Para se fazer um bom filme, é preciso que haja um bom roteiro, isso é óbvio. Ter apenas uma boa ideia não basta. No entanto, a falta de bons roteiros é, para usar uma expressão do momento, pandêmica atualmente, mesmo que ideias “geniais” apareçam todo o tempo. Esse problema é mundial, e apenas alguns cineastas conseguem fugir dele através de seus talentos acima da média. O restante bate cabeça e tenta ao acaso ver seus filmes com boas ideias fazerem sucesso, independentemente da sua incapacidade como realizadores audiovisuais. Bem, então é preciso avisar para esses que o acaso não ajudará quando suas obras possuem um bando de referências porcas, cenas de ação patéticas e diálogos rasos, como na nova produção dirigida por Olivier Megaton, “The Last Days of American Crime”, lançada na Netflix.
A história do longa é sobre o ladrão de bancos Graham Bricke (Édgar Ramírez) que acaba envolvido em um bilionário roubo à Casa da Moeda dos EUA com o casal formado por Shelby Dupree (Anna Brewster) e Kevin Cash (Michael Pitt). Até aí nada de mais, já que são inúmeros os filmes sobre assaltos produzidos durante o ano. Contudo, o que torna a trama de “The Last Days of American Crime” diferente das outras é que o roubo planejado por Brick será o último antes que o governo comece a usar uma espécie de sinal que afeta o cérebro daqueles que tentem cometer algum crime. Então, o plano é roubar mais de 1 bilhão de dólares e depois fugir para o Canadá.
De fato, se trata de uma boa ideia, mas ela não veio do roteirista do filme Karl Gajdusek, e sim do quadrinista Rick Remender, que teve sua obra homônima adaptada. O que Gajdusek fez, provavelmente, foi destruir, com seu texto confuso, afetado e vazio, o que de melhor há nos quadrinhos. Para completar, a direção quase amadora de Megaton acaba colocando uma pá de cal nas pretensões da Netflix em ter mais um sucesso de qualidade em seu catálogo. Exemplificando sem muitas delongas: basta dizer que não há um único diálogo durante as mais de duas horas de exibição que não seja expositivo ou patético.
Os personagens, em meio a isso, são pobremente construídos, como é o caso do policial William Sawyer, interpretado pelo bom Sharlto Copley. Suas motivações não são demonstradas; a única coisa que o espectador fica sabendo é que ele tem prazer em ser policial. Seu caminho se cruza com os dos protagonistas apenas para ser mais um mísero obstáculo a ser superado. Um desperdício de ator.
Nem mesmo o protagonista gera qualquer conexão com o espectador, e olha que Ramírez goza de carisma e de talento para a atuação. Seu personagem é tão mal construído pelo roteiro que não dá para esperar que ele gere cumplicidade. É apenas um bandido e assassino sanguinário. O romance dele com Dupree piora a situação por não ter emoção ou química. Contudo, o pior deles é Cash, que foi escrito para ser um poço de referências, começando por Travis Bickle de “Taxi Driver” (sim! Há a cena do espelho) até Tony Montana de “Scarface” (mais uma vez: sim! Há a cena com a metralhadora, ele só não fala “say hello to my little friend”, mas aí seria demais). Com isso, a atuação de Pitt é prejudicada porque não pode ir além da gritaria e das frases de efeito; fazendo-o exagerar na dose de loucura em alguns momentos completamente irritantes.
O que poderia salvar essa pretensa peça cinematográfica e transformá-la em entretenimento puro seria a ação – como acontece com alguns blockbusters sucessos de bilheteria – só que ela é completamente prejudicada pelo estilo picotador de videoclipe de Megaton, que não deixa que as sequências sejam devidamente degustadas. Tudo é rápido e urgente. Além disso, ele se esforça tanto para conferir estilo à sua direção que a torna repetitivamente cafona, como em outros filmes de sua autoria. Talvez, sua veia autoral estivesse pulsando ao máximo, só que nela não passa qualquer sangue artístico, infelizmente.
Discussões sobre a vida das mulheres deveriam ser feitas pelas próprias mulheres, mas não é isso que acontece em uma sociedade dominada pela figura masculina que toma conta dos governos, das religiões e das famílias. O sofrimento do sexo feminino se intensifica de várias maneiras, principalmente quando a maternidade entra em foco, com o aborto como tema central. Todas essas questões são discutidas no filme “Devorar” de Carlo Mirabella-Davis, que segue a vida de Hunter (Haley Bennett), depois de casar-se com o rico Richie (Austin Stowell), passando também a conviver com o pai (David Rasche) e a mãe (Elizabeth Marvel) do rapaz, em uma bela casa. Com o marido sempre trabalhando e com as constantes intromissões dos sogros, Hunter se sente perdida no próprio casamente. Em decorrência disso, ela desenvolve uma inesperada vontade de engolir vários tipos de objetos.
A compulsão por engolir, para depois expurgar de forma dolorosa, é negação antecipada ao bebê que descobre estar esperando. Ela diz à psicóloga contratada pela família que o prazer vem ao sentir o gosto e a textura dos objetivos em sua boca antes de engoli-los, e não da ação de engolir. Aí surge o paralelo com o sexo feito de forma quase animal com o marido. Há o prazer do ato, mas não a vontade de engravidar. Agora seu corpo foi invadido por um “objeto estranho”, e não há a certeza se deve mantê-lo ou não. Essa dúvida é externada quando, ao decorar o quarto do bebê, ela deixa metade da janela de vidro coberta com uma película vermelha, enquanto a outra metade mostra a vida da floresta do ambiente externo. Vida e morte em plena disputa naquele espaço.
Bem, tudo piora quando Hunter descobre que o marido é um crápula abusador. Então, passar por uma gravidez indesejada e ainda de um homem desprezível é algo extremamente difícil. Sem ninguém para apoiá-la – mesmo casada, vivia solitária – terá mais um obstáculo para superar sozinha e depois esperar por algo melhor, que pode nunca vir. Como desgraça pouca é bobagem, ainda há traumas não superados do passado. Traumas esses que não serão comentados neste texto para evitar spoilers. O que pode ser dito é que Hunter possui, além da compulsão por engolir objetos, problemas psicológicos causados por atos graves cometidos por seu pai, e esses são de difícil resolução.
Para carregar toda essa complexidade que a trama apresenta, era preciso uma atriz competente, e o trabalho de Bennett merece ser reconhecido. A atriz cria uma mulher confusa com seus próprios atos. Sua voz gentil e condescendente esconde uma pessoa destruída, o que aflora com choros espontâneos e desesperados. Sua submissão vem através de sua linguagem corporal composta pela cabeça baixa e pelas costas levemente inclinadas. Os olhos marejados e as palavras que querem sair da boca, mas que ficam apenas nos balbucios, completam essa figura subjugada.
Claro, não é para menos, já que a pressão é enorme, e a direção de Mirabella-Davis destaca isso ao colocar a mulher sempre em posição de inferioridade, como nos planos que mostram seu marido em um local mais elevado. A cena em que ela trabalha em um jardim enquanto ele a vigia de uma janela superior é um exemplo. Há também o cerco feito pela família do rapaz, com a mãe, o pai e um segurança a rodeando. Então, mesmo em uma mansão exageradamente espaçosa, ela quase não consegue respirar ou pensar por si mesma. Hunter, ao contrário do que significa seu nome, será a caça em uma selva dominada por predadores irracionais. Infelizmente, essa é a situação de muitas mulheres no mundo real e dito civilizado.
O crítico Jean-Luc Godard, após escrever para a mítica Cahiers du Cinéma, decidiu fazer seus próprios filmes. Com os outros colegas (Agnès Varda, Claude Chabrol, François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette) fundou o movimento que marcou o cinema francês e o mundial: a Nouvelle Vague. Godard começou sua carreira cinematográfica com “Acossado”, de 1960 e não parou desde então. Mas, logo após a estreia com sucesso atrás das câmeras, ele começou uma parceria duradoura com Anna Karina – a musa da Nouvelle Vague – no fenomenal “Uma Mulher É Uma Mulher”, de 1961. A trama do longa é bem simples: Angela (Karina) quer ter um filho com o companheiro, Émile (Jean-Claude Brialy), com quem vive em Paris. O problema é que o rapaz diz a ela que é melhor esperarem. Não é a hora para ter um filho! Com a recusa, Angela vê no amigo Alfred (Jean-Paul Belmondo) – que é atraído por ela – o candidato para engravidá-la. O que a impede de consumar o ato é o amor que sente por Émile. O triangulo amoroso que é formado a partir daí poderia ser bem banal se estivesse nas mãos de outro cineasta. Godard, no entanto, o transforma em uma colcha de retalhos (no melhor sentido do termo), que mistura musical, ópera, drama e comédia. O filme é quase um experimento para o cineasta, que usa todas as técnicas possíveis de edição, movimento de câmera e som disponíveis na época. A quarta parede é constantemente quebrada, como se os intérpretes estivem falando com o diretor ao ensaiarem as cenas, ou mesmo com algumas piscadelas de cumplicidade. Enquanto os atores interpretam teatralmente seus papeis, a música é quase constante, às vezes pontuando momentos importantes estridentemente, como nas óperas. Tudo isso recortado pela edição ágil de Agnès Guillemot e Lila Herman, que brincam com o surrealismo quando fazem a protagonista entrar seminua de um lado de uma cortina, para depois sair totalmente vestida do outro lado, de forma instantânea, ou quando essa mesma protagonista lança um ovo frito da frigideira para cima e vai atender um telefone fora do apartamento. Quando volta à cozinha, ela apanha o ovo diretamente em seu prato quando ele cai do teto. Além desses, ainda há os artifícios que Godard usa para expor a falta de comunicação entre o casal, como o fato de usarem os títulos de livros para montar as palavras que expressam os seus sentimentos em “discussões” antes de dormir, ao invés de simplesmente falarem um com o outro, e os balbucios quando brigam durante o escovar de dentes. A lista de momentos como esses é enorme em maior e em menor complexidade, mas parece que a função deles é clara: fazer com que os homens da história sejam influenciados pelo poder feminino, que pretende atingir seus propósitos por meio da manipulação. Então, enquanto ela manipula seus pretendentes, os seus cúmplices por trás das câmeras fazem o mesmo com os espectadores. A mulher é, talvez, o tema principal, mas a confecção do filme não pretende entregar nada de mão beijada para quem o assiste, fazendo com que cada frame possua significados diversos, mesmo que o objetivo principal seja o de mostrar as dificuldades de relacionamento de um jovem casal parisiense. No final, há um brilhante paradoxo entre o realismo – as imagens são quase documentais, filmadas nas ruas e não em cenários e o uso de atores não profissionais à época – e a fantasia típica do cinema feito em Hollywood, já que a irrealidade está estampada nos diálogos, nas atitudes dos personagens e nas respostas que recebem do universo diegético. Obra Prima!
Todos sabem da dificuldade que Hollywood possui em produzir filmes baseados em jogos de vídeo games. Houve várias tentativas, mas ou foram desastrosas, ou só atingiram a superfície do que era esperado pelos gamers/cinéfilos. Bom, já que não se consegue adaptar decentemente “Street Fighter”, “Doom” ou “Resident Evil”, pelo menos há um jogo imaginário que faz sucesso nas telonas: “Jumanji”. Contando com o popular longa de 1995, estrelado por Robin Willians e “Bem-Vindo à Selva”, a franquia formou uma base de fãs que foi revertida em números expressivos de bilheteria. Além disso, também goza de uma boa receptividade por parte da crítica.
É na tentativa de continuar nesses bons caminhos que “Jumanji: Próxima Fase” apresenta novos elementos e novos personagens a uma trama que mostra o quarteto de amigos voltando ao jogo. O primeiro a revisitar Jumanji é Spencer (Alex Wolff), que se sente deslocado em sua nova vida de universitário em Nova York. Após o desaparecimento repentino do rapaz, seus amigos Martha (Morgan Turner), Fridge (Ser’Darius Blain) e Bethany (Madison Iseman) vão ao seu resgate, agora com a ajuda de Eddie (Danny DeVito), avô de Spencer e seu antigo sócio Milo (Danny Glover), que são sugados pelo jogo junto com os jovens.
Inclusive, a adição de dois jogadores idosos, que não entendem que estão em uma realidade virtual, é um dos melhores fatores de comédia do longa, principalmente porque o calmo e lento Milo vira Mouse (Kevin Hart), o zoólogo do grupo. As situações em que ele precisa discursar sobre alguns animais perigosos são hilárias. Claro que a capacidade cômica de Hart se torna primordial nessas cenas. Já Eddie ganha as formas de Dr. Bravestone (Dwayne Johnson) e se delicia com seus novos poderes. Para um homem que vive reclamando das limitações da velhice, é recompensador estar em um “corpo” em forma. O que não desaparece com o upgrade é sua personalidade ranzinza, muito bem representada por Johnson.
Para guiar os dois por este mundo cheio de perigos, Martha incorpora a habilidosa Ruby Roundhouse (Karen Gillan) e Fridge o Professor Oberon (Jack Black). Os jovens conhecem muito bem as regras do jogo, e sabem que elas podem ser mortais. Provavelmente, a mais importante regra seja a quantidade limitada de vidas que cada um possui e que, quando acabam, morre-se na vida real. O roteiro usa muito bem essa questão, matando sem dó os personagens principais. Isso gera tensão no espectador, que não sabe o que pode acontecer em cada desafio enfrentado. Por isso, cada respawn é deveras preocupante, já que pode ser o último.
A possibilidade de trocar de avatar também se torna útil ao texto, pois abre o horizonte para mais cenas de comédia e piadas. No entanto, não é só nos risos que se apoia “Jumanji: Próxima Fase”, há ainda boas cenas de ação, em especial a que envolve avestruzes gigantes no deserto, e até certo grau de drama inserido na história de amizade entre Eddie e Milo. Ao juntar esses fatores, é correto afirmar que o filme de Jake Kasdan conseguiu se alinhar a seus antecessores ao gerar bastante diversão descompromissada, com ênfase em “descompromissada”. Dito isso, se há algo que poderia ser diferente, são as mais de duas horas de duração do filme. Talvez, uma encurtada no primeiro ato deixaria a experiência um pouco menos cansativa. Sim, até a diversão pode cansar algumas vezes.
No Brasil atual a justiça está passando por uma crise de identidade. Ela vê sair de suas entranhas alguns dos mais sórdidos malfeitores. De dentro das instituições que seriam guardiãs das leis há uma fuga de ratos. Parte do povo não consegue acreditar que juízes e promotores, antes heróis nacionais por causa da Lava jato, estão envolvidos em falcatruas que visam o poder político, ou simplesmente dinheiro. A ingenuidade de achar que apenas os políticos e os criminosos habituais podem cometer atrocidades ficou no passado. Não em um passado muito distante, mas o de uns dois anos atrás, e é desse passado que vem “Foro Íntimo” de Ricardo Mehedff.
Mehedff, responsável pelo roteiro junto com Guilherme Lessa, constrói sua história de forma dicotômica, onde o bem e o mal são bem delineados pelo roteiro. Nela, um juiz (Gustavo Werneck) precisa se exilar em um fórum cercado de seguranças armados depois que passa a julgar os crimes cometidos por um senador corrupto. O juiz possui uma inabalável ética profissional e prefere ficar trancado no local do que abandonar a importante função, mesmo que sua vida corra perigo. Os únicos desvios identificados no homem são de cunho sexual, sua moral é inabalável. Descrito como uma produção de 2017, mas filmado bem antes disso, “Foro Íntimo” mostra um Brasil muito fácil de decifrar, o que já não é mais assim, infelizmente.
Apesar de parecer algo irreal aos olhos dos mais céticos, se trata de uma história baseada em acontecimentos reais. Contudo, a direção de Mehedff busca outros caminhos além do realismo e acerta em uma confecção narrativa que bota um pé no fantástico e no expressionismo. Com um clima opressor apoiado na razão de aspecto 4:3, o Juiz, personagem principal, fica praticamente encaixotado nos planos. Principalmente quando é enquadrado em contra-plongée e o teto parece esmagá-lo. O preto e branco da fotografia também é um aliado para enfatizar o clima lúgubre e pessimista.
Com isso, o Fórum se torna uma grande masmorra, o que acaba por degradar a condição psicológica do Juiz, que passa a ter alucinações com formigas saindo da ventilação, da comida e das paredes. Clara referência a “Pi” de Darren Aronofsky, evidentemente. Porém, o que realmente importa é que o juiz representa todo um sistema judicial acuado diante de políticos corruptos e de todo o tipo de bandidos, pelo menos na realidade da época em que o longa foi filmado. Sua autonomia se torna refém de interesses escusos. Hoje, no entanto, é sabido que os bons e os maus se confundem em uma amalgama de intenções.
Por fim, “Foro Íntimo” é um bom filme, com boas intenções, que só peca pela ingenuidade e por não ter alguns minutos a mais que tornariam sua conclusão menos apressada. Outro problema é seu final abrupto que dá a impressão de obra inacabada. Claro que a intensão pode ser a de isenção, ou a falta de uma ideia de resolução do problema por parte dos roteiristas, entregando ao espectador a tarefa de refletir a respeito. Este artificio já funcionou muito bem em outras produções, aqui só deixou aquela vontade de ver um clímax.
O que é a vida senão uma jornada através do espaço tempo. A estrada construída pela ilusão de tempo proporcionada pela rotação da terra em torno do sol é o que a humanidade conhece como caminho “real”. Além das fronteiras da via láctea nenhum homem jamais olhou diretamente. Presos em um pedaço de rocha que se move no vácuo, os mais curiosos da espécie tendem a se virar para as estrelas e se perguntar se há mais alguém por lá. Provavelmente nunca terão a resposta, pelo menos de acordo com o que diz o Paradoxo de Fermi. A ausência de sinais de vida inteligente em um universo infinito pode causar um extremo sentimento de solidão em indivíduos mais conscientes, mesmo que eles estejam rodeados de outros sete bilhões de irmãos.
Bom, já que a ciência não dá as respostas a esses indivíduos, o cinema ameniza suas miseráveis vidas ao preencher as lacunas e ao criar utopias. No processo, compete e ganha de lavada das religiões, por causa de sua inteligência, criatividade e capacidade de divertir. Através das telas é possível presenciar a colonização de outros planetas, a descoberta de buracos de minhoca, o contato com alienígenas, a batalha contra discos voadores invasores, etc. A imaginação do roteirista é o limite.
Para aumentar o número de produções que se enveredam pelas galáxias fictícias em busca do desconhecido, afim de proporcionar as tão necessárias fantasias, há “Ad Astra – Rumo às Estrelas” de James Gray. No filme, o astronauta Roy McBride é chamado pelo governo para uma missão secreta que precisa investigar misteriosas e mortais ondas de energia vindas de Neturno. McBride é escolhido, não só porque é bom no que faz, mas também porque é filho de Clifford McBride (Tommy Lee Jones) um pioneiro nas viagens espaciais que perdeu o contato com a terra há trinta anos, exatamente no local de onde vêm as ondas.
O solitário filho, que cresceu sem a figura paterna, agora terá que ir atrás do pai em uma árdua jornada que passará pela lua e por marte. Tudo será ainda mais difícil por causa de sua personalidade que não comporta a inclusão de qualquer tipo de relacionamento. Ele está sozinho dentro de si, e a narração em voz over entrega um homem que só consegue ouvir sua própria consciência. “Ad Astra – Rumo às Estrelas” é uma história reflexiva, existencial e heroica, que teria tudo para ganhar a atenção dos fãs de sci-fi e se tornar mais um cult do gênero, mas James Gray não consegue ser totalmente feliz na execução.
Para começar, Gray parece não ter decidido qual caminho seguir entre ser relativamente fiel à física ou mergulhar nas impossibilidades do sci-fi puro. Afinal, na diegese, há som no espaço? Em alguns momentos é possível ouvir as explosões e em outros não. A tecnologia representada no filme pode fazer um ser humano viver por 30 anos em gravidade zero ou uma viagem de três meses pode resultar em danos psicológicos e físicos? As duas possibilidades estão presentes entre o segundo e o terceiro ato. A não definição das regras atrapalha o espectador na imersão e o faz se afastar do tema principal.
Além disso, o roteiro, do próprio Gray, peca ao criar situações que apenas servem como obstáculos para a missão de McBride, mas que não estão ligadas à trama principal. Como exemplos, há os momentos na Lua, com um ataque de piratas, e o socorro prestado a uma nave à deriva, que retarda a chegada a Marte e trás novos perigos. É como se o roteirista sentisse a necessidade de dificultar a jornada e, no processo, fazer de “Ad Astra – Rumo às Estrelas” um filme com alguns momentos de puro entretenimento. Assim, demonstra certo medo de que o público ache sua obra enfadonha em sua proposta reflexiva. Talvez, as comparações que poderiam surgir com o “chato” ”2001 – Uma odisseia no Espaço” ou com os filmes sensoriais de Terrence Malick sejam as culpadas pela construção de tais cenas. Será que o aclamado cineasta pensou com a cabeça do público não cinéfilo?
Agora, por outro lado, foi a técnica apurada que tomou conta da cabeça dos responsáveis pela fotografia e pelos efeitos visuais, já que, junto com a atuação de Pitt – que será melhor detalhada abaixo – são excelentes. O uso do fotógrafo de “Interestelar”, Hoyte Van Hoytema e do CGI de ponta entregam cenas de espaço deslumbrantes. Gray, também se aproveita de Van Hoytema, e sua experiência com filmes espaciais, para causar no espectador a impressão de isolamento. A solidão que o personagem de Pitt sofre é representada pelo fato de sempre estar sozinho em cubículos característicos de cápsulas, estações e naves espaciais. Por vezes, há uma barreira como um vidro ou mesmo um capacete separando-o da câmera. Nos momentos reflexivos do astronauta, os planos se fecham, tirando toda a profundidade de campo. Há ainda o mergulho nas trevas, seja da imensidão do espaço ou de instalações mal iluminadas das bases estelares.
