da questão película x digital, de modo a colocá-las, literalmente, lado a lado, deixando espaço para ambos os posicionamentos explicarem seus motivos sem impor ao espectador um juízo definitivo sobre o que deve pensar. Esse choque de visões também proporciona uma experiência muito imersiva na medida em que, quando estamos por certo tempo engajados na linha de raciocínio de um grupo de entrevistados, quando parecemos começar a ser convencidos, vem do outro lado um argumento que também é compreensível. Isso faz com que nos interessemos pelas possibilidades do que vai ser dito, faz com que queiramos prestar atenção a fim de que tenhamos um entendimento mais amplo das questões apresentadas.
Em determinado momento, quando fala da etapa de tratamento de cor, o filme mostra uma colorista profissional mexendo no DaVinci e utilizando a função power window para alterar a cor das árvores no canto de um plano. Isso é algo que aprendi literalmente semana passada e me empolgou ver uma profissional fazendo algo que não está tão distante do nosso alcance no mesmo software. Me animou ver que algo que eu imaginava ser muito complexo e difícil, na verdade é mais simples e exatamente o que é usado em filmes que admiro. O fazer cinematográfico agora me parece de fato mais próximo, como eu sonhava há alguns anos, algo, inclusive, comentado pelo filme, ele diz que as pessoas poderão fazer seus filmes mais facilmente e com boas ferramentas. Pois bem, agora podemos.
-Breve comentário sobre o filme escrito para a disciplina de Montagem no período 2020.2 da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Bloco do Isolamento
4.5 1Link para assistir ao filme na mostra "Pernambuco é Meu Abismo" de 3 curtas de Daniel Barros (os outros são "Presente de Deus" e "Mais um Domingo").
www.youtube.com/watch?v=meGwrwavtnI&t=48s
1° curta na ordem do vídeo.
O Encouraçado Potemkin
4.2 342 Assista AgoraA expressividade desse filme é algo impressionante, principalmente com a montagem e a fotografia. Juntas, elas permitem que os planos transpareçam a emoção que pretendem, sem precisarem, de modo geral, colocar intertítulos o tempo todo dizendo qual a sensação em cena. O jogo de preparação e entrega que a montagem vai criando torna o filme muito imersivo e consegue até extrair emoção de objetos inanimados como os canhões filmados frontalmente, ameaçadores, prestes a atirar, ou as estátuas de leões que, mostradas rapidamente na tela, parecem assustadas com sua iminente destruição. Isso sem contar com o incrível uso das sombras, que evocam diferentes emoções (como luto, medo e glória) ao longo da história e aparecem precisamente em momentos de grande intensidade dramática, funcionando quase como marcadores dos pontos de virada e conferindo ao filme uma forte coesão narrativa.
Sim, tem uma romantização em torno do espírito da revolução, mas é bem menos manipulativo e pedagógico na forma com que transmite isso. É um filme extremamente envolvente e consegue passar um senso genuíno e singelo de grandiosidade e coletividade. Simplesmente foda.
Bancando o Águia
4.5 135 Assista AgoraComo é engenhoso o tal do Buster Keaton, viu. Toda a sequência dele sonhando e começando a entrar no filme é o ápice disso pra mim (além, é claro, das acrobacias perigosas que são de tirar o fôlego). Mas só a inventividade técnica da sequência no cinema já é potente o suficiente pra nos deixar impressionados e ansiosos pelo que mais pode vir. Ao usar a metalinguagem pra conectar o mundo dentro da tela com o fora dela, ele satiriza a natureza dessa forma de arte tão nova à época. O corte é usado ao mesmo tempo no filme que estamos vendo e no filme passando dentro dele, se auto evidenciando como uma descontinuidade, mas, ao mesmo tempo, borrando uma noção exata dela: a câmera permanece o tempo todo parada, longe da tela e no mesmo enquadramento e, quando protagonista entra no filme, entendemos que provavelmente aquele cenário interno à tela é do próprio set onde está sendo gravado o cinema, fingindo ser uma projeção. Porém, logo as ambientações ali mostradas passam a ser externas e não poderiam ser construídas no set, ou seja, elas foram projetadas ali de uma gravação feita antes. É necessário um corte para unificar a sala falsa e o filme projetado, mas essa mudança é imperceptível e, assim, a mágica do cinema acontece. Sem contar que as posições de Keaton com o passar dos cortes são perfeitamente continuadas, configurando uma brincadeira muito bem orquestrada com a natureza manipulável do material cinematográfico.
