Midsommar (2019) é um filme americano de terror psicológico. O filme se passa num retiro espiritual numa seita secreta na Suécia. A direção opta por planos abertos para mostrar as paisagens simétricas e as dissimétricas/ assimétricas (o que nos dirá sobre o caráter cristal perfeito e o mais estado carvão bruto e irregular da religião). Tudo nessa seita é feita por meio de rituais, desde as coisas mais corriqueiras até o extraordinário, isto é, tudo é acompanhado de danças, cantorias, gestos, leituras, vestes apropriadas, silêncios e gritos (novamente o tonal e o atonal, o canto no tom e o ruído, o gesto sincronizado e o desengonçado o que deixa nenhum espaço para o espontâneo). Por último, outro tema que gostaria de ressaltar são as drogas alucinógenas, o limite entre o delírio e a lucidez.
A religião passa por todas essas instâncias, abusivas, libertárias, mais ou menos geométricas, equilíbrio e desequilíbrio, do sussurro e do berro, da sensatez e do estado de pura fantasia. A religião é assim por ser humana e nós somos inconstantes.
Um filme para quem quiser pensar a relação do homem com esse teatro dos vampiros que encenamos para, pretenciosamente dizer: o divino é isto que apreendi, é está a vontade de Deus sendo que, na verdade, nada sabemos sobre Deus de fato. Só projetamos na imagem dEle nossas inseguranças.
Mustang/Cinco graças (as distribuidoras de filmes no Brasil têm um inegável dom de traduzir os nomes dos filmes fazendo a pior escolha possível) é um filme turco de 2015. Nele temos 5 meninas órfãs vivendo com a avó e o tio numa Turquia marcada pelo patriarcado (não se animem pois veremos que aqui não é diferente).O que o filme debate é o casamento de meninas abaixo de 18 anos.
Trazendo para cá o debate, talvez seja revelador pra alguns mas nos dias atuais somos o quarto país do mundo com mais casamentos infantis e arranjados e cerca de 20% das meninas no nosso país se casam antes dos 18 anos. Temos nesse filme alguns perfis: meninas que querem se casar pra sair da casa da família, o sonho de construir sua própria família, a manutenção da "honra e pureza", a pressão social mas, temos resistência e isso é delicioso de assistir. O filme também discute erotização infantil e pedofilia.
Perguntas:
1) feministas: é correto falar de um feminismo oriental sendo que essa é uma concepção ocidental? 2) quando a religião vai atualizar o debate sobre sexo antes do casamento?
Vá e Veja (1985) é um filme soviético que vai agradar principalmente quem gosta da temática da segunda guerra mundial e quer algo mais sofisticado. O título faz alusão ao verso presente no evangelho de João: "Vá e veja" (João 1:46). A diferença, é que não são os milagres de Jesus, como no versículo acima, mas sim nosso protagonista é esse que vai e vê nazistas que atearam fogo em mais de 200 vilarejos Bielorrussos. A direção foca nos olhares, nas expressões faciais dos personagens, vemos pelo olho do protagonista e tomamos vários outros olhares emprestados para ver a reação de todos. Gostaria de destacar as expressões dele que começa com a excitação de um jovem que quer lutar na guerra, o medo, a descrença, o desespero, a alucinação, o delírio, o espanto e a ira.
A alucinação ele vive com uma jovem que ele conhece e que, o momento desse casal, é um oásis nesse inferno (que são eles Aleksei Kravchenko e Olga Mironova que entregaram uma atuação incrível).
Em um tempo com tantos rumores nazistas é um filme necessário. Esse tipo de ideologia não cresceu do dia pra noite e ela já está presente na nossa sociedade com o ódio a esse povo imaginário comunista e com as minorias. Espero que ainda esteja em tempo de revertermos isso.
Kuuki Ningyou/boneca inflável (2009) é um filme em que o real e a fantasia acontecem ao mesmo tempo. Isto pois, um homem vive com uma boneca inflável até que um dia ela se torna humana. Partindo de uma camada mais básica o filme retrata a realidade de vários homens no Japão que literalmente vivem com bonecas infláveis ou robôs (indico o Anime Chobits que támbem fala sobre isso, apesar de ser uma comédia romântica).
A verdade é que a modernidade revelou algo que sempre tentamos esconder: somos solitários. Sempre fomos e agora somos ainda mais pois temos uma ilusão de companhia. Ao postar algo aqui, ao receber likes, corações, Hahahas, pensamos: há algo de emoção aqui, alguém se importa, alguém me acompanha... As redes sociais são essa mesma boneca inflável que a gente conversa sozinho durante o dia. Ilusão de companhia. Solidão.
O filme também pensa sobre o vazio e como o sistema Capitalista se aproveita dessa sensação de falta pra gerar desejo de compra. Nozomi diz a um mendingo: "sou vazia por dentro" e ele responde: "hoje em dia todos somos".
É por isso que o sistema quer que postemos toda nossa vida, que compremos muito, que voltemos a trabalhar, que não fiquemos sozinhos, que escutemos músicas e barulhos o tempo todo, que leiamos livros bestsellers, que falemos sobre nós o tempo todo, que não escutemos o outro... Todo esse barulho, todo esse preenchimento para: alimentarmos o sistema com nosso dinheiro, comprando incessantemente e com nossa vida e, ainda, não darmos conta que somos sozinhos e vazios. Pois encarrar nosso vazio e nossa solidão cobra de nós um preço muito maior do que ser boneca inflável do sistema.
Bae Donna (que também fez Sense8) está maravilhosa no filme.
