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37 years, Saint Vitus Cathedral (BRA)
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Bacharel em Cinema, Mestre em Preguiça, Doutor em Ócio.
Doom Metal Kvlt, membro menos relevante do Thy Light e nômade por imposição da minha inconstância existencial.

Nunca fiz nada que prestasse na minha vida, mas nasci no mesmo dia que o Tarkovski, e isso deve significar algo relevante na vida de alguém (mas a princípio não foi a dele e nem será a minha).

Últimas opiniões enviadas

  • Alexander

    Originalmente postado no site Kinograma ponto org:

    Cantaria o poeta Joaquín Sabina que “O amor que não mata morre / amores que matam nunca morrem”. A premissa de um amor levado às últimas consequências é o ponto central do novo longa de Grandrieux, que tem em seu currículo filmes como “Sombre” (1998), “La Vie Nouvelle” (2002) e “Un Lac” (2008). “Malgré la Nuit” esteve em sua première no continente americano na mostra “Vanguardia y Género” do Festival Argentino, e apresenta uma narrativa mais delineada e de dramaturgia mais presente que seus antecessores. Para melhor absorver as nuances do cinema de Grandrieux, é necessário compreender inicialmente suas inquietações sobre o próprio ato da realização: as imagens em sua relação concreta com o mundo, onde cada elemento é apresentado em seu estado real, mesmo que em uma obra de ficção. Essas marcas em seu cinema se devem muito à forma como o corpo é explorado em cena, ora como objeto vivo, ora como paisagem, transitando entre sua representação literal e plástica, culminando em uma grande experiência visual. Em “Malgré la Nuit”, os corpos são os grandes protagonistas, e suas representações muitas vezes possuem uma relevância ainda maior do que a história narrada per se. Os jogos de luz e sombra (com a fotografia muitas vezes estourando acentuadamente nos corpos brancos), as movimentações de câmera, a utilização de lente macro que faz das peles dos atores seus cenários, o silêncio quase absoluto contrastado com os sussurros que por fim revelam mais sobre as intenções de seus personagens do que o próprio texto dito por eles são as tônicas da estética do filme. As referências literárias também são de suma importância na obra de Philippe, que faz do conceito de Proust uma constante em seu cinema: “Devemos esquecer a inteligência.” – a razão não deve ser mais importante do que o sentimento que cada elemento da linguagem adotada pelo cineasta representa para o filme em si. O literal não pode ser encarado de forma mais definitiva que o simbólico. Seu cinema é um cinema de sugestões, de nuances, de possibilidades, de um fluxo sensorial que dialoga mais com as texturas do que necessariamente com uma narrativa do que se convém chamar de clássico.

    Por vezes, a narrativa possui uma estrutura que se assemelha ao ato de sonhar, onde a contiguidade das ações revela novas possibilidades ao invés de uma simples sucessão de sequências. Essas sequências, geralmente pontuadas em excessiva utilização de fades na imagem, contam a história de Lenz, que retorna da Inglaterra para Paris em busca de um amor antigo, Madeleine. Em seu regresso à capital francesa, o protagonista irá se envolver em um triângulo amoroso com Hélène e Lena. Não só os nomes das personagens fazem referência à sua busca original, como elas também representam a busca do reencontro de Lenz com um sentimento perdido, que existe não em outro lugar senão sua memória. Esse envolvimento de caráter transitório com as personagens do triângulo amoroso é por vezes efêmero em sua forma sentimental, mas se consolida na presença física. Se por um lado elas permanecem como um stand-in emocional na falta da verdadeira Madeleine, por outro elas acabam por desenvolver as relações de ciúmes, violência e, sobretudo a exacerbação física – que, como mencionado anteriormente, é uma das potências estéticas de Grandrieux – que permeiam o universo real em oposição ao anseio idealizado de Lenz de um sentimento idílico representado justamente na ausência.

