ALÉM DE PABLO (2023) – CRÍTICA Fui assistir ao filme sem ter lido nada, nem entrevistas, nem a sinopse. Sabia do tema: saúde mental, mas apenas isso. Logo, minhas impressões foram baseadas apenas nas imagens em movimento na tela.
Os primeiros minutos do Curta-metragem decupam o espaço em diversos planos detalhes. Fragmentam nosso olhar para mostrar o cuidado do personagem principal Pablo, interpretado por Ged Castro, com o apartamento e com objetos que caracterizam sua personalidade. Tudo excessivamente limpo, organizado, nem uma garrafa fora do lugar. Esse excesso de zelo, talvez aponte para o quanto o personagem está desorganizado internamente. Não conseguindo resolver os problemas internos, busca manter o ambiente em ordem, uma forma de escape para suas angústias.
Essa desordem mental é percebida, quando ele encontra a mulher com o filho no elevador. Tudo parece um sonho e confuso mentalmente. Tudo fica ainda mais suspeito, quando o vemos com as castanholas e quando ele fala do morador que precisa ir embora. É interessante todo esse jogo, essa dúvida, esse chamamento que o cineasta Ebner Gonçalves faz ao espectador. Ele o confunde, mas o esclarece, aqui talvez pudesse deixar dúbio, não explicar, instigar um pouco mais a dúvida, mas o objetivo da obra não é esse.
Pablo é um filme para expor e mostrar um problema: a necessidade de cuidado com a saúde mental, sacrifica assim algumas questões narrativas e estilísticas, esclarece outras para não restar nenhuma dúvida. Como uma obra que pretende ser educativa, não busca instigar dúvidas entre os espectadores. Isso explica os longos diálogos explicativos e como o suspense vai desaparecendo a medida que o filme vai encerrando. A impressão é um retorno a ordem. O ambiente organizado, harmônico do apartamento acaba tomando o espírito do personagem. A mudança de roupa, ele nunca tirava o roupão, também representa uma mudança de tom.
O filme não deixa dúvidas sobre qual personalidade era a correta, nem qual deveria ficar. Isso não nos impede de ficar com um certo desconforto, nem imaginar se a solução dada e a roupa usada, era realmente a correta. Talvez a personalidade qual ele tenta expurgar, não devesse ser expurgada.
Um elemento predominante no filme é a música, como sempre introduz ou fecha alguma sequência, isso antecipa nossos sentimentos em relação às cenas. É interessante para evocar suspense, mas perde um pouco da expectativa em alguns momentos. O espectador assiste à cena com um sentimento embalado pela trilha. Isso cansa um pouco.
A obra tem caras conhecidas do cenário cultural joinvilense, como o ator Robson Rodrigues, a artista plástica Nicole Leite e a apresentadora, Fabíola Bernardes. É interessante, como os cineastas da cidade tem certas preferências pelos mesmos atores, como eles sempre encaixam determinados rostos em algum personagem coadjuvante ou principal de seus filmes. Como se as obras sempre tivessem pensando neles. Assistir a um filme feito em Joinville e não ter um rosto conhecido de outros filmes, às vezes, surpreende. Trabalhar com os mesmos ajuda qualificar o trabalho, poupa tempo, mas impede de novos quadros de se formarem, cai em uma rotina. Escolhas de um filme são sempre políticas, isso vai desde a concepção do roteiro, a escolha dos atores até a produção do filme.
Ao fim, o filme tem assim um grande potencial educativo. Deve ser assistido nos cursos de psicologia e utilizado nas discussões sobre saúde mental. É uma obra com um cuidado meticuloso na arte e em tentar esclarecer nossa sociedade sobre um problema que assola diversas pessoas.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Um média-metragem sobre desenterrar o passado, expor as feridas e contar uma história pouco conhecida em Joinville
Em uma cena, no meio do filme, um grupo de idosos conta como era morar nos fundos do Cemitério Municipal de Joinville. Eles relatam tudo de uma maneira alegre. Sorriem, contam anedotas e afirmam muitas vezes como a vida era feliz naquela época. Segundo os idosos e entrevistados durante o documentário, ninguém sabia de toda a História do local. Sabiam da prisão durante a Segunda Guerra Mundial, mas não sobre o Abrigo de Alienados, o hospício.
É curioso, como um ambiente impregnado de histórias cruéis, também possa produzir memórias felizes. Ao sepultar parte do passado, os governos e as elites, quem construiu o Abrigo, permitiu ao terceiro grupo de moradores, policiais militares e suas famílias, construir uma vida feliz e alegre. Soa grotesco imaginar a felicidade de alguns em um ambiente onde muitas pessoas sofreram e morreram, mas essa cena, como todo o filme, nos provoca a pensar em como existem histórias sobre nossa cidade que precisam ser desenterradas. Como relata o historiador Dilney Cunha, existem muitos tabus sobre a cidade, questões às quais muitos preferem não lembrar ou esquecer.
O filme começa com cenas do Cemitério Municipal de Joinville, vemos diversos planos e ângulos das sepulturas, um local totalmente vazio. A música nos provoca um sentimento misto de tranquilidade e melancolia. Os letreiros, excessivos em alguns momentos, contam a História do Abrigo Para Alienados que existia ali.
A roteirista e pesquisadora, Mariana Zabot Pasqualotto, é quem conduz as entrevistas, realiza as pesquisas e faz as conversas. Ela é a personagem principal do filme. Durante várias cenas, ouvimos sua voz ou a vemos percorrer as pistas da instituição psiquiátrica que funcionou entre os anos de 1923 a 1942, em Joinville.
Apesar de ser um documentário, o filme divide uma tensão entre os tons de terror e melancolia, entre assustar diante da crueldade humana e nos provocar lágrimas pelo sofrimento alheio. As cenas encenadas por atores lembram fantasmas, essa impressão é reforçada pela imagem em preto e branco. Aqui, talvez estejamos sendo assombrados pelo passado; ou lembrados sobre o sofrimento dessas pessoas: incompreendidas, isoladas do mundo, presas e amontoadas em uma cela. Eram fantasmas ainda em vida, a morte apenas sacramentou o destino a qual a sociedade os havia condenado.
