A verdade é nua e crua: o ar novelesco à lá Manoel Carlos é apenas uma alegoria para as letrinhas que subirão no final, assinadas por Eduardo Galeano. E foda-se esse spoiler suspensório. A maior parte do roteiro é um holograma para mães que perderam seus filhos e os filhos dos outros. É sobre mulheres que se fuderam sozinhas durante a guerra e fica a seu critério ilustrar em que guerra. É sobre dor e sofrimento velado em comunhão. O pior é que ainda deu pra sentir esperança no final... Almodóvar é muito pica!
Acompanhar o lindo romance protagonizado por Carla Diaz e Arthur Picoli de Conduru vale mais a pena do que parar pra assistir a essas duas aberrações de oitenta e poucos minutos. Aguardando pelo derradeiro filme III da trágica sequência: "O Baseado Que Matou Meus Pais". Como diria Marcelo Dourado, "Que filme ruim, velho! Mudou o meu conceito de horrível".
Demorei uma vida pra assistir, mas adorei a bifurcação inversa da historinha tragicômica que vai se abraçando. João Miguel muito bem! Os momentos de Ratatouille in Carandiru são ótimos também. Gostei dos efeitos sonoros da contínua mastigação de boca aberta, mas achei que a trilha sonora deixou um pouco a desejar. Também poderia ter menos cenas caricatas e destilar menos preconceitos cansados, mas, definitivamente, vale a pena.
Um dos motivos pelos quais o cagador de regra que vos fala optou pela graduação em Direito, no longínquo ano de 2012, mesmo ano da tragédia que envolveu a família Matsunaga, foi justamente a análise desses casos criminais comprometidos pelo nosso “jornalismo investigativo”.
Lembro que durante algum daqueles testes vocacionais mequetrefes do ensino médio, um episódio do saudoso “Linha Direta” serviu de pano de fundo para que noções iniciais de Direito Penal me fossem apresentadas e me despertassem para um possível envolvimento profissional neste universo.
Até hoje eu tenho sérias dificuldades de compreender aquele sujeito que presta vestibular para Direito, ingressa a uma boa universidade e tem a pachorra de dizer que não gosta de Penal. Acho que isso deve representar algum tipo de desvio de caráter, mas não estou aqui para atacar os meus colegas amantes de burocracia e apaixonados pela indústria do dano moral.
Fato é que essa curiosidade em torno do que choca e o interesse pelas profundezas da mente humana, acaba transformando as angústias e os conflitos do processo penal em uma ferramenta extremamente sedutora quando o assunto é o engajamento popular em torno de um crime midiático.
Eu nutro até um certo apreço pelo imbecis que, mesmo leigos, discutem a eficácia de medicamentos, se recusam a tomar vacinas testadas ou questionam o formato do mundo. O criminalista sempre precisou conviver com esse tipo de “opinião”. Gera um certo alívio ver mais gente sentindo na pele como é difícil passar anos desenvolvendo construções teóricas, embasamentos técnicos, até surgir um abutre qualquer e colocar tudo por terra.
O próprio catálogo de filmes, séries, e documentários que buscam revisitar os crimes mais chocantes do nosso passado recente, são a prova viva de que a espetacularização do papel de juízes, promotores, delegados e até mesmo advogados, é uma rica e eficaz fonte de entretenimento.
Isso já virou até gênero: o true crime.
Ora, se temos um true crime onde a ré confessa transformou o seu então marido bilionário em strogonoff, por quê não percorrermos o seu passado maltratado e colocarmos uma sonoplastia de filme de suspense para tentar desmistificar as nuances por trás dos fatos?
Melhor… E se pegarmos um bando de machos obsoletos que tiveram um papel decisivo naquele processo e ensaiarmos algumas discussões acerca da manutenção do poder primário e da predominância de homens em funções de controle e privilégio?
Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime estreou na Netflix com a fórmula perfeita para chocar novamente, refrescar a curiosidade das pessoas e tentar desmontar alguns estereótipos criados em torno de um julgamento que entrou no imaginário do público a ponto de fazer com que quase todo mundo se interessasse pela obra.
De um modo geral, eu tendo a desaprovar situações em que pessoas são alçadas a uma condição de acuamento, independente do delito cometido ou da acusação a ser questionada. A minha empatia pela Elize parte antes mesmo do documentário se iniciar, o que me fez detestar o formato “embelezador” de como a filmagem foi produzida.
Entre as péssimas alternâncias cronológicas e as entrevistas desconfortáveis, a diretora Eliza Capai trabalha para montar uma protagonista frágil, machucada, de origem humilde e heranças traumáticas, que em um momento de destempero e abuso psicológico teria cometido um dos crimes de maior repercussão no Brasil. Reinicia-se o conflito de ação vs reação no caso.
O problema é que a produção não se mostra nem um pouco interessada em trazer elementos novos, criar dúvidas sobre momentos determinantes da tragédia ou fazer o que o true crime faz de melhor: criar uma tensão na sua narrativa transcendente aos fatos.
O que o documentário tem de mais interessante, provavelmente a matéria que o Fantástico exibiu em 2012 também teve. A propósito, a sétima temporada da série “Investigação Criminal” traz um episódio de 45 minutos sobre o caso que faz o mesmo serviço.
Sob o grande álibi da entrevista inédita, tendo em vista que Elize Matsunaga jamais se pronunciou publicamente sobre os fatos, a obra finge tentar compreender as motivações por trás do crime, mas acaba criando uma caricatura da personagem pela qual havia uma tentativa de humanização. As próprias inserções da Elize contribuem para um efeito narrativo sensacionalista ao sugerir elementos ocultos e segredos inconfessáveis dignos de novela.
Reconheço que não há como ser indiferente ao que Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime exibe em seus quatro episódios de cinquenta minutos. A história é montada com diversas imagens da cobertura jornalística do caso, bem como registros do acervo pessoal do casal e uma série de depoimentos.
Acontece que essa coletânea de faíscas do crime, por si só, não me fizeram ter um pingo de tesão ao final de cada episódio. Tudo parecia um grande programa do Datena ao contrário.
Se o objetivo da Elize era mesmo deixar um material comovente e relevante para a reconstrução dos seus laços com a filha fadada a arcar para sempre com uma história tão macabra, lamento dizer que não rolou.
Se o objetivo da diretora era mesmo trazer um lado humano da sua protagonista, reforçar dúvidas sobre as motivações para o crime e criar compensações entre patriarcado e esquartejamento, lamento dizer que não rolou.
Se o objetivo do delegado, do promotor e dos demais depoentes homens, era mesmo consolidar a historinha de que a puta oportunista premeditou toda a barbárie para meter a mão na grana, lamento dizer que não rolou.
Para mim, quase nada rolou.
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O novo longa dirigido por Taylor Sheridan (Sicário: Terra de Ninguém) e estrelado por Angelina Jolie (Garota Interrompida), entrou no circuito brasileiro de cinemas na última quinta-feira (27) e, muito provavelmente, vai agradar aquele tipo de espectador que só está interessado em distrair a cabeça e acompanhar um joguinho de gato e rato por pouco mais de 1h30min.
É o famoso filme de Tela Quente.
Eu estaria mentindo se dissesse que Aqueles Que Me Desejam a Morte é o tipo de obra que normalmente me atrairia, mas eu me peguei sendo puxado para a história conforme ela avançava, mesmo sem que houvesse qualquer complexidade nos momentos de transição, muito por conta do efeito catalisador da floresta em chamas que passou a ter um efeito de bomba-relógio.
Logo de cara, somos apresentados ao perito contador Owen Casserly (Jake Weber), responsável por desvendar algum tipo de esquema obscuro envolvendo magnatas e pessoas influentes do governo, e a seu filho Conner (Finn Little), que rapidamente despontam como alvos de uma busca implacável por parte dos agentes Jack (Aidan Gillen) e Patrick (Nicholas Hoult), que farão de tudo para silenciar a família e preservar o bom andamento dos negócios.
Quando uma abrupta amostra de eventos deixa claro para Owen que ele e o seu filho serão os próximos na lista de execuções, o jeito foi partir para o acampamento de seu cunhado Ethan Sawyer (Jon Bernthal), uma importante figura policial da região, para tentar se proteger e manter a maior distância possível dos inimigos.
No entanto, evidentemente alguma coisa teria que sair do planejado…
Ao vagar sozinho pela floresta isolada, depois de uma traumática experiência de tiroteio, o pequeno Conner acaba sucumbindo à proteção de uma bombeira paraquedista chamada Hannah Faber (Angelina Jolie), que havia sido remanejada para uma torre de incêndio erguida no local depois que um desastroso erro durante uma missão no passado passou a atormentá-la de maneira incessante.
De certa forma, a sutileza na construção da personagem de Angelina Jolie com alguns flashbacks do incidente pretérito e os efeitos sobre a sua personalidade repleta de angústia e rebeldia, foi informativa o suficiente para nos dar o incentivo de que precisávamos até admitir o porquê de sua personagem reagir a determinadas situações do jeito que ela reagia. Ao meu ver, esse nó ficou bem amarrado.
Talvez o ingrediente mais interessante no quesito roteiro seja justamente o fato de que o filme está carregado de pessoas traumatizadas e com pouco trato para lidar com os seus demônios e com os demônios alheios. A única alternativa acaba sendo buscar forças no que resta de resiliência em quem está ao lado e isso é traduzido em uma química convincente entre Angelina e o ator mirim. Se para um estava ruim, para o outro estava pior.
E a partir daí é questão de tempo para que as coisas comecem a se desenrolar de maneira pouco surpreendente. O filme soa bem montado para a ação, mas ignora a profundidade dos personagens. A lindíssima localização arborizada onde grande parte da trama está situada acaba sendo subutilizada no aspecto do novo incêndio florestal, que vem à tona esdruxulamente.
Além dos lampejos iniciais e da boa troca entre os protagonistas (muito por conta do trabalho super decente e natural entregue pelo jovem Finn Little), o filme de fato perdeu a oportunidade de dar sequência a alguns atos preparatórios que acabaram sendo acelerados demais. Se alguém descobrir qual era o segredo mantido por Owen, me avise.
Em compensação, seria injusto deixar de pontuar que os efeitos de Aqueles Que Me Desejam a Morte são bem feitos e que o uso acertado do som é capaz de inserir o espectador no meio do fogo. Enquanto a paisagem é lambida pelas chamas, é possível ouvir limpamente o barulho do fogo estalando ao redor da cena, o que é uma ótima maneira de trazer o público para o cenário caótico.
Provavelmente se você não assistir ao filme em uma boa sala de cinema, esse tipo de sensação poderá ser comprometida (mas se puder, fique em casa).
No mais, embora o roteiro parta de uma premissa simplória e o desfecho não seja tão empolgante, esse é um daqueles filmes que não vai acabar com o dia de ninguém. Se você estiver emotivo, dá até pra dar uma lacrimejada. Se resolveu assistir só por causa da beiça da Angelina, também dá pra sair satisfeito.
Ignore as conveniências do filme (e da vida), mas não se esqueça que onde há fumaça, há fogo.
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Depois de aproximadamente um ano e quatro meses sem adentrar uma sala de cinema, acabei sucumbindo ao deleite cinéfilo, mesmo sem enxergar a esperada luz no fim do túnel desta pandemia insolente, e compareci à cabine de imprensa do tal Mundo em Caos, título que, a princípio, seria mais do que oportuno e apropriado ao momento.
Baseado no primeiro livro da trilogia de Patrick Ness, Mundo em Caos é uma espécie de faroeste de ficção científica, ambientado em um planeta distante e colonizado com um pequeno povoado, onde os pensamentos dos homens podem ser ouvidos pelos outros, numa espécie de “voz da consciência” em alto e bom tom.
Embora a expressão “sem pé nem cabeça” possa ter alcançado níveis nunca antes imaginados em diversos momentos da trama, é possível que a saudade que eu estava do cinema, a necessidade de apreciar qualquer obra na telona e o nível de cafeína no meu sangue tenham me feito ter mais boa vontade com o filminho de sessão da tarde do que ele merecia.
É possível dizer que o filme comandado por duas estrelas da franquia Disney (Tom Holland, o Homem-Aranha e Daisy Ridley, a Rey de de Star Wars), se passa em algum momento no futuro, em um planeta fora do Sistema Solar, mesmo que o roteiro se recuse a fornecer maiores informações sobre o tempo-espaço da história.
De uma maneira praticamente intuitiva, acaba sendo possível compreender que alguns terráqueos deixaram o seu planeta de origem, provavelmente degradado e com escassez de recursos, para semear novos sistemas e buscar uma melhor qualidade de vida em meio ao caos.
Todd Hewitt, protagonizado por Tom Holland, é aquele personagem adolescente que varia momentos de ingenuidade e valentia, subsistindo na pacata vila de Prentisstown, localizada em um planeta que parece abrigar colonizadores esquecidos, sendo todos eles homens chucros.
Depois de um bom tempo sem maiores direcionamentos e com bastante relutância ao “the noise” (a tal “voz da consciência”) que cada valentão emitia involuntariamente, somos informados de que a população nativa dizimou todas as mulheres da região, incluindo a mãe de Todd, durante uma guerra entre eles e os colonizadores.
Por conta dessa disputa pela sobrevivência no território distante, o intitulado prefeito David Prentiss (Mads Mikkelsen), passa a comandar aquele ordenamento social composto integralmente por membros hipermasculinizados e programados para não demonstrar fraquezas e expressar sentimentos mais profundos, lutando para dominar o “the noise” que habita em cada um.
No meio desse aquário de ruídos, masculinidade tóxica e instintos animalescos, surge a personagem de Daisy Ridley, Viola Eade, que cai de paraquedas (na verdade de espaçonave) nessa conjuntura desgraçada depois que o seu veículo espacial tem uma pane e a leva ao coração de uma floresta localizada no planeta estranho.
É mais do que previsível que Todd ficaria incumbido de encontrar e proteger a forasteira, única sobrevivente de seu acidente brutal. Mais previsível ainda é a paixão que ele começaria a nutrir pela bela moça de madeixas loiras, mesmo que Viola não necessitasse de proteção alguma, sendo mais perspicaz do que a imensa maioria dos brutamontes.
A partir de então surge uma tentativa frustrada de flerte, tendo em vista que o personagem de Holland nada mais é do que uma figura pré-adolescente e virjona que sequer havia se deparado com um ser do sexo feminino até então. Como agravante, temos o fato de que Viola tem acesso a todos os “ruídos” emitidos pela mente do rapaz enquanto ele não consegue descobrir um só pensamento da visitante. Apenas os homens são capazes de emitir o “the noise”, o que soa muito mais como penitência do que virtude.
Com a ausência de química entre o casal principal e a direção pautada em fugas e perseguições, os mecanismos de ficção científica acabam se tornando um atrativo do filme. Esses elementos coexistem com um aspecto de imagem de sobrevivência na selva, bem como através de resquícios de um velho faroeste americanizado, repleto de cavalos, armamentos e tropeções.
Na humilde opinião de quem vos escreve, os prazeres encontrados em narrativas distópicas têm muito a ver com um certo distanciamento, desde que os fios da história sejam bem amarrados. É broxante que Mundo em Caos apenas pincele a história de fundo envolvendo a raça nativa, esqueça da jornada anterior à colonização e demore horas para nos fornecer informações sobre os personagens secundários.
O longa não chega a ter duas horas de duração, mas parece focado em cobrir tanto terreno que não consegue se aprofundar em absolutamente nada, mesmo que tenha momentos razoáveis de ação e aventura. O material disponível parece ser suficiente para compor a primeira temporada inteira de um seriado, mas caminha como um trailer de filme mequetrefe. Às vezes chega a irritar.
Como a linha tênue entre o que é bom e o que é ruim pode ser ainda menos espessa entre os cinéfilos, é preciso ser justo e ressaltar que o orçamento de cem milhões de dólares destinado à produção dirigida por Doug Liman coloca o longa em uma posição de frustração no mercado. Talvez por conta disso o filme que estava programado para ser lançado pela Paris Filmes nos cinemas nacionais em 11 de março, teve a sua estreia adiada para 8 de abril e só será lançado oficialmente no dia 13 de maio.
No fim das contas, Mundo em Caos imerge o espectador em um conceito diferente de espaço cinematográfico, criando um filme que gradativamente ensina o espectador a assisti-lo, sendo esse o ponto alto da experiência. Com a evolução do roteiro, acaba sendo possível se acostumar com a forma com que os personagens interagem, particularmente como protegem os seus pensamentos que são revelados numa espécie de auréola projetada em forma de fumaça colorida.
Mesmo com vários pontos sem nó e com muita preguiça no acabamento de cada ato, eu me atrevo a dizer que se você estiver de bobeira na próxima quinta-feira (13), Mundo em Caos pode servir para distrair a cabeça e de quebra trazer alguns questionamentos existenciais sem maiores aprofundamentos.
A propósito, você gostaria de ler a mente das outras pessoas?
Eu, provavelmente, não suportaria.
Às vezes é preferível se afogar com palavras que nunca foram ditas.
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Depois de ser esmurrado por esse filme que não se mostrou disposto a edulcorar a dor para me poupar da angústia tremenda, estou aqui elucubrando sobre as metáforas da fruta. Na história da humanidade, maçã já simbolizou fertilidade, esperança, traição e declínio. Dá pra encaixar todos os atos nesta lógica.
A relação da protagonista com cada maçã faz com que o fruto vire semente. O broto só surge quando o luto é encarado e superado. O epílogo na macieira é o alento, a confirmação de que foi possível tornar a germinar, transcender a maior perda do passado.
Há mais de sessenta anos considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, é provável que Pelé possua um status simbólico insuperável, como não hesitava em declarar o meu saudoso vô.
Nascido no ano de 1940, Edson Arantes do Nascimento desenvolveu a magia em seus pés enquanto engraxava sapatos para colaborar com as despesas da sua família. Uma biografia que se inicia com o mesmo capítulo de milhares de brasileiros que sonham em gozar do glamour oriundo do mundo da bola.