    Hélène é representada com ar de maturidade, mas ao mesmo tempo com uma apatia implacável, que a situa diante da morte em todos os aspectos de sua existência, seja cuidando de idosos em um asilo, seja em suas relações sexuais extremamente violentas onde a personagem faz questão de se colocar como agente submisso. A violência que movimenta suas relações a coloca em posição tangente à morte, única ocasião onde ela se sente realmente viva. É nessa maturidade onde Lenz busca uma sobrevida para a idealização de Madeleine. Já Lena representa o frescor impulsivo da juventude, que diz respeito ao passado dessa mesma idealização. A beleza se esconde na melancolia, na fragilidade, e seu porto seguro acaba por ser Vitali, pai da jovem, um homem de requinte agressivo, amparado pelo poder que se apresenta no filme como ilimitado, se revelando o antagonista maior às intenções não definidas de Lenz em relação à objetividade do presente. O perigo representado por essa relação, entretanto, aproxima o protagonista de um sentimento relacionado a Madeleine. Essa, por sua vez, é representada apenas por uma fotografia de um passado anunciado, mas não vivenciado. A busca por sua presença fará com que o protagonista transite pelo submundo parisiense, amparado pelo amigo Louis, em um cenário underground de pornografia e prostituição.

    Ainda que seja a busca de Lenz a força motriz do desenvolvimento narrativo, são as personagens femininas que roubam para si toda a atenção. As atuações memoráveis atreladas a rostos e corpos de expressividade imponentes destoam do fragilizado protagonista, que teria seu papel desenvolvido por Pete Doherty, frontman da banda inglesa The Libertines. Por questões de saúde, Doherty teve de ser substituído por Kristian Marr, que se apresenta de forma muito menos expressiva do que os outros personagens, sobretudo os masculinos Louis e Vitali. Já as personagens femininas são permeadas por um senso de liberdade quase absoluto – essa liberdade as coloca como agentes causais mesmo em relação à violência que por vezes lhes é infligida, onde elas são livres até mesmo para gostar do sofrimento. Se essa questão pode gerar debate sobre um caráter misógino com que o diretor representa essas personagens, é buscando novamente compreender as referências literárias do cineasta que percebemos que a noção do bem e do mal/certo e errado é difusa diante de suas personagens. O filósofo holandês Baruch Spinoza é peça chave na compreensão desse sentido: “O que se apresenta como bom, é tudo aquilo o que aumenta as possibilidades na vida. O que se apresenta como ruim é aquilo que limita as suas capacidades de expressão”. Se suas personagens vão atrás do que lhes faz sofrer, é porque talvez essa seja a única forma com que elas se sintam de fato próximas de algo que as afaste do sofrimento inerente à existência. Para Hélène, o sadomasoquismo, mesmo na posição de submissa, se apresenta como uma das opções presentes nesse quase absoluto senso de liberdade.

    Se Hélène é a personagem de maior apelo emocional, graças à complexidade de suas relações existenciais e da forma como são apresentados seus contrastes entre apatia e violência, bem como o contraste entre a sobrevivência diante da presença constante da morte, as melhores sequências do filme são atos musicais que se transformam em videoclipes protagonizados por Lena. A estilização da imagem lança mão de diversos artifícios que conferem à imagem um semblante etéreo, como planos sobrepostos, tendo como locação espaços vazios, causando o extremo contraste da penumbra completa do cenário em oposição à personagem sob o spot de luz que lhe confere um aspecto quase fantasmagórico, com maquiagem carregada e cores marcantes que evocam uma estética neon, culminando na ilustração visual das emoções de Lena. A música, transitória entre o pop e o synthwave, transpõe sentimentalmente as principais características da personagem, evidenciando uma associação indivisível entre a beleza e a melancolia, entre o frescor de sua juventude com o desamparo existencial que escoa em suas relações com os personagens masculinos do filme, seja o afeto com Lenz, seja a proteção paternal de Vitali.

    Outro fator digno de menção é o interesse do cineasta em um caráter animalesco, puro, sem intermédio da atuação, mas de uma espontaneidade genuína. A menção de uma droga que permite ao seu usuário uma aproximação com seu lado instintivo mais primitivo é um dos elementos de tensão explorados no filme, bem como a presença de um cachorro, elemento já utilizado de maneira tão dramática quanto em seu antecessor “La Vie Nouvelle”. “Um cachorro sempre está a ser um cachorro, não há como filmá-lo para que ele finja ser um gato”, afirma Grandrieux, comparando as intenções que sempre se fazem presentes quando um ator se apresenta diante de uma câmera. Esse caráter animalesco também existe em alguns de seus personagens, retomando a ideia de um sentimento onírico que por vezes contamina as motivações, aproximando-o estilisticamente de filmes como “Mulholland Drive” e “The Blue Velvet”, ambos dirigidos por David Lynch. Não é nenhum exagero traçar um paralelo entre Vitali e o personagem Frank Booth de “The Blue Velvet” em seu caráter de ferocidade animalesca. Para ambos, a violência e a exposição tortuosa da sexualidade permeiam toda a ação com certa iminência da tragédia anunciada, como cavaleiros do apocalipse a dar presságios sobre o fim do mundo inadiável, onde a estrutura de sonho se revela como um pesadelo do qual não é possível acordar.

