Últimas opiniões enviadas
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Assistir à primeira temporada de true detective é como tentar caminhar por uma estrada enlameada, descalço, e na atmosfera a lhe cercar, uma fumaça viscosa com gosto de cinza-alumínio. Somos convidados, então, a chafurdar no mesmo pântano em que estão todas aquelas vidas miseráveis que erigem a cada segundo diante dos nossos olhos.
Durante quase oito horas o que se nos apresenta a todo instante é um tratado acerca dos rejeitados; os invisíveis corpos que somam-se aos gazilhões em nosso mundo, sobre os quais pomos os olhos todos os dias sem realmente vê-los (como “cegos que veem sem ver” diria um literato lusitano).
“Once there was only dark. If you ask me the light’s winning”. Não é, com efeito, fortuito que a personagem em cuja boca é colocada o maior número de juízos pretensamente pessimistas - ou chamaremos realistas, talvez - será também aquela que porá um traço crisântemo no lodo em que chafurdam as pessoas na tétrica Louisiana do seriado. Mas eu julgo que o personagem de McConaughey não é nem realista, como proclama, nem, tampouco, um pessimista. A jornada de Cohle só poderia ser empreendida por um otimista renitente.
A mim, o que mais fica à mente depois de tantas vezes em que retornei a este lodo, é a conclamação de Rust por responsabilização; que tenho considerado o tema principal da série. No último episódio Marty diz a Rust, buscando sua anuência, “that it wasn’t your choice, you were drunk”, mas o que ele recebe de volta é a mais perfeita síntese de Rust Cohle "everybody got a choice, Marty”. Em todos os episódios vemos pessoas com discursos de desresponsabilização de si, mas, enfim, quem dá o juízo final é mesmo o otimista.
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Cultivei ao longo dos anos particular afeição por composições artísticas de cunho memorialístico; e, conquanto haja outras que fascinem-me muitíssimo no que concerne ao cinema , nomeadamente, “O Espelho” (Tarkovski) e “Morangos Silvestres” (Bergman), creio que aqui encontro o meu mais seguro refúgio.
Impressionou-me à primeira vista - e ratifiquei a impressão nesta segunda - a forma como as cenas são reencenadas aos olhos da Ana; como que a entremearem-se, mesclarem-se, de modo a produzir seu sentido a partir da interação dos diversos dados sensoriais que perduraram enquanto reminiscências. Como um Proust à madeline, os ensejos para o desencadear duma cena de outrora culminam nas cenas que seguem a esta e confundem-se, conseguintemente, com a anterior, na medida em que compartilham um nexo afetivo.
Intriga-me sempre perceber os mecanismos nos quais o intento artístico arvora-se a fim de reproduzir algo análogo à reconstituição mnemónica dita “real” (ainda que seja talvez inadvertido julgá-la como tal), exercício sempre hercúleo, na medida em que somos, via de regra, pouco efectivos na transcrição estritamente verbal do pensar que toma o passado como protagonista e, nesse sentido, este filme é mesmo uma façanha notável!
Últimos recados
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Edkalume
Tudo certo Daniel?
Escrevendo pra saber se você teria interesse de participar de um grupo de whatsapp sobre cinema.
Se sim, me dá um toque e a gente conversa. -
Wesley
Bem vindo!
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Maria Pepe
Grotowski é sensacional! Você já leu algo dele?
“O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…“
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), Aniversário.
Os Ventos de Anarene hão de corroer tudo quanto se move, - e algo daquilo que não pode fazê-lo também - enodoando as relações afetivas todas, sem misericórdia. Mesmo aquilo no qual há suposto vínculo intrínseco é reduzido às cinzas, parecendo-nos mesmo que na tétrica cidade texana nada sobreviverá.
Uma coisa ressoa-nos por demais evidente, não há valor que tenha perdurado de pé diante de tantos açoites do Tempo que, sob forma de um zéfiro excruciante, inexorável expressão da natureza, esgueira-se por sobre todas as almas degradando-as; espreita mesmo aquelas mais lívidas e, enfim, tomará também pra si Sonny, quiçá único indivíduo advertidamente chamado “vivo” em toda a cidade. Como espectadores do declínio de uma civilização, tomamos também parte dessa, e nossas esperanças, com a de todos os outros, agora pares nossos, deverá atingir a nulidade. Está feito, compusemos a peça.
Se o que encontra-se dentro dos limites das casas carcomidas do restrito povoado está, paulatinamente, dissolvendo-se, - trem descarrilhado que é conduzido por um maquinista anódino rumo ao lugar nenhum - como cimo cuja erosão gradualíssima se estende ao longo dos milénios conquanto a redução absoluta mostre-se intergiversável no porvir, noutro plano, paralelo, esse mesmo Tempo que açoita também aprisiona, restringe, limita.
A bem da verdade haverá quem consiga D’ele escapar, um dos quais, talvez, em direção a um abismo mais lacónico; a outra, se de fato obterá sucesso no ardil, terá cobrado uma alma para tal; não fosse sua mãe, cuja existência acabou por ser dilacerada e reduzida a um resíduo insignificante e quase insuficiente para o movimento, não soa lá muito verossímil que Jacy teria futuro dos mais alvissareiros. Alvíssaras em Anarene, dir-se-ia, só as trazem mesmo os irrefreáveis Ventos.