Com dezesseis anos de idade, o Rei prodígio se torna jogador profissional do Santos e, em menos de um ano, já é convocado para a seleção brasileira principal. Aos dezessete, se sagra campeão mundial pela primeira vez, quatro anos depois repete a proeza atuando em apenas dois jogos, em 1966 sofre novamente com as lesões e em 1970 vive o seu apogeu, sagrando-se o único jogador na história a conquistar três Copas do Mundo, depois de ultrapassar a inacreditável marca dos mil gols.
No interessante documentário disponibilizado recentemente pela Netflix, Pelé nos dá acesso a um digníssimo acervo de imagens restauradas digitalmente e capazes de ilustrar os principais momentos da carreira da maior entidade do futebol mundial. As clássicas filmagens da final da Copa de 70, por exemplo, ganham um fôlego extra e entusiasmam os amantes da seleção canarinho.
Os diretores gringos Ben Nicholas e David Tryhorn ainda se esforçam para contextualizar a história de Pelé fora dos gramados, relacionando o sucesso dentro das quatro linhas e o panorama sociopolítico de um país imerso nas profundezas dos anos de chumbo.
As imagens de arquivo são intercaladas com entrevistas com jornalistas renomados, escritores, companheiros do Santos e da Seleção Brasileira, que entre brincadeiras e relatos, dão conta de nos inserir no cenário da época. Os comentários do próprio Pelé nos fazem flutuar pelas memórias do passado.
Pioneiro em quase tudo, o Rei tem outra faceta desmembrada pelo documentário: a de popstar. Atrelando o seu desempenho fenomenal dentro de campo à sua personalidade carismática e isentona, Pelé ganha rios de dinheiro promovendo todos os tipos de produtos possíveis e imagináveis. Encurralado pela força da sua marca, fica mais do que claro que ele sempre optou por se colocar acima das discussões políticas, camuflando as suas conveniências pessoais sob uma ideia de ídolo acessível e herói boa praça.
Essa falta de culhão rende, até os dias de hoje, um certo tipo de mancha na sua história, conforme relatado por diversos convidados do documentário. Segundo a maioria deles, Pelé abdicou do seu dever moral de se manifestar veementemente contra o golpe militar de 64 e optou por servir de propaganda ao regime como se não tivesse ciência de muita coisa.
Em contrapartida, esta crítica à passação de pano do Rei está sujeita a algumas ressalvas: será que Pelé, assim como tantos outros adversários políticos, teria sido boicotado ou até mesmo desaparecido misteriosamente caso tivesse se posicionado contra o sistema? A linha tênue entre a sobrevivência e a conveniência…
Ao mesmo tempo em que o regime militar se valia da Seleção de Pelé para ofuscar as intransigências e o massacre às liberdades individuais proposto em território nacional, o futebol encantador e a coleção de vitórias na Copa do México pareciam oxigenar um país que tentava se livrar, de uma vez por todas, do tal complexo de vira-latas. Pode ser que, dentro de campo, Pelé tenha conseguido o que jamais conseguiria fora dele.
Até porque, no final das contas, pro brasileiro médio, o futebol transcende quase tudo. O tal ópio do povo foi capaz de alçar um jovem preto e pobre ao patamar de Rei, símbolo de orgulho nacional e autoestima no cenário mundial. Isso tudo, em plena ditadura, não é pouca merda não… Pelé pode ter salvado algumas vidas de boca fechada.
Afinal, ele calado é um poeta.
Vida longa!
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Seja lá qual for a atividade ilícita, o crime organizado tende a manter uma metodologia de centralização das principais decisões, de ramificação nas cadeias de comando e divisão hierárquica capaz de montar um quadro social que dê estrutura paras as ações, muitas vezes sustentadas pela captação de agentes públicos. A corrupção é praticamente a alma do negócio.
Na nova série Globoplay intitulada Doutor Castor, dirigida por Marco Antonio Araujo, conhecemos alguns detalhes interessantes sobre a vida de um senhor estudado, aliás, meu colega de Faculdade Nacional de Direito, que entendeu perfeitamente como seguir essas fórmulas até se tornar virtualmente inalcançável através do “inofensivo” Jogo do Bicho.
Simpatize você ou não, Castor Gonçalves de Andrade e Silva foi uma das figuras mais populares e carismáticas ao longo das décadas de setenta, oitenta e noventa num Rio de Janeiro desde sempre apaixonado por futebol e samba. Presidente de honra da Mocidade Independente de Padre Miguel e praticamente dono do Bangu Atlético Clube, o tal Dr. Castor gerenciava os seus negócios ao melhor estilo cover de poderoso chefão.
A série dividida em quatro episódios, mostra bem alguns bastidores deste período atrelado a um Bangu quase vitorioso que viveu o seu apogeu impulsionado pelo dinheiro e pela influência do seu homem forte, se tornando uma potência do futebol nacional.
No samba não foi diferente. Depois de se tornar um dos principais responsáveis pela criação da Liga Independente Das Escolas de Samba, o que colaborou imensamente para a profissionalização do carnaval carioca na década de oitenta, Castor de Andrade levou a Mocidade aos principais títulos da sua história, ganhando pompa de herói.
Através de imagens de arquivos e repleta de depoimentos de pessoas que conviveram de perto com o famoso contraventor, os quatro episódios de uma hora permeiam essa atmosfera de malandragem suburbana e institucionalização do crime organizado de uma maneira capaz de despertar o interesse do espectador. É o famoso “suco de carioquice”.
Entre relatos de atletas, ex-funcionários, advogados, juízes, jornalistas e amigos pessoais, a história narrada de ascensão e queda de um dos maiores bicheiros de todos os tempos, nos exibe uma figura excêntrica e capaz de transitar por todas as camadas da sociedade com uma habilidade inigualável.
Seja confabulando com seus capangas truculentos, flertando com a ditadura militar, almoçando com importantes dirigentes do futebol internacional ou erguido pelos braços da sua comunidade, o protagonismo das suas interações sociais parece trazer um ar de legitimidade às ações tomadas por Castor de Andrade, um ser praticamente intocável (ainda que discorde a Dra. Denise Frossard).
Ao contrário de Pablo Escobar ou Al Capone, a série induz que o bicheiro não era bem visto apenas na sua zona de atuação, no subúrbio do Rio de Janeiro, chegando a se relacionar muito bem com as famílias de presidentes da república e membros da elite da sociedade, tendo uma influência política clara e requisitada.
No fim das contas, a Globoplay reúne um material de qualidade que nos revela, entre o pão, o circo e o sangue, que Castor de Andrade foi um personagem controverso, carismático e multifacetado, se tornando um dos maiores símbolos para o seu clube, para a sua escola de samba e para o seu bairro.
Uma pena que a lógica operacional responsável por financiar isso tudo continue explodindo a cabeça de uns e outros até os dias de hoje.
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Acho que pode ser algo geracional essa preocupação exacerbada com a idealização de sonhos, quase sempre responsáveis por fadar as pessoas a frustrações. Deixar de perceber que a água já é o oceano é mais do que triste, é cruel. Soul surge para lembrar que missão não é propósito. De uma maneira quase bíblica, cada metáfora esmiúça os nossos anseios e tenta nos trazer de volta para a vida após um ano de pandemia. A Pixar tem uma parcela de genialidade muito importante na história recente do cinema.
A Netflix acaba de incluir em seu catálogo o interessante A Voz Suprema do Blues, um filme que se prende a uma linguagem de teatro, mas não tem o seu ritmo comprometido, muito por conta da potência dos monólogos. Essa é uma daquelas obras com roteiro simples, mas repleta de personagens tragicamente profundos. Se você é apreciador de textos e interpretações, temos aqui um prato cheio.
O enredo busca reverenciar a cantora Ma Rainey (Viola Davis), conhecida como “Mãe do Blues”, cujo nome e música batizam o título original em inglês. No final da década de 1920, a estrela está prestes a produzir um novo disco em um estúdio em Chicago, em conjunto com a sua banda formada por três membros principais, Toledo (Glynn Turman), Cutler (Colman Domingo) e Slow Drag (Michael Potts), músicos veteranos habilidosos, instintivamente programados para tocar o que Rainey mandar.
Assim que o ambicioso trompetista Levee (Chadwick Boseman) entra em cena, logo percebemos que ele e a protagonista serão os fios ativos da trama e que o restante da banda se encaixará na história de uma maneira mais pragmática, porém eficaz. Levee claramente tem pretensões maiores do que as de um simples músico de apoio, mas a mãe do blues não permite qualquer tipo de interferência externa nas suas decisões tomadas a partir de uma posição hierárquica conquistada na marra, graças ao seu talento.
Então, para olhos mais preguiçosos, A Voz Suprema do Blues é um filme sobre músicos de blues que se juntam para gravar algumas canções, num dia quente de verão em Chicago, no ano de 1927. No meio disso, um trompetista abusado e uma cantora arrogante resolvem travar uma guerra fria inútil, tendo em vista que a corda só poderia arrebentar para o lado mais fraco e mais óbvio.
Na prática, há temas mais complexos de injustiça social que ainda ecoam na sociedade até os dias de hoje, mesmo depois de quase cem anos. Esse filme simboliza a experiência dos negros americanos no início do século XX e não há melhor lugar para começar a contar esta história do que pelo próprio blues, narrando dores, fugas, desejos e as formas de expressão que esse povo encontrou através da arte.
Não é coincidência que o blues tenha surgido no final do século XIX, quando as pessoas negras escravizadas foram, supostamente, libertadas da escravidão. Embora as restrições físicas em seus corpos possam ter sido eliminadas, as violações de garantias produzidas por uma sociedade imersa no racismo estavam só começando. O blues sempre foi refúgio.
É fazendo esse gancho entre música e resistência histórica que surgem os monólogos ilustrando as experiências de Levee, de Ma, de Toledo… Quando Levee descreve o testemunho da terrível violação da sua mãe por uma gangue de homens brancos, o discurso ganha uma potência absurda ao confrontar a religiosidade de Cutler, como se não houvesse justiça divina, reduzindo a distância entre ator e espectador, já que esta atuação se tratava do “canto do cisne” de Chadwick Boseman, que já batalhava contra um câncer.
Se o desempenho turbulento e deslumbrante de Viola Davis passa pela raiva e resignação da sua personagem, coberta por uma maquiagem berrante, por dentes de ouro reluzentes e uma considerável camada de suor permanente, Chadwick Boseman praticamente urra de dor e ansiedade, comprometendo-se com as cenas de uma maneira tão feroz que as emoções soam reais. O caminho para a autodestruição do personagem é seguido com o vigor de quem sabe que vai morrer.
E, por isso, talvez por isso, o momento mais impactante do filme seja justamente causado pela obsessão do seu personagem por uma porta, como um pesadelo capaz de simbolizar o futuro de Levee, enclausurado debaixo do céu, sucumbindo à ira imposta pelas suas próprias cicatrizes. A Voz Suprema do Blues é uma obra crítica e estimulante o suficiente para marcar com muito bom gosto a volta do Pantera Negra para Wakanda.
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Embora muita gente não deva se lembrar, há mais ou menos um ano, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvejada com coquetéis molotov, depois que supostos grupos cristãos se indignaram com o especial de Natal então intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, muito por conta da presença de um personagem homossexual na sátira. Mais de duas milhões de assinaturas foram recolhidas com o intuito de pressionar a Netflix pela retirada do filme da plataforma com a consequente judicialização da tão nefasta heresia.
Como graças a Deus (Deus?) ninguém morreu, ninguém foi preso, ninguém foi amordaçado e não é só de Netflix que se vive o homem, cá estamos, ao fim do pandêmico ano de 2020, ainda livres para dar play no Youtube e conferir a mais nova paródia bíblica de um grupo mais do que consolidado e bem sucedido quando o assunto é apertar calos, esfregar feridas e estampar na nossa cara o carrossel de escárnios no qual esse país veio a se transformar ao longo dos últimos tempos, sem dar palco pra maluco.
O formato é bem simples e de fato lembra bastante o documentário brasileiro que concorreu ao último Oscar, “Democracia em Vertigem“, dirigido por Petra Costa (que é convidada especial, inclusive). Satirizando a trajetória de Jesus Cristo ao longo do ano 33, no período compreendido entre a sua crucificação e a ressurreição, o formato documental profano recolhe depoimentos de diversos personagens bíblicos que vão tentando montar um quebra-cabeça sobre o real paradeiro do Messias que viraria mito.
Como a própria divulgação do filme fez questão de frisar, a vida e obra de Jesus Cristo passa por uma infinidade de boatos, conspirações, injúrias, provocações e fanatismo. Seria ultrajante pensar que o maior de todos líderes, munido de um carisma inigualável, altruísta por vocação, bom samaritano e destacado pelo apreço com as causas ligadas aos direitos humanos, foi o grande responsável pela polarização da Galileia? Teria Jesus sofrido um golpe?
Uma overdose de referências do nosso cenário político caótico é embutida no roteiro e conduzida pela narração de Clarice Falcão, que nos guia pela tentativa frustrada de compreender os pormenores que culminaram na crucificação de Jesus (Fábio Porchat) através dos relatos de muitos daqueles que passaram pelo seu caminho em vida, desde Maria (Evelyn Castro), Judas Iscariotes (Daniel Furlan) e Maria Madalena (Thati Lopes) a Barrabás (Renato Góes) e José de Arimatéia (Rafael Portugal).
A obra de pouco mais de cinquenta minutos conta ainda com um elenco repleto de participações especiais que vão das grifes de Emicida e Teresa Cristina, passam pela pompa global de Marcos Palmeira, Helio de La Peña e Raphael Logam, fechando com o carisma dos maiores representantes do transporte alternativo do Rio de Janeiro. Só a nata da esquerda festiva.
A produção é muito bem feita e conta com toques refinados de fotografia e figurino que foram perfeitamente alinhados, como já vem sendo, há muito tempo, nos vídeos épicos do Porta. Reparei também que edição e direção se preocuparam em não engessar o ritmo da narrativa que foi quase toda construída com apenas um ator em cena. Foram bem sucedidos e não contaminaram ninguém com a gripezinha.
De tudo o que foi apresentado, o que mais impressiona, de longe, é a capacidade genial de linkar as referências diretas dos trágicos acontecimentos recentes da história do Brasil com as críticas àqueles que se usurpam de preceitos bíblicos em nome de uma fé que segrega, afasta, oprime e mata. Com a engenhosidade de uma mãe que coloca a papinha na boca da criança, o roteiro alimenta o espectador com a certeza de que se Jesus voltasse, provavelmente ele não chegaria nem perto dos trinta e três anos. Pelo contrário. Teria a sua morte inflada justamente por aqueles que se dizem “de bem”.
Até mesmo a desastrosa sequência musical dos minutos finais, que teria ficado cem vezes melhor na mão do Adnet em algum daqueles programas da MTV, consegue dar umas chacoalhadas muito bem dadas ao metaforizar que Jesus teria tentado voltar como mulher, negro e travesti, mas depois de ser morto em todas as ocasiões, cansou. Não volta mais. Já deu. A gente que se vire.
E pra quem gosta de caça-palavras, pescar referências pode ser um ótimo exercício. São obrigatórias: impeachment da Dilma, vice decorativo, guardiões do Crivella, carta do Temer, laranjal do Queiroz, tatuagem do Onyx, rachadinha, gabinete do ódio, power point da lava-jato, provas vs convicção, condução coercitiva, reunião ministerial e gado arrependido. Parei de contar.
Não assista!
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A fórmula de Borat que já não me agradava muito em 2006, o que é algo absolutamente pessoal, funcionava por conta da invisibilidade do personagem e do caráter velado da idiotice do americano médio. Em 2020, idiotice, preconceito e ignorância são sinônimos de marketing pessoal. O Borat já não consegue mais servir como lente de aumento. O absurdo no mundo real é maior do que na ficção e por isso o filme não choca tanto. É inacreditável a que ponto chegamos.
Se você ainda não esbarrou com a primeira obra norueguesa original Netflix, eu vou fazer o favor de não te segurar até o final desta crítica para dizer o que realmente interessa: Cadáver, do diretor novinho Jarand Herdal, tinha tudo para ser um filmaço do caralho!
Tinha.
Após um terrível desastre nuclear com proporções catastróficas, a miséria e o desespero nos levam para uma espécie de jornada pós-apocalíptica onde Leonora (Gitte Witt) e Jacob (Thomas Gullestad) precisarão fazer das tripas coração se quiserem sobreviver ao lado de sua filha Alice (Tuva Olivia Remman), em um canto qualquer do norte europeu.
É impossível não se sentir seduzido pela trama em suas nuances iniciais. Nas paredes do apartamento frio e escuro onde a família se abrigava, havia um pôster de uma apresentação da inominável “Macbeth”, a tragédia amaldiçoada de Shakespeare, num teatro norueguês na qual a ex-atriz Leonora havia desempenhado o papel de protagonista.
Quando uma gota de chuva escorreu como uma lágrima pelo rosto de Lady Macbeth, Leonora precisou tirar forças de onde não tinha para tentar servir de porto seguro para a pequena Alice, que embora ainda não tivesse caído na toca e tampouco conhecesse um país das maravilhas, já carregava o seu coelho (de pelúcia) em meio ao caos.
Diante da absoluta falta de perspectiva da população que restara, Mathias (Thorbjørn Harr), dono de um luxuoso hotel local, surge da atmosfera turva para convidar as pessoas para uma única apresentação de teatro com direito a banquete, numa espécie de refúgio pão e circo, onde qualquer espectador acordado já presumiria se tratar de uma armadilha, afinal, por que tem um Windsor funcionando no fim do mundo?
Ok, superando o espírito racional, a contradição visual entre a cidade arrasada e o hotel reluzente, adiciona de maneira eficiente o ar de mistério e um estilo de fotografia excelente ao filme, que tende a nos passar credibilidade e gera a expectativa necessária.