    A tragédia, que aqui separa o limiar entre a vida e a morte, é onde a busca pelo amor presente em toda a trajetória do filme irá culminar, em uma relação que confunde o conjugal com o maternal – o que a primeira vista parece um desfecho relativamente óbvio. No entanto, assim como qualquer busca por um sentimento idílico, o resultado importa pouco ou quase nada em relação à jornada, que aqui dá o nome de Madeleine ao processo de autoconhecimento do próprio protagonista. “Malgré la Nuit” é um filme sobre essa conexão entre amor e morte, entre a vida e o autoconhecimento, entre a idealização e o real, entre o passado e um futuro do qual nos é impossível escapar. Se o sentimento da iminência do fim do mundo possa parecer um fardo muito pesado, talvez a única alternativa seja ser um pouco como Hélène, sendo capaz de enxergar as nuances da vida diante da inevitabilidade da presença da morte.

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  • Alexander

    Em minha última crítica, sobre o filme "O Touro", eu já havia mencionado um fenômeno recente e transformador no cinema paranaense contemporâneo: os "forasteiros" radicados na terra das araucárias que acabaram por revolucionar a produção audiovisual não só no estado, mas em todo o Brasil. Falar sobre Aly Muritiba é, mais do que falar sobre cinema paranaense, falar sobre uma realidade no cinema nacional. Em sua curta, porém expressiva carreira, o baiano "agora curitibano" conseguiu deixar traços profundos sobre suas particularidades, e o prestígio conquistado em festivais mundo afora só corroboram o que é óbvio em sua cinematografia.
    Tive meu primeiro contato com Muritiba ainda na faculdade, onde separados por alguns anos, estudamos juntos. Se os seus primeiros curta-metragens, como "Convergências", "Com as próprias mãos" e "Reminiscências" não me chamavam atenção alguma, é necessário ponderar que desde o início de sua carreira, Muritiba sempre tentou adequar em sua obra elementos de gênero, algo que volta a ganhar força no cinema nacional, mas que parece ter passado por um longo período de provação.
    No entanto, foi através da "aproximação com o real" que seus filmes começaram a me chamar a atenção de forma mais contundente. Em um de seus filmes menos conhecidos, "Dia 1 P.M.", a câmera reencena o cotidiano familiar, onde pai e filho discutem sobre a venda de um carro. A premissa simples, com a câmera fixa em um ponto com um enquadramento aberto, onde seus personagens entram e saem e muitas vezes o som em "off" dita a ação, acabou por se tornar uma das grandes assinaturas do diretor, que posteriormente explorou ainda melhor tais recursos em "Pátio", o ponto-alto de sua Trilogia do Cárcere, que também abarca o premiadíssimo "A Fábrica" e o híbrido "A Gente", grande homenagem de Muritiba ao estilo de Maria Augusta Ramos, outrora professora na faculdade em que estudamos.

    Após debutar em longas de ficção ao lado de outros quatro ex-colegas de curso em "Circular", que peca pela inconsistência/inconstância em certas sequências (o filme é um multiplot de cinco grandes sequências que convergem em um final pouco consistente diante das expectativas construídas ao longo de cada subtrama), Muritiba enfim chega a seu primeiro longa ficcional "solo" (guardadas as devidas proporções que tal termo pode obter em relação à chamada "autoria cinematográfica") com "Para Minha Amada Morta", tendo absorvido o melhor de seu passado para construir uma obra consistente, projetando-se ao futuro como grande expoente do cinema brasileiro contemporâneo.

