Tatuagem (2013) é um filme de drama brasileiro dirigido por Hilton Lacerda. Nele temos o cenário da ditadura de 64-84 e, em 78, no mundo pós AI-5 que censurava muitas apresentações e manifestações artísticas, um grupo de teatro que me lembra muito os Dzi-croquettes (há um documentário maravilhoso sobre no YouTube que eu indico fortemente) que é censurado. Em meio a isso um jovem do exército se envolve com essa troupe teatral. É um filme sobre a resistência pelo desejo do corpo, a descoberta da sexualidade, as barbáries da ditadura, a censura, o silenciamento. Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa estão incríveis. Aqui temos o que há de melhor do nosso cinema na força expressiva do nordeste. O nordeste se destaca como um cinema de resiliência, de narrativas sempre muito bem concatenadas e que merecem nossa atenção.
She dies tomorrow (2020) é uma sátira norte americana. A premissa é inquietante: uma moça é tomada pela sensação de que irá morrer amanhã e inicia um ritual de se despedir de tudo e todos. Acontece que ao contar pra alguém, essa pessoa támbem de convence do mesmo - morreremos todos amanhã.
Por ser uma sátira é possível ler esse filme de muitas formas e eu listarei algumas: ansiedade, depressão, esgotamento das relações, fake news, fim da humanidade, brevidade da vida, incertezas, quarentena, delírio e histeria coletiva, etc.
A fotografia do filme é maravilhosa com experimentos de feichos de luz, a trilha sonora é maravilhosa e é um filme com mais silêncios que diálogos. É cíclico - e isso para mim lhe serviu bem - e não linear, ou seja, uma narrativa espiralar.
Kate lyn Shell, a protagonista, rouba o filme numa atuação que já vale o investimento dos 80 minutos do filme. Anote esse nome pois é uma atriz nova e promissora. Um projeto de amor por uma direção feminina corajosa.
Yes, God, Yes (2019) é filme estadunidense de drama. Nele temos Alice, uma moça de uma família católica que estuda em um colégio religioso e conservador. O filme fala sobre a descoberta do sexo, a masturbação, o domínio da igreja sobre o corpo, o prazer e as incoerências da religião - as pessoas que querem controlar são as que mais escapam.
Gosto nesse filme o fato de ser dirigido por uma mulher: a masturbação aqui é algo sensível (diferente do que Natalie Portman foi exposta pela direção masculina em Black Swan/cisne negro). O filme é curto e me fez lembrar um livro de Foucault sobre as anormalidades que reproduzirei no Stories a seguir. A arte também é isso: pensar sobre o tabu.
Natalia Dyer (Nancy de Stranger things) está ótima. O filme se passa no início da internet e é interessante sentir essa descoberta da internet junto com a protagonista que descobre o próprio corpo.
I'm thinking of Ending things/Estou pensando em acabar com tudo (2020) está próximo de um drama psicológico. Próximo pois o filme deslisa, é escorregadio. Basicamente temos um casal que viaja para que o rapaz apresente-a para a família dele. Para nosso espanto, acontecem coisas totalmente sem sentido com eles. Gostaria de ressaltar: o projetar-se no outro, a sensação de imobilidade, conflitos de personalidade, depressão, suicídio, o limite entre realidade e o delírio, a descoberta da sexualidade, a vida como uma peça de teatro no auge do seu mais incrível fracasso.
Assisti esse filme com minha amiga e catalogamos pelo menos 6 leituras diferentes para esse filme. Ele exige ser assistido mais de uma vez - e recompensa o esforço.
Charlie Kaufman com uma direção sensível e melancólica, a fotografia é incrível, os movimentos de câmera estão um passo a frente de nós, Jesse Plemons está ótimo e Jessie Buckley me deixou fascinado.
Este é um filme de drama brasileiro que pensa sobre ressignificar um passado, a busca pela origem e os conflitos entre relações monogamicas e poligamicas. Nossa protagonista escreve uma peça sobre se libertar de um casamento em decadência e, ao mesmo tempo, reflete sobre a persona do pai,como um alvo que ela inconscientemente procura: pai desajustado, pai ausente. Freud se deliciaria assistindo esse filme. A mãe está embarcando em uma viagem sem volta e, ao contrário da filha, viveu uma vida entregue ao desejo. As filhas sempre são pontos de contato com a realidade, sempre são o fator que a fazem ponderar suas ações. Ela questiona os padrões de relacionamento, sente que pode ir além, que merece mais.