No momento em que o hotel é alçado a um patamar de protagonismo e caminhamos pelos seus gigantescos tapetes vermelhos, em corredores pouco iluminados e repletos de pinturas macabras, as câmeras, quase sempre posicionadas na parte de cima do quadro, mantém o constante estado de alerta e a sensação de ansiedade.
Essa atmosfera ainda é potencializada quando os convidados são informados de que vão participar da apresentação e que ela se desenvolverá por todo o edifício, mas que, para isso, precisarão trajar máscaras douradas ao longo do espetáculo de ação, sendo esta a única ferramenta capaz de diferenciar atores de espectadores.
Quando tudo parecia perfeitamente encaixado e eu já estava conformado que seria transportado para um estágio profundo de confusão mental entre realidade e ficção, o efeito do Viagra acabou. Dá-se início a uma sucessão de escolhas imbecis, seguidas de ramificações toscas, até que as resoluções da história são servidas que nem papinha, como se eu fosse um bebê desprovido de capacidade intelectual.
A partir daí o ki-suco azedou de vez. O tempo de espera pela resolução de cada evento óbvio parece uma eternidade, mesmo se tratando de uma obra de oitenta minutos. Não há mais nenhum personagem interessante, nenhum plot twist, nenhum mistério relevante a ser desvendado. Tudo é exatamente do jeito que você acha que vai ser.
O cara que não pode tirar a máscara vai tirar e vai se fuder (não tinha cloroquina), o quadro que pisca o olho vai ter uma passagem secreta, os capangas vão ficar brincando de gato e rato, o gore vai passar do tolerável em alguma morte ridícula e a filha desaparecida vai aparecer sem maiores explicações.
O potencial do argumento é arremessado na lata do lixo e aí fica difícil querer gerar reflexões sobre fragilidade da espécie, estado de necessidade, ética e moral. O horror que deveria emergir da cruel desconexão entre tragédia e compaixão, empaca na falta de capacidade do roteiro. Até mesmo a premissa canibal que deveria servir de alça para essas discussões, morre presa num gancho de açougue, sem aprofundar sobre porra nenhuma.
Frustrante.
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Com o rebuliço do Dilema das Redes, esse documentário também serve de lupa para os anos 2010s. Mídia sociais controlando e vendendo falácias, estelionatários enriquecendo de forma cada vez mais desleal, influenciadores ocos e quase nenhuma responsabilização. E sabemos que quem de fato se fodeu não foram eles.
Talvez pelo fato de eu ter passado os últimos anos da minha vida entrando e saindo de delegacias entranhadas no ócio, sentindo na prática a lógica falaciosa do Direito Criminal, eu acabei nutrindo uma preguiça absurda pelo tal gênero “suspense policial” que o brasileiro tanto venera no audiovisual.
Para a minha sorte, a nova série da Netflix Brasil, Bom dia, Verônica, baseada na obra da criminóloga Ilana Casoy e do romancista Raphael Montes, vai muito além de indícios de materialidade, organogramas e luminol, alçando as personagens femininas, imersas numa lógica de opressão, a um protagonismo inédito no gênero.
A premissa do roteiro parte da atuação de sua protagonista Verônica (Tainá Müller) como escrivã da Polícia Civil de São Paulo que, ao presenciar um suicídio na angustiante cena de abertura, se vê obstinada a fazer justiça dando voz a mulheres vítimas de abusos físicos e psicológicos dentro de seus relacionamentos abusivos.
Essa primeira temporada se divide em oito episódios de quarenta e poucos minutos focados em percorrer os inúmeros métodos de violência contra a mulher. Como os abusos vão acontecendo de maneira assíncrona e em diferentes potencialidades, a direção consegue enfiar a caixa do pôster na nossa cabeça e só nos dá um buraquinho para que tentemos sobreviver com um pouco menos culpa.
A vida pretérita, o lamaçal que reveste as nossas instituições e os traumas familiares de Verônica constroem uma personalidade potente e dão o tom natural de justiceira que a protagonista precisa. As diferentes fases da jornada de uma personagem que sucumbe às suas próprias obsessões e impotências, ganham vida nos olhos de Tainá Müller a cada passada de lápis, a cada guerra.
Quando o principal arco paralelo vem à tona e o roteiro invade a masmorra de Janete (Camila Morgado) e Brandão (Eduardo Moscovis), a série muda de patamar. Du Moscovis encarna um Coronel da Polícia Militar aterrorizantemente desprezível sem precisar elevar o tom da sua voz. Camila Morgado, que é uma das minha atrizes brasileiras favoritas desde “Olga”, tem mais um desempenho sensacional. Eu sentia um soco a cada sorriso forçado esboçado.
Eu, como homem, no curso de um constante processo de desintoxicação das minhas amarras machistas, fiquei completamente incomodado nos momentos de carta branca que precediam os surtos de Brandão. A série é espetacular ao escancarar esses diferentes loops dentro de um relacionamento no qual a submissão ultrapassa a própria existência. Janete simplesmente deixou de existir graças ao marido. A volatilidade do sentimento de culpa só destroçava mais ainda.
Ainda que Verônica e Janete sejam inseridas como fios separados no roteiro, o laço acaba sendo natural e convincente, o que só facilita a vida dos adeptos a maratona de episódios. A tensão visual é presente do início ao fim, mesmo com uma evolução acelerada e uma série de eventos chocantes, o que faz por agregar valor a obra.
Embora a produção tenha se esforçado horrores para não caricaturizar uma temática tão sensível no 5º país da lista mundial de feminicídios, alguns elementos do Terror podem ser digeridos mais lentamente por quem tem repulsa pelo gênero. Contudo, é inegável que o choque, o desespero e a ansiedade encaixaram muito bem nas metáforas transportadas.
Não estou exatamente convencido sobre a relevância das relações espirituais de Brandão com a proposta de reflexão trazida pela série. Pintar o macho agressor de maluco, psicopata, serial killer e fã de magia negra pode distanciar um espectador mais desatento do caráter expositivo da série. Há que se entender como uma obra de advertência e não como ficção. Parece óbvio, mas é sempre bom frisar.
De qualquer forma, Bom dia, Verônica é uma série que satisfaz, tanto como suspense policial, terror psicológico ou pedido de socorro. A trilha sonora é excelente, a frequência cardíaca é alta, o trio principal é do caralho e as reflexões são dignas de horas e horas de psicanálise. Se algum gatilho tiver te pegado desprevenida, não hesite em procurar ajuda.
Assistam, passarinhos. E saiam da caixa.
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Embora outros clássicos espanhóis contemporâneos do gênero como “O Poço”, “Um Contratempo” e “O Corpo” possam ser colocados, merecidamente, numa prateleira acima, o cardápio da Netflix ganha mais uma boa opção para os adeptos do coração acelerado sem a frescurada do cinema americano.
A premissa já parte de um lugar interessante. O protagonista Ángel (Mario Casas), um profissional de primeiros socorros que não faz a menor questão de ser agradável, vive a bordo de uma ambulância resgatando acidentados entre escombros e ferragens, até se deparar com uma abrupta inversão de papeis.
Logo na primeira parte do filme, é flagrante a intenção do diretor de moldar a personalidade do seu protagonista no limite da linha do socialmente aceitável. Entre um furto e outro a cada resgate, o absoluto desprezo pelas pessoas de modo geral e o comportamento possessivo com a sua namorada, Vane (Déborah François), os traços mais obscuros de Ángel vão sendo revelados a cada olhar sombrio de uma atuação acima da média.
No momento em que, ironicamente, Ángel sofre um grave acidente no exercício da sua profissão, sendo fadado a viver sob as rodas de uma cadeira, toda essa amargura acaba se misturando com as inseguranças do lento processo de adaptação e um personagem repleto de demônios criados por si mesmo passa a sucumbir a sua própria personalidade doentia.
Seguindo um ritmo que, ao meu ver, não é lento e se reveste de tensão durante praticamente todo o filme, nós acabamos sendo imersos nas obsessões cruas da masculinidade tóxica, até sermos afogados pela ótima fotografia que cria no apartamento do casal uma incômoda experiência de aprisionamento.
O pecado capital do roteiro é fazer do ciúmes delirante do nosso protagonista, Bentinho, e da ruptura da relação doméstica abusiva de Vane, Capitu. Simplesmente não deveria haver qualquer espaço para reflexão que suporte a tese de que uma coisa leva a outra.
De pouco importa como eram as interações sociais de Vane. O filme ilustra o florescer da psicopatia de um sujeito obcecado pelo sentimento de posse que exercia sobre a sua companheira, desde as fodas agressivas e os beijos babados fora de contexto, à perseguição sociopata e o cárcere privado.
Colocar Ricardo (Guillermo Pfening), pasme, o motorista da ambulância no fatídico dia do acidente de Ángel, como novo par de Vane, no momento em que a moça finalmente conseguiu se desfazer da relação perniciosa, traz aquele ar de “traiu ou não traiu?” que só faz por justificar o injustificável, exatamente como acontece na vida real. E na vida real morre mulher todo minuto por conta disso.
Como eu acabei ficando bastante estressado com o retorno esdrúxulo de Ricardo à história, eu precisava de um elemento que renovasse as minhas expectativas. E ele veio. Em forma de trilha sonora.
O jogo musical entre “L’Hymne à l’amour” de Édith Piaf e “Un sip of champagne” de Los Brincos, deram um tom lúdico sensacional, e não menos perturbador, às últimas curvas torturantes antes da virada final que de tão clichê, saciou a minha sede de vingança.
Sigo a favor da romantização da psicopatia no cinema. Com bom senso.
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Antes de questionarmos a qualidade de mais um longa de ação exageradamente preocupado em forçar situações de confronto ao invés de estruturar um roteiro capaz de nos proporcionar a tensão de maneira natural, Santana, primeiro filme angolano a ser disponibilizado na plataforma da Netflix, traz um caráter pioneiro que agrega valor à obra.
Dirigido por Maradona Dias dos Santos & Chris Roland, a obra já começa revestida de uma representatividade necessária que pode abrir espaço para que outras narrativas, além do eixo ocidental, sejam mais comumente consumidas por um espectador desinteressado em maiores problematizações. No dia em que dar play em um filme africano, por si só, for algo comum e não significar muita coisa além da busca pelo entretenimento, poderemos mudar a altura do sarrafo.
Beleza? Show. Pois bem, eu que não sou um consumidor assíduo do gênero, percebi que a qualidade das cenas de ação é um tanto quanto duvidosa e, até certo ponto, mal aproveitada, mas o que mais me incomodou foi a construção rasa dos personagens, que parecem distantes uns dos outros até que são entrelaçados pelo objetivo maior do filme que é a porradaria.
Com o nhenhenhem do "baseado em fatos reais", Santana conta um pedaço da história de dois irmãos, Dias (Paulo Americano) e Matias (Raul Rosario), um agente da divisão de narcóticos e um general respeitado, que acabam descobrindo a identidade do responsável pelo assassinato de seus pais, há mais de 35 anos, e partem em busca de vingança, cada um da sua maneira.
A partir desta premissa, surge uma história que acaba deixando o seu potencial para escanteio por não construir bem a personalidade dos principais personagens, se mostrando muito mais preocupada em se utilizar dos elementos clichês do cinema padrãozão, abusando de uma montagem pouco criativa e um tanto quanto desinteressante, em cenas longas e pouco amarradas.
Eu também me atrevo a dizer que é impossível assistir ao filme sem se incomodar com a mistura de idiomas totalmente despropositada que se vê em cena, o que já se tornou uma tradição da Netflix. Os diálogos que são passados na Angola ou na África do Sul, são violentados por trechos em inglês a cada meia dúzia de frases no português local. Parece aquele povo chato de colégio bilíngue que resolve "raciocinar" americanizando ao invés de conversar fingindo ser um ser humano normal. Um porre!
Eu não sei se o roteiro conseguiu exigir o nível de desatenção necessário para que as tentativas de reviravoltas pudessem fazer efeito na cabeça de alguém, mas a falta de vigor dos atores e a sempre exaustiva sexualização das personagens femininas, dentre elas, a estrela angolana Neide Van-Dúnem, me deram a receita do bolo muito antes da consumação desses plot twists frustrados a medida em que os longos 106 minutos de filme iam chegando ao final.
Entre a violência gráfica clichê, as batidas de carro tragicômicas, os chefões falando grosso no escuro, os policiais super-homens, os bumbuns de fora e os defeitos especiais, eu confesso que não vejo Santana numa prateleira muito inferior a outros filmes do gênero. Se você dá play em qualquer coisa que o algoritmo do streaming te indica, vale a pena prestigiar esse filme angolano, que tenta brincar de Hollywood, mesmo com uma cotação muito diferente dos Velozes e Furiosos da vida.
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Que elementos uma obra precisaria ter ou deixar de ter para ser considerada a pior película do mundo? Um roteiro sem qualquer caminho lógico evolutivo? Uma montagem caótica? Diálogos dramalhões à lá “A Usurpadora”? Barulinho de porta rangendo e gota d’água pingando na tigela em momentos completamente desapropriados? Cenas de luta corporal tão patéticas quanto as inexplicáveis fodas mal dadas? Saturação demasiadamente alaranjada? Hologramas terríveis?
Bom, eu vou encarar essa crítica como um grande gesto de generosidade. Mastiguem cada palavra como se fosse uma profunda demonstração de altruísmo, pois os pouco mais de oitenta minutos de Fogo Sombrio, novo thriller mexicano da Netflix que mais poderia ser discutido como mecanismo punitivo ao invés de entretenimento, eu não desejo nem para os meus piores inimigos.
Pelo que me foi possibilitado inferir da premissa do filme dirigido pelo mexicano Bernardo Arellano, o protagonista Franco (Tenoch Huerta), uma espécie de criminoso renegado, está a procura de uma parente sequestrada até que resolve se hospedar, sem maiores explicações, em um hotel macabro que serve de abrigo a um elenco digno da temporada mais espetacular do reality show “A Fazenda”.
Tem bizarrice para todos os gostos. Além do canastrão bigodudo, temos a femme fatale Rubi (Eréndira Ibarra), anões, zarolhas, prostitutas, cafetinas, mestre dos magos, médium albina, vampiros, demônios e mais o que você quiser. Sempre munidos do figurino mais antiquado possível e de uma maquiagem rivalizando breguice com o penteado.
Depois deste encontro assíncrono, pasmem: essa trupe acaba sendo interligada por uma grande lesma em formato de pênis com dentes afiados. Sim, é esse o elemento ritualístico genial que a direção encontrou para hospedar nos protagonistas a ideia de possessão em cadeia e representação do mal. Não existem palavras capazes de descrever tamanha bizarrice.
Como se não bastasse a nojeira, nada tem lógica. A montagem, a direção e o roteiro parecem ter sido feitos pelo mesmo adolescente satanista durante alguma dessas apresentações góticas repletas de mau gosto.
Previsivelmente tudo acontece de noite e o tratamento visual dado pela iluminação horrorosa destrói os resquícios de cenografia bem estruturados que poderiam ser valorizados pelo espectador cansado da fotografia escura.
Com o trash de meio século atrás e a tosquice das novelas mexicanas dos anos 90 competindo firme pelo prêmio de segundo pior elemento do filme, surgem as cenas de ação, os símbolos esotéricos e o misticismo sem pé nem cabeça pra acabar de vez com o bom humor de qualquer um que deu play nesta aberração da Netflix.
Eu confesso que muito antes do desfecho já tinha me perdido há muito tempo e mal conseguia me concentrar em quaisquer dos personagens, mas o parasita sobrenatural em formato de rola-molusco, passando de garganta em garganta, mantinha uma sensação letárgica de “aonde é que esta merda vai dar” que me impediu de desistir antes da última cena.
Pois eu deveria ter desistido.
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Assim como em tantos outros filmes de investigação criminal que eu definitivamente tenho pouquíssima paciência para assistir, Na Solidão da Noite parte daquela premissa clássica do “Quem matou Lineu?”: um corpo e uma porrada de suspeitos. Thakur Raghubeer Singh, um poderoso empresário indiano, foi baleado e coronhado durante a sua noite de núpcias e há tantos potenciais assassinos quanto membros da família, quase todos eles com algum motivo pra dar fim ao velho. É quando entra em cena a figura do investigador Jatil Yadav, o protagonista do filme. O policial eternamente rejeitado por noivas em potencial, é a figura do agente da lei honesto e aficionado pela busca de todos os elementos do quebra-cabeça.
Com diversas camadas, a história é cheia de reviravoltas que buscam fazer com que o espectador duvide de todas as partes em algum contexto específico. O roteiro caminha em seu próprio ritmo para desembaraçar a teia, afinal de contas, são quase duas horas e meia de filme, e só depois de um tempo considerável é possível perceber que encontrar o criminoso não é a única coisa que realmente interessa nessa história.
O diretor Honey Trehan se utiliza muito bem dos elementos de tensão para emoldurar um duro retrato do patriarcado. As figuras masculinas do filme oscilam entre autoridades intocáveis a estupradores, traficantes de pessoas e assassinos. Já as mulheres, independentemente do seu status de esposa rica, vassala da família ou prostituta, são alegorias, meios para a reprodução desse poder, sempre abusadas e intimidadas de acordo com a conveniência.
O roteiro vai se tornando mais pesado conforme os corpos vão se amontoando e as demonstrações de ganância, corrupção, politicagem e imoralidade vão sendo nutridas e trazendo consequências práticas dentro daquelas relações.
Somos constantemente apresentados à facetas obscuras de personagens que sempre parecem estar escondendo alguma coisa. O casarão dos Thakur, com longos corredores, panos esticados, escadas nos fundos e decorações luxuosas, é uma grande personagem por si só. É lá que as mulheres parecem enclausuradas numa espécie de masmorra travestida.
O relacionamento entre o investigador Jatil e sua mãe, interpretada por Ila Arun, fornece os poucos tons de humor do filme. Tudo o que ela quer é que ele se case e o policial está determinado a encontrar uma moça decente, mas, evidentemente, durante o curso das investigações, esse conceito de “decência” vai sofrendo algumas flexibilizações um tanto quanto previsíveis, permitindo que uma atmosfera de romance fosse desabrochada.