    Tive meu primeiro contato com o filme ainda em sua fase de pré-produção, com o roteiro do então chamado "O homem que matou a minha amada morta", que já despontava como um projeto ambicioso, apostando em uma premissa intimista sob os signos do thriller psicológico. O que vemos na tela, por sua vez, é imensamente mais grandioso do que as palavras elencadas em sequências poderiam revelar. Em "Para Minha Amada Morta", Aly se consolida como um grande tradutor de conceitos em imagens.
    Um filme de gênero, antes de tudo, possui certos "códigos" estéticos bem demarcados, mas são poucos aqueles que conseguem transcender esses clichês e transformá-los em uma nova linguagem, sendo capazes de imprimir seu próprio estilo independente do tema a ser tratado. No longa, Aly prova que é capaz de fazer tudo isso de maneira orgânica, estampando todo o seu background: planos fixos em enquadramentos angulares em profundidade com diversas camadas de informação, planos-sequência que acompanham seus personagens pelo espaço fílmico, a retomada de personagens do passado - o protagonista assiste na TV ao filme "Circular" em determinado momento do filme; Jefferson Walkiu, protagonista de "A Gente" é um dos coadjuvantes aqui -, cenários periféricos, além do universo policial aonde o próprio diretor já trabalhou antes de se aventurar pelo cinema, que permeou toda sua Trilogia do Cárcere.

    O filme conta a história do luto de Fernando (interpretado por Fernando Alves Pinto), que tenta manter a memória de sua ex-mulher através do contato com seus pertences pessoais. Em uma dessas investidas pelo passado de sua esposa, ele descobre que ela tinha um amante. Fernando então resolve investigar por conta própria o homem que manchou a memória de uma mulher até então ideal.
    Em nenhum momento sabemos mais ou menos do que o protagonista, toda a ação que ocorre na tela é motivada por algo que nos é mostrado. A tensão que caracteriza o thriller no filme é justamente por conta da tentativa da transposição do drama do personagem na nossa condição de espectador. E Aly lida muito bem com isso, ao criar diversos momentos de tensão e posteriormente quebrar as nossas expectativas diante delas, se mostrando consciente de suas escolhas em um filme dirigido com pulso firme, mas sem nos ditar qual caminho seguir.
    O filme possui dois atos claros - o início, com enquadramentos fixos, tons frios e predominância absoluta do silêncio que joga toda a atenção da narrativa para as imagens / o desenvolvimento~conclusão, com câmera na mão em planos-sequências que acompanham o protagonista em sua busca, tons mais quentes/fotografia mais escura, som em off que cria um grandioso extra-campo. O turning point de um ato para o outro é explorado à exaustão, revelando uma paranoia delirante do protagonista, que se tortura diante das imagens da infidelidade da "amada morta", e cria a expectativa para uma infinidade de desfechos. Temos acesso a todo o universo de imagens construído ao longo da narrativa, mas como almejar algo a partir do ponto de vista de um personagem que se revela cada vez mais psicótico?
    Aliás, falar do protagonista sem comentar a atuação de Fernando Alves Pinto seria no mínimo uma covardia. Fernando, que já colecionava em sua trajetória atuações marcantes em filmes como "Terra Estrangeira" e "2 Coelhos", parece chegar ao auge de sua maturidade como artista por aqui. O personagem introspectivo, observador, impulsivo e de poucas palavras dita a maior parte de suas ações apenas com o gesto, com a expressão. Muitas vezes, somado aos trabalhos de câmera, a mise-en-scène se torna uma grande dança, com idas e vindas diante do enquadramento que busca ditar o ritmo dessa coreografia visual, permitindo ao ator ser conduzido em um eterno jogo de trocas entre a ação e sua representação. O resultado é magistral. Seus olhos fatigados e suas ações contidas, sempre no limiar de uma violência extrema, caracterizam grande parte dos momentos de tensão do filme.

