Conheço pouco sobre as culturas onde terminar com a própria vida é algo aceitável, mesmo assim, quando isso ocorre, a ação precisa de um contexto. Nos filmes medievais japoneses, conhecemos o ritual do Seppuku ou Haraquiri, quando os samurais, diante de uma desonra, encontravam na morte uma forma de perdão ou provação do seu valor. É a lembrança mais clara que tenho sobre uma cultura aceitar esse ato, mas mesmo assim, como observamos, a permissão está restrita a uma categoria de guerreiros.
Na civilização ocidental a prática é condenada, mal vista, muito pela influência religiosa cristã em nossa cultura. O ato pode ser visto de inúmeras maneiras, mas majoritariamente de forma negativa e cheios de tabus. O filme do cineasta Paolo Genovese trata sobre isso, entre todas as formas nas quais poderíamos pensar no destino de quem põe fim à própria vida, a proposta de Genovese é, talvez, a mais otimista. Sem vínculo a um deus ou a uma religião, sem relação alguma com pecado, com a única preocupação em entender quem decide deixar o palco mais cedo. O cineasta nos fala da dor, da vontade e da necessidade de empatia com quem sofre dessa vontade.
O roteiro assinado por Genovese, Isabella Aguilar, Paolo Costella e Rolando Ravello é baseado no livro de autoria do próprio diretor. A trama se passa em Roma e tem um personagem misterioso, interpretado por Toni Servillo. Ele reúne quatro pessoas que não se conhecem. Inicialmente, nas primeiras cenas e com a chuva, pensei ser um filme sobre máfia, algo assim, mas tudo vai ficando estranho e demoramos um pouco para perceber onde os personagens realmente estão e qual a temática do filme.
Apesar de estarem mortos, não existe nenhuma referência explícita de imediato. Os espaços são todos de uma cidade: ruas, o hotel, auditório, bares e o cinema abandonado são parte de um cenário urbano. Caberia aqui uma ironia? Não sei, acredito que o sentido esteja melhor interligado com o destino dos personagens, quem fica entre os vivos? Aqueles que não morreram naturalmente. Essa escolha dos ambientes aparenta uma certa frieza, mas é uma forma não religiosa de construir o pós-vida. Apesar de em uma cena vemos uma igreja, a religião aqui é inexistente.
Os cenários preenchem o filme de realismo. A parte da conciliação do grupo, ao se prepararem para o desfecho, ocorre em um almoço, em uma casa próxima à praia. Um ambiente diferente para não vivos decidirem sobre continuar ou não a viver. O único momento, “mágico” é com Daniele (Gabriele Cristini, de 12 anos), o restante das cenas, apesar da estranheza da situação e do fato deles serem invisíveis, não possuem nenhuma ação “sobrenatural”.
O personagem misterioso de Sevillo é um terapeuta do “além”, não um barqueiro da morte. Ele tenta ajudar Arianna (Margherita Buy) a viver o luto e a ver a filha, nos momentos e nos lugares quais ela viveu. Para Emília (Sara Serraiocco) ele pede uma segunda chance, tenta ajudá-la a recuperar a sua autoconfiança e parar de se esconder. Napoleone (Valerio Mastandrea) um coach motivador que não consegue mais se motivar, ele tenta mostrar um sentido.
Eles precisam estar entre os vivos, pois assim podem refletir sobre o quanto o ato, mesmo compreensível, representa uma perda enorme para muitas pessoas e para eles mesmos. Logo, cada personagem carrega uma dor ou angústia de nossa atual sociedade. É um filme bonito, sensível, sofre com alguns diálogos longos, mas tem Toni Sevillo, quem segura o leme e sempre nos mostra uma atuação excelente. Diferente de muitos atores, ele possui várias faces, encarna diferente corpos e gostamos de todos.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Fei (Ko Chen-Tung) quer proteger o primo, por isso o afasta, não o quer envolvido em suas atividades. Difícil convencê-lo, pois as opções não são nada atraentes, além de muito mais restritas e penosas. Não importa o quanto criminosa e ilegal seja o estilo de vida de Fei, entre trabalhar 12 horas por dia em uma fábrica e ser um garoto de programa, não existem dúvidas sobre qual é a melhor opção. Diante da vista da cidade, no jardim da varanda de Fei, Long (Yufan Bai), observa como tudo é limpo e bonito e toma a decisão definitiva. Os dois trabalhos exploram seu corpo, a diferença é que se prostituindo ele não dorme em um colchão duro, nem trabalha em um lugar sujo. O menino pobre da na zona rural da Taiwan, elege a opção que privilegia a vista diante de seus olhos.
Me incomodou um pouco, esse aparente encanto da prostituição, mas conforme acompanhamos Fei, em sua jornada pela sobrevivência, o encanto parece perder cada vez mais o brilho. Pouco a pouco conhecemos a realidade dos “moneyboys”, homens jovens que se prostituem para outros homens. Fiquei pensando enquanto lugares do mundo, a homossexualidade ainda é crime. Na situação apresentada no filme, a prostituição parece como um meio de fugir da vida miserável do interior, mas também permite aos personagens viverem suas sexualidades. A cena no bar, quando conversam sobre os motivos de não voltarem para casa ou como, ao voltar, mentem sobre sua vida na cidade, demonstra a angústia sofrida pelos personagens.
Existe também uma oposição entre os espaços, enquanto todo o apartamento e lugares frequentados por Fei e Long são limpos e bem iluminados, a vila e os lugares fora do ambiente da prostituição é suja. Não me parece existir um julgamento moral por parte do cineasta, em colocar a prostituição como limpo, mas condenável, pois lhe deixa sujo internamente. A proposta dessa oposição entre ambientes está mais conectada à necessidade de fuga, encontrar esses lugares pobres e sujos, reforça os sentimentos dos personagens pela necessidade de fugir.
Gosto de como a fotografia coloca nossos olhos em posição de esperar a saída ou entrada no quadro, de como a câmera parada, em ângulos normais ou na altura da cintura, nos provoca uma expectativa. De como o personagem principal, com poucas falas, em alguns momentos não está centralizado e de como nossa atenção é desviada à medida que os personagens se movimentam no quadro. As cenas com os personagens de costas são muito interessantes para observar como nossa atenção percebe o personagem, mas acompanha a ação ao redor.
O filme, dirigido e roteirizado por C.B. Yi, ao fim, trata sobre a jornada de Fei, entre duas paixões, entre a aceitação da família, que vive de seu dinheiro, mas não apoia seu modo de vida. O grande ponto da obra está na montagem, que desde início faz recortes e deixa situações subentendidas. Não responde todas as perguntas, mas estimula nossa curiosidade. Os primeiros momentos unem as sequências, como a nossa memória, espaçadamente, o vínculo entre elas é o personagem, não temos nada esclarecido, quando anos se passam. Isso nos deixa um pouco confusos, pois tudo parece estar acelerado na vida de Fei. No segundo ato, tudo se torna mais tranquilo, o tempo não tem saltos e ele é confrontado com seu passado e presente. Tudo, em uma história cheia de corações partidos de jovens sem perspectivas de uma mudança em suas vidas.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
O grande motivador dos personagens, no filme, são seus interesses econômicos. Não importa como eles o apresentam, pode ser um projeto cheio de sonhos e sentimentos ou apenas uma fuga de uma vida miserável. O motivador do conflito é o desejo de uma vida melhor. Sem consciência disso, eles encarnam os interesses estrangeiros e representam a transformação capitalista da vila. Os noruegueses, ao construir turbinas eólicas para gerar energia limpa para o desenvolvimento sustentável e econômico, expulsam os moradores por uns trocados e os forçam ao êxodo rural. Os franceses enxergam o lugar como um paraíso a ser preservado, criam uma horta agroecológica e compram casas, as reformam e pretendem atrair novos moradores. Um projeto de gentrificação. As duas propostas invisibilizam o modo de vida dos moradores originais.
Nosso olhar tende a ser mais simpático ao casal francês Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs), os personagens escolhidos pelo cineasta Rodrigo Sorogoyen para contar a história. Isso torna os irmãos Anta (Luis Zahera e Diego Anido) vilões? Talvez, tudo depende da nossa perspectiva ao observar. Todas as ações cometidas por eles não são fruto de uma personalidade perversa, mas da corrupção econômica e a cobiça por uma vida melhor. Esse pensamento é expresso pelo irmão mais velho a Antoine, no bar, “não sabíamos que eramos miseráveis, até nos mostrarem o quanto somos”. Todo o sentimento de xenofobia, todo o ódio, toda a sabotagem feita contra o casal estrangeiro é motivada por eles impedirem a vila de ser transformada em um campo de energia eólica. Enquanto os dois fedem a merda de vaca, o casal, vizinho de porta, exibe sua prosperidade.
Isso torna a convivência mais insuportável, não há como eles se esconderem ou se ignorarem. A vila é pequena, todos se conhecem, vão nos mesmos lugares. Querendo ou não, acabam se esbarrando, apenas o caminhar na rua pode ser tomado por um dos lados, como uma provocação. O Bar é o espaço onde as tensões são elevadas, onde os personagens anunciam os próximos conflitos. O irmão mais velho está sempre sentado na mesa de dominó, no centro do nosso olhar e com todos os personagens voltados para ele, com exceção de Antoine, sempre no balcão de costas para nós e para os personagens. Temos uma mudança, quando senta na mesa do jogo e quando confronta os irmãos. O vemos de frente então, do lado direito do balcão, enquanto os irmãos do lado esquerdo. O convite para beber os retira do seu lugar habitual, muda nosso ponto de vista, os coloca no lugar escolhido por Antoine, que tem uma postura amigável e complacente. Diferente do irmão mais velho, quando em um momento vira de costas, demonstrando a recusa em entender e aceitar as motivações do vizinho.
Além do espaço, observamos como os elementos de cena são importantes para marcar determinadas ações, atitudes ou traços de personalidade. Quando o vizinho, que é amigo, chega para fazer uma entrega, os dois estão trabalhando, Olga o convida para tomar um café e oferece ao marido, que nega. Aqui ele não aceita por querer terminar o trabalho, por estar absorvido pelo cuidado da horta. Em outro momento, quando o sobrinho do vizinho vem os convencer a aceitar a proposta de venda, a mulher lhe entrega um café, enquanto Antoine novamente o nega. Dessa vez por não querer perder tempo com uma discussão resolvida para ele. O único momento em que vemos tomando café é quando acorda pela manhã. Uma característica curiosa é Olga sempre estar lendo, apesar de Antoine se arrogar ser mais inteligente e superior, ela é quem parece ser dedicada ao estudo. Em compensação, quando ela assume o lugar do marido, não a vemos mais com livros.
Além do livro e do café, podemos destacar o papel de dois objetos, a arma e câmera. Os dois não cumprem o papel para qual deveriam ser utilizados, mas reforçam os sentimentos e sensações de cada ação. A câmera, durante todo o tempo, age como um escudo para Antoine, enquanto a arma ostenta o perigo dos irmãos Anta. O fato de não terem servido aos fins originais, não invalida os dois objetos na progressão da narrativa. Eles adquirem importância no roteiro, escrito por Sorogoyen em conjunto com Isabel Peña, justamente por não servirem de maneira óbvia a resolução dos problemas.
Por fugir das soluções simples e óbvias, o filme consegue nos despertar o interessante. Nunca vemos indícios de culpa dos vizinhos pelas sabotagens, vemos as provocações, os enfrentamentos, mas não os vemos escondidos planejando envenenar a água ou mijar na cadeira. Tudo indica a culpa dos dois, mas não se tem provas. Essa forma de contar a história nos coloca em uma posição de ver apenas aquilo que Olga e Antoine veem, apenas aquilo que os personagens principais enxergam. Isso explica vermos os irmãos distantes do ponto de vista do casal.
Essa forma de filmar não muda quando Olga assume o papel do marido. Durante toda a primeira parte do filme é uma mulher calada, lê e o ajuda nos afazeres do sítio, faz comentários, mas não tem protagonismo algum nas disputas. Ao assumir as rédeas do local é absorvida pelo trabalho e pelo desejo de justiça, passa os dias atrás de pistas para incriminar os vizinhos e de dos cuidados com os animais, plantas e a feira. O olhar agora é dividido com a filha. Essa parte, torna os irmãos ainda mais ameaçadores, ainda mais bestas, pois a figura masculina parecia fazer frente a ameaça, agora duas mulheres parecem presas nas garras de predadores. Um sentimento que acaba sendo frustrado, pois Olga não só se mostra forte, como se mostra mais inteligente.
Ao fim, temos uma obra construída de uma forma a nos despertar vários questionamentos, a nos suscitar vários sentimentos, mas não se preocupar em nos dar certeza de nada, a não ser da força e da coragem das mulheres.
Filme visto na Cabine de Imprensa, estreia dia 25 de janeiro nos cinemas. Vencedor do prêmio Cesar e selecionado para Cannes, em 2023.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Enxergar a poesia nos números não é um absurdo ou uma novidade. A proporção áurea, está aí há “bastante tempo”. A matemática exerce seu papel na arte e está presente na pintura, na fotografia, na música e no cinema. Existe uma beleza nas fórmulas escritas com giz no quadro, como uma poética na explicação das equações. O Desafio de Marguerite, dirigido por Anna Novion, nos apresenta essa perspectiva, do ponto de vista de uma mulher, uma pesquisadora com uma proposta revolucionária, em um ambiente masculino e hostil.
Apesar do roteiro perseguir as descobertas de Marguerite Hoffmann (Ella Rumpf), o filme não depende de nenhuma resolução matemática para ser fruído. Seria interessante ler uma crítica envolvendo o cinema e as discussões matemáticas, não tenho essa propriedade, então me concentro nas discussões sobre a arte, mas fica aqui a sugestão.
O longa-metragem de Novion conta a história de Margarite Hoffmann, uma brilhante pesquisadora da École Normale Supérieure (ENS). A única mulher da turma, talvez do curso, enfrenta dificuldades com o orientador. Apesar de confiar nela, não lhe concede a devida atenção, nem a trata com respeito. Isso fica claro, quando, ao cometer um erro na apresentação da tese, o professor a culpa.
A primeira percepção ao iniciar o filme é o figurino, usar chinelos, calças largas, cores frias em tons pastéis, reforça a imagem introspectiva da personagem. A roupa de Marguerite transmite sua personalidade, como a forma de seu penteado. Ela parece estar escondida da vida, atrás dos livros e da forma como se veste. O figurino também combina com o ambiente cinza feito de concreto, madeira e vidro da universidade.
Quando ela resolve romper com esse lugar, as mudanças são sutis, mas as percebemos. A personagem não põe um vestido, por exemplo, nem batom, mas constatamos em suas atitudes, como seu figurino e penteado introspectivo concedem lugar a uma nova mulher. Gosto de como a cineasta não impõe um padrão de vestimenta e atitude a personagem. Estar aberta para novas possibilidades, não significar mudar sua essência por completo, mas apenas experimentar coisas novas.
Essa abertura para experimentação está conectada na transição da personagem pelos novos ambientes. Ao tomar a decisão de sair da universidade, a primeira imagem é um plano aberto da cidade. Depois temos o apartamento dividido com uma colega, o shopping, as ruas do bairro, o restaurante chinês. A fotográfica registra sujeira, a multidão, o movimento, algo que não havia nas imagens do seu antigo lugar.
A trilha sonora, composta por Pascal Bideau, marca as mudanças da personagem, em cada momento de superação, desafio, escolha ou passagem, temos a iluminação azul e uma trilha eletrônica com um coro. Parece algo religioso. O sentimento transmitido é de libertação, como se distante da universidade e do controle da mãe, Marguerite finalmente estivesse vivendo por suas próprias escolhas.
Tratando especificamente dessas escolhas, acredito na importância do filme para suscitar discussões importantes sobre o ambiente acadêmico. Em como em determinados momentos a burocracia e o estrelismo, como as vaidades de determinados acadêmicos, desmotivam pesquisadores iniciantes. Também existe o problema do machismo, das discussões sobre o lugar da mulher no ambiente acadêmico e como é difícil sobreviver em profissões e cursos dominados por homens.
Fico em dúvida sobre o final, pois me parece apontar para uma conciliação. Agora, mesmo conciliando com o professor e com o ambiente acadêmico, Marguerite não é mais a mesma, nem estará disposta a aceitar tudo, sem questionar. Ao sair da universidade, a jovem pesquisadora conseguiu encontrar uma solução para sua tese, mas também crescer e encontrar um lugar no mundo real.
Vencedor do prêmio de melhor Direção de Arte em Cannes, em 2023.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
NOSTALGIA (2023) – CRÍTICA Nas primeiras cenas do filme não sabemos ao certo quem é Felice, interpretado por Pierfrancesco Favino. No avião ele fala árabe, no restaurante, enrola no italiano. Parece um estrangeiro, um turista. Quando caminha pela cidade, possui um olhar de melancolia, mas também de deslumbramento. Olhar transmitido pela fotografia da obra, ao registrar todos os cenários e espaços onde o filme acontece. Ao visitar a casa da mãe, caminhar pela cidade ou ir à igreja, tudo parece novo, mas, ao mesmo tempo, familiar.
É um sentimento despertado pelo encontro do personagem com a cidade, um misto de surpresa e reconhecimento. Notamos essa sensação, quando observamos o caminhar de Felice, um passo tranquilo, de quem observa tudo ao redor e parece contemplar a paisagem e as pessoas. Como ele transita pelas ruas, destaca sempre a arquitetura do lugar, as ruas estreitas e os vizinhos nas janelas, parece mostrar o bairro como um labirinto. A fotografia, em algumas cenas, o encaixa no centro da imagem, destacando a relação dele com o ambiente. Ao mesmo tempo, busca registrar o ponto de vista do personagem sobre cada região.
Eu gosto do tratamento dado à memória, de como as cenas antigas aparecem em um quadro reduzido na tela, em uma imagem semelhante a Super 8. Esse tem sido um procedimento muito utilizado pelas produções audiovisuais, em registrar as lembranças ou o passado com outro tipo de formato, como as produções da HBO usam imagem em VHS, com granulações. Um recurso que antes era muito utilizado com a imagem preto e branco.
Não sei se todos sentem isso, mas para mim, durante todo o filme, Felice pareceu buscar um lugar na comunidade, tentar novamente se colocar ao lado das pessoas e do lugar que ele abandonou. O problema é o conflito gerado por esse desejo, como disse antes, apesar de ter nascido em Nápoles, a cidade não é mais a mesma e ele está mais próximo a um estrangeiro, que um morador local.
É bonito notar, como a casa alugada por ele possui uma iluminação muito diferente do restante da cidade, onde os dias parecem sempre nublados e cinzas. O ambiente é mais claro em algumas ligações da esposa também. Apesar de várias cenas serem de dia ou pela manhã, a cidade passa uma impressão de estar suja e escura, um tom de tristeza, como na casa onde a mãe morava e bem diferente dos dois ambientes citados.