Ambientes como esses só poderiam afetar negativamente uma espécie social como a humana, e a atuação acima da média que Pitt constrói é uma amostra disso. Ele incorpora um personagem contemplativo e triste. Suas expressões são discretas, controladas, e as Interações com os outros personagens são breves e desconfortáveis, mostrando sua profunda introspecção. As únicas vezes que se abre são durante as avaliações psicológicas, mas essas são feitas por um computador.
A solidão do astronauta é a mesma que sente todo o ser humano em relação a um universo cheio de matéria, porém, como dito no início, sem evidências de vida inteligente. O infinito que rodeia o pequeno planeta azul chamado Terra é morto. Pensando neste problema, a conclusão é que será preciso, de fato, que a humanidade se una como espécie, pois o niilismo da existência exige que os laços afetivos sejam reforçados. Expandir, ao invés de retrair, é a resposta. Como no Big Bang, terá que ser uma expansão rápida e continua, para que não haja o regresso e a implosão. O astronauta descobre isso, pena que o diretor responsável pela condução de sua jornada a faça de forma insatisfatória.
Nos últimos anos, o mundo ocidental acompanhou com perplexidade os inúmeros ataques terroristas cometidos em suas terras. O grupo Estado Islâmico foi o maior culpado por esses ataques e virou o grande inimigo da humanidade. Séries de TV e filmes de Hollywood usaram os extremistas como os vilões de suas histórias, enquanto os heróis americanos os combatiam. No entanto, o que se via no mundo real era a conversão dos próprios europeus e norte-americanos a um Islamismo deturpado, que os fazia ir contra suas próprias nações.
A migração de pessoas de países ditos desenvolvidos para o oriente médio a fim de se tornarem guerrilheiros defensores do Islã virou uma espécie de epidemia. E é só por isso que todos realmente ficaram preocupados. Se as ações do Estado Islâmico tivessem ficado limitadas ao Oriente Médio, dificilmente o primeiro mundo daria a atenção necessária. Agora, quando filhos e filhas ocidentais viram terroristas, é preciso entender de onde vem a ameaça e combatê-la. Em “Adeus à Noite”, André Téchiné tenta refletir acerca do problema, contando a história de um jovem francês que é aliciado por um desses grupos.
O jovem em questão é Alex (Kacey Mottet Klein), que conhece o Alcorão por meio da namorada Lila (Oulaya Amamra). Ele se converte e acaba se juntando a um grupo de franceses que pretende ir até a Síria. Alex perdeu a mãe e não tem contato com o pai, o que o faz ser criado pela avó Muriel (Catherine Deneuve). Muriel é proprietária de uma fazenda de plantação de cerejas e que oferece aulas de equitação. Será exatamente a avó o obstáculo para os planos de Alex, que tentará usar as posses da mulher para financiar a viagem e até para comprar armas.
É interessante o embate a partir do momento que Muriel descobre as intenções do neto. As diferenças entre gerações são evidenciadas no inicio do primeiro ato, quando os personagens acompanham um eclipse solar. Enquanto a avó olha diretamente para o eclipse, enfrentando a escuridão de frente – mesmo com o perigo de perder a visão – Alex e Lila o acompanham online. A falta de comunicação com o mundo real do casal é a porta de entrada para as ideias radicais que pregam o ódio. A desconexão em relação ao concreto fica clara quando, mesmo sendo muçulmanos, Alex e Lila dizem nunca terem frequentado uma mesquita. Tudo que aprenderam sobre a religião foi através de fontes obscuras da internet. É a constatação de uma interpretação sem qualquer base real nos ensinamentos do alcorão.
De fato, Alex se afastou da realidade, assim como o fez com a terra onde nasceu. A fazenda não é mais palpável como era na infância. Sua chegada já é arrasadora ao coincidir com a destruição de uma cerejeira por um porco do mato invasor. Para o porco, será preciso construir uma cerca. Para Alex, Muriel usa o celeiro como prisão. A Cerca é necessária frente à invasão de animais selvagens, garantindo o florescer da cerejeira e mantendo sua beleza deslumbrante até a colheita de seus abundantes frutos. A juventude é como a árvore, e só pode ser salva ao impedir que invasores malévolos a consuma de fora para dentro. O celeiro, infelizmente, é apenas um paliativo e não uma solução.
A beleza da juventude precisa ser cultivada com cuidado, já que, do contrário, pode adoecer, murchar e morrer. A sensibilidade e sabedoria da avó vão ser primordiais para salvar o neto dessa morte antecipada, mas não será uma tarefa fácil, e Téchiné evidencia isso enquadrando os dois em oposição. Geralmente dividindo-os por meio de objetos de cena, como mesas e portas, ou simplesmente colocando cada um em um extremo do plano. Como em uma guerra ideológica, a mulher já no final da vida tentará salvar aquele que representa uma geração que parece perdida em reconhecer o que é certo e errado.
A Hollywood contemporânea tem na repetição uma forma de faturar nas bilheterias. São inúmeras as continuações e, apelando ao estrangeirismo, remakes e reboots nas telas dos cinemas, todos os anos. A relevância desse tipo de produção vive sendo debatida, sem que haja um consenso. Evidentemente, há projetos que trazem atualizações bem-vindas dentro do material refilmado e, quando se trata de remakes, conseguem inserir novos temas, situações, estilos e personagens às tramas. Por isso, é possível ter bons resultados sempre que a imaginação e a criatividade entram no jogo. Outro fato a ser pensado antes de virar os olhos quando um título de filme vem acompanhado de “O Retorno”, “Recomeço”, ou simplesmente dos numerais 2, 3..., é que o cinema tem mais de cem anos, fazendo qualquer história atual já ter sido contada no passado.
O novo terror “It – Capítulo Dois” pode ser usado como exemplo para tudo o que foi dito no parágrafo anterior. O material original é do livro de Stephen King, que ganhou uma adaptação em formato de série em 1990. Essa série foi posteriormente transformada em telefilme. A produção um tanto pobre da série/telefilme incentivou o reboot de 2017, que fez sucesso, possibilitando a atual continuação do mesmo. Bom, material para isso não falta, já que o livro de King possui mais de mil páginas. A qualidade de produção e de trato com o roteiro ao aproximá-lo satisfatoriamente do universo pensado por King são trunfos da adaptação do “It: A Coisa” desta década. Mesmo o exigente escritor disse ter gostado do filme, o que é uma vitória, já que não o fez com “O Iluminado” de ninguém menos que “Stanley Kubrick” e com outras adaptações de seus livros.
Para começar a deixar as questões de bastidores de lado e passar a falar do filme em si, é preciso dize que, se na história de “It: A Coisa” de 2017 há um grupo de jovens tentando impedir o palhaço assassino Pennywise (Bill Skarsgård), em “It – Capítulo Dois” nada mudou, porém, agora os jovens viraram adultos, com os rostos estrelares de Jessica Chastain (Beverly) e James McAvoy (Bill) puxando o elenco. A trupe agora crescida também conta com os atores Bill Hader (Richie), Isaiah Mustafa (Mike), James Ransone (Eddie), Jay Ryan (Ben) e Andy Bean (Stanley). Não é difícil saber qual personagem adulto representa sua versão mais jovem, já que características físicas e de personalidade de cada um, evidentemente, foram mantidas. Além disso, todo o elenco do filme de 2017 volta e participa ativamente da narrativa, proporcionando aquelas típicas transições do passado para o presente, onde os rostos jovens vão sendo substituídos por suas versões mais velhas. Como os jovens não são apenas peças lançadas pelo roteiro para fazer o espectador lembrar-se da trama, é possível rever com prazer as ótimas atuações de Sophia Lillis (Beverly) e Jaeden Lieberher (Bill). O interessante nesta mescla de elenco são as escolhas de construção de personagem feitas pelos veteranos. Chastain não segue totalmente Lillis e sua Bervely determinada e corajosa. Agora ela é uma mulher com medo constante – principalmente por causa do marido violento – e cheia de dúvidas sobre o passado que volta para aterrorizá-la. Já McAvoy é competente ao emular o jovem Lieberher em sua gagueira que piora gradativamente assim que chega à cidade natal. Para um ator do porte de McAvoy seria fácil apenas gaguejar, então ele extrapola ao fazer o espectador sentir todo o seu sofrimento em não conseguir proferir as palavras por meio de lágrimas e veias saltando no pescoço tensionado.
Claro que as atuações não seriam bem aproveitadas se a produção do longa não primasse pela excelência. Por isso, em “It – Capítulo Dois” é alto o investimento nos efeitos visuais e na maquiagem. A criação de criaturas em CGI não apresenta qualquer tipo de problema que possa ser destacado. O que se vê, na verdade, é um bom grau de criatividade em cenas bizarras e nojentas. Um exemplo é uma cena em que o grupo de amigos está jantando em um restaurante oriental, e pequenas partes humanas e de outros animais começam a sair dos biscoitos da sorte. Pennywise e suas mordidas animalescas, vovós nuas transformadas em monstros gigantes e zumbis em decomposição completam o terror imaginativo.
Bem produzido, bem atuado e com um roteiro satisfatório, o filme de Andy Muschietti só não ganha maior relevância porque peca em não conseguir preencher toda a história com terror que a plateia espera de um filme com um palhaço monstruoso. Há, inclusive, momentos cômicos fora de lugar, que tiram a tensão da atmosfera diegética. O uso dos inevitáveis e até bem-vindos jump scares é previsível e cansativo, pois é repetido entre um corte e outro indiscriminadamente. Desagregador também é a tentativa de mostrar a origem de Pennywise. Não que ela não seja importante, apenas não é apresentada de forma clara por uma montagem confusa que mais deixa dúvidas do que conclusões. Com isso, “It – Capítulo Dois” consegue ser um bom material de entretenimento, mas não alcança a competência das obras do mestre do terror. Talvez isso não seja possível, afinal de contas.
Antes mesmo de ganhar o prêmio do júri no festival de Cannes, “Bacurau”, já gerava expectativa nos cinéfilos brasileiros por causa do histórico de excelentes filmes de Kleber Mendonça Filho. O cineasta, antes crítico de cinema, ganhou notoriedade com “O Som ao Redor” e “Aquarius”, duas obras que transpiravam política e crítica social. Porém, “Bacurau” prometia trazer elementos de gêneros não comuns no cinema brasileiro em um roteiro mantido em segredo. Outra novidade era a divisão do posto de diretor e roteirista entre Mendonça Filho e seu amigo Juliano Dornelles. A pergunta que todos faziam era: será que Mendonça Filho vai acertar novamente, agora com outra mente criativa ao seu lado? Bom, ele acerta, mas não em cheio como em seus filmes anteriores. “Bacurau” não alcança a excepcionalidade por causa de sua narrativa apoiada em gêneros já tão desgastados que não mais surpreendem. Com isso, a tensão crescente presente em “O Som ao Redor” e “Aquarius” não é sentida, mesmo que forasteiros americanos fortemente armados estejam cercando uma pacata cidade cheia de crianças e idosos. Os westerns feitos por Hollywood usam com frequência a premissa do cerco de um inimigo poderoso contra fracos e inocentes, e o roteiro de Mendonça Filho e Dornelles a toma como referência para criar uma história tipicamente brasileira, todavia sem subvertê-la, o que favorece a previsibilidade. Claro que há uma quebra de paradigmas ao transportar os cowboys das pradarias da América do Norte ao nordeste brasileiro e seus vilarejos afastados das grandes cidades, mas nada do que já não tenha sido explorado por Glauber Rocha no passado. O elemento a mais em “Bacurau” é o uso do sci-fi para mostrar uma sociedade brasileira em um futuro não definido, onde a tecnologia é usada para perseguir e prender bandidos, que depois são executados em praça pública. Esses elementos distópicos são apresentados rapidamente em transmissões de TV que mostram uma multidão em São Paulo acompanhando uma dessas execuções, e por meio de um pequeno monitor presente em um caminhão pipa, onde aparece a imagem de um fugitivo com a palavra “procurado” piscando na tela. É desse mundo externo opressor e sombrio que veem os vilões da história. Eles aparecem no horizonte crepuscular e espreitam o vilarejo como um alvo. São os conquistadores brancos que pretendem dizimar todos os nativos. Não se interessam pelo território, o que eles querem é o êxtase proporcionado pelos tiros que acabam com as vidas, ao mesmo tempo em que contam pontos em uma espécie de jogo bizarro. O problema para os conquistadores é que Bacurau conta com um senso de comunidade único, que a faz se unir e planejar a resistência. A partir daí a violência ganha a tela, tingindo de vermelho os rostos e o chão árido do sertão. É no sangue jorrado por causa dos tiros saídos da Colt e da Smith & Wesson que os filmes de Sam Peckinpah são lembrados. E, se há armas, há membros amputados e cabeças explodindo, o que remete ao gore de John Carpenter. Duas referências que dão o arcabouço hollywoodiano a “Bacurau”, mas é no cinema contemporâneo brasileiro que está sua essência, já que segue outras produções nacionais recentes e transmite o incômodo com a situação política e social de um país destroçado. O roteiro de Mendonça Filho e Dornelles serve como uma espécie de guia do que precisa ser feito para impedir que a barbárie continue. Será preciso partir para o conflito, pois a diplomacia não é conhecida pelos bárbaros. Bacurau entra no conflito inevitável e luta estrategicamente contra os estrangeiros que o começou. Estrangeiros esses que representam os usurpadores de terras, os assassinos de pobres; os donos do capital que massacram tudo que é natural. Entretanto, a natureza encarnada no povo revidará para defender seu território, e seu trunfo é a união de uma comunidade que sempre dividiu a comida, o conhecimento e a força para enganar a morte. No campo de batalha, compartilharão o sangue do inimigo. No Brasil real, também é preciso derramar o sangue do inimigo, nem que seja o sangue simbólico derramado por meio de protestos, por meio dos votos e da justiça. Não é possível deixar que as terras, as árvores, os rios e animais sejam roubados e aniquilados por um governo que quer dar tudo de bandeja a forças obscuras. A voz da nação precisa se unificar e gritar a favor da educação, da ciência e da racionalidade. No western tupiniquim, não se pode deixar os bandidos invadirem sem que haja uma reação. A mensagem de resistência de “Bacurau” foi dada, cabe a todos segui-la.
São poucos os cineastas nos dias de hoje que podem receber o título de autor, ainda mais no cinema feito nos EUA. Quentin Tarantino é um desses poucos, já que sua forma peculiar de contar histórias é intimamente conhecida pelos cinéfilos. Os seus roteiros geralmente trazem tramas intricadas, reviravoltas, diálogos longos e apurados e personagens icônicos. A violência também é constante e talvez seja o elemento mais importante para identificar superficialmente um filme do diretor. Só que essa violência não é banal e sem propósito, ela está incrustada na narrativa. O sangue é primordial para os arcos dos personagens. Tarantino consegue usar sarcasmo, fazer piada ou aterrorizar a plateia com bizarras sequências de violência explícita. Tudo isso em uma embalagem pop e divertida.
Há nas películas de Tarantino a necessidade de referenciar filmes do passado ou gêneros que possam estar fora de moda. O cinema sempre foi usado como material para seus roteiros, mas nunca foi o tema principal. Bom, “Era uma Vez em… Hollywood” veio para mudar isso. Claro que era necessário usar grandes astros e estrelas atuais para retratar os astros e estrelas de uma Hollywood nostálgica da década de 60, sendo elas fictícias ou reais.
A trama segue o ator de TV, que quer fazer sucesso na tela grande, Rick Dalton, interpretado por Leonardo DiCaprio. Dalton tem a companhia de seu dublê e amigo Cliff Booth, encarnado por Brad Pitt. Os dois são vizinhos de Sharon Tate que ganha as feições de Margot Robbie. Tate, na época, era casada com Roman Polanski. Steve McQueen e Bruce Lee são outros a darem as caras. Al Pacino reaparece em uma grande produção, mesmo que em um papel pequeno. Essa mistura entre a Hollywood atual com a do passado é importante para que o público note que, tirando o fator tecnológico, pouca coisa mudou no meio. O sucesso e o reconhecimento são os objetivos das pessoas que ingressam na indústria do celuloide dos anos dourados, ou na recente da era digital.
“Era uma Vez em… Hollywood” não se passa no mundo dos criminosos, da máfia ou do velho oeste, o que leva a acreditar que Tarantino não usa uma de suas principais características citada acima: a violência. Apesar de serem poucas, as cenas violentas estão presentes e, quando enchem a tela, causam bastante impacto. Elas se justificam, pois estão inseridas no contexto do recorde de tempo que ele escolheu retratar: a Los Angeles assombrada pelo assassino Charles Manson e seu fiel grupo formado em grande parte por jovens mulheres. Manson aparece uma única vez, enquanto suas garotas fazem jus à fama. A despeito dos loucos de uma seita assassina, é o dublê Cliff Booth que possui as cenas mais brutais. Se Rick Dalton e Sharon Tate perseguem os seus sonhos estelares, Booth gosta de sua simples função de dublê e de “faz tudo” de um quase astro. Por isso, quando sua vida confortável é ameaçada, ele precisa fazer algo a respeito. O mundo real se choca com o mundo dos sonhos, em uma cidade que é movida pela ilusão.
A Idílica Hollywood é a senhora da boa ilusão. Ela proporciona o sentimento de que todos podem ter seus sonhos realizados. Tarantino sabe disso e enche seu filme com angelicais travelings em gruas e cenas libertadoras de personagens com os cabelos ao vento em carros em alta velocidade. Fotografado em 35 mm, “Era uma Vez em… Hollywood” é belo com suas cores fortes, porém com certo padrão de desgaste e granulação presente neste tipo de fotografia. O tom amarelo do sol é dominante, principalmente na pele de Sharon Tate. Essa é retratada com enorme sensibilidade. Sempre está sorrindo, dançando em câmera lenta ou simplesmente sendo gentil. Até há uma cena em que ronca durante o sono, que serve para tentar tirar o título de deidade da atriz e trazê-la para o lado dos mortais. O que é em vão, a julgar pela graciosidade com que Robbie atua.
Ainda que tenha menos cenas em comparação aos personagens de Pitt e Di Caprio, a Sharon Tate de Robbie permeia sobrenaturalmente todas as mais de duas horas e meia de duração do longa. Tarantino faz uma grande homenagem para a estrela morta, respeitando sua lembrança e o próprio Polanski sem tropeçar em qualquer mau gosto pelo caminho.
Bem, com suas inúmeras qualidades, “Era uma Vez em… Hollywood” chega perto de ser a mais nova obra prima Tarantineca e se juntar a “Pulp Fiction”, mas é colocado em um degrau abaixo, como se fosse apenas uma grande e milionária homenagem. Isso fica claro na falta de propósito de algumas cenas, que só servem para suprir a necessidade estética do diretor. São muitos os passeios de carro pelas colinas e as caminhadas nas ricas ruas de Los Angeles. Personagens vagam apenas para servir como transições entre cenas e satisfazer os aficionados pelo misticismo dos bastidores dos sets cinematográficos e das casas das estrelas.
Quando se fala em cinema francês, logo vem à mente filmes intelectuais que passam em cinemas de arte. Muitos ignoram o fato de que a França é uma grande produtora e que de lá saem filmes de diferentes gêneros e formatos. Talvez, o gênero “ação” seja o que menos chama a atenção dos produtores franceses, mas não significa que não sejam feitos. O mais recente deles é “Alerta Lobo” da Netflix, que conta com um elenco de nomes conhecidos, um astro em ascensão e uma história que poderia muito bem ter sido filmada em Hollywood. Na verdade, é muito bom que “Alerta Lobo” tenha sido feito na França e não nos EUA. Essa afirmação não possui nenhum tipo de desgosto com o cinema americano ou bota em duvida a sua qualidade, e sim constata que certo elemento presente no filme é próprio do cinema francês dito de arte. Para melhor explicar basta dizer que o personagem principal é Chanteraide (François Civil) que faz parte da marinha e trabalha em um submarino. Todos o conhecem como ouvido de ouro, já que é encarregado de ouvir os sons do oceano a fim de alertar sobre a presença de submarinos, navios e armamentos inimigos. Ele possui uma audição apurada, o que leva a narrativa a fazer certas reflexões poéticas. Chanteraide é muito sensível, e prefere ouvir o batuque vindo de um barco pesqueiro ou o som de golfinhos do que de qualquer outra coisa. Evidentemente que o rapaz acaba virando motivo de chacota por parte de seus companheiros, mas nada que consiga abala-lo no mundo envolto pela sinfonia do oceano em que vive. Em outras produções de ação a habilidade do rapaz seria usada para criar cenas de simples pirotecnia, em “Alerta Lobo” ela o faz sofrer ao ter que ouvir sons de destruição e guerra quando um conflito internacional começa a tomar forma. O contraponto entre a beleza da natureza e a horrenda condição humana é aquele elemento a mais que o cinema francês consegue abordar mesmo quando faz um filme comercial. O restante não deixa a desejar, apesar de não subverter nenhum conceito abordado em filmes passados em submarinos. Porém, há leves reviravoltas bem planejadas que servem para criar tensão. O roteiro é bem escrito e não deixa escapar nenhuma dessas reviravoltas para um espectador mais atento. Trata-se daquela história onde a lição de moral é mais importante do que a forma. Isso não quer dizer, no entanto, que os efeitos visuais e a direção sejam desleixados, e sim que ficam em segundo plano. As cenas no submarino são belas, principalmente quando as luzes vermelhas de alarme banham todo o ambiente, enquanto o rosto de Chanteraide é tomado pela luz azul da tela do computador onde trabalha e que pode muito bem representar o oceano. Ele fecha os olhos e segura os fones para se livrar de um mundo de perigo e entrar em um de paz. Civil se mostra um ótimo ator ao manter um semblante sereno quando está trabalhando e de desespero quando a situação foge do controle nas batalhas ou no momento em que é afastado por uso de maconha. O elenco é completado pelos competentes Reda Kateb, Omar Sy, Mathieu Kassovitz e Paula Beer. Eles possuem seus momentos de destaque, mas nada que exija muito de seus talentos. “Alerta Lobo” consegue passar sua mensagem critica e ser divertido ao mesmo tempo, o que já é mais do que conseguem muitos filmes do gênero que inundam os cinemas e os próprios serviços de streaming ano a ano.