Maria Ribeiro, Paulo Vilhena e Clarisse Abujamra estão maravilhosos, Jorge Mautner entrega um dos personagens mais deliciosos desta última década.
Um filme irretocável. Nosso cinema é belíssimo, não me canso de repetir
This beautiful fantastic (2016) é um filme de romance britânico no catálogo Netflix. Temos uma escritora, Bella Brown (Jéssica Brown Findlay) que era extremamente metódica e racional mas entra em um processo de escrita do primeiro romance e da restauração do seu jardim. Esse processo inclui remover raízes mortas e ervas daninhas (traumas), cavar (fixar-se), regar (cuidado), selecionar plantas (experiências, memórias), plantar e replantar (adaptação e mudanças) - um jardim que fala muito sobre os personagens mas também sobre nós, ou seja, sobre qual o jardim que deixaremos. Bella escreve três romances ao mesmo tempo: o dela, o do mestre jardineiro e do pássaro, as narrativas se misturam e formam um romance luno-solar, próximo do que Guattari chama de Caosmose (caos e osmose, caos e ordem). A arte pra mim é justamente isso. Transformar a ordem do mundo em caos (algo mais próximo da ramificação, do arvoredo, da compostagem, do adubo, do verme) e transformar o caos do mundo em ordem (algo próximo da jardinagem, da floricultura). Jessica Brown Findlay é linda e talentosa, Andrew Scott está incrível como é de se esperar. Pensar a vida e a arte como um jardim natural - e é.
Freedom Writers (2007) é um filme de drama americano baseado em fatos reais. Nele temos uma professora em sua primeira experiência em sala de aula: a paixão pela profissão e o desejo de mudança. Ela se vê em uma turma problemática, campo de disputa - racial, de poder de gangues e, sobretudo, uma disputa pela sobrevivência. A turma é renegada, odiada pelos demais professores mas, na contramão, Hilary Swank (em uma atuação maravilhosa) - a professora, decide ouví-los, entender o que se passa com eles. Quando eles falam e assim, ouvem a própria voz, percebem o quanto foram silenciados a vida toda, sentem as marcas na pele negra falar também - vozes, em meio ao choro, lindas vozes. Falar coloca a gente em contato com o outro e ouvir esse outro abre espaço para o afeto. É pelo afeto que ela escolhe trabalhar sobre o Holocausto e sobre Anne Frank e seu diário de uma refugiada em meio a perseguição nazista. Eles entendem, se identificam, encontram em Anne Frank a força que sempre tiveram mas que estava adormecida - escrever e resistir, é sobreviver - uma outra sobrevivência mais próxima da resiliência. Escritores da liberdade pois uma vez, de lagarta a borboleta não se quer outra coisa que não seja...voar. Liberdade pois escrever é desatar, é traçar linhas - de escrita e linhas de fuga. Esse filme só confirma o que meu coração já sente - ser professor é dar voz, é ouvir, se interessar pela narrativa do outro e incentivar o vôo.
2019 nos presenteou com pelo menos dois filmes sobre abuso de mulheres no ambiente de trabalho. Assisti Bombshell que mostrava a história real do CEO da Fox, Roger Ailes, envolvendo os vários abusos até que houve o grandioso movimento de denúncias por parte das mulheres.
Mas o segundo filme que assisti de 2019 com esse tema se chama The Assistant. Julia Garner interpreta a assistente e gostaria de iniciar elogiando a atuação dela: as emoções contidas, o desconforto no olhar, mas a vontade de romper pela força da ambição. The Assistant escolhe mostrar a rotina da personagem de Julia Garner e o fato de ela trabalhar num escritório com vários homens e ter de serví-los o tempo todo, lavar as vasilhas de todo departamento, pedir a comida e levar café para eles, sendo que, teoricamente, todos do departamento estão no mesmo cargo. Nossa protagonista precisa trabalhar muito mais, precisa se provar o tempo todo, fazer constantes desvios de função e é curioso e abominável o quanto muitas dessas empresas gostam de colocar as mulheres em um papel de subserviência - algo da dominação masculina, do fetiche da empregada, do patriarcal.