É uma escolha estética manter essas cenas em alusão ao terror, mas também estimular sentimentos de melancolia e revolta com as entrevistas, pesquisas e as conversas descontraídas. Um dos momentos tocantes é quando o pesquisador Lucas Muenster, descobre o destino da trisavó. A história dele ilustra como a mentalidade da época era de esconder qualquer indício de uma pessoa que não fosse “normal” na família.
É um exercício interessante assistir 1951 sobre a história do centenário de Joinville e depois assistir Memórias Invisíveis. Com essa dupla, o cineasta mostra duas cidades diferentes, duas situações diferentes e o motivo da relevância do cinema para a História e a memória de nossa cidade.
1951 – Crítica Discursos saudosistas sempre me preocupam, pois são carregados de sentimentos. Emocionam, nos tocam, inflam as massas e pintam o passado de uma forma extremamente idealizada. O documentário 1951, sobre as festividades do centenário de Joinville, me parece calcado em uma memória saudosista da cidade. A voz over e as entrevistas seguem uma mesma linha editorial, sem divergir em nenhum momento. Todos os entrevistados, que viveram as festividades falam sempre de uma cidade pacata, sem agitação, de um tempo onde tudo era melhor.
A obra é um exercício para o entendimento do papel do narrador no cinema, um personagem que conta a história, que guia o espectador por cada lugar e direciona seu olhar para um ponto de vista. Ele está evidente na divisão dos capítulos e na voz over, mas é na montagem onde esse papel é exercido de maneira transparente. O corte em cada fala de morador da cidade e a escolha de quem fala sobre os 100 anos, mostra o direcionamento para um discurso sem contradições e marcado pelo pensamento hegemônico da cidade.
O filme inicia com o discurso sobre as grandes mudanças no mundo no ano de 1951 e coloca Joinville no centro. Fala do pós-guerra, da industrialização e de seu centenário. A imagem do discurso de Getúlio Vargas reforça a importância dessas mudanças, mas durante o filme a perspectiva parece se voltar ao passado do cotidiano, sem tocar nas questões políticas e sociais de Joinville. A obra mantém a imagem reconhecida da cidade, sem questionar. Fala da cidade das bicicletas, do povo ordeiro e trabalhador, a imagem do Príncipe e a educação alemã. Mitos que existem apenas para um pequeno círculo. Quando falam do Rio Cachoeira, não existe nenhum questionamento sobre quando não se pode mais tomar banho, nem quem são os grandes responsáveis pela poluição. O único conflito e divergência durante todo o curta é sobre quem torcia para o América e quem era Caxias.
O filme segue assim uma linha transparente, sem surpresas na forma ou no conteúdo, isso torna a obra eficiente em transmitir sua mensagem. Mesmo se baseando principalmente em entrevistas, o cineasta Ebner Gonçalves consegue fugir do enclausuramento do olhar quando muda o ângulo e o plano da imagem dos entrevistados. As cenas em planos abertos são reservadas às imagens de arquivo e para o plano final. Não existe muito espaço, nem razão para som ambiente, logo a trilha segue o tom saudosista das falas.
A forma se adapta ao conteúdo das anedotas sobre um dia feliz para pessoas que compareceram na festa do centenário. Um após o outro, eles contam sobre como era o cotidiano da época e como foram felizes ali, talvez seja uma chatice minha exigir um outro ponto de vista, afinal em dias de festas todos querem esquecer dos problemas e apenas sorrir.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Maré de Conflitos (2022)- Crítica A destruição e o cuidado com o meio ambiente dividem as pautas nos meios de comunicação. A ênfase das notícias em preservar parece ser a mesma em destruir. Ficamos com uma sensação estranha, não sabemos se avançamos nos cuidados ou se estamos à beira de uma catástrofe climática. Esse sentimento de estranhamento provocado pelas notícias é semelhante ao assistir o documentário Maré de Conflitos, dirigido e roteirizado pelo jornalista Altamir Andrade.
A narrativa do curta-metragem nos revolta, mas também consegue nos tocar. Vemos inúmeros ataques contra o meio ambiente, mas também inúmeras belezas da Baía Babitonga. O mar, os mangues, as espécies de pássaros e peixes nos provocam um sentimento de deslumbramento. Fragmentada em planos gerais ou closes, a fotografia do filme consegue produzir uma narrativa sedutora. Quem não conhece os lugares, com certeza ficará tentado a conhecer e, muito difícil, quem mora na região, não se sentir orgulhoso.
A revolta surge justamente desse orgulho, pois vemos o quanto o discurso do progresso econômico, esconde, em alguns casos, a despreocupação com as comunidades e a região afetadas por essas ações. Navios, exportações, geração de empregos, portos são uma imagem comum aos olhos de um país produtor de commodities. Mas não é comum falar sobre como essas ações afetam o meio ambiente, nem o nosso futuro.
A visão do diretor está marcada por essa preocupação com o futuro. As falas no documentário são de quem defende os interesses das comunidades locais ou deseja preservar a Baía da Babitonga para as novas gerações. Professores e ambientalistas falam, mas a voz realmente importante e com peso são os pescadores. É quem dá a dimensão poética da imagem e consegue ilustrar a degradação do meio ambiente.
Mesmo com a saturação de informação, o corte do filme e a escolha das entrevistas conseguem traduzir a dimensão do problema, mas é a montagem que produz a síntese entre todos os discursos, não fica ponta solta.
O documentário consegue provar, como mesmo sendo um filme curto, 25 minutos no caso, se pode tratar de temas complexos e de forma aprofundada. Como também prova a grande capacidade do cinema como ferramenta educativa e militante. Um filme, seja curta ou longa, pode entreter, pode também nos emocionar, mas aqui ele revolta e nos desperta os olhos.
Passagem de Volta (2022) – Crítica Um longo período dedicado ao trabalho ou alguma responsabilidade de maneira intensa, sem nenhuma folga ou espaço para respirar, esgota qualquer pessoa. Mesmo os mais fortes, em algum momento se abatem e querem deixar de existir. É um sentimento comum, fruto do conflito entre o querer e o poder. Na maior parte das vezes, as pessoas aceitam não poder, enterram seus sonhos e esquecem. Quando isso não ocorre, nascem as frustrações e acabam vivendo uma vida amargurada, sem sentido e cheias de pesares.
O personagem principal do curta-metragem Passagem de Volta é uma dessas pessoas. Ele está suturado com o trabalho e no ápice do estresse. Não aguenta mais as brigas com a esposa e sente falta do convívio com a filha. Queria estar mais presente, mas para prover uma vida melhor para eles, precisa passar os dias fora. Parece não existir outra possibilidade, mesmo quando foge para ver o mar.
Apesar de parecer ser um homem com dinheiro, algumas atitudes nos forçam a duvidar da situação financeira do personagem. Na primeira cena, ele reclama do preço do café, mas após o cancelamento do voo, nada parece caro. Ele distribui dinheiro onde vai. Dá uma gorjeta à garçonete, interpretada por Ianca Michelini, e paga o dobro para o taxista, interpretado por Lucas Ukah. O esbanjamento pode ser fruto de um desprendimento, nada mais importa, mas também pode ser uma libertação. Quando ele vai beber uma cerveja, pois ele diz hoje poder, a pergunta é: quando não pode?
O motor narrativo do curta-metragem é o conflito interno do personagem, a trama avança quando o homem questiona as escolhas feitas em sua vida. O avião não ter decolado é apenas um empurrão. O filme prende nossa atenção e mantém nosso interesse vivo devido a condução da direção, quem consegue administrar durante toda a obra, o suspense sobre o destino do personagem.
Isso nós vemos, na forma da montagem, ao parecer recortar duas sequências e espalhá-las em uma linha do tempo. Pode ser confuso no início, bagunçar um pouco, deixar o espectador com dúvidas, mas nenhuma ponta fica solta. Durante todo o filme, por exemplo, uma cena funciona como um presságio de algo ruim, aparece, entre uma sequência e outra. Há também duas cenas dos pés, uma ao início e outra ao final. As duas conectam toda a narrativa.
O ator, Welington Moraes, consegue encarnar um personagem com mudanças bruscas de temperamento, mas com momentos de alívio. Quando caminha não vemos vida na forma de andar, nem força em seus gestos, parece um zumbi, se arrasta para os lugares. Isso muda quando estoura no quarto, explode com a esposa, mas fala tranquilamente com a filha, ao contar uma história de ninar. Ele demonstra um grande talento em convencer com as oscilações, como na praia, um momento que parece totalmente louco do personagem.
Ao retratar o dia estafante de homem de negócios, a diretora e roteirista, Fahya Kury Cassins, consegue mostrar como a rotina pode se tornar uma prisão e como isso tolhe toda a personalidade. Ela retorna a um assunto já abordado em seu outro filme, Fim de Tarde: o tempo dedicado a nossa felicidade e a quem amamos. Passagem de Volta, aprofunda o assunto, muda a abordagem e nos força a pensar sobre quanto tempo dedicamos àquilo que realmente importa.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O Panaca (2022) – Crítica Não há falas nos primeiros minutos do filme e isso incomoda muito, pois toda a construção das cenas indica uma tensão. Algo parece prestes a explodir e esperamos, como de costume, gritos de raiva e longos diálogos, mas não é essa a proposta da cineasta. Não é preciso de palavras para construir uma trama. A sétima arte concedeu ao ator a possibilidade de expressão por meio dos gestos, closes e planos detalhes. O cinema nos concede a oportunidade de “vermos e ouvirmos” o silêncio dos atores. E isso, o curta-metragem O Panaca, dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins, nos mostra.
A construção narrativa direciona o olhar do espectador para questionar as ações dos personagens. Todas as sequências nos levam sempre a terminar perguntando, por quê? O roteiro trabalha com as reações do público. Não sabemos se a traição foi o estopim para a violência do casal, aparentemente é a fuga, mas isso não está claro e não é um problema narrativo. Os fatos estão consumados e a cineasta deseja nos provocar a imaginar todas as consequências. Como ele fez? Ela está em perigo? Quem era a pessoa? As perguntas acumulam-se no decorrer da obra.
Quando o filme começa não precisamos nos esforçar para notar a preocupação da esposa, interpretada por Nara Nowischk. A ebulição da água na chaleira marca o fim da paciência. O olhar para o nada e a desatenção com a filha, interpretada por Júlia Hilger, sinalizam o nervosismo. Ela não consegue parar de olhar para o celular. A atriz consegue assumir o papel de uma personagem de corpo presente, mas com a cabeça nas nuvens, alguém consumida pelos próprios pensamentos.
Também não nos esforçamos para notar as emoções do marido, interpretado por Luciano Flora. Há um misto de sentimentos negativos transmitidos pelo personagem. Todos sinalizam violência. Quando ele segura o volante com raiva, como se enganasse alguém ou várias e várias vezes faz o sinal de não com a cabeça, imaginamos uma série de situações. O lugar em que ele aparece pela primeira vez e o carro sempre em movimento, sugerem algo ruim, como a roupa suja de sangue.
As perguntas sobre o casal aumentam quando assistimos aos flashbacks do marido. Ele está sempre com a filha. O clima das memórias é sempre feliz, como as cores do figurino destacam. Ao mesmo tempo, onde estava a mãe? Qual o motivo de ela não participar das memórias felizes com o marido e a filha? O celular nos mostra algo, não sabemos em detalhes, mas entendemos o problema e nossa atenção é direcionada a questionar as motivações e razões do casal. Tanto para a traição, como para algo pior.
A ausência da voz devolve ao cinema, a visualidade de sua origem, quando o som ainda não havia sido inventado. Claro, aqui a situação é bem diferente, existe o som diegético e uma trilha sonora original, composta por Anna Viliczinski. Isso não diminui o mérito de dois elementos essenciais para construção da narrativa, os atores e a montagem construída por Marcelo Eduvirge. Sem o elemento da fala, os atores foram obrigados a trabalhar o gesto, o olhar e a expressão corporal. Todas as cenas são organizadas para dirigir a percepção do espectador. O filme funciona e consegue atingir seu objetivo devido a montagem da obra ser construída na mente do público, com as sugestões e provocações da cineasta em cada plano.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Gritos do Sul (2022) – Crítica O fascismo representa a reação da burguesia contra toda a ameaça de levante da classe trabalhadora. As crises do capitalismo produzem as possibilidades de revolução e contra-revolução. A pequena-burguesia falida, hoje chamada de classe média, como o lumpesinato, conhecido como precariado, encontram nas posições reacionárias do fascismo um ponto de apoio à crise do sistema. Eles não desejam se tornar assalariados, nem querem ser parte da classe trabalhadora, acreditam ser autônomos e estarem em nível superior. O movimento fascista os infla contra todas as bandeiras progressistas, pois para tomar o poder precisa destruir quaisquer resquícios de organização popular que ameace os interesses do capital.