O mundo é paradoxal: se por um lado há uma grande luta para que as demandas feministas sejam atendidas, o que significa mais igualdade e respeito, por outro, a taxa de feminicídios teima em subir ano a ano, e países com visões deturpadas de suas religiões tratam as mulheres como escravas inferiores, em sociedades extremamente misóginas dominadas pelo patriarcado. Há situações que é preciso ir à guerra em prol da liberdade feminina. É isso que mostra “Filhas do Sol”, da cineasta Eva Husson, ao seguir um grupo de guerrilheiras que lutam contra a opressão do ditador Bashar al-Assad. Essas mulheres Curdas possuem um passado de barbárie, principalmente sua líder Bahar (Golshifteh Farahani), que teve os homens de sua família massacrados e foi vendida junto da irmã como escrava sexual. Assim que consegue fugir, Bahar entra para um grupo de resistência e descobre que o seu filho ainda está vivo. O roteiro da própria Husson traz os traumáticos acontecimentos em flashbacks, ao mesmo tempo que acompanha a missão de tomar um vilarejo das forças do governo. Bahar tem especial interesse nesse local porque ali há uma escola infantil onde pode estar seu filho. Tudo é acompanhado por Mathilde (Emmanuelle Bercot), uma veterana jornalista e fotógrafa de guerra. Mathilde também sente na pele o sofrimento de estar longe da filha e do marido. Evidentemente, há cenas de conflitos e tiros são disparados, porém não é do interesse de Husson apelar para o “glamour” da guerra e transformar as personagens em heroínas invencíveis. São nos diálogos que o filme tira a sua melhor matéria prima, proporcionando comoção com a história de sua protagonista. Essa guerreira é a inspiração para as outras e lidera sua tropa com um discurso que termina com a forte frase: “La Femme, la Vie, la Liberté”, claro que dita em árabe, mas repetida em francês no final do filme. A ótima atuação de Farahani, que parece carregar todo o sofrimento nas costas, é primordial para a imersão naquele mudo, expondo tristeza em um semblante de alerta e dor. O ambiente ajuda a atriz em sua performance, já que o palco é um amontoado de destroços que sobraram das antigas cidades. A beleza daquelas mulheres iluminadas pelo sol sempre presente contrasta com a poeira, a fuligem e o sangue que as cercam, e por isso o título “Filhas do Sol” não poderia ser mais adequado. É delas que emana os últimos raios de esperança em uma terra devastada. Seja por sua coragem de enfrentar um inimigo cruel ou pelo fato de ser delas a responsabilidade de carregar a vida de uma nova geração que pode acabar com a barbárie (uma das combatentes dá à luz em meio ao caos). Como mensagem, o longa é poderoso, como cinema pode incomodar o fato de ser arrastado em seu primeiro e segundo ato e por ter algumas encenações de batalhas mal executados. Nada que tire a importância de uma obra que se propõe mostrar um lado pouco conhecido de uma guerra que parece não ter fim.
Lá nos anos 2000, quando o agora malquisto Bryan Singer apresentou ao mundo um grupo de mutantes vindos dos quadrinhos em “X-Men: O filme”, o público ainda não estava acostumado com histórias de super-heróis. Era pura novidade, e todos queriam saber como seria o visual dos personagens na tela do cinema. Será que o Wolverine vai vestir o colante amarelo, com máscara e tudo? Os fãs se perguntavam. Depois de inúmeras continuações e do domínio da Marvel nesse praticamente novo gênero, eis que “X-Men: Fênix Negra” entra em cartaz com um ar de despedida, afinal trata-se do último filme da franquia produzido pela 20th Century Fox. O clima de adeus é tanto que, na sessão para a imprensa, a representante do estúdio no Brasil e o diretor Simon Kinberg (em vídeo) agradeceram os jornalistas pela cobertura de “X-Men” no decorrer dos anos. Evidentemente que “Fênix Negra”, como conclusão, precisa entregar algo épico, que teste o limite do Professor Xavier (James McAvoy) e de seus asseclas. Então, para isso, nada melhor que a transformação de Jean Grey (Sophie Turner) na mutante mais poderosa do mundo. Grey, ao salvar alguns astronautas em orbita terrestre, é atingida por uma abundante energia que parece ser o resultado de uma explosão solar. Ao voltar ao planeta, ela passa a ter momentos de fúria, que acabam liberando progressivamente o poder recém-adquirido. Os bloqueios de memória sobre o acidente que matou seus pais, colocados no passado por Xavier, também são retirados, fazendo com que ela não confie mais no professor, que escondeu fatos sombrios da infância da garota. Enquanto isso, uma raça alienígena chega à terra, e sua líder (Jessica Chastain), não só sabe de onde vem a tal energia, como quer tomá-la para dominar a terra. Aliás, são seres que surgem do nada, atrás de uma energia que convenientemente está bem perto do ônibus espacial à deriva, e tomam a brilhante decisão de ficar com o pequeno planeta azul para si. É com esse fio de trama que o roteiro do próprio Kinberg é construído, dando forma a um filme sem grandes aspirações e sem inspiração. Mesmo na técnica cinematográfica o cineasta não sai do comum. Sua direção é acadêmica nos planos e contra planos nos momentos de diálogos e desinteressante nas cenas de combate que não empolgam ou causam comoção pelas mortes de algumas figuras importantes durante as duas primeiras batalhas. Basicamente ele se repete do início ao fim. A emoção é rasa, independente do bom trabalho dos atores. Bem, de alguns deles pelo menos, pois parece que Jennifer Lawrence está ali apenas para cumprir contrato. Não atua mal por ser competente em sua função, mas mostra certo ar de desinteresse pelo personagem que interpreta há anos. Outro agravante é que Jean se torna praticamente uma deusa, derrotando facilmente Xavier, Magneto (Michael Fassbender), e qualquer ideia mirabolante de cena de ação que seria logo finalizada por um simples levantar de mãos da garota. Personagens mal aproveitados fecham a lista de reclamações: Tempestade (Alexandra Shipp) não faz mais que soltar alguns raios, Mercúrio (Evan Peters) tem pouco tempo de tela, apesar de ter se tornado o queridinho dos fãs pelo seu carisma e boas cenas de humor e ação nos longas anteriores. Até Noturno (Kodi Smit-McPhee) que tem mais atenção do roteiro, é irrelevante contra uma Fênix Negra que consegue atingi-lo durante os teletransportes. “X-Men: Fênix Negra” é um produto que acaba não ofendendo ninguém, se tornando, no futuro, aquele filme da Tela Quente que as pessoas assistem até pegarem no sono. Obs: É difícil não pensar em uma luta entre Fênix Negra e Capitã Marvel para saber quem sairá vencedora. O futuro dirá.
Hollywood, os astros do Rock estão se esgotando! Por isso, em um futuro próximo, as tão frequentes cinebiografias que você costuma filmar não existirão mais. Chega de sexo, drogas e Rock and Roll. As orgias não poderão ser chamadas assim, pois não haverá pessoas para participar delas. Tudo o que era para ser mostrado, já foi mostrado. Aquela carreirinha de cocaína cheirada com uma nota de dólar se tornou obsoleta. Os dramas de solidão que favorecem o mergulho nas drogas e na bebida foram banalizados. Siga em frente Hollywood! Os grandes gênios não precisam de filmes feitos em seus nomes para serem lembrados, principalmente os que ainda estão vivos. Mantenha a câmera desligada e deixe que o público puxe na memória as suas músicas prediletas. Só assim para que os astros e estrelas sobrevivam decentemente. Bem Hollywood, depois do aviso, é preciso falar sobre “Rocketman”. Para começar Hollywood, você tem um diretor que obteve algum sucesso com outra dessas cinebiografias e o fez repetir quase quadro a quadro o conceito estético de seu filme anterior. O roteiro também se repete em sua estrutura, basta analisar o arco do personagem principal para perceber que seus anseios, desejos, erros e obstáculos são narrativamente apresentados da mesma forma que no filme sobre um tal de Fred Mercury. Hollywood, agora você até pode dizer: “Espera! Os roteiros são escritos com base em artistas com vidas parecidas”. Dá para entender essa sua justificativa Hollywood, mas será que outros pontos relevantes da extensa carreira de Elton John não poderiam ter sido confeccionados além do comum? Você precisava ser tão preguiçosa ao mostrar os problemas do cantor com os pais, com a homossexualidade prestes as aflorar e com vício em drogas e bebidas? “Bohemian Rhapsody” chegou antes e já contou essa história. Um desavisado defensor de Hollywood pode entrar na discussão e perguntar: “Se trata de um filme sobre um Rockstar. O que esperava?” Bom, sempre se espera algo que faça a plateia se emocionar, e o artista Elton John emociona o mundo todo, há muito tempo, sem precisar do cinema para lhe dar uma força. A despeito de suas convenções narrativas, querida Hollywood, saiba que “Rocketman” tenta se destacar como musical, mesmo nas cenas fora do palco. Os atores se esforçam, principalmente Taron Egerton, que realmente canta e não é dublado como um recente ganhador do Oscar de melhor ator. Egerton se saí bem, conseguindo incorporar um pouco do espírito de Elton John. Já Jamie Bell, que faz o compositor Bernie Taupin, e Richard Madden, o inescrupuloso agente John Reid, são razoáveis nas linhas musicais que lhe cabem. Até o repetidor Dexter Fletcher tem algumas ideias surrealistas ao inserir, nos momentos das apresentações, alucinações que fazem a plateia dos shows e o próprio vocalista flutuarem, ou mesmo pincelando pequenos encontros do Elton adulto com o Elton criança. Fletcher também saí da linha ao ir despindo o cantor de sua fantasia durante um encontro de alcoólicos anônimos. No início da projeção, ele chega fantasiado espalhafatosamente e vai perdendo os adereços assim que mostra gradativamente sua verdadeira personalidade. Afinal, deixa de se esconder. Infelizmente Hollywood, esses são apenas alguns desvios na rota traçada por você, e não são suficientes para elevar o nível da produção ao ponto de evitar seu completo esquecimento com o passar dos anos. É certo que aquele defensor de Hollywood poderia voltar afirmando: “Mas, o próprio Elton John está envolvido na produção. Então, é uma adaptação mais do que fiel”. Ele de fato faz parte da produção, que a serve como uma espécie de diário filmado. Isso não significa que teve controle sobre todo o processo “criativo” por trás do espetáculo.
Independentemente do resultado qualitativo da última temporada de Game of Thrones, e das discussões sobre as polêmicas decisões tomadas pela dupla de showrunners David Benioff e D.B. Weiss para terminar a história, não dá para negar que essa série entrou para história da arte pop. O nível de GOT se tornou tão alto que não é correto tratar tudo o que foi feito como mais uma produção para TV. O que o mundo viu durante oito anos é puro cinema. Cinema superlativo, com bom roteiro, muita ação e efeitos visuais de alto padrão. Claro que, para entregar toda essa grandiosidade em tela, era preciso contar com uma vasta e experiente equipe nos mais variados níveis de produção. Para homenagear todas essas pessoas que deram a vida por GOT, a HBO levou suas câmeras para os bastidores com “Game of Thrones: A Última Vigília”. Com esse documentário, a diretora Jeanie Finlay capta os últimos takes de um grande sucesso que será difícil de esquecer. O espectador que pode ter sentido ódio depois dos créditos finais de “The Iron Throne”, vai se emocionar com a paixão que cada membro da equipe empregou em seus trabalhos. Não são apenas empregados trabalhando por dinheiro, são, antes de mais nada, fãs que estariam ali mesmo de graça. Pessoas anônimos que formaram uma família junto com os astros e estrelas, diretores e produtores, para levar a tristeza, o horror, a surpresa e a alegria para milhões de pessoas. Apesar de ter a participação de Emilia Clarke, Kit Harington, Lena Headey, Peter Dinklage, Sophie Turner, Maisie Williams, entre outros, o que interessa a Finlay são aqueles que ninguém conhece. Ela segue um figurante que já trabalha na séria desde a terceira temporada, uma artista responsável pelas próteses que dão vida às várias criaturas imaginadas por George R. R. Martin e um coordenador da equipe que faz a neve de Winterfell e Porto Real. Dá ainda um pouco de atenção para a cabeleireira de Clarke e Harington, para a dona de um trailer de comida instalada nos sets de filmagem e para a equipe de dublês, que tem como chefe ninguém menos do que o Rei da Noite, interpretado por Vladimir Furdík . Dando voz para esses trabalhadores de bastidores, “A Última Vigília” faz com que público veja o fator humano por trás de tudo, independente do milionário marketing e dos holofotes. Evidentemente que os queridos atores principais também são responsáveis por momentos especiais, principalmente quando, no início dos trabalhos da derradeira temporada, leem o roteiro final de seus personagens em uma mesa redonda. A comoção e decepção que cada um demonstra são verdadeiros e provam o amor que eles sentem pela obra. É de partir o coração ver Kit Harington aos prantos quando sabe o destino de Daenerys, enquanto Emilia Clarke o observa com feição de tristeza. No final de uma leitura nessa mesma mesa redonda, todo os presentes comemoram o destino do rei da noite, assim como os fãs o fizeram quando assistiram em suas casas há algumas semanas. Há apenas um problema ao término do documentário: o seu próprio término, porque isso significa que GOT chega definitivamente ao fim, deixando para os muitos aficionados um longo inverno a enfrentar.
A Disney parece querer mostrar ao mundo que consegue sucessos de bilheteria sem depender das suas propriedades mais recentes. Ou seja, é preciso ser a grande Disney além da Marvel, da Pixar e da franquia Star Wars. O público não pode esquecer dos contos de fadas protagonizados por princesas e heróis sem capas e armaduras. É fácil constatar isso pelas várias produções que estão dando ou que darão as caras no cinema. No primeiro semestre de 2019 foi exibido “Dumbo” e agora “Aladdin”. Até o fim desse ano e o início de 2020 ainda haverá “O Rei Leão”, “Malévola 2” e “Mulan”. Essa enxurrada de produções pretende ratificar o quase monopólio que o estúdio possui na indústria hollywoodiana recente. Claro que quantidade não significa qualidade e tombos serão frequentes. Pode-se dizer que “Aladdin” dá um leve tropeço, porém não chega a se espatifar completamente. O início do longa dirigido por um irreconhecível Guy Ritchie já apresenta o personagem título interpretado por Mena Massoud em suas peripécias pela cidade. Ele perambula no meio das pessoas fazendo pequenos furtos para poder comprar comida. Com grande conhecimento dos becos e atalhos da cidade, suas habilidades acrobáticas e a ajuda do esperto macaco Abu, Aladdin consegue se sustentar. Em uma de suas ações, o jovem conhece a bela princesa Jasmine (Naomi Scott), que se disfarça para andar junto do povo e vivenciar seus sofrimentos. Jasmine se afeiçoa pela sinceridade e liberdade de Aladdin, no entanto, não pode contar a ele sobre seu título real. Naquele mundo, uma princesa só pode se relacionar com um príncipe. Há ali o começo de um amor que será desafiado por todo um reino e, principalmente, pelo vilão Ja'Far (Marwan Kenzari) que busca apenas poder. Ja’Far precisa de uma lâmpada mágica para tomar o reino do atual sultão (Navid Negahban), mas não consegue tirá-la de uma caverna onde há inúmeros outros tesouros. Apenas alguém de bom coração pode entrar nessa caverna sem cair na tentação de levar qualquer outra joia e ser enterrado vivo como consequência. Aladdin consegue entrar na caverna, enganar Ja'Far e ficar com a lâmpada. Agora ele terá a ajuda do gênio (Will Smith) para se tornar um príncipe e se casar com Jasmine. O gênio, aliás, é quem proporciona os melhores momentos da projeção com suas boas piadas e pelo carisma de Will Smith, apesar do CGI mal feito que transforma o ator em um boneco digital capenga. Pior que o CGI são os alguns momentos musicais sem inspiração. Não é correto chamar “Aladdin” de musical, já que as cenas onde os atores cantam são apenas de reflexão, como peças soltas do roteiro que não possuem grande importância para a trama e que não levam o protagonista do ponto A para o B. Os atores se esforçam, como na performance de empoderamento de Naomi Scott ou nas danças de Smith, porém, não é o suficiente para que o espectador saia do cinema com as músicas “grudadas na cabeça”. Boa parte da culpa pelo desinteresse gerado é da direção, e quando dito acima que Guy Richie está irreconhecível, é por causa de sua atuação genérica nesse quesito. Não há nenhum vislumbre de seu estilo nas sequências de perseguição envolvendo o protagonista. Seus cortes rápidos, as câmeras inquietas e o seu sarcasmo não estão presentes. Alguns podem dizer que esses artifícios não caberiam em um filme feito para o público infanto-juvenil. Tudo bem, então porque ter Guy Richie e não qualquer diretor de encomenda disponível na indústria? Ocorre aqui o mesmo que aconteceu com Tim Burton em “Dumbo”: um diretor que vira uma marca de grife, apesar de Burton ainda conseguir incluir alguns elementos autorais em seu filme e de ser mais conhecido que Richie perante o grande público. No final, restam algumas boas piadas, um belo casal de atores e lindas paisagens feitas em computador dentro de um filme que é a cara da Disney, no melhor e no pior sentido.
Que atire a primeira pedra aquele que nunca chorou ou se emocionou em um filme romântico. Todos possuem pelo menos um deles como favorito e o leva na lista particular entre os melhores já assistidos. Pode-se citar algumas unanimidades: “Uma linda Mulher”, “Diário de uma Paixão” e, mais recentemente “A Culpa é das Estrelas”. Esse último é o grande “culpado” pela proliferação alarmante de produções com temáticas jovens e que possuem em sua premissa uma história de amor aparentemente impossível. Nada contra os filmes voltados aos apaixonados, o problema é quando esse filme é baseado em um livro desconhecido (pelo menos pelos mais adultos) e vira um caça-níquel vazio que toma os cinemas do mundo todo. Infelizmente, esse é o caso de “O Sol Também é uma Estrela”. No longa, Natasha (Yara Shahidi), uma imigrante jamaicana está prestes a ser deportada com sua família, e busca uma última chance de permanecer em Nova York com a ajuda de um grande advogado. Enquanto espera a reunião para saber sobre o andamento do processo, ela conhece Daniel (Charles Melton), um descendente de coreanos que vai fazer uma entrevista afim de conseguir uma recomendação para uma faculdade de medicina. O primeiro encontro se dá na estação central da cidade, quando Daniel fica encantado com a garota que está olhando para o teto da estação, ao invés de olhar para frente como todos os outros. Outra coisa que chama a atenção do garoto é que ela usa uma blusa com os dizeres “Deus Ex Machina”(é apenas uma citação mesmo, já que seu significado é ignorado) a mesma frase que ele escreveu em seu caderno de notas algumas horas antes, já que era uma ideia para um poema. Ele acredita em destino, ela é pragmática e confia na ciência. É esse contraponto e a deportação dela que os roteiristas usam como obstáculo para o relacionamento, e nenhum dos dois artifícios funciona. Isso porque o amor dela pela ciência é totalmente artificial, sendo exposto por meio de frases prontas presentes em orelhas de livros de Carl Sagan. Mais falso soa a fé de Daniel, que soltas coisas do tipo: “até o final do dia você estará apaixonada por mim, é o nosso destino ficarmos juntos”. Ou seja, ele a vê na estação, troca algumas palavras, fica perdidamente apaixonado e acredita que foi algo mágico que os uniu. Não há nenhum tipo de desenvolvimento dos personagens. São unidimensionais, fazendo com que o espectador passe a não se importar com seus desfechos. Mesmo a iminente deportação e os problemas familiares do garoto proporcionam algum tipo de substância à trama. Outro problema são as inúmeras coincidências que teimam em os unir, mas, afinal, é apenas o destino agindo em prol do amor. O que sobra são as andanças dos dois visitando pontos turísticos da cidade com muita câmera inquieta e fotografia granulada. A direção de Ry Russo-Young não ultrapassa o básico e fracassa na condução dos atores, que estão apenas lendo linhas de um roteiro ruim sem nenhum tipo de emoção ou química. Se há algo louvável é a escolha de um elenco multiétnico, fugindo daquele padrão dos loiros de olhos azuis tão comuns nesse tipo de produção. Claro que a questão dos imigrantes na era Trump também é mostrada de forma superficial, sem desenvolver um tema importante e atual da protagonista afro-americana que se apaixona por um asiático e tem sua vida destruída por uma política racista e xenófoba. Acho que era esperar demais de algo como “O Sol Também é uma Estrela”.
O nome Childish Gambino ganhou os holofotes e o reconhecimento do público em geral após o sucesso do clipe musical “This is America”. Donald Glover, o homem por trás do nome, já era conhecido na TV e nos cinemas, e adquiriu importância em um clipe que denuncia o racismo e o capitalismo exacerbado de forma crua e impactante. Dividindo seu tempo entre a atuação em grandes produções hollywoodianas e seus projetos autorais na música e na escrita de roteiros, Glover hoje é um artista requisitado e já respeitado, mesmo tendo apenas 35 anos. Por isso, quando está envolvido em um novo projeto, chama a atenção de muita gente.
Dito isso, é até anormal que o seu novo filme “Guava Island” não tenha recebido uma atenção maior por parte do marketing da Amazon, que lançou a produção em seu serviço de streaming sem muito alarde, mesmo tendo no elenco a grande estrela Rihanna e Letitia Wright, tão celebrada por seu papel de Shuri em “Pantera Negra”. Talvez o discreto lançamento de “Guava Island” seja porque não se trata de uma superprodução, e sim um filme quase independente. Até na sua duração é econômico: cinquenta e três minutos. No entanto, mesmo com poucos minutos de tela, a mensagem do roteiro Stephen Glover é clara e poderosa e alcançara seu objetivo de cunho social.
Na história, o músico Deni Maroon (Glover) vive com sua namorada Kofi Novia (Rihanna) em uma ilha dominada pelo tirano Red Cargo (Nonso Anozie), que usa toda a população do local como força de trabalho em sua fábrica. Como em um país de terceiro mundo da américa central, Cargo possui sua própria milícia para manter as pessoas controladas em uma realidade fechada e sem perspectiva de futuro. Maroon, o mais famoso artista, canta todos os dias na rádio para levar um pouco de alegria para o povo. Ele também pretende organizar um festival de música, mas possui seus planos frustrados por Cargo, que não quer seus trabalhadores com outra coisa na cabeça além do trabalho. O conflito entre os dois surge daí.
Conhecidamente, o embate entre a liberdade individual e a prisão do capitalismo criminoso só terminará por meio de uma revolução popular. O problema é que os moradores de Guava Island estão presos em uma realidade opressora. Essa prisão é reforçada pela escolha do diretor Hiro Murai em filmar com uma razão de aspecto 1.33, que corta as laterais da tela e tira a noção de espaço e a visualização total do ambiente. Ou seja, todos os personagens estão limitados a um pequeno quadrado, impossibilitados de contemplarem a beleza do paraíso tropical em que vivem. A fotografia, que emula os filmes em película em 16mm, dá ainda mais a impressão de algo perdido e mantido no passado, fora do mundo exterior.
O único que consegue visualizar o horizonte é Maroon por meio de sua arte. Arte essa que é exposta em números músicas durante a projeção (inclusive um pouco de “This is America”, citado acima), que empolgam a plateia e o povo. O som dos batuques e do violão aliadas à voz poderosa do cantor traçarão o caminho para além da tirania. Com certeza, “Guava Island” gerará discussões, que poderiam ser ampliadas se os outros personagens fossem melhor utilizados (é impressionante, mas Rihanna não canta) e se a história ganhasse mais alguns minutos de desenvolvimento. Claro que são apenas pontos de ampliação que não prejudicam o resultado de uma obra digna do cinema relevante no campo político e social da atualidade.
Nada melhor para um filme de terror do que ter em seus créditos James Wan, o cineasta responsável por “Aquaman”, e que fez seu nome com produções como “Jogos Mortais”, “Invocação do Mal”, e “Sobrenatural”. Claro que o marketing usa da falta de conhecimento do público em geral, que não vê diferenças entre produção e direção de um longa. Por isso, quando se estampa no poster: “com produção de...”, as pessoas não fazem distinção, e aprovam previamente qualquer coisa. É dessa aprovação prévia que “A Maldição da Chorona” depende, já que, ao longo de seus noventa minutos de duração, não demonstra qualidades que o sustentem como uma história no mínimo razoável. A trama é das mais prosaicas: a assistente social Anna Garcia (Linda Cardellini) resgata dois irmãos que aparentemente são maltratadas pela mãe. As crianças possuem marcas de queimaduras nos braços e são encontradas trancadas em um armário. Após isso, elas misteriosamente somem do abrigo para depois serem encontradas mortas por afogamento. Evidentemente que a casa onde a família morava era assombrada pelo espírito maligno de uma mulher que afogou seus dois filhos para punir o marido que a traiu. O fato aconteceu no México alguns anos antes e agora a força maligna da tal mulher leva todas as crianças afim de substituir as suas. Ela é chamada de chorona porque sua primeira aparição sempre se dá com o som de uma mulher chorando, o que atrai suas vítimas. Pois bem, agora sãos os dois filhos de Anna que correm perigo. Dependendo da habilidade de um cineasta em criar sequências que surpreendam o espectador pelas suas bizarrices ou que proporcionem medo genuíno (vide o excepcional “Hereditário”), um roteiro de terror simples pode gerar um filme assustador, infelizmente não é o caso de “A Maldição da Chorona”. Todos os sustos planejados pelo diretor Michael Chaves (que parece ser um protegido de Wan, já que dirigirá “Invocação do Mal 3”), são previsíveis. Sua câmera sempre se direciona para a parte mais escura da tela nas costas dos personagens, aguçando o espectador a pensar: “algo surgirá dali”. E sim, sempre uma “surpresa” surge da escuridão. Essa antecipação, reforçada pela trilha sonora exagerada, é extremamente prejudicial para a imersão, mostrando a mão pesada por trás das câmeras. Outro fator mal trabalhado é a maquiagem da Chorona. É difícil conter o riso quando ela aparece em close. Seu rosto pintado de branco e as lentes de contato amarelas lhe dão um ar de fantasia de Halloween amadora. Além disso, é frustrante quando, em um filme de terror, as cenas minimamente inventivas são as cômicas, que acontecem com algumas quebras de expectativas, ou com piadas aleatórias desferidas pelo padre/curandeiro Rafael Olvera (Raymond Cruz). O que sobra são momentos de correria, gritaria e lagrimas falsas. Nem mesmo a analogia que poderia ser feita em relação aos imigrantes indesejados que vão para os EUA levando suas maldições com a atual era Trump é válida, afinal, os roteiristas não procuraram toda essa profundidade na escrita do texto. A intenção por trás de “A Maldição da Chorona”, perceptível depois de uma superficial reflexão, era puramente comercial.
O cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é conhecido pelos seus filmes de grande duração e que abordam temas existenciais e com características próprias da cultura do seu país. Suas histórias são contadas de forma cadenciada, com planos estáticos e diálogos constantes. Sem dúvida, não é um tipo de cinema para qualquer espectador, principalmente para aquele que espera um clímax a cada cena. Sua obra é ficcional, mas lhe agrada a construção naturalista da mise-en-scène, imitando assim a vida real, onde a contemplação é mais presente que a ação. Em “A Árvore dos Frutos Selvagens”, o recém-formado Sinan (Dogu Demirkol) volta para a casa situada em um pequeno vilarejo da Turquia e encontra tudo exatamente da forma como deixou: seu irresponsável pai, o professor infantil Idris (Murat Cemcir ) que torra o dinheiro em apostas de cavalo e que deve para todos, sua mãe (Bennu Yıldırımlar) e irmã (Reyhan Asena Keskinci ) praticamente presas em casa, os amigos e o interesse amoroso ainda vivendo no local e seu quarto abarrotado de livros. Sinan é um jovem que expressa seu ódio pelo povo do vilarejo por meio de seu rosto sempre emburrado, sua postura curvada e as mãos no bolso, como uma espécie de autodefesa contra os ineptos. Com um ar de superioridade, ele vaga pelos campos e ruas sempre divagando sobre a miséria da existência de sua terra natal. A misantropia, o desprezo pelas origens e a negação dos costumes são evidentes, assim como os problemas de relacionamento com o pai. Afinal, o rapaz se espelhou nele ao ir para a universidade, e pretende passar em um concurso público para também se tornar professor. Por isso, o choque é grande quando vê que seu exemplo paterno se tornou um sujeito repugnante, que não consegue nem sustentar a família. O pai quer apenas se aposentar, criar ovelhas e viver da terra. Terra essa que o aceitou, quando, ainda bebê, ficou com o corpo coberto de formigas sem ser mordido. Sinan, ao contrário, pretende ser escritor, tem até um manuscrito escrito que espera um financiamento para ser publicado. Sinan acredita que seu livro é uma retratação pessoal do vilarejo, mas não consegue financiamento da prefeitura e nem mesmo de um bem-sucedido empresário para publica-lo, já que, para eles, não há ali nenhuma referência turística que poderia ser benéfica, e sim uma visão um tanto distorcida da região. Mesmo não entendendo completamente a realidade local, Sinan não consegue escapar dela. Isso é evidenciado pela mordida que recebe de Hatice (Hazar Ergüçlü) durante um beijo. Nesta cena, uma forte ventania balança os galhos das árvores ao mesmo tempo que faz o cabelo de Hatice esvoaçar, ligando a floresta com a mulher, como dois entes sobrenaturais em comunhão. A garota tira sangue dos lábios de seu antigo amante, marcando-o. Deixa-o sem saídas. Ele vai tentar escapar, mas não terá sucesso. Sem possibilidade de fugir, Sinan vai tentar destruir o que está à sua volta. Como um presente digno daquele recebido pelos troianos, o estudante bem-sucedido na universidade volta com o ódio escondido dentro de si, soltando-o contra quem se mostra um adversário na sua guerra pessoal. Umas das vítimas é um escritor popular que é visto pelo rapaz como um subproduto de uma sociedade boçal. Ou seja, a cultura também precisa ser destruída. O vilarejo onde se passa a história faz parte da província de Çanakkal, que hoje possui um sítio arqueológico da antiga Tróia. O cavalo está presente como monumento e Sinan entra nele, ou entra em si mesmo, já que se trata de um momento de sonho. Como um estudo de personagem “Árvore dos Frutos Selvagens” mostra todo o processo de aprendizado do protagonista ao desconstruir suas convicções e chocar a realidade com sua ideologia. Ceylan mostra mais uma vez habilidade em construir uma narrativa que, apesar de parecer maçante, é interessante pela proposta. Muito do interesse vem do excepcional último ato, onde a montagem e a fotografia dão o parecer final sobre os destinos dos personagens. É com apenas alguns cortes que o diretor consegue misturar belamente o real com a fantasia sentimental. Imagens de arrependimento mortal saem da cabeça do filho e se materializam em tela, para depois, sobre o olhar do pai, serem desfeitas para os espectadores, que não sabem de inicio se o que vêm se concretizou ou não. Neve e neblina tomam conta dos derradeiros minutos, tornando o horizonte chapado. Apenas com a câmera nas alturas, quase angelical, é possível ver o caminho dourado da estrada cercada pelo branco da neve onde o caminhão que abriga pai e filho os leva para a simples tarefa de buscar feno paras as ovelhas. Simples, porém acalentador.
Lixo!! Usaram uma foto do Sebastião Salgado, tirada em 1986 na Serra Pelada, e disseram que se tratava de uma foto da Guerrilha do Araguaia. Nem sei porque está aqui, uma rede social para fãs de filmes e não de panfletinhos políticos feitos por amadores.
A imagem do cineasta Tim Burton é ligada aos filmes sombrios. Quando a palavra “sombrios” é colocada separadamente, pode-se entender que a sua obra possui viés pessimista. Porém, o que acontece é exatamente o contrário. Usando como exemplo um grande sucesso, “Edward Mãos de Tesoura”, é possível notar a sua predileção pelo bizarro, mas sem perder a capacidade de criar um personagem sensível, que busca algo acalentador em uma realidade opressora. A sua nova empreitada “Dumbo” também conta com momentos lúgubres e o simpático elefantinho voador sofre um bocado. Burton, no entanto, não é masoquista, ele quer um final feliz, só prefere traçar caminhos diferentes até que o objetivo seja alcançado.
Na verdade, “Dumbo” faz parte da nova fase de um diretor que ainda usa de um design de produção gótico e até busca um pouco das sombras usuais de sua produção passada, mas que perdeu para os grandes estúdios a capacidade de escrever histórias que façam jus ao seu estilo tão conhecido. Não se tem mais a empolgação de antes quando é anunciado o novo filme de Tim Burton. Parece que virou um diretor de encomenda, encarregado de passar seu verniz em readaptações, como em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “Alice no País das Maravilhas” e agora “Dumbo”.
Por isso, não se espera grandes surpresas na história de Holt (Colin Farrell), um soldado que volta da guerra sem um braço e precisa reconstruir sua carreira no circo onde conheceu sua falecida esposa, ao mesmo tempo que tenta criar os dois filhos. Holt, antes um cavaleiro de espetáculo, se torna um cuidador de elefantes, a mando do dono do circo, o trambiqueiro Medici (Danny DeVito). Após uma fêmea de elefante vinda da Ásia dar à luz a um filhote com enormes e exóticas orelhas, a vida do homem sofre uma transformação. O pobre animal logo vira motivo de piada e é colocado junto ao número dos palhaços nas apresentações. Os filhos de Holt passam a cuidar do filhote e dão a ele o nome de Dumbo. Também são os filhos que descobrem a capacidade de Dumbo de voar batendo suas orelhas.
No meio disso tudo há o caricato vilão Vandemere (Michael Keaton), que separa Dumbo de sua mãe e a bela trapezista Colette (Eva Green), que se torna uma aliada do bem. A trama é confeccionada de forma clássica, o que banaliza o filme com seus conflitos, clímax e resoluções manjadas. Evidentemente que se trata de algo pensado para o público infantil, tirando qualquer anseio por um drama mais sério. Mas, o fato de haver Tim Burton nos créditos levará muitos marmanjos desavisados ao cinema esperando temas adultos, como a exploração animal para entretenimento. Até que esse tema é abordado, lá no final em uma sequência leve e breve de acontecimentos, no entanto, nada que satisfará qualquer protetor da natureza. O que sobra são alguns momentos de aventura bem elaborados e traços sensíveis ao abordar a dificuldade de seres diferentes (orelhas grandes, falta de algum membro no corpo) de se adaptarem em seus meios ou de serem aceitos por seus iguais. Só isso não basta para um filme que tem um ícone na direção, a não ser que seu nome tenha se tornado uma simples ferramenta de marketing.
As mulheres lutam por igualdade desde o início da sociedade dita desenvolvida. Em uma batalha constante por reconhecimento e manutenção de seus direitos – não querem mais direitos, apenas equiparação – as derrotas são diversas, mas as vitórias são grandiosas, devido à dificuldade dos obstáculos que enfrentam no caminho. Quantas histórias já foram contadas sobre ícones femininos que quebraram paradigmas, que mudaram a história? De fato, são diversas, porém, parece que a grande revolução nunca chega, e o machismo, o sexismo e a misoginia sempre saem vitoriosos. Felizmente, elas nunca param de lutar, e de pouco em pouco subvertem regras que teimam em perdurar. Por isso, cada uma daquelas histórias serve para a geração do presente e para a do futuro, e o futuro, com certeza, se apropriara da vida de Ruth Bader Ginsburg. Em “Suprema”, Ginsburg (Felicity Jones) é uma brilhante estudante que consegue uma das primeiras vagas para mulheres na prestigiada faculdade de direito de Harvard. Ela segue os passos do marido, Martin D. Ginsburg (Armie Hammer), um veterano no curso. O ano é 1956 e os EUA está em ebulição devido ao início da guerra do Vietnã. Há inúmeros protestos contra o conflito, basicamente liderados por jovens que veem um país quebrado ideologicamente e que não respeita os direitos civis de seus cidadãos. As mulheres naquele ano representam – de acordo com dados apresentados no filme – 51% da população, no entanto, são tratadas como se fossem uma minoria relegada a trabalhos de empregadas domésticas, secretarias ou donas de casa. Esse é o caso de Ruth, que, mesmo estando no mesmo patamar do marido ou até em nível superior em relação ao conhecimento do direito, não consegue trabalho em um grande escritório após se formar. Na verdade, ela não consegue em nenhum escritório, tendo que dar aula em uma universidade, enquanto ele desfruta de grande prestigio na área. O marido não é o problema no filme dirigido por Mimi Leder, já que se trata de um homem que entende a igualdade entre os gêneros e que luta para que sua mulher tenha o destaque que merece. Outros, como o reitor Erwin Griswold (Sam Waterston) e o professor Brown (Stephen Root), tentam pressionar Ruth para que ela largue o curso e devolva a vaga para algum aluno do sexo masculino que não conseguiu passar no processo. Essa pressão é bem desenvolvida por Leder em sua direção e mise-en-scène. Basta notar a primeira sequência, onde Ruth caminha com sua roupa azul no meio de uma multidão de homens de preto, ou quando ela é cercada por vários deles em um elevador. Os homens estão em toda a parte, tirando o seu espaço. Mesmo a altura do marido é um fator de opressão quando os dois são enquadrados frente a frente. Ela pequenina e ele um gigante. Se a direção apresenta conceitos interessares, o roteiro não sai do comum, mesmo que seja emocionante ver todo o trajeto de vitória de um ícone da justiça norte americana. Há o básico arco de aprendizagem da personagem com seus obstáculos, derrotas e vitórias. A conclusão é evidente por se tratar de uma história baseada em fatos, o que não tira o prazer de presencia-la em sua importante mensagem feminista. Se antes os homens perseguiam Ruth, agora eles a seguem em uma bela cena onde ela sobe as escadarias da suprema corte olhando determinada para cima, em direção à câmera em plongée. Em seu discurso final, seu rosto enche a tela, e a fabulosa Felicity Jones pode usar todo o seu talento para fazer com que a plateia segure o folego e escute com a atenção o que aquela poderosa mulher tem a dizer.
Lars Von Trier nunca foi um cineasta fácil, seus filmes seguem caminhos subjetivos que abrem discussões acaloradas de quem os defendem com aqueles que os odeiam. Porém, gostando ou não, obras como “Melancolia”, “Anticristo” e “Ninfomaníaca” são vistas como representações artísticas respeitáveis, levando em consideração suas inovações narrativas e estéticas. Von Trier usa elementos externos e, principalmente, internos para criar. O interno toma forma em uma situação ou personagem que são a essência de seu criador. Por isso, o novo “A Casa que Jack Construiu”, pode ser entendido como uma espécie de carta de arrependimento ou tentativa de redenção por tudo que Von Trier foi acusado nos últimos anos: o banimento do festival de Cannes por ter dito que entendia Hitler, as acusações de misoginia que muitos veem impressos em alguns de seus longas e os maus-tratos a algumas atrizes com quem trabalhou. Claro que outros diretores famosos já podem ter feito filmes como terapia, mas não de forma tão clara como cineasta dinamarquês fez aqui.
A trama segue Jack (Matt Dillon), um serial killer com transtorno obsessivo compulsivo por limpeza, que executa suas vitimas – em sua maioria mulheres – e as mantém em uma câmara frigorifica como se fossem uma coleção pessoal, para depois posicionar os corpos e tirar fotos do resultado, instituindo o que chama de arte da destruição. Ele é convicto de que está em um processo criativo durante aqueles atos bárbaros. Sua justificativa é que, na decomposição, o material orgânico se transforma em carbono e volta ao ambiente para criar, no futuro, novos organismos. Ou a vida a partir da morte. Paralelamente ele projeta e começa a erguer o que diz ser uma casa perfeita, porém, nunca consegue avançar além da estrutura. Quando não é o material que o desagrada é o terreno que está fora do padrão ideal. Incapacitado de construir algo, ele precisa destruir (e achar que constrói no processo) para se realizar artisticamente. As vitimas são telas em branco que precisam ser trabalhadas.
Jack narra toda a sua trajetória em um dialogo em Off com o poeta romano Virgílio, que não vê nas aberrações do assassino algo sequer que o aproxime de um artista, fazendo o clássico e pós moderno entrarem em conflito. A narrativa é construída em cinco capítulos e um epílogo, sendo cada capitulo um assassinato. No meio dos capítulos há ilustrações para explicar algum ponto filosófico da discussão. O que torna “A Casa que Jack Construiu” tão magistral é a evidente transposição de Von Trier para a tela na pele de Jack. Como exercício de autocrítica, os crimes pelos quais é acusado (injustamente ou não) são representados pela violência gráfica e ideológica. Mulheres sofrem cruelmente, a arte nazista/fascista é exaltada, a sua própria arte é julgada e destruída e, enfim, é enviado ao inferno, onde caminha junto de Virgílio, seu guia até as profundezas onde será sua morada eterna. A câmera não tem vergonha da violência e registra tudo sem cortes. Movendo-se em seu eixo horizontal e dando zooms rápidos nos rostos dos atores, parece ansiosa por mais sangue derramado ao vislumbrar potenciais presas antes de abatê-las. Fotografado com a crueza da granulação, o filme possui explosões de cores ao mostrar o furgão e as peças de roupa do psicopata em vermelho intenso, na mesma proporção do que é visto no cenário dos crimes e no inferno.
Jack/Von Trier tenta fugir do inferno, mas acaba caindo no seu ultimo nível, onde estão as almas que mais sofrem. A tela preta vem a seguir e com ela a música de Ray Charles enche as caixas de som do cinema com os refrães: ”Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more...”, deixando a dica de um possível final da carreira do cineasta ou seu recomeço em um próximo filme mais otimista.
The Last Days of American Crime
1.7 97 Assista AgoraPara se fazer um bom filme, é preciso que haja um bom roteiro, isso é óbvio. Ter apenas uma boa ideia não basta. No entanto, a falta de bons roteiros é, para usar uma expressão do momento, pandêmica atualmente, mesmo que ideias “geniais” apareçam todo o tempo. Esse problema é mundial, e apenas alguns cineastas conseguem fugir dele através de seus talentos acima da média. O restante bate cabeça e tenta ao acaso ver seus filmes com boas ideias fazerem sucesso, independentemente da sua incapacidade como realizadores audiovisuais. Bem, então é preciso avisar para esses que o acaso não ajudará quando suas obras possuem um bando de referências porcas, cenas de ação patéticas e diálogos rasos, como na nova produção dirigida por Olivier Megaton, “The Last Days of American Crime”, lançada na Netflix.
A história do longa é sobre o ladrão de bancos Graham Bricke (Édgar Ramírez) que acaba envolvido em um bilionário roubo à Casa da Moeda dos EUA com o casal formado por Shelby Dupree (Anna Brewster) e Kevin Cash (Michael Pitt). Até aí nada de mais, já que são inúmeros os filmes sobre assaltos produzidos durante o ano. Contudo, o que torna a trama de “The Last Days of American Crime” diferente das outras é que o roubo planejado por Brick será o último antes que o governo comece a usar uma espécie de sinal que afeta o cérebro daqueles que tentem cometer algum crime. Então, o plano é roubar mais de 1 bilhão de dólares e depois fugir para o Canadá.
De fato, se trata de uma boa ideia, mas ela não veio do roteirista do filme Karl Gajdusek, e sim do quadrinista Rick Remender, que teve sua obra homônima adaptada. O que Gajdusek fez, provavelmente, foi destruir, com seu texto confuso, afetado e vazio, o que de melhor há nos quadrinhos. Para completar, a direção quase amadora de Megaton acaba colocando uma pá de cal nas pretensões da Netflix em ter mais um sucesso de qualidade em seu catálogo. Exemplificando sem muitas delongas: basta dizer que não há um único diálogo durante as mais de duas horas de exibição que não seja expositivo ou patético.
Os personagens, em meio a isso, são pobremente construídos, como é o caso do policial William Sawyer, interpretado pelo bom Sharlto Copley. Suas motivações não são demonstradas; a única coisa que o espectador fica sabendo é que ele tem prazer em ser policial. Seu caminho se cruza com os dos protagonistas apenas para ser mais um mísero obstáculo a ser superado. Um desperdício de ator.
Nem mesmo o protagonista gera qualquer conexão com o espectador, e olha que Ramírez goza de carisma e de talento para a atuação. Seu personagem é tão mal construído pelo roteiro que não dá para esperar que ele gere cumplicidade. É apenas um bandido e assassino sanguinário. O romance dele com Dupree piora a situação por não ter emoção ou química. Contudo, o pior deles é Cash, que foi escrito para ser um poço de referências, começando por Travis Bickle de “Taxi Driver” (sim! Há a cena do espelho) até Tony Montana de “Scarface” (mais uma vez: sim! Há a cena com a metralhadora, ele só não fala “say hello to my little friend”, mas aí seria demais). Com isso, a atuação de Pitt é prejudicada porque não pode ir além da gritaria e das frases de efeito; fazendo-o exagerar na dose de loucura em alguns momentos completamente irritantes.
O que poderia salvar essa pretensa peça cinematográfica e transformá-la em entretenimento puro seria a ação – como acontece com alguns blockbusters sucessos de bilheteria – só que ela é completamente prejudicada pelo estilo picotador de videoclipe de Megaton, que não deixa que as sequências sejam devidamente degustadas. Tudo é rápido e urgente. Além disso, ele se esforça tanto para conferir estilo à sua direção que a torna repetitivamente cafona, como em outros filmes de sua autoria. Talvez, sua veia autoral estivesse pulsando ao máximo, só que nela não passa qualquer sangue artístico, infelizmente.
Devorar
3.7 370 Assista AgoraDiscussões sobre a vida das mulheres deveriam ser feitas pelas próprias mulheres, mas não é isso que acontece em uma sociedade dominada pela figura masculina que toma conta dos governos, das religiões e das famílias. O sofrimento do sexo feminino se intensifica de várias maneiras, principalmente quando a maternidade entra em foco, com o aborto como tema central. Todas essas questões são discutidas no filme “Devorar” de Carlo Mirabella-Davis, que segue a vida de Hunter (Haley Bennett), depois de casar-se com o rico Richie (Austin Stowell), passando também a conviver com o pai (David Rasche) e a mãe (Elizabeth Marvel) do rapaz, em uma bela casa. Com o marido sempre trabalhando e com as constantes intromissões dos sogros, Hunter se sente perdida no próprio casamente. Em decorrência disso, ela desenvolve uma inesperada vontade de engolir vários tipos de objetos.
A compulsão por engolir, para depois expurgar de forma dolorosa, é negação antecipada ao bebê que descobre estar esperando. Ela diz à psicóloga contratada pela família que o prazer vem ao sentir o gosto e a textura dos objetivos em sua boca antes de engoli-los, e não da ação de engolir. Aí surge o paralelo com o sexo feito de forma quase animal com o marido. Há o prazer do ato, mas não a vontade de engravidar. Agora seu corpo foi invadido por um “objeto estranho”, e não há a certeza se deve mantê-lo ou não. Essa dúvida é externada quando, ao decorar o quarto do bebê, ela deixa metade da janela de vidro coberta com uma película vermelha, enquanto a outra metade mostra a vida da floresta do ambiente externo. Vida e morte em plena disputa naquele espaço.
Bem, tudo piora quando Hunter descobre que o marido é um crápula abusador. Então, passar por uma gravidez indesejada e ainda de um homem desprezível é algo extremamente difícil. Sem ninguém para apoiá-la – mesmo casada, vivia solitária – terá mais um obstáculo para superar sozinha e depois esperar por algo melhor, que pode nunca vir. Como desgraça pouca é bobagem, ainda há traumas não superados do passado. Traumas esses que não serão comentados neste texto para evitar spoilers. O que pode ser dito é que Hunter possui, além da compulsão por engolir objetos, problemas psicológicos causados por atos graves cometidos por seu pai, e esses são de difícil resolução.
Para carregar toda essa complexidade que a trama apresenta, era preciso uma atriz competente, e o trabalho de Bennett merece ser reconhecido. A atriz cria uma mulher confusa com seus próprios atos. Sua voz gentil e condescendente esconde uma pessoa destruída, o que aflora com choros espontâneos e desesperados. Sua submissão vem através de sua linguagem corporal composta pela cabeça baixa e pelas costas levemente inclinadas. Os olhos marejados e as palavras que querem sair da boca, mas que ficam apenas nos balbucios, completam essa figura subjugada.
Claro, não é para menos, já que a pressão é enorme, e a direção de Mirabella-Davis destaca isso ao colocar a mulher sempre em posição de inferioridade, como nos planos que mostram seu marido em um local mais elevado. A cena em que ela trabalha em um jardim enquanto ele a vigia de uma janela superior é um exemplo. Há também o cerco feito pela família do rapaz, com a mãe, o pai e um segurança a rodeando. Então, mesmo em uma mansão exageradamente espaçosa, ela quase não consegue respirar ou pensar por si mesma. Hunter, ao contrário do que significa seu nome, será a caça em uma selva dominada por predadores irracionais. Infelizmente, essa é a situação de muitas mulheres no mundo real e dito civilizado.
Uma Mulher é Uma Mulher
4.1 268O crítico Jean-Luc Godard, após escrever para a mítica Cahiers du Cinéma, decidiu fazer seus próprios filmes. Com os outros colegas (Agnès Varda, Claude Chabrol, François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette) fundou o movimento que marcou o cinema francês e o mundial: a Nouvelle Vague. Godard começou sua carreira cinematográfica com “Acossado”, de 1960 e não parou desde então. Mas, logo após a estreia com sucesso atrás das câmeras, ele começou uma parceria duradoura com Anna Karina – a musa da Nouvelle Vague – no fenomenal “Uma Mulher É Uma Mulher”, de 1961.
A trama do longa é bem simples: Angela (Karina) quer ter um filho com o companheiro, Émile (Jean-Claude Brialy), com quem vive em Paris. O problema é que o rapaz diz a ela que é melhor esperarem. Não é a hora para ter um filho! Com a recusa, Angela vê no amigo Alfred (Jean-Paul Belmondo) – que é atraído por ela – o candidato para engravidá-la. O que a impede de consumar o ato é o amor que sente por Émile. O triangulo amoroso que é formado a partir daí poderia ser bem banal se estivesse nas mãos de outro cineasta. Godard, no entanto, o transforma em uma colcha de retalhos (no melhor sentido do termo), que mistura musical, ópera, drama e comédia.
O filme é quase um experimento para o cineasta, que usa todas as técnicas possíveis de edição, movimento de câmera e som disponíveis na época. A quarta parede é constantemente quebrada, como se os intérpretes estivem falando com o diretor ao ensaiarem as cenas, ou mesmo com algumas piscadelas de cumplicidade. Enquanto os atores interpretam teatralmente seus papeis, a música é quase constante, às vezes pontuando momentos importantes estridentemente, como nas óperas. Tudo isso recortado pela edição ágil de Agnès Guillemot e Lila Herman, que brincam com o surrealismo quando fazem a protagonista entrar seminua de um lado de uma cortina, para depois sair totalmente vestida do outro lado, de forma instantânea, ou quando essa mesma protagonista lança um ovo frito da frigideira para cima e vai atender um telefone fora do apartamento. Quando volta à cozinha, ela apanha o ovo diretamente em seu prato quando ele cai do teto.
Além desses, ainda há os artifícios que Godard usa para expor a falta de comunicação entre o casal, como o fato de usarem os títulos de livros para montar as palavras que expressam os seus sentimentos em “discussões” antes de dormir, ao invés de simplesmente falarem um com o outro, e os balbucios quando brigam durante o escovar de dentes. A lista de momentos como esses é enorme em maior e em menor complexidade, mas parece que a função deles é clara: fazer com que os homens da história sejam influenciados pelo poder feminino, que pretende atingir seus propósitos por meio da manipulação. Então, enquanto ela manipula seus pretendentes, os seus cúmplices por trás das câmeras fazem o mesmo com os espectadores.
A mulher é, talvez, o tema principal, mas a confecção do filme não pretende entregar nada de mão beijada para quem o assiste, fazendo com que cada frame possua significados diversos, mesmo que o objetivo principal seja o de mostrar as dificuldades de relacionamento de um jovem casal parisiense. No final, há um brilhante paradoxo entre o realismo – as imagens são quase documentais, filmadas nas ruas e não em cenários e o uso de atores não profissionais à época – e a fantasia típica do cinema feito em Hollywood, já que a irrealidade está estampada nos diálogos, nas atitudes dos personagens e nas respostas que recebem do universo diegético. Obra Prima!
Jumanji: Próxima Fase
3.3 441 Assista AgoraTodos sabem da dificuldade que Hollywood possui em produzir filmes baseados em jogos de vídeo games. Houve várias tentativas, mas ou foram desastrosas, ou só atingiram a superfície do que era esperado pelos gamers/cinéfilos. Bom, já que não se consegue adaptar decentemente “Street Fighter”, “Doom” ou “Resident Evil”, pelo menos há um jogo imaginário que faz sucesso nas telonas: “Jumanji”. Contando com o popular longa de 1995, estrelado por Robin Willians e “Bem-Vindo à Selva”, a franquia formou uma base de fãs que foi revertida em números expressivos de bilheteria. Além disso, também goza de uma boa receptividade por parte da crítica.
É na tentativa de continuar nesses bons caminhos que “Jumanji: Próxima Fase” apresenta novos elementos e novos personagens a uma trama que mostra o quarteto de amigos voltando ao jogo. O primeiro a revisitar Jumanji é Spencer (Alex Wolff), que se sente deslocado em sua nova vida de universitário em Nova York. Após o desaparecimento repentino do rapaz, seus amigos Martha (Morgan Turner), Fridge (Ser’Darius Blain) e Bethany (Madison Iseman) vão ao seu resgate, agora com a ajuda de Eddie (Danny DeVito), avô de Spencer e seu antigo sócio Milo (Danny Glover), que são sugados pelo jogo junto com os jovens.
Inclusive, a adição de dois jogadores idosos, que não entendem que estão em uma realidade virtual, é um dos melhores fatores de comédia do longa, principalmente porque o calmo e lento Milo vira Mouse (Kevin Hart), o zoólogo do grupo. As situações em que ele precisa discursar sobre alguns animais perigosos são hilárias. Claro que a capacidade cômica de Hart se torna primordial nessas cenas. Já Eddie ganha as formas de Dr. Bravestone (Dwayne Johnson) e se delicia com seus novos poderes. Para um homem que vive reclamando das limitações da velhice, é recompensador estar em um “corpo” em forma. O que não desaparece com o upgrade é sua personalidade ranzinza, muito bem representada por Johnson.
Para guiar os dois por este mundo cheio de perigos, Martha incorpora a habilidosa Ruby Roundhouse (Karen Gillan) e Fridge o Professor Oberon (Jack Black). Os jovens conhecem muito bem as regras do jogo, e sabem que elas podem ser mortais. Provavelmente, a mais importante regra seja a quantidade limitada de vidas que cada um possui e que, quando acabam, morre-se na vida real. O roteiro usa muito bem essa questão, matando sem dó os personagens principais. Isso gera tensão no espectador, que não sabe o que pode acontecer em cada desafio enfrentado. Por isso, cada respawn é deveras preocupante, já que pode ser o último.
A possibilidade de trocar de avatar também se torna útil ao texto, pois abre o horizonte para mais cenas de comédia e piadas. No entanto, não é só nos risos que se apoia “Jumanji: Próxima Fase”, há ainda boas cenas de ação, em especial a que envolve avestruzes gigantes no deserto, e até certo grau de drama inserido na história de amizade entre Eddie e Milo. Ao juntar esses fatores, é correto afirmar que o filme de Jake Kasdan conseguiu se alinhar a seus antecessores ao gerar bastante diversão descompromissada, com ênfase em “descompromissada”. Dito isso, se há algo que poderia ser diferente, são as mais de duas horas de duração do filme. Talvez, uma encurtada no primeiro ato deixaria a experiência um pouco menos cansativa. Sim, até a diversão pode cansar algumas vezes.
Foro Íntimo
2.8 5No Brasil atual a justiça está passando por uma crise de identidade. Ela vê sair de suas entranhas alguns dos mais sórdidos malfeitores. De dentro das instituições que seriam guardiãs das leis há uma fuga de ratos. Parte do povo não consegue acreditar que juízes e promotores, antes heróis nacionais por causa da Lava jato, estão envolvidos em falcatruas que visam o poder político, ou simplesmente dinheiro. A ingenuidade de achar que apenas os políticos e os criminosos habituais podem cometer atrocidades ficou no passado. Não em um passado muito distante, mas o de uns dois anos atrás, e é desse passado que vem “Foro Íntimo” de Ricardo Mehedff.
Mehedff, responsável pelo roteiro junto com Guilherme Lessa, constrói sua história de forma dicotômica, onde o bem e o mal são bem delineados pelo roteiro. Nela, um juiz (Gustavo Werneck) precisa se exilar em um fórum cercado de seguranças armados depois que passa a julgar os crimes cometidos por um senador corrupto. O juiz possui uma inabalável ética profissional e prefere ficar trancado no local do que abandonar a importante função, mesmo que sua vida corra perigo. Os únicos desvios identificados no homem são de cunho sexual, sua moral é inabalável. Descrito como uma produção de 2017, mas filmado bem antes disso, “Foro Íntimo” mostra um Brasil muito fácil de decifrar, o que já não é mais assim, infelizmente.
Apesar de parecer algo irreal aos olhos dos mais céticos, se trata de uma história baseada em acontecimentos reais. Contudo, a direção de Mehedff busca outros caminhos além do realismo e acerta em uma confecção narrativa que bota um pé no fantástico e no expressionismo. Com um clima opressor apoiado na razão de aspecto 4:3, o Juiz, personagem principal, fica praticamente encaixotado nos planos. Principalmente quando é enquadrado em contra-plongée e o teto parece esmagá-lo. O preto e branco da fotografia também é um aliado para enfatizar o clima lúgubre e pessimista.
Com isso, o Fórum se torna uma grande masmorra, o que acaba por degradar a condição psicológica do Juiz, que passa a ter alucinações com formigas saindo da ventilação, da comida e das paredes. Clara referência a “Pi” de Darren Aronofsky, evidentemente. Porém, o que realmente importa é que o juiz representa todo um sistema judicial acuado diante de políticos corruptos e de todo o tipo de bandidos, pelo menos na realidade da época em que o longa foi filmado. Sua autonomia se torna refém de interesses escusos. Hoje, no entanto, é sabido que os bons e os maus se confundem em uma amalgama de intenções.
Por fim, “Foro Íntimo” é um bom filme, com boas intenções, que só peca pela ingenuidade e por não ter alguns minutos a mais que tornariam sua conclusão menos apressada. Outro problema é seu final abrupto que dá a impressão de obra inacabada. Claro que a intensão pode ser a de isenção, ou a falta de uma ideia de resolução do problema por parte dos roteiristas, entregando ao espectador a tarefa de refletir a respeito. Este artificio já funcionou muito bem em outras produções, aqui só deixou aquela vontade de ver um clímax.
Ad Astra: Rumo às Estrelas
3.3 853 Assista AgoraO que é a vida senão uma jornada através do espaço tempo. A estrada construída pela ilusão de tempo proporcionada pela rotação da terra em torno do sol é o que a humanidade conhece como caminho “real”. Além das fronteiras da via láctea nenhum homem jamais olhou diretamente. Presos em um pedaço de rocha que se move no vácuo, os mais curiosos da espécie tendem a se virar para as estrelas e se perguntar se há mais alguém por lá. Provavelmente nunca terão a resposta, pelo menos de acordo com o que diz o Paradoxo de Fermi. A ausência de sinais de vida inteligente em um universo infinito pode causar um extremo sentimento de solidão em indivíduos mais conscientes, mesmo que eles estejam rodeados de outros sete bilhões de irmãos.
Bom, já que a ciência não dá as respostas a esses indivíduos, o cinema ameniza suas miseráveis vidas ao preencher as lacunas e ao criar utopias. No processo, compete e ganha de lavada das religiões, por causa de sua inteligência, criatividade e capacidade de divertir. Através das telas é possível presenciar a colonização de outros planetas, a descoberta de buracos de minhoca, o contato com alienígenas, a batalha contra discos voadores invasores, etc. A imaginação do roteirista é o limite.
Para aumentar o número de produções que se enveredam pelas galáxias fictícias em busca do desconhecido, afim de proporcionar as tão necessárias fantasias, há “Ad Astra – Rumo às Estrelas” de James Gray. No filme, o astronauta Roy McBride é chamado pelo governo para uma missão secreta que precisa investigar misteriosas e mortais ondas de energia vindas de Neturno. McBride é escolhido, não só porque é bom no que faz, mas também porque é filho de Clifford McBride (Tommy Lee Jones) um pioneiro nas viagens espaciais que perdeu o contato com a terra há trinta anos, exatamente no local de onde vêm as ondas.
O solitário filho, que cresceu sem a figura paterna, agora terá que ir atrás do pai em uma árdua jornada que passará pela lua e por marte. Tudo será ainda mais difícil por causa de sua personalidade que não comporta a inclusão de qualquer tipo de relacionamento. Ele está sozinho dentro de si, e a narração em voz over entrega um homem que só consegue ouvir sua própria consciência. “Ad Astra – Rumo às Estrelas” é uma história reflexiva, existencial e heroica, que teria tudo para ganhar a atenção dos fãs de sci-fi e se tornar mais um cult do gênero, mas James Gray não consegue ser totalmente feliz na execução.
Para começar, Gray parece não ter decidido qual caminho seguir entre ser relativamente fiel à física ou mergulhar nas impossibilidades do sci-fi puro. Afinal, na diegese, há som no espaço? Em alguns momentos é possível ouvir as explosões e em outros não. A tecnologia representada no filme pode fazer um ser humano viver por 30 anos em gravidade zero ou uma viagem de três meses pode resultar em danos psicológicos e físicos? As duas possibilidades estão presentes entre o segundo e o terceiro ato. A não definição das regras atrapalha o espectador na imersão e o faz se afastar do tema principal.
Além disso, o roteiro, do próprio Gray, peca ao criar situações que apenas servem como obstáculos para a missão de McBride, mas que não estão ligadas à trama principal. Como exemplos, há os momentos na Lua, com um ataque de piratas, e o socorro prestado a uma nave à deriva, que retarda a chegada a Marte e trás novos perigos. É como se o roteirista sentisse a necessidade de dificultar a jornada e, no processo, fazer de “Ad Astra – Rumo às Estrelas” um filme com alguns momentos de puro entretenimento. Assim, demonstra certo medo de que o público ache sua obra enfadonha em sua proposta reflexiva. Talvez, as comparações que poderiam surgir com o “chato” ”2001 – Uma odisseia no Espaço” ou com os filmes sensoriais de Terrence Malick sejam as culpadas pela construção de tais cenas. Será que o aclamado cineasta pensou com a cabeça do público não cinéfilo?
Agora, por outro lado, foi a técnica apurada que tomou conta da cabeça dos responsáveis pela fotografia e pelos efeitos visuais, já que, junto com a atuação de Pitt – que será melhor detalhada abaixo – são excelentes. O uso do fotógrafo de “Interestelar”, Hoyte Van Hoytema e do CGI de ponta entregam cenas de espaço deslumbrantes. Gray, também se aproveita de Van Hoytema, e sua experiência com filmes espaciais, para causar no espectador a impressão de isolamento. A solidão que o personagem de Pitt sofre é representada pelo fato de sempre estar sozinho em cubículos característicos de cápsulas, estações e naves espaciais. Por vezes, há uma barreira como um vidro ou mesmo um capacete separando-o da câmera. Nos momentos reflexivos do astronauta, os planos se fecham, tirando toda a profundidade de campo. Há ainda o mergulho nas trevas, seja da imensidão do espaço ou de instalações mal iluminadas das bases estelares.
Ambientes como esses só poderiam afetar negativamente uma espécie social como a humana, e a atuação acima da média que Pitt constrói é uma amostra disso. Ele incorpora um personagem contemplativo e triste. Suas expressões são discretas, controladas, e as Interações com os outros personagens são breves e desconfortáveis, mostrando sua profunda introspecção. As únicas vezes que se abre são durante as avaliações psicológicas, mas essas são feitas por um computador.
A solidão do astronauta é a mesma que sente todo o ser humano em relação a um universo cheio de matéria, porém, como dito no início, sem evidências de vida inteligente. O infinito que rodeia o pequeno planeta azul chamado Terra é morto. Pensando neste problema, a conclusão é que será preciso, de fato, que a humanidade se una como espécie, pois o niilismo da existência exige que os laços afetivos sejam reforçados. Expandir, ao invés de retrair, é a resposta. Como no Big Bang, terá que ser uma expansão rápida e continua, para que não haja o regresso e a implosão. O astronauta descobre isso, pena que o diretor responsável pela condução de sua jornada a faça de forma insatisfatória.
Adeus à Noite
3.3 8 Assista AgoraNos últimos anos, o mundo ocidental acompanhou com perplexidade os inúmeros ataques terroristas cometidos em suas terras. O grupo Estado Islâmico foi o maior culpado por esses ataques e virou o grande inimigo da humanidade. Séries de TV e filmes de Hollywood usaram os extremistas como os vilões de suas histórias, enquanto os heróis americanos os combatiam. No entanto, o que se via no mundo real era a conversão dos próprios europeus e norte-americanos a um Islamismo deturpado, que os fazia ir contra suas próprias nações.
A migração de pessoas de países ditos desenvolvidos para o oriente médio a fim de se tornarem guerrilheiros defensores do Islã virou uma espécie de epidemia. E é só por isso que todos realmente ficaram preocupados. Se as ações do Estado Islâmico tivessem ficado limitadas ao Oriente Médio, dificilmente o primeiro mundo daria a atenção necessária. Agora, quando filhos e filhas ocidentais viram terroristas, é preciso entender de onde vem a ameaça e combatê-la. Em “Adeus à Noite”, André Téchiné tenta refletir acerca do problema, contando a história de um jovem francês que é aliciado por um desses grupos.
O jovem em questão é Alex (Kacey Mottet Klein), que conhece o Alcorão por meio da namorada Lila (Oulaya Amamra). Ele se converte e acaba se juntando a um grupo de franceses que pretende ir até a Síria. Alex perdeu a mãe e não tem contato com o pai, o que o faz ser criado pela avó Muriel (Catherine Deneuve). Muriel é proprietária de uma fazenda de plantação de cerejas e que oferece aulas de equitação. Será exatamente a avó o obstáculo para os planos de Alex, que tentará usar as posses da mulher para financiar a viagem e até para comprar armas.
É interessante o embate a partir do momento que Muriel descobre as intenções do neto. As diferenças entre gerações são evidenciadas no inicio do primeiro ato, quando os personagens acompanham um eclipse solar. Enquanto a avó olha diretamente para o eclipse, enfrentando a escuridão de frente – mesmo com o perigo de perder a visão – Alex e Lila o acompanham online. A falta de comunicação com o mundo real do casal é a porta de entrada para as ideias radicais que pregam o ódio. A desconexão em relação ao concreto fica clara quando, mesmo sendo muçulmanos, Alex e Lila dizem nunca terem frequentado uma mesquita. Tudo que aprenderam sobre a religião foi através de fontes obscuras da internet. É a constatação de uma interpretação sem qualquer base real nos ensinamentos do alcorão.
De fato, Alex se afastou da realidade, assim como o fez com a terra onde nasceu. A fazenda não é mais palpável como era na infância. Sua chegada já é arrasadora ao coincidir com a destruição de uma cerejeira por um porco do mato invasor. Para o porco, será preciso construir uma cerca. Para Alex, Muriel usa o celeiro como prisão. A Cerca é necessária frente à invasão de animais selvagens, garantindo o florescer da cerejeira e mantendo sua beleza deslumbrante até a colheita de seus abundantes frutos. A juventude é como a árvore, e só pode ser salva ao impedir que invasores malévolos a consuma de fora para dentro. O celeiro, infelizmente, é apenas um paliativo e não uma solução.
A beleza da juventude precisa ser cultivada com cuidado, já que, do contrário, pode adoecer, murchar e morrer. A sensibilidade e sabedoria da avó vão ser primordiais para salvar o neto dessa morte antecipada, mas não será uma tarefa fácil, e Téchiné evidencia isso enquadrando os dois em oposição. Geralmente dividindo-os por meio de objetos de cena, como mesas e portas, ou simplesmente colocando cada um em um extremo do plano. Como em uma guerra ideológica, a mulher já no final da vida tentará salvar aquele que representa uma geração que parece perdida em reconhecer o que é certo e errado.
It: Capítulo Dois
3.4 1,5K Assista AgoraA Hollywood contemporânea tem na repetição uma forma de faturar nas bilheterias. São inúmeras as continuações e, apelando ao estrangeirismo, remakes e reboots nas telas dos cinemas, todos os anos. A relevância desse tipo de produção vive sendo debatida, sem que haja um consenso. Evidentemente, há projetos que trazem atualizações bem-vindas dentro do material refilmado e, quando se trata de remakes, conseguem inserir novos temas, situações, estilos e personagens às tramas. Por isso, é possível ter bons resultados sempre que a imaginação e a criatividade entram no jogo. Outro fato a ser pensado antes de virar os olhos quando um título de filme vem acompanhado de “O Retorno”, “Recomeço”, ou simplesmente dos numerais 2, 3..., é que o cinema tem mais de cem anos, fazendo qualquer história atual já ter sido contada no passado.
O novo terror “It – Capítulo Dois” pode ser usado como exemplo para tudo o que foi dito no parágrafo anterior. O material original é do livro de Stephen King, que ganhou uma adaptação em formato de série em 1990. Essa série foi posteriormente transformada em telefilme. A produção um tanto pobre da série/telefilme incentivou o reboot de 2017, que fez sucesso, possibilitando a atual continuação do mesmo. Bom, material para isso não falta, já que o livro de King possui mais de mil páginas. A qualidade de produção e de trato com o roteiro ao aproximá-lo satisfatoriamente do universo pensado por King são trunfos da adaptação do “It: A Coisa” desta década. Mesmo o exigente escritor disse ter gostado do filme, o que é uma vitória, já que não o fez com “O Iluminado” de ninguém menos que “Stanley Kubrick” e com outras adaptações de seus livros.
Para começar a deixar as questões de bastidores de lado e passar a falar do filme em si, é preciso dize que, se na história de “It: A Coisa” de 2017 há um grupo de jovens tentando impedir o palhaço assassino Pennywise (Bill Skarsgård), em “It – Capítulo Dois” nada mudou, porém, agora os jovens viraram adultos, com os rostos estrelares de Jessica Chastain (Beverly) e James McAvoy (Bill) puxando o elenco. A trupe agora crescida também conta com os atores Bill Hader (Richie), Isaiah Mustafa (Mike), James Ransone (Eddie), Jay Ryan (Ben) e Andy Bean (Stanley). Não é difícil saber qual personagem adulto representa sua versão mais jovem, já que características físicas e de personalidade de cada um, evidentemente, foram mantidas. Além disso, todo o elenco do filme de 2017 volta e participa ativamente da narrativa, proporcionando aquelas típicas transições do passado para o presente, onde os rostos jovens vão sendo substituídos por suas versões mais velhas.
Como os jovens não são apenas peças lançadas pelo roteiro para fazer o espectador lembrar-se da trama, é possível rever com prazer as ótimas atuações de Sophia Lillis (Beverly) e Jaeden Lieberher (Bill). O interessante nesta mescla de elenco são as escolhas de construção de personagem feitas pelos veteranos. Chastain não segue totalmente Lillis e sua Bervely determinada e corajosa. Agora ela é uma mulher com medo constante – principalmente por causa do marido violento – e cheia de dúvidas sobre o passado que volta para aterrorizá-la. Já McAvoy é competente ao emular o jovem Lieberher em sua gagueira que piora gradativamente assim que chega à cidade natal. Para um ator do porte de McAvoy seria fácil apenas gaguejar, então ele extrapola ao fazer o espectador sentir todo o seu sofrimento em não conseguir proferir as palavras por meio de lágrimas e veias saltando no pescoço tensionado.
Claro que as atuações não seriam bem aproveitadas se a produção do longa não primasse pela excelência. Por isso, em “It – Capítulo Dois” é alto o investimento nos efeitos visuais e na maquiagem. A criação de criaturas em CGI não apresenta qualquer tipo de problema que possa ser destacado. O que se vê, na verdade, é um bom grau de criatividade em cenas bizarras e nojentas. Um exemplo é uma cena em que o grupo de amigos está jantando em um restaurante oriental, e pequenas partes humanas e de outros animais começam a sair dos biscoitos da sorte. Pennywise e suas mordidas animalescas, vovós nuas transformadas em monstros gigantes e zumbis em decomposição completam o terror imaginativo.
Bem produzido, bem atuado e com um roteiro satisfatório, o filme de Andy Muschietti só não ganha maior relevância porque peca em não conseguir preencher toda a história com terror que a plateia espera de um filme com um palhaço monstruoso. Há, inclusive, momentos cômicos fora de lugar, que tiram a tensão da atmosfera diegética. O uso dos inevitáveis e até bem-vindos jump scares é previsível e cansativo, pois é repetido entre um corte e outro indiscriminadamente. Desagregador também é a tentativa de mostrar a origem de Pennywise. Não que ela não seja importante, apenas não é apresentada de forma clara por uma montagem confusa que mais deixa dúvidas do que conclusões. Com isso, “It – Capítulo Dois” consegue ser um bom material de entretenimento, mas não alcança a competência das obras do mestre do terror. Talvez isso não seja possível, afinal de contas.
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraAntes mesmo de ganhar o prêmio do júri no festival de Cannes, “Bacurau”, já gerava expectativa nos cinéfilos brasileiros por causa do histórico de excelentes filmes de Kleber Mendonça Filho. O cineasta, antes crítico de cinema, ganhou notoriedade com “O Som ao Redor” e “Aquarius”, duas obras que transpiravam política e crítica social. Porém, “Bacurau” prometia trazer elementos de gêneros não comuns no cinema brasileiro em um roteiro mantido em segredo. Outra novidade era a divisão do posto de diretor e roteirista entre Mendonça Filho e seu amigo Juliano Dornelles. A pergunta que todos faziam era: será que Mendonça Filho vai acertar novamente, agora com outra mente criativa ao seu lado?
Bom, ele acerta, mas não em cheio como em seus filmes anteriores. “Bacurau” não alcança a excepcionalidade por causa de sua narrativa apoiada em gêneros já tão desgastados que não mais surpreendem. Com isso, a tensão crescente presente em “O Som ao Redor” e “Aquarius” não é sentida, mesmo que forasteiros americanos fortemente armados estejam cercando uma pacata cidade cheia de crianças e idosos. Os westerns feitos por Hollywood usam com frequência a premissa do cerco de um inimigo poderoso contra fracos e inocentes, e o roteiro de Mendonça Filho e Dornelles a toma como referência para criar uma história tipicamente brasileira, todavia sem subvertê-la, o que favorece a previsibilidade.
Claro que há uma quebra de paradigmas ao transportar os cowboys das pradarias da América do Norte ao nordeste brasileiro e seus vilarejos afastados das grandes cidades, mas nada do que já não tenha sido explorado por Glauber Rocha no passado. O elemento a mais em “Bacurau” é o uso do sci-fi para mostrar uma sociedade brasileira em um futuro não definido, onde a tecnologia é usada para perseguir e prender bandidos, que depois são executados em praça pública. Esses elementos distópicos são apresentados rapidamente em transmissões de TV que mostram uma multidão em São Paulo acompanhando uma dessas execuções, e por meio de um pequeno monitor presente em um caminhão pipa, onde aparece a imagem de um fugitivo com a palavra “procurado” piscando na tela.
É desse mundo externo opressor e sombrio que veem os vilões da história. Eles aparecem no horizonte crepuscular e espreitam o vilarejo como um alvo. São os conquistadores brancos que pretendem dizimar todos os nativos. Não se interessam pelo território, o que eles querem é o êxtase proporcionado pelos tiros que acabam com as vidas, ao mesmo tempo em que contam pontos em uma espécie de jogo bizarro. O problema para os conquistadores é que Bacurau conta com um senso de comunidade único, que a faz se unir e planejar a resistência. A partir daí a violência ganha a tela, tingindo de vermelho os rostos e o chão árido do sertão.
É no sangue jorrado por causa dos tiros saídos da Colt e da Smith & Wesson que os filmes de Sam Peckinpah são lembrados. E, se há armas, há membros amputados e cabeças explodindo, o que remete ao gore de John Carpenter. Duas referências que dão o arcabouço hollywoodiano a “Bacurau”, mas é no cinema contemporâneo brasileiro que está sua essência, já que segue outras produções nacionais recentes e transmite o incômodo com a situação política e social de um país destroçado. O roteiro de Mendonça Filho e Dornelles serve como uma espécie de guia do que precisa ser feito para impedir que a barbárie continue. Será preciso partir para o conflito, pois a diplomacia não é conhecida pelos bárbaros.
Bacurau entra no conflito inevitável e luta estrategicamente contra os estrangeiros que o começou. Estrangeiros esses que representam os usurpadores de terras, os assassinos de pobres; os donos do capital que massacram tudo que é natural. Entretanto, a natureza encarnada no povo revidará para defender seu território, e seu trunfo é a união de uma comunidade que sempre dividiu a comida, o conhecimento e a força para enganar a morte. No campo de batalha, compartilharão o sangue do inimigo.
No Brasil real, também é preciso derramar o sangue do inimigo, nem que seja o sangue simbólico derramado por meio de protestos, por meio dos votos e da justiça. Não é possível deixar que as terras, as árvores, os rios e animais sejam roubados e aniquilados por um governo que quer dar tudo de bandeja a forças obscuras. A voz da nação precisa se unificar e gritar a favor da educação, da ciência e da racionalidade. No western tupiniquim, não se pode deixar os bandidos invadirem sem que haja uma reação. A mensagem de resistência de “Bacurau” foi dada, cabe a todos segui-la.
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraSão poucos os cineastas nos dias de hoje que podem receber o título de autor, ainda mais no cinema feito nos EUA. Quentin Tarantino é um desses poucos, já que sua forma peculiar de contar histórias é intimamente conhecida pelos cinéfilos. Os seus roteiros geralmente trazem tramas intricadas, reviravoltas, diálogos longos e apurados e personagens icônicos. A violência também é constante e talvez seja o elemento mais importante para identificar superficialmente um filme do diretor. Só que essa violência não é banal e sem propósito, ela está incrustada na narrativa. O sangue é primordial para os arcos dos personagens. Tarantino consegue usar sarcasmo, fazer piada ou aterrorizar a plateia com bizarras sequências de violência explícita. Tudo isso em uma embalagem pop e divertida.
Há nas películas de Tarantino a necessidade de referenciar filmes do passado ou gêneros que possam estar fora de moda. O cinema sempre foi usado como material para seus roteiros, mas nunca foi o tema principal. Bom, “Era uma Vez em… Hollywood” veio para mudar isso. Claro que era necessário usar grandes astros e estrelas atuais para retratar os astros e estrelas de uma Hollywood nostálgica da década de 60, sendo elas fictícias ou reais.
A trama segue o ator de TV, que quer fazer sucesso na tela grande, Rick Dalton, interpretado por Leonardo DiCaprio. Dalton tem a companhia de seu dublê e amigo Cliff Booth, encarnado por Brad Pitt. Os dois são vizinhos de Sharon Tate que ganha as feições de Margot Robbie. Tate, na época, era casada com Roman Polanski. Steve McQueen e Bruce Lee são outros a darem as caras. Al Pacino reaparece em uma grande produção, mesmo que em um papel pequeno. Essa mistura entre a Hollywood atual com a do passado é importante para que o público note que, tirando o fator tecnológico, pouca coisa mudou no meio. O sucesso e o reconhecimento são os objetivos das pessoas que ingressam na indústria do celuloide dos anos dourados, ou na recente da era digital.
“Era uma Vez em… Hollywood” não se passa no mundo dos criminosos, da máfia ou do velho oeste, o que leva a acreditar que Tarantino não usa uma de suas principais características citada acima: a violência. Apesar de serem poucas, as cenas violentas estão presentes e, quando enchem a tela, causam bastante impacto. Elas se justificam, pois estão inseridas no contexto do recorde de tempo que ele escolheu retratar: a Los Angeles assombrada pelo assassino Charles Manson e seu fiel grupo formado em grande parte por jovens mulheres. Manson aparece uma única vez, enquanto suas garotas fazem jus à fama. A despeito dos loucos de uma seita assassina, é o dublê Cliff Booth que possui as cenas mais brutais. Se Rick Dalton e Sharon Tate perseguem os seus sonhos estelares, Booth gosta de sua simples função de dublê e de “faz tudo” de um quase astro. Por isso, quando sua vida confortável é ameaçada, ele precisa fazer algo a respeito. O mundo real se choca com o mundo dos sonhos, em uma cidade que é movida pela ilusão.
A Idílica Hollywood é a senhora da boa ilusão. Ela proporciona o sentimento de que todos podem ter seus sonhos realizados. Tarantino sabe disso e enche seu filme com angelicais travelings em gruas e cenas libertadoras de personagens com os cabelos ao vento em carros em alta velocidade. Fotografado em 35 mm, “Era uma Vez em… Hollywood” é belo com suas cores fortes, porém com certo padrão de desgaste e granulação presente neste tipo de fotografia. O tom amarelo do sol é dominante, principalmente na pele de Sharon Tate. Essa é retratada com enorme sensibilidade. Sempre está sorrindo, dançando em câmera lenta ou simplesmente sendo gentil. Até há uma cena em que ronca durante o sono, que serve para tentar tirar o título de deidade da atriz e trazê-la para o lado dos mortais. O que é em vão, a julgar pela graciosidade com que Robbie atua.
Ainda que tenha menos cenas em comparação aos personagens de Pitt e Di Caprio, a Sharon Tate de Robbie permeia sobrenaturalmente todas as mais de duas horas e meia de duração do longa. Tarantino faz uma grande homenagem para a estrela morta, respeitando sua lembrança e o próprio Polanski sem tropeçar em qualquer mau gosto pelo caminho.
Bem, com suas inúmeras qualidades, “Era uma Vez em… Hollywood” chega perto de ser a mais nova obra prima Tarantineca e se juntar a “Pulp Fiction”, mas é colocado em um degrau abaixo, como se fosse apenas uma grande e milionária homenagem. Isso fica claro na falta de propósito de algumas cenas, que só servem para suprir a necessidade estética do diretor. São muitos os passeios de carro pelas colinas e as caminhadas nas ricas ruas de Los Angeles. Personagens vagam apenas para servir como transições entre cenas e satisfazer os aficionados pelo misticismo dos bastidores dos sets cinematográficos e das casas das estrelas.
Alerta Lobo
3.6 118 Assista AgoraQuando se fala em cinema francês, logo vem à mente filmes intelectuais que passam em cinemas de arte. Muitos ignoram o fato de que a França é uma grande produtora e que de lá saem filmes de diferentes gêneros e formatos. Talvez, o gênero “ação” seja o que menos chama a atenção dos produtores franceses, mas não significa que não sejam feitos. O mais recente deles é “Alerta Lobo” da Netflix, que conta com um elenco de nomes conhecidos, um astro em ascensão e uma história que poderia muito bem ter sido filmada em Hollywood.
Na verdade, é muito bom que “Alerta Lobo” tenha sido feito na França e não nos EUA. Essa afirmação não possui nenhum tipo de desgosto com o cinema americano ou bota em duvida a sua qualidade, e sim constata que certo elemento presente no filme é próprio do cinema francês dito de arte. Para melhor explicar basta dizer que o personagem principal é Chanteraide (François Civil) que faz parte da marinha e trabalha em um submarino. Todos o conhecem como ouvido de ouro, já que é encarregado de ouvir os sons do oceano a fim de alertar sobre a presença de submarinos, navios e armamentos inimigos. Ele possui uma audição apurada, o que leva a narrativa a fazer certas reflexões poéticas.
Chanteraide é muito sensível, e prefere ouvir o batuque vindo de um barco pesqueiro ou o som de golfinhos do que de qualquer outra coisa. Evidentemente que o rapaz acaba virando motivo de chacota por parte de seus companheiros, mas nada que consiga abala-lo no mundo envolto pela sinfonia do oceano em que vive. Em outras produções de ação a habilidade do rapaz seria usada para criar cenas de simples pirotecnia, em “Alerta Lobo” ela o faz sofrer ao ter que ouvir sons de destruição e guerra quando um conflito internacional começa a tomar forma. O contraponto entre a beleza da natureza e a horrenda condição humana é aquele elemento a mais que o cinema francês consegue abordar mesmo quando faz um filme comercial.
O restante não deixa a desejar, apesar de não subverter nenhum conceito abordado em filmes passados em submarinos. Porém, há leves reviravoltas bem planejadas que servem para criar tensão. O roteiro é bem escrito e não deixa escapar nenhuma dessas reviravoltas para um espectador mais atento. Trata-se daquela história onde a lição de moral é mais importante do que a forma. Isso não quer dizer, no entanto, que os efeitos visuais e a direção sejam desleixados, e sim que ficam em segundo plano. As cenas no submarino são belas, principalmente quando as luzes vermelhas de alarme banham todo o ambiente, enquanto o rosto de Chanteraide é tomado pela luz azul da tela do computador onde trabalha e que pode muito bem representar o oceano. Ele fecha os olhos e segura os fones para se livrar de um mundo de perigo e entrar em um de paz.
Civil se mostra um ótimo ator ao manter um semblante sereno quando está trabalhando e de desespero quando a situação foge do controle nas batalhas ou no momento em que é afastado por uso de maconha. O elenco é completado pelos competentes Reda Kateb, Omar Sy, Mathieu Kassovitz e Paula Beer. Eles possuem seus momentos de destaque, mas nada que exija muito de seus talentos. “Alerta Lobo” consegue passar sua mensagem critica e ser divertido ao mesmo tempo, o que já é mais do que conseguem muitos filmes do gênero que inundam os cinemas e os próprios serviços de streaming ano a ano.
Filhas do Sol
4.1 79O mundo é paradoxal: se por um lado há uma grande luta para que as demandas feministas sejam atendidas, o que significa mais igualdade e respeito, por outro, a taxa de feminicídios teima em subir ano a ano, e países com visões deturpadas de suas religiões tratam as mulheres como escravas inferiores, em sociedades extremamente misóginas dominadas pelo patriarcado. Há situações que é preciso ir à guerra em prol da liberdade feminina. É isso que mostra “Filhas do Sol”, da cineasta Eva Husson, ao seguir um grupo de guerrilheiras que lutam contra a opressão do ditador Bashar al-Assad.
Essas mulheres Curdas possuem um passado de barbárie, principalmente sua líder Bahar (Golshifteh Farahani), que teve os homens de sua família massacrados e foi vendida junto da irmã como escrava sexual. Assim que consegue fugir, Bahar entra para um grupo de resistência e descobre que o seu filho ainda está vivo. O roteiro da própria Husson traz os traumáticos acontecimentos em flashbacks, ao mesmo tempo que acompanha a missão de tomar um vilarejo das forças do governo. Bahar tem especial interesse nesse local porque ali há uma escola infantil onde pode estar seu filho. Tudo é acompanhado por Mathilde (Emmanuelle Bercot), uma veterana jornalista e fotógrafa de guerra. Mathilde também sente na pele o sofrimento de estar longe da filha e do marido.
Evidentemente, há cenas de conflitos e tiros são disparados, porém não é do interesse de Husson apelar para o “glamour” da guerra e transformar as personagens em heroínas invencíveis. São nos diálogos que o filme tira a sua melhor matéria prima, proporcionando comoção com a história de sua protagonista. Essa guerreira é a inspiração para as outras e lidera sua tropa com um discurso que termina com a forte frase: “La Femme, la Vie, la Liberté”, claro que dita em árabe, mas repetida em francês no final do filme.
A ótima atuação de Farahani, que parece carregar todo o sofrimento nas costas, é primordial para a imersão naquele mudo, expondo tristeza em um semblante de alerta e dor. O ambiente ajuda a atriz em sua performance, já que o palco é um amontoado de destroços que sobraram das antigas cidades. A beleza daquelas mulheres iluminadas pelo sol sempre presente contrasta com a poeira, a fuligem e o sangue que as cercam, e por isso o título “Filhas do Sol” não poderia ser mais adequado.
É delas que emana os últimos raios de esperança em uma terra devastada. Seja por sua coragem de enfrentar um inimigo cruel ou pelo fato de ser delas a responsabilidade de carregar a vida de uma nova geração que pode acabar com a barbárie (uma das combatentes dá à luz em meio ao caos). Como mensagem, o longa é poderoso, como cinema pode incomodar o fato de ser arrastado em seu primeiro e segundo ato e por ter algumas encenações de batalhas mal executados. Nada que tire a importância de uma obra que se propõe mostrar um lado pouco conhecido de uma guerra que parece não ter fim.
X-Men: Fênix Negra
2.6 1,1K Assista AgoraLá nos anos 2000, quando o agora malquisto Bryan Singer apresentou ao mundo um grupo de mutantes vindos dos quadrinhos em “X-Men: O filme”, o público ainda não estava acostumado com histórias de super-heróis. Era pura novidade, e todos queriam saber como seria o visual dos personagens na tela do cinema. Será que o Wolverine vai vestir o colante amarelo, com máscara e tudo? Os fãs se perguntavam. Depois de inúmeras continuações e do domínio da Marvel nesse praticamente novo gênero, eis que “X-Men: Fênix Negra” entra em cartaz com um ar de despedida, afinal trata-se do último filme da franquia produzido pela 20th Century Fox. O clima de adeus é tanto que, na sessão para a imprensa, a representante do estúdio no Brasil e o diretor Simon Kinberg (em vídeo) agradeceram os jornalistas pela cobertura de “X-Men” no decorrer dos anos.
Evidentemente que “Fênix Negra”, como conclusão, precisa entregar algo épico, que teste o limite do Professor Xavier (James McAvoy) e de seus asseclas. Então, para isso, nada melhor que a transformação de Jean Grey (Sophie Turner) na mutante mais poderosa do mundo. Grey, ao salvar alguns astronautas em orbita terrestre, é atingida por uma abundante energia que parece ser o resultado de uma explosão solar. Ao voltar ao planeta, ela passa a ter momentos de fúria, que acabam liberando progressivamente o poder recém-adquirido. Os bloqueios de memória sobre o acidente que matou seus pais, colocados no passado por Xavier, também são retirados, fazendo com que ela não confie mais no professor, que escondeu fatos sombrios da infância da garota. Enquanto isso, uma raça alienígena chega à terra, e sua líder (Jessica Chastain), não só sabe de onde vem a tal energia, como quer tomá-la para dominar a terra. Aliás, são seres que surgem do nada, atrás de uma energia que convenientemente está bem perto do ônibus espacial à deriva, e tomam a brilhante decisão de ficar com o pequeno planeta azul para si.
É com esse fio de trama que o roteiro do próprio Kinberg é construído, dando forma a um filme sem grandes aspirações e sem inspiração. Mesmo na técnica cinematográfica o cineasta não sai do comum. Sua direção é acadêmica nos planos e contra planos nos momentos de diálogos e desinteressante nas cenas de combate que não empolgam ou causam comoção pelas mortes de algumas figuras importantes durante as duas primeiras batalhas. Basicamente ele se repete do início ao fim. A emoção é rasa, independente do bom trabalho dos atores. Bem, de alguns deles pelo menos, pois parece que Jennifer Lawrence está ali apenas para cumprir contrato. Não atua mal por ser competente em sua função, mas mostra certo ar de desinteresse pelo personagem que interpreta há anos. Outro agravante é que Jean se torna praticamente uma deusa, derrotando facilmente Xavier, Magneto (Michael Fassbender), e qualquer ideia mirabolante de cena de ação que seria logo finalizada por um simples levantar de mãos da garota.
Personagens mal aproveitados fecham a lista de reclamações: Tempestade (Alexandra Shipp) não faz mais que soltar alguns raios, Mercúrio (Evan Peters) tem pouco tempo de tela, apesar de ter se tornado o queridinho dos fãs pelo seu carisma e boas cenas de humor e ação nos longas anteriores. Até Noturno (Kodi Smit-McPhee) que tem mais atenção do roteiro, é irrelevante contra uma Fênix Negra que consegue atingi-lo durante os teletransportes. “X-Men: Fênix Negra” é um produto que acaba não ofendendo ninguém, se tornando, no futuro, aquele filme da Tela Quente que as pessoas assistem até pegarem no sono.
Obs: É difícil não pensar em uma luta entre Fênix Negra e Capitã Marvel para saber quem sairá vencedora. O futuro dirá.
Rocketman
4.0 921 Assista AgoraHollywood, os astros do Rock estão se esgotando! Por isso, em um futuro próximo, as tão frequentes cinebiografias que você costuma filmar não existirão mais. Chega de sexo, drogas e Rock and Roll. As orgias não poderão ser chamadas assim, pois não haverá pessoas para participar delas. Tudo o que era para ser mostrado, já foi mostrado. Aquela carreirinha de cocaína cheirada com uma nota de dólar se tornou obsoleta. Os dramas de solidão que favorecem o mergulho nas drogas e na bebida foram banalizados. Siga em frente Hollywood! Os grandes gênios não precisam de filmes feitos em seus nomes para serem lembrados, principalmente os que ainda estão vivos. Mantenha a câmera desligada e deixe que o público puxe na memória as suas músicas prediletas. Só assim para que os astros e estrelas sobrevivam decentemente. Bem Hollywood, depois do aviso, é preciso falar sobre “Rocketman”.
Para começar Hollywood, você tem um diretor que obteve algum sucesso com outra dessas cinebiografias e o fez repetir quase quadro a quadro o conceito estético de seu filme anterior. O roteiro também se repete em sua estrutura, basta analisar o arco do personagem principal para perceber que seus anseios, desejos, erros e obstáculos são narrativamente apresentados da mesma forma que no filme sobre um tal de Fred Mercury. Hollywood, agora você até pode dizer: “Espera! Os roteiros são escritos com base em artistas com vidas parecidas”. Dá para entender essa sua justificativa Hollywood, mas será que outros pontos relevantes da extensa carreira de Elton John não poderiam ter sido confeccionados além do comum? Você precisava ser tão preguiçosa ao mostrar os problemas do cantor com os pais, com a homossexualidade prestes as aflorar e com vício em drogas e bebidas? “Bohemian Rhapsody” chegou antes e já contou essa história. Um desavisado defensor de Hollywood pode entrar na discussão e perguntar: “Se trata de um filme sobre um Rockstar. O que esperava?” Bom, sempre se espera algo que faça a plateia se emocionar, e o artista Elton John emociona o mundo todo, há muito tempo, sem precisar do cinema para lhe dar uma força.
A despeito de suas convenções narrativas, querida Hollywood, saiba que “Rocketman” tenta se destacar como musical, mesmo nas cenas fora do palco. Os atores se esforçam, principalmente Taron Egerton, que realmente canta e não é dublado como um recente ganhador do Oscar de melhor ator. Egerton se saí bem, conseguindo incorporar um pouco do espírito de Elton John. Já Jamie Bell, que faz o compositor Bernie Taupin, e Richard Madden, o inescrupuloso agente John Reid, são razoáveis nas linhas musicais que lhe cabem. Até o repetidor Dexter Fletcher tem algumas ideias surrealistas ao inserir, nos momentos das apresentações, alucinações que fazem a plateia dos shows e o próprio vocalista flutuarem, ou mesmo pincelando pequenos encontros do Elton adulto com o Elton criança. Fletcher também saí da linha ao ir despindo o cantor de sua fantasia durante um encontro de alcoólicos anônimos. No início da projeção, ele chega fantasiado espalhafatosamente e vai perdendo os adereços assim que mostra gradativamente sua verdadeira personalidade. Afinal, deixa de se esconder.
Infelizmente Hollywood, esses são apenas alguns desvios na rota traçada por você, e não são suficientes para elevar o nível da produção ao ponto de evitar seu completo esquecimento com o passar dos anos. É certo que aquele defensor de Hollywood poderia voltar afirmando: “Mas, o próprio Elton John está envolvido na produção. Então, é uma adaptação mais do que fiel”. Ele de fato faz parte da produção, que a serve como uma espécie de diário filmado. Isso não significa que teve controle sobre todo o processo “criativo” por trás do espetáculo.
Game of Thrones: A Última Vigília
3.8 39Independentemente do resultado qualitativo da última temporada de Game of Thrones, e das discussões sobre as polêmicas decisões tomadas pela dupla de showrunners David Benioff e D.B. Weiss para terminar a história, não dá para negar que essa série entrou para história da arte pop. O nível de GOT se tornou tão alto que não é correto tratar tudo o que foi feito como mais uma produção para TV. O que o mundo viu durante oito anos é puro cinema. Cinema superlativo, com bom roteiro, muita ação e efeitos visuais de alto padrão. Claro que, para entregar toda essa grandiosidade em tela, era preciso contar com uma vasta e experiente equipe nos mais variados níveis de produção. Para homenagear todas essas pessoas que deram a vida por GOT, a HBO levou suas câmeras para os bastidores com “Game of Thrones: A Última Vigília”.
Com esse documentário, a diretora Jeanie Finlay capta os últimos takes de um grande sucesso que será difícil de esquecer. O espectador que pode ter sentido ódio depois dos créditos finais de “The Iron Throne”, vai se emocionar com a paixão que cada membro da equipe empregou em seus trabalhos. Não são apenas empregados trabalhando por dinheiro, são, antes de mais nada, fãs que estariam ali mesmo de graça. Pessoas anônimos que formaram uma família junto com os astros e estrelas, diretores e produtores, para levar a tristeza, o horror, a surpresa e a alegria para milhões de pessoas.
Apesar de ter a participação de Emilia Clarke, Kit Harington, Lena Headey, Peter Dinklage, Sophie Turner, Maisie Williams, entre outros, o que interessa a Finlay são aqueles que ninguém conhece. Ela segue um figurante que já trabalha na séria desde a terceira temporada, uma artista responsável pelas próteses que dão vida às várias criaturas imaginadas por George R. R. Martin e um coordenador da equipe que faz a neve de Winterfell e Porto Real. Dá ainda um pouco de atenção para a cabeleireira de Clarke e Harington, para a dona de um trailer de comida instalada nos sets de filmagem e para a equipe de dublês, que tem como chefe ninguém menos do que o Rei da Noite, interpretado por Vladimir Furdík . Dando voz para esses trabalhadores de bastidores, “A Última Vigília” faz com que público veja o fator humano por trás de tudo, independente do milionário marketing e dos holofotes.
Evidentemente que os queridos atores principais também são responsáveis por momentos especiais, principalmente quando, no início dos trabalhos da derradeira temporada, leem o roteiro final de seus personagens em uma mesa redonda. A comoção e decepção que cada um demonstra são verdadeiros e provam o amor que eles sentem pela obra. É de partir o coração ver Kit Harington aos prantos quando sabe o destino de Daenerys, enquanto Emilia Clarke o observa com feição de tristeza. No final de uma leitura nessa mesma mesa redonda, todo os presentes comemoram o destino do rei da noite, assim como os fãs o fizeram quando assistiram em suas casas há algumas semanas. Há apenas um problema ao término do documentário: o seu próprio término, porque isso significa que GOT chega definitivamente ao fim, deixando para os muitos aficionados um longo inverno a enfrentar.
Aladdin
3.9 1,3K Assista AgoraA Disney parece querer mostrar ao mundo que consegue sucessos de bilheteria sem depender das suas propriedades mais recentes. Ou seja, é preciso ser a grande Disney além da Marvel, da Pixar e da franquia Star Wars. O público não pode esquecer dos contos de fadas protagonizados por princesas e heróis sem capas e armaduras. É fácil constatar isso pelas várias produções que estão dando ou que darão as caras no cinema. No primeiro semestre de 2019 foi exibido “Dumbo” e agora “Aladdin”. Até o fim desse ano e o início de 2020 ainda haverá “O Rei Leão”, “Malévola 2” e “Mulan”. Essa enxurrada de produções pretende ratificar o quase monopólio que o estúdio possui na indústria hollywoodiana recente. Claro que quantidade não significa qualidade e tombos serão frequentes. Pode-se dizer que “Aladdin” dá um leve tropeço, porém não chega a se espatifar completamente.
O início do longa dirigido por um irreconhecível Guy Ritchie já apresenta o personagem título interpretado por Mena Massoud em suas peripécias pela cidade. Ele perambula no meio das pessoas fazendo pequenos furtos para poder comprar comida. Com grande conhecimento dos becos e atalhos da cidade, suas habilidades acrobáticas e a ajuda do esperto macaco Abu, Aladdin consegue se sustentar. Em uma de suas ações, o jovem conhece a bela princesa Jasmine (Naomi Scott), que se disfarça para andar junto do povo e vivenciar seus sofrimentos. Jasmine se afeiçoa pela sinceridade e liberdade de Aladdin, no entanto, não pode contar a ele sobre seu título real. Naquele mundo, uma princesa só pode se relacionar com um príncipe.
Há ali o começo de um amor que será desafiado por todo um reino e, principalmente, pelo vilão Ja'Far (Marwan Kenzari) que busca apenas poder. Ja’Far precisa de uma lâmpada mágica para tomar o reino do atual sultão (Navid Negahban), mas não consegue tirá-la de uma caverna onde há inúmeros outros tesouros. Apenas alguém de bom coração pode entrar nessa caverna sem cair na tentação de levar qualquer outra joia e ser enterrado vivo como consequência. Aladdin consegue entrar na caverna, enganar Ja'Far e ficar com a lâmpada. Agora ele terá a ajuda do gênio (Will Smith) para se tornar um príncipe e se casar com Jasmine.
O gênio, aliás, é quem proporciona os melhores momentos da projeção com suas boas piadas e pelo carisma de Will Smith, apesar do CGI mal feito que transforma o ator em um boneco digital capenga. Pior que o CGI são os alguns momentos musicais sem inspiração. Não é correto chamar “Aladdin” de musical, já que as cenas onde os atores cantam são apenas de reflexão, como peças soltas do roteiro que não possuem grande importância para a trama e que não levam o protagonista do ponto A para o B. Os atores se esforçam, como na performance de empoderamento de Naomi Scott ou nas danças de Smith, porém, não é o suficiente para que o espectador saia do cinema com as músicas “grudadas na cabeça”.
Boa parte da culpa pelo desinteresse gerado é da direção, e quando dito acima que Guy Richie está irreconhecível, é por causa de sua atuação genérica nesse quesito. Não há nenhum vislumbre de seu estilo nas sequências de perseguição envolvendo o protagonista. Seus cortes rápidos, as câmeras inquietas e o seu sarcasmo não estão presentes. Alguns podem dizer que esses artifícios não caberiam em um filme feito para o público infanto-juvenil. Tudo bem, então porque ter Guy Richie e não qualquer diretor de encomenda disponível na indústria? Ocorre aqui o mesmo que aconteceu com Tim Burton em “Dumbo”: um diretor que vira uma marca de grife, apesar de Burton ainda conseguir incluir alguns elementos autorais em seu filme e de ser mais conhecido que Richie perante o grande público. No final, restam algumas boas piadas, um belo casal de atores e lindas paisagens feitas em computador dentro de um filme que é a cara da Disney, no melhor e no pior sentido.
O Sol Também é uma Estrela
3.2 112Que atire a primeira pedra aquele que nunca chorou ou se emocionou em um filme romântico. Todos possuem pelo menos um deles como favorito e o leva na lista particular entre os melhores já assistidos. Pode-se citar algumas unanimidades: “Uma linda Mulher”, “Diário de uma Paixão” e, mais recentemente “A Culpa é das Estrelas”. Esse último é o grande “culpado” pela proliferação alarmante de produções com temáticas jovens e que possuem em sua premissa uma história de amor aparentemente impossível. Nada contra os filmes voltados aos apaixonados, o problema é quando esse filme é baseado em um livro desconhecido (pelo menos pelos mais adultos) e vira um caça-níquel vazio que toma os cinemas do mundo todo. Infelizmente, esse é o caso de “O Sol Também é uma Estrela”.
No longa, Natasha (Yara Shahidi), uma imigrante jamaicana está prestes a ser deportada com sua família, e busca uma última chance de permanecer em Nova York com a ajuda de um grande advogado. Enquanto espera a reunião para saber sobre o andamento do processo, ela conhece Daniel (Charles Melton), um descendente de coreanos que vai fazer uma entrevista afim de conseguir uma recomendação para uma faculdade de medicina. O primeiro encontro se dá na estação central da cidade, quando Daniel fica encantado com a garota que está olhando para o teto da estação, ao invés de olhar para frente como todos os outros. Outra coisa que chama a atenção do garoto é que ela usa uma blusa com os dizeres “Deus Ex Machina”(é apenas uma citação mesmo, já que seu significado é ignorado) a mesma frase que ele escreveu em seu caderno de notas algumas horas antes, já que era uma ideia para um poema. Ele acredita em destino, ela é pragmática e confia na ciência.
É esse contraponto e a deportação dela que os roteiristas usam como obstáculo para o relacionamento, e nenhum dos dois artifícios funciona. Isso porque o amor dela pela ciência é totalmente artificial, sendo exposto por meio de frases prontas presentes em orelhas de livros de Carl Sagan. Mais falso soa a fé de Daniel, que soltas coisas do tipo: “até o final do dia você estará apaixonada por mim, é o nosso destino ficarmos juntos”. Ou seja, ele a vê na estação, troca algumas palavras, fica perdidamente apaixonado e acredita que foi algo mágico que os uniu. Não há nenhum tipo de desenvolvimento dos personagens. São unidimensionais, fazendo com que o espectador passe a não se importar com seus desfechos. Mesmo a iminente deportação e os problemas familiares do garoto proporcionam algum tipo de substância à trama. Outro problema são as inúmeras coincidências que teimam em os unir, mas, afinal, é apenas o destino agindo em prol do amor.
O que sobra são as andanças dos dois visitando pontos turísticos da cidade com muita câmera inquieta e fotografia granulada. A direção de Ry Russo-Young não ultrapassa o básico e fracassa na condução dos atores, que estão apenas lendo linhas de um roteiro ruim sem nenhum tipo de emoção ou química. Se há algo louvável é a escolha de um elenco multiétnico, fugindo daquele padrão dos loiros de olhos azuis tão comuns nesse tipo de produção. Claro que a questão dos imigrantes na era Trump também é mostrada de forma superficial, sem desenvolver um tema importante e atual da protagonista afro-americana que se apaixona por um asiático e tem sua vida destruída por uma política racista e xenófoba. Acho que era esperar demais de algo como “O Sol Também é uma Estrela”.
Guava Island
4.0 248O nome Childish Gambino ganhou os holofotes e o reconhecimento do público em geral após o sucesso do clipe musical “This is America”. Donald Glover, o homem por trás do nome, já era conhecido na TV e nos cinemas, e adquiriu importância em um clipe que denuncia o racismo e o capitalismo exacerbado de forma crua e impactante. Dividindo seu tempo entre a atuação em grandes produções hollywoodianas e seus projetos autorais na música e na escrita de roteiros, Glover hoje é um artista requisitado e já respeitado, mesmo tendo apenas 35 anos. Por isso, quando está envolvido em um novo projeto, chama a atenção de muita gente.
Dito isso, é até anormal que o seu novo filme “Guava Island” não tenha recebido uma atenção maior por parte do marketing da Amazon, que lançou a produção em seu serviço de streaming sem muito alarde, mesmo tendo no elenco a grande estrela Rihanna e Letitia Wright, tão celebrada por seu papel de Shuri em “Pantera Negra”. Talvez o discreto lançamento de “Guava Island” seja porque não se trata de uma superprodução, e sim um filme quase independente. Até na sua duração é econômico: cinquenta e três minutos. No entanto, mesmo com poucos minutos de tela, a mensagem do roteiro Stephen Glover é clara e poderosa e alcançara seu objetivo de cunho social.
Na história, o músico Deni Maroon (Glover) vive com sua namorada Kofi Novia (Rihanna) em uma ilha dominada pelo tirano Red Cargo (Nonso Anozie), que usa toda a população do local como força de trabalho em sua fábrica. Como em um país de terceiro mundo da américa central, Cargo possui sua própria milícia para manter as pessoas controladas em uma realidade fechada e sem perspectiva de futuro. Maroon, o mais famoso artista, canta todos os dias na rádio para levar um pouco de alegria para o povo. Ele também pretende organizar um festival de música, mas possui seus planos frustrados por Cargo, que não quer seus trabalhadores com outra coisa na cabeça além do trabalho. O conflito entre os dois surge daí.
Conhecidamente, o embate entre a liberdade individual e a prisão do capitalismo criminoso só terminará por meio de uma revolução popular. O problema é que os moradores de Guava Island estão presos em uma realidade opressora. Essa prisão é reforçada pela escolha do diretor Hiro Murai em filmar com uma razão de aspecto 1.33, que corta as laterais da tela e tira a noção de espaço e a visualização total do ambiente. Ou seja, todos os personagens estão limitados a um pequeno quadrado, impossibilitados de contemplarem a beleza do paraíso tropical em que vivem. A fotografia, que emula os filmes em película em 16mm, dá ainda mais a impressão de algo perdido e mantido no passado, fora do mundo exterior.
O único que consegue visualizar o horizonte é Maroon por meio de sua arte. Arte essa que é exposta em números músicas durante a projeção (inclusive um pouco de “This is America”, citado acima), que empolgam a plateia e o povo. O som dos batuques e do violão aliadas à voz poderosa do cantor traçarão o caminho para além da tirania. Com certeza, “Guava Island” gerará discussões, que poderiam ser ampliadas se os outros personagens fossem melhor utilizados (é impressionante, mas Rihanna não canta) e se a história ganhasse mais alguns minutos de desenvolvimento. Claro que são apenas pontos de ampliação que não prejudicam o resultado de uma obra digna do cinema relevante no campo político e social da atualidade.
A Maldição da Chorona
2.3 525 Assista AgoraNada melhor para um filme de terror do que ter em seus créditos James Wan, o cineasta responsável por “Aquaman”, e que fez seu nome com produções como “Jogos Mortais”, “Invocação do Mal”, e “Sobrenatural”. Claro que o marketing usa da falta de conhecimento do público em geral, que não vê diferenças entre produção e direção de um longa. Por isso, quando se estampa no poster: “com produção de...”, as pessoas não fazem distinção, e aprovam previamente qualquer coisa. É dessa aprovação prévia que “A Maldição da Chorona” depende, já que, ao longo de seus noventa minutos de duração, não demonstra qualidades que o sustentem como uma história no mínimo razoável.
A trama é das mais prosaicas: a assistente social Anna Garcia (Linda Cardellini) resgata dois irmãos que aparentemente são maltratadas pela mãe. As crianças possuem marcas de queimaduras nos braços e são encontradas trancadas em um armário. Após isso, elas misteriosamente somem do abrigo para depois serem encontradas mortas por afogamento. Evidentemente que a casa onde a família morava era assombrada pelo espírito maligno de uma mulher que afogou seus dois filhos para punir o marido que a traiu. O fato aconteceu no México alguns anos antes e agora a força maligna da tal mulher leva todas as crianças afim de substituir as suas. Ela é chamada de chorona porque sua primeira aparição sempre se dá com o som de uma mulher chorando, o que atrai suas vítimas. Pois bem, agora sãos os dois filhos de Anna que correm perigo.
Dependendo da habilidade de um cineasta em criar sequências que surpreendam o espectador pelas suas bizarrices ou que proporcionem medo genuíno (vide o excepcional “Hereditário”), um roteiro de terror simples pode gerar um filme assustador, infelizmente não é o caso de “A Maldição da Chorona”. Todos os sustos planejados pelo diretor Michael Chaves (que parece ser um protegido de Wan, já que dirigirá “Invocação do Mal 3”), são previsíveis. Sua câmera sempre se direciona para a parte mais escura da tela nas costas dos personagens, aguçando o espectador a pensar: “algo surgirá dali”. E sim, sempre uma “surpresa” surge da escuridão. Essa antecipação, reforçada pela trilha sonora exagerada, é extremamente prejudicial para a imersão, mostrando a mão pesada por trás das câmeras.
Outro fator mal trabalhado é a maquiagem da Chorona. É difícil conter o riso quando ela aparece em close. Seu rosto pintado de branco e as lentes de contato amarelas lhe dão um ar de fantasia de Halloween amadora. Além disso, é frustrante quando, em um filme de terror, as cenas minimamente inventivas são as cômicas, que acontecem com algumas quebras de expectativas, ou com piadas aleatórias desferidas pelo padre/curandeiro Rafael Olvera (Raymond Cruz). O que sobra são momentos de correria, gritaria e lagrimas falsas. Nem mesmo a analogia que poderia ser feita em relação aos imigrantes indesejados que vão para os EUA levando suas maldições com a atual era Trump é válida, afinal, os roteiristas não procuraram toda essa profundidade na escrita do texto. A intenção por trás de “A Maldição da Chorona”, perceptível depois de uma superficial reflexão, era puramente comercial.
A Árvore dos Frutos Selvagens
4.0 46O cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é conhecido pelos seus filmes de grande duração e que abordam temas existenciais e com características próprias da cultura do seu país. Suas histórias são contadas de forma cadenciada, com planos estáticos e diálogos constantes. Sem dúvida, não é um tipo de cinema para qualquer espectador, principalmente para aquele que espera um clímax a cada cena. Sua obra é ficcional, mas lhe agrada a construção naturalista da mise-en-scène, imitando assim a vida real, onde a contemplação é mais presente que a ação.
Em “A Árvore dos Frutos Selvagens”, o recém-formado Sinan (Dogu Demirkol) volta para a casa situada em um pequeno vilarejo da Turquia e encontra tudo exatamente da forma como deixou: seu irresponsável pai, o professor infantil Idris (Murat Cemcir ) que torra o dinheiro em apostas de cavalo e que deve para todos, sua mãe (Bennu Yıldırımlar) e irmã (Reyhan Asena Keskinci ) praticamente presas em casa, os amigos e o interesse amoroso ainda vivendo no local e seu quarto abarrotado de livros. Sinan é um jovem que expressa seu ódio pelo povo do vilarejo por meio de seu rosto sempre emburrado, sua postura curvada e as mãos no bolso, como uma espécie de autodefesa contra os ineptos. Com um ar de superioridade, ele vaga pelos campos e ruas sempre divagando sobre a miséria da existência de sua terra natal.
A misantropia, o desprezo pelas origens e a negação dos costumes são evidentes, assim como os problemas de relacionamento com o pai. Afinal, o rapaz se espelhou nele ao ir para a universidade, e pretende passar em um concurso público para também se tornar professor. Por isso, o choque é grande quando vê que seu exemplo paterno se tornou um sujeito repugnante, que não consegue nem sustentar a família. O pai quer apenas se aposentar, criar ovelhas e viver da terra. Terra essa que o aceitou, quando, ainda bebê, ficou com o corpo coberto de formigas sem ser mordido. Sinan, ao contrário, pretende ser escritor, tem até um manuscrito escrito que espera um financiamento para ser publicado.
Sinan acredita que seu livro é uma retratação pessoal do vilarejo, mas não consegue financiamento da prefeitura e nem mesmo de um bem-sucedido empresário para publica-lo, já que, para eles, não há ali nenhuma referência turística que poderia ser benéfica, e sim uma visão um tanto distorcida da região. Mesmo não entendendo completamente a realidade local, Sinan não consegue escapar dela. Isso é evidenciado pela mordida que recebe de Hatice (Hazar Ergüçlü) durante um beijo. Nesta cena, uma forte ventania balança os galhos das árvores ao mesmo tempo que faz o cabelo de Hatice esvoaçar, ligando a floresta com a mulher, como dois entes sobrenaturais em comunhão. A garota tira sangue dos lábios de seu antigo amante, marcando-o. Deixa-o sem saídas. Ele vai tentar escapar, mas não terá sucesso.
Sem possibilidade de fugir, Sinan vai tentar destruir o que está à sua volta. Como um presente digno daquele recebido pelos troianos, o estudante bem-sucedido na universidade volta com o ódio escondido dentro de si, soltando-o contra quem se mostra um adversário na sua guerra pessoal. Umas das vítimas é um escritor popular que é visto pelo rapaz como um subproduto de uma sociedade boçal. Ou seja, a cultura também precisa ser destruída. O vilarejo onde se passa a história faz parte da província de Çanakkal, que hoje possui um sítio arqueológico da antiga Tróia. O cavalo está presente como monumento e Sinan entra nele, ou entra em si mesmo, já que se trata de um momento de sonho.
Como um estudo de personagem “Árvore dos Frutos Selvagens” mostra todo o processo de aprendizado do protagonista ao desconstruir suas convicções e chocar a realidade com sua ideologia. Ceylan mostra mais uma vez habilidade em construir uma narrativa que, apesar de parecer maçante, é interessante pela proposta. Muito do interesse vem do excepcional último ato, onde a montagem e a fotografia dão o parecer final sobre os destinos dos personagens. É com apenas alguns cortes que o diretor consegue misturar belamente o real com a fantasia sentimental. Imagens de arrependimento mortal saem da cabeça do filho e se materializam em tela, para depois, sobre o olhar do pai, serem desfeitas para os espectadores, que não sabem de inicio se o que vêm se concretizou ou não. Neve e neblina tomam conta dos derradeiros minutos, tornando o horizonte chapado. Apenas com a câmera nas alturas, quase angelical, é possível ver o caminho dourado da estrada cercada pelo branco da neve onde o caminhão que abriga pai e filho os leva para a simples tarefa de buscar feno paras as ovelhas. Simples, porém acalentador.
1964: O Brasil Entre Armas e Livros
3.1 333Lixo!! Usaram uma foto do Sebastião Salgado, tirada em 1986 na Serra Pelada, e disseram que se tratava de uma foto da Guerrilha do Araguaia. Nem sei porque está aqui, uma rede social para fãs de filmes e não de panfletinhos políticos feitos por amadores.
Dumbo
3.4 611 Assista AgoraA imagem do cineasta Tim Burton é ligada aos filmes sombrios. Quando a palavra “sombrios” é colocada separadamente, pode-se entender que a sua obra possui viés pessimista. Porém, o que acontece é exatamente o contrário. Usando como exemplo um grande sucesso, “Edward Mãos de Tesoura”, é possível notar a sua predileção pelo bizarro, mas sem perder a capacidade de criar um personagem sensível, que busca algo acalentador em uma realidade opressora. A sua nova empreitada “Dumbo” também conta com momentos lúgubres e o simpático elefantinho voador sofre um bocado. Burton, no entanto, não é masoquista, ele quer um final feliz, só prefere traçar caminhos diferentes até que o objetivo seja alcançado.
Na verdade, “Dumbo” faz parte da nova fase de um diretor que ainda usa de um design de produção gótico e até busca um pouco das sombras usuais de sua produção passada, mas que perdeu para os grandes estúdios a capacidade de escrever histórias que façam jus ao seu estilo tão conhecido. Não se tem mais a empolgação de antes quando é anunciado o novo filme de Tim Burton. Parece que virou um diretor de encomenda, encarregado de passar seu verniz em readaptações, como em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “Alice no País das Maravilhas” e agora “Dumbo”.
Por isso, não se espera grandes surpresas na história de Holt (Colin Farrell), um soldado que volta da guerra sem um braço e precisa reconstruir sua carreira no circo onde conheceu sua falecida esposa, ao mesmo tempo que tenta criar os dois filhos. Holt, antes um cavaleiro de espetáculo, se torna um cuidador de elefantes, a mando do dono do circo, o trambiqueiro Medici (Danny DeVito). Após uma fêmea de elefante vinda da Ásia dar à luz a um filhote com enormes e exóticas orelhas, a vida do homem sofre uma transformação. O pobre animal logo vira motivo de piada e é colocado junto ao número dos palhaços nas apresentações. Os filhos de Holt passam a cuidar do filhote e dão a ele o nome de Dumbo. Também são os filhos que descobrem a capacidade de Dumbo de voar batendo suas orelhas.
No meio disso tudo há o caricato vilão Vandemere (Michael Keaton), que separa Dumbo de sua mãe e a bela trapezista Colette (Eva Green), que se torna uma aliada do bem. A trama é confeccionada de forma clássica, o que banaliza o filme com seus conflitos, clímax e resoluções manjadas. Evidentemente que se trata de algo pensado para o público infantil, tirando qualquer anseio por um drama mais sério. Mas, o fato de haver Tim Burton nos créditos levará muitos marmanjos desavisados ao cinema esperando temas adultos, como a exploração animal para entretenimento. Até que esse tema é abordado, lá no final em uma sequência leve e breve de acontecimentos, no entanto, nada que satisfará qualquer protetor da natureza. O que sobra são alguns momentos de aventura bem elaborados e traços sensíveis ao abordar a dificuldade de seres diferentes (orelhas grandes, falta de algum membro no corpo) de se adaptarem em seus meios ou de serem aceitos por seus iguais. Só isso não basta para um filme que tem um ícone na direção, a não ser que seu nome tenha se tornado uma simples ferramenta de marketing.
Suprema
3.9 105 Assista AgoraAs mulheres lutam por igualdade desde o início da sociedade dita desenvolvida. Em uma batalha constante por reconhecimento e manutenção de seus direitos – não querem mais direitos, apenas equiparação – as derrotas são diversas, mas as vitórias são grandiosas, devido à dificuldade dos obstáculos que enfrentam no caminho. Quantas histórias já foram contadas sobre ícones femininos que quebraram paradigmas, que mudaram a história? De fato, são diversas, porém, parece que a grande revolução nunca chega, e o machismo, o sexismo e a misoginia sempre saem vitoriosos. Felizmente, elas nunca param de lutar, e de pouco em pouco subvertem regras que teimam em perdurar. Por isso, cada uma daquelas histórias serve para a geração do presente e para a do futuro, e o futuro, com certeza, se apropriara da vida de Ruth Bader Ginsburg.
Em “Suprema”, Ginsburg (Felicity Jones) é uma brilhante estudante que consegue uma das primeiras vagas para mulheres na prestigiada faculdade de direito de Harvard. Ela segue os passos do marido, Martin D. Ginsburg (Armie Hammer), um veterano no curso. O ano é 1956 e os EUA está em ebulição devido ao início da guerra do Vietnã. Há inúmeros protestos contra o conflito, basicamente liderados por jovens que veem um país quebrado ideologicamente e que não respeita os direitos civis de seus cidadãos. As mulheres naquele ano representam – de acordo com dados apresentados no filme – 51% da população, no entanto, são tratadas como se fossem uma minoria relegada a trabalhos de empregadas domésticas, secretarias ou donas de casa. Esse é o caso de Ruth, que, mesmo estando no mesmo patamar do marido ou até em nível superior em relação ao conhecimento do direito, não consegue trabalho em um grande escritório após se formar. Na verdade, ela não consegue em nenhum escritório, tendo que dar aula em uma universidade, enquanto ele desfruta de grande prestigio na área.
O marido não é o problema no filme dirigido por Mimi Leder, já que se trata de um homem que entende a igualdade entre os gêneros e que luta para que sua mulher tenha o destaque que merece. Outros, como o reitor Erwin Griswold (Sam Waterston) e o professor Brown (Stephen Root), tentam pressionar Ruth para que ela largue o curso e devolva a vaga para algum aluno do sexo masculino que não conseguiu passar no processo. Essa pressão é bem desenvolvida por Leder em sua direção e mise-en-scène. Basta notar a primeira sequência, onde Ruth caminha com sua roupa azul no meio de uma multidão de homens de preto, ou quando ela é cercada por vários deles em um elevador. Os homens estão em toda a parte, tirando o seu espaço. Mesmo a altura do marido é um fator de opressão quando os dois são enquadrados frente a frente. Ela pequenina e ele um gigante.
Se a direção apresenta conceitos interessares, o roteiro não sai do comum, mesmo que seja emocionante ver todo o trajeto de vitória de um ícone da justiça norte americana. Há o básico arco de aprendizagem da personagem com seus obstáculos, derrotas e vitórias. A conclusão é evidente por se tratar de uma história baseada em fatos, o que não tira o prazer de presencia-la em sua importante mensagem feminista. Se antes os homens perseguiam Ruth, agora eles a seguem em uma bela cena onde ela sobe as escadarias da suprema corte olhando determinada para cima, em direção à câmera em plongée. Em seu discurso final, seu rosto enche a tela, e a fabulosa Felicity Jones pode usar todo o seu talento para fazer com que a plateia segure o folego e escute com a atenção o que aquela poderosa mulher tem a dizer.
A Casa Que Jack Construiu
3.5 789 Assista AgoraAVISO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS
Lars Von Trier nunca foi um cineasta fácil, seus filmes seguem caminhos subjetivos que abrem discussões acaloradas de quem os defendem com aqueles que os odeiam. Porém, gostando ou não, obras como “Melancolia”, “Anticristo” e “Ninfomaníaca” são vistas como representações artísticas respeitáveis, levando em consideração suas inovações narrativas e estéticas. Von Trier usa elementos externos e, principalmente, internos para criar. O interno toma forma em uma situação ou personagem que são a essência de seu criador. Por isso, o novo “A Casa que Jack Construiu”, pode ser entendido como uma espécie de carta de arrependimento ou tentativa de redenção por tudo que Von Trier foi acusado nos últimos anos: o banimento do festival de Cannes por ter dito que entendia Hitler, as acusações de misoginia que muitos veem impressos em alguns de seus longas e os maus-tratos a algumas atrizes com quem trabalhou. Claro que outros diretores famosos já podem ter feito filmes como terapia, mas não de forma tão clara como cineasta dinamarquês fez aqui.
A trama segue Jack (Matt Dillon), um serial killer com transtorno obsessivo compulsivo por limpeza, que executa suas vitimas – em sua maioria mulheres – e as mantém em uma câmara frigorifica como se fossem uma coleção pessoal, para depois posicionar os corpos e tirar fotos do resultado, instituindo o que chama de arte da destruição. Ele é convicto de que está em um processo criativo durante aqueles atos bárbaros. Sua justificativa é que, na decomposição, o material orgânico se transforma em carbono e volta ao ambiente para criar, no futuro, novos organismos. Ou a vida a partir da morte. Paralelamente ele projeta e começa a erguer o que diz ser uma casa perfeita, porém, nunca consegue avançar além da estrutura. Quando não é o material que o desagrada é o terreno que está fora do padrão ideal. Incapacitado de construir algo, ele precisa destruir (e achar que constrói no processo) para se realizar artisticamente. As vitimas são telas em branco que precisam ser trabalhadas.
Jack narra toda a sua trajetória em um dialogo em Off com o poeta romano Virgílio, que não vê nas aberrações do assassino algo sequer que o aproxime de um artista, fazendo o clássico e pós moderno entrarem em conflito. A narrativa é construída em cinco capítulos e um epílogo, sendo cada capitulo um assassinato. No meio dos capítulos há ilustrações para explicar algum ponto filosófico da discussão. O que torna “A Casa que Jack Construiu” tão magistral é a evidente transposição de Von Trier para a tela na pele de Jack. Como exercício de autocrítica, os crimes pelos quais é acusado (injustamente ou não) são representados pela violência gráfica e ideológica. Mulheres sofrem cruelmente, a arte nazista/fascista é exaltada, a sua própria arte é julgada e destruída e, enfim, é enviado ao inferno, onde caminha junto de Virgílio, seu guia até as profundezas onde será sua morada eterna. A câmera não tem vergonha da violência e registra tudo sem cortes. Movendo-se em seu eixo horizontal e dando zooms rápidos nos rostos dos atores, parece ansiosa por mais sangue derramado ao vislumbrar potenciais presas antes de abatê-las. Fotografado com a crueza da granulação, o filme possui explosões de cores ao mostrar o furgão e as peças de roupa do psicopata em vermelho intenso, na mesma proporção do que é visto no cenário dos crimes e no inferno.
Jack/Von Trier tenta fugir do inferno, mas acaba caindo no seu ultimo nível, onde estão as almas que mais sofrem. A tela preta vem a seguir e com ela a música de Ray Charles enche as caixas de som do cinema com os refrães: ”Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more...”, deixando a dica de um possível final da carreira do cineasta ou seu recomeço em um próximo filme mais otimista.