Enfim, temos aqui um filme delicado, introspectivo, inteligente e muito bem montado. Espero que esse tema ainda renda bons filmes como esse. Necessário.
Café com canela (2017) é um filme de drama brasileiro no catálogo da Amazon Prime. Esse filme me fez pensar tantas coisas que creio que seja preciso enumerar: 1) O fato de ser dirigido por uma mulher negra, com maioria dos atores negros o torna um filme interessante para pensarmos sobre as narrativas do nosso povo, sobre a Ancine, sobre o incentivo de produções brasileiras na política atual (esse filme com mais verba seria ainda melhor). 2) O filme fala sobre uma mulher que vê sua vida sendo resignificada pela ajuda de outra mulher - e esse filme faz isso, resignifica, remonta. Ele poderia muito bem ser um episódio de novela - mas nelas as comunidades são sempre envoltas em glamour. Aqui não - são retratos do dia-a-dia remontados na ótica de um povo negro da Bahia. 3) um filme que imageticamente fala de sororidade, de conexões, de resistência e também sobre a melancolia. 4) lindo ver o candomblé não feitichizado, visto como algo do corriqueiro. 5) a ideia de que nas comunidades, as casas de paredes ligadas uma na outra gera narrativas que formam uma rede, um crochê de histórias - tudo acontece ao mesmo tempo.
Corpus Christi (2019) é um filme de drama polonês nomeado à categoria de melhor filme estrangeiro. O filme conta uma odisseia de um padre impostor. O filme trabalha o confronto da fé católica conservadora dos moradores com a fé reformada do padre ou, pelo menos, da não-fé que quer muito acreditar. Nosso protagonista está sempre nesse limiar ou nesse deslimite (pra usar uma palavra Manoelina) da crença e descrença, do outrora e o agora, da culpa e do alívio, do prazer e rendição e, sobretudo, da prisão e a liberdade - a fé pode estar em qualquer parte desse espectro.
Um filme maravilhoso para se pensar a relação do homem com a fé mais como um monólogo dele com ele mesmo.
O final do filme é estonteante.
O protagonista, Bartosz Bielenia, entrega uma das melhores atuações de 2019. Esse ano foi maravilhoso - para o cinema.
Yesterday (2019) e um filme de comédia/romance britânico. Ele parte da premissa mais deliciosa possível: misteriosamente os Beatles foram apagados do mundo e só o nosso protagonista se lembra deles. Assim, o filme é sobre esse protagonista tentando recriar as músicas dos Beatles e, como há de se imaginar, o mundo vai amar reouvi-los pela primeira. O que me fez pensar que algumas obras compõem o mundo de tal maneira que é inconcebível o mundo sem elas: eu não imagino o mundo sem os versos de Cantares ou do Bhagavad Gita, sem os evangelhos ou as peças de Shakespeare, sem a Capitu de Machado de Assis ou a Lucy das Crônicas de Nárnia, sem os Beatles, sem o The Wall ou, por fim, para acabar essa lista que poderia ser interminável, Sem Clarice, Guimarães Rosa ou meu amado Manoel de Barros.
O mundo depois deles é esse que agora está ressignificado por eles pois eles nos emprestaram o olhar.
Infelizmente o filme não se sustenta a premissa maravilhosa que ele tem.
Sag-Haye Velgard/Cães de rua (2004) é um filme de drama do Afeganistão e minha segunda incursão nesse cinema. Se me perguntassem, e eu pudesse responder numa opinião precoce, eu diria que o cinema do Afeganistão é um cinema sobre ruínas (já conversamos aqui sobre o filme A pedra da paciência que é belíssimo). O filme parte de dois irmãos em uma odisseia pelas ruínas de um país destruído e, ainda por cima, carregando um cachorro. É inevitável não associar esse filme ao Mágico de Oz de 1939. Lá temos, da mesma forma, uma menina carregando o cãozinho Totó em busca da realização dos sonhos dela, do Leão, do homem de lata e do espantalho. Em mágico de Oz temos uma lição americana: a realização dos seus sonhos só depende de você pois a resposta está somente em você.