L'arbre/A árvore (2010) é um filme francês/australiano dirigido por Julie Bertuccelli. O filme tocará especialmente as pessoas que já sofreram algum tipo de perda emocional. Todas nossas relações são como árvores que são regadas mais ou menos conforme o interesse de ambos ou de algum dos dois. Quando alguém sai da nossa vida, contudo, semelhante a árvore; deixa raízes mais ou menos profundas: a sensibilidade (que eu atribuo por ser de uma diretora) é sobre como lidar com os vestígios de quem se foi? Como não tropeçar nos seus galhos e não lembrar das folhas, dos frutos e até mesmo dos gravetos? Um filme sobre essa ausência que se torna mais presente do que nunca. Apesar das notas baixas que ele recebe eu indico profundamente. Charlotte Gainsbourg está maravilhosa e não se pode esperar menos dela.
O terceiro assassinato (2017) é um filme japonês que agradará, sobretudo, estudantes de direito e psicologia. Falando mais próximo ao segundo grupo acompanhamos um advogado que investiga um caso de assassinato que, de uma forma labiríntica e repleta de camadas, revela muito de sua própria relação familiar. Vemos a tentativa de remontagem do passado com fragmentos – do cliente de caso e dele mesmo. Foi Walter Benjamin que disse que o historiador (leiamos advogado ou analista) é esse que coleta os trapos da história. Remontar a história do outro por trapos, restos, resíduos é; antes de tudo, uma busca pelos próprios vestígios. Foi Freud quem sistematizou no exercício da clínica, e nomeou por transferência, algo que a arte e a vida cotidiana já conhecia: transferimos nossas neuroses e nosso desejo nesse Outro. O trabalho da clínica, a psicoterapia; aponta saídas de um uso sistemático dessa transferência. Um filme lento, escorregadio e que se esquiva mais rápido que nossas investidas – assim como nossa memória.
7 Kogustaki Mucize/milagre na cela 7 (2019) é um filme turco no catálogo Netflix. O filme mostra a relação de Memo e Ova, pai e filha, em uma luta contra o sistema de poder. Memo tem algo de esquizo, de desarranjo: dissonante do mundo e como já se sabe (procure aqui no Instagram o que eu disse sobre o filme dançando no escuro) o nosso sistema detesta pessoas assim. Ova flutua entre a inocência e uma sagacidade que as crianças têm. Ainda que contra todo um sistema os dois afetam (com afeto) todos ao redor com esse jeito dançante que ambos têm de dançar corretamente mas trocando os passos. Ver filmes assim me enchem de esperança pois a luta contra o fascismo é assim: atos mínimos contra um inimigo potente, mas esses atos sempre ecoam, sempre.
Aras Bulut Iynemli (Memo) e Nisa Sofiya Aksongur (Ova) oferecem um espetáculo de interpretação.
Hogar (2020) é um filme espanhol da Netflix que fala sobre querer (re)viver a todo custo uma vida que já não é sua, a vida de outrem, sempre algures, alhures. O alcoolismo como qualquer vício consegue: vive a vida por mim. Escolhe os horários, determina. Ser bem sucedido parece falar de alguém que tem pleno controle da própria vida sendo que, como dizem os estóicos, não temos controle de absolutamente nada ou ninguém. Pensar nisso faz com que tudo se torne mesquinho e infantil: ciúmes, ambições, culpas, perdas e etcetera. Como disse o pai da família pobre no filme Parasita: não fazer planos pois o mundo não segue o que a gente planeja.
Kardec (2019) é um filme que remonta a história de Allan Kardec, medium e fundador da doutrina espírita. No século XIX, o iluminismo, o pensamento científico, o niilismo; o cristianismo era completamente desnecessário à humanidade. Nos Estados Unidos o movimento pentecostal tentaria um sobre-fôlego pelo mover, mas é na França que Kardec concilia as dúvidas da religião com a sistematização científica e cria uma 'ciência poética'. O espiritismo é poético por ser essa linguagem que extrapola, do totalmente fora, ulterior.
Melancholia é um filme de 2011 de Lars Von Trier que torna imagética a colisão de um planeta chamado Melancolia com a Terra. Para muito além disso, é um retrato delicado e preciso (cirúrgico e necessário) sobre a depressão. Justine (Kristen Dust) está em um estágio crônico de depressão. Vemos a dificuldade de se expressar pela linguagem (Justine balbucia as palavras), as imagens de pássaros caindo do céu, presa a trapos escurecidos que a seguram, o corpo pesado, a sensação de se arrastar, os símbolos de morte que a seguem, os momentos raros de alegria, a cobrança de todos para que esses momentos sejam duradouros - "sorria" - o esforço e também a incompreensão de todos ao redor. Melancolia, o planeta, avança: um evento que não é noticiado e só quem está próximo é afetado. Justine sente a todo momento que esse mundo não lhe serve mais. Isto devido ao fato de que se sente deslocada na família, nos relacionamentos. Assim, a colisão parece dar cabo de um mundo que não comporta a melancolia. Não sei se quem nunca passou por fases depressivas e melancólicas conseguiria se conectar com o filme ou com Justine; infelizmente me parece que não. Kristen Dust e sua irmã Claire representada por Charlotte Gainsbourg estão incríveis nos papéis. Todos os dias Melancolia colide com a Terra e todos os dias a Terra morre um pouquinho. Em um mundo de uma felicidade rasa ser melancólico é não pertencer mesmo.
El hojo (2019) é um filme Netflix que está em alta e não por menos. Imagine uma prisão/experimento social com x andares (seria spoiler se revelasse o número de andares) de forma que:
- Uma vez ao dia um banquete desce do primeiro ao último andar dessa prisão; - O primeiro andar come primeiro, o segundo come o que o primeiro deixar, o terceiro os restos do segundo... Etc. - uma vez por mês se troca de lugar e você pode ir dos últimos andares para os primeiros e vice e versa.
Temos na personagem principal um ID e um superego atuando (psicanalistas vão amar), ou seja, um diabinho Capitalista e um anjinho socialista (o fato do diabinho ser Capitalista pra mim não é mera coincidência). A visão mais socialista é de se todos comerem só o necessário, todos sobrevivem. Por outro lado, a lei do capital é: se eu estou nos primeiros andares eu mereço comer o quanto eu quiser. A ideologia e a religiosidade que isso assume em ambos os lados é doentia. Um filme necessário para se pensar o estoque de comida em tempos de pandemia.
Blindness (2008) é um filme de Fernando Meireles baseado no livro Ensaio sobre a cegueira de José Saramago. Nele temos a cegueira que se inicia com um motorista e se espalha por toda população exceto pela Julianne Moore. Não conhecia o livro mas o filme me lembrou outro filme: Birdbox. A diferença é que Birdbox me parece falar sobre a depressão enquanto aqui sobre uma cegueira pela felicidade rasa, futilidade ou pela vida vazia que o capitalismo nos entrega. A verdade é que blindness e Birdbox tem muito em comum pois a depressão e a felicidade vazia parecem ter a mesma origem que é um apagamento do desejo, uma sensação de não pertencimento (ainda que se queira muito pertencer), um contentamento provisório ou não se contentar que parece querer ficar e é, sobretudo, ter de olhar de olhos fechados.
Completa solidão ou a única e indesejada companhia possível? O canto ou o silêncio da sereias? Loucura e devaneios ou sobriedade e consciência? O farol que orienta e controla ou o desejo que desloca?
Adoro essa ideia indígena de um ser que se transforma em árvore.
"Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe. E vêm pousar em seu ombro. Seu olho renova as tardes." - Manoel de Barros
A menina da chuva é um curta metragem de 2010 produzido por Rosária. É um curta sobre solidão (proveniente do isolamento) mas também sobre o sentimento de não pertencimento. Dou aula desde 2014 e sempre percebo crianças assim, que não se conectam por serem de um tom diferente, por desajuste ou por exclusão. O mal estar na sociedade de Freud também me traz isso: uma modernidade veloz, que passa incansavelmente; uma ditadura do positivo e alegre e um individualismo cada vez mais acentuado. Estamos cada vez mais solitários. Gosto do fato dela ser de uma tonalidade diferente: cinzenta; e da chuva como um reflexo desse estado.
Me lembrei da música do capital inicial:
"Se o meu corpo virasse sol Minha mente virasse sol Mas só chove, chove" - Chuva, Capital Inicial.
Dancer in the dark é um filme de Lars Von Trier de 2000 e nele temos Selma Jezkova, uma operária que quer juntar dinheiro para pagar uma cirurgia para o filho. Selma, interpretada por Björk que entrega uma atuação simplesmente irretocável, é uma pessoa desajustada no corpo, no tempo mas não no ritmo e, talvez seja por isso, que ela perceba a musicalidade das coisas tão bem e sempre se imagine em um musical. Sempre digo aos meus alunos que amo musicais pois ali o mundo é movido por música, é ritmado, compassado, as pessoas dançam e cantam em sincronia; ao passo que no mundo comum o caos maquinário abafa essa música. Porém, Selma percebe uma musicalidade até nas máquinas. Selma é desejante, delicada, borboletante e frágil: e como sabemos, o sistema não tolera pessoas assim. Lars Trier é preciso, poético, atento, suave mas visceral. Björk é grandiosa e tem nesse filme o espaço que precisava. Gosto de como ela muda o ritmo de todos que estão ao redor ainda que com gestos moleculares, pequenas notas que geram revoluções grandiosas, sinfônicas. Lutar contra esse sistema despotico é uma luta que sabemos não resultará em vitória, mas... Essa não será nossa última música.
Filmes de plástico é uma produtora aqui de Contagem e esse é um curta deles. Narra a estória de uma mãe que tenta organizar uma festa de quinze anos e sacrifica (além de si) contas, espreme o orçamento nessa tentativa e com isso tenta, nos intervalos, atender seu próprio desejo. Foram Deleuze e Guattari que afirmaram que o capitalismo é esquizofrênico, ou seja, delirante, ensandecido e que só se satisfaz a si mesmo. Debord usa uma frase que adoro: "A sociedade do espetáculo [que poderíamos ler como o capital é] a mercadoria [que] contempla a si mesma no mundo que ela criou". A única preocupação do capital é consigo mesmo. Por isso o desejo é sempre relegado a última estância e o desejo é a única forma de resistir. Esse curta é sobre o desejo.
O menino e o mundo é uma animação de Alê Abreu de 2013 que concorreu ao Oscar. Com técnicas bem diversas como colagens, desenhos, trechos de filmagens, aquarelas e giz de cera; a animação é sensível ao pensar a marginalização, o capitalismo tardio, o consumismo desenfreado, a robotização do processo produtivo e mídia mas também fala de resistência, memória criativa, olhar e afeto. Amo o fato das falas serem em uma língua incompreensível.
Minha segunda incursão na filmografia da Petra Costa acontece nesse filme no qual temos uma análise sensível sobre a gravidez. O curioso é que o casal é formado por atores. Pensar a gravidez como um paralelo de uma peça de teatro é genial. A atriz, a mãe, é sempre ofuscada pela presença do grande ator protagonista: o filho. O pai é um coadjuvante de pouca importância narrativa e a grande platéia não tem a mínima noção do que acontece. A sensação é que a gravidez é sempre uma peça escrita por alguém e a mãe precisa sempre ouvir esse outro que não tem nada a dizer e por isso toca a barriga. A gravidez é dissimulada ao passo que a peça exige isso, pois a peça é uma construção social.
A atuação da mãe é sempre solitária: um monólogo sem falas ou uma linguagem corporal apenas do ventre. A plateia permanece inerte olhando a barriga e pensando no filho.
Jacques Rancière acerta quando compara a vida como a peça de teatro no livro O espectador emancipado. Me parece que a vida são mini pecas e todos somos atores e espectadores ao mesmo tempo. E atuamos o tempo todo: tudo é atuação. Não bastasse isso, estamos cada vez menos interessados na atuação e narrativa do outro. Queremos um palco livre e não nos importamos com quem nos assiste, queremos apenas a sensação de que alguém nos assiste (o like aqui cumprirá bem esse papel).
Talvez venha daí a dificuldade de vencer o patriarcado, de ter empatia com a narrativa do outro. Estamos atuando, sós, isolados, uma peça que nem sequer escrevemos.
Petra Costa enquanto narradora do filme fala com a grávida e ela ouve. Ela quebra a quarta parede do filme (quando o personagem conversa com a gente a exemplo do que faz Deadpool). Mas aqui é a narradora e diretora do filme conversando com a mãe que passa o filme todo sem ser ouvida. Petra Costa é uma espectadora emancipada pois saiu do lugar passivo de só assistir e deu um passo a frente para dividir o palco, participar da narrativa.
A provocação desse filme é a empatia com essa mãe que, muito antes e muito além de progenitora, é uma mulher.
Sempre gosto de pensar nos narradores das histórias. Gosto especialmente dos narradores que narram cenas longas em que tudo é importante (séc. XIX) ou os dos narradores de fluxo de consciência e sequências fragmentadas (séc. XX e XXI). No cinema gosto de pensar a câmera como um narrador e cada escolha diz muito sobre a estória. Bom, o narrador dessa estória escolhe ir na direção contrária dos filmes que tem, geralmente, cenas curtas e com muitos cortes. Ao contrário, o narrador nesse filme faz cenas longas e o que mais me gera fascínio: ele segue os alunos. Isso é algo que a escola por si só não é capaz de fazer.
O narrador desse filme segue os personagens mas não é nem onisciente e nem onipresente. Muito pelo contrário, o narrador não sabe o que vai acontecer mas está muito curioso em saber. Segue um aluno, se distrai e segue outro, passa um tempo de 5 minutos por exemplo acompanhando uma conversa fútil de 3 alunas ou mostrando o céu formando pra chuva. Desta forma, o narrador desse filme é o típico fragmentado que é comum do nosso período mas prefere gastar tempo nas cenas, como acontece nas novelas antigas.
O filme é uma leitura do atentado de Columbine dos alunos que chegaram atirando mas vai além ao não traçar conclusões precipitadas: ele resolve esperar. O filme não é só mais um sobre bullying. Sendo assim, o filme não dá respostas sobre as causas do massacre mas o que eu percebo é que essas coisas acontecem porque muitas pessoas não visualizaram os sinais. Deveríamos observar mais e observamos pouco.
Gosto da ideia da Sontag que a fotografia fere pois é similar as armas e isso aparece no filme no fotógrafo da escola. Ferimos nossa realidade por estarmos mergulhados em imagens que fotografamos a todo tempo. A fotografia fere pro ser algo daquele que aponta e do instantâneo. Fotografamos tudo e vemos pouco.
Essas tragédias acontecem por feridas e ferimos também quando paramos de olhar ao redor.
Ophelia (2018) lança um novo olhar sobre a personagem de Hamlet de Shakespeare. O filme começa e termina com ela lembrando que essa não é a estória dela. E não é. Em Shakespeare, temos o olhar de Hamlet que fala mais do que todos os outros personagens juntos. No filme temos outro olhar - o olhar dela, mas ainda assim aponta para estória de Hamlet. O filme não é sobre ela pois essa história não é nem mesmo sobre Hamlet. Mas sobre todos os meios (traição, vingança, ganância...) possíveis para se chegar ao poder. O filme tem um toque delicado, visualmente deslumbrante. Shakespeare sempre exerce fascínio pois soube ler o ser humano como ninguém nunca mais o fez até então
Um filme necessário sobre terapias de cura-gay. É lamentável saber que isso realmente acontece, saber o quão cruel são essas clínicas e que existem muitas pessoas que defendem esses tratamentos. O roteiro e o ritmo são bem lentos o que demanda um esforço a mais para completar o filme. Lucas Hedges, a personagem principal, poderia entregar uma atuação melhor mas não senti ele entrando na personagem, Russell Crowe está bem e Nikole Kidman está fabulosa, como de costume. Um filme sobre a mentira de querer mudar alguém levando em conta alguma convicção específica e o quanto esse processo não dá resultados genuínos, o quanto são capciosos e em muitos casos acabam em grandes tragédias particulares.
A terceira temporada tem a narrativa mais fluida até então. A divisão e transição de núcleos, o amadurecimento das personagens, a ambientação dos anos 80, os easter eggs de filmes como Despertar dos Mortos e Exterminador do futuro (para citar alguns) e aparecimento de novas personagens foi muito acertado.
Como pontos negativos eu ressaltaria uso excessivo de Deus ex-machina, a propaganda anti-comunismo descarada e o fato de que é necessário uma suspensão da descrença enorme em questões como: como os soldados russos não viam os meninos no telhado, passando por eles? como abriram os frascos? como ninguém notou a falta dos muitos desaparecidos? Como a polícia não foi acionada? Como os pais não dão falta dos filhos e nem os patrões dos funcionários? Como aquele shopping enche e esvazia tão rápido de uma cena para outra? Como um prédio é construído com tantos andares subterrâneos e ninguém notou?
Enfim, é preciso ignorar muita coisa pra entrar na história. Mas uma vez nela vale super a pena.
Midsommar: O Mal Não Espera a Noite
3.6 2,8K Assista AgoraMidsommar (2019) é um filme americano de terror psicológico. O filme se passa num retiro espiritual numa seita secreta na Suécia. A direção opta por planos abertos para mostrar as paisagens simétricas e as dissimétricas/ assimétricas (o que nos dirá sobre o caráter cristal perfeito e o mais estado carvão bruto e irregular da religião).
Tudo nessa seita é feita por meio de rituais, desde as coisas mais corriqueiras até o extraordinário, isto é, tudo é acompanhado de danças, cantorias, gestos, leituras, vestes apropriadas, silêncios e gritos (novamente o tonal e o atonal, o canto no tom e o ruído, o gesto sincronizado e o desengonçado o que deixa nenhum espaço para o espontâneo). Por último, outro tema que gostaria de ressaltar são as drogas alucinógenas, o limite entre o delírio e a lucidez.
A religião passa por todas essas instâncias, abusivas, libertárias, mais ou menos geométricas, equilíbrio e desequilíbrio, do sussurro e do berro, da sensatez e do estado de pura fantasia.
A religião é assim por ser humana e nós somos inconstantes.
Um filme para quem quiser pensar a relação do homem com esse teatro dos vampiros que encenamos para, pretenciosamente dizer: o divino é isto que apreendi, é está a vontade de Deus sendo que, na verdade, nada sabemos sobre Deus de fato. Só projetamos na imagem dEle nossas inseguranças.
Cinco Graças
4.3 329 Assista AgoraMustang/Cinco graças (as distribuidoras de filmes no Brasil têm um inegável dom de traduzir os nomes dos filmes fazendo a pior escolha possível) é um filme turco de 2015.
Nele temos 5 meninas órfãs vivendo com a avó e o tio numa Turquia marcada pelo patriarcado (não se animem pois veremos que aqui não é diferente).O que o filme debate é o casamento de meninas abaixo de 18 anos.
Trazendo para cá o debate, talvez seja revelador pra alguns mas nos dias atuais somos o quarto país do mundo com mais casamentos infantis e arranjados e cerca de 20% das meninas no nosso país se casam antes dos 18 anos.
Temos nesse filme alguns perfis: meninas que querem se casar pra sair da casa da família, o sonho de construir sua própria família, a manutenção da "honra e pureza", a pressão social mas, temos resistência e isso é delicioso de assistir.
O filme também discute erotização infantil e pedofilia.
Perguntas:
1) feministas: é correto falar de um feminismo oriental sendo que essa é uma concepção ocidental?
2) quando a religião vai atualizar o debate sobre sexo antes do casamento?
Vá e Veja
4.5 757 Assista AgoraVá e Veja (1985) é um filme soviético que vai agradar principalmente quem gosta da temática da segunda guerra mundial e quer algo mais sofisticado. O título faz alusão ao verso presente no evangelho de João: "Vá e veja" (João 1:46).
A diferença, é que não são os milagres de Jesus, como no versículo acima, mas sim nosso protagonista é esse que vai e vê nazistas que atearam fogo em mais de 200 vilarejos Bielorrussos.
A direção foca nos olhares, nas expressões faciais dos personagens, vemos pelo olho do protagonista e tomamos vários outros olhares emprestados para ver a reação de todos.
Gostaria de destacar as expressões dele que começa com a excitação de um jovem que quer lutar na guerra, o medo, a descrença, o desespero, a alucinação, o delírio, o espanto e a ira.
A alucinação ele vive com uma jovem que ele conhece e que, o momento desse casal, é um oásis nesse inferno (que são eles Aleksei Kravchenko e Olga Mironova que entregaram uma atuação incrível).
Em um tempo com tantos rumores nazistas é um filme necessário. Esse tipo de ideologia não cresceu do dia pra noite e ela já está presente na nossa sociedade com o ódio a esse povo imaginário comunista e com as minorias. Espero que ainda esteja em tempo de revertermos isso.
Boneca Inflável
3.9 192Kuuki Ningyou/boneca inflável (2009) é um filme em que o real e a fantasia acontecem ao mesmo tempo. Isto pois, um homem vive com uma boneca inflável até que um dia ela se torna humana. Partindo de uma camada mais básica o filme retrata a realidade de vários homens no Japão que literalmente vivem com bonecas infláveis ou robôs (indico o Anime Chobits que támbem fala sobre isso, apesar de ser uma comédia romântica).
A verdade é que a modernidade revelou algo que sempre tentamos esconder: somos solitários. Sempre fomos e agora somos ainda mais pois temos uma ilusão de companhia.
Ao postar algo aqui, ao receber likes, corações, Hahahas, pensamos: há algo de emoção aqui, alguém se importa, alguém me acompanha... As redes sociais são essa mesma boneca inflável que a gente conversa sozinho durante o dia. Ilusão de companhia. Solidão.
O filme também pensa sobre o vazio e como o sistema Capitalista se aproveita dessa sensação de falta pra gerar desejo de compra. Nozomi diz a um mendingo: "sou vazia por dentro" e ele responde: "hoje em dia todos somos".
É por isso que o sistema quer que postemos toda nossa vida, que compremos muito, que voltemos a trabalhar, que não fiquemos sozinhos, que escutemos músicas e barulhos o tempo todo, que leiamos livros bestsellers, que falemos sobre nós o tempo todo, que não escutemos o outro... Todo esse barulho, todo esse preenchimento para: alimentarmos o sistema com nosso dinheiro, comprando incessantemente e com nossa vida e, ainda, não darmos conta que somos sozinhos e vazios. Pois encarrar nosso vazio e nossa solidão cobra de nós um preço muito maior do que ser boneca inflável do sistema.
Bae Donna (que também fez Sense8) está maravilhosa no filme.
A Árvore
3.5 137L'arbre/A árvore (2010) é um filme francês/australiano dirigido por Julie Bertuccelli. O filme tocará especialmente as pessoas que já sofreram algum tipo de perda emocional.
Todas nossas relações são como árvores que são regadas mais ou menos conforme o interesse de ambos ou de algum dos dois.
Quando alguém sai da nossa vida, contudo, semelhante a árvore; deixa raízes mais ou menos profundas: a sensibilidade (que eu atribuo por ser de uma diretora) é sobre como lidar com os vestígios de quem se foi? Como não tropeçar nos seus galhos e não lembrar das folhas, dos frutos e até mesmo dos gravetos?
Um filme sobre essa ausência que se torna mais presente do que nunca. Apesar das notas baixas que ele recebe eu indico profundamente.
Charlotte Gainsbourg está maravilhosa e não se pode esperar menos dela.
O Terceiro Assassinato
3.5 53O terceiro assassinato (2017) é um filme japonês que agradará, sobretudo, estudantes de direito e psicologia. Falando mais próximo ao segundo grupo acompanhamos um advogado que investiga um caso de assassinato que, de uma forma labiríntica e repleta de camadas, revela muito de sua própria relação familiar. Vemos a tentativa de remontagem do passado com fragmentos – do cliente de caso e dele mesmo. Foi Walter Benjamin que disse que o historiador (leiamos advogado ou analista) é esse que coleta os trapos da história. Remontar a história do outro por trapos, restos, resíduos é; antes de tudo, uma busca pelos próprios vestígios. Foi Freud quem sistematizou no exercício da clínica, e nomeou por transferência, algo que a arte e a vida cotidiana já conhecia: transferimos nossas neuroses e nosso desejo nesse Outro. O trabalho da clínica, a psicoterapia; aponta saídas de um uso sistemático dessa transferência. Um filme lento, escorregadio e que se esquiva mais rápido que nossas investidas – assim como nossa memória.
Milagre na Cela 7
4.1 1,2K Assista Agora7 Kogustaki Mucize/milagre na cela 7 (2019) é um filme turco no catálogo Netflix. O filme mostra a relação de Memo e Ova, pai e filha, em uma luta contra o sistema de poder.
Memo tem algo de esquizo, de desarranjo: dissonante do mundo e como já se sabe (procure aqui no Instagram o que eu disse sobre o filme dançando no escuro) o nosso sistema detesta pessoas assim. Ova flutua entre a inocência e uma sagacidade que as crianças têm.
Ainda que contra todo um sistema os dois afetam (com afeto) todos ao redor com esse jeito dançante que ambos têm de dançar corretamente mas trocando os passos. Ver filmes assim me enchem de esperança pois a luta contra o fascismo é assim: atos mínimos contra um inimigo potente, mas esses atos sempre ecoam, sempre.
Aras Bulut Iynemli (Memo) e Nisa Sofiya Aksongur (Ova) oferecem um espetáculo de interpretação.
A Casa
3.1 593 Assista AgoraHogar (2020) é um filme espanhol da Netflix que fala sobre querer (re)viver a todo custo uma vida que já não é sua, a vida de outrem, sempre algures, alhures.
O alcoolismo como qualquer vício consegue: vive a vida por mim. Escolhe os horários, determina.
Ser bem sucedido parece falar de alguém que tem pleno controle da própria vida sendo que, como dizem os estóicos, não temos controle de absolutamente nada ou ninguém.
Pensar nisso faz com que tudo se torne mesquinho e infantil: ciúmes, ambições, culpas, perdas e etcetera.
Como disse o pai da família pobre no filme Parasita: não fazer planos pois o mundo não segue o que a gente planeja.
Kardec: A História Por Trás do Nome
3.2 142Kardec (2019) é um filme que remonta a história de Allan Kardec, medium e fundador da doutrina espírita. No século XIX, o iluminismo, o pensamento científico, o niilismo; o cristianismo era completamente desnecessário à humanidade. Nos Estados Unidos o movimento pentecostal tentaria um sobre-fôlego pelo mover, mas é na França que Kardec concilia as dúvidas da religião com a sistematização científica e cria uma 'ciência poética'. O espiritismo é poético por ser essa linguagem que extrapola, do totalmente fora, ulterior.
Melancolia
3.8 3,1K Assista AgoraMelancholia é um filme de 2011 de Lars Von Trier que torna imagética a colisão de um planeta chamado Melancolia com a Terra. Para muito além disso, é um retrato delicado e preciso (cirúrgico e necessário) sobre a depressão. Justine (Kristen Dust) está em um estágio crônico de depressão. Vemos a dificuldade de se expressar pela linguagem (Justine balbucia as palavras), as imagens de pássaros caindo do céu, presa a trapos escurecidos que a seguram, o corpo pesado, a sensação de se arrastar, os símbolos de morte que a seguem, os momentos raros de alegria, a cobrança de todos para que esses momentos sejam duradouros - "sorria" - o esforço e também a incompreensão de todos ao redor. Melancolia, o planeta, avança: um evento que não é noticiado e só quem está próximo é afetado. Justine sente a todo momento que esse mundo não lhe serve mais. Isto devido ao fato de que se sente deslocada na família, nos relacionamentos. Assim, a colisão parece dar cabo de um mundo que não comporta a melancolia. Não sei se quem nunca passou por fases depressivas e melancólicas conseguiria se conectar com o filme ou com Justine; infelizmente me parece que não.
Kristen Dust e sua irmã Claire representada por Charlotte Gainsbourg estão incríveis nos papéis. Todos os dias Melancolia colide com a Terra e todos os dias a Terra morre um pouquinho. Em um mundo de uma felicidade rasa ser melancólico é não pertencer mesmo.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraEl hojo (2019) é um filme Netflix que está em alta e não por menos. Imagine uma prisão/experimento social com x andares (seria spoiler se revelasse o número de andares) de forma que:
- Uma vez ao dia um banquete desce do primeiro ao último andar dessa prisão;
- O primeiro andar come primeiro, o segundo come o que o primeiro deixar, o terceiro os restos do segundo... Etc.
- uma vez por mês se troca de lugar e você pode ir dos últimos andares para os primeiros e vice e versa.
Temos na personagem principal um ID e um superego atuando (psicanalistas vão amar), ou seja, um diabinho Capitalista e um anjinho socialista (o fato do diabinho ser Capitalista pra mim não é mera coincidência). A visão mais socialista é de se todos comerem só o necessário, todos sobrevivem. Por outro lado, a lei do capital é: se eu estou nos primeiros andares eu mereço comer o quanto eu quiser. A ideologia e a religiosidade que isso assume em ambos os lados é doentia. Um filme necessário para se pensar o estoque de comida em tempos de pandemia.
Ensaio Sobre a Cegueira
4.0 2,5KBlindness (2008) é um filme de Fernando Meireles baseado no livro Ensaio sobre a cegueira de José Saramago. Nele temos a cegueira que se inicia com um motorista e se espalha por toda população exceto pela Julianne Moore. Não conhecia o livro mas o filme me lembrou outro filme: Birdbox.
A diferença é que Birdbox me parece falar sobre a depressão enquanto aqui sobre uma cegueira pela felicidade rasa, futilidade ou pela vida vazia que o capitalismo nos entrega.
A verdade é que blindness e Birdbox tem muito em comum pois a depressão e a felicidade vazia parecem ter a mesma origem que é um apagamento do desejo, uma sensação de não pertencimento (ainda que se queira muito pertencer), um contentamento provisório ou não se contentar que parece querer ficar e é, sobretudo, ter de olhar de olhos fechados.
O Farol
3.8 1,6K Assista AgoraCompleta solidão ou a única e indesejada companhia possível? O canto ou o silêncio da sereias? Loucura e devaneios ou sobriedade e consciência? O farol que orienta e controla ou o desejo que desloca?
Caminho dos Gigantes
4.3 9Adoro essa ideia indígena de um ser que se transforma em árvore.
"Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe. E vêm pousar em seu ombro. Seu olho renova as tardes." - Manoel de Barros
Parasita
4.5 3,6K Assista AgoraHá um enorme e profundo abismo entre os (bi) milionários e os mais pobres mas, por vezes, se constrói pontes-parasitas.
Este filme tem cheiro de Oscar.
Menina da Chuva
3.7 3A menina da chuva é um curta metragem de 2010 produzido por Rosária. É um curta sobre solidão (proveniente do isolamento) mas também sobre o sentimento de não pertencimento. Dou aula desde 2014 e sempre percebo crianças assim, que não se conectam por serem de um tom diferente, por desajuste ou por exclusão. O mal estar na sociedade de Freud também me traz isso: uma modernidade veloz, que passa incansavelmente; uma ditadura do positivo e alegre e um individualismo cada vez mais acentuado. Estamos cada vez mais solitários. Gosto do fato dela ser de uma tonalidade diferente: cinzenta; e da chuva como um reflexo desse estado.
Me lembrei da música do capital inicial:
"Se o meu corpo virasse sol
Minha mente virasse sol
Mas só chove, chove" - Chuva, Capital Inicial.
Dançando no Escuro
4.4 2,3K Assista AgoraDancer in the dark é um filme de Lars Von Trier de 2000 e nele temos Selma Jezkova, uma operária que quer juntar dinheiro para pagar uma cirurgia para o filho. Selma, interpretada por Björk que entrega uma atuação simplesmente irretocável, é uma pessoa desajustada no corpo, no tempo mas não no ritmo e, talvez seja por isso, que ela perceba a musicalidade das coisas tão bem e sempre se imagine em um musical.
Sempre digo aos meus alunos que amo musicais pois ali o mundo é movido por música, é ritmado, compassado, as pessoas dançam e cantam em sincronia; ao passo que no mundo comum o caos maquinário abafa essa música.
Porém, Selma percebe uma musicalidade até nas máquinas. Selma é desejante, delicada, borboletante e frágil: e como sabemos, o sistema não tolera pessoas assim.
Lars Trier é preciso, poético, atento, suave mas visceral. Björk é grandiosa e tem nesse filme o espaço que precisava. Gosto de como ela muda o ritmo de todos que estão ao redor ainda que com gestos moleculares, pequenas notas que geram revoluções grandiosas, sinfônicas.
Lutar contra esse sistema despotico é uma luta que sabemos não resultará em vitória, mas... Essa não será nossa última música.
Quinze
3.9 20Filmes de plástico é uma produtora aqui de Contagem e esse é um curta deles. Narra a estória de uma mãe que tenta organizar uma festa de quinze anos e sacrifica (além de si) contas, espreme o orçamento nessa tentativa e com isso tenta, nos intervalos, atender seu próprio desejo.
Foram Deleuze e Guattari que afirmaram que o capitalismo é esquizofrênico, ou seja, delirante, ensandecido e que só se satisfaz a si mesmo. Debord usa uma frase que adoro: "A sociedade do espetáculo [que poderíamos ler como o capital é] a mercadoria [que] contempla a si mesma no mundo que ela criou".
A única preocupação do capital é consigo mesmo. Por isso o desejo é sempre relegado a última estância e o desejo é a única forma de resistir.
Esse curta é sobre o desejo.
O Menino e o Mundo
4.3 735 Assista AgoraO menino e o mundo é uma animação de Alê Abreu de 2013 que concorreu ao Oscar. Com técnicas bem diversas como colagens, desenhos, trechos de filmagens, aquarelas e giz de cera; a animação é sensível ao pensar a marginalização, o capitalismo tardio, o consumismo desenfreado, a robotização do processo produtivo e mídia mas também fala de resistência, memória criativa, olhar e afeto. Amo o fato das falas serem em uma língua incompreensível.
Olmo e a Gaivota
3.9 149Minha segunda incursão na filmografia da Petra Costa acontece nesse filme no qual temos uma análise sensível sobre a gravidez. O curioso é que o casal é formado por atores. Pensar a gravidez como um paralelo de uma peça de teatro é genial. A atriz, a mãe, é sempre ofuscada pela presença do grande ator protagonista: o filho. O pai é um coadjuvante de pouca importância narrativa e a grande platéia não tem a mínima noção do que acontece. A sensação é que a gravidez é sempre uma peça escrita por alguém e a mãe precisa sempre ouvir esse outro que não tem nada a dizer e por isso toca a barriga. A gravidez é dissimulada ao passo que a peça exige isso, pois a peça é uma construção social.
A atuação da mãe é sempre solitária: um monólogo sem falas ou uma linguagem corporal apenas do ventre. A plateia permanece inerte olhando a barriga e pensando no filho.
Jacques Rancière acerta quando compara a vida como a peça de teatro no livro O espectador emancipado. Me parece que a vida são mini pecas e todos somos atores e espectadores ao mesmo tempo. E atuamos o tempo todo: tudo é atuação. Não bastasse isso, estamos cada vez menos interessados na atuação e narrativa do outro. Queremos um palco livre e não nos importamos com quem nos assiste, queremos apenas a sensação de que alguém nos assiste (o like aqui cumprirá bem esse papel).
Talvez venha daí a dificuldade de vencer o patriarcado, de ter empatia com a narrativa do outro. Estamos atuando, sós, isolados, uma peça que nem sequer escrevemos.
Petra Costa enquanto narradora do filme fala com a grávida e ela ouve. Ela quebra a quarta parede do filme (quando o personagem conversa com a gente a exemplo do que faz Deadpool). Mas aqui é a narradora e diretora do filme conversando com a mãe que passa o filme todo sem ser ouvida. Petra Costa é uma espectadora emancipada pois saiu do lugar passivo de só assistir e deu um passo a frente para dividir o palco, participar da narrativa.
A provocação desse filme é a empatia com essa mãe que, muito antes e muito além de progenitora, é uma mulher.
Elefante
3.6 1,2K Assista AgoraSempre gosto de pensar nos narradores das histórias. Gosto especialmente dos narradores que narram cenas longas em que tudo é importante (séc. XIX) ou os dos narradores de fluxo de consciência e sequências fragmentadas (séc. XX e XXI). No cinema gosto de pensar a câmera como um narrador e cada escolha diz muito sobre a estória. Bom, o narrador dessa estória escolhe ir na direção contrária dos filmes que tem, geralmente, cenas curtas e com muitos cortes. Ao contrário, o narrador nesse filme faz cenas longas e o que mais me gera fascínio: ele segue os alunos. Isso é algo que a escola por si só não é capaz de fazer.
O narrador desse filme segue os personagens mas não é nem onisciente e nem onipresente. Muito pelo contrário, o narrador não sabe o que vai acontecer mas está muito curioso em saber. Segue um aluno, se distrai e segue outro, passa um tempo de 5 minutos por exemplo acompanhando uma conversa fútil de 3 alunas ou mostrando o céu formando pra chuva. Desta forma, o narrador desse filme é o típico fragmentado que é comum do nosso período mas prefere gastar tempo nas cenas, como acontece nas novelas antigas.
O filme é uma leitura do atentado de Columbine dos alunos que chegaram atirando mas vai além ao não traçar conclusões precipitadas: ele resolve esperar. O filme não é só mais um sobre bullying. Sendo assim, o filme não dá respostas sobre as causas do massacre mas o que eu percebo é que essas coisas acontecem porque muitas pessoas não visualizaram os sinais. Deveríamos observar mais e observamos pouco.
Gosto da ideia da Sontag que a fotografia fere pois é similar as armas e isso aparece no filme no fotógrafo da escola. Ferimos nossa realidade por estarmos mergulhados em imagens que fotografamos a todo tempo. A fotografia fere pro ser algo daquele que aponta e do instantâneo. Fotografamos tudo e vemos pouco.
Essas tragédias acontecem por feridas e ferimos também quando paramos de olhar ao redor.
Ofélia
3.3 65 Assista AgoraOphelia (2018) lança um novo olhar sobre a personagem de Hamlet de Shakespeare. O filme começa e termina com ela lembrando que essa não é a estória dela. E não é. Em Shakespeare, temos o olhar de Hamlet que fala mais do que todos os outros personagens juntos. No filme temos outro olhar - o olhar dela, mas ainda assim aponta para estória de Hamlet. O filme não é sobre ela pois essa história não é nem mesmo sobre Hamlet. Mas sobre todos os meios (traição, vingança, ganância...) possíveis para se chegar ao poder. O filme tem um toque delicado, visualmente deslumbrante. Shakespeare sempre exerce fascínio pois soube ler o ser humano como ninguém nunca mais o fez até então
Boy Erased: Uma Verdade Anulada
3.6 404 Assista AgoraUm filme necessário sobre terapias de cura-gay. É lamentável saber que isso realmente acontece, saber o quão cruel são essas clínicas e que existem muitas pessoas que defendem esses tratamentos. O roteiro e o ritmo são bem lentos o que demanda um esforço a mais para completar o filme. Lucas Hedges, a personagem principal, poderia entregar uma atuação melhor mas não senti ele entrando na personagem, Russell Crowe está bem e Nikole Kidman está fabulosa, como de costume. Um filme sobre a mentira de querer mudar alguém levando em conta alguma convicção específica e o quanto esse processo não dá resultados genuínos, o quanto são capciosos e em muitos casos acabam em grandes tragédias particulares.
Stranger Things (3ª Temporada)
4.2 1,3KA terceira temporada tem a narrativa mais fluida até então. A divisão e transição de núcleos, o amadurecimento das personagens, a ambientação dos anos 80, os easter eggs de filmes como Despertar dos Mortos e Exterminador do futuro (para citar alguns) e aparecimento de novas personagens foi muito acertado.
Como pontos negativos eu ressaltaria uso excessivo de Deus ex-machina, a propaganda anti-comunismo descarada e o fato de que é necessário uma suspensão da descrença enorme em questões como: como os soldados russos não viam os meninos no telhado, passando por eles? como abriram os frascos? como ninguém notou a falta dos muitos desaparecidos? Como a polícia não foi acionada? Como os pais não dão falta dos filhos e nem os patrões dos funcionários? Como aquele shopping enche e esvazia tão rápido de uma cena para outra? Como um prédio é construído com tantos andares subterrâneos e ninguém notou?
Enfim, é preciso ignorar muita coisa pra entrar na história. Mas uma vez nela vale super a pena.
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