É curioso, como todos tentam convencê-lo a ir embora, como ninguém parece ver motivo para ele ficar na cidade. Quando Rafaelle, Aniello Mascia, o aconselha a retornar ao Cairo e desistir de procurar o amigo, ele contesta em árabe. Novamente, não sei se todos notaram isso, mas gosto de como ele, nos 40 anos que ficou fora, parece ter adotado uma nova identidade. Não só fala árabe, mas também é muçulmano. Tem uma esposa e uma empresa em outro país, qual motivo para ficar em uma cidade, sem nenhum parente ou amigo? Apenas o sentimento de nostalgia…
Esse sentimento me parece extremamente conservador, mas, ao mesmo tempo, ilusório. Retornar às suas raízes tem um preço. Olhamos para o passado como se algum dia houvesse uma época ideal, como se tudo fosse melhor antigamente. Quando ele fala para a esposa que tudo está igual, tenho a impressão de falar mais sobre seu desejo, sobre a projeção de seus sentimentos em relação à cidade, do que do próprio lugar.
Filme dirigido por Mário Martone, ovacionado em Cannes.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
GOLDA – A MULHER DE UMA NAÇÃO (2023) – CRÍTICA A busca pelo sublime, talvez seja a melhor definição para a forma estética do filme . Toda a fotografia, atuação, trilha vão na direção de elevar a personagem para uma posição grandiosa. Mesmo quando colocada em situação de fragilidade, quando enfrenta o julgamento ou quando passa pelo tratamento de saúde, Golda, interpretada por Helen Mirren, ainda é fotografada em uma posição eminente. Sua humildade, o ambiente austero e como a tratam os ministros e generais, serve justamente para colocá-la na posição de messias, ao ser rebaixada é elevada a uma posição mais alta.
A primeira cena transmite a sensação de isolamento. Não vemos ela por completo, mas apenas seus gestos, o olhar melancólico, o cinzeiro cheio, o cigarro aceso, gesto de quem se prepara sozinha. Essa sequência em vários planos decompostos é complementada pelo desfoque das pessoas ao seu redor. A vemos caminhar entre diversos manifestantes, mas não vemos os rostos de ninguém, pois os olhos estão todos nela, a atenção do mundo, os problemas do país, caem sobre os ombros da Primeira Ministra. É a penitência de uma “grande” líder, carregar os problemas da nação e sofrer com isso.
Ela surge sempre caminhando ao centro, as cenas normalmente começam com o andar em frente. Em seguida, temos um plano aberto, no qual vemos todo o espaço ou conjunto, onde os atores entram em cena. Os planos detalhes da personagem acendendo o cigarro ou anotando no caderninho, servem como “pontos finais” das sequências. Temos uma crescente, Golda entra no escritório, senta à mesa e depois acende o cigarro ou anota no caderno. O ritmo do filme é então marcado pelo caminhar apressado de uma líder idosa, pelos gestos meticulosos e por longas reuniões cheias de tensão.
Se os planos detalhes marcam o ponto, a virada das sequências e como as cenas mudam o ritmo, os closes marcam a tensão. O close afirma o desespero, o medo, a perda, e a falta de fôlego. Quando ouvimos os soldados sendo massacrados na batalha, vemos os olhos tesos de Golda. Ou quando todos a pressionam por uma decisão, os olhos demonstram o sentimento de estar encurralada.
O sentido dessa fotografia é mostrar uma mente lúcida, em um corpo cansado, em meio a pessoas desorientadas ou abatidas. A visão sublime de Golda está em, mesmo com um linfoma, ela não perde a agilidade, em meio a tantas dificuldades, não descansa, pois sabe a necessidade de lutar. Quando ela recorda de sua infância, ela justifica o esforço feito para liderar o povo judeu, como as ações de guerra.
Reparem, em como ela parece onipotente, mesmo com os conselhos, mesmo com as dúvidas e erros, ela é a única que defende isoladamente a resistência. Golda é mostrada, entre seu colegiado, como Israel é mostrado. Verdade ou não, o filme parece em todo momento afirmar que o povo judeu não pode contar com ninguém, a não ser consigo mesmo. Apenas com ameaças e pressão, os EUA enviou aviões e apoio ao país, mesmo assim, o filme mostra essa ação, como algo tímido.
Esse não é o único paralelo da personagem, com a situação do país. A fumaça do cigarro, em mais de um momento, é referenciada como a fumaça da guerra. Quando uma batalha termina, ela expira a fumaça, como se o fogo das armas tivesse cessado. Toda a luta por se manter firme, lúcida e à frente de seus conselheiros é um paralelo com Israel. Ela e seu país são um corpo estranho, no continente.
As cenas de guerras são mostradas do alto ou relatadas, não temos grandes sequências de ação, o interessante aqui é como o roteiro constrói a moral da guerra. Durante todo o filme, Golda afirma ter errado em não ter começado ou se preparado para a guerra. Yom Kippur era um feriado no país, havia problemas para se preparar, mesmo sabendo da possibilidade do ataque, mas ela não o fez. Ao mesmo tempo, com exceção de uma cena jornalística, inserida no filme, os árabes não existem. O inimigo não tem rosto, nem corpo. Isso simplifica muita coisa, como em justificar o ponto de vista sionista da situação.
É um tanto confuso sobre como a Síria e o Egito, apoiados pelos russos, perdem para Israel sozinha, com apoio tímido dos EUA. O ponto de vista do filme é de erros dos inimigos e uma estratégia certeira de Golda e seus generais. A versão ajuda a construir o argumento de que o caminho para o povo judeu se defender é se preparar sozinho, apesar de existirem aliados, eles devem contar apenas com as próprias forças. Não importa quais guerras devam provocar para firmar suas posições.
Esse discurso delirante não está nas entrelinhas, mas em cada palavra de Golda ao secretário americano ou aos seus generais. Ela afirma mais de uma vez que a força é a única forma de afirmar a existência do Estado de Israel. O filme não toca em como os judeus foram colocados lá, em como Israel se tornou um muro para o ocidente, nem como expulsou os árabes e expande seu território aos custos de vidas palestinas. O filme cita o holocausto, apenas para justificar todas as ações de guerra, crimes e perseguições de Israel.
Ao fim, podemos observar como o longa-metragem dirigido pelo cineasta Guy Nattiv, acontece em grande medida dentro do apartamento, em lugares fechados, salas de reuniões. Não sei ao certo onde ela está, mas parece um abrigo subterrâneo. Os cenários confinam nosso olhar em um ambiente escuro e de cores frias. A única cena iluminada, com o sol entrando pela janela, é quando ela morre e essa cena parece mostrar como a vida da personagem foi construída em cima da morte da paz, ao vermos as dezenas de pássaros mortos. Mesmo aqui, tudo parece justificar as “ações sublimes” da líder sionista.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
ALÉM DE PABLO (2023) – CRÍTICA Fui assistir ao filme sem ter lido nada, nem entrevistas, nem a sinopse. Sabia do tema: saúde mental, mas apenas isso. Logo, minhas impressões foram baseadas apenas nas imagens em movimento na tela.
Os primeiros minutos do Curta-metragem decupam o espaço em diversos planos detalhes. Fragmentam nosso olhar para mostrar o cuidado do personagem principal Pablo, interpretado por Ged Castro, com o apartamento e com objetos que caracterizam sua personalidade. Tudo excessivamente limpo, organizado, nem uma garrafa fora do lugar. Esse excesso de zelo, talvez aponte para o quanto o personagem está desorganizado internamente. Não conseguindo resolver os problemas internos, busca manter o ambiente em ordem, uma forma de escape para suas angústias.
Essa desordem mental é percebida, quando ele encontra a mulher com o filho no elevador. Tudo parece um sonho e confuso mentalmente. Tudo fica ainda mais suspeito, quando o vemos com as castanholas e quando ele fala do morador que precisa ir embora. É interessante todo esse jogo, essa dúvida, esse chamamento que o cineasta Ebner Gonçalves faz ao espectador. Ele o confunde, mas o esclarece, aqui talvez pudesse deixar dúbio, não explicar, instigar um pouco mais a dúvida, mas o objetivo da obra não é esse.
Pablo é um filme para expor e mostrar um problema: a necessidade de cuidado com a saúde mental, sacrifica assim algumas questões narrativas e estilísticas, esclarece outras para não restar nenhuma dúvida. Como uma obra que pretende ser educativa, não busca instigar dúvidas entre os espectadores. Isso explica os longos diálogos explicativos e como o suspense vai desaparecendo a medida que o filme vai encerrando. A impressão é um retorno a ordem. O ambiente organizado, harmônico do apartamento acaba tomando o espírito do personagem. A mudança de roupa, ele nunca tirava o roupão, também representa uma mudança de tom.
O filme não deixa dúvidas sobre qual personalidade era a correta, nem qual deveria ficar. Isso não nos impede de ficar com um certo desconforto, nem imaginar se a solução dada e a roupa usada, era realmente a correta. Talvez a personalidade qual ele tenta expurgar, não devesse ser expurgada.
Um elemento predominante no filme é a música, como sempre introduz ou fecha alguma sequência, isso antecipa nossos sentimentos em relação às cenas. É interessante para evocar suspense, mas perde um pouco da expectativa em alguns momentos. O espectador assiste à cena com um sentimento embalado pela trilha. Isso cansa um pouco.
A obra tem caras conhecidas do cenário cultural joinvilense, como o ator Robson Rodrigues, a artista plástica Nicole Leite e a apresentadora, Fabíola Bernardes. É interessante, como os cineastas da cidade tem certas preferências pelos mesmos atores, como eles sempre encaixam determinados rostos em algum personagem coadjuvante ou principal de seus filmes. Como se as obras sempre tivessem pensando neles. Assistir a um filme feito em Joinville e não ter um rosto conhecido de outros filmes, às vezes, surpreende. Trabalhar com os mesmos ajuda qualificar o trabalho, poupa tempo, mas impede de novos quadros de se formarem, cai em uma rotina. Escolhas de um filme são sempre políticas, isso vai desde a concepção do roteiro, a escolha dos atores até a produção do filme.
Ao fim, o filme tem assim um grande potencial educativo. Deve ser assistido nos cursos de psicologia e utilizado nas discussões sobre saúde mental. É uma obra com um cuidado meticuloso na arte e em tentar esclarecer nossa sociedade sobre um problema que assola diversas pessoas.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS (2023) - Dir.: André Bushatsky
Uma obra pessoal e descontraída, sobre as vítimas do nazismo, refugiados e a extrema direita no mundo
Gosto de como o cineasta André Bushatsky caminha por Berlim visitando os monumentos e lugares históricos dedicados às vítimas do nazismo. A visitação a esses espaços no presente, em um dia totalmente diferente daqueles do passado, nos obriga a imaginar, por meio dos relatos da guia e das perguntas do cineasta, como tudo aconteceu, como foi o sofrimento daquelas pessoas, quando a barbárie se tornou uma ação política.
O filme pode assim ser resumido em um resgate da memória, mas de uma forma diferente. A preocupação da obra não é apenas manter viva as lembranças das vítimas, mas nos alertar sobre como as ideias que conduziram o nazi-fascismo ainda existem e nos atingem em uma ou outra crise política.
Durante as entrevistas, os idosos, todos com idade muito avançada, mas com uma memória extremamente afiada, mostram relatos de diferentes formas de violência e perseguição. A menina impedida de tocar piano é um exemplo. Todos partem de um lugar diferente para contar suas lembranças, mas em alguns momentos cruzam pelas mesmas palavras, como esconder, fuga, morte e floresta. Achei aterrador o fato de muitos falarem da floresta, como um refúgio, ass pessoas perseguidas pareciam estar condenadas a viver como animais…
A obra, como muitos documentários, tem sua matéria-prima baseada em entrevistas e imagens narradas. Existem cenas de arquivos, mas o grande diferencial está no trabalho com as cenas externas, as imagens dos monumentos de Berlim. Distraí nosso olhar das longas conversas. Infelizmente, não em todo momento, algumas entrevistas são extremamente longas, sem um movimento de câmera, nem plano externo que nos ajude a absorver a informação.
O filme segue um formato de reportagem, como Bushatsky nos guiando entre as entrevistas e as caminhadas por Berlim, nos apresentando as pessoas e os lugares. O jeito espontâneo do cineasta, em tratar os entrevistados, lembra muito as matérias do Fantástico. Ele toma café, come na rua e fala de forma descontraída. Quem gosta desse perfil de matéria, talvez goste do filme.
Quem não gosta, precisa entender a proposta do autor, isso pode não mudar a opinião, mas explica as motivações. Um Pouco de Mim, um Pouco de Nós, trata de um tema relacionado ao cineasta, seus avós fugiram da Áustria e foram refugiados. Apesar de dedicar um longo espaço às lembranças das perseguições nazistas, o filme busca amarrar essa discussão com o tema da extrema-direita, xenofobia e dos refugiados atualmente. Os entrevistados, como Pedro Bial e Mário Sérgio Cortella, o ajudam a costurar os assuntos.
Nesse momento, o filme nos provoca a pensar como, todos nós, fomos ou estamos ligados aos refugiados. Também nos provoca a refletir sobre as ideias da extrema-direita que se alimentam da xenofobia, preconceito e da recusa em aceitar o estrangeiro, da mesma forma como o nazismo fez.
Ao fim temos um filme com um tema bastante sério, mas com um tom descontraído e pessoal. Caso houvesse espaço, a obra caberia muito bem na TV aberta, em um horário livre. O cineasta não tem grandes preocupações estilísticas, mas uma grande preocupação em ouvir histórias, conhecer pessoas, em ser íntimo delas e assim mostrar um pouco de si e pouco de nós.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Um média-metragem sobre desenterrar o passado, expor as feridas e contar uma história pouco conhecida em Joinville
Em uma cena, no meio do filme, um grupo de idosos conta como era morar nos fundos do Cemitério Municipal de Joinville. Eles relatam tudo de uma maneira alegre. Sorriem, contam anedotas e afirmam muitas vezes como a vida era feliz naquela época. Segundo os idosos e entrevistados durante o documentário, ninguém sabia de toda a História do local. Sabiam da prisão durante a Segunda Guerra Mundial, mas não sobre o Abrigo de Alienados, o hospício.
É curioso, como um ambiente impregnado de histórias cruéis, também possa produzir memórias felizes. Ao sepultar parte do passado, os governos e as elites, quem construiu o Abrigo, permitiu ao terceiro grupo de moradores, policiais militares e suas famílias, construir uma vida feliz e alegre. Soa grotesco imaginar a felicidade de alguns em um ambiente onde muitas pessoas sofreram e morreram, mas essa cena, como todo o filme, nos provoca a pensar em como existem histórias sobre nossa cidade que precisam ser desenterradas. Como relata o historiador Dilney Cunha, existem muitos tabus sobre a cidade, questões às quais muitos preferem não lembrar ou esquecer.
O filme começa com cenas do Cemitério Municipal de Joinville, vemos diversos planos e ângulos das sepulturas, um local totalmente vazio. A música nos provoca um sentimento misto de tranquilidade e melancolia. Os letreiros, excessivos em alguns momentos, contam a História do Abrigo Para Alienados que existia ali.
A roteirista e pesquisadora, Mariana Zabot Pasqualotto, é quem conduz as entrevistas, realiza as pesquisas e faz as conversas. Ela é a personagem principal do filme. Durante várias cenas, ouvimos sua voz ou a vemos percorrer as pistas da instituição psiquiátrica que funcionou entre os anos de 1923 a 1942, em Joinville.
Apesar de ser um documentário, o filme divide uma tensão entre os tons de terror e melancolia, entre assustar diante da crueldade humana e nos provocar lágrimas pelo sofrimento alheio. As cenas encenadas por atores lembram fantasmas, essa impressão é reforçada pela imagem em preto e branco. Aqui, talvez estejamos sendo assombrados pelo passado; ou lembrados sobre o sofrimento dessas pessoas: incompreendidas, isoladas do mundo, presas e amontoadas em uma cela. Eram fantasmas ainda em vida, a morte apenas sacramentou o destino a qual a sociedade os havia condenado.
É uma escolha estética manter essas cenas em alusão ao terror, mas também estimular sentimentos de melancolia e revolta com as entrevistas, pesquisas e as conversas descontraídas. Um dos momentos tocantes é quando o pesquisador Lucas Muenster, descobre o destino da trisavó. A história dele ilustra como a mentalidade da época era de esconder qualquer indício de uma pessoa que não fosse “normal” na família.
É um exercício interessante assistir 1951 sobre a história do centenário de Joinville e depois assistir Memórias Invisíveis. Com essa dupla, o cineasta mostra duas cidades diferentes, duas situações diferentes e o motivo da relevância do cinema para a História e a memória de nossa cidade.
Mulheres Armadas, Homens na Lata (2023) – Crítica A frase: a ocasião faz o ladrão, talvez se encaixe bem no roteiro de Mulheres Armadas, Homens na Lata, filme dirigido pelo cineasta francês, Allan Mauduit. Após assassinar acidentalmente o patrão abusivo, as funcionárias encontram uma mala cheia de dinheiro. Com problemas financeiros e precisando desesperadamente pagar as contas, elas decidem ficar com tudo. O problema é quando os mafiosos, donos de toda a grana, resolvem ir atrás delas.
Com personalidades fortes e características marcantes, as três personagens convencem o público pelas atitudes. Sandra (Cécile de France) é extremamente arrogante, cheia de orgulho e com ar superior. Os planos contra-plongée, frisam a intenção de mostrá-la de forma diferente das amigas. Nadine (Yolande Moreau) é uma mãe de família, sustenta a casa, cuida do marido e dos filhos e é quem parece mais comedida na hora de agir. Marilyn (Audrey Lamy) é mãe solteira, impulsiva e violenta, a mais impaciente das três.
As características vão além da personalidade, existe uma forma de agir e de se comportar durante o filme. Nadine anda meio desengonçada, Sandra com ar superior, enquanto Marilyn está sempre acelerada. A combinação das três personagens acaba por desenvolver uma relação extremamente cômica. Lembra muitos os filmes de comédia, com grupos de amigos, onde cada um carrega uma característica pela qual os identificamos.
Apesar de Sandra morar com a mãe, Nadine com a família e Marilyn com o filho. Elas não devem satisfação para ninguém. Todas trabalham na fábrica e isso lhe concede certa autonomia. Mesmo assim, em certos momentos Nadine e Marilyn mostram um certo recorte de classe. Elas parecem mais calejadas pelo tempo como operárias, enquanto Sandra cai de paraquedas nessa vida.
As três destoam muito de todos os homens do filme. Enquanto elas demonstram coragem e ousadia, mesmo com certo improviso. Os homens tropeçam em suas próprias pernas. Apesar da arrogância e força física, os personagens um a um são ludibriados pelas três amigas. É interessante observar esse ponto, os homens durante toda a obra exercem um papel normalmente dados para as mulheres, o de coadjuvante. Quando o marido de Nadine desconfia de seu envolvimento com crime, ele sai de casa com os filhos. Aqui, talvez haja um toque de subversão no roteiro, a inversão de papéis.