Na Solidão da Noite é uma tentativa sincera de enigma de detetive, mas se preocupa muito mais em escancarar pistas do que nos brindar com um suspense fora da caixinha. Tudo é extremamente mastigado, não havendo margem para um pingo de mistério ou ambiguidade quando as letrinhas sobem no final. A maneira com que entrelaça política e relações de abuso com o enredo central da investigação é apreciável, mas o filme peca pela vasta lista de clichês, pela falta de relevância de vários personagens e por uma edição tão expositiva que me chegou a dar saudades dos episódios do “Linha Direta”.
Eu sei, parece que foi em outro mundo, mas a nossa distância para a angústia contida nas palavras que Anne Frank narrou em seu diário não chega a ter nem oito décadas. Eu devia ter uns treze anos quando tive o meu primeiro contato com a obra da menina alemã de família judaica que se manteve escondida com os pais, a irmã e outros judeus em um anexo secreto no prédio onde o pai trabalhava, por mais de dois anos. Sua obra é um relato jovial que mostra a passagem da infância para uma adolescência imersa em condições extremas de horror, no período mais perverso da história recente da humanidade, quase sempre sob a perspectiva turva do que era possível deduzir através do que se ouvia nos rádios.
Anne Frank teve a ideia de escrever um livro depois de surgir uma notícia que incentivava as pessoas a documentarem seus eventos pessoais ligados à guerra, uma vez que, futuramente, este material teria algum significado histórico. Ela pincela em seus escritos tudo o que se passava no cotidiano dos fugitivos, não se abstendo de divulgar seus conflitos familiares, bem como revelar aspectos mais íntimos do despertar da sua sexualidade em meio ao medo incessante de ser encontrada pelos nazistas.
Setenta e cinco anos depois daquela menininha questionar a sua própria capacidade de “escrever algo grande”, cá estamos em #AnneFrank – Histórias Paralelas, documentário dirigido por Sabina Fedeli e Anna Migotto que busca entrelaçar as páginas históricas daquele diário com a vida de cinco sobreviventes: Arianna Szörenyi, Sarah Lichtsztejn-Montard, Helga Weiss e as irmãs Andra e Tatiana Bucci.
A direção da obra é bastante simples. De um lado, Hellen Mirren (Vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Rainha” em 2006) é a responsável por narrar um pouco da vida de Anne Frank através das páginas do seu diário, que é um dos principais textos responsáveis por tornar a tragédia do nazismo conhecida por milhões de leitores ao redor do mundo. Do outro, cinco histórias de mulheres em idades ou circunstâncias parecidas com as de Anne, ilustrando um pouco das terríveis experiências que foram obrigadas a viver. A maneira com que esses paralelos são traçados é crua e dolorosa, mas foi possível sentir a dor sob uma perspectiva luminosa, sem jamais distanciar as feridas latentes do contexto da tragédia.
A obra ainda conta com outro elemento interessante. Como a fotografia percorre diferentes paisagens por onde Anne Frank passou ou que foram importantes ao longo da sua trajetória, resta a @KaterinaKat (Martina Gatti) a responsabilidade de guiar os espectadores ao longo desta viagem. Assim como Frank, @KaterinaKat também tem o seu diário. Aquele chato, que apita, conta like, aguça a ansiedade e acaba com a saúde mental.
Como a própria hashtag do título tenta induzir, a ideia é que fotos carregadas no Instagram, um toque visual e moderno dado pela personagem, sejam capazes de atrair jovens que ainda desconhecem a história de Anne Frank. Embora soe tosco e eu ache brega, é possível que tenha sido útil.
A fotografia que passa por Paris, Amsterdã, Terezín e Bergen-Belsen é muito bem feita. Juntamente com o material de arquivo, é possível combinar um retrato pessoal e rigoroso do que essas experiências significavam à nível bárbaro.
Contudo, o bem mais precioso deste trabalho é o testemunho humano. Enquanto Mirren e Gatti trazem momentos emocionantes para a tela, com destaque para a narradora que se desdobra para controlar todas as emoções que emanam do livro através da sua dicção e ritmo narrativo excelentes, os mais comoventes certamente vêm das cinco sobreviventes que são entrevistadas ao longo de uma hora e meia. As vozes daquelas cinco mulheres imensamente fortes e corajosas são acompanhadas por relatos de rabinos, historiadores, psicólogos, músicos, jornalistas, fotógrafos e responsáveis pela casa de Anne Frank. São diferentes camadas que se unem para tentar nos manter em constante estado de alerta, traçando um elo entre a crueldade da Segunda Guerra Mundial e as relações de ódio, abuso de poder, discriminação, racismo e antissemitismo que insistimos em contemporizar em pleno ano de 2020.
Em tempos de pandemia e flerte com o fascismo, #AnneFrank – Vidas Paralelas merece ser visto e é bom que doa ainda mais.
Dirigido pelo francês Olivier Assayas, cujo entusiasmo cinematográfico costuma permear a interseção de grandes questões políticas e peculiaridades de cunho pessoal, buscando intensificar emocionalmente os seus personagens, Wasp Network: Rede de Espiões nos apresenta uma narrativa fundamentada em um pouco de muita coisa e em muito de quase nada.
O excelente elenco que deveria exalar borogodó latino com a cubana Ana de Armas, o brasileiro Wagner Moura, o mexicano Gael García Bernal, o venezuelano Edgar Ramírez e a cereja do bolo, a espanhola Penélope Cruz, se afasta da direção à medida em que a salada de situações inorgânicas vai sendo temperada.
O filme nos transporta para Havana, em meados da década de 90, quando René González (Edgar Ramírez), um piloto de avião cubano, furta uma aeronave de pequeno porte e foge de Cuba, deixando sua esposa Olga Salanueva (Pénélope Cruz) e sua filha sem maiores explicações iniciais.
Ao dar início a uma nova trajetória em Miami, logo outros desertores cubanos como Juan Pablo Roque (Wagner Moura), chegam ao território norte-americano sob a premissa do exílio político e dão início ao auxílio no resgate de compatriotas que fogem do país em busca de liberdade.
Embora o título do filme já sirva como spoiler, somente depois de uns bons oitenta minutos ele revela vagamente como tudo fazia parte do plano da Rede Vespa, criada pelo governo de Fidel Castro, para monitorar a ação de organizações violentas responsáveis por ataques terroristas em pontos turísticos da ilha.
A ideia é abordar essa teia que foi tecida durante o período pós-Guerra Fria, quando espionagem e contra-espionagem eram descaradamente os principais motores desse tipo de monitoramento internacional.
O que parece ser pano pra manga de uma série inteirinha, acaba por se reduzir a uma obra desorganizada, obrigando o espectador a permanecer exaustivamente atento a detalhes que sequer existem, com medo de se perder no enredo.
Uma infinidade de contextos paralelos e pouco aprofundados são ligados pela péssima montagem que só serve para irritar o espectador. Embora haja algumas premissas interessantes em parte dessa relação entre Cuba e Estados Unidos, o diretor peca ao descontrolar a evolução do filme e permanece em cima de um muro que nos confunde com relação ao que foi registrado pelos livros de História.
O mais irônico é que isso tudo parece cansativo pelas duas horas, ao mesmo tempo em que soa curto pelo emaranhado de propostas. Apesar do elenco de peso, não houve espaço para o desenvolvimento das personagens, com menção honrosa à Penélope Cruz e Ana de Armas, ambas se destacando nas migalhas que o roteiro lhes proporcionam, em um contexto tosco de mulheres coitadinhas abandonadas pelos conjes. Não há português que traduza tamanho potencial jogado na lata do lixo.
É preciso pontuar, ainda, que a obra passa por diversos gêneros distintos sem causar muita empolgação em qualquer um deles. Não há quase nada de tensão, de ação, de drama, de suspense, mas há um pouco de tudo. Pau mole do início ao fim.
O fator atraente de Wasp Network: Rede de Espiões é a inegável qualidade visual ao recriar algumas paisagens paradisíacas usufruídas pelo turista em Havana, mas sem desfocar a posição de privilégios usurpados dos cubanos em seu dia a dia. A realidade pomposa de Miami também é visualmente sedutora.
No mais, aquilo tudo que não pode faltar: homens que colocam uma ideia turva de pátria acima da própria família, defesa do socialismo cubano regada a muita Piña Colada em Miami, ausência de limites na profusão do imperialismo americano, algumas toneladas de cocaína pra fazer caixa, slogan de liberdade através do medo e cena de Wagner Moura e Ana de Armas pelados.
Eu shippo esse casal.
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Me desculpe interromper o silêncio da sua viagem, mas precisamos conversar sobre um dos filmes mais constrangedores da história recente desta Terra plana. The Last Days of American Crime, que de tão ruim sequer foi traduzido para o português, é um novo longa da Netflix que parte de uma premissa distópica de ficção científica, com bastante cara de Black Mirror, e se afoga na tentativa frustrada de repetir a fórmula de sucesso desses filmes que passam na Tela Quente.
A história é ambientada em uma cidade situada na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, na semana em que o governo americano implantará nacionalmente a denominada “Iniciativa de Paz Americana”, que consiste na transmissão de um sinal capaz de interferir na mente da população através de chips, impedindo que as pessoas consumem qualquer espécie de conduta criminosa de maneira consciente. As controvérsias sobre o procedimento e o prazo iminente para a sua aplicação intensificam o estado de caos social e potencializam a tentativa de migração da população para o país vizinho.
O que não parece ser um pano de fundo ruim (inspirado pelo quadrinista Rick Remender, que teve a sua obra homônima adaptada), já para por aí sem qualquer aprofundamento sobre os processos neuroquímicos dessa medida revolucionária ou seus possíveis desdobramentos legais capazes de garantir a sua eficácia. O roteiro de Karl Gajdusek não faz a menor questão de explicar se todos os cidadãos estariam obrigados a implantar os chips ou se apenas os sujeitos fichados seriam controlados. O seu texto paupérrimo sequestra essa premissa para tentar justificar a vergonha alheia que viria pela frente.
Finalmente chegamos ao protagonista Graham Bricke (Edgar Ramírez), um criminoso de carreira, cheio de inimigos, cujo irmão mais novo supostamente teria acabado de cometer suicídio na cadeia. Mais uma vez o roteiro falha miseravelmente ao tentar construir o entediante Bricke como o anti-herói da trama. Vale destacar a atuação regular de Edgar Ramírez… Seu personagem tem uma única expressão ao longo das duas horas e meia de filme, seja encurralado pelos rivais, sendo espancado, sendo queimado, sendo fuzilado ou mesmo fodendo.
Quando o caminho do protagonista se cruza com o de Kevin Cash (Michael Pitt) e Shelby Dupree (Anna Brewster), o festival de bizarrices se multiplica. De uma hora para a outra, Bricke é informado sobre a morte de seu irmão, é abordado aleatoriamente por Shelby em um bar, os dois transam no banheiro, Kevin surge como companheiro de cela do falecido, apresenta Shelby como sua esposa e revela ter um último grande assalto planejado que permitirá que Bricke se vingue do sistema que arruinou a vida de seu irmão. Sim, isso tudo em uma cena.
Com a totalidade de zero argumentos minimamente bem elaborados, o casal convence Bricke a participar de um plano para roubar um bilhão de dólares (rs) e fugir para o Canadá antes que o sistema entrasse em pleno funcionamento. O resultado disso é uma trama atropelada, repleta daquelas sequências esdrúxulas em que alguém surge do nada para limpar os problemas, não há qualquer diálogo interessante e a grande disputa é pelo Oscar de personagem mais detestável.
O Kevin Cash de Michael Pitt mistura o pior cosplay de Travis Bickle (“Taxi Driver”), se inspira numa caricatura de Tony Montana (“Scarface”) e toma doses homeopáticas de Jesse Pinkman (“Breaking Bad”). O resultado é uma salada de clichês impedida de ultrapassar a gritaria e os péssimos bordões. A cereja do bolo é a cena durante aquela confraternização familiar. Gostaria que Mr. Quentin Tarantino pudesse tecer alguns comentários sobre um dos momentos mais patéticos que eu já pude assistir.
Mas a Shelby Dupree de Anna Brewster também não deixa a desejar. A personagem que deveria ser daquelas mulheres fatais, bandida enigmática e sedutora, é hostilizada por uma direção que mais parece a visão de um adolescente idiota sobre a contextualização de uma personagem feminina em um filme de ação. Alguém que figura exclusivamente para satisfazer vontades sexuais ou colocar tudo a perder. O seu papel como hacker especialista também não tem qualquer aprofundamento.
É preciso mencionar, ainda, uma espécie de subtrama envolvendo o policial William Sawyer (Sharlto Copley) que não tem absolutamente nem pé, nem cabeça. Nenhuma de suas motivações e paranoias são demonstradas. A única transmissão feita através de suas cenas é o seu amor pela profissão. Quando o seu caminho se cruza com o dos protagonistas, o obstáculo é simplesmente superado. Um desperdício de personagem que vai do nada ao porra nenhuma.
Quando tudo já estava mais do que perdido, me lembrei do que poderia salvar esse show de horrores e transformá-lo em mero entretenimento vazio (o que já estaria de excelente tamanho): a ação.
Meus amigos, parece implicância, mas cada corpo perfurado necessitava de uns mil tiros disparados. As sequências são picotadas, porém intermináveis. Tudo é extremamente cafona. A montagem é tão ou mais perdida que a direção. Eu juro por Deus que a minha capotagem na vida real foi dez vezes mais empolgante que as do filme.
E uma grande obra não poderia se despedir sem um grande desfecho:
Antes de mais nada, eu me sinto na obrigação de confessar que o tesão por zumbis nunca foi um fetiche que me fisgou. No auge do meu ócio, eu segui incapaz de dar play em obras como “Walking Dead”, “Resident Evil” ou “Zumbilândia”, então a análise nada técnica deste lançamento vai ser feita com doses ainda mais cavalares de cagação de regra e antipatia.
Pois bem. A ligeiríssima primeira temporada de Betaal, série indiana de terror original Netflix, busca construir algumas pontes entre as crenças de seus povos e um cenário histórico de independência, contextualizando as suas desigualdades ainda latentes por meio de uma abordagem com críticas sociais implícitas.
Numa pequena aldeia localizada ao lado da Montanha Betaal, a população nativa supostamente garante a manutenção de uma divindade perigosa enclausurada em um túnel. Quando o governo ordena à Surya Construction que desenvolva uma via expressa nesta região, toda a problemática do roteiro está montada.
Ajay Mudhalvan (Jitendra Joshi), o empreiteiro ganancioso, contrata uma espécie de Bope indiano para fazer a limpa no local e, inexplicavelmente, leva a sua esposa e filha nesta missão. Os moradores tentam impedir a reabertura da passagem construída pelos britânicos durante a guerra, mas depois de um clássico banho de sangue, a antiga maldição acaba sendo invocada.
Descobre-se então que o antigo coronel inglês Lynedoch (Richard Dillane) e os seus soldados haviam sido enterrados vivos no túnel e agora estariam dispostos a reconquistar a Índia. É a partir deste momento que a equipe de elite contratada para evacuar o local passa a ter protagonismo na trama, encabeçados pela comandante Tyagi (Suchitra Pillai) e pelo seu subordinado Sirohi (Vineet Kiinumar), aquele clássico personagem de herói que precisa se redimir de seus pecados do passado.
Revestido da minha petulância ocidental, arrisco a dizer que todo o quadro histórico abordado até então serve como mero pretexto do roteiro para dar o aval que a direção precisa para imergir aos elementos mais bregas do terror, com direito a muito sangue espirrando, cabeça girando, faca no pescoço, fotografia quase toda no escuro e sustinhos barulhentos. É exatamente aí que o caldo entorna. A evolução da história me pareceu extremamente confusa e forçada, sem que fosse possível alcançar um suspense de zumbis, e que tampouco gerou a tensão necessária em detrimento das nuances de espiritualidade e possessão.
Ao que me consta, os zumbis geralmente são retratados como seres mortos-vivos, o que não deveria ter relação com aqueles soldados de infantaria possuídos pelo coronel endiabrado, funcionando como meros fantoches. Não vou nem gastar saliva com a composição terrível das criaturas. Uns canibais esquisitos com dentes de vampiro e olhos vermelhos brilhantes diretamente de quatro décadas atrás.
Assim como os encapetados, os outros personagens da série também são facilmente manipulados, não possuem profundidade e estão presentes apenas para vincular um conjunto básico de instruções sem qualquer tipo de peculiaridade nos diálogos.
A composição em quatro episódios não é o maior dos defeitos da série, mas torna inevitável o questionamento: “essa porra não poderia ter tido o formato de longa?”. Caso de fato haja uma segunda temporada, conforme o último episódio tenta sugerir, será interessante ver em que direção o roteiro seguirá e se conseguirá reverter o dano causado pela preguiça de seus idealizadores. Há algum potencial escondido nas questões mais folclóricas da trama.
Como mais vale um passarinho na mão do que dois voando, para evitar qualquer tragédia, eu deixaria Betaal presa dentro do túnel.
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Mães Paralelas
3.7 411A verdade é nua e crua: o ar novelesco à lá Manoel Carlos é apenas uma alegoria para as letrinhas que subirão no final, assinadas por Eduardo Galeano. E foda-se esse spoiler suspensório. A maior parte do roteiro é um holograma para mães que perderam seus filhos e os filhos dos outros. É sobre mulheres que se fuderam sozinhas durante a guerra e fica a seu critério ilustrar em que guerra. É sobre dor e sofrimento velado em comunhão. O pior é que ainda deu pra sentir esperança no final... Almodóvar é muito pica!
O Menino que Matou Meus Pais
3.0 516 Assista AgoraAcompanhar o lindo romance protagonizado por Carla Diaz e Arthur Picoli de Conduru vale mais a pena do que parar pra assistir a essas duas aberrações de oitenta e poucos minutos. Aguardando pelo derradeiro filme III da trágica sequência: "O Baseado Que Matou Meus Pais". Como diria Marcelo Dourado, "Que filme ruim, velho! Mudou o meu conceito de horrível".
Estômago
4.2 1,6K Assista AgoraDemorei uma vida pra assistir, mas adorei a bifurcação inversa da historinha tragicômica que vai se abraçando. João Miguel muito bem! Os momentos de Ratatouille in Carandiru são ótimos também. Gostei dos efeitos sonoros da contínua mastigação de boca aberta, mas achei que a trilha sonora deixou um pouco a desejar. Também poderia ter menos cenas caricatas e destilar menos preconceitos cansados, mas, definitivamente, vale a pena.
Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime
3.4 387Um dos motivos pelos quais o cagador de regra que vos fala optou pela graduação em Direito, no longínquo ano de 2012, mesmo ano da tragédia que envolveu a família Matsunaga, foi justamente a análise desses casos criminais comprometidos pelo nosso “jornalismo investigativo”.
Lembro que durante algum daqueles testes vocacionais mequetrefes do ensino médio, um episódio do saudoso “Linha Direta” serviu de pano de fundo para que noções iniciais de Direito Penal me fossem apresentadas e me despertassem para um possível envolvimento profissional neste universo.
Até hoje eu tenho sérias dificuldades de compreender aquele sujeito que presta vestibular para Direito, ingressa a uma boa universidade e tem a pachorra de dizer que não gosta de Penal. Acho que isso deve representar algum tipo de desvio de caráter, mas não estou aqui para atacar os meus colegas amantes de burocracia e apaixonados pela indústria do dano moral.
Fato é que essa curiosidade em torno do que choca e o interesse pelas profundezas da mente humana, acaba transformando as angústias e os conflitos do processo penal em uma ferramenta extremamente sedutora quando o assunto é o engajamento popular em torno de um crime midiático.
Eu nutro até um certo apreço pelo imbecis que, mesmo leigos, discutem a eficácia de medicamentos, se recusam a tomar vacinas testadas ou questionam o formato do mundo. O criminalista sempre precisou conviver com esse tipo de “opinião”. Gera um certo alívio ver mais gente sentindo na pele como é difícil passar anos desenvolvendo construções teóricas, embasamentos técnicos, até surgir um abutre qualquer e colocar tudo por terra.
O próprio catálogo de filmes, séries, e documentários que buscam revisitar os crimes mais chocantes do nosso passado recente, são a prova viva de que a espetacularização do papel de juízes, promotores, delegados e até mesmo advogados, é uma rica e eficaz fonte de entretenimento.
Isso já virou até gênero: o true crime.
Ora, se temos um true crime onde a ré confessa transformou o seu então marido bilionário em strogonoff, por quê não percorrermos o seu passado maltratado e colocarmos uma sonoplastia de filme de suspense para tentar desmistificar as nuances por trás dos fatos?
Melhor… E se pegarmos um bando de machos obsoletos que tiveram um papel decisivo naquele processo e ensaiarmos algumas discussões acerca da manutenção do poder primário e da predominância de homens em funções de controle e privilégio?
Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime estreou na Netflix com a fórmula perfeita para chocar novamente, refrescar a curiosidade das pessoas e tentar desmontar alguns estereótipos criados em torno de um julgamento que entrou no imaginário do público a ponto de fazer com que quase todo mundo se interessasse pela obra.
De um modo geral, eu tendo a desaprovar situações em que pessoas são alçadas a uma condição de acuamento, independente do delito cometido ou da acusação a ser questionada. A minha empatia pela Elize parte antes mesmo do documentário se iniciar, o que me fez detestar o formato “embelezador” de como a filmagem foi produzida.
Entre as péssimas alternâncias cronológicas e as entrevistas desconfortáveis, a diretora Eliza Capai trabalha para montar uma protagonista frágil, machucada, de origem humilde e heranças traumáticas, que em um momento de destempero e abuso psicológico teria cometido um dos crimes de maior repercussão no Brasil. Reinicia-se o conflito de ação vs reação no caso.
O problema é que a produção não se mostra nem um pouco interessada em trazer elementos novos, criar dúvidas sobre momentos determinantes da tragédia ou fazer o que o true crime faz de melhor: criar uma tensão na sua narrativa transcendente aos fatos.
O que o documentário tem de mais interessante, provavelmente a matéria que o Fantástico exibiu em 2012 também teve. A propósito, a sétima temporada da série “Investigação Criminal” traz um episódio de 45 minutos sobre o caso que faz o mesmo serviço.
Sob o grande álibi da entrevista inédita, tendo em vista que Elize Matsunaga jamais se pronunciou publicamente sobre os fatos, a obra finge tentar compreender as motivações por trás do crime, mas acaba criando uma caricatura da personagem pela qual havia uma tentativa de humanização. As próprias inserções da Elize contribuem para um efeito narrativo sensacionalista ao sugerir elementos ocultos e segredos inconfessáveis dignos de novela.
Reconheço que não há como ser indiferente ao que Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime exibe em seus quatro episódios de cinquenta minutos. A história é montada com diversas imagens da cobertura jornalística do caso, bem como registros do acervo pessoal do casal e uma série de depoimentos.
Acontece que essa coletânea de faíscas do crime, por si só, não me fizeram ter um pingo de tesão ao final de cada episódio. Tudo parecia um grande programa do Datena ao contrário.
Se o objetivo da Elize era mesmo deixar um material comovente e relevante para a reconstrução dos seus laços com a filha fadada a arcar para sempre com uma história tão macabra, lamento dizer que não rolou.
Se o objetivo da diretora era mesmo trazer um lado humano da sua protagonista, reforçar dúvidas sobre as motivações para o crime e criar compensações entre patriarcado e esquartejamento, lamento dizer que não rolou.
Se o objetivo do delegado, do promotor e dos demais depoentes homens, era mesmo consolidar a historinha de que a puta oportunista premeditou toda a barbárie para meter a mão na grana, lamento dizer que não rolou.
Para mim, quase nada rolou.
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Aqueles que me Desejam a Morte
2.9 256 Assista AgoraO novo longa dirigido por Taylor Sheridan (Sicário: Terra de Ninguém) e estrelado por Angelina Jolie (Garota Interrompida), entrou no circuito brasileiro de cinemas na última quinta-feira (27) e, muito provavelmente, vai agradar aquele tipo de espectador que só está interessado em distrair a cabeça e acompanhar um joguinho de gato e rato por pouco mais de 1h30min.
É o famoso filme de Tela Quente.
Eu estaria mentindo se dissesse que Aqueles Que Me Desejam a Morte é o tipo de obra que normalmente me atrairia, mas eu me peguei sendo puxado para a história conforme ela avançava, mesmo sem que houvesse qualquer complexidade nos momentos de transição, muito por conta do efeito catalisador da floresta em chamas que passou a ter um efeito de bomba-relógio.
Logo de cara, somos apresentados ao perito contador Owen Casserly (Jake Weber), responsável por desvendar algum tipo de esquema obscuro envolvendo magnatas e pessoas influentes do governo, e a seu filho Conner (Finn Little), que rapidamente despontam como alvos de uma busca implacável por parte dos agentes Jack (Aidan Gillen) e Patrick (Nicholas Hoult), que farão de tudo para silenciar a família e preservar o bom andamento dos negócios.
Quando uma abrupta amostra de eventos deixa claro para Owen que ele e o seu filho serão os próximos na lista de execuções, o jeito foi partir para o acampamento de seu cunhado Ethan Sawyer (Jon Bernthal), uma importante figura policial da região, para tentar se proteger e manter a maior distância possível dos inimigos.
No entanto, evidentemente alguma coisa teria que sair do planejado…
Ao vagar sozinho pela floresta isolada, depois de uma traumática experiência de tiroteio, o pequeno Conner acaba sucumbindo à proteção de uma bombeira paraquedista chamada Hannah Faber (Angelina Jolie), que havia sido remanejada para uma torre de incêndio erguida no local depois que um desastroso erro durante uma missão no passado passou a atormentá-la de maneira incessante.
De certa forma, a sutileza na construção da personagem de Angelina Jolie com alguns flashbacks do incidente pretérito e os efeitos sobre a sua personalidade repleta de angústia e rebeldia, foi informativa o suficiente para nos dar o incentivo de que precisávamos até admitir o porquê de sua personagem reagir a determinadas situações do jeito que ela reagia. Ao meu ver, esse nó ficou bem amarrado.
Talvez o ingrediente mais interessante no quesito roteiro seja justamente o fato de que o filme está carregado de pessoas traumatizadas e com pouco trato para lidar com os seus demônios e com os demônios alheios. A única alternativa acaba sendo buscar forças no que resta de resiliência em quem está ao lado e isso é traduzido em uma química convincente entre Angelina e o ator mirim. Se para um estava ruim, para o outro estava pior.
E a partir daí é questão de tempo para que as coisas comecem a se desenrolar de maneira pouco surpreendente. O filme soa bem montado para a ação, mas ignora a profundidade dos personagens. A lindíssima localização arborizada onde grande parte da trama está situada acaba sendo subutilizada no aspecto do novo incêndio florestal, que vem à tona esdruxulamente.
Além dos lampejos iniciais e da boa troca entre os protagonistas (muito por conta do trabalho super decente e natural entregue pelo jovem Finn Little), o filme de fato perdeu a oportunidade de dar sequência a alguns atos preparatórios que acabaram sendo acelerados demais. Se alguém descobrir qual era o segredo mantido por Owen, me avise.
Em compensação, seria injusto deixar de pontuar que os efeitos de Aqueles Que Me Desejam a Morte são bem feitos e que o uso acertado do som é capaz de inserir o espectador no meio do fogo. Enquanto a paisagem é lambida pelas chamas, é possível ouvir limpamente o barulho do fogo estalando ao redor da cena, o que é uma ótima maneira de trazer o público para o cenário caótico.
Provavelmente se você não assistir ao filme em uma boa sala de cinema, esse tipo de sensação poderá ser comprometida (mas se puder, fique em casa).
No mais, embora o roteiro parta de uma premissa simplória e o desfecho não seja tão empolgante, esse é um daqueles filmes que não vai acabar com o dia de ninguém. Se você estiver emotivo, dá até pra dar uma lacrimejada. Se resolveu assistir só por causa da beiça da Angelina, também dá pra sair satisfeito.
Ignore as conveniências do filme (e da vida), mas não se esqueça que onde há fumaça, há fogo.
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Mundo em Caos
2.7 250 Assista AgoraDepois de aproximadamente um ano e quatro meses sem adentrar uma sala de cinema, acabei sucumbindo ao deleite cinéfilo, mesmo sem enxergar a esperada luz no fim do túnel desta pandemia insolente, e compareci à cabine de imprensa do tal Mundo em Caos, título que, a princípio, seria mais do que oportuno e apropriado ao momento.
Baseado no primeiro livro da trilogia de Patrick Ness, Mundo em Caos é uma espécie de faroeste de ficção científica, ambientado em um planeta distante e colonizado com um pequeno povoado, onde os pensamentos dos homens podem ser ouvidos pelos outros, numa espécie de “voz da consciência” em alto e bom tom.
Embora a expressão “sem pé nem cabeça” possa ter alcançado níveis nunca antes imaginados em diversos momentos da trama, é possível que a saudade que eu estava do cinema, a necessidade de apreciar qualquer obra na telona e o nível de cafeína no meu sangue tenham me feito ter mais boa vontade com o filminho de sessão da tarde do que ele merecia.
É possível dizer que o filme comandado por duas estrelas da franquia Disney (Tom Holland, o Homem-Aranha e Daisy Ridley, a Rey de de Star Wars), se passa em algum momento no futuro, em um planeta fora do Sistema Solar, mesmo que o roteiro se recuse a fornecer maiores informações sobre o tempo-espaço da história.
De uma maneira praticamente intuitiva, acaba sendo possível compreender que alguns terráqueos deixaram o seu planeta de origem, provavelmente degradado e com escassez de recursos, para semear novos sistemas e buscar uma melhor qualidade de vida em meio ao caos.
Todd Hewitt, protagonizado por Tom Holland, é aquele personagem adolescente que varia momentos de ingenuidade e valentia, subsistindo na pacata vila de Prentisstown, localizada em um planeta que parece abrigar colonizadores esquecidos, sendo todos eles homens chucros.
Depois de um bom tempo sem maiores direcionamentos e com bastante relutância ao “the noise” (a tal “voz da consciência”) que cada valentão emitia involuntariamente, somos informados de que a população nativa dizimou todas as mulheres da região, incluindo a mãe de Todd, durante uma guerra entre eles e os colonizadores.
Por conta dessa disputa pela sobrevivência no território distante, o intitulado prefeito David Prentiss (Mads Mikkelsen), passa a comandar aquele ordenamento social composto integralmente por membros hipermasculinizados e programados para não demonstrar fraquezas e expressar sentimentos mais profundos, lutando para dominar o “the noise” que habita em cada um.
No meio desse aquário de ruídos, masculinidade tóxica e instintos animalescos, surge a personagem de Daisy Ridley, Viola Eade, que cai de paraquedas (na verdade de espaçonave) nessa conjuntura desgraçada depois que o seu veículo espacial tem uma pane e a leva ao coração de uma floresta localizada no planeta estranho.
É mais do que previsível que Todd ficaria incumbido de encontrar e proteger a forasteira, única sobrevivente de seu acidente brutal. Mais previsível ainda é a paixão que ele começaria a nutrir pela bela moça de madeixas loiras, mesmo que Viola não necessitasse de proteção alguma, sendo mais perspicaz do que a imensa maioria dos brutamontes.
A partir de então surge uma tentativa frustrada de flerte, tendo em vista que o personagem de Holland nada mais é do que uma figura pré-adolescente e virjona que sequer havia se deparado com um ser do sexo feminino até então. Como agravante, temos o fato de que Viola tem acesso a todos os “ruídos” emitidos pela mente do rapaz enquanto ele não consegue descobrir um só pensamento da visitante. Apenas os homens são capazes de emitir o “the noise”, o que soa muito mais como penitência do que virtude.
Com a ausência de química entre o casal principal e a direção pautada em fugas e perseguições, os mecanismos de ficção científica acabam se tornando um atrativo do filme. Esses elementos coexistem com um aspecto de imagem de sobrevivência na selva, bem como através de resquícios de um velho faroeste americanizado, repleto de cavalos, armamentos e tropeções.
Na humilde opinião de quem vos escreve, os prazeres encontrados em narrativas distópicas têm muito a ver com um certo distanciamento, desde que os fios da história sejam bem amarrados. É broxante que Mundo em Caos apenas pincele a história de fundo envolvendo a raça nativa, esqueça da jornada anterior à colonização e demore horas para nos fornecer informações sobre os personagens secundários.
O longa não chega a ter duas horas de duração, mas parece focado em cobrir tanto terreno que não consegue se aprofundar em absolutamente nada, mesmo que tenha momentos razoáveis de ação e aventura. O material disponível parece ser suficiente para compor a primeira temporada inteira de um seriado, mas caminha como um trailer de filme mequetrefe. Às vezes chega a irritar.
Como a linha tênue entre o que é bom e o que é ruim pode ser ainda menos espessa entre os cinéfilos, é preciso ser justo e ressaltar que o orçamento de cem milhões de dólares destinado à produção dirigida por Doug Liman coloca o longa em uma posição de frustração no mercado. Talvez por conta disso o filme que estava programado para ser lançado pela Paris Filmes nos cinemas nacionais em 11 de março, teve a sua estreia adiada para 8 de abril e só será lançado oficialmente no dia 13 de maio.
No fim das contas, Mundo em Caos imerge o espectador em um conceito diferente de espaço cinematográfico, criando um filme que gradativamente ensina o espectador a assisti-lo, sendo esse o ponto alto da experiência. Com a evolução do roteiro, acaba sendo possível se acostumar com a forma com que os personagens interagem, particularmente como protegem os seus pensamentos que são revelados numa espécie de auréola projetada em forma de fumaça colorida.
Mesmo com vários pontos sem nó e com muita preguiça no acabamento de cada ato, eu me atrevo a dizer que se você estiver de bobeira na próxima quinta-feira (13), Mundo em Caos pode servir para distrair a cabeça e de quebra trazer alguns questionamentos existenciais sem maiores aprofundamentos.
A propósito, você gostaria de ler a mente das outras pessoas?
Eu, provavelmente, não suportaria.
Às vezes é preferível se afogar com palavras que nunca foram ditas.
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Pedaços De Uma Mulher
3.8 542 Assista AgoraDepois de ser esmurrado por esse filme que não se mostrou disposto a edulcorar a dor para me poupar da angústia tremenda, estou aqui elucubrando sobre as metáforas da fruta. Na história da humanidade, maçã já simbolizou fertilidade, esperança, traição e declínio. Dá pra encaixar todos os atos nesta lógica.
A relação da protagonista com cada maçã faz com que o fruto vire semente. O broto só surge quando o luto é encarado e superado. O epílogo na macieira é o alento, a confirmação de que foi possível tornar a germinar, transcender a maior perda do passado.
Cinema de emoção, dor e beleza triste.
Pelé
3.6 77Há mais de sessenta anos considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, é provável que Pelé possua um status simbólico insuperável, como não hesitava em declarar o meu saudoso vô.
Nascido no ano de 1940, Edson Arantes do Nascimento desenvolveu a magia em seus pés enquanto engraxava sapatos para colaborar com as despesas da sua família. Uma biografia que se inicia com o mesmo capítulo de milhares de brasileiros que sonham em gozar do glamour oriundo do mundo da bola.
Com dezesseis anos de idade, o Rei prodígio se torna jogador profissional do Santos e, em menos de um ano, já é convocado para a seleção brasileira principal. Aos dezessete, se sagra campeão mundial pela primeira vez, quatro anos depois repete a proeza atuando em apenas dois jogos, em 1966 sofre novamente com as lesões e em 1970 vive o seu apogeu, sagrando-se o único jogador na história a conquistar três Copas do Mundo, depois de ultrapassar a inacreditável marca dos mil gols.
No interessante documentário disponibilizado recentemente pela Netflix, Pelé nos dá acesso a um digníssimo acervo de imagens restauradas digitalmente e capazes de ilustrar os principais momentos da carreira da maior entidade do futebol mundial. As clássicas filmagens da final da Copa de 70, por exemplo, ganham um fôlego extra e entusiasmam os amantes da seleção canarinho.
Os diretores gringos Ben Nicholas e David Tryhorn ainda se esforçam para contextualizar a história de Pelé fora dos gramados, relacionando o sucesso dentro das quatro linhas e o panorama sociopolítico de um país imerso nas profundezas dos anos de chumbo.
As imagens de arquivo são intercaladas com entrevistas com jornalistas renomados, escritores, companheiros do Santos e da Seleção Brasileira, que entre brincadeiras e relatos, dão conta de nos inserir no cenário da época. Os comentários do próprio Pelé nos fazem flutuar pelas memórias do passado.
Pioneiro em quase tudo, o Rei tem outra faceta desmembrada pelo documentário: a de popstar. Atrelando o seu desempenho fenomenal dentro de campo à sua personalidade carismática e isentona, Pelé ganha rios de dinheiro promovendo todos os tipos de produtos possíveis e imagináveis. Encurralado pela força da sua marca, fica mais do que claro que ele sempre optou por se colocar acima das discussões políticas, camuflando as suas conveniências pessoais sob uma ideia de ídolo acessível e herói boa praça.
Essa falta de culhão rende, até os dias de hoje, um certo tipo de mancha na sua história, conforme relatado por diversos convidados do documentário. Segundo a maioria deles, Pelé abdicou do seu dever moral de se manifestar veementemente contra o golpe militar de 64 e optou por servir de propaganda ao regime como se não tivesse ciência de muita coisa.
Em contrapartida, esta crítica à passação de pano do Rei está sujeita a algumas ressalvas: será que Pelé, assim como tantos outros adversários políticos, teria sido boicotado ou até mesmo desaparecido misteriosamente caso tivesse se posicionado contra o sistema? A linha tênue entre a sobrevivência e a conveniência…
Ao mesmo tempo em que o regime militar se valia da Seleção de Pelé para ofuscar as intransigências e o massacre às liberdades individuais proposto em território nacional, o futebol encantador e a coleção de vitórias na Copa do México pareciam oxigenar um país que tentava se livrar, de uma vez por todas, do tal complexo de vira-latas. Pode ser que, dentro de campo, Pelé tenha conseguido o que jamais conseguiria fora dele.
Até porque, no final das contas, pro brasileiro médio, o futebol transcende quase tudo. O tal ópio do povo foi capaz de alçar um jovem preto e pobre ao patamar de Rei, símbolo de orgulho nacional e autoestima no cenário mundial. Isso tudo, em plena ditadura, não é pouca merda não… Pelé pode ter salvado algumas vidas de boca fechada.
Afinal, ele calado é um poeta.
Vida longa!
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Doutor Castor
4.4 77Seja lá qual for a atividade ilícita, o crime organizado tende a manter uma metodologia de centralização das principais decisões, de ramificação nas cadeias de comando e divisão hierárquica capaz de montar um quadro social que dê estrutura paras as ações, muitas vezes sustentadas pela captação de agentes públicos. A corrupção é praticamente a alma do negócio.
Na nova série Globoplay intitulada Doutor Castor, dirigida por Marco Antonio Araujo, conhecemos alguns detalhes interessantes sobre a vida de um senhor estudado, aliás, meu colega de Faculdade Nacional de Direito, que entendeu perfeitamente como seguir essas fórmulas até se tornar virtualmente inalcançável através do “inofensivo” Jogo do Bicho.
Simpatize você ou não, Castor Gonçalves de Andrade e Silva foi uma das figuras mais populares e carismáticas ao longo das décadas de setenta, oitenta e noventa num Rio de Janeiro desde sempre apaixonado por futebol e samba. Presidente de honra da Mocidade Independente de Padre Miguel e praticamente dono do Bangu Atlético Clube, o tal Dr. Castor gerenciava os seus negócios ao melhor estilo cover de poderoso chefão.
A série dividida em quatro episódios, mostra bem alguns bastidores deste período atrelado a um Bangu quase vitorioso que viveu o seu apogeu impulsionado pelo dinheiro e pela influência do seu homem forte, se tornando uma potência do futebol nacional.
No samba não foi diferente. Depois de se tornar um dos principais responsáveis pela criação da Liga Independente Das Escolas de Samba, o que colaborou imensamente para a profissionalização do carnaval carioca na década de oitenta, Castor de Andrade levou a Mocidade aos principais títulos da sua história, ganhando pompa de herói.
Através de imagens de arquivos e repleta de depoimentos de pessoas que conviveram de perto com o famoso contraventor, os quatro episódios de uma hora permeiam essa atmosfera de malandragem suburbana e institucionalização do crime organizado de uma maneira capaz de despertar o interesse do espectador. É o famoso “suco de carioquice”.
Entre relatos de atletas, ex-funcionários, advogados, juízes, jornalistas e amigos pessoais, a história narrada de ascensão e queda de um dos maiores bicheiros de todos os tempos, nos exibe uma figura excêntrica e capaz de transitar por todas as camadas da sociedade com uma habilidade inigualável.
Seja confabulando com seus capangas truculentos, flertando com a ditadura militar, almoçando com importantes dirigentes do futebol internacional ou erguido pelos braços da sua comunidade, o protagonismo das suas interações sociais parece trazer um ar de legitimidade às ações tomadas por Castor de Andrade, um ser praticamente intocável (ainda que discorde a Dra. Denise Frossard).
Ao contrário de Pablo Escobar ou Al Capone, a série induz que o bicheiro não era bem visto apenas na sua zona de atuação, no subúrbio do Rio de Janeiro, chegando a se relacionar muito bem com as famílias de presidentes da república e membros da elite da sociedade, tendo uma influência política clara e requisitada.
No fim das contas, a Globoplay reúne um material de qualidade que nos revela, entre o pão, o circo e o sangue, que Castor de Andrade foi um personagem controverso, carismático e multifacetado, se tornando um dos maiores símbolos para o seu clube, para a sua escola de samba e para o seu bairro.
Uma pena que a lógica operacional responsável por financiar isso tudo continue explodindo a cabeça de uns e outros até os dias de hoje.
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Soul
4.3 1,4KAcho que pode ser algo geracional essa preocupação exacerbada com a idealização de sonhos, quase sempre responsáveis por fadar as pessoas a frustrações. Deixar de perceber que a água já é o oceano é mais do que triste, é cruel. Soul surge para lembrar que missão não é propósito. De uma maneira quase bíblica, cada metáfora esmiúça os nossos anseios e tenta nos trazer de volta para a vida após um ano de pandemia. A Pixar tem uma parcela de genialidade muito importante na história recente do cinema.
A Voz Suprema do Blues
3.5 541 Assista AgoraA Netflix acaba de incluir em seu catálogo o interessante A Voz Suprema do Blues, um filme que se prende a uma linguagem de teatro, mas não tem o seu ritmo comprometido, muito por conta da potência dos monólogos. Essa é uma daquelas obras com roteiro simples, mas repleta de personagens tragicamente profundos. Se você é apreciador de textos e interpretações, temos aqui um prato cheio.
O enredo busca reverenciar a cantora Ma Rainey (Viola Davis), conhecida como “Mãe do Blues”, cujo nome e música batizam o título original em inglês. No final da década de 1920, a estrela está prestes a produzir um novo disco em um estúdio em Chicago, em conjunto com a sua banda formada por três membros principais, Toledo (Glynn Turman), Cutler (Colman Domingo) e Slow Drag (Michael Potts), músicos veteranos habilidosos, instintivamente programados para tocar o que Rainey mandar.
Assim que o ambicioso trompetista Levee (Chadwick Boseman) entra em cena, logo percebemos que ele e a protagonista serão os fios ativos da trama e que o restante da banda se encaixará na história de uma maneira mais pragmática, porém eficaz. Levee claramente tem pretensões maiores do que as de um simples músico de apoio, mas a mãe do blues não permite qualquer tipo de interferência externa nas suas decisões tomadas a partir de uma posição hierárquica conquistada na marra, graças ao seu talento.
Então, para olhos mais preguiçosos, A Voz Suprema do Blues é um filme sobre músicos de blues que se juntam para gravar algumas canções, num dia quente de verão em Chicago, no ano de 1927. No meio disso, um trompetista abusado e uma cantora arrogante resolvem travar uma guerra fria inútil, tendo em vista que a corda só poderia arrebentar para o lado mais fraco e mais óbvio.
Na prática, há temas mais complexos de injustiça social que ainda ecoam na sociedade até os dias de hoje, mesmo depois de quase cem anos. Esse filme simboliza a experiência dos negros americanos no início do século XX e não há melhor lugar para começar a contar esta história do que pelo próprio blues, narrando dores, fugas, desejos e as formas de expressão que esse povo encontrou através da arte.
Não é coincidência que o blues tenha surgido no final do século XIX, quando as pessoas negras escravizadas foram, supostamente, libertadas da escravidão. Embora as restrições físicas em seus corpos possam ter sido eliminadas, as violações de garantias produzidas por uma sociedade imersa no racismo estavam só começando. O blues sempre foi refúgio.
É fazendo esse gancho entre música e resistência histórica que surgem os monólogos ilustrando as experiências de Levee, de Ma, de Toledo… Quando Levee descreve o testemunho da terrível violação da sua mãe por uma gangue de homens brancos, o discurso ganha uma potência absurda ao confrontar a religiosidade de Cutler, como se não houvesse justiça divina, reduzindo a distância entre ator e espectador, já que esta atuação se tratava do “canto do cisne” de Chadwick Boseman, que já batalhava contra um câncer.
Se o desempenho turbulento e deslumbrante de Viola Davis passa pela raiva e resignação da sua personagem, coberta por uma maquiagem berrante, por dentes de ouro reluzentes e uma considerável camada de suor permanente, Chadwick Boseman praticamente urra de dor e ansiedade, comprometendo-se com as cenas de uma maneira tão feroz que as emoções soam reais. O caminho para a autodestruição do personagem é seguido com o vigor de quem sabe que vai morrer.
E, por isso, talvez por isso, o momento mais impactante do filme seja justamente causado pela obsessão do seu personagem por uma porta, como um pesadelo capaz de simbolizar o futuro de Levee, enclausurado debaixo do céu, sucumbindo à ira imposta pelas suas próprias cicatrizes. A Voz Suprema do Blues é uma obra crítica e estimulante o suficiente para marcar com muito bom gosto a volta do Pantera Negra para Wakanda.
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Teocracia em Vertigem
3.5 147Embora muita gente não deva se lembrar, há mais ou menos um ano, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvejada com coquetéis molotov, depois que supostos grupos cristãos se indignaram com o especial de Natal então intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, muito por conta da presença de um personagem homossexual na sátira. Mais de duas milhões de assinaturas foram recolhidas com o intuito de pressionar a Netflix pela retirada do filme da plataforma com a consequente judicialização da tão nefasta heresia.
Como graças a Deus (Deus?) ninguém morreu, ninguém foi preso, ninguém foi amordaçado e não é só de Netflix que se vive o homem, cá estamos, ao fim do pandêmico ano de 2020, ainda livres para dar play no Youtube e conferir a mais nova paródia bíblica de um grupo mais do que consolidado e bem sucedido quando o assunto é apertar calos, esfregar feridas e estampar na nossa cara o carrossel de escárnios no qual esse país veio a se transformar ao longo dos últimos tempos, sem dar palco pra maluco.
O formato é bem simples e de fato lembra bastante o documentário brasileiro que concorreu ao último Oscar, “Democracia em Vertigem“, dirigido por Petra Costa (que é convidada especial, inclusive). Satirizando a trajetória de Jesus Cristo ao longo do ano 33, no período compreendido entre a sua crucificação e a ressurreição, o formato documental profano recolhe depoimentos de diversos personagens bíblicos que vão tentando montar um quebra-cabeça sobre o real paradeiro do Messias que viraria mito.
Como a própria divulgação do filme fez questão de frisar, a vida e obra de Jesus Cristo passa por uma infinidade de boatos, conspirações, injúrias, provocações e fanatismo. Seria ultrajante pensar que o maior de todos líderes, munido de um carisma inigualável, altruísta por vocação, bom samaritano e destacado pelo apreço com as causas ligadas aos direitos humanos, foi o grande responsável pela polarização da Galileia? Teria Jesus sofrido um golpe?
Uma overdose de referências do nosso cenário político caótico é embutida no roteiro e conduzida pela narração de Clarice Falcão, que nos guia pela tentativa frustrada de compreender os pormenores que culminaram na crucificação de Jesus (Fábio Porchat) através dos relatos de muitos daqueles que passaram pelo seu caminho em vida, desde Maria (Evelyn Castro), Judas Iscariotes (Daniel Furlan) e Maria Madalena (Thati Lopes) a Barrabás (Renato Góes) e José de Arimatéia (Rafael Portugal).
A obra de pouco mais de cinquenta minutos conta ainda com um elenco repleto de participações especiais que vão das grifes de Emicida e Teresa Cristina, passam pela pompa global de Marcos Palmeira, Helio de La Peña e Raphael Logam, fechando com o carisma dos maiores representantes do transporte alternativo do Rio de Janeiro. Só a nata da esquerda festiva.
A produção é muito bem feita e conta com toques refinados de fotografia e figurino que foram perfeitamente alinhados, como já vem sendo, há muito tempo, nos vídeos épicos do Porta. Reparei também que edição e direção se preocuparam em não engessar o ritmo da narrativa que foi quase toda construída com apenas um ator em cena. Foram bem sucedidos e não contaminaram ninguém com a gripezinha.
De tudo o que foi apresentado, o que mais impressiona, de longe, é a capacidade genial de linkar as referências diretas dos trágicos acontecimentos recentes da história do Brasil com as críticas àqueles que se usurpam de preceitos bíblicos em nome de uma fé que segrega, afasta, oprime e mata. Com a engenhosidade de uma mãe que coloca a papinha na boca da criança, o roteiro alimenta o espectador com a certeza de que se Jesus voltasse, provavelmente ele não chegaria nem perto dos trinta e três anos. Pelo contrário. Teria a sua morte inflada justamente por aqueles que se dizem “de bem”.
Até mesmo a desastrosa sequência musical dos minutos finais, que teria ficado cem vezes melhor na mão do Adnet em algum daqueles programas da MTV, consegue dar umas chacoalhadas muito bem dadas ao metaforizar que Jesus teria tentado voltar como mulher, negro e travesti, mas depois de ser morto em todas as ocasiões, cansou. Não volta mais. Já deu. A gente que se vire.
E pra quem gosta de caça-palavras, pescar referências pode ser um ótimo exercício. São obrigatórias: impeachment da Dilma, vice decorativo, guardiões do Crivella, carta do Temer, laranjal do Queiroz, tatuagem do Onyx, rachadinha, gabinete do ódio, power point da lava-jato, provas vs convicção, condução coercitiva, reunião ministerial e gado arrependido. Parei de contar.
Não assista!
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Borat: Fita de Cinema Seguinte
3.6 554 Assista AgoraA fórmula de Borat que já não me agradava muito em 2006, o que é algo absolutamente pessoal, funcionava por conta da invisibilidade do personagem e do caráter velado da idiotice do americano médio. Em 2020, idiotice, preconceito e ignorância são sinônimos de marketing pessoal. O Borat já não consegue mais servir como lente de aumento. O absurdo no mundo real é maior do que na ficção e por isso o filme não choca tanto. É inacreditável a que ponto chegamos.
Cadáver
2.5 254 Assista AgoraSe você ainda não esbarrou com a primeira obra norueguesa original Netflix, eu vou fazer o favor de não te segurar até o final desta crítica para dizer o que realmente interessa: Cadáver, do diretor novinho Jarand Herdal, tinha tudo para ser um filmaço do caralho!
Tinha.
Após um terrível desastre nuclear com proporções catastróficas, a miséria e o desespero nos levam para uma espécie de jornada pós-apocalíptica onde Leonora (Gitte Witt) e Jacob (Thomas Gullestad) precisarão fazer das tripas coração se quiserem sobreviver ao lado de sua filha Alice (Tuva Olivia Remman), em um canto qualquer do norte europeu.
É impossível não se sentir seduzido pela trama em suas nuances iniciais. Nas paredes do apartamento frio e escuro onde a família se abrigava, havia um pôster de uma apresentação da inominável “Macbeth”, a tragédia amaldiçoada de Shakespeare, num teatro norueguês na qual a ex-atriz Leonora havia desempenhado o papel de protagonista.
Quando uma gota de chuva escorreu como uma lágrima pelo rosto de Lady Macbeth, Leonora precisou tirar forças de onde não tinha para tentar servir de porto seguro para a pequena Alice, que embora ainda não tivesse caído na toca e tampouco conhecesse um país das maravilhas, já carregava o seu coelho (de pelúcia) em meio ao caos.
Diante da absoluta falta de perspectiva da população que restara, Mathias (Thorbjørn Harr), dono de um luxuoso hotel local, surge da atmosfera turva para convidar as pessoas para uma única apresentação de teatro com direito a banquete, numa espécie de refúgio pão e circo, onde qualquer espectador acordado já presumiria se tratar de uma armadilha, afinal, por que tem um Windsor funcionando no fim do mundo?
Ok, superando o espírito racional, a contradição visual entre a cidade arrasada e o hotel reluzente, adiciona de maneira eficiente o ar de mistério e um estilo de fotografia excelente ao filme, que tende a nos passar credibilidade e gera a expectativa necessária.
No momento em que o hotel é alçado a um patamar de protagonismo e caminhamos pelos seus gigantescos tapetes vermelhos, em corredores pouco iluminados e repletos de pinturas macabras, as câmeras, quase sempre posicionadas na parte de cima do quadro, mantém o constante estado de alerta e a sensação de ansiedade.
Essa atmosfera ainda é potencializada quando os convidados são informados de que vão participar da apresentação e que ela se desenvolverá por todo o edifício, mas que, para isso, precisarão trajar máscaras douradas ao longo do espetáculo de ação, sendo esta a única ferramenta capaz de diferenciar atores de espectadores.
Quando tudo parecia perfeitamente encaixado e eu já estava conformado que seria transportado para um estágio profundo de confusão mental entre realidade e ficção, o efeito do Viagra acabou. Dá-se início a uma sucessão de escolhas imbecis, seguidas de ramificações toscas, até que as resoluções da história são servidas que nem papinha, como se eu fosse um bebê desprovido de capacidade intelectual.
A partir daí o ki-suco azedou de vez. O tempo de espera pela resolução de cada evento óbvio parece uma eternidade, mesmo se tratando de uma obra de oitenta minutos. Não há mais nenhum personagem interessante, nenhum plot twist, nenhum mistério relevante a ser desvendado. Tudo é exatamente do jeito que você acha que vai ser.
O cara que não pode tirar a máscara vai tirar e vai se fuder (não tinha cloroquina), o quadro que pisca o olho vai ter uma passagem secreta, os capangas vão ficar brincando de gato e rato, o gore vai passar do tolerável em alguma morte ridícula e a filha desaparecida vai aparecer sem maiores explicações.
O potencial do argumento é arremessado na lata do lixo e aí fica difícil querer gerar reflexões sobre fragilidade da espécie, estado de necessidade, ética e moral. O horror que deveria emergir da cruel desconexão entre tragédia e compaixão, empaca na falta de capacidade do roteiro. Até mesmo a premissa canibal que deveria servir de alça para essas discussões, morre presa num gancho de açougue, sem aprofundar sobre porra nenhuma.
Frustrante.
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FYRE Festival: Fiasco no Caribe
3.6 227Com o rebuliço do Dilema das Redes, esse documentário também serve de lupa para os anos 2010s. Mídia sociais controlando e vendendo falácias, estelionatários enriquecendo de forma cada vez mais desleal, influenciadores ocos e quase nenhuma responsabilização. E sabemos que quem de fato se fodeu não foram eles.
Obs: Cadê o Ja Rule?
Bom Dia, Verônica (1ª Temporada)
4.2 762 Assista AgoraTalvez pelo fato de eu ter passado os últimos anos da minha vida entrando e saindo de delegacias entranhadas no ócio, sentindo na prática a lógica falaciosa do Direito Criminal, eu acabei nutrindo uma preguiça absurda pelo tal gênero “suspense policial” que o brasileiro tanto venera no audiovisual.
Para a minha sorte, a nova série da Netflix Brasil, Bom dia, Verônica, baseada na obra da criminóloga Ilana Casoy e do romancista Raphael Montes, vai muito além de indícios de materialidade, organogramas e luminol, alçando as personagens femininas, imersas numa lógica de opressão, a um protagonismo inédito no gênero.
A premissa do roteiro parte da atuação de sua protagonista Verônica (Tainá Müller) como escrivã da Polícia Civil de São Paulo que, ao presenciar um suicídio na angustiante cena de abertura, se vê obstinada a fazer justiça dando voz a mulheres vítimas de abusos físicos e psicológicos dentro de seus relacionamentos abusivos.
Essa primeira temporada se divide em oito episódios de quarenta e poucos minutos focados em percorrer os inúmeros métodos de violência contra a mulher. Como os abusos vão acontecendo de maneira assíncrona e em diferentes potencialidades, a direção consegue enfiar a caixa do pôster na nossa cabeça e só nos dá um buraquinho para que tentemos sobreviver com um pouco menos culpa.
A vida pretérita, o lamaçal que reveste as nossas instituições e os traumas familiares de Verônica constroem uma personalidade potente e dão o tom natural de justiceira que a protagonista precisa. As diferentes fases da jornada de uma personagem que sucumbe às suas próprias obsessões e impotências, ganham vida nos olhos de Tainá Müller a cada passada de lápis, a cada guerra.
Quando o principal arco paralelo vem à tona e o roteiro invade a masmorra de Janete (Camila Morgado) e Brandão (Eduardo Moscovis), a série muda de patamar. Du Moscovis encarna um Coronel da Polícia Militar aterrorizantemente desprezível sem precisar elevar o tom da sua voz. Camila Morgado, que é uma das minha atrizes brasileiras favoritas desde “Olga”, tem mais um desempenho sensacional. Eu sentia um soco a cada sorriso forçado esboçado.
Eu, como homem, no curso de um constante processo de desintoxicação das minhas amarras machistas, fiquei completamente incomodado nos momentos de carta branca que precediam os surtos de Brandão. A série é espetacular ao escancarar esses diferentes loops dentro de um relacionamento no qual a submissão ultrapassa a própria existência. Janete simplesmente deixou de existir graças ao marido. A volatilidade do sentimento de culpa só destroçava mais ainda.
Ainda que Verônica e Janete sejam inseridas como fios separados no roteiro, o laço acaba sendo natural e convincente, o que só facilita a vida dos adeptos a maratona de episódios. A tensão visual é presente do início ao fim, mesmo com uma evolução acelerada e uma série de eventos chocantes, o que faz por agregar valor a obra.
Embora a produção tenha se esforçado horrores para não caricaturizar uma temática tão sensível no 5º país da lista mundial de feminicídios, alguns elementos do Terror podem ser digeridos mais lentamente por quem tem repulsa pelo gênero. Contudo, é inegável que o choque, o desespero e a ansiedade encaixaram muito bem nas metáforas transportadas.
Não estou exatamente convencido sobre a relevância das relações espirituais de Brandão com a proposta de reflexão trazida pela série. Pintar o macho agressor de maluco, psicopata, serial killer e fã de magia negra pode distanciar um espectador mais desatento do caráter expositivo da série. Há que se entender como uma obra de advertência e não como ficção. Parece óbvio, mas é sempre bom frisar.
De qualquer forma, Bom dia, Verônica é uma série que satisfaz, tanto como suspense policial, terror psicológico ou pedido de socorro. A trilha sonora é excelente, a frequência cardíaca é alta, o trio principal é do caralho e as reflexões são dignas de horas e horas de psicanálise. Se algum gatilho tiver te pegado desprevenida, não hesite em procurar ajuda.
Assistam, passarinhos. E saiam da caixa.
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Remédio Amargo
2.8 268Embora outros clássicos espanhóis contemporâneos do gênero como “O Poço”, “Um Contratempo” e “O Corpo” possam ser colocados, merecidamente, numa prateleira acima, o cardápio da Netflix ganha mais uma boa opção para os adeptos do coração acelerado sem a frescurada do cinema americano.
A premissa já parte de um lugar interessante. O protagonista Ángel (Mario Casas), um profissional de primeiros socorros que não faz a menor questão de ser agradável, vive a bordo de uma ambulância resgatando acidentados entre escombros e ferragens, até se deparar com uma abrupta inversão de papeis.
Logo na primeira parte do filme, é flagrante a intenção do diretor de moldar a personalidade do seu protagonista no limite da linha do socialmente aceitável. Entre um furto e outro a cada resgate, o absoluto desprezo pelas pessoas de modo geral e o comportamento possessivo com a sua namorada, Vane (Déborah François), os traços mais obscuros de Ángel vão sendo revelados a cada olhar sombrio de uma atuação acima da média.
No momento em que, ironicamente, Ángel sofre um grave acidente no exercício da sua profissão, sendo fadado a viver sob as rodas de uma cadeira, toda essa amargura acaba se misturando com as inseguranças do lento processo de adaptação e um personagem repleto de demônios criados por si mesmo passa a sucumbir a sua própria personalidade doentia.
Seguindo um ritmo que, ao meu ver, não é lento e se reveste de tensão durante praticamente todo o filme, nós acabamos sendo imersos nas obsessões cruas da masculinidade tóxica, até sermos afogados pela ótima fotografia que cria no apartamento do casal uma incômoda experiência de aprisionamento.
O pecado capital do roteiro é fazer do ciúmes delirante do nosso protagonista, Bentinho, e da ruptura da relação doméstica abusiva de Vane, Capitu. Simplesmente não deveria haver qualquer espaço para reflexão que suporte a tese de que uma coisa leva a outra.
De pouco importa como eram as interações sociais de Vane. O filme ilustra o florescer da psicopatia de um sujeito obcecado pelo sentimento de posse que exercia sobre a sua companheira, desde as fodas agressivas e os beijos babados fora de contexto, à perseguição sociopata e o cárcere privado.
Colocar Ricardo (Guillermo Pfening), pasme, o motorista da ambulância no fatídico dia do acidente de Ángel, como novo par de Vane, no momento em que a moça finalmente conseguiu se desfazer da relação perniciosa, traz aquele ar de “traiu ou não traiu?” que só faz por justificar o injustificável, exatamente como acontece na vida real. E na vida real morre mulher todo minuto por conta disso.
Como eu acabei ficando bastante estressado com o retorno esdrúxulo de Ricardo à história, eu precisava de um elemento que renovasse as minhas expectativas. E ele veio. Em forma de trilha sonora.
O jogo musical entre “L’Hymne à l’amour” de Édith Piaf e “Un sip of champagne” de Los Brincos, deram um tom lúdico sensacional, e não menos perturbador, às últimas curvas torturantes antes da virada final que de tão clichê, saciou a minha sede de vingança.
Sigo a favor da romantização da psicopatia no cinema. Com bom senso.
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Santana
2.5 6 Assista AgoraAntes de questionarmos a qualidade de mais um longa de ação exageradamente preocupado em forçar situações de confronto ao invés de estruturar um roteiro capaz de nos proporcionar a tensão de maneira natural, Santana, primeiro filme angolano a ser disponibilizado na plataforma da Netflix, traz um caráter pioneiro que agrega valor à obra.
Dirigido por Maradona Dias dos Santos & Chris Roland, a obra já começa revestida de uma representatividade necessária que pode abrir espaço para que outras narrativas, além do eixo ocidental, sejam mais comumente consumidas por um espectador desinteressado em maiores problematizações. No dia em que dar play em um filme africano, por si só, for algo comum e não significar muita coisa além da busca pelo entretenimento, poderemos mudar a altura do sarrafo.
Beleza? Show. Pois bem, eu que não sou um consumidor assíduo do gênero, percebi que a qualidade das cenas de ação é um tanto quanto duvidosa e, até certo ponto, mal aproveitada, mas o que mais me incomodou foi a construção rasa dos personagens, que parecem distantes uns dos outros até que são entrelaçados pelo objetivo maior do filme que é a porradaria.
Com o nhenhenhem do "baseado em fatos reais", Santana conta um pedaço da história de dois irmãos, Dias (Paulo Americano) e Matias (Raul Rosario), um agente da divisão de narcóticos e um general respeitado, que acabam descobrindo a identidade do responsável pelo assassinato de seus pais, há mais de 35 anos, e partem em busca de vingança, cada um da sua maneira.
A partir desta premissa, surge uma história que acaba deixando o seu potencial para escanteio por não construir bem a personalidade dos principais personagens, se mostrando muito mais preocupada em se utilizar dos elementos clichês do cinema padrãozão, abusando de uma montagem pouco criativa e um tanto quanto desinteressante, em cenas longas e pouco amarradas.
Eu também me atrevo a dizer que é impossível assistir ao filme sem se incomodar com a mistura de idiomas totalmente despropositada que se vê em cena, o que já se tornou uma tradição da Netflix. Os diálogos que são passados na Angola ou na África do Sul, são violentados por trechos em inglês a cada meia dúzia de frases no português local. Parece aquele povo chato de colégio bilíngue que resolve "raciocinar" americanizando ao invés de conversar fingindo ser um ser humano normal. Um porre!
Eu não sei se o roteiro conseguiu exigir o nível de desatenção necessário para que as tentativas de reviravoltas pudessem fazer efeito na cabeça de alguém, mas a falta de vigor dos atores e a sempre exaustiva sexualização das personagens femininas, dentre elas, a estrela angolana Neide Van-Dúnem, me deram a receita do bolo muito antes da consumação desses plot twists frustrados a medida em que os longos 106 minutos de filme iam chegando ao final.
Entre a violência gráfica clichê, as batidas de carro tragicômicas, os chefões falando grosso no escuro, os policiais super-homens, os bumbuns de fora e os defeitos especiais, eu confesso que não vejo Santana numa prateleira muito inferior a outros filmes do gênero. Se você dá play em qualquer coisa que o algoritmo do streaming te indica, vale a pena prestigiar esse filme angolano, que tenta brincar de Hollywood, mesmo com uma cotação muito diferente dos Velozes e Furiosos da vida.
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Fogo Sombrio
1.1 19 Assista AgoraQue elementos uma obra precisaria ter ou deixar de ter para ser considerada a pior película do mundo? Um roteiro sem qualquer caminho lógico evolutivo? Uma montagem caótica? Diálogos dramalhões à lá “A Usurpadora”? Barulinho de porta rangendo e gota d’água pingando na tigela em momentos completamente desapropriados? Cenas de luta corporal tão patéticas quanto as inexplicáveis fodas mal dadas? Saturação demasiadamente alaranjada? Hologramas terríveis?
Bom, eu vou encarar essa crítica como um grande gesto de generosidade. Mastiguem cada palavra como se fosse uma profunda demonstração de altruísmo, pois os pouco mais de oitenta minutos de Fogo Sombrio, novo thriller mexicano da Netflix que mais poderia ser discutido como mecanismo punitivo ao invés de entretenimento, eu não desejo nem para os meus piores inimigos.
Pelo que me foi possibilitado inferir da premissa do filme dirigido pelo mexicano Bernardo Arellano, o protagonista Franco (Tenoch Huerta), uma espécie de criminoso renegado, está a procura de uma parente sequestrada até que resolve se hospedar, sem maiores explicações, em um hotel macabro que serve de abrigo a um elenco digno da temporada mais espetacular do reality show “A Fazenda”.
Tem bizarrice para todos os gostos. Além do canastrão bigodudo, temos a femme fatale Rubi (Eréndira Ibarra), anões, zarolhas, prostitutas, cafetinas, mestre dos magos, médium albina, vampiros, demônios e mais o que você quiser. Sempre munidos do figurino mais antiquado possível e de uma maquiagem rivalizando breguice com o penteado.
Depois deste encontro assíncrono, pasmem: essa trupe acaba sendo interligada por uma grande lesma em formato de pênis com dentes afiados. Sim, é esse o elemento ritualístico genial que a direção encontrou para hospedar nos protagonistas a ideia de possessão em cadeia e representação do mal. Não existem palavras capazes de descrever tamanha bizarrice.
Como se não bastasse a nojeira, nada tem lógica. A montagem, a direção e o roteiro parecem ter sido feitos pelo mesmo adolescente satanista durante alguma dessas apresentações góticas repletas de mau gosto.
Previsivelmente tudo acontece de noite e o tratamento visual dado pela iluminação horrorosa destrói os resquícios de cenografia bem estruturados que poderiam ser valorizados pelo espectador cansado da fotografia escura.
Com o trash de meio século atrás e a tosquice das novelas mexicanas dos anos 90 competindo firme pelo prêmio de segundo pior elemento do filme, surgem as cenas de ação, os símbolos esotéricos e o misticismo sem pé nem cabeça pra acabar de vez com o bom humor de qualquer um que deu play nesta aberração da Netflix.
Eu confesso que muito antes do desfecho já tinha me perdido há muito tempo e mal conseguia me concentrar em quaisquer dos personagens, mas o parasita sobrenatural em formato de rola-molusco, passando de garganta em garganta, mantinha uma sensação letárgica de “aonde é que esta merda vai dar” que me impediu de desistir antes da última cena.
Pois eu deveria ter desistido.
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Na Solidão da Noite
3.5 10 Assista AgoraAssim como em tantos outros filmes de investigação criminal que eu definitivamente tenho pouquíssima paciência para assistir, Na Solidão da Noite parte daquela premissa clássica do “Quem matou Lineu?”: um corpo e uma porrada de suspeitos. Thakur Raghubeer Singh, um poderoso empresário indiano, foi baleado e coronhado durante a sua noite de núpcias e há tantos potenciais assassinos quanto membros da família, quase todos eles com algum motivo pra dar fim ao velho. É quando entra em cena a figura do investigador Jatil Yadav, o protagonista do filme. O policial eternamente rejeitado por noivas em potencial, é a figura do agente da lei honesto e aficionado pela busca de todos os elementos do quebra-cabeça.
Com diversas camadas, a história é cheia de reviravoltas que buscam fazer com que o espectador duvide de todas as partes em algum contexto específico. O roteiro caminha em seu próprio ritmo para desembaraçar a teia, afinal de contas, são quase duas horas e meia de filme, e só depois de um tempo considerável é possível perceber que encontrar o criminoso não é a única coisa que realmente interessa nessa história.
O diretor Honey Trehan se utiliza muito bem dos elementos de tensão para emoldurar um duro retrato do patriarcado. As figuras masculinas do filme oscilam entre autoridades intocáveis a estupradores, traficantes de pessoas e assassinos. Já as mulheres, independentemente do seu status de esposa rica, vassala da família ou prostituta, são alegorias, meios para a reprodução desse poder, sempre abusadas e intimidadas de acordo com a conveniência.
O roteiro vai se tornando mais pesado conforme os corpos vão se amontoando e as demonstrações de ganância, corrupção, politicagem e imoralidade vão sendo nutridas e trazendo consequências práticas dentro daquelas relações.
Somos constantemente apresentados à facetas obscuras de personagens que sempre parecem estar escondendo alguma coisa. O casarão dos Thakur, com longos corredores, panos esticados, escadas nos fundos e decorações luxuosas, é uma grande personagem por si só. É lá que as mulheres parecem enclausuradas numa espécie de masmorra travestida.