Rica e Pobre
4.1 1É interessante como o filme vai criando um senso lúdico através de um engessamento que aos poucos se transforma em algo de fato fantástico, principalmente no terceiro ato, criando uma mistura curiosa de gêneros como a comédia, o drama e a fantasia e transitando bem entre eles. A inocência travessa da protagonista e suas consequências são um meio para a retomada de valores familiares tradicionais:
ainda que o desenrolar da trama culmine nos pais entendendo que não precisam ser tão duros com a filha, isso acontece para mostrar um ideal de família, uma que consegue se unir no final, de forma romântica e esperançosa. É uma narrativa clássica como muitas outras que crê numa família inabalável e inseparável e idealiza isso no cinema com uma conclusão redentora,
É interessante como ele apreende e representa, na sua linguagem, essa moral rígida que define princípios e valores absolutos. Vemos isso através de frases como as da aula ("a veracidade é o coração da moralidade" e "a procrastinação é ladra do tempo") e também de uma distinção bem clara entre ações e personagens do bem e outros do mal.
No delírio de Gwen, por exemplo, existe a terra das crianças solitárias e a terra das crianças felizes, mas não existe um intermediário.
Assim, o filme salta aos olhos e nos envolve com os cenários imaginativos do final, os intertítulos que fazem parecer que estamos lendo um livro pop up, a atuação expressiva de Mary Pickford, a montagem inventiva (como na cena em que o pai pensa em se matar, por exemplo, em que sua imaginação se materializa com uma sobreposição) e o uso inteligente das cores para evocar imediatamente algumas sensações. Tem um começo um tanto mecânico e ilustrativo, como se, ao apresentar os personagens, estivesse colocando peças no tabuleiro, sem conseguir interrelacionar muito bem essas apresentações, mas isso é algo extremamente pontual. No fim das contas, é uma história cativante e divertida. Não é a mais marcante do mundo mas me envolveu bastante com a estética imaginosa, digna do modo de uma criança de ver o mundo ao seu redor.
"Você está no jardim das crianças solitárias, na floresta dos sonhos. Aqui, as coisas aparecem como elas realmente são"
Sinfonia da Necrópole
3.5 109A primeira cena me fez pensar que o tom do filme seria bem mais soturno, mas isso logo é desconstruído e, uma vez que percebi que se tratava de outra coisa, fiquei curioso para saber como Juliana Rojas iria conciliar uma abordagem mais agradável com um cenário do qual se espera o sinistro. Para minha surpresa, ela faz isso muito bem.
Para concretizar isso, ela aposta num visual mais limpo, menos cru do que um cemitério sugeriria, uma fotografia digital bastante nítida e definida que busca não a brutalidade da morte, mas sim que possíveis relações se dão entre os que a rodeiam. É uma fotografia que eu gosto muito e parece o início do estilo que a diretora e Marco Dutra buscariam depois em “As Boas Maneiras”. Além disso, principalmente, existe uma certa infantilidade burlesca no modo como as dinâmicas do filme são encenadas, não só os números musicais, isso passa para as cenas num geral, o que confere leveza à trama. É quase como se fosse um conto infantil para crianças dormirem, ou mesmo uma peça quase infantil, onde o cemitério é como o palco onde se desenrola a ação e os personagens entram e são apresentados de maneira bastante marcada. Mas não chega a ser totalmente isso por causa das partes mais “adultas” que a trama traz, como o enredo administrativo ou, mais especificamente,
o sexo no carro funerário.