Já em Cães de Rua, o cão é perseguido, precisa sobreviver, precisa lutar pela vida todos os dias, é felpudo, embaraçado, sujo e ele fede ao pó dos escombros.
O sonho americano de que tudo está no seu esforço só serve àqueles que podem dormir e sonhar, só serve a Dorothy e seu Totó, só a Oz.
No mais, existem outros lugares que não é permitido, ao menos, sonhar.
18 Regali fala sobre uma relação mãe e filha. Me lembrei de duas obras e uma frase e quero pensar por elas. Primeiramente, foi Freud que desenvolveu a teoria do complexo de Édipo, dito de forma simples: uma filha ama o pai, de uma forma desejante, enlouquecedora. A filha quer ser como a mãe para alcançar esse pai idealizado e esse filme fala sobre isso. Sobre a eterna busca dessa mãe, desse aconchego, desse refúgio, do lar.
Uma segunda associação, Maria Gabriela Lliansol escreveu um livro que amo cujo título é "Um beijo dado mais tarde" que fala sobre esse beijo que faltou, o afeto ausente, a vontade desse toque que ficou por vir, uma vontade de ter a atenção de uma pessoa que está e não está mais.
A frase que finalizo é do meu amado Roland Barthes "Quando 'escuta-me' quer dizer: 'toca-me, saiba que eu existo'"
Driveways (2019) é um filme de drama estadunidense. Nele temos uma mulher indo visitar a casa da falecida irmã e descobre que ela era uma acumuladora de objetos. Enquanto isso, o filho faz amizade com o vizinho da falecida tia. O filme para mim fala sobre as coisas que ficam de quem vai embora e do vazio que fica. Esse vizinho conta ao menino que perdeu a esposa e sente o peso da memória que a cada dia vai fazendo esse mesmo papel de esvaziar a casa, perder objetos de memória... Sobre o vazio da mente, a cada dia nos esquecemos mais e vamos esvaziando cômodos e, sobre vazio de objetos, assisto esse filme em tempos de pandemia e penso que mais de vinte mil casas estão vazias, e por isso, milhares e milhares de objetos perderam o sentido pois estavam ligados a alguém... É preciso pensar nas vidas pois a economia, os objetos, são significados por nós.
A pedra de paciência (2012) é um filme de drama do Afeganistão. Nele encontramos o cenário em escombros, ruínas. Constantes ataques, falta de água e alimentos, explosões - uma terra devastada. Em meio a tudo isso temos uma mulher sem nome (ninguém no filme tem o que nos aponta para o valor que a vida deles têm) lidando com um marido em coma profundo e duas crianças.
Quero focar no fato dela narra a vida dela, a dele, a dos dois juntos e, assim, formar uma colcha de retalhos. Digo retalhos pela história deles ser mais próxima do panejo, do retalho, do trapo, dos fiapos do que de um tecido propriamente. E mesmo assim ela narra. Me lembrei de Scheherazade nas mil e uma noites narrando uma história infinita pra manter-se viva. A mulher do filme narra para que as reminiscências, o que é possível trazer à luz da memória não se perca.
Esse filme me fez pensar no valor da vida. Em meio a tanta morte ao redor temos pessoas assim que querem muito viver e só tem escombros e os trapos para, tão somente e poderosamente, narrar suas estórias.
A fotografia do filme e a atuação de Golshifteh Farahani é impecável.
To die for (1995) é filme de Mockmentary (documentário ficcional). Confesso que assisti esse filme pela Nicole Kidman. Desde jovem sou apaixonado por ela. Disse para uma aluna essa semana: As paixões de adolescência ficam, de uma forma ou outra. Pois bem, Nicole é minha paixonite dessa fase e ficou. Acho ela a atriz mais linda até hoje. Esse filme é dela. Ela altera tudo ao redor, os olhares, a presença dela incomoda. Joaquim Phoenix é jovem nesse filme e posteriormente faria Joker.
Mas queria rapidamente falar sobre o fato de ela narrar o filme. Uma narradora sínica, perversa. Ela mente e nós sabemos. Ela sabe que nós sabemos e mesmo assim ela insiste em mentir. Amo esses narradores que mentem. A arte é mais gostosa quando caminha para a mentira, para o falso, para a dissimulação.