Uma pena ficar só aí, existe uma discussão sobre a violência de gênero, Sandra volta a morar com a mãe por ser espancada pelo companheiro. Há também o assédio na fábrica, mães solteiras e todos os problemas sofridos pelas mulheres por serem mulheres. A grande questão é o espectador ser entorpecido pela ação e pela violência e não enxergar esse debate… mas aí, talvez o problema seja eu esperar algo do espectador…
As cenas de violência incomodam pela crueza. Quem é homem vai sentir uma certa agonia na morte do patrão, mesmo ele merecendo o destino. Por outro lado, as cenas contra as mulheres chocam pela covardia, mas isso proporciona uma certa satisfação quando elas se vingam.
Ao fim é um filme que diverte, entretém, mas também propõe algumas discussões em segundo plano. Tudo regado com muito sangue e boas risadas. Uma pena o título não ser Rebeldes, como em francês.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
1951 – Crítica Discursos saudosistas sempre me preocupam, pois são carregados de sentimentos. Emocionam, nos tocam, inflam as massas e pintam o passado de uma forma extremamente idealizada. O documentário 1951, sobre as festividades do centenário de Joinville, me parece calcado em uma memória saudosista da cidade. A voz over e as entrevistas seguem uma mesma linha editorial, sem divergir em nenhum momento. Todos os entrevistados, que viveram as festividades falam sempre de uma cidade pacata, sem agitação, de um tempo onde tudo era melhor.
A obra é um exercício para o entendimento do papel do narrador no cinema, um personagem que conta a história, que guia o espectador por cada lugar e direciona seu olhar para um ponto de vista. Ele está evidente na divisão dos capítulos e na voz over, mas é na montagem onde esse papel é exercido de maneira transparente. O corte em cada fala de morador da cidade e a escolha de quem fala sobre os 100 anos, mostra o direcionamento para um discurso sem contradições e marcado pelo pensamento hegemônico da cidade.
O filme inicia com o discurso sobre as grandes mudanças no mundo no ano de 1951 e coloca Joinville no centro. Fala do pós-guerra, da industrialização e de seu centenário. A imagem do discurso de Getúlio Vargas reforça a importância dessas mudanças, mas durante o filme a perspectiva parece se voltar ao passado do cotidiano, sem tocar nas questões políticas e sociais de Joinville. A obra mantém a imagem reconhecida da cidade, sem questionar. Fala da cidade das bicicletas, do povo ordeiro e trabalhador, a imagem do Príncipe e a educação alemã. Mitos que existem apenas para um pequeno círculo. Quando falam do Rio Cachoeira, não existe nenhum questionamento sobre quando não se pode mais tomar banho, nem quem são os grandes responsáveis pela poluição. O único conflito e divergência durante todo o curta é sobre quem torcia para o América e quem era Caxias.
O filme segue assim uma linha transparente, sem surpresas na forma ou no conteúdo, isso torna a obra eficiente em transmitir sua mensagem. Mesmo se baseando principalmente em entrevistas, o cineasta Ebner Gonçalves consegue fugir do enclausuramento do olhar quando muda o ângulo e o plano da imagem dos entrevistados. As cenas em planos abertos são reservadas às imagens de arquivo e para o plano final. Não existe muito espaço, nem razão para som ambiente, logo a trilha segue o tom saudosista das falas.
A forma se adapta ao conteúdo das anedotas sobre um dia feliz para pessoas que compareceram na festa do centenário. Um após o outro, eles contam sobre como era o cotidiano da época e como foram felizes ali, talvez seja uma chatice minha exigir um outro ponto de vista, afinal em dias de festas todos querem esquecer dos problemas e apenas sorrir.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Aftersun (2023) – Crítica Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Maré de Conflitos (2022)- Crítica A destruição e o cuidado com o meio ambiente dividem as pautas nos meios de comunicação. A ênfase das notícias em preservar parece ser a mesma em destruir. Ficamos com uma sensação estranha, não sabemos se avançamos nos cuidados ou se estamos à beira de uma catástrofe climática. Esse sentimento de estranhamento provocado pelas notícias é semelhante ao assistir o documentário Maré de Conflitos, dirigido e roteirizado pelo jornalista Altamir Andrade.
A narrativa do curta-metragem nos revolta, mas também consegue nos tocar. Vemos inúmeros ataques contra o meio ambiente, mas também inúmeras belezas da Baía Babitonga. O mar, os mangues, as espécies de pássaros e peixes nos provocam um sentimento de deslumbramento. Fragmentada em planos gerais ou closes, a fotografia do filme consegue produzir uma narrativa sedutora. Quem não conhece os lugares, com certeza ficará tentado a conhecer e, muito difícil, quem mora na região, não se sentir orgulhoso.
A revolta surge justamente desse orgulho, pois vemos o quanto o discurso do progresso econômico, esconde, em alguns casos, a despreocupação com as comunidades e a região afetadas por essas ações. Navios, exportações, geração de empregos, portos são uma imagem comum aos olhos de um país produtor de commodities. Mas não é comum falar sobre como essas ações afetam o meio ambiente, nem o nosso futuro.
A visão do diretor está marcada por essa preocupação com o futuro. As falas no documentário são de quem defende os interesses das comunidades locais ou deseja preservar a Baía da Babitonga para as novas gerações. Professores e ambientalistas falam, mas a voz realmente importante e com peso são os pescadores. É quem dá a dimensão poética da imagem e consegue ilustrar a degradação do meio ambiente.
Mesmo com a saturação de informação, o corte do filme e a escolha das entrevistas conseguem traduzir a dimensão do problema, mas é a montagem que produz a síntese entre todos os discursos, não fica ponta solta.
O documentário consegue provar, como mesmo sendo um filme curto, 25 minutos no caso, se pode tratar de temas complexos e de forma aprofundada. Como também prova a grande capacidade do cinema como ferramenta educativa e militante. Um filme, seja curta ou longa, pode entreter, pode também nos emocionar, mas aqui ele revolta e nos desperta os olhos.
Passagem de Volta (2022) – Crítica Um longo período dedicado ao trabalho ou alguma responsabilidade de maneira intensa, sem nenhuma folga ou espaço para respirar, esgota qualquer pessoa. Mesmo os mais fortes, em algum momento se abatem e querem deixar de existir. É um sentimento comum, fruto do conflito entre o querer e o poder. Na maior parte das vezes, as pessoas aceitam não poder, enterram seus sonhos e esquecem. Quando isso não ocorre, nascem as frustrações e acabam vivendo uma vida amargurada, sem sentido e cheias de pesares.
O personagem principal do curta-metragem Passagem de Volta é uma dessas pessoas. Ele está suturado com o trabalho e no ápice do estresse. Não aguenta mais as brigas com a esposa e sente falta do convívio com a filha. Queria estar mais presente, mas para prover uma vida melhor para eles, precisa passar os dias fora. Parece não existir outra possibilidade, mesmo quando foge para ver o mar.
Apesar de parecer ser um homem com dinheiro, algumas atitudes nos forçam a duvidar da situação financeira do personagem. Na primeira cena, ele reclama do preço do café, mas após o cancelamento do voo, nada parece caro. Ele distribui dinheiro onde vai. Dá uma gorjeta à garçonete, interpretada por Ianca Michelini, e paga o dobro para o taxista, interpretado por Lucas Ukah. O esbanjamento pode ser fruto de um desprendimento, nada mais importa, mas também pode ser uma libertação. Quando ele vai beber uma cerveja, pois ele diz hoje poder, a pergunta é: quando não pode?
O motor narrativo do curta-metragem é o conflito interno do personagem, a trama avança quando o homem questiona as escolhas feitas em sua vida. O avião não ter decolado é apenas um empurrão. O filme prende nossa atenção e mantém nosso interesse vivo devido a condução da direção, quem consegue administrar durante toda a obra, o suspense sobre o destino do personagem.
Isso nós vemos, na forma da montagem, ao parecer recortar duas sequências e espalhá-las em uma linha do tempo. Pode ser confuso no início, bagunçar um pouco, deixar o espectador com dúvidas, mas nenhuma ponta fica solta. Durante todo o filme, por exemplo, uma cena funciona como um presságio de algo ruim, aparece, entre uma sequência e outra. Há também duas cenas dos pés, uma ao início e outra ao final. As duas conectam toda a narrativa.
O ator, Welington Moraes, consegue encarnar um personagem com mudanças bruscas de temperamento, mas com momentos de alívio. Quando caminha não vemos vida na forma de andar, nem força em seus gestos, parece um zumbi, se arrasta para os lugares. Isso muda quando estoura no quarto, explode com a esposa, mas fala tranquilamente com a filha, ao contar uma história de ninar. Ele demonstra um grande talento em convencer com as oscilações, como na praia, um momento que parece totalmente louco do personagem.
Ao retratar o dia estafante de homem de negócios, a diretora e roteirista, Fahya Kury Cassins, consegue mostrar como a rotina pode se tornar uma prisão e como isso tolhe toda a personalidade. Ela retorna a um assunto já abordado em seu outro filme, Fim de Tarde: o tempo dedicado a nossa felicidade e a quem amamos. Passagem de Volta, aprofunda o assunto, muda a abordagem e nos força a pensar sobre quanto tempo dedicamos àquilo que realmente importa.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O Panaca (2022) – Crítica Não há falas nos primeiros minutos do filme e isso incomoda muito, pois toda a construção das cenas indica uma tensão. Algo parece prestes a explodir e esperamos, como de costume, gritos de raiva e longos diálogos, mas não é essa a proposta da cineasta. Não é preciso de palavras para construir uma trama. A sétima arte concedeu ao ator a possibilidade de expressão por meio dos gestos, closes e planos detalhes. O cinema nos concede a oportunidade de “vermos e ouvirmos” o silêncio dos atores. E isso, o curta-metragem O Panaca, dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins, nos mostra.
A construção narrativa direciona o olhar do espectador para questionar as ações dos personagens. Todas as sequências nos levam sempre a terminar perguntando, por quê? O roteiro trabalha com as reações do público. Não sabemos se a traição foi o estopim para a violência do casal, aparentemente é a fuga, mas isso não está claro e não é um problema narrativo. Os fatos estão consumados e a cineasta deseja nos provocar a imaginar todas as consequências. Como ele fez? Ela está em perigo? Quem era a pessoa? As perguntas acumulam-se no decorrer da obra.
Quando o filme começa não precisamos nos esforçar para notar a preocupação da esposa, interpretada por Nara Nowischk. A ebulição da água na chaleira marca o fim da paciência. O olhar para o nada e a desatenção com a filha, interpretada por Júlia Hilger, sinalizam o nervosismo. Ela não consegue parar de olhar para o celular. A atriz consegue assumir o papel de uma personagem de corpo presente, mas com a cabeça nas nuvens, alguém consumida pelos próprios pensamentos.
Também não nos esforçamos para notar as emoções do marido, interpretado por Luciano Flora. Há um misto de sentimentos negativos transmitidos pelo personagem. Todos sinalizam violência. Quando ele segura o volante com raiva, como se enganasse alguém ou várias e várias vezes faz o sinal de não com a cabeça, imaginamos uma série de situações. O lugar em que ele aparece pela primeira vez e o carro sempre em movimento, sugerem algo ruim, como a roupa suja de sangue.
As perguntas sobre o casal aumentam quando assistimos aos flashbacks do marido. Ele está sempre com a filha. O clima das memórias é sempre feliz, como as cores do figurino destacam. Ao mesmo tempo, onde estava a mãe? Qual o motivo de ela não participar das memórias felizes com o marido e a filha? O celular nos mostra algo, não sabemos em detalhes, mas entendemos o problema e nossa atenção é direcionada a questionar as motivações e razões do casal. Tanto para a traição, como para algo pior.
A ausência da voz devolve ao cinema, a visualidade de sua origem, quando o som ainda não havia sido inventado. Claro, aqui a situação é bem diferente, existe o som diegético e uma trilha sonora original, composta por Anna Viliczinski. Isso não diminui o mérito de dois elementos essenciais para construção da narrativa, os atores e a montagem construída por Marcelo Eduvirge. Sem o elemento da fala, os atores foram obrigados a trabalhar o gesto, o olhar e a expressão corporal. Todas as cenas são organizadas para dirigir a percepção do espectador. O filme funciona e consegue atingir seu objetivo devido a montagem da obra ser construída na mente do público, com as sugestões e provocações da cineasta em cada plano.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Gritos do Sul (2022) – Crítica O fascismo representa a reação da burguesia contra toda a ameaça de levante da classe trabalhadora. As crises do capitalismo produzem as possibilidades de revolução e contra-revolução. A pequena-burguesia falida, hoje chamada de classe média, como o lumpesinato, conhecido como precariado, encontram nas posições reacionárias do fascismo um ponto de apoio à crise do sistema. Eles não desejam se tornar assalariados, nem querem ser parte da classe trabalhadora, acreditam ser autônomos e estarem em nível superior. O movimento fascista os infla contra todas as bandeiras progressistas, pois para tomar o poder precisa destruir quaisquer resquícios de organização popular que ameace os interesses do capital.
As semelhanças com o bolsonarismo não são casuais. Deus, Pátria e a Família era o lema de Hitler. Grupos neonazistas sempre flertaram com o ex-presidente. Suas bravatas mais inflamadas, como: metralhar os petistas, acabar com terras indígenas, atacar o MST, com os sindicatos e censurar a imprensa, também não deixam dúvidas sobre suas inclinações. Ele só não foi mais longe, por não encontrar o apoio necessário. A invasão do Palácio do Planalto e do STF demonstra disposição dos apoiadores, a depender da situação econômica e do próximo governo, esse grupo pode crescer e o bolsonarismo ressurgir. É sobre isso que o curta-metragem Gritos do Sul nos alerta, sobre o fascismo sempre a espreita…
Gravado durante a pandemia do Covid-19, nas cidades de Joinville e Campo Alegre, o filme retrata a situação política do Brasil, o negacionismo científico e as simpatias neonazistas de determinados setores da sociedade catarinense. Quem nunca pensou na política brasileira como um gênero de terror, talvez não conheça a história de nosso país. A Matéria prima sempre existiu, faltava imaginação para a narrativa, uma trama sem escapismo e enraizamento na realidade local. Tudo isso encontramos no curta-metragem dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins.
O filme narra a história de um casal catarinense e seu filho em um fim de semana no campo. Os dois aguardam ansiosamente para passar alguns dias em um chalé aconchegante próximo a natureza. No meio da pandemia, sair do confinamento e mudar de ambiente é tudo que eles mais desejam. Preocupados apenas em relaxar, os dois não percebem como estão sendo manipulados e guiados para uma armadilha. O passeio comum e despretensioso acaba se transformando em um pesadelo com consequências nefastas.
Não há nada de errado com o casal Maíra, interpretada por Ianca Michelini, e Eduardo, interpretado por André Ribeiro, mas em uma cidade pequena ou em um lugar com vocação provinciana de Santa Catarina, uma mulher loira de olhos azuis com homem negro, tendem a despertar olhares curiosos, ainda mais com um filho loiro. Não é difícil imaginar os pensamentos do casal de idosos ao vê-los juntos com a criança. Mais importante que notar as falas são os gestos. Descendentes de alemães e donos do lugar expressam uma mistura de sentimentos, entre o nojo e a raiva.
Gertrudes, interpretada por Nenê Borges, demonstra esses sentimentos ao tentar, a todo momento, se aproximar da criança, ignorando o pai e a mãe. Não é só o toque e as brincadeiras que incomoda, mas a forma invasiva de querer afastar o bebê dos pais. Gerson, interpretado por Sérgio Ubiratã, não perde tempo em destilar todo ódio, xenofobia e preconceito, acompanhado das fake news. Apesar de todo o ar de tiozão, a roupa com estilo militar assusta.
Ao contrário de Eduardo, que parece agir no piloto automático e sem pensar, Maíra parece estar sempre preocupada, mesmo que de maneira tímida, ela tenta alertar o companheiro sobre o perigo. Não gosta da aproximação do casal de idosos do filho, nem do fato do lugar ser diferente, mas o marido não liga. Ele prefere agir impulsivamente. Isso os impede de ficar em segurança e os torna um alvo da armadilha.
A cena principal do filme, quando vemos o filho de Gerson e Gertrudes, interpretado por Gabriel Maier, assusta os personagens, mas não os afasta do local. Eles parecem não entender o perigo, nem a situação, mesmo com as falas óbvias do casal de idosos, eles resolvem seguir com o passeio de fim de semana. Esse engano ou anestesia de Eduardo e Maíra, talvez sirva como metáfora. Durante anos ouvimos falar que os discursos de Bolsonaro não deveriam ser levados a sério, que não existia perigo e ele só vivia dessas bravatas. O casal, como muitas pessoas, inclusive grande parte da esquerda, se negou a enxergar a realidade.
O roteiro tem um ponto forte em seu subtexto, notamos a bandeira do Brasil em cada canto, a camisa do genocida, as falas explícitas sobre o fascismo, mas demoramos a notar os gestos e como eles são conduzidos para um caminho sem volta. Eles não vão para o lugar agendado, a idosa entra na casa, o bebê chora, além disso a motosserra não para. O som anuncia o perigo e marca a evolução da tensão.
A criança não é apenas um personagem coadjuvante, o casal de idosos, em sua ideologia fascista, com suas atitudes mais sujas, em crimes mais horrendos, inclusive contra crianças, enxergam no bebê um ideal de pureza que eles não possuem. É preciso resgatá-lo de uma união com pessoas de “raças inferiores”. Eles não conseguem enxergar de modo diferente, a crise do sistema é uma crise de valores. O capitalismo começa a ruir, quando as pessoas se misturam, quando o mundo não funciona mais como no passado. Preservar a pureza das crianças é a única para fortalecer seu modo de vida. Pode soar apavorante, retrógrado, mas muitos pensam assim…
O curta-metragem Gritos do Sul, nos mostra como as bravatas incendiárias e a defesa das posições mais reacionárias não devem ser ignoradas. Há alguns anos, talvez eu reclamasse da verossimilhança das frases ditas pelos personagens ou do exagero, atualmente acredito estar extremamente adequado à realidade. Os últimos anos tornaram as atitudes grotescas, como no filme, um elemento presente em nosso cotidiano e fizeram do país palco de um filme de terror. Os gritos do sul, não são ficção, mas uma realidade. Ao fim, é uma obra para ser vista e revista.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O Caso dos Irmãos Naves (1967) – Crítica Mesmo se passando no período da ditadura Vargas é difícil assistir ao filme e não relacioná-lo com a ditadura militar. A obra evoca referências em nossa memória. Ao falar de uma injustiça, comenta outras situações e nos provoca a refletir sobre nossa história. É um filme de denúncia, crítica e, talvez, de reparação. Mostra como uma obra de arte e o cinema produzem metáforas e mitos, que nos ajudam a entender e a explicar nossa história.