O relacionamento entre o investigador Jatil e sua mãe, interpretada por Ila Arun, fornece os poucos tons de humor do filme. Tudo o que ela quer é que ele se case e o policial está determinado a encontrar uma moça decente, mas, evidentemente, durante o curso das investigações, esse conceito de “decência” vai sofrendo algumas flexibilizações um tanto quanto previsíveis, permitindo que uma atmosfera de romance fosse desabrochada.
Na Solidão da Noite é uma tentativa sincera de enigma de detetive, mas se preocupa muito mais em escancarar pistas do que nos brindar com um suspense fora da caixinha. Tudo é extremamente mastigado, não havendo margem para um pingo de mistério ou ambiguidade quando as letrinhas sobem no final. A maneira com que entrelaça política e relações de abuso com o enredo central da investigação é apreciável, mas o filme peca pela vasta lista de clichês, pela falta de relevância de vários personagens e por uma edição tão expositiva que me chegou a dar saudades dos episódios do “Linha Direta”.
Aquele programa sim era tenso.
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Anne Frank: Parallel Stories
4.0 44Eu sei, parece que foi em outro mundo, mas a nossa distância para a angústia contida nas palavras que Anne Frank narrou em seu diário não chega a ter nem oito décadas. Eu devia ter uns treze anos quando tive o meu primeiro contato com a obra da menina alemã de família judaica que se manteve escondida com os pais, a irmã e outros judeus em um anexo secreto no prédio onde o pai trabalhava, por mais de dois anos. Sua obra é um relato jovial que mostra a passagem da infância para uma adolescência imersa em condições extremas de horror, no período mais perverso da história recente da humanidade, quase sempre sob a perspectiva turva do que era possível deduzir através do que se ouvia nos rádios.
Anne Frank teve a ideia de escrever um livro depois de surgir uma notícia que incentivava as pessoas a documentarem seus eventos pessoais ligados à guerra, uma vez que, futuramente, este material teria algum significado histórico. Ela pincela em seus escritos tudo o que se passava no cotidiano dos fugitivos, não se abstendo de divulgar seus conflitos familiares, bem como revelar aspectos mais íntimos do despertar da sua sexualidade em meio ao medo incessante de ser encontrada pelos nazistas.
Setenta e cinco anos depois daquela menininha questionar a sua própria capacidade de “escrever algo grande”, cá estamos em #AnneFrank – Histórias Paralelas, documentário dirigido por Sabina Fedeli e Anna Migotto que busca entrelaçar as páginas históricas daquele diário com a vida de cinco sobreviventes: Arianna Szörenyi, Sarah Lichtsztejn-Montard, Helga Weiss e as irmãs Andra e Tatiana Bucci.
A direção da obra é bastante simples. De um lado, Hellen Mirren (Vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Rainha” em 2006) é a responsável por narrar um pouco da vida de Anne Frank através das páginas do seu diário, que é um dos principais textos responsáveis por tornar a tragédia do nazismo conhecida por milhões de leitores ao redor do mundo. Do outro, cinco histórias de mulheres em idades ou circunstâncias parecidas com as de Anne, ilustrando um pouco das terríveis experiências que foram obrigadas a viver. A maneira com que esses paralelos são traçados é crua e dolorosa, mas foi possível sentir a dor sob uma perspectiva luminosa, sem jamais distanciar as feridas latentes do contexto da tragédia.
A obra ainda conta com outro elemento interessante. Como a fotografia percorre diferentes paisagens por onde Anne Frank passou ou que foram importantes ao longo da sua trajetória, resta a @KaterinaKat (Martina Gatti) a responsabilidade de guiar os espectadores ao longo desta viagem. Assim como Frank, @KaterinaKat também tem o seu diário. Aquele chato, que apita, conta like, aguça a ansiedade e acaba com a saúde mental.
Como a própria hashtag do título tenta induzir, a ideia é que fotos carregadas no Instagram, um toque visual e moderno dado pela personagem, sejam capazes de atrair jovens que ainda desconhecem a história de Anne Frank. Embora soe tosco e eu ache brega, é possível que tenha sido útil.
A fotografia que passa por Paris, Amsterdã, Terezín e Bergen-Belsen é muito bem feita. Juntamente com o material de arquivo, é possível combinar um retrato pessoal e rigoroso do que essas experiências significavam à nível bárbaro.
Contudo, o bem mais precioso deste trabalho é o testemunho humano. Enquanto Mirren e Gatti trazem momentos emocionantes para a tela, com destaque para a narradora que se desdobra para controlar todas as emoções que emanam do livro através da sua dicção e ritmo narrativo excelentes, os mais comoventes certamente vêm das cinco sobreviventes que são entrevistadas ao longo de uma hora e meia. As vozes daquelas cinco mulheres imensamente fortes e corajosas são acompanhadas por relatos de rabinos, historiadores, psicólogos, músicos, jornalistas, fotógrafos e responsáveis pela casa de Anne Frank. São diferentes camadas que se unem para tentar nos manter em constante estado de alerta, traçando um elo entre a crueldade da Segunda Guerra Mundial e as relações de ódio, abuso de poder, discriminação, racismo e antissemitismo que insistimos em contemporizar em pleno ano de 2020.
Em tempos de pandemia e flerte com o fascismo, #AnneFrank – Vidas Paralelas merece ser visto e é bom que doa ainda mais.
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Wasp Network: Rede de Espiões
3.1 116 Assista AgoraDirigido pelo francês Olivier Assayas, cujo entusiasmo cinematográfico costuma permear a interseção de grandes questões políticas e peculiaridades de cunho pessoal, buscando intensificar emocionalmente os seus personagens, Wasp Network: Rede de Espiões nos apresenta uma narrativa fundamentada em um pouco de muita coisa e em muito de quase nada.
O excelente elenco que deveria exalar borogodó latino com a cubana Ana de Armas, o brasileiro Wagner Moura, o mexicano Gael García Bernal, o venezuelano Edgar Ramírez e a cereja do bolo, a espanhola Penélope Cruz, se afasta da direção à medida em que a salada de situações inorgânicas vai sendo temperada.
O filme nos transporta para Havana, em meados da década de 90, quando René González (Edgar Ramírez), um piloto de avião cubano, furta uma aeronave de pequeno porte e foge de Cuba, deixando sua esposa Olga Salanueva (Pénélope Cruz) e sua filha sem maiores explicações iniciais.
Ao dar início a uma nova trajetória em Miami, logo outros desertores cubanos como Juan Pablo Roque (Wagner Moura), chegam ao território norte-americano sob a premissa do exílio político e dão início ao auxílio no resgate de compatriotas que fogem do país em busca de liberdade.
Embora o título do filme já sirva como spoiler, somente depois de uns bons oitenta minutos ele revela vagamente como tudo fazia parte do plano da Rede Vespa, criada pelo governo de Fidel Castro, para monitorar a ação de organizações violentas responsáveis por ataques terroristas em pontos turísticos da ilha.
A ideia é abordar essa teia que foi tecida durante o período pós-Guerra Fria, quando espionagem e contra-espionagem eram descaradamente os principais motores desse tipo de monitoramento internacional.
O que parece ser pano pra manga de uma série inteirinha, acaba por se reduzir a uma obra desorganizada, obrigando o espectador a permanecer exaustivamente atento a detalhes que sequer existem, com medo de se perder no enredo.
Uma infinidade de contextos paralelos e pouco aprofundados são ligados pela péssima montagem que só serve para irritar o espectador. Embora haja algumas premissas interessantes em parte dessa relação entre Cuba e Estados Unidos, o diretor peca ao descontrolar a evolução do filme e permanece em cima de um muro que nos confunde com relação ao que foi registrado pelos livros de História.
O mais irônico é que isso tudo parece cansativo pelas duas horas, ao mesmo tempo em que soa curto pelo emaranhado de propostas. Apesar do elenco de peso, não houve espaço para o desenvolvimento das personagens, com menção honrosa à Penélope Cruz e Ana de Armas, ambas se destacando nas migalhas que o roteiro lhes proporcionam, em um contexto tosco de mulheres coitadinhas abandonadas pelos conjes. Não há português que traduza tamanho potencial jogado na lata do lixo.
É preciso pontuar, ainda, que a obra passa por diversos gêneros distintos sem causar muita empolgação em qualquer um deles. Não há quase nada de tensão, de ação, de drama, de suspense, mas há um pouco de tudo. Pau mole do início ao fim.
O fator atraente de Wasp Network: Rede de Espiões é a inegável qualidade visual ao recriar algumas paisagens paradisíacas usufruídas pelo turista em Havana, mas sem desfocar a posição de privilégios usurpados dos cubanos em seu dia a dia. A realidade pomposa de Miami também é visualmente sedutora.
No mais, aquilo tudo que não pode faltar: homens que colocam uma ideia turva de pátria acima da própria família, defesa do socialismo cubano regada a muita Piña Colada em Miami, ausência de limites na profusão do imperialismo americano, algumas toneladas de cocaína pra fazer caixa, slogan de liberdade através do medo e cena de Wagner Moura e Ana de Armas pelados.
Eu shippo esse casal.
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The Last Days of American Crime
1.7 97 Assista AgoraMe desculpe interromper o silêncio da sua viagem, mas precisamos conversar sobre um dos filmes mais constrangedores da história recente desta Terra plana. The Last Days of American Crime, que de tão ruim sequer foi traduzido para o português, é um novo longa da Netflix que parte de uma premissa distópica de ficção científica, com bastante cara de Black Mirror, e se afoga na tentativa frustrada de repetir a fórmula de sucesso desses filmes que passam na Tela Quente.
A história é ambientada em uma cidade situada na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, na semana em que o governo americano implantará nacionalmente a denominada “Iniciativa de Paz Americana”, que consiste na transmissão de um sinal capaz de interferir na mente da população através de chips, impedindo que as pessoas consumem qualquer espécie de conduta criminosa de maneira consciente. As controvérsias sobre o procedimento e o prazo iminente para a sua aplicação intensificam o estado de caos social e potencializam a tentativa de migração da população para o país vizinho.
O que não parece ser um pano de fundo ruim (inspirado pelo quadrinista Rick Remender, que teve a sua obra homônima adaptada), já para por aí sem qualquer aprofundamento sobre os processos neuroquímicos dessa medida revolucionária ou seus possíveis desdobramentos legais capazes de garantir a sua eficácia. O roteiro de Karl Gajdusek não faz a menor questão de explicar se todos os cidadãos estariam obrigados a implantar os chips ou se apenas os sujeitos fichados seriam controlados. O seu texto paupérrimo sequestra essa premissa para tentar justificar a vergonha alheia que viria pela frente.
Finalmente chegamos ao protagonista Graham Bricke (Edgar Ramírez), um criminoso de carreira, cheio de inimigos, cujo irmão mais novo supostamente teria acabado de cometer suicídio na cadeia. Mais uma vez o roteiro falha miseravelmente ao tentar construir o entediante Bricke como o anti-herói da trama. Vale destacar a atuação regular de Edgar Ramírez… Seu personagem tem uma única expressão ao longo das duas horas e meia de filme, seja encurralado pelos rivais, sendo espancado, sendo queimado, sendo fuzilado ou mesmo fodendo.
Quando o caminho do protagonista se cruza com o de Kevin Cash (Michael Pitt) e Shelby Dupree (Anna Brewster), o festival de bizarrices se multiplica. De uma hora para a outra, Bricke é informado sobre a morte de seu irmão, é abordado aleatoriamente por Shelby em um bar, os dois transam no banheiro, Kevin surge como companheiro de cela do falecido, apresenta Shelby como sua esposa e revela ter um último grande assalto planejado que permitirá que Bricke se vingue do sistema que arruinou a vida de seu irmão. Sim, isso tudo em uma cena.
Com a totalidade de zero argumentos minimamente bem elaborados, o casal convence Bricke a participar de um plano para roubar um bilhão de dólares (rs) e fugir para o Canadá antes que o sistema entrasse em pleno funcionamento. O resultado disso é uma trama atropelada, repleta daquelas sequências esdrúxulas em que alguém surge do nada para limpar os problemas, não há qualquer diálogo interessante e a grande disputa é pelo Oscar de personagem mais detestável.
O Kevin Cash de Michael Pitt mistura o pior cosplay de Travis Bickle (“Taxi Driver”), se inspira numa caricatura de Tony Montana (“Scarface”) e toma doses homeopáticas de Jesse Pinkman (“Breaking Bad”). O resultado é uma salada de clichês impedida de ultrapassar a gritaria e os péssimos bordões. A cereja do bolo é a cena durante aquela confraternização familiar. Gostaria que Mr. Quentin Tarantino pudesse tecer alguns comentários sobre um dos momentos mais patéticos que eu já pude assistir.
Mas a Shelby Dupree de Anna Brewster também não deixa a desejar. A personagem que deveria ser daquelas mulheres fatais, bandida enigmática e sedutora, é hostilizada por uma direção que mais parece a visão de um adolescente idiota sobre a contextualização de uma personagem feminina em um filme de ação. Alguém que figura exclusivamente para satisfazer vontades sexuais ou colocar tudo a perder. O seu papel como hacker especialista também não tem qualquer aprofundamento.
É preciso mencionar, ainda, uma espécie de subtrama envolvendo o policial William Sawyer (Sharlto Copley) que não tem absolutamente nem pé, nem cabeça. Nenhuma de suas motivações e paranoias são demonstradas. A única transmissão feita através de suas cenas é o seu amor pela profissão. Quando o seu caminho se cruza com o dos protagonistas, o obstáculo é simplesmente superado. Um desperdício de personagem que vai do nada ao porra nenhuma.
Quando tudo já estava mais do que perdido, me lembrei do que poderia salvar esse show de horrores e transformá-lo em mero entretenimento vazio (o que já estaria de excelente tamanho): a ação.
Meus amigos, parece implicância, mas cada corpo perfurado necessitava de uns mil tiros disparados. As sequências são picotadas, porém intermináveis. Tudo é extremamente cafona. A montagem é tão ou mais perdida que a direção. Eu juro por Deus que a minha capotagem na vida real foi dez vezes mais empolgante que as do filme.
E uma grande obra não poderia se despedir sem um grande desfecho:
quase todo mundo morto e um bilhão de dólares abandonados na caçamba de um caminhão.
Acho que nem o Choque de Cultura será capaz de salvar esse The Last Days of American Crime.
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Betaal (1ª Temporada)
2.6 30Antes de mais nada, eu me sinto na obrigação de confessar que o tesão por zumbis nunca foi um fetiche que me fisgou. No auge do meu ócio, eu segui incapaz de dar play em obras como “Walking Dead”, “Resident Evil” ou “Zumbilândia”, então a análise nada técnica deste lançamento vai ser feita com doses ainda mais cavalares de cagação de regra e antipatia.
Pois bem. A ligeiríssima primeira temporada de Betaal, série indiana de terror original Netflix, busca construir algumas pontes entre as crenças de seus povos e um cenário histórico de independência, contextualizando as suas desigualdades ainda latentes por meio de uma abordagem com críticas sociais implícitas.
Numa pequena aldeia localizada ao lado da Montanha Betaal, a população nativa supostamente garante a manutenção de uma divindade perigosa enclausurada em um túnel. Quando o governo ordena à Surya Construction que desenvolva uma via expressa nesta região, toda a problemática do roteiro está montada.
Ajay Mudhalvan (Jitendra Joshi), o empreiteiro ganancioso, contrata uma espécie de Bope indiano para fazer a limpa no local e, inexplicavelmente, leva a sua esposa e filha nesta missão. Os moradores tentam impedir a reabertura da passagem construída pelos britânicos durante a guerra, mas depois de um clássico banho de sangue, a antiga maldição acaba sendo invocada.
Descobre-se então que o antigo coronel inglês Lynedoch (Richard Dillane) e os seus soldados haviam sido enterrados vivos no túnel e agora estariam dispostos a reconquistar a Índia. É a partir deste momento que a equipe de elite contratada para evacuar o local passa a ter protagonismo na trama, encabeçados pela comandante Tyagi (Suchitra Pillai) e pelo seu subordinado Sirohi (Vineet Kiinumar), aquele clássico personagem de herói que precisa se redimir de seus pecados do passado.
Revestido da minha petulância ocidental, arrisco a dizer que todo o quadro histórico abordado até então serve como mero pretexto do roteiro para dar o aval que a direção precisa para imergir aos elementos mais bregas do terror, com direito a muito sangue espirrando, cabeça girando, faca no pescoço, fotografia quase toda no escuro e sustinhos barulhentos. É exatamente aí que o caldo entorna. A evolução da história me pareceu extremamente confusa e forçada, sem que fosse possível alcançar um suspense de zumbis, e que tampouco gerou a tensão necessária em detrimento das nuances de espiritualidade e possessão.
Ao que me consta, os zumbis geralmente são retratados como seres mortos-vivos, o que não deveria ter relação com aqueles soldados de infantaria possuídos pelo coronel endiabrado, funcionando como meros fantoches. Não vou nem gastar saliva com a composição terrível das criaturas. Uns canibais esquisitos com dentes de vampiro e olhos vermelhos brilhantes diretamente de quatro décadas atrás.
Assim como os encapetados, os outros personagens da série também são facilmente manipulados, não possuem profundidade e estão presentes apenas para vincular um conjunto básico de instruções sem qualquer tipo de peculiaridade nos diálogos.
A composição em quatro episódios não é o maior dos defeitos da série, mas torna inevitável o questionamento: “essa porra não poderia ter tido o formato de longa?”. Caso de fato haja uma segunda temporada, conforme o último episódio tenta sugerir, será interessante ver em que direção o roteiro seguirá e se conseguirá reverter o dano causado pela preguiça de seus idealizadores. Há algum potencial escondido nas questões mais folclóricas da trama.
Como mais vale um passarinho na mão do que dois voando, para evitar qualquer tragédia, eu deixaria Betaal presa dentro do túnel.
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