(como a cena em que Deodato toca órgão depois da partida de Jaqueline)
A única coisa que me incomodou foram as atuações de Eduardo Gomes (Deodato) e Luciana Paes (Jaqueline) que, no intuito de conferir leveza às cenas, variam pouco em entonação e expressões, o que, embora contribua proveitosamente para uma certa teatralidade, torna a relação entre eles menos envolvente e seu final menos impactante. Essas repetições dão menos expressividade a eles, o que, num filme com uma proposta única como essa, soa não tão bem trabalhado. Porém, como o filme não tem grandes pretensões de profundidade e está mais interessado em propiciar uma experiência inusitada e curiosa, isso não chega a ser um grande problema.
Assim, a história de Sinfonia da Necrópole é quase um pretexto para as situações, o que funciona bem porque ela não é deixada de lado, mas sim usada para possibilitar e amparar uma comédia romântica musical passada num cemitério. É um filme muito divertido.
Trabalhar Cansa
3.6 208A tensão anda à beira.
Segundo filme de Juliana Rojas e Marco Dutra que assisto e é impressionante a sensibilidade deles para o terror e a dosagem de suas particularidades em cada filme.
Aqui, esse clima é insinuado a partir de um anestesiamento na encenação que reflete a insensibilidade (muitas vezes inconsciente) das relações de dominação e opressão entre empregador e empregado, mãe e filha, marido e mulher. Sem pensar antes de falar, os personagens estão sempre soltando falas que não percebem conter algum tipo de ofensa, que podem até ter a intenção de serem amigáveis, mas que poderiam muito bem não ser ditas. A câmera sempre fazendo movimentos lentos, a ausência de trilha sonora, a fotografia com seus tons pouco vibrantes, muitas vezes filmando os personagens de costas, tudo comunica uma frieza apática, a qual revela um estado subjacente e normalizado de conflito social que é insustentável e que nem os próprios personagens aguentam, mas têm de permanecer nele para sobreviver. Consequentemente, cansados e desesperados, não conseguem ter um tato afável em suas interações.
Nesse sentido, a cena final é perfeita, a melhor dirigida do filme para mim: o mercado de trabalho exaure e, para manter-nos à sua disposição, inventa técnicas motivacionais que nos deixam numa eterna esperança ilusória. Essa não é, necessariamente, a intenção do palestrante nem de quem o colocou ali, mas é o que de fato acontece: na prática, aquelas pessoas não importam e a guerra entre elas é benéfica para quem não tem de passar por subjugações humilhantes por terem uma condição financeira menor. A fala “a gente joga o perfil no banco de dados e a partir daí todas as empresas podem acessar” é representada na prática, com o primeiro enquadramento da cena final mostrando inúmeros homens sem rosto (por estarem de costas) vendo uma palestra sobre como lidar com o mercado de trabalho. Eles não são mais pessoas possíveis, são números que precisam acreditar que têm agência e que podem construir seu caminho para o sucesso libertando seu lado primitivo, mas, na verdade, continuarão presos nessa roda extenuante, num ciclo cansativo que pode trazer qualquer um à beira da loucura. É o processo de desumanização, que é tema do filme, sendo potencializado pela fotografia e anunciando o desfecho que aquela cena teria: os trabalhadores sendo encorajados a se bestializarem, a deixarem para trás seu lado humano. É tão ridículo quanto atual, não sendo raro encontrar as mesmíssimas cenas com alguns coachs na internet…
É nesse contexto que os elementos que se aproximam do terror funcionam tão bem: essa ideia de aprisionamento e de algo subjacente que está prestes a estourar é trabalhada a partir da degradação do espaço físico do trabalho, trazendo uma estranheza que nos provoca a pensar se ela descambará assumidamente para o sobrenatural, mas isso nunca acontece, o que pode ser frustrante e inconclusivo para alguns. Para mim, no entanto, só reforça esse estado de um limiar que precisa ser rompido mas que é segurado por quem detêm o poder de verdade (que, aliás, nunca aparece, está sempre distante). Os animais empalhados que aparecem no museu são como os próprios trabalhadores, mortificados em sua própria pele, cansados e aconselhados a permanecerem inertes, sendo colocados por outros em seus lugares para serem observados e vigiados por aqueles que os posicionaram ali. As baratas mortas, os vermes entupindo o encanamento debaixo do chão e o lobisomem escondido na parede não ganham nenhuma revelação prática sobre seu significado, não é, por exemplo, alguém tentando sabotar aquele lugar, mas sim uma representação que tem um efeito mais sensorial e metafórico. Essas são heranças carregadas pelo lugar que já estavam ali antes mesmo dos personagens chegarem e que, gradualmente, corroem sua paz. Da mesma forma, as insensibilidades das relações de dominação são passadas de geração a geração, abrigadas e reproduzidas em cada pessoa que ocupe sua posição nas hierarquias sociais. É interessante como o filme consegue abordar isso da maneira mais desesperada e consequencial do que o caminho mais fácil indicaria. Os exploradores não são vilanizados, os explorados não são passivamente vitimizados, nem vice-versa. No ato de colocar rédeas uns sobre os outros, essas classes vão entrando em choque e o filme torna-se muito mais justo com suas representações ao, por exemplo, fazer o funcionário demitido voltar para causar aflição à sua antiga chefe.
As únicas coisas que fizeram o filme não ser perfeito para mim foram algumas atuações, como a da avó, diálogos e cenas que são muito diretos e perdem a sutileza, o que, essencialmente, não é um problema, mas num filme que trabalha o processo de questões implícitas no cotidiano virem à tona, esses elementos tornam-se um pouco apressados e soltos na trama. Mas isso é algo muito pontual, porque, na maioria das vezes, esses diálogos demonstram uma normalização dissimulada que é justamente o que mantém a desigualdade e o racismo velados.
Ao fim, Juliana Rojas e Marco Dutra, com a linguagem que adotam para o filme, nos fazem sentir efetivamente que “trabalhar cansa”, trazendo uma perspectiva de como a manutenção das estruturas em si é trabalhosa e como há um sentido de trabalho na própria convivência, em que há a necessidade de se fazer aquilo que muitas vezes não se quer para haver a manutenção de uma normalidade aparente, o que, frequentemente, é o que leva essas relações à derrocada, visto que precisam de fôlego para respirar e a resposta não está em fazer tudo o que convier, isso leva a um mimo individualista que também é danoso para o convívio. A resposta se equilibra entre o pessoal e o coletivo, mas esse não é um filme interessado em respostas, mas sim em absurdos.
Assim, apesar de seu ritmo lento, Trabalhar Cansa me manteve intrigado do início ao fim pela atmosfera de estranheza e hostilidade que jazia debaixo da banalidade entorpecida, uma hostilidade que é bastante evidente, mas que para os personagens, por estarem mergulhados nela, torna-se comum. Presenciamos os limites sendo levados a quase romper e a tensão de andar à beira abre caminho para mais possibilidades do que se houvesse respostas definitivas porque, nessa confusão, o mistério do que virá depois é assustador.
Kundun
3.4 52Scorsese não dá uma fora né... Pelo menos não nos filmes que vi até agora. E esse, particularmente, me cativou bastante.
Ele usa muito bem a movimentação da câmera, a montagem e a trilha sonora para criar um senso de continuidade e constância que reflete a perenidade da figura do Dalai-lama. Isso gera um estado meditativo que nos imerge naquele meio religioso e em sua filosofia de não violência: com o uso das transições suaves entre os planos, a trilha sonora constante praticamente do início ao fim e a câmera sempre buscando o movimento da cena, cria-se uma unidade muito forte que preza pela serenidade, nos conectando ao protagonista de maneira contagiante e inspiradora. É como se esse ideal pacifista se traduzisse nos elementos cinematográficos e eles também almejassem-no, colocando-se numa busca constante e incansável para alcançá-lo. É interessante como Scorsese consegue retratar respeitosamente essa cultura, de modo que não parece um olhar que estranha suas manifestações, mas sim as integra, estando quase intrínseco a elas, o que, consequentemente, faz com que fiquemos muito mais envolvidos com a trama.
É como se o filme traduzisse em suas sensações a própria materialidade da cultura tibetana e da filosofia budista: a fluidez da câmera como a do movimento da água e da fumaça que sai de suas velas, as transições suaves entre os planos como os tecidos que recaem de forma delicada sobre seus corpos, toda a riqueza de cores, cenários e figurinos busca a consonância com a existência e uma compaixão por todas as coisas. Essa essência é muito bem captada e transmitida pelo filme.
No entanto, apesar dessa condução agradável, a constância dos elementos dilui o impacto de algumas cenas e sequências chave, como a coroação do protagonista. A escolha por essa linguagem torna mais difícil fazer momentos se tornarem mais climácticos, já que grandes oscilações fugiriam da abordagem que o filme propõe. Isso fez, então, com que eu não percebesse que ele se encaminhava para o fim e criou uma expectativa em mim que não foi plenamente cumprida, fazendo o final soar ligeiramente súbito.
Por outro lado, isso demonstra uma consciência da história de sua efemeridade e renovação: os momentos virão e passarão, assim como as mandalas feitas pelos monges, subitamente desfeitas, num ato de desapego ao instante e aceitação do que é passageiro. É nessa condição que vive o Dalai-lama, nessa sabedoria paciente e compassiva que não se apega tanto aos momentos em si, mas sim na possibilidade de suas reverberações serem bondosas e amenizarem o sofrimento dos seres. Kundun sabe que, quando ele morrer, haverá outro Dalai-lama, um outro depois desse e assim sucessivamente. E cada um será coroado e um dia também, repentinamente, descansará. Em seu tempo, humildemente, cuidam dos seus e padecem compassivamente de suas dores também.
" - A não violência leva muito tempo.
- Temos esse tempo, Sua Santidade?
- Até hoje, não sei. "
Incêndios
4.5 1,9K Assista AgoraO filme utiliza muito bem uma estrutura de capítulos para, com sua montagem, explorar o tema da busca às raízes e da ancestralidade. Nesse processo, as linhas entre o passado e o presente se misturam e se amalgamam, o que torna a experiência instigante e envolvente.
Por exemplo, quando Nawal é presa, a prisão é mostrada pelo lado de fora e pensamos que vamos acompanhar seus momentos ali logo na sequência. No entanto, quando corta para dentro da prisão, já estamos acompanhando a filha dela visitando o lugar.
Há também uma austeridade trágica que permeia a trama e vai gradativamente aumentando e se transformando: no começo, a tensão é palpável pelas mágoas da relação complicada entre a mãe e os filhos. Depois, a visão deles vai se transformando, tornando-se mais compreensiva, e essa austeridade passa a se dar nos próprios acontecimentos trágicos e brutais da narrativa. Essa característica da história vai ganhando contornos melancólicos, dada a violência e a destruição que assolam os personagens e que são brilhantemente interpretadas por seus atores. A câmera parece respeitar a dor profunda que, por exemplo, Nawal sente ao revisitar a árvore onde se encontrava com seu "amante". Existe ali uma compaixão pelo que poderia ter sido que é arrasadora diante do que de fato ocorreu e da necessidade que ela tem de se embrutecer para seguir em frente e permanecer viva.
Villeneuve conduz muito bem essa dinâmica almagamática entre passado e presente, entre raízes e frutos, que é perfeita para trazer à tona a depravação causada pela guerra: essas crianças são frutos dela e de seus horrores. Uma guerra religiosa que não poderia ser melhor sintetizada em suas deturpações morais e sociais
do que num violento estupro incestuoso. A religião, que deveria ser um instrumento promotor da paz e de uma condição fraterna de vida, é usada para alastrar a destruição. Essa contradição é colocada imageticamente de maneira muito impactante numa imagem que permanece na minha cabeça até agora: cristãos atirando com armas cobertas por figuras como Jesus e Maria, como se tivessem a benção de seu manto protetor respaldando tais atrocidades.
É interessante também como o filme consegue fazer essa contraposição entre vida e morte em elementos como a água e o fogo. Ambos permeiam a história dos protagonistas em momentos-chave dela: Nawal presencia o incêndio do ônibus e vê as cinzas do orfanato. Ou seja, é como se o fogo dos Incêndios que dão nome ao filme e devasta a vida por onde passa fosse a angústia que esmorece essa mulher por dentro. Jeanne e Simon, por outro lado, são constantemente associados à água. No seu nascimento, seriam jogados num rio, atirados para a morte, mas escapam e isso acaba não acontecendo. Então, é curioso como a narrativa subverte esse destino trágico e torna a água um lugar de lucidez para eles, um lugar de suspensão em que espairecem e se conectam a seu íntimo. O primeiro flashback do filme começa com Jeanne nadando na piscina, flutuando em suspensão. Ou seja, o processo de rememorar, que acaba por se tornar o mote do filme, tem seu início a partir desse contato elementar com o íntimo, que é alcançado pela suspensão momentânea do caos ao redor. O mesmo acontece quando eles pulam na piscina depois de descobrirem que são os gêmeos nascidos na prisão: eles vão ali para absorver e refletir sobre essa descoberta. Ou seja, a água é o lugar que os areja e revigora, promovendo esse encontro consigo mesmos, para que possam prosseguir com sua jornada. Aliás, o filme coloca isso de forma muito sutil e singela: quando a enfermeira fala que "Nawal deu à luz gêmeos na prisão" corta para ambos pulando na piscina em posição fetal com uma luz forte atrás deles, numa representação visual da vida que lhes foi dada pela mãe, endossando a ideia da água como o lugar de reconectar-se à origem, ao princípio de suas existências, numa imagem primal. Eles apenas podem ter a vida que têm e procurar esse descanso na água porque sua mãe teve uma vida duríssima e sobreviveu à destruição que a cercava. É nessa compreensão que reside a compaixão dos gêmeos por ela no final. Eles finalmente conhecem-na e, assim, conhecem a si mesmos também.
"Incêndios", dessa maneira, equilibra muito bem forma e conteúdo, conseguindo trazer densidade à sua substância e nos emocionar com sua potência dramática, através de uma linguagem contida e parcimoniosa que revela as dores subjacentes que endureciam os personagens. É um filme muito marcante, algo que, a essa altura, certamente já se provou característico de Denis Villeneuve.
"Meus amores, onde começa sua história?"
Se Eu Fosse Você
3.1 861Uma das coisas mais interessantes de Se eu fosse você, para mim, é como ele usa bem uma estrutura espelhada. Ao vermos nossa imagem refletida, vemos o nosso inverso e é essa ideia de inversões que o filme trabalha tão bem. Ela transparece em diversos elementos, o que faz com que a premissa seja explorada para além de piadas óbvias: quando Cláudio e Helena falam juntos, a câmera muda de eixo e assume a "visão" do espelho, como se, daquele momento em diante, fôssemos entrar nessa absurda realidade invertida, em que um vai tomar o lugar do outro. Todo o início do filme se pauta numa preparação em que somos apresentados à rotina daquela família para depois vermos como os personagens vão reagir a essas ações na situação da troca de corpos. Isso vai sempre impulsionando a trama e oferecendo muito fôlego a ela, tendo em vista o constrangimento inerente a essa premissa: queremos ver como esse espelhamento vai se dar e de que modo os personagens vão sair dos problemas que se apresentarem, os quais causam uma sensação de vergonha alheia que fisga nosso interesse por querermos saber como ela vai se resolver. Isso faz com que a encenação um tanto caricata não seja tão incômoda quanto em outros filmes de comédia, já que ela soa apropriada para uma história tão absurda.
Dentro disso, o filme se equilibra bem na dinâmica entre os protagonistas. Intercalando as cenas dos dois de maneira complementar, a montagem estabelece não só um espelhamento, não só um paralelismo, mas também uma influência mútua entre as situações, tanto sensorialmente quanto objetivamente no universo do filme quando os personagens se ligam perguntando o que devem fazer. É quase um jogo de pingue pongue entre essas situações, em que a maneira como Cláudio lida com um problema é rebatida e carregada para a cena de Helena, numa tensão constante, até que consigam sentar juntos para debater a situação. É nessa necessidade de atenção constante ao próprio comportamento que o filme encontra seu humor e nos conecta aos personagens: uma rebatida perdida, um passo fora dessa linha tênue poderia acarretar perdas irreparáveis na agência e no cotidiano deles.
Encontrando o tom dessa dinâmica, o filme desenvolve bem as questões de gênero que a premissa intui. É de se esperar que fossem aparecer situações como uma mulher fazendo xixi no corpo de um homem ou um homem se acostumando a usar salto alto, mas isso não é um problema, porque, quando elas acontecem, surgem de modo orgânico na trama e conseguem ser engraçadas, o que é mérito tanto da direção de Daniel Filho quanto das atuações. Essas situações pegam os estereótipos que Cláudio e Helena são de seus gêneros e constroem um caminho mais compreensivo e solidário para a relação dos dois. Eu, particularmente, não esperava encontrar em um filme como esse uma proposta de se problematizar, ainda que de maneira não tão contundente, o machismo. Ainda mais em 2006, quando essa ainda não era uma questão tão debatida quanto hoje Pressuposições como essa talvez não sejam muito produtivas... No entanto,
a conclusão aponta para uma definição de "sensibilidade feminina" que, ao meu ver, é discutível, na medida em que a composição do que é masculino e do que é feminino é mais turva do que isso faz parecer. Essa "sensibilidade feminina" é bem intencionada quando dita. É uma expressão quer reconhecer o valor da mulher, mas ainda remete a uma manutenção da visão do feminino como símbolo da delicadeza, como se sua capacidade de atuação dissesse respeito essencialmente a isso, algo que, desde então, tem sido mais desconstruído.
Uma pequena coisa que me incomodou é que, logo depois da troca, as atuações de Tony Ramos e Glória Pires me pareceram um tanto contraintuitivas. No início, quando estão se acostumando aos corpos um do outro, eles parecem manter seus trejeitos originais mesmo interpretando outras pessoas. Cláudio é expansivo, fala muito e fala rápido, enquanto Helena é mais introspectiva e séria por causa de sua frustração com o casamento. Quando Tony Ramos está interpretando Helena, ele continua falando rápido e muito, só que com a voz mais fina e os movimentos mais soltos (mas ainda expansivos). Glória Pires, nesse momento, fala de forma mais bruta, mas ainda com poucas palavras e séria, o que não faz sentido já que ela estava interpretando Cláudio, que usa seu senso de humor para esconder as dificuldades pelas quais está passando. Depois, isso melhora, mas num primeiro momento me causou estranheza porque achei que, inicialmente, os dois se comportariam exatamente do jeito como são mas num corpo diferente, para só então irem se acostumando ao novo corpo. Imagino que isso tenha acontecido porque os dois carregavam um pouco de si para cada um dos personagens e não conseguiram se desvencilhar completamente das próprias características ao assumir as do outro. Se isso não melhorasse, o filme certamente desmoronaria, mas, felizmente, os dois acertam o tom e a jornada fica cada vez mais cativante e divertida.
No final,
apesar da apresentação da campanha ter um desfecho um tanto brega com a fala "Não captura a alma feminina, vai mais além. Entende o homem que há em toda mulher e a mulher que existe em todo homem" e apesar da resolução do coral parecer um pouco fácil demais,
Há mais utilidade em dar ouvidos a ambos, de forma equilibrada, do que em tomar posições absolutas e unilaterais. No fim, cada um de nós é um estranho ímpar e o ato de buscar compreender o que se passa com o outro, não importando quem seja, e a desconstrução dessa vaidade masculina contraproducente faz com que possamos vislumbrar por uma fresta um futuro frutífero e um pouco mais aprazível.