A trama se passa em Araguari, uma cidade do interior de Minas Gerais, em 1937. Os Irmãos Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira), denunciam na polícia o desaparecimento de Benedito com o dinheiro de uma colheita de arroz. O Tenente (Anselmo Duarte), empossado pelo governo recente, duvida da narrativa dos irmãos e passa a acusá-los. Eles e seus familiares são presos, torturados e obrigados a confessar um crime a qual não cometeram.
O desenvolvimento do roteiro ocorre sempre com comentários do narrador, que situa o olhar do espectador diante das imagens. A narração adquire uma estética radiofônica, narrando os fatos, alertando sobre o tempo que passou, como revelando os desfechos. A voz em um tom imparcial, sem manifestar emoções, lembram um relato jurídico, como se o filme fosse narrado a partir das atas dos tribunais.
Assim, quando vemos o trem partir, a voz over fala sobre Benedito ter viajado sem rumo. O cineasta Luís Sérgio Person, nos apresenta primeiro a conjuntura dos fatos, depois a voz dos personagens-títulos. Também acrescenta um tom de “realismo” à imagem, na forma distante como observamos cada morador na rua comentando as últimas notícias, o crime e a posse do novo governo. Essa forma ajuda a entender a virada da história, em como os Naves passam de acusadores para acusados. Mostra como a história ganha uma nova versão e como as mudanças políticas influenciam na vida cotidiana.
O depoimento com delegado civil não consegue concluir nada, então o Tenente nomeado resolve agir. Sua atitude desde o início é de desconfiança e violência, tratando os depoentes favoráveis aos Naves sempre como culpados. Não existe entrevista com o militar, mas um inquérito acusatório e tortura. Não existe presunção de inocência, apenas culpados.
A atitude do tenente durante os depoimentos se traduz em seu figurino e gestos durante todo o filme. Sempre de farda e com um sorriso cínico, ele encerra qualquer assunto por onde passa. Não tem nome, mas uma patente, não permite ninguém questioná-lo e tenta sempre se impor diante de qualquer resistência ou divergência. Quando o Coronel assume, é esperado uma atitude diferente, mas o que vemos é apenas uma intesificação da tortura, o alto posto de comando dos militares, não tinha divergências sobre os métodos, apenas sobre o tempo em resolver o caso.
A forma de pensar do Tentente lembrou muito as posturas dos inquisidores no filme Goya de Miloš Forman, no qual em uma cena eles afirmam que toda confisão sobre tortura é verdadeira e não pode ser anulada. Assim parecem pensar os militares em geral, depois de arrancar uma confissão, não importam mais os fatos. Uma ideia fixa os move, a população é sua inimiga e é tratada como tal.
Impossível descolar a condução do crime da política nacional. Com um novo governo, as pessoas esperam um tratamento diferente para problemas corriqueiros. Em momentos de crise, como um dos moradores fala, todos esperam um pulso firme. As atitudes do Tenente podem não estar amparadas na Lei, mas estão amparadas nas forças políticas que apoiaram o golpe de Vargas.
Ontem e hoje, podemos refletir sobre como as posturas de governantes influenciam pessoas que estão em posições de liderança e tratam diretamente com a base da população. Como essas posturas legitimam ou apoiam determinadas formas de conduta. O Tenente, quando chega não decide torturar por ser a última alternativa, mas por ser uma conduta militar.
As cenas de tortura pertubam e não são fáceis de assistir. O que mais impressiona são os olhares e a violência, em como os atores traduzem os momentos de agonia dos personagens. Não me parecem exageradas ou sádicas toda a violência mostrada, como alguns acusaram na época. Os socos, pauladas e as ameaças servem para mostrar como a tortura, como política de Estado, transforma os governos nos maiores terroristas da nossa sociedade.
O cineasta coloca o caso dos irmãos Naves no centro de dois processos históricos. Ao criticar o caso de injustiça, a tortura e os demandos do tenente, empossado pelo governo Vargas, fala da ditadura militar. Uma história específica de uma cidade do interior do Brasil se transforma em universal. Faz dos irmão Naves exemplos de vítimas do autoritarismo e de uma parte obscura de nossa história.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Encerrou ontem a primeira temporada de The Last Of Us, minha impressão é a série ser apenas um fan service, podemos falar sobre as qualidades da trama, sobre como eles ampliaram a narrativa, mas no geral, não existe uma grande justificativa para sua existência. O jogo é simplesmente maravilhoso por conseguir produzir uma obra de entretenimento que se aproxima de uma grande qualidade artística, mas no geral, qualquer cinéfilo, analisando friamente o game, não verá nada de mais, além de um roteiro bem construído. Os games atuais, devido a tecnologia, possibilitaram produções mais caras que filmes de Hollywood, também levaram para os consoles equipes cinematográficas. O grande mérito dos produtores foi sitentizar isso em um jogo, foi conseguir dar aos jogadores uma experiência de simulação e de cinema. A série transpos isso, mas não existe nenhuma inovação, teve todo um cuidado para não contradizer nenhum fato do game e colocar situações novas, sem atrapalhar a experiência de quem jogou. Ao fim, não acho que seja uma adaptação necessária, apenas um caça-níquel com muitas possibilidades.
A DÍVIDA DAS LOJAS AMERICANAS E O FILME EN GUERRE Lembrei do filme do En Guerre (2018), quando ouvi hoje pela manhã a notícia do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, estar reunido com sindicalistas e trabalhadores das lojas Americanas. A situação do filme é diferente da empresa brasileira, mas é semelhante em dois pontos: as ameaças aos empregos e a impunidade dos patrões. No filme, o cineasta Stéphane Brizé, retrata a luta de um sindicalista para impedir a demissão dos funcionários e o fechamento da fábrica Perrin. Interpretado por Vincent Lindon, o sindicalista Laurent Amedeo, não aceita a ruptura dos acordos e das promessas feitas pelos acionistas da empresa. Para ele, não está em jogo apenas a quebra de contrato, mas o fim da vida de muitas pessoas…
Brrizé vai narrar o filme do ponto de vista dos trabalhadores, mas principalmente do sindicalista, Laurent. Ele, diferente dos demais, entendeu o significado das demissões e do fechamento da fábrica. Ao narrar o filme desta perspectiva, toda a forma narrativa coloca o olhar dos espectadores junto aos operários da fábrica. Enxergamos o filme em meio a multidão da assembleia, entre os grevistas no piquete e os trabalhadores na reunião sindical. Em alguns momentos, se utiliza a imagem semelhante às de jornal ou como documentário para acrescentar realismo à cena. Tudo ajuda a elevar a tensão.
O fato de adotar uma posição ao lado dos trabalhadores não significa mostrar o caminho a seguir, mesmo assim, o filme aponta contradições importantes. Brizé, nos faz questionar o significado de justiça e da legalidade ao mostrar as justificativas dos empresários.
Para eles, não importa o definhamento econômico da cidade, após a empresa fechar, nem o fato de muitos trabalhadores não conseguirem mais empregos por estarem velhos. A lei permite, a justiça também, ou seja, em uma democracia capitalista, eles podem fechar a empresa e irem para o leste o europeu. Pode ser cruel, mas não é um crime. Eles podem diminuir a produção para elevar o preço dos produtos, dos quais detém o monopólio. Tudo isso é legal e justo dentro do sistema.
O esforço do sindicalista, que diga-se de passagem, não é nem comunista, nem marxista é exigir o cumprimento do acordo. É garantir os direitos ou achar uma nova saída, qual nenhum acionista deseja. Aqui, cabe mais uma semelhança, Marinho disse hoje pela manhã estar disposto a ouvir. É a única coisa que o governo pode fazer se atua dentro do sistema capitalista. Por mais injusta a situação, ele não vai intervir, pois a propriedade privada é sempre sagrada para o capitalismo e seus defensores, os empregos e as vidas não.
Eles não se importam, como nas Americanas.
Hoje a dívida está em 43 bilhões. Tinha lido 20, agora são 40, daqui uns dias o número aumenta. Esse débito foi adquirido de uma forma legal, por meio de uma operação chamada “risco sacado”. De acordo com o portal de Notícias DW, a operação é simples, você utiliza empréstimos bancários para o pagamento de fornecedores. De acordo com as instituições financeiras, esse serviço é vendido justamente por não ser identificado como dívida. Ou seja, na contabilidade está tudo bem.
Os acionistas perderam bilhões, mas isso não os impedirá de seguir com suas vidas. Lehman vai continuar defendendo a privatização da educação pública com seu instituto. Não sei se as universidades estrangeiras vão solicitar, mas provavelmente ele seguirá com as palestras. Julgo isso, pensando em como a hipocrisia não é um sentimento apenas nacional.
Agora, difícil vai ficar a situação dos empregados das 3.600 lojas físicas e os cerca de 40 mil funcionários, além dos 16 mil credores.
A julgar por aquilo que o cinema nos ensina, não espero compaixão, nem empatia, apenas capitalistas sendo capitalistas. Como no Filme En Guerre, não parece que a situação das Americanas vai terminar bem…
Podem como no filme, parcelar e pagar as indenizações ao demitir os trabalhadores, mas e os empregos?
É interessante sobre como isso é visto, na imprensa, não parece alarmista, nem radical, milhares perderem seus empregos e terem suas vidas imersas em dificuldades ou destruídas, mas é radical propor a expropriação da empresa e manutenção dos empregos. Qual a prioridade dos governos, garantir o direito de alguns empresários ou garantir o emprego de milhares…
A situação pode mudar, o mercado pode arrumar uma maneira de salvar a empresa, mas ainda assim, milhares de pessoas já sofreram pelo caminho, sem que nenhuma nota no jornal, nem ninguém se preocupasse com elas.
Aftersun (2023) – Crítica Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Faz alguns dias assisti o filme dinamarquês A Rainha de Copas, dirigido pela cineasta May el-Toukhy, gostei da obra, mas me incomodou muito a exposição da vítima. Eu entendo quando colocamos uma mulher em uma situação cotidiana, qual ela passa por assédio ou violência para chocar, para mostrar a realidade, fazer uma denúncia. Ou seja, mostrar que, por mais avanços e progressos, algumas situações ainda precisam mudar. Entendo, mesmo isso, mas ainda assim, precisamos refletir sobre a forma, não basta apenas expor o conteúdo. No filme, a personagem está insatisfeita, infeliz, toma algumas escolhas erradas, ela tem um serviço importante na comunidade, mas no geral toda violência sofrida por ela e por outros parece naturalizada. Não é papel do artista explicar tudo, mas alguns filmes na tentativa de instigar uma trama, de fornecer plots parecem acabar trabalhando contra a proposta inicial. Mostrar o quanto uma vítima está sozinha, o quanto não pode contar com ninguém e por isso tomou um caminho "legalmente" e "moralmente" errado é interessante, mas a conclusão disso tudo pode, em alguns casos, apenas justificar as opressões sofridas, como se ela procurasse passar por tudo que passou. Ao fim, o filme deixa um gosto estranho é bom, mas algo não parece estar certo...
Tenho um problema com a quantidade de falas em uma obra audiovisual. Diálogos excessivos, às vezes, demonstram a falta domínio do meio audiovisual. A fala faz parte da ação, não serve para segurar a narrativa, nem para descrever a ação mostrada e muito menos explicar o que está sendo visto. Assisti pouca novela e uma vez ou outra assisto algum episódio, algo que me incomoda é como não precisamos ver tudo para entender a trama. Basta sentar no sofá, ler, olhar o celular e ouvir a televisão. Basta ver alguma coisa que você consegue entender tudo - As séries da DC, os novelão adolescentes também não fogem desse padrão -. Dito isso, creio ser pedagógico assistir Primal, série animada criada e produzida por Genndy Tartakovsky, o mesmo criador de Samurai Jack e produtor de Star Wars: Guerras Clônicas. A primeira temporada não tem falas, mas existe som. Ouvimos muita coisa, mas nada que possa substituir a imagem em movimento. A história se baseia em um mundo onde os homens e dinossauros vivem juntos, onde também existem milhares de outras tribos e civilizações, como Vikings. Nesse mundo, um neandertal acaba fazendo amizade com uma espécie de T-Rex e os dois se unem para sobreviver. Tem muito sangue. É excessivamente violento. É interessante esse ponto, pois sempre pensamos na natureza como pacífica, a fantasia de Tartakovsky, mostra que não. A beleza da natureza existe, mas ela não está apenas em seus momentos de paz, mas na luta e na sobrevivência das espécies. O legal disso tudo é, os 10 primeiros episódios terem apenas uma palavra. É você entender os sentimentos e as relações dos personagens, sem ninguém precisar explicar. É tudo maravilhosamente explicado por meio das imagens em movimento. É uma série que precisa ser vista, sem celular na mão, sem pausas, apenas com olhos vidrados em todos os movimentos dos personagens.
O Predador: A Caçada – Crítica É um lugar comum ao cinema americano a defesa da família, a provação para ser líder e toda a violência para realizar essas tarefas. O Predador: A Caçada, dirigido por Dan Trachtenberg, é uma velha trama com inclusão, sem abdicar de toda a violência e patriotismo. As críticas mais reacionárias demonstram, não só o quanto são ignorantes em matéria cinematográfica, como tem uma masculinidade frágil e insegura, podendo se sentir ameaçados por uma personagem de ficção. As críticas mais progressistas demonstram como as pautas inclusivas e de representatividade são facilmente cooptadas pelo sistema, podendo muitas vezes servir a propósitos conservadores.
Como todo filme da saga, o monstro alienígena chega à terra buscando caçadores, ele quer animais ou homens do topo da cadeia alimentar. Não quer coelhos, mas lobos, ursos, guerreiros e soldados. Em sua sede por enfrentar o inimigo mais forte, ele acaba se descuidando, expondo suas fraquezas e superestimando seus adversários. A cultura do streaming pode deixar-nos desatentos, mas é preciso lembrar, não éramos os mesmo há 300 anos, nem os aliens. Predador de Amber Midthunder (Naru) tem um atraso tecnológico de 300 anos do alien de Arnold Schwarzenegger e Andreu Brody, talvez seja apenas a primeira incursão em nosso planeta.
Esse atraso na tecnologia é uma desvantagem muito maior para os humanos. Os aliens têm radar, visão de calor e podem ficar invisíveis, enquanto a única arma de fogo da humanidade demora tanto para ser engatilhada, que é preferível utilizar um arco e flecha. Essa desvantagem aparente, essa desigualdade frustrada em cada plano de luta entre o predador e os comanches e franceses é a vantagem de Naru.
Ela não era mais forte, nem a melhor, mas a mais inteligente. Não tinha músculos, nem era uma boina verde, mas como Schwarzenegger foi a inteligência que derrotou o monstro. É muito interessante como, cada detalhe do filme é somado para a conclusão final. Como todas as quedas, erros e fracassos são superados e tomados como lição da personagem.
O roteiro valoriza a tecnologia primitiva, aqui não me compreendam mal, por primitivo entendo aquilo mais próximo a natureza, livre da artificialidade da fabricação industrial. Ou seja, as armas não produzem o melhor soldado, mas sim seu conhecimento sobre o inimigo e sua capacidade de improvisar. É a inteligência de Naru, junto com a sua coragem e persistência os grandes motivadores da personagem e do roteiro. A cena em que seu irmão acerta uma águia com a flecha, ilustra isso, assim como quando eles enfrentam o puma, nos dois casos ela não é a melhor, mas aos poucos se prova.
Li um texto na Cahiers Du Cinéma (Chute Libre n:388, 1986), acusando os diretores americanos de utilizar a inclusão apenas como uma forma de vender a mesma história. Mudavam as cores dos personagens, mas mantinham o tom belicista, os valores americanos e o tom patriótico. Aqui, alguns detalhes ficam evidentes, primeiro, eles estão nos Estados Unidos. Os invasores não são ingleses, mas franceses. Os americanos, excluídos por uma comanche encarnar a personagem principal, estão autorizados a se identificar com a nativa americana quando o inimigo é um estrangeiro não fala inglês. Segundo, a luta poderia ser sobre muita coisa, mas a provação de Naru, seja o inimigo um Alien ou um Francês, é para defender seu território, sua família e sua nacionalidade. Apesar de inclusivo, o filme mantém a narrativa americanizada de sempre.
É como um agente 007 negro, não muda a origem imperialista do personagem. Um agente negro continuaria sendo um soldado da monarquia inglesa, um agente do capitalismo, inimigo da libertação dos povos. Para ele representar algo revolucionário, não apenas inclusivo, talvez fosse necessário romper com a agência e tomar parte de algum país ou povo oprimido. Ao invés de Naru lutar contra os aliens, ela não poderia se unir a eles e expulsar os colonizadores? Quem sabe, as narrativas poderiam ser diferentes, mas enquanto nos ativermos muito as aparências e pouco a forma, nada vai mudar.
Em uma entrevista, Neil Gaiman disse ter ameaçado se jogar na frente de um carro para impedir uma adapatação desastrosa de um de seus livros. Ele não só estava disposto a fazer isso, como iria contar o motivo para todos, antes de fazer. Pensei muito nisso, antes de assistir todos os episódio de Sandman, na Netflix. Pensei como alguém que nunca havia lido a obra iria receber Sandman. Apesar do personagem carregar todas as HQs em seu lastro. A obra televisiva tem prórpio caminho e por seus méritos, audiovisuais ou cinematográfios, deve provar sua relevância. Pensei muito nisso quando assisti cada cena. Não é a melhor coisa que assisti até agora, nem está próxima da melhor série do ano. Mas ver a Morte e o sonho conversando sentados em um banco da praça é uma das melhores coisas que assisti em muito tempo. Ver o senhor dos sonhos como o mais solitário dos perpetuos. Apesar do poder a imaginação e criação, sonhar é, por vezes, uma atividade solitária. Quem melhor para descobrir isso que sandman? Espero mais temporadas, espero mais episódios, quero ver o encontro com Shakespeare e a guerra entre o céu e o inferno.
O Primeiro Dia da Minha Vida
3.3 8O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA — 2024 — CRÍTICA
Conheço pouco sobre as culturas onde terminar com a própria vida é algo aceitável, mesmo assim, quando isso ocorre, a ação precisa de um contexto. Nos filmes medievais japoneses, conhecemos o ritual do Seppuku ou Haraquiri, quando os samurais, diante de uma desonra, encontravam na morte uma forma de perdão ou provação do seu valor. É a lembrança mais clara que tenho sobre uma cultura aceitar esse ato, mas mesmo assim, como observamos, a permissão está restrita a uma categoria de guerreiros.
Na civilização ocidental a prática é condenada, mal vista, muito pela influência religiosa cristã em nossa cultura. O ato pode ser visto de inúmeras maneiras, mas majoritariamente de forma negativa e cheios de tabus. O filme do cineasta Paolo Genovese trata sobre isso, entre todas as formas nas quais poderíamos pensar no destino de quem põe fim à própria vida, a proposta de Genovese é, talvez, a mais otimista. Sem vínculo a um deus ou a uma religião, sem relação alguma com pecado, com a única preocupação em entender quem decide deixar o palco mais cedo. O cineasta nos fala da dor, da vontade e da necessidade de empatia com quem sofre dessa vontade.
O roteiro assinado por Genovese, Isabella Aguilar, Paolo Costella e Rolando Ravello é baseado no livro de autoria do próprio diretor. A trama se passa em Roma e tem um personagem misterioso, interpretado por Toni Servillo. Ele reúne quatro pessoas que não se conhecem. Inicialmente, nas primeiras cenas e com a chuva, pensei ser um filme sobre máfia, algo assim, mas tudo vai ficando estranho e demoramos um pouco para perceber onde os personagens realmente estão e qual a temática do filme.
Apesar de estarem mortos, não existe nenhuma referência explícita de imediato. Os espaços são todos de uma cidade: ruas, o hotel, auditório, bares e o cinema abandonado são parte de um cenário urbano. Caberia aqui uma ironia? Não sei, acredito que o sentido esteja melhor interligado com o destino dos personagens, quem fica entre os vivos? Aqueles que não morreram naturalmente. Essa escolha dos ambientes aparenta uma certa frieza, mas é uma forma não religiosa de construir o pós-vida. Apesar de em uma cena vemos uma igreja, a religião aqui é inexistente.
Os cenários preenchem o filme de realismo. A parte da conciliação do grupo, ao se prepararem para o desfecho, ocorre em um almoço, em uma casa próxima à praia. Um ambiente diferente para não vivos decidirem sobre continuar ou não a viver. O único momento, “mágico” é com Daniele (Gabriele Cristini, de 12 anos), o restante das cenas, apesar da estranheza da situação e do fato deles serem invisíveis, não possuem nenhuma ação “sobrenatural”.
O personagem misterioso de Sevillo é um terapeuta do “além”, não um barqueiro da morte. Ele tenta ajudar Arianna (Margherita Buy) a viver o luto e a ver a filha, nos momentos e nos lugares quais ela viveu. Para Emília (Sara Serraiocco) ele pede uma segunda chance, tenta ajudá-la a recuperar a sua autoconfiança e parar de se esconder. Napoleone (Valerio Mastandrea) um coach motivador que não consegue mais se motivar, ele tenta mostrar um sentido.
Eles precisam estar entre os vivos, pois assim podem refletir sobre o quanto o ato, mesmo compreensível, representa uma perda enorme para muitas pessoas e para eles mesmos. Logo, cada personagem carrega uma dor ou angústia de nossa atual sociedade. É um filme bonito, sensível, sofre com alguns diálogos longos, mas tem Toni Sevillo, quem segura o leme e sempre nos mostra uma atuação excelente. Diferente de muitos atores, ele possui várias faces, encarna diferente corpos e gostamos de todos.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Moneyboys
3.5 12MONEYBOYS— 2023 — CRÍTICA
Fei (Ko Chen-Tung) quer proteger o primo, por isso o afasta, não o quer envolvido em suas atividades. Difícil convencê-lo, pois as opções não são nada atraentes, além de muito mais restritas e penosas. Não importa o quanto criminosa e ilegal seja o estilo de vida de Fei, entre trabalhar 12 horas por dia em uma fábrica e ser um garoto de programa, não existem dúvidas sobre qual é a melhor opção. Diante da vista da cidade, no jardim da varanda de Fei, Long (Yufan Bai), observa como tudo é limpo e bonito e toma a decisão definitiva. Os dois trabalhos exploram seu corpo, a diferença é que se prostituindo ele não dorme em um colchão duro, nem trabalha em um lugar sujo. O menino pobre da na zona rural da Taiwan, elege a opção que privilegia a vista diante de seus olhos.
Me incomodou um pouco, esse aparente encanto da prostituição, mas conforme acompanhamos Fei, em sua jornada pela sobrevivência, o encanto parece perder cada vez mais o brilho. Pouco a pouco conhecemos a realidade dos “moneyboys”, homens jovens que se prostituem para outros homens. Fiquei pensando enquanto lugares do mundo, a homossexualidade ainda é crime. Na situação apresentada no filme, a prostituição parece como um meio de fugir da vida miserável do interior, mas também permite aos personagens viverem suas sexualidades. A cena no bar, quando conversam sobre os motivos de não voltarem para casa ou como, ao voltar, mentem sobre sua vida na cidade, demonstra a angústia sofrida pelos personagens.
Existe também uma oposição entre os espaços, enquanto todo o apartamento e lugares frequentados por Fei e Long são limpos e bem iluminados, a vila e os lugares fora do ambiente da prostituição é suja. Não me parece existir um julgamento moral por parte do cineasta, em colocar a prostituição como limpo, mas condenável, pois lhe deixa sujo internamente. A proposta dessa oposição entre ambientes está mais conectada à necessidade de fuga, encontrar esses lugares pobres e sujos, reforça os sentimentos dos personagens pela necessidade de fugir.
Gosto de como a fotografia coloca nossos olhos em posição de esperar a saída ou entrada no quadro, de como a câmera parada, em ângulos normais ou na altura da cintura, nos provoca uma expectativa. De como o personagem principal, com poucas falas, em alguns momentos não está centralizado e de como nossa atenção é desviada à medida que os personagens se movimentam no quadro. As cenas com os personagens de costas são muito interessantes para observar como nossa atenção percebe o personagem, mas acompanha a ação ao redor.
O filme, dirigido e roteirizado por C.B. Yi, ao fim, trata sobre a jornada de Fei, entre duas paixões, entre a aceitação da família, que vive de seu dinheiro, mas não apoia seu modo de vida. O grande ponto da obra está na montagem, que desde início faz recortes e deixa situações subentendidas. Não responde todas as perguntas, mas estimula nossa curiosidade. Os primeiros momentos unem as sequências, como a nossa memória, espaçadamente, o vínculo entre elas é o personagem, não temos nada esclarecido, quando anos se passam. Isso nos deixa um pouco confusos, pois tudo parece estar acelerado na vida de Fei. No segundo ato, tudo se torna mais tranquilo, o tempo não tem saltos e ele é confrontado com seu passado e presente. Tudo, em uma história cheia de corações partidos de jovens sem perspectivas de uma mudança em suas vidas.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
As Bestas
3.9 50 Assista AgoraAS BESTAS — 2024 — CRÍTICA
O grande motivador dos personagens, no filme, são seus interesses econômicos. Não importa como eles o apresentam, pode ser um projeto cheio de sonhos e sentimentos ou apenas uma fuga de uma vida miserável. O motivador do conflito é o desejo de uma vida melhor. Sem consciência disso, eles encarnam os interesses estrangeiros e representam a transformação capitalista da vila. Os noruegueses, ao construir turbinas eólicas para gerar energia limpa para o desenvolvimento sustentável e econômico, expulsam os moradores por uns trocados e os forçam ao êxodo rural. Os franceses enxergam o lugar como um paraíso a ser preservado, criam uma horta agroecológica e compram casas, as reformam e pretendem atrair novos moradores. Um projeto de gentrificação. As duas propostas invisibilizam o modo de vida dos moradores originais.
Nosso olhar tende a ser mais simpático ao casal francês Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs), os personagens escolhidos pelo cineasta Rodrigo Sorogoyen para contar a história. Isso torna os irmãos Anta (Luis Zahera e Diego Anido) vilões? Talvez, tudo depende da nossa perspectiva ao observar. Todas as ações cometidas por eles não são fruto de uma personalidade perversa, mas da corrupção econômica e a cobiça por uma vida melhor. Esse pensamento é expresso pelo irmão mais velho a Antoine, no bar, “não sabíamos que eramos miseráveis, até nos mostrarem o quanto somos”. Todo o sentimento de xenofobia, todo o ódio, toda a sabotagem feita contra o casal estrangeiro é motivada por eles impedirem a vila de ser transformada em um campo de energia eólica. Enquanto os dois fedem a merda de vaca, o casal, vizinho de porta, exibe sua prosperidade.
Isso torna a convivência mais insuportável, não há como eles se esconderem ou se ignorarem. A vila é pequena, todos se conhecem, vão nos mesmos lugares. Querendo ou não, acabam se esbarrando, apenas o caminhar na rua pode ser tomado por um dos lados, como uma provocação. O Bar é o espaço onde as tensões são elevadas, onde os personagens anunciam os próximos conflitos. O irmão mais velho está sempre sentado na mesa de dominó, no centro do nosso olhar e com todos os personagens voltados para ele, com exceção de Antoine, sempre no balcão de costas para nós e para os personagens. Temos uma mudança, quando senta na mesa do jogo e quando confronta os irmãos. O vemos de frente então, do lado direito do balcão, enquanto os irmãos do lado esquerdo. O convite para beber os retira do seu lugar habitual, muda nosso ponto de vista, os coloca no lugar escolhido por Antoine, que tem uma postura amigável e complacente. Diferente do irmão mais velho, quando em um momento vira de costas, demonstrando a recusa em entender e aceitar as motivações do vizinho.
Além do espaço, observamos como os elementos de cena são importantes para marcar determinadas ações, atitudes ou traços de personalidade. Quando o vizinho, que é amigo, chega para fazer uma entrega, os dois estão trabalhando, Olga o convida para tomar um café e oferece ao marido, que nega. Aqui ele não aceita por querer terminar o trabalho, por estar absorvido pelo cuidado da horta. Em outro momento, quando o sobrinho do vizinho vem os convencer a aceitar a proposta de venda, a mulher lhe entrega um café, enquanto Antoine novamente o nega. Dessa vez por não querer perder tempo com uma discussão resolvida para ele. O único momento em que vemos tomando café é quando acorda pela manhã. Uma característica curiosa é Olga sempre estar lendo, apesar de Antoine se arrogar ser mais inteligente e superior, ela é quem parece ser dedicada ao estudo. Em compensação, quando ela assume o lugar do marido, não a vemos mais com livros.
Além do livro e do café, podemos destacar o papel de dois objetos, a arma e câmera. Os dois não cumprem o papel para qual deveriam ser utilizados, mas reforçam os sentimentos e sensações de cada ação. A câmera, durante todo o tempo, age como um escudo para Antoine, enquanto a arma ostenta o perigo dos irmãos Anta. O fato de não terem servido aos fins originais, não invalida os dois objetos na progressão da narrativa. Eles adquirem importância no roteiro, escrito por Sorogoyen em conjunto com Isabel Peña, justamente por não servirem de maneira óbvia a resolução dos problemas.
Por fugir das soluções simples e óbvias, o filme consegue nos despertar o interessante. Nunca vemos indícios de culpa dos vizinhos pelas sabotagens, vemos as provocações, os enfrentamentos, mas não os vemos escondidos planejando envenenar a água ou mijar na cadeira. Tudo indica a culpa dos dois, mas não se tem provas. Essa forma de contar a história nos coloca em uma posição de ver apenas aquilo que Olga e Antoine veem, apenas aquilo que os personagens principais enxergam. Isso explica vermos os irmãos distantes do ponto de vista do casal.
Essa forma de filmar não muda quando Olga assume o papel do marido. Durante toda a primeira parte do filme é uma mulher calada, lê e o ajuda nos afazeres do sítio, faz comentários, mas não tem protagonismo algum nas disputas. Ao assumir as rédeas do local é absorvida pelo trabalho e pelo desejo de justiça, passa os dias atrás de pistas para incriminar os vizinhos e de dos cuidados com os animais, plantas e a feira. O olhar agora é dividido com a filha. Essa parte, torna os irmãos ainda mais ameaçadores, ainda mais bestas, pois a figura masculina parecia fazer frente a ameaça, agora duas mulheres parecem presas nas garras de predadores. Um sentimento que acaba sendo frustrado, pois Olga não só se mostra forte, como se mostra mais inteligente.
Ao fim, temos uma obra construída de uma forma a nos despertar vários questionamentos, a nos suscitar vários sentimentos, mas não se preocupar em nos dar certeza de nada, a não ser da força e da coragem das mulheres.
Filme visto na Cabine de Imprensa, estreia dia 25 de janeiro nos cinemas. Vencedor do prêmio Cesar e selecionado para Cannes, em 2023.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
O Desafio de Marguerite
3.4 8 Assista AgoraEnxergar a poesia nos números não é um absurdo ou uma novidade. A proporção áurea, está aí há “bastante tempo”. A matemática exerce seu papel na arte e está presente na pintura, na fotografia, na música e no cinema. Existe uma beleza nas fórmulas escritas com giz no quadro, como uma poética na explicação das equações. O Desafio de Marguerite, dirigido por Anna Novion, nos apresenta essa perspectiva, do ponto de vista de uma mulher, uma pesquisadora com uma proposta revolucionária, em um ambiente masculino e hostil.
Apesar do roteiro perseguir as descobertas de Marguerite Hoffmann (Ella Rumpf), o filme não depende de nenhuma resolução matemática para ser fruído. Seria interessante ler uma crítica envolvendo o cinema e as discussões matemáticas, não tenho essa propriedade, então me concentro nas discussões sobre a arte, mas fica aqui a sugestão.
O longa-metragem de Novion conta a história de Margarite Hoffmann, uma brilhante pesquisadora da École Normale Supérieure (ENS). A única mulher da turma, talvez do curso, enfrenta dificuldades com o orientador. Apesar de confiar nela, não lhe concede a devida atenção, nem a trata com respeito. Isso fica claro, quando, ao cometer um erro na apresentação da tese, o professor a culpa.
A primeira percepção ao iniciar o filme é o figurino, usar chinelos, calças largas, cores frias em tons pastéis, reforça a imagem introspectiva da personagem. A roupa de Marguerite transmite sua personalidade, como a forma de seu penteado. Ela parece estar escondida da vida, atrás dos livros e da forma como se veste. O figurino também combina com o ambiente cinza feito de concreto, madeira e vidro da universidade.
Quando ela resolve romper com esse lugar, as mudanças são sutis, mas as percebemos. A personagem não põe um vestido, por exemplo, nem batom, mas constatamos em suas atitudes, como seu figurino e penteado introspectivo concedem lugar a uma nova mulher. Gosto de como a cineasta não impõe um padrão de vestimenta e atitude a personagem. Estar aberta para novas possibilidades, não significar mudar sua essência por completo, mas apenas experimentar coisas novas.
Essa abertura para experimentação está conectada na transição da personagem pelos novos ambientes. Ao tomar a decisão de sair da universidade, a primeira imagem é um plano aberto da cidade. Depois temos o apartamento dividido com uma colega, o shopping, as ruas do bairro, o restaurante chinês. A fotográfica registra sujeira, a multidão, o movimento, algo que não havia nas imagens do seu antigo lugar.
A trilha sonora, composta por Pascal Bideau, marca as mudanças da personagem, em cada momento de superação, desafio, escolha ou passagem, temos a iluminação azul e uma trilha eletrônica com um coro. Parece algo religioso. O sentimento transmitido é de libertação, como se distante da universidade e do controle da mãe, Marguerite finalmente estivesse vivendo por suas próprias escolhas.
Tratando especificamente dessas escolhas, acredito na importância do filme para suscitar discussões importantes sobre o ambiente acadêmico. Em como em determinados momentos a burocracia e o estrelismo, como as vaidades de determinados acadêmicos, desmotivam pesquisadores iniciantes. Também existe o problema do machismo, das discussões sobre o lugar da mulher no ambiente acadêmico e como é difícil sobreviver em profissões e cursos dominados por homens.
Fico em dúvida sobre o final, pois me parece apontar para uma conciliação. Agora, mesmo conciliando com o professor e com o ambiente acadêmico, Marguerite não é mais a mesma, nem estará disposta a aceitar tudo, sem questionar. Ao sair da universidade, a jovem pesquisadora conseguiu encontrar uma solução para sua tese, mas também crescer e encontrar um lugar no mundo real.
Vencedor do prêmio de melhor Direção de Arte em Cannes, em 2023.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Nostalgia
3.3 12 Assista AgoraNOSTALGIA (2023) – CRÍTICA
Nas primeiras cenas do filme não sabemos ao certo quem é Felice, interpretado por Pierfrancesco Favino. No avião ele fala árabe, no restaurante, enrola no italiano. Parece um estrangeiro, um turista. Quando caminha pela cidade, possui um olhar de melancolia, mas também de deslumbramento. Olhar transmitido pela fotografia da obra, ao registrar todos os cenários e espaços onde o filme acontece. Ao visitar a casa da mãe, caminhar pela cidade ou ir à igreja, tudo parece novo, mas, ao mesmo tempo, familiar.
É um sentimento despertado pelo encontro do personagem com a cidade, um misto de surpresa e reconhecimento. Notamos essa sensação, quando observamos o caminhar de Felice, um passo tranquilo, de quem observa tudo ao redor e parece contemplar a paisagem e as pessoas. Como ele transita pelas ruas, destaca sempre a arquitetura do lugar, as ruas estreitas e os vizinhos nas janelas, parece mostrar o bairro como um labirinto. A fotografia, em algumas cenas, o encaixa no centro da imagem, destacando a relação dele com o ambiente. Ao mesmo tempo, busca registrar o ponto de vista do personagem sobre cada região.
Eu gosto do tratamento dado à memória, de como as cenas antigas aparecem em um quadro reduzido na tela, em uma imagem semelhante a Super 8. Esse tem sido um procedimento muito utilizado pelas produções audiovisuais, em registrar as lembranças ou o passado com outro tipo de formato, como as produções da HBO usam imagem em VHS, com granulações. Um recurso que antes era muito utilizado com a imagem preto e branco.
Não sei se todos sentem isso, mas para mim, durante todo o filme, Felice pareceu buscar um lugar na comunidade, tentar novamente se colocar ao lado das pessoas e do lugar que ele abandonou. O problema é o conflito gerado por esse desejo, como disse antes, apesar de ter nascido em Nápoles, a cidade não é mais a mesma e ele está mais próximo a um estrangeiro, que um morador local.
É bonito notar, como a casa alugada por ele possui uma iluminação muito diferente do restante da cidade, onde os dias parecem sempre nublados e cinzas. O ambiente é mais claro em algumas ligações da esposa também. Apesar de várias cenas serem de dia ou pela manhã, a cidade passa uma impressão de estar suja e escura, um tom de tristeza, como na casa onde a mãe morava e bem diferente dos dois ambientes citados.
É curioso, como todos tentam convencê-lo a ir embora, como ninguém parece ver motivo para ele ficar na cidade. Quando Rafaelle, Aniello Mascia, o aconselha a retornar ao Cairo e desistir de procurar o amigo, ele contesta em árabe. Novamente, não sei se todos notaram isso, mas gosto de como ele, nos 40 anos que ficou fora, parece ter adotado uma nova identidade. Não só fala árabe, mas também é muçulmano. Tem uma esposa e uma empresa em outro país, qual motivo para ficar em uma cidade, sem nenhum parente ou amigo? Apenas o sentimento de nostalgia…
Esse sentimento me parece extremamente conservador, mas, ao mesmo tempo, ilusório. Retornar às suas raízes tem um preço. Olhamos para o passado como se algum dia houvesse uma época ideal, como se tudo fosse melhor antigamente. Quando ele fala para a esposa que tudo está igual, tenho a impressão de falar mais sobre seu desejo, sobre a projeção de seus sentimentos em relação à cidade, do que do próprio lugar.
Filme dirigido por Mário Martone, ovacionado em Cannes.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Filmes visto na Cabine de Imprensa.
Golda: A Mulher De Uma Nação
3.0 62GOLDA – A MULHER DE UMA NAÇÃO (2023) – CRÍTICA
A busca pelo sublime, talvez seja a melhor definição para a forma estética do filme . Toda a fotografia, atuação, trilha vão na direção de elevar a personagem para uma posição grandiosa. Mesmo quando colocada em situação de fragilidade, quando enfrenta o julgamento ou quando passa pelo tratamento de saúde, Golda, interpretada por Helen Mirren, ainda é fotografada em uma posição eminente. Sua humildade, o ambiente austero e como a tratam os ministros e generais, serve justamente para colocá-la na posição de messias, ao ser rebaixada é elevada a uma posição mais alta.
A primeira cena transmite a sensação de isolamento. Não vemos ela por completo, mas apenas seus gestos, o olhar melancólico, o cinzeiro cheio, o cigarro aceso, gesto de quem se prepara sozinha. Essa sequência em vários planos decompostos é complementada pelo desfoque das pessoas ao seu redor. A vemos caminhar entre diversos manifestantes, mas não vemos os rostos de ninguém, pois os olhos estão todos nela, a atenção do mundo, os problemas do país, caem sobre os ombros da Primeira Ministra. É a penitência de uma “grande” líder, carregar os problemas da nação e sofrer com isso.
Ela surge sempre caminhando ao centro, as cenas normalmente começam com o andar em frente. Em seguida, temos um plano aberto, no qual vemos todo o espaço ou conjunto, onde os atores entram em cena. Os planos detalhes da personagem acendendo o cigarro ou anotando no caderninho, servem como “pontos finais” das sequências. Temos uma crescente, Golda entra no escritório, senta à mesa e depois acende o cigarro ou anota no caderno. O ritmo do filme é então marcado pelo caminhar apressado de uma líder idosa, pelos gestos meticulosos e por longas reuniões cheias de tensão.
Se os planos detalhes marcam o ponto, a virada das sequências e como as cenas mudam o ritmo, os closes marcam a tensão. O close afirma o desespero, o medo, a perda, e a falta de fôlego. Quando ouvimos os soldados sendo massacrados na batalha, vemos os olhos tesos de Golda. Ou quando todos a pressionam por uma decisão, os olhos demonstram o sentimento de estar encurralada.
O sentido dessa fotografia é mostrar uma mente lúcida, em um corpo cansado, em meio a pessoas desorientadas ou abatidas. A visão sublime de Golda está em, mesmo com um linfoma, ela não perde a agilidade, em meio a tantas dificuldades, não descansa, pois sabe a necessidade de lutar. Quando ela recorda de sua infância, ela justifica o esforço feito para liderar o povo judeu, como as ações de guerra.
Reparem, em como ela parece onipotente, mesmo com os conselhos, mesmo com as dúvidas e erros, ela é a única que defende isoladamente a resistência. Golda é mostrada, entre seu colegiado, como Israel é mostrado. Verdade ou não, o filme parece em todo momento afirmar que o povo judeu não pode contar com ninguém, a não ser consigo mesmo. Apenas com ameaças e pressão, os EUA enviou aviões e apoio ao país, mesmo assim, o filme mostra essa ação, como algo tímido.
Esse não é o único paralelo da personagem, com a situação do país. A fumaça do cigarro, em mais de um momento, é referenciada como a fumaça da guerra. Quando uma batalha termina, ela expira a fumaça, como se o fogo das armas tivesse cessado. Toda a luta por se manter firme, lúcida e à frente de seus conselheiros é um paralelo com Israel. Ela e seu país são um corpo estranho, no continente.
As cenas de guerras são mostradas do alto ou relatadas, não temos grandes sequências de ação, o interessante aqui é como o roteiro constrói a moral da guerra. Durante todo o filme, Golda afirma ter errado em não ter começado ou se preparado para a guerra. Yom Kippur era um feriado no país, havia problemas para se preparar, mesmo sabendo da possibilidade do ataque, mas ela não o fez. Ao mesmo tempo, com exceção de uma cena jornalística, inserida no filme, os árabes não existem. O inimigo não tem rosto, nem corpo. Isso simplifica muita coisa, como em justificar o ponto de vista sionista da situação.
É um tanto confuso sobre como a Síria e o Egito, apoiados pelos russos, perdem para Israel sozinha, com apoio tímido dos EUA. O ponto de vista do filme é de erros dos inimigos e uma estratégia certeira de Golda e seus generais. A versão ajuda a construir o argumento de que o caminho para o povo judeu se defender é se preparar sozinho, apesar de existirem aliados, eles devem contar apenas com as próprias forças. Não importa quais guerras devam provocar para firmar suas posições.
Esse discurso delirante não está nas entrelinhas, mas em cada palavra de Golda ao secretário americano ou aos seus generais. Ela afirma mais de uma vez que a força é a única forma de afirmar a existência do Estado de Israel. O filme não toca em como os judeus foram colocados lá, em como Israel se tornou um muro para o ocidente, nem como expulsou os árabes e expande seu território aos custos de vidas palestinas. O filme cita o holocausto, apenas para justificar todas as ações de guerra, crimes e perseguições de Israel.
Ao fim, podemos observar como o longa-metragem dirigido pelo cineasta Guy Nattiv, acontece em grande medida dentro do apartamento, em lugares fechados, salas de reuniões. Não sei ao certo onde ela está, mas parece um abrigo subterrâneo. Os cenários confinam nosso olhar em um ambiente escuro e de cores frias. A única cena iluminada, com o sol entrando pela janela, é quando ela morre e essa cena parece mostrar como a vida da personagem foi construída em cima da morte da paz, ao vermos as dezenas de pássaros mortos. Mesmo aqui, tudo parece justificar as “ações sublimes” da líder sionista.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Além de Pablo
3.2 1ALÉM DE PABLO (2023) – CRÍTICA
Fui assistir ao filme sem ter lido nada, nem entrevistas, nem a sinopse. Sabia do tema: saúde mental, mas apenas isso. Logo, minhas impressões foram baseadas apenas nas imagens em movimento na tela.
Os primeiros minutos do Curta-metragem decupam o espaço em diversos planos detalhes. Fragmentam nosso olhar para mostrar o cuidado do personagem principal Pablo, interpretado por Ged Castro, com o apartamento e com objetos que caracterizam sua personalidade. Tudo excessivamente limpo, organizado, nem uma garrafa fora do lugar. Esse excesso de zelo, talvez aponte para o quanto o personagem está desorganizado internamente. Não conseguindo resolver os problemas internos, busca manter o ambiente em ordem, uma forma de escape para suas angústias.
Essa desordem mental é percebida, quando ele encontra a mulher com o filho no elevador. Tudo parece um sonho e confuso mentalmente. Tudo fica ainda mais suspeito, quando o vemos com as castanholas e quando ele fala do morador que precisa ir embora. É interessante todo esse jogo, essa dúvida, esse chamamento que o cineasta Ebner Gonçalves faz ao espectador. Ele o confunde, mas o esclarece, aqui talvez pudesse deixar dúbio, não explicar, instigar um pouco mais a dúvida, mas o objetivo da obra não é esse.
Pablo é um filme para expor e mostrar um problema: a necessidade de cuidado com a saúde mental, sacrifica assim algumas questões narrativas e estilísticas, esclarece outras para não restar nenhuma dúvida. Como uma obra que pretende ser educativa, não busca instigar dúvidas entre os espectadores. Isso explica os longos diálogos explicativos e como o suspense vai desaparecendo a medida que o filme vai encerrando. A impressão é um retorno a ordem. O ambiente organizado, harmônico do apartamento acaba tomando o espírito do personagem. A mudança de roupa, ele nunca tirava o roupão, também representa uma mudança de tom.
O filme não deixa dúvidas sobre qual personalidade era a correta, nem qual deveria ficar. Isso não nos impede de ficar com um certo desconforto, nem imaginar se a solução dada e a roupa usada, era realmente a correta. Talvez a personalidade qual ele tenta expurgar, não devesse ser expurgada.
Um elemento predominante no filme é a música, como sempre introduz ou fecha alguma sequência, isso antecipa nossos sentimentos em relação às cenas. É interessante para evocar suspense, mas perde um pouco da expectativa em alguns momentos. O espectador assiste à cena com um sentimento embalado pela trilha. Isso cansa um pouco.
A obra tem caras conhecidas do cenário cultural joinvilense, como o ator Robson Rodrigues, a artista plástica Nicole Leite e a apresentadora, Fabíola Bernardes. É interessante, como os cineastas da cidade tem certas preferências pelos mesmos atores, como eles sempre encaixam determinados rostos em algum personagem coadjuvante ou principal de seus filmes. Como se as obras sempre tivessem pensando neles. Assistir a um filme feito em Joinville e não ter um rosto conhecido de outros filmes, às vezes, surpreende. Trabalhar com os mesmos ajuda qualificar o trabalho, poupa tempo, mas impede de novos quadros de se formarem, cai em uma rotina. Escolhas de um filme são sempre políticas, isso vai desde a concepção do roteiro, a escolha dos atores até a produção do filme.
Ao fim, o filme tem assim um grande potencial educativo. Deve ser assistido nos cursos de psicologia e utilizado nas discussões sobre saúde mental. É uma obra com um cuidado meticuloso na arte e em tentar esclarecer nossa sociedade sobre um problema que assola diversas pessoas.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Um Pouco de Mim, Um Pouco de Nós
3.4 1UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS (2023) - Dir.: André Bushatsky
Uma obra pessoal e descontraída, sobre as vítimas do nazismo, refugiados e a extrema direita no mundo
Gosto de como o cineasta André Bushatsky caminha por Berlim visitando os monumentos e lugares históricos dedicados às vítimas do nazismo. A visitação a esses espaços no presente, em um dia totalmente diferente daqueles do passado, nos obriga a imaginar, por meio dos relatos da guia e das perguntas do cineasta, como tudo aconteceu, como foi o sofrimento daquelas pessoas, quando a barbárie se tornou uma ação política.
O filme pode assim ser resumido em um resgate da memória, mas de uma forma diferente. A preocupação da obra não é apenas manter viva as lembranças das vítimas, mas nos alertar sobre como as ideias que conduziram o nazi-fascismo ainda existem e nos atingem em uma ou outra crise política.
Durante as entrevistas, os idosos, todos com idade muito avançada, mas com uma memória extremamente afiada, mostram relatos de diferentes formas de violência e perseguição. A menina impedida de tocar piano é um exemplo. Todos partem de um lugar diferente para contar suas lembranças, mas em alguns momentos cruzam pelas mesmas palavras, como esconder, fuga, morte e floresta. Achei aterrador o fato de muitos falarem da floresta, como um refúgio, ass pessoas perseguidas pareciam estar condenadas a viver como animais…
A obra, como muitos documentários, tem sua matéria-prima baseada em entrevistas e imagens narradas. Existem cenas de arquivos, mas o grande diferencial está no trabalho com as cenas externas, as imagens dos monumentos de Berlim. Distraí nosso olhar das longas conversas. Infelizmente, não em todo momento, algumas entrevistas são extremamente longas, sem um movimento de câmera, nem plano externo que nos ajude a absorver a informação.
O filme segue um formato de reportagem, como Bushatsky nos guiando entre as entrevistas e as caminhadas por Berlim, nos apresentando as pessoas e os lugares. O jeito espontâneo do cineasta, em tratar os entrevistados, lembra muito as matérias do Fantástico. Ele toma café, come na rua e fala de forma descontraída. Quem gosta desse perfil de matéria, talvez goste do filme.
Quem não gosta, precisa entender a proposta do autor, isso pode não mudar a opinião, mas explica as motivações. Um Pouco de Mim, um Pouco de Nós, trata de um tema relacionado ao cineasta, seus avós fugiram da Áustria e foram refugiados. Apesar de dedicar um longo espaço às lembranças das perseguições nazistas, o filme busca amarrar essa discussão com o tema da extrema-direita, xenofobia e dos refugiados atualmente. Os entrevistados, como Pedro Bial e Mário Sérgio Cortella, o ajudam a costurar os assuntos.
Nesse momento, o filme nos provoca a pensar como, todos nós, fomos ou estamos ligados aos refugiados. Também nos provoca a refletir sobre as ideias da extrema-direita que se alimentam da xenofobia, preconceito e da recusa em aceitar o estrangeiro, da mesma forma como o nazismo fez.
Ao fim temos um filme com um tema bastante sério, mas com um tom descontraído e pessoal. Caso houvesse espaço, a obra caberia muito bem na TV aberta, em um horário livre. O cineasta não tem grandes preocupações estilísticas, mas uma grande preocupação em ouvir histórias, conhecer pessoas, em ser íntimo delas e assim mostrar um pouco de si e pouco de nós.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Memórias invisíveis
3.5 1Memórias Invisíveis (2021) - Crítica
Um média-metragem sobre desenterrar o passado, expor as feridas e contar uma história pouco conhecida em Joinville
Em uma cena, no meio do filme, um grupo de idosos conta como era morar nos fundos do Cemitério Municipal de Joinville. Eles relatam tudo de uma maneira alegre. Sorriem, contam anedotas e afirmam muitas vezes como a vida era feliz naquela época. Segundo os idosos e entrevistados durante o documentário, ninguém sabia de toda a História do local. Sabiam da prisão durante a Segunda Guerra Mundial, mas não sobre o Abrigo de Alienados, o hospício.
É curioso, como um ambiente impregnado de histórias cruéis, também possa produzir memórias felizes. Ao sepultar parte do passado, os governos e as elites, quem construiu o Abrigo, permitiu ao terceiro grupo de moradores, policiais militares e suas famílias, construir uma vida feliz e alegre. Soa grotesco imaginar a felicidade de alguns em um ambiente onde muitas pessoas sofreram e morreram, mas essa cena, como todo o filme, nos provoca a pensar em como existem histórias sobre nossa cidade que precisam ser desenterradas. Como relata o historiador Dilney Cunha, existem muitos tabus sobre a cidade, questões às quais muitos preferem não lembrar ou esquecer.
O filme começa com cenas do Cemitério Municipal de Joinville, vemos diversos planos e ângulos das sepulturas, um local totalmente vazio. A música nos provoca um sentimento misto de tranquilidade e melancolia. Os letreiros, excessivos em alguns momentos, contam a História do Abrigo Para Alienados que existia ali.
A roteirista e pesquisadora, Mariana Zabot Pasqualotto, é quem conduz as entrevistas, realiza as pesquisas e faz as conversas. Ela é a personagem principal do filme. Durante várias cenas, ouvimos sua voz ou a vemos percorrer as pistas da instituição psiquiátrica que funcionou entre os anos de 1923 a 1942, em Joinville.
Apesar de ser um documentário, o filme divide uma tensão entre os tons de terror e melancolia, entre assustar diante da crueldade humana e nos provocar lágrimas pelo sofrimento alheio. As cenas encenadas por atores lembram fantasmas, essa impressão é reforçada pela imagem em preto e branco. Aqui, talvez estejamos sendo assombrados pelo passado; ou lembrados sobre o sofrimento dessas pessoas: incompreendidas, isoladas do mundo, presas e amontoadas em uma cela. Eram fantasmas ainda em vida, a morte apenas sacramentou o destino a qual a sociedade os havia condenado.
É uma escolha estética manter essas cenas em alusão ao terror, mas também estimular sentimentos de melancolia e revolta com as entrevistas, pesquisas e as conversas descontraídas. Um dos momentos tocantes é quando o pesquisador Lucas Muenster, descobre o destino da trisavó. A história dele ilustra como a mentalidade da época era de esconder qualquer indício de uma pessoa que não fosse “normal” na família.
É um exercício interessante assistir 1951 sobre a história do centenário de Joinville e depois assistir Memórias Invisíveis. Com essa dupla, o cineasta mostra duas cidades diferentes, duas situações diferentes e o motivo da relevância do cinema para a História e a memória de nossa cidade.
Mulheres Armadas, Homens na Lata
3.3 9 Assista AgoraMulheres Armadas, Homens na Lata (2023) – Crítica
A frase: a ocasião faz o ladrão, talvez se encaixe bem no roteiro de Mulheres Armadas, Homens na Lata, filme dirigido pelo cineasta francês, Allan Mauduit. Após assassinar acidentalmente o patrão abusivo, as funcionárias encontram uma mala cheia de dinheiro. Com problemas financeiros e precisando desesperadamente pagar as contas, elas decidem ficar com tudo. O problema é quando os mafiosos, donos de toda a grana, resolvem ir atrás delas.
Com personalidades fortes e características marcantes, as três personagens convencem o público pelas atitudes. Sandra (Cécile de France) é extremamente arrogante, cheia de orgulho e com ar superior. Os planos contra-plongée, frisam a intenção de mostrá-la de forma diferente das amigas. Nadine (Yolande Moreau) é uma mãe de família, sustenta a casa, cuida do marido e dos filhos e é quem parece mais comedida na hora de agir. Marilyn (Audrey Lamy) é mãe solteira, impulsiva e violenta, a mais impaciente das três.
As características vão além da personalidade, existe uma forma de agir e de se comportar durante o filme. Nadine anda meio desengonçada, Sandra com ar superior, enquanto Marilyn está sempre acelerada. A combinação das três personagens acaba por desenvolver uma relação extremamente cômica. Lembra muitos os filmes de comédia, com grupos de amigos, onde cada um carrega uma característica pela qual os identificamos.
Apesar de Sandra morar com a mãe, Nadine com a família e Marilyn com o filho. Elas não devem satisfação para ninguém. Todas trabalham na fábrica e isso lhe concede certa autonomia. Mesmo assim, em certos momentos Nadine e Marilyn mostram um certo recorte de classe. Elas parecem mais calejadas pelo tempo como operárias, enquanto Sandra cai de paraquedas nessa vida.
As três destoam muito de todos os homens do filme. Enquanto elas demonstram coragem e ousadia, mesmo com certo improviso. Os homens tropeçam em suas próprias pernas. Apesar da arrogância e força física, os personagens um a um são ludibriados pelas três amigas. É interessante observar esse ponto, os homens durante toda a obra exercem um papel normalmente dados para as mulheres, o de coadjuvante. Quando o marido de Nadine desconfia de seu envolvimento com crime, ele sai de casa com os filhos. Aqui, talvez haja um toque de subversão no roteiro, a inversão de papéis.
Uma pena ficar só aí, existe uma discussão sobre a violência de gênero, Sandra volta a morar com a mãe por ser espancada pelo companheiro. Há também o assédio na fábrica, mães solteiras e todos os problemas sofridos pelas mulheres por serem mulheres. A grande questão é o espectador ser entorpecido pela ação e pela violência e não enxergar esse debate… mas aí, talvez o problema seja eu esperar algo do espectador…
As cenas de violência incomodam pela crueza. Quem é homem vai sentir uma certa agonia na morte do patrão, mesmo ele merecendo o destino. Por outro lado, as cenas contra as mulheres chocam pela covardia, mas isso proporciona uma certa satisfação quando elas se vingam.
Ao fim é um filme que diverte, entretém, mas também propõe algumas discussões em segundo plano. Tudo regado com muito sangue e boas risadas. Uma pena o título não ser Rebeldes, como em francês.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
1951
3.0 11951 – Crítica
Discursos saudosistas sempre me preocupam, pois são carregados de sentimentos. Emocionam, nos tocam, inflam as massas e pintam o passado de uma forma extremamente idealizada. O documentário 1951, sobre as festividades do centenário de Joinville, me parece calcado em uma memória saudosista da cidade. A voz over e as entrevistas seguem uma mesma linha editorial, sem divergir em nenhum momento. Todos os entrevistados, que viveram as festividades falam sempre de uma cidade pacata, sem agitação, de um tempo onde tudo era melhor.
A obra é um exercício para o entendimento do papel do narrador no cinema, um personagem que conta a história, que guia o espectador por cada lugar e direciona seu olhar para um ponto de vista. Ele está evidente na divisão dos capítulos e na voz over, mas é na montagem onde esse papel é exercido de maneira transparente. O corte em cada fala de morador da cidade e a escolha de quem fala sobre os 100 anos, mostra o direcionamento para um discurso sem contradições e marcado pelo pensamento hegemônico da cidade.
O filme inicia com o discurso sobre as grandes mudanças no mundo no ano de 1951 e coloca Joinville no centro. Fala do pós-guerra, da industrialização e de seu centenário. A imagem do discurso de Getúlio Vargas reforça a importância dessas mudanças, mas durante o filme a perspectiva parece se voltar ao passado do cotidiano, sem tocar nas questões políticas e sociais de Joinville. A obra mantém a imagem reconhecida da cidade, sem questionar. Fala da cidade das bicicletas, do povo ordeiro e trabalhador, a imagem do Príncipe e a educação alemã. Mitos que existem apenas para um pequeno círculo. Quando falam do Rio Cachoeira, não existe nenhum questionamento sobre quando não se pode mais tomar banho, nem quem são os grandes responsáveis pela poluição. O único conflito e divergência durante todo o curta é sobre quem torcia para o América e quem era Caxias.
O filme segue assim uma linha transparente, sem surpresas na forma ou no conteúdo, isso torna a obra eficiente em transmitir sua mensagem. Mesmo se baseando principalmente em entrevistas, o cineasta Ebner Gonçalves consegue fugir do enclausuramento do olhar quando muda o ângulo e o plano da imagem dos entrevistados. As cenas em planos abertos são reservadas às imagens de arquivo e para o plano final. Não existe muito espaço, nem razão para som ambiente, logo a trilha segue o tom saudosista das falas.
A forma se adapta ao conteúdo das anedotas sobre um dia feliz para pessoas que compareceram na festa do centenário. Um após o outro, eles contam sobre como era o cotidiano da época e como foram felizes ali, talvez seja uma chatice minha exigir um outro ponto de vista, afinal em dias de festas todos querem esquecer dos problemas e apenas sorrir.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Aftersun
4.1 700Aftersun (2023) – Crítica
Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Maré de conflitos
4.0 1Maré de Conflitos (2022)- Crítica
A destruição e o cuidado com o meio ambiente dividem as pautas nos meios de comunicação. A ênfase das notícias em preservar parece ser a mesma em destruir. Ficamos com uma sensação estranha, não sabemos se avançamos nos cuidados ou se estamos à beira de uma catástrofe climática. Esse sentimento de estranhamento provocado pelas notícias é semelhante ao assistir o documentário Maré de Conflitos, dirigido e roteirizado pelo jornalista Altamir Andrade.
A narrativa do curta-metragem nos revolta, mas também consegue nos tocar. Vemos inúmeros ataques contra o meio ambiente, mas também inúmeras belezas da Baía Babitonga. O mar, os mangues, as espécies de pássaros e peixes nos provocam um sentimento de deslumbramento. Fragmentada em planos gerais ou closes, a fotografia do filme consegue produzir uma narrativa sedutora. Quem não conhece os lugares, com certeza ficará tentado a conhecer e, muito difícil, quem mora na região, não se sentir orgulhoso.
A revolta surge justamente desse orgulho, pois vemos o quanto o discurso do progresso econômico, esconde, em alguns casos, a despreocupação com as comunidades e a região afetadas por essas ações. Navios, exportações, geração de empregos, portos são uma imagem comum aos olhos de um país produtor de commodities. Mas não é comum falar sobre como essas ações afetam o meio ambiente, nem o nosso futuro.
A visão do diretor está marcada por essa preocupação com o futuro. As falas no documentário são de quem defende os interesses das comunidades locais ou deseja preservar a Baía da Babitonga para as novas gerações. Professores e ambientalistas falam, mas a voz realmente importante e com peso são os pescadores. É quem dá a dimensão poética da imagem e consegue ilustrar a degradação do meio ambiente.
Mesmo com a saturação de informação, o corte do filme e a escolha das entrevistas conseguem traduzir a dimensão do problema, mas é a montagem que produz a síntese entre todos os discursos, não fica ponta solta.
O documentário consegue provar, como mesmo sendo um filme curto, 25 minutos no caso, se pode tratar de temas complexos e de forma aprofundada. Como também prova a grande capacidade do cinema como ferramenta educativa e militante. Um filme, seja curta ou longa, pode entreter, pode também nos emocionar, mas aqui ele revolta e nos desperta os olhos.
João Diego Leite é crítico de cinema
Passagem de volta
3.9 1Passagem de Volta (2022) – Crítica
Um longo período dedicado ao trabalho ou alguma responsabilidade de maneira intensa, sem nenhuma folga ou espaço para respirar, esgota qualquer pessoa. Mesmo os mais fortes, em algum momento se abatem e querem deixar de existir. É um sentimento comum, fruto do conflito entre o querer e o poder. Na maior parte das vezes, as pessoas aceitam não poder, enterram seus sonhos e esquecem. Quando isso não ocorre, nascem as frustrações e acabam vivendo uma vida amargurada, sem sentido e cheias de pesares.
O personagem principal do curta-metragem Passagem de Volta é uma dessas pessoas. Ele está suturado com o trabalho e no ápice do estresse. Não aguenta mais as brigas com a esposa e sente falta do convívio com a filha. Queria estar mais presente, mas para prover uma vida melhor para eles, precisa passar os dias fora. Parece não existir outra possibilidade, mesmo quando foge para ver o mar.
Apesar de parecer ser um homem com dinheiro, algumas atitudes nos forçam a duvidar da situação financeira do personagem. Na primeira cena, ele reclama do preço do café, mas após o cancelamento do voo, nada parece caro. Ele distribui dinheiro onde vai. Dá uma gorjeta à garçonete, interpretada por Ianca Michelini, e paga o dobro para o taxista, interpretado por Lucas Ukah. O esbanjamento pode ser fruto de um desprendimento, nada mais importa, mas também pode ser uma libertação. Quando ele vai beber uma cerveja, pois ele diz hoje poder, a pergunta é: quando não pode?
O motor narrativo do curta-metragem é o conflito interno do personagem, a trama avança quando o homem questiona as escolhas feitas em sua vida. O avião não ter decolado é apenas um empurrão. O filme prende nossa atenção e mantém nosso interesse vivo devido a condução da direção, quem consegue administrar durante toda a obra, o suspense sobre o destino do personagem.
Isso nós vemos, na forma da montagem, ao parecer recortar duas sequências e espalhá-las em uma linha do tempo. Pode ser confuso no início, bagunçar um pouco, deixar o espectador com dúvidas, mas nenhuma ponta fica solta. Durante todo o filme, por exemplo, uma cena funciona como um presságio de algo ruim, aparece, entre uma sequência e outra. Há também duas cenas dos pés, uma ao início e outra ao final. As duas conectam toda a narrativa.
O ator, Welington Moraes, consegue encarnar um personagem com mudanças bruscas de temperamento, mas com momentos de alívio. Quando caminha não vemos vida na forma de andar, nem força em seus gestos, parece um zumbi, se arrasta para os lugares. Isso muda quando estoura no quarto, explode com a esposa, mas fala tranquilamente com a filha, ao contar uma história de ninar. Ele demonstra um grande talento em convencer com as oscilações, como na praia, um momento que parece totalmente louco do personagem.
Ao retratar o dia estafante de homem de negócios, a diretora e roteirista, Fahya Kury Cassins, consegue mostrar como a rotina pode se tornar uma prisão e como isso tolhe toda a personalidade. Ela retorna a um assunto já abordado em seu outro filme, Fim de Tarde: o tempo dedicado a nossa felicidade e a quem amamos. Passagem de Volta, aprofunda o assunto, muda a abordagem e nos força a pensar sobre quanto tempo dedicamos àquilo que realmente importa.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O panaca
3.3 1O Panaca (2022) – Crítica
Não há falas nos primeiros minutos do filme e isso incomoda muito, pois toda a construção das cenas indica uma tensão. Algo parece prestes a explodir e esperamos, como de costume, gritos de raiva e longos diálogos, mas não é essa a proposta da cineasta. Não é preciso de palavras para construir uma trama. A sétima arte concedeu ao ator a possibilidade de expressão por meio dos gestos, closes e planos detalhes. O cinema nos concede a oportunidade de “vermos e ouvirmos” o silêncio dos atores. E isso, o curta-metragem O Panaca, dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins, nos mostra.
A construção narrativa direciona o olhar do espectador para questionar as ações dos personagens. Todas as sequências nos levam sempre a terminar perguntando, por quê? O roteiro trabalha com as reações do público. Não sabemos se a traição foi o estopim para a violência do casal, aparentemente é a fuga, mas isso não está claro e não é um problema narrativo. Os fatos estão consumados e a cineasta deseja nos provocar a imaginar todas as consequências. Como ele fez? Ela está em perigo? Quem era a pessoa? As perguntas acumulam-se no decorrer da obra.
Quando o filme começa não precisamos nos esforçar para notar a preocupação da esposa, interpretada por Nara Nowischk. A ebulição da água na chaleira marca o fim da paciência. O olhar para o nada e a desatenção com a filha, interpretada por Júlia Hilger, sinalizam o nervosismo. Ela não consegue parar de olhar para o celular. A atriz consegue assumir o papel de uma personagem de corpo presente, mas com a cabeça nas nuvens, alguém consumida pelos próprios pensamentos.
Também não nos esforçamos para notar as emoções do marido, interpretado por Luciano Flora. Há um misto de sentimentos negativos transmitidos pelo personagem. Todos sinalizam violência. Quando ele segura o volante com raiva, como se enganasse alguém ou várias e várias vezes faz o sinal de não com a cabeça, imaginamos uma série de situações. O lugar em que ele aparece pela primeira vez e o carro sempre em movimento, sugerem algo ruim, como a roupa suja de sangue.
As perguntas sobre o casal aumentam quando assistimos aos flashbacks do marido. Ele está sempre com a filha. O clima das memórias é sempre feliz, como as cores do figurino destacam. Ao mesmo tempo, onde estava a mãe? Qual o motivo de ela não participar das memórias felizes com o marido e a filha? O celular nos mostra algo, não sabemos em detalhes, mas entendemos o problema e nossa atenção é direcionada a questionar as motivações e razões do casal. Tanto para a traição, como para algo pior.
A ausência da voz devolve ao cinema, a visualidade de sua origem, quando o som ainda não havia sido inventado. Claro, aqui a situação é bem diferente, existe o som diegético e uma trilha sonora original, composta por Anna Viliczinski. Isso não diminui o mérito de dois elementos essenciais para construção da narrativa, os atores e a montagem construída por Marcelo Eduvirge. Sem o elemento da fala, os atores foram obrigados a trabalhar o gesto, o olhar e a expressão corporal. Todas as cenas são organizadas para dirigir a percepção do espectador. O filme funciona e consegue atingir seu objetivo devido a montagem da obra ser construída na mente do público, com as sugestões e provocações da cineasta em cada plano.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Gritos do Sul
2.7 1Gritos do Sul (2022) – Crítica
O fascismo representa a reação da burguesia contra toda a ameaça de levante da classe trabalhadora. As crises do capitalismo produzem as possibilidades de revolução e contra-revolução. A pequena-burguesia falida, hoje chamada de classe média, como o lumpesinato, conhecido como precariado, encontram nas posições reacionárias do fascismo um ponto de apoio à crise do sistema. Eles não desejam se tornar assalariados, nem querem ser parte da classe trabalhadora, acreditam ser autônomos e estarem em nível superior. O movimento fascista os infla contra todas as bandeiras progressistas, pois para tomar o poder precisa destruir quaisquer resquícios de organização popular que ameace os interesses do capital.
As semelhanças com o bolsonarismo não são casuais. Deus, Pátria e a Família era o lema de Hitler. Grupos neonazistas sempre flertaram com o ex-presidente. Suas bravatas mais inflamadas, como: metralhar os petistas, acabar com terras indígenas, atacar o MST, com os sindicatos e censurar a imprensa, também não deixam dúvidas sobre suas inclinações. Ele só não foi mais longe, por não encontrar o apoio necessário. A invasão do Palácio do Planalto e do STF demonstra disposição dos apoiadores, a depender da situação econômica e do próximo governo, esse grupo pode crescer e o bolsonarismo ressurgir. É sobre isso que o curta-metragem Gritos do Sul nos alerta, sobre o fascismo sempre a espreita…
Gravado durante a pandemia do Covid-19, nas cidades de Joinville e Campo Alegre, o filme retrata a situação política do Brasil, o negacionismo científico e as simpatias neonazistas de determinados setores da sociedade catarinense. Quem nunca pensou na política brasileira como um gênero de terror, talvez não conheça a história de nosso país. A Matéria prima sempre existiu, faltava imaginação para a narrativa, uma trama sem escapismo e enraizamento na realidade local. Tudo isso encontramos no curta-metragem dirigido e roteirizado por Fahya Kury Cassins.
O filme narra a história de um casal catarinense e seu filho em um fim de semana no campo. Os dois aguardam ansiosamente para passar alguns dias em um chalé aconchegante próximo a natureza. No meio da pandemia, sair do confinamento e mudar de ambiente é tudo que eles mais desejam. Preocupados apenas em relaxar, os dois não percebem como estão sendo manipulados e guiados para uma armadilha. O passeio comum e despretensioso acaba se transformando em um pesadelo com consequências nefastas.
Não há nada de errado com o casal Maíra, interpretada por Ianca Michelini, e Eduardo, interpretado por André Ribeiro, mas em uma cidade pequena ou em um lugar com vocação provinciana de Santa Catarina, uma mulher loira de olhos azuis com homem negro, tendem a despertar olhares curiosos, ainda mais com um filho loiro. Não é difícil imaginar os pensamentos do casal de idosos ao vê-los juntos com a criança. Mais importante que notar as falas são os gestos. Descendentes de alemães e donos do lugar expressam uma mistura de sentimentos, entre o nojo e a raiva.
Gertrudes, interpretada por Nenê Borges, demonstra esses sentimentos ao tentar, a todo momento, se aproximar da criança, ignorando o pai e a mãe. Não é só o toque e as brincadeiras que incomoda, mas a forma invasiva de querer afastar o bebê dos pais. Gerson, interpretado por Sérgio Ubiratã, não perde tempo em destilar todo ódio, xenofobia e preconceito, acompanhado das fake news. Apesar de todo o ar de tiozão, a roupa com estilo militar assusta.
Ao contrário de Eduardo, que parece agir no piloto automático e sem pensar, Maíra parece estar sempre preocupada, mesmo que de maneira tímida, ela tenta alertar o companheiro sobre o perigo. Não gosta da aproximação do casal de idosos do filho, nem do fato do lugar ser diferente, mas o marido não liga. Ele prefere agir impulsivamente. Isso os impede de ficar em segurança e os torna um alvo da armadilha.
A cena principal do filme, quando vemos o filho de Gerson e Gertrudes, interpretado por Gabriel Maier, assusta os personagens, mas não os afasta do local. Eles parecem não entender o perigo, nem a situação, mesmo com as falas óbvias do casal de idosos, eles resolvem seguir com o passeio de fim de semana. Esse engano ou anestesia de Eduardo e Maíra, talvez sirva como metáfora. Durante anos ouvimos falar que os discursos de Bolsonaro não deveriam ser levados a sério, que não existia perigo e ele só vivia dessas bravatas. O casal, como muitas pessoas, inclusive grande parte da esquerda, se negou a enxergar a realidade.
O roteiro tem um ponto forte em seu subtexto, notamos a bandeira do Brasil em cada canto, a camisa do genocida, as falas explícitas sobre o fascismo, mas demoramos a notar os gestos e como eles são conduzidos para um caminho sem volta. Eles não vão para o lugar agendado, a idosa entra na casa, o bebê chora, além disso a motosserra não para. O som anuncia o perigo e marca a evolução da tensão.
A criança não é apenas um personagem coadjuvante, o casal de idosos, em sua ideologia fascista, com suas atitudes mais sujas, em crimes mais horrendos, inclusive contra crianças, enxergam no bebê um ideal de pureza que eles não possuem. É preciso resgatá-lo de uma união com pessoas de “raças inferiores”. Eles não conseguem enxergar de modo diferente, a crise do sistema é uma crise de valores. O capitalismo começa a ruir, quando as pessoas se misturam, quando o mundo não funciona mais como no passado. Preservar a pureza das crianças é a única para fortalecer seu modo de vida. Pode soar apavorante, retrógrado, mas muitos pensam assim…
O curta-metragem Gritos do Sul, nos mostra como as bravatas incendiárias e a defesa das posições mais reacionárias não devem ser ignoradas. Há alguns anos, talvez eu reclamasse da verossimilhança das frases ditas pelos personagens ou do exagero, atualmente acredito estar extremamente adequado à realidade. Os últimos anos tornaram as atitudes grotescas, como no filme, um elemento presente em nosso cotidiano e fizeram do país palco de um filme de terror. Os gritos do sul, não são ficção, mas uma realidade. Ao fim, é uma obra para ser vista e revista.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
O Caso dos Irmãos Naves
4.2 87 Assista AgoraO Caso dos Irmãos Naves (1967) – Crítica
Mesmo se passando no período da ditadura Vargas é difícil assistir ao filme e não relacioná-lo com a ditadura militar. A obra evoca referências em nossa memória. Ao falar de uma injustiça, comenta outras situações e nos provoca a refletir sobre nossa história. É um filme de denúncia, crítica e, talvez, de reparação. Mostra como uma obra de arte e o cinema produzem metáforas e mitos, que nos ajudam a entender e a explicar nossa história.
A trama se passa em Araguari, uma cidade do interior de Minas Gerais, em 1937. Os Irmãos Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira), denunciam na polícia o desaparecimento de Benedito com o dinheiro de uma colheita de arroz. O Tenente (Anselmo Duarte), empossado pelo governo recente, duvida da narrativa dos irmãos e passa a acusá-los. Eles e seus familiares são presos, torturados e obrigados a confessar um crime a qual não cometeram.
O desenvolvimento do roteiro ocorre sempre com comentários do narrador, que situa o olhar do espectador diante das imagens. A narração adquire uma estética radiofônica, narrando os fatos, alertando sobre o tempo que passou, como revelando os desfechos. A voz em um tom imparcial, sem manifestar emoções, lembram um relato jurídico, como se o filme fosse narrado a partir das atas dos tribunais.
Assim, quando vemos o trem partir, a voz over fala sobre Benedito ter viajado sem rumo. O cineasta Luís Sérgio Person, nos apresenta primeiro a conjuntura dos fatos, depois a voz dos personagens-títulos. Também acrescenta um tom de “realismo” à imagem, na forma distante como observamos cada morador na rua comentando as últimas notícias, o crime e a posse do novo governo. Essa forma ajuda a entender a virada da história, em como os Naves passam de acusadores para acusados. Mostra como a história ganha uma nova versão e como as mudanças políticas influenciam na vida cotidiana.
O depoimento com delegado civil não consegue concluir nada, então o Tenente nomeado resolve agir. Sua atitude desde o início é de desconfiança e violência, tratando os depoentes favoráveis aos Naves sempre como culpados. Não existe entrevista com o militar, mas um inquérito acusatório e tortura. Não existe presunção de inocência, apenas culpados.
A atitude do tenente durante os depoimentos se traduz em seu figurino e gestos durante todo o filme. Sempre de farda e com um sorriso cínico, ele encerra qualquer assunto por onde passa. Não tem nome, mas uma patente, não permite ninguém questioná-lo e tenta sempre se impor diante de qualquer resistência ou divergência. Quando o Coronel assume, é esperado uma atitude diferente, mas o que vemos é apenas uma intesificação da tortura, o alto posto de comando dos militares, não tinha divergências sobre os métodos, apenas sobre o tempo em resolver o caso.
A forma de pensar do Tentente lembrou muito as posturas dos inquisidores no filme Goya de Miloš Forman, no qual em uma cena eles afirmam que toda confisão sobre tortura é verdadeira e não pode ser anulada. Assim parecem pensar os militares em geral, depois de arrancar uma confissão, não importam mais os fatos. Uma ideia fixa os move, a população é sua inimiga e é tratada como tal.
Impossível descolar a condução do crime da política nacional. Com um novo governo, as pessoas esperam um tratamento diferente para problemas corriqueiros. Em momentos de crise, como um dos moradores fala, todos esperam um pulso firme. As atitudes do Tenente podem não estar amparadas na Lei, mas estão amparadas nas forças políticas que apoiaram o golpe de Vargas.
Ontem e hoje, podemos refletir sobre como as posturas de governantes influenciam pessoas que estão em posições de liderança e tratam diretamente com a base da população. Como essas posturas legitimam ou apoiam determinadas formas de conduta. O Tenente, quando chega não decide torturar por ser a última alternativa, mas por ser uma conduta militar.
As cenas de tortura pertubam e não são fáceis de assistir. O que mais impressiona são os olhares e a violência, em como os atores traduzem os momentos de agonia dos personagens. Não me parecem exageradas ou sádicas toda a violência mostrada, como alguns acusaram na época. Os socos, pauladas e as ameaças servem para mostrar como a tortura, como política de Estado, transforma os governos nos maiores terroristas da nossa sociedade.
O cineasta coloca o caso dos irmãos Naves no centro de dois processos históricos. Ao criticar o caso de injustiça, a tortura e os demandos do tenente, empossado pelo governo Vargas, fala da ditadura militar. Uma história específica de uma cidade do interior do Brasil se transforma em universal. Faz dos irmão Naves exemplos de vítimas do autoritarismo e de uma parte obscura de nossa história.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
The Last of Us (1ª Temporada)
4.4 1,2K Assista AgoraEncerrou ontem a primeira temporada de The Last Of Us, minha impressão é a série ser apenas um fan service, podemos falar sobre as qualidades da trama, sobre como eles ampliaram a narrativa, mas no geral, não existe uma grande justificativa para sua existência. O jogo é simplesmente maravilhoso por conseguir produzir uma obra de entretenimento que se aproxima de uma grande qualidade artística, mas no geral, qualquer cinéfilo, analisando friamente o game, não verá nada de mais, além de um roteiro bem construído. Os games atuais, devido a tecnologia, possibilitaram produções mais caras que filmes de Hollywood, também levaram para os consoles equipes cinematográficas. O grande mérito dos produtores foi sitentizar isso em um jogo, foi conseguir dar aos jogadores uma experiência de simulação e de cinema. A série transpos isso, mas não existe nenhuma inovação, teve todo um cuidado para não contradizer nenhum fato do game e colocar situações novas, sem atrapalhar a experiência de quem jogou. Ao fim, não acho que seja uma adaptação necessária, apenas um caça-níquel com muitas possibilidades.
Em Guerra
3.7 14 Assista AgoraA DÍVIDA DAS LOJAS AMERICANAS E O FILME EN GUERRE
Lembrei do filme do En Guerre (2018), quando ouvi hoje pela manhã a notícia do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, estar reunido com sindicalistas e trabalhadores das lojas Americanas. A situação do filme é diferente da empresa brasileira, mas é semelhante em dois pontos: as ameaças aos empregos e a impunidade dos patrões. No filme, o cineasta Stéphane Brizé, retrata a luta de um sindicalista para impedir a demissão dos funcionários e o fechamento da fábrica Perrin. Interpretado por Vincent Lindon, o sindicalista Laurent Amedeo, não aceita a ruptura dos acordos e das promessas feitas pelos acionistas da empresa. Para ele, não está em jogo apenas a quebra de contrato, mas o fim da vida de muitas pessoas…
Brrizé vai narrar o filme do ponto de vista dos trabalhadores, mas principalmente do sindicalista, Laurent. Ele, diferente dos demais, entendeu o significado das demissões e do fechamento da fábrica. Ao narrar o filme desta perspectiva, toda a forma narrativa coloca o olhar dos espectadores junto aos operários da fábrica. Enxergamos o filme em meio a multidão da assembleia, entre os grevistas no piquete e os trabalhadores na reunião sindical. Em alguns momentos, se utiliza a imagem semelhante às de jornal ou como documentário para acrescentar realismo à cena. Tudo ajuda a elevar a tensão.
O fato de adotar uma posição ao lado dos trabalhadores não significa mostrar o caminho a seguir, mesmo assim, o filme aponta contradições importantes. Brizé, nos faz questionar o significado de justiça e da legalidade ao mostrar as justificativas dos empresários.
Para eles, não importa o definhamento econômico da cidade, após a empresa fechar, nem o fato de muitos trabalhadores não conseguirem mais empregos por estarem velhos. A lei permite, a justiça também, ou seja, em uma democracia capitalista, eles podem fechar a empresa e irem para o leste o europeu. Pode ser cruel, mas não é um crime. Eles podem diminuir a produção para elevar o preço dos produtos, dos quais detém o monopólio. Tudo isso é legal e justo dentro do sistema.
O esforço do sindicalista, que diga-se de passagem, não é nem comunista, nem marxista é exigir o cumprimento do acordo. É garantir os direitos ou achar uma nova saída, qual nenhum acionista deseja. Aqui, cabe mais uma semelhança, Marinho disse hoje pela manhã estar disposto a ouvir. É a única coisa que o governo pode fazer se atua dentro do sistema capitalista. Por mais injusta a situação, ele não vai intervir, pois a propriedade privada é sempre sagrada para o capitalismo e seus defensores, os empregos e as vidas não.
Eles não se importam, como nas Americanas.
Hoje a dívida está em 43 bilhões. Tinha lido 20, agora são 40, daqui uns dias o número aumenta. Esse débito foi adquirido de uma forma legal, por meio de uma operação chamada “risco sacado”. De acordo com o portal de Notícias DW, a operação é simples, você utiliza empréstimos bancários para o pagamento de fornecedores. De acordo com as instituições financeiras, esse serviço é vendido justamente por não ser identificado como dívida. Ou seja, na contabilidade está tudo bem.
Os acionistas perderam bilhões, mas isso não os impedirá de seguir com suas vidas. Lehman vai continuar defendendo a privatização da educação pública com seu instituto. Não sei se as universidades estrangeiras vão solicitar, mas provavelmente ele seguirá com as palestras. Julgo isso, pensando em como a hipocrisia não é um sentimento apenas nacional.
Agora, difícil vai ficar a situação dos empregados das 3.600 lojas físicas e os cerca de 40 mil funcionários, além dos 16 mil credores.
A julgar por aquilo que o cinema nos ensina, não espero compaixão, nem empatia, apenas capitalistas sendo capitalistas. Como no Filme En Guerre, não parece que a situação das Americanas vai terminar bem…
Podem como no filme, parcelar e pagar as indenizações ao demitir os trabalhadores, mas e os empregos?
É interessante sobre como isso é visto, na imprensa, não parece alarmista, nem radical, milhares perderem seus empregos e terem suas vidas imersas em dificuldades ou destruídas, mas é radical propor a expropriação da empresa e manutenção dos empregos. Qual a prioridade dos governos, garantir o direito de alguns empresários ou garantir o emprego de milhares…
A situação pode mudar, o mercado pode arrumar uma maneira de salvar a empresa, mas ainda assim, milhares de pessoas já sofreram pelo caminho, sem que nenhuma nota no jornal, nem ninguém se preocupasse com elas.
Aftersun
4.1 700Aftersun (2023) – Crítica
Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Rainha de Copas
3.8 101 Assista AgoraFaz alguns dias assisti o filme dinamarquês A Rainha de Copas, dirigido pela cineasta May el-Toukhy, gostei da obra, mas me incomodou muito a exposição da vítima. Eu entendo quando colocamos uma mulher em uma situação cotidiana, qual ela passa por assédio ou violência para chocar, para mostrar a realidade, fazer uma denúncia. Ou seja, mostrar que, por mais avanços e progressos, algumas situações ainda precisam mudar. Entendo, mesmo isso, mas ainda assim, precisamos refletir sobre a forma, não basta apenas expor o conteúdo. No filme, a personagem está insatisfeita, infeliz, toma algumas escolhas erradas, ela tem um serviço importante na comunidade, mas no geral toda violência sofrida por ela e por outros parece naturalizada. Não é papel do artista explicar tudo, mas alguns filmes na tentativa de instigar uma trama, de fornecer plots parecem acabar trabalhando contra a proposta inicial. Mostrar o quanto uma vítima está sozinha, o quanto não pode contar com ninguém e por isso tomou um caminho "legalmente" e "moralmente" errado é interessante, mas a conclusão disso tudo pode, em alguns casos, apenas justificar as opressões sofridas, como se ela procurasse passar por tudo que passou. Ao fim, o filme deixa um gosto estranho é bom, mas algo não parece estar certo...
Primal (1ª Temporada)
4.5 51Tenho um problema com a quantidade de falas em uma obra audiovisual. Diálogos excessivos, às vezes, demonstram a falta domínio do meio audiovisual. A fala faz parte da ação, não serve para segurar a narrativa, nem para descrever a ação mostrada e muito menos explicar o que está sendo visto. Assisti pouca novela e uma vez ou outra assisto algum episódio, algo que me incomoda é como não precisamos ver tudo para entender a trama. Basta sentar no sofá, ler, olhar o celular e ouvir a televisão. Basta ver alguma coisa que você consegue entender tudo - As séries da DC, os novelão adolescentes também não fogem desse padrão -. Dito isso, creio ser pedagógico assistir Primal, série animada criada e produzida por Genndy Tartakovsky, o mesmo criador de Samurai Jack e produtor de Star Wars: Guerras Clônicas. A primeira temporada não tem falas, mas existe som. Ouvimos muita coisa, mas nada que possa substituir a imagem em movimento. A história se baseia em um mundo onde os homens e dinossauros vivem juntos, onde também existem milhares de outras tribos e civilizações, como Vikings. Nesse mundo, um neandertal acaba fazendo amizade com uma espécie de T-Rex e os dois se unem para sobreviver. Tem muito sangue. É excessivamente violento. É interessante esse ponto, pois sempre pensamos na natureza como pacífica, a fantasia de Tartakovsky, mostra que não. A beleza da natureza existe, mas ela não está apenas em seus momentos de paz, mas na luta e na sobrevivência das espécies. O legal disso tudo é, os 10 primeiros episódios terem apenas uma palavra. É você entender os sentimentos e as relações dos personagens, sem ninguém precisar explicar. É tudo maravilhosamente explicado por meio das imagens em movimento. É uma série que precisa ser vista, sem celular na mão, sem pausas, apenas com olhos vidrados em todos os movimentos dos personagens.
O Predador: A Caçada
3.6 663O Predador: A Caçada – Crítica
É um lugar comum ao cinema americano a defesa da família, a provação para ser líder e toda a violência para realizar essas tarefas. O Predador: A Caçada, dirigido por Dan Trachtenberg, é uma velha trama com inclusão, sem abdicar de toda a violência e patriotismo. As críticas mais reacionárias demonstram, não só o quanto são ignorantes em matéria cinematográfica, como tem uma masculinidade frágil e insegura, podendo se sentir ameaçados por uma personagem de ficção. As críticas mais progressistas demonstram como as pautas inclusivas e de representatividade são facilmente cooptadas pelo sistema, podendo muitas vezes servir a propósitos conservadores.
Como todo filme da saga, o monstro alienígena chega à terra buscando caçadores, ele quer animais ou homens do topo da cadeia alimentar. Não quer coelhos, mas lobos, ursos, guerreiros e soldados. Em sua sede por enfrentar o inimigo mais forte, ele acaba se descuidando, expondo suas fraquezas e superestimando seus adversários. A cultura do streaming pode deixar-nos desatentos, mas é preciso lembrar, não éramos os mesmo há 300 anos, nem os aliens. Predador de Amber Midthunder (Naru) tem um atraso tecnológico de 300 anos do alien de Arnold Schwarzenegger e Andreu Brody, talvez seja apenas a primeira incursão em nosso planeta.
Esse atraso na tecnologia é uma desvantagem muito maior para os humanos. Os aliens têm radar, visão de calor e podem ficar invisíveis, enquanto a única arma de fogo da humanidade demora tanto para ser engatilhada, que é preferível utilizar um arco e flecha. Essa desvantagem aparente, essa desigualdade frustrada em cada plano de luta entre o predador e os comanches e franceses é a vantagem de Naru.
Ela não era mais forte, nem a melhor, mas a mais inteligente. Não tinha músculos, nem era uma boina verde, mas como Schwarzenegger foi a inteligência que derrotou o monstro. É muito interessante como, cada detalhe do filme é somado para a conclusão final. Como todas as quedas, erros e fracassos são superados e tomados como lição da personagem.
O roteiro valoriza a tecnologia primitiva, aqui não me compreendam mal, por primitivo entendo aquilo mais próximo a natureza, livre da artificialidade da fabricação industrial. Ou seja, as armas não produzem o melhor soldado, mas sim seu conhecimento sobre o inimigo e sua capacidade de improvisar. É a inteligência de Naru, junto com a sua coragem e persistência os grandes motivadores da personagem e do roteiro. A cena em que seu irmão acerta uma águia com a flecha, ilustra isso, assim como quando eles enfrentam o puma, nos dois casos ela não é a melhor, mas aos poucos se prova.
Li um texto na Cahiers Du Cinéma (Chute Libre n:388, 1986), acusando os diretores americanos de utilizar a inclusão apenas como uma forma de vender a mesma história. Mudavam as cores dos personagens, mas mantinham o tom belicista, os valores americanos e o tom patriótico. Aqui, alguns detalhes ficam evidentes, primeiro, eles estão nos Estados Unidos. Os invasores não são ingleses, mas franceses. Os americanos, excluídos por uma comanche encarnar a personagem principal, estão autorizados a se identificar com a nativa americana quando o inimigo é um estrangeiro não fala inglês. Segundo, a luta poderia ser sobre muita coisa, mas a provação de Naru, seja o inimigo um Alien ou um Francês, é para defender seu território, sua família e sua nacionalidade. Apesar de inclusivo, o filme mantém a narrativa americanizada de sempre.
É como um agente 007 negro, não muda a origem imperialista do personagem. Um agente negro continuaria sendo um soldado da monarquia inglesa, um agente do capitalismo, inimigo da libertação dos povos. Para ele representar algo revolucionário, não apenas inclusivo, talvez fosse necessário romper com a agência e tomar parte de algum país ou povo oprimido. Ao invés de Naru lutar contra os aliens, ela não poderia se unir a eles e expulsar os colonizadores? Quem sabe, as narrativas poderiam ser diferentes, mas enquanto nos ativermos muito as aparências e pouco a forma, nada vai mudar.
Sandman (1ª Temporada)
4.1 590 Assista AgoraEm uma entrevista, Neil Gaiman disse ter ameaçado se jogar na frente de um carro para impedir uma adapatação desastrosa de um de seus livros. Ele não só estava disposto a fazer isso, como iria contar o motivo para todos, antes de fazer. Pensei muito nisso, antes de assistir todos os episódio de Sandman, na Netflix. Pensei como alguém que nunca havia lido a obra iria receber Sandman. Apesar do personagem carregar todas as HQs em seu lastro. A obra televisiva tem prórpio caminho e por seus méritos, audiovisuais ou cinematográfios, deve provar sua relevância. Pensei muito nisso quando assisti cada cena. Não é a melhor coisa que assisti até agora, nem está próxima da melhor série do ano. Mas ver a Morte e o sonho conversando sentados em um banco da praça é uma das melhores coisas que assisti em muito tempo. Ver o senhor dos sonhos como o mais solitário dos perpetuos. Apesar do poder a imaginação e criação, sonhar é, por vezes, uma atividade solitária. Quem melhor para descobrir isso que sandman? Espero mais temporadas, espero mais episódios, quero ver o encontro com Shakespeare e a guerra entre o céu e o inferno.