As semelhanças com o bolsonarismo não são casuais. Deus, Pátria e a Família era o lema de Hitler. Grupos neonazistas sempre flertaram com o ex-presidente. Suas bravatas mais inflamadas, como: metralhar os petistas, acabar com terras indígenas, atacar o MST, com os sindicatos e censurar a imprensa, também não deixam dúvidas sobre suas inclinações. Ele só não foi mais longe, por não encontrar o apoio necessário. A invasão do Palácio do Planalto e do STF demonstra disposição dos apoiadores, a depender da situação econômica e do próximo governo, esse grupo pode crescer e o bolsonarismo ressurgir. É sobre isso que o curta-metragem Gritos do Sul nos alerta, sobre o fascismo sempre a espreita…
Gravado durante a pandemia do Covid-19, nas cidades de Joinville e Campo Alegre, o filme retrata a situação política do Brasil, o negacionismo científico e as simpatias neonazistas de determinados setores da sociedade catarinense. Quem nunca pensou na política brasileira como um gênero de terror, talvez não conheça a história de nosso país. A Matéria prima sempre existiu, faltava imaginação para a narrativa, uma trama sem escapismo e enraizamento na realidade local. Tudo isso encontramos no curta-metragem dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins.
O filme narra a história de um casal catarinense e seu filho em um fim de semana no campo. Os dois aguardam ansiosamente para passar alguns dias em um chalé aconchegante próximo a natureza. No meio da pandemia, sair do confinamento e mudar de ambiente é tudo que eles mais desejam. Preocupados apenas em relaxar, os dois não percebem como estão sendo manipulados e guiados para uma armadilha. O passeio comum e despretensioso acaba se transformando em um pesadelo com consequências nefastas.
Não há nada de errado com o casal Maíra, interpretada por Ianca Michelini, e Eduardo, interpretado por André Ribeiro, mas em uma cidade pequena ou em um lugar com vocação provinciana de Santa Catarina, uma mulher loira de olhos azuis com homem negro, tendem a despertar olhares curiosos, ainda mais com um filho loiro. Não é difícil imaginar os pensamentos do casal de idosos ao vê-los juntos com a criança. Mais importante que notar as falas são os gestos. Descendentes de alemães e donos do lugar expressam uma mistura de sentimentos, entre o nojo e a raiva.
Gertrudes, interpretada por Nenê Borges, demonstra esses sentimentos ao tentar, a todo momento, se aproximar da criança, ignorando o pai e a mãe. Não é só o toque e as brincadeiras que incomoda, mas a forma invasiva de querer afastar o bebê dos pais. Gerson, interpretado por Sérgio Ubiratã, não perde tempo em destilar todo ódio, xenofobia e preconceito, acompanhado das fake news. Apesar de todo o ar de tiozão, a roupa com estilo militar assusta.
Ao contrário de Eduardo, que parece agir no piloto automático e sem pensar, Maíra parece estar sempre preocupada, mesmo que de maneira tímida, ela tenta alertar o companheiro sobre o perigo. Não gosta da aproximação do casal de idosos do filho, nem do fato do lugar ser diferente, mas o marido não liga. Ele prefere agir impulsivamente. Isso os impede de ficar em segurança e os torna um alvo da armadilha.
A cena principal do filme, quando vemos o filho de Gerson e Gertrudes, interpretado por Gabriel Maier, assusta os personagens, mas não os afasta do local. Eles parecem não entender o perigo, nem a situação, mesmo com as falas óbvias do casal de idosos, eles resolvem seguir com o passeio de fim de semana. Esse engano ou anestesia de Eduardo e Maíra, talvez sirva como metáfora. Durante anos ouvimos falar que os discursos de Bolsonaro não deveriam ser levados a sério, que não existia perigo e ele só vivia dessas bravatas. O casal, como muitas pessoas, inclusive grande parte da esquerda, se negou a enxergar a realidade.
O roteiro tem um ponto forte em seu subtexto, notamos a bandeira do Brasil em cada canto, a camisa do genocida, as falas explícitas sobre o fascismo, mas demoramos a notar os gestos e como eles são conduzidos para um caminho sem volta. Eles não vão para o lugar agendado, a idosa entra na casa, o bebê chora, além disso a motosserra não para. O som anuncia o perigo e marca a evolução da tensão.
A criança não é apenas um personagem coadjuvante, o casal de idosos, em sua ideologia fascista, com suas atitudes mais sujas, em crimes mais horrendos, inclusive contra crianças, enxergam no bebê um ideal de pureza que eles não possuem. É preciso resgatá-lo de uma união com pessoas de “raças inferiores”. Eles não conseguem enxergar de modo diferente, a crise do sistema é uma crise de valores. O capitalismo começa a ruir, quando as pessoas se misturam, quando o mundo não funciona mais como no passado. Preservar a pureza das crianças é a única para fortalecer seu modo de vida. Pode soar apavorante, retrógrado, mas muitos pensam assim…
O curta-metragem Gritos do Sul, nos mostra como as bravatas incendiárias e a defesa das posições mais reacionárias não devem ser ignoradas. Há alguns anos, talvez eu reclamasse da verossimilhança das frases ditas pelos personagens ou do exagero, atualmente acredito estar extremamente adequado à realidade. Os últimos anos tornaram as atitudes grotescas, como no filme, um elemento presente em nosso cotidiano e fizeram do país palco de um filme de terror. Os gritos do sul, não são ficção, mas uma realidade. Ao fim, é uma obra para ser vista e revista.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Comprar Ingressos
Este site usa cookies para oferecer a melhor experiência possível. Ao navegar em nosso site, você concorda com o uso de cookies.
Se você precisar de mais informações e / ou não quiser que os cookies sejam colocados ao usar o site, visite a página da Política de Privacidade.
Além de Pablo
3.2 1ALÉM DE PABLO (2023) – CRÍTICA
Fui assistir ao filme sem ter lido nada, nem entrevistas, nem a sinopse. Sabia do tema: saúde mental, mas apenas isso. Logo, minhas impressões foram baseadas apenas nas imagens em movimento na tela.
Os primeiros minutos do Curta-metragem decupam o espaço em diversos planos detalhes. Fragmentam nosso olhar para mostrar o cuidado do personagem principal Pablo, interpretado por Ged Castro, com o apartamento e com objetos que caracterizam sua personalidade. Tudo excessivamente limpo, organizado, nem uma garrafa fora do lugar. Esse excesso de zelo, talvez aponte para o quanto o personagem está desorganizado internamente. Não conseguindo resolver os problemas internos, busca manter o ambiente em ordem, uma forma de escape para suas angústias.
Essa desordem mental é percebida, quando ele encontra a mulher com o filho no elevador. Tudo parece um sonho e confuso mentalmente. Tudo fica ainda mais suspeito, quando o vemos com as castanholas e quando ele fala do morador que precisa ir embora. É interessante todo esse jogo, essa dúvida, esse chamamento que o cineasta Ebner Gonçalves faz ao espectador. Ele o confunde, mas o esclarece, aqui talvez pudesse deixar dúbio, não explicar, instigar um pouco mais a dúvida, mas o objetivo da obra não é esse.
Pablo é um filme para expor e mostrar um problema: a necessidade de cuidado com a saúde mental, sacrifica assim algumas questões narrativas e estilísticas, esclarece outras para não restar nenhuma dúvida. Como uma obra que pretende ser educativa, não busca instigar dúvidas entre os espectadores. Isso explica os longos diálogos explicativos e como o suspense vai desaparecendo a medida que o filme vai encerrando. A impressão é um retorno a ordem. O ambiente organizado, harmônico do apartamento acaba tomando o espírito do personagem. A mudança de roupa, ele nunca tirava o roupão, também representa uma mudança de tom.
O filme não deixa dúvidas sobre qual personalidade era a correta, nem qual deveria ficar. Isso não nos impede de ficar com um certo desconforto, nem imaginar se a solução dada e a roupa usada, era realmente a correta. Talvez a personalidade qual ele tenta expurgar, não devesse ser expurgada.
Um elemento predominante no filme é a música, como sempre introduz ou fecha alguma sequência, isso antecipa nossos sentimentos em relação às cenas. É interessante para evocar suspense, mas perde um pouco da expectativa em alguns momentos. O espectador assiste à cena com um sentimento embalado pela trilha. Isso cansa um pouco.
A obra tem caras conhecidas do cenário cultural joinvilense, como o ator Robson Rodrigues, a artista plástica Nicole Leite e a apresentadora, Fabíola Bernardes. É interessante, como os cineastas da cidade tem certas preferências pelos mesmos atores, como eles sempre encaixam determinados rostos em algum personagem coadjuvante ou principal de seus filmes. Como se as obras sempre tivessem pensando neles. Assistir a um filme feito em Joinville e não ter um rosto conhecido de outros filmes, às vezes, surpreende. Trabalhar com os mesmos ajuda qualificar o trabalho, poupa tempo, mas impede de novos quadros de se formarem, cai em uma rotina. Escolhas de um filme são sempre políticas, isso vai desde a concepção do roteiro, a escolha dos atores até a produção do filme.
Ao fim, o filme tem assim um grande potencial educativo. Deve ser assistido nos cursos de psicologia e utilizado nas discussões sobre saúde mental. É uma obra com um cuidado meticuloso na arte e em tentar esclarecer nossa sociedade sobre um problema que assola diversas pessoas.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Memórias invisíveis
3.5 1Memórias Invisíveis (2021) - Crítica
Um média-metragem sobre desenterrar o passado, expor as feridas e contar uma história pouco conhecida em Joinville
Em uma cena, no meio do filme, um grupo de idosos conta como era morar nos fundos do Cemitério Municipal de Joinville. Eles relatam tudo de uma maneira alegre. Sorriem, contam anedotas e afirmam muitas vezes como a vida era feliz naquela época. Segundo os idosos e entrevistados durante o documentário, ninguém sabia de toda a História do local. Sabiam da prisão durante a Segunda Guerra Mundial, mas não sobre o Abrigo de Alienados, o hospício.
É curioso, como um ambiente impregnado de histórias cruéis, também possa produzir memórias felizes. Ao sepultar parte do passado, os governos e as elites, quem construiu o Abrigo, permitiu ao terceiro grupo de moradores, policiais militares e suas famílias, construir uma vida feliz e alegre. Soa grotesco imaginar a felicidade de alguns em um ambiente onde muitas pessoas sofreram e morreram, mas essa cena, como todo o filme, nos provoca a pensar em como existem histórias sobre nossa cidade que precisam ser desenterradas. Como relata o historiador Dilney Cunha, existem muitos tabus sobre a cidade, questões às quais muitos preferem não lembrar ou esquecer.
O filme começa com cenas do Cemitério Municipal de Joinville, vemos diversos planos e ângulos das sepulturas, um local totalmente vazio. A música nos provoca um sentimento misto de tranquilidade e melancolia. Os letreiros, excessivos em alguns momentos, contam a História do Abrigo Para Alienados que existia ali.
A roteirista e pesquisadora, Mariana Zabot Pasqualotto, é quem conduz as entrevistas, realiza as pesquisas e faz as conversas. Ela é a personagem principal do filme. Durante várias cenas, ouvimos sua voz ou a vemos percorrer as pistas da instituição psiquiátrica que funcionou entre os anos de 1923 a 1942, em Joinville.
Apesar de ser um documentário, o filme divide uma tensão entre os tons de terror e melancolia, entre assustar diante da crueldade humana e nos provocar lágrimas pelo sofrimento alheio. As cenas encenadas por atores lembram fantasmas, essa impressão é reforçada pela imagem em preto e branco. Aqui, talvez estejamos sendo assombrados pelo passado; ou lembrados sobre o sofrimento dessas pessoas: incompreendidas, isoladas do mundo, presas e amontoadas em uma cela. Eram fantasmas ainda em vida, a morte apenas sacramentou o destino a qual a sociedade os havia condenado.
É uma escolha estética manter essas cenas em alusão ao terror, mas também estimular sentimentos de melancolia e revolta com as entrevistas, pesquisas e as conversas descontraídas. Um dos momentos tocantes é quando o pesquisador Lucas Muenster, descobre o destino da trisavó. A história dele ilustra como a mentalidade da época era de esconder qualquer indício de uma pessoa que não fosse “normal” na família.
É um exercício interessante assistir 1951 sobre a história do centenário de Joinville e depois assistir Memórias Invisíveis. Com essa dupla, o cineasta mostra duas cidades diferentes, duas situações diferentes e o motivo da relevância do cinema para a História e a memória de nossa cidade.
1951
3.0 11951 – Crítica
Discursos saudosistas sempre me preocupam, pois são carregados de sentimentos. Emocionam, nos tocam, inflam as massas e pintam o passado de uma forma extremamente idealizada. O documentário 1951, sobre as festividades do centenário de Joinville, me parece calcado em uma memória saudosista da cidade. A voz over e as entrevistas seguem uma mesma linha editorial, sem divergir em nenhum momento. Todos os entrevistados, que viveram as festividades falam sempre de uma cidade pacata, sem agitação, de um tempo onde tudo era melhor.
A obra é um exercício para o entendimento do papel do narrador no cinema, um personagem que conta a história, que guia o espectador por cada lugar e direciona seu olhar para um ponto de vista. Ele está evidente na divisão dos capítulos e na voz over, mas é na montagem onde esse papel é exercido de maneira transparente. O corte em cada fala de morador da cidade e a escolha de quem fala sobre os 100 anos, mostra o direcionamento para um discurso sem contradições e marcado pelo pensamento hegemônico da cidade.
O filme inicia com o discurso sobre as grandes mudanças no mundo no ano de 1951 e coloca Joinville no centro. Fala do pós-guerra, da industrialização e de seu centenário. A imagem do discurso de Getúlio Vargas reforça a importância dessas mudanças, mas durante o filme a perspectiva parece se voltar ao passado do cotidiano, sem tocar nas questões políticas e sociais de Joinville. A obra mantém a imagem reconhecida da cidade, sem questionar. Fala da cidade das bicicletas, do povo ordeiro e trabalhador, a imagem do Príncipe e a educação alemã. Mitos que existem apenas para um pequeno círculo. Quando falam do Rio Cachoeira, não existe nenhum questionamento sobre quando não se pode mais tomar banho, nem quem são os grandes responsáveis pela poluição. O único conflito e divergência durante todo o curta é sobre quem torcia para o América e quem era Caxias.
O filme segue assim uma linha transparente, sem surpresas na forma ou no conteúdo, isso torna a obra eficiente em transmitir sua mensagem. Mesmo se baseando principalmente em entrevistas, o cineasta Ebner Gonçalves consegue fugir do enclausuramento do olhar quando muda o ângulo e o plano da imagem dos entrevistados. As cenas em planos abertos são reservadas às imagens de arquivo e para o plano final. Não existe muito espaço, nem razão para som ambiente, logo a trilha segue o tom saudosista das falas.
A forma se adapta ao conteúdo das anedotas sobre um dia feliz para pessoas que compareceram na festa do centenário. Um após o outro, eles contam sobre como era o cotidiano da época e como foram felizes ali, talvez seja uma chatice minha exigir um outro ponto de vista, afinal em dias de festas todos querem esquecer dos problemas e apenas sorrir.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Maré de conflitos
4.0 1Maré de Conflitos (2022)- Crítica
A destruição e o cuidado com o meio ambiente dividem as pautas nos meios de comunicação. A ênfase das notícias em preservar parece ser a mesma em destruir. Ficamos com uma sensação estranha, não sabemos se avançamos nos cuidados ou se estamos à beira de uma catástrofe climática. Esse sentimento de estranhamento provocado pelas notícias é semelhante ao assistir o documentário Maré de Conflitos, dirigido e roteirizado pelo jornalista Altamir Andrade.
A narrativa do curta-metragem nos revolta, mas também consegue nos tocar. Vemos inúmeros ataques contra o meio ambiente, mas também inúmeras belezas da Baía Babitonga. O mar, os mangues, as espécies de pássaros e peixes nos provocam um sentimento de deslumbramento. Fragmentada em planos gerais ou closes, a fotografia do filme consegue produzir uma narrativa sedutora. Quem não conhece os lugares, com certeza ficará tentado a conhecer e, muito difícil, quem mora na região, não se sentir orgulhoso.
A revolta surge justamente desse orgulho, pois vemos o quanto o discurso do progresso econômico, esconde, em alguns casos, a despreocupação com as comunidades e a região afetadas por essas ações. Navios, exportações, geração de empregos, portos são uma imagem comum aos olhos de um país produtor de commodities. Mas não é comum falar sobre como essas ações afetam o meio ambiente, nem o nosso futuro.
A visão do diretor está marcada por essa preocupação com o futuro. As falas no documentário são de quem defende os interesses das comunidades locais ou deseja preservar a Baía da Babitonga para as novas gerações. Professores e ambientalistas falam, mas a voz realmente importante e com peso são os pescadores. É quem dá a dimensão poética da imagem e consegue ilustrar a degradação do meio ambiente.
Mesmo com a saturação de informação, o corte do filme e a escolha das entrevistas conseguem traduzir a dimensão do problema, mas é a montagem que produz a síntese entre todos os discursos, não fica ponta solta.
O documentário consegue provar, como mesmo sendo um filme curto, 25 minutos no caso, se pode tratar de temas complexos e de forma aprofundada. Como também prova a grande capacidade do cinema como ferramenta educativa e militante. Um filme, seja curta ou longa, pode entreter, pode também nos emocionar, mas aqui ele revolta e nos desperta os olhos.
João Diego Leite é crítico de cinema
Passagem de volta
3.9 1Passagem de Volta (2022) – Crítica
Um longo período dedicado ao trabalho ou alguma responsabilidade de maneira intensa, sem nenhuma folga ou espaço para respirar, esgota qualquer pessoa. Mesmo os mais fortes, em algum momento se abatem e querem deixar de existir. É um sentimento comum, fruto do conflito entre o querer e o poder. Na maior parte das vezes, as pessoas aceitam não poder, enterram seus sonhos e esquecem. Quando isso não ocorre, nascem as frustrações e acabam vivendo uma vida amargurada, sem sentido e cheias de pesares.