    Jean-Luc Godard afirmou que "Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma mulher e uma arma". Apesar das infinitas possibilidades de interpretação da frase, é notável que nem todos os que tentaram produzir algo a partir dessa premissa conseguiram grande êxito, mas é diante dela que "Para Minha Amada Morta" encontra sua principal força.
    A arma, objeto pessoal de Fernando, perito policial, logo de início já nos tira da zona de conforto - após o nocaute interno sofrido pelo protagonista, remetendo aos melhores momentos de "Caché", de Michael Haneke, o então pai zeloso revela o seu grande ponto fraco. A nossa inquietação diante da possibilidade de qualquer acontecimento inesperado diante das imagens de uma criança brincando com uma arma de verdade esquecida pelo pai em um local de fácil acesso é somente uma das diversas expectativas geradas e subvertidas ao longo do filme, dessas que nos fazem segurar de maneira mais firme os braços da poltrona e nos encolher um pouco diante da tela grande em nossas aflições enquanto voyeurs de um mundo em colapso.
    A mulher, revelada aqui somente pelas imagens pixelizadas e de cores opacas de uma fita VHS, permanece mais como memória do que como realidade. Não são as suas ações que estão em xeque, mas sim a forma como essas ações e lembranças mexem com a cabeça do protagonista, desenvolvendo a ação dramática do filme.

    Para se aproximar de Salvador - o outro, o amante, o antagonista -, Fernando tem de se lançar à experiência do outro: viver a vida suburbana, se aproximar de um conceito de comunidade e religiosidade que até então não lhe fazia sentido, buscar compreender o próximo de igual para igual, desarmado da autoridade policial de outrora. E é nesse sentido que Fernando acaba sendo seu próprio antagonista - o que está em jogo aqui não é a vingança, não é o maniqueísmo que determina o local de cada personagem diante da história narrada, mas o quanto o personagem representado por Alves Pinto é capaz de superar uma imagem de algo que é mas não aparentava ser, de se libertar de suas próprias angústias.
    Em meio a esse limiar microcósmico que separa os dois homens que outrora dividiram a mesma mulher, há a mulher de Salvador, Raquel, que gera um outro lado de tensão sexual na história, além da prole do casal.
    É bonito como mesmo de forma coadjuvante a personagem da filha mais velha do casal interage com Fernando - ela busca romper com as tradições impostas pelo patriarcal e austero senso de comunidade de seu pai, e mira no protagonista um aliado na busca por sua própria identidade, seja nas breves conversas, seja nos segredos compartilhados (cigarros, namorado), e tudo isso é sintetizado em uma cena belíssima que poderia por vezes passar despercebida por conta de sua sutileza: vemos o protagonista levando a filha do amante para um encontro derradeiro com seu namorado. Dentro do carro, ela troca de roupa como se trocasse de personalidade, da casa para o mundo, de oprimida para dona da situação, de menina para mulher. Aquele é o seu momento, de ser quem ela era no seu íntimo, longe das amarras autoritárias da sociedade ao seu redor.
    Mais do que criar tensões, a presença dessas mulheres nos limiares das relações humanas e da presença da arma acabam por nos revelar - e também ao próprio protagonista - aonde é que essa história vai chegar, tendo o seu ápice em uma das cenas mais antológicas do cinema brasileiro, um plano-sequência com quase 20 minutos de duração, aonde todas as tensões criadas até então confluem: o confronto com o outro, a presença do desconhecido, o cruzamento das fronteiras do próximo, o senso de coletividade em contraponto ao indivíduo, as relações familiares sendo colocadas à prova, a vingança em contraposição à superação, tudo isso passando por vários cenários de uma mesma locação, numa dança coletiva entre atores e equipe técnica, numa virtuose que não se mostra fetichista, mas sim completamente alinhada à diegese construída até aqui.
    E para finalizar, o deslocamento espaço-temporal nos permite vislumbrar algo atemporal: será o anseio de um passado idílico, que como nos revela a literatura de Dostoievski, sintetiza a nostalgia por algo que não necessariamente existiu? Será a contemplação de uma superação do estado crítico de suspensão que permeou a vida do protagonista nas quase duas horas de filme? As interpretações possíveis são diversas, e novamente nenhuma delas é determinista, apesar do rigor técnico-estético do diretor em relação ao seu longa.

    Em uma época onde os grandes clássicos-imediatos do cinema brasileiro são justamente os que mais flertam com o real, ter uma ficção em um filme assumidamente de gênero (ainda que ele seja magistralmente subvertido) e que consegue causar o impacto que Aly causa em seu "Para Minha Amada Morta" é admirável, ainda mais por notar nos créditos vários nomes conhecidos, de pessoas que tem feito acontecer, e feito de forma boa, irreparável. Ainda é cedo para afirmar, afinal o lançamento oficial está previsto somente para março do ano que vem, mas esse certamente é um filme que veio para ficar de alguma forma. Que sua importância e talento sejam reverenciados da forma que o filme merece é o mínimo que eu posso desejar. Por ora, só me cabe meu sentimento mais sincero, o de gratidão.
    Muito obrigado, Aly.

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  • Alexander

    Podemos afirmar que o Cinema Brasileiro nunca passou por um momento de maior produtividade, se não em qualidade, certamente em números concretos. A chamada "revolução digital" aproximou do audiovisual muitos outros artistas que anteriormente viam no vídeo apenas uma possibilidade, que nos dias atuais emerge como realidade predominante. Se o digital é uma realidade técnica que veio para ficar, podemos notar fenômenos como a hibridização como uma das grandes características temáticas desse novo cinema realizado em terras tupiniquins: nunca se filmou tantas ficções com cara de documentário e vice-versa.
    Em seu texto "A Era do Híbrido", Carlos Alberto Mattos teoriza sobre essa "nova cara do cinema brasileiro", mas sem deixar de olhar para trás. Se hoje filmes como "Avenida Brasília Formosa" e "Branco Sai, Preto Fica" se fazem notar ao misturar o real a um mundo fantasioso – e muitas vezes fantástico –, olhar para trás é enxergar "Iracema – Uma Transa Amazônica" como um grande referencial desse "cinema de hibridismos", que parece cada dia mais deixar de ser mera manifestação pontual e se consolidar de fato como tendência contemporânea.

    Nesse vasto cenário nacional, é necessário observar a produção paranaense como grande celeiro de pérolas contemporâneas. A massiva exibição de filmes aclamados em festivais pelo mundo afora provam que, mesmo apesar da grave crise econômica que afeta o estado como um todo – sendo a cultura a primeira a ser escanteada nas gestões recentes –, os realizadores da terra das araucárias resistem bravamente. Grande parte desses cineastas radicados no Paraná são originários de outros estados, e alguns deles são chaves fundamentais dessa revolução da linguagem que se mostra expressiva não somente no Sul do país, mas também em outros cenários "fora do eixo", como em Minas Gerais e estados do Nordeste.
    Nomes como os de Aly Muritiba e de Rodrigo Grota recentemente ganharam destaque mundial em diversos festivais de Cinema, e aos poucos uma expressiva gama de novos realizadores emergem produzindo seus primeiros longas-metragem, que gradativamente vão conquistando seu lugar ao Sol.
    Um desses casos é o de Larissa Figueiredo, brasiliense de nascimento, mas que em Curitiba se tornou uma das responsáveis pelas produções da Tu i Tam filmes, aonde após realizar obras em curta-metragem, revisita o universo de seu curta "O Rei" (2014) e em 2015 lança seu primeiro longa: "O Touro".

    Os dispositivos ficcionais-documentais apresentados no filme, de prontidão já nos remetem ao supracitado "Iracema", dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Se no clássico filme que estrelava Paulo César Pereio como "Tião Brasil Grande" o que vemos é um olhar passageiro, que nos leva diante das fronteiras longínquas de um road movie, o longa assinado por Larissa nos insere em um vilarejo aonde o espaço-tempo parece viver um eterno estado de suspensão.
    O filme se passa na ilha de Lençóis, no litoral maranhense, aonde a lenda afirma que o rei português Dom Sebastião havia se encantado, deixando o caráter humano para viver eternamente em condição mítica, ao contrário da versão oficial sobre a derrota na batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos. Se para nós, espectadores, a lenda do Rei que hoje transita a ilha em noites de Lua Cheia na forma de um Touro com uma estrela na testa é a premissa principal do filme de Larissa, devemos ter em mente que para qualquer habitante da remota ilha esse caráter lendário é completamente arraigado na cultura, expressão popular e crença religiosa local, transformando tal premissa em inquestionável realidade.
    O dispositivo central do filme consiste em enviar Joana de Verona – atriz lusitana – à ilha, aonde ela buscará descobrir algo sobre o conterrâneo Dom Sebastião, não mais como personagem histórico, mas como o homem que se fez mito, o encantado que se fez Touro, o Rei que desafiou a geografia e na pequena ilha no Maranhão abandonou a vida e das batalhas e adentrou na eternidade. Suas heranças imperiais já não permeiam a memória de seu povo, aqui a realidade do Rei-Touro se mistura ao folclore popular e ao rito religioso, e através do Bumba-meu-boi e de Orixás do Candomblé se inserem na natureza que, nesse local, se apresentam como o limiar do universo para os habitantes ali inseridos.

    Em cada encontro com os locais, Joana aprende que o Touro ali está e ali permanecerá, assim como outros elementos que fazem parte dessa realidade. Em uma sequência memorável (em minha opinião a melhor do filme), a atriz se une às locais para retirar água de um poço, onde aprende sobre as Mães D'água, entidades que utilizam da mesma água no período noturno. Acreditar no imaginário popular local é talvez a única forma sincera de compreender as diversas nuances apresentadas sobre essa sociedade em específico. Assim como diversos exemplos clássicos da cinematografia mundial, "O Touro" é filme que só se justifica através da fé.
    O tempo, representado aqui como uma "eternidade que gagueja", se revela muito mais estagnado do que cíclico, ao contrário de muitos filmes da já explicitada cinematografia híbrida contemporânea brasileira, tendo como "Serras da Desordem" de Andrea Tonacci um de seus maiores representantes no que se refere a tal especificidade. Se a realidade do índio Carapiru parece um eterno fractal de oposições entre o presente e o passado, em "O Touro" Joana revela em uma frase sintomática um dos sentimentos mais íntimos do filme, em um diálogo com um jovem local, afirmando que na ilha – ao contrário deles – todos parecem ser velhos ou crianças. Esse caráter de "vidas no início" e de "vidas no fim" suspende totalmente a passagem do tempo como algo circular e de renovação, a ele só compete a natureza ao redor, e não seus moradores.
    A natureza é, por sua vez, de uma grandiosidade monumental. Se as imagens captadas pela câmera que incessantemente flana pelo cenário natural são incapazes de dar uma dimensão de sua grandiosidade mesmo em uma imagem de padrão cinemascope, é através do som que somos esmagados diante de nossa insignificância em relação ao mundo. A ambientação sonora é, provavelmente, o maior destaque do longa-metragem apresentado, é nele que a natureza nos envolve tanto para dentro quanto para fora do filme, é nesse uníssono estrondoso que nos fazemos tão presentes no mundo quanto o Touro ali encantado. Se o tempo ali não é cíclico, ao menos a natureza onipresente nos dá a dimensão de quem está no controle – e definitivamente não somos nós, humanos. É somente nesse cenário que compreendemos a dimensão do que é ter abandonado o caráter mortal e tornar-se mito, o que nos encaminha para o clímax do filme.
    No turning point decisivo aonde a realidade documental será totalmente abandonada, Joana visita os escombros de uma escola, já reconquistada pela natureza, com as areias dos lençóis maranhenses literalmente invadindo seu espaço, dando vestígios sobre uma realidade que ali não mais se faz presente, enquanto crianças brincam e curiosas observam o ato de explorar, o ato documental de se fazer filme. Esse limiar entre universo mítico e espaço geográfico é cruzado quando a personagem enfim resolve encarar o Touro, acertar-lhe a estrela na testa com sua espada dourada. As cenas do "abandono da realidade" aqui parecem dialogar com obras como "Ex-Isto", de Cao Guimarães, realizador até então renomado como documentarista, que na obra citada encena a chegada de Descartes nos trópicos, em livre adaptação do livro "Catatau", de Paulo Leminski.
    Joana rema, Joana se transforma enquanto pessoa para poder se situar no mesmo plano mítico/místico em que o Touro-fantasma errante de Dom Sebastião a aguarda. Sua mudança se revela em caráter estritamente interno, já que o denso universo construído no filme é incapaz de se modificar através da ação do homem. É necessário fazer-se mito, fazer-se encantamento, é necessário olhar para dentro para compreender o que há fora como parte imutável de uma natureza onipotente.

    É, como mencionado anteriormente, necessário que haja fé. E ao se permitir ter fé (mesmo em casos similares aos meus – ateu que só concebe um conceito de divindade através da verdadeira arte), nos deparamos com uma grata surpresa e certamente um dos grandes destaques não só da 39ª Mostra de Internacional Cinema de São Paulo, mas da cinematografia nacional contemporânea.

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