O personagem principal do curta-metragem Passagem de Volta é uma dessas pessoas. Ele está suturado com o trabalho e no ápice do estresse. Não aguenta mais as brigas com a esposa e sente falta do convívio com a filha. Queria estar mais presente, mas para prover uma vida melhor para eles, precisa passar os dias fora. Parece não existir outra possibilidade, mesmo quando foge para ver o mar.
Apesar de parecer ser um homem com dinheiro, algumas atitudes nos forçam a duvidar da situação financeira do personagem. Na primeira cena, ele reclama do preço do café, mas após o cancelamento do voo, nada parece caro. Ele distribui dinheiro onde vai. Dá uma gorjeta à garçonete, interpretada por Ianca Michelini, e paga o dobro para o taxista, interpretado por Lucas Ukah. O esbanjamento pode ser fruto de um desprendimento, nada mais importa, mas também pode ser uma libertação. Quando ele vai beber uma cerveja, pois ele diz hoje poder, a pergunta é: quando não pode?
O motor narrativo do curta-metragem é o conflito interno do personagem, a trama avança quando o homem questiona as escolhas feitas em sua vida. O avião não ter decolado é apenas um empurrão. O filme prende nossa atenção e mantém nosso interesse vivo devido a condução da direção, quem consegue administrar durante toda a obra, o suspense sobre o destino do personagem.
Isso nós vemos, na forma da montagem, ao parecer recortar duas sequências e espalhá-las em uma linha do tempo. Pode ser confuso no início, bagunçar um pouco, deixar o espectador com dúvidas, mas nenhuma ponta fica solta. Durante todo o filme, por exemplo, uma cena funciona como um presságio de algo ruim, aparece, entre uma sequência e outra. Há também duas cenas dos pés, uma ao início e outra ao final. As duas conectam toda a narrativa.
O ator, Welington Moraes, consegue encarnar um personagem com mudanças bruscas de temperamento, mas com momentos de alívio. Quando caminha não vemos vida na forma de andar, nem força em seus gestos, parece um zumbi, se arrasta para os lugares. Isso muda quando estoura no quarto, explode com a esposa, mas fala tranquilamente com a filha, ao contar uma história de ninar. Ele demonstra um grande talento em convencer com as oscilações, como na praia, um momento que parece totalmente louco do personagem.
Ao retratar o dia estafante de homem de negócios, a diretora e roteirista, Fahya Kury Cassins, consegue mostrar como a rotina pode se tornar uma prisão e como isso tolhe toda a personalidade. Ela retorna a um assunto já abordado em seu outro filme, Fim de Tarde: o tempo dedicado a nossa felicidade e a quem amamos. Passagem de Volta, aprofunda o assunto, muda a abordagem e nos força a pensar sobre quanto tempo dedicamos àquilo que realmente importa.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O panaca
3.3 1O Panaca (2022) – Crítica
Não há falas nos primeiros minutos do filme e isso incomoda muito, pois toda a construção das cenas indica uma tensão. Algo parece prestes a explodir e esperamos, como de costume, gritos de raiva e longos diálogos, mas não é essa a proposta da cineasta. Não é preciso de palavras para construir uma trama. A sétima arte concedeu ao ator a possibilidade de expressão por meio dos gestos, closes e planos detalhes. O cinema nos concede a oportunidade de “vermos e ouvirmos” o silêncio dos atores. E isso, o curta-metragem O Panaca, dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins, nos mostra.
A construção narrativa direciona o olhar do espectador para questionar as ações dos personagens. Todas as sequências nos levam sempre a terminar perguntando, por quê? O roteiro trabalha com as reações do público. Não sabemos se a traição foi o estopim para a violência do casal, aparentemente é a fuga, mas isso não está claro e não é um problema narrativo. Os fatos estão consumados e a cineasta deseja nos provocar a imaginar todas as consequências. Como ele fez? Ela está em perigo? Quem era a pessoa? As perguntas acumulam-se no decorrer da obra.
Quando o filme começa não precisamos nos esforçar para notar a preocupação da esposa, interpretada por Nara Nowischk. A ebulição da água na chaleira marca o fim da paciência. O olhar para o nada e a desatenção com a filha, interpretada por Júlia Hilger, sinalizam o nervosismo. Ela não consegue parar de olhar para o celular. A atriz consegue assumir o papel de uma personagem de corpo presente, mas com a cabeça nas nuvens, alguém consumida pelos próprios pensamentos.
Também não nos esforçamos para notar as emoções do marido, interpretado por Luciano Flora. Há um misto de sentimentos negativos transmitidos pelo personagem. Todos sinalizam violência. Quando ele segura o volante com raiva, como se enganasse alguém ou várias e várias vezes faz o sinal de não com a cabeça, imaginamos uma série de situações. O lugar em que ele aparece pela primeira vez e o carro sempre em movimento, sugerem algo ruim, como a roupa suja de sangue.
As perguntas sobre o casal aumentam quando assistimos aos flashbacks do marido. Ele está sempre com a filha. O clima das memórias é sempre feliz, como as cores do figurino destacam. Ao mesmo tempo, onde estava a mãe? Qual o motivo de ela não participar das memórias felizes com o marido e a filha? O celular nos mostra algo, não sabemos em detalhes, mas entendemos o problema e nossa atenção é direcionada a questionar as motivações e razões do casal. Tanto para a traição, como para algo pior.
A ausência da voz devolve ao cinema, a visualidade de sua origem, quando o som ainda não havia sido inventado. Claro, aqui a situação é bem diferente, existe o som diegético e uma trilha sonora original, composta por Anna Viliczinski. Isso não diminui o mérito de dois elementos essenciais para construção da narrativa, os atores e a montagem construída por Marcelo Eduvirge. Sem o elemento da fala, os atores foram obrigados a trabalhar o gesto, o olhar e a expressão corporal. Todas as cenas são organizadas para dirigir a percepção do espectador. O filme funciona e consegue atingir seu objetivo devido a montagem da obra ser construída na mente do público, com as sugestões e provocações da cineasta em cada plano.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Gritos do Sul
2.7 1Gritos do Sul (2022) – Crítica
O fascismo representa a reação da burguesia contra toda a ameaça de levante da classe trabalhadora. As crises do capitalismo produzem as possibilidades de revolução e contra-revolução. A pequena-burguesia falida, hoje chamada de classe média, como o lumpesinato, conhecido como precariado, encontram nas posições reacionárias do fascismo um ponto de apoio à crise do sistema. Eles não desejam se tornar assalariados, nem querem ser parte da classe trabalhadora, acreditam ser autônomos e estarem em nível superior. O movimento fascista os infla contra todas as bandeiras progressistas, pois para tomar o poder precisa destruir quaisquer resquícios de organização popular que ameace os interesses do capital.
As semelhanças com o bolsonarismo não são casuais. Deus, Pátria e a Família era o lema de Hitler. Grupos neonazistas sempre flertaram com o ex-presidente. Suas bravatas mais inflamadas, como: metralhar os petistas, acabar com terras indígenas, atacar o MST, com os sindicatos e censurar a imprensa, também não deixam dúvidas sobre suas inclinações. Ele só não foi mais longe, por não encontrar o apoio necessário. A invasão do Palácio do Planalto e do STF demonstra disposição dos apoiadores, a depender da situação econômica e do próximo governo, esse grupo pode crescer e o bolsonarismo ressurgir. É sobre isso que o curta-metragem Gritos do Sul nos alerta, sobre o fascismo sempre a espreita…
Gravado durante a pandemia do Covid-19, nas cidades de Joinville e Campo Alegre, o filme retrata a situação política do Brasil, o negacionismo científico e as simpatias neonazistas de determinados setores da sociedade catarinense. Quem nunca pensou na política brasileira como um gênero de terror, talvez não conheça a história de nosso país. A Matéria prima sempre existiu, faltava imaginação para a narrativa, uma trama sem escapismo e enraizamento na realidade local. Tudo isso encontramos no curta-metragem dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins.
O filme narra a história de um casal catarinense e seu filho em um fim de semana no campo. Os dois aguardam ansiosamente para passar alguns dias em um chalé aconchegante próximo a natureza. No meio da pandemia, sair do confinamento e mudar de ambiente é tudo que eles mais desejam. Preocupados apenas em relaxar, os dois não percebem como estão sendo manipulados e guiados para uma armadilha. O passeio comum e despretensioso acaba se transformando em um pesadelo com consequências nefastas.
Não há nada de errado com o casal Maíra, interpretada por Ianca Michelini, e Eduardo, interpretado por André Ribeiro, mas em uma cidade pequena ou em um lugar com vocação provinciana de Santa Catarina, uma mulher loira de olhos azuis com homem negro, tendem a despertar olhares curiosos, ainda mais com um filho loiro. Não é difícil imaginar os pensamentos do casal de idosos ao vê-los juntos com a criança. Mais importante que notar as falas são os gestos. Descendentes de alemães e donos do lugar expressam uma mistura de sentimentos, entre o nojo e a raiva.
Gertrudes, interpretada por Nenê Borges, demonstra esses sentimentos ao tentar, a todo momento, se aproximar da criança, ignorando o pai e a mãe. Não é só o toque e as brincadeiras que incomoda, mas a forma invasiva de querer afastar o bebê dos pais. Gerson, interpretado por Sérgio Ubiratã, não perde tempo em destilar todo ódio, xenofobia e preconceito, acompanhado das fake news. Apesar de todo o ar de tiozão, a roupa com estilo militar assusta.
Ao contrário de Eduardo, que parece agir no piloto automático e sem pensar, Maíra parece estar sempre preocupada, mesmo que de maneira tímida, ela tenta alertar o companheiro sobre o perigo. Não gosta da aproximação do casal de idosos do filho, nem do fato do lugar ser diferente, mas o marido não liga. Ele prefere agir impulsivamente. Isso os impede de ficar em segurança e os torna um alvo da armadilha.
A cena principal do filme, quando vemos o filho de Gerson e Gertrudes, interpretado por Gabriel Maier, assusta os personagens, mas não os afasta do local. Eles parecem não entender o perigo, nem a situação, mesmo com as falas óbvias do casal de idosos, eles resolvem seguir com o passeio de fim de semana. Esse engano ou anestesia de Eduardo e Maíra, talvez sirva como metáfora. Durante anos ouvimos falar que os discursos de Bolsonaro não deveriam ser levados a sério, que não existia perigo e ele só vivia dessas bravatas. O casal, como muitas pessoas, inclusive grande parte da esquerda, se negou a enxergar a realidade.
O roteiro tem um ponto forte em seu subtexto, notamos a bandeira do Brasil em cada canto, a camisa do genocida, as falas explícitas sobre o fascismo, mas demoramos a notar os gestos e como eles são conduzidos para um caminho sem volta. Eles não vão para o lugar agendado, a idosa entra na casa, o bebê chora, além disso a motosserra não para. O som anuncia o perigo e marca a evolução da tensão.
A criança não é apenas um personagem coadjuvante, o casal de idosos, em sua ideologia fascista, com suas atitudes mais sujas, em crimes mais horrendos, inclusive contra crianças, enxergam no bebê um ideal de pureza que eles não possuem. É preciso resgatá-lo de uma união com pessoas de “raças inferiores”. Eles não conseguem enxergar de modo diferente, a crise do sistema é uma crise de valores. O capitalismo começa a ruir, quando as pessoas se misturam, quando o mundo não funciona mais como no passado. Preservar a pureza das crianças é a única para fortalecer seu modo de vida. Pode soar apavorante, retrógrado, mas muitos pensam assim…
O curta-metragem Gritos do Sul, nos mostra como as bravatas incendiárias e a defesa das posições mais reacionárias não devem ser ignoradas. Há alguns anos, talvez eu reclamasse da verossimilhança das frases ditas pelos personagens ou do exagero, atualmente acredito estar extremamente adequado à realidade. Os últimos anos tornaram as atitudes grotescas, como no filme, um elemento presente em nosso cotidiano e fizeram do país palco de um filme de terror. Os gritos do sul, não são ficção, mas uma realidade. Ao fim, é uma obra para ser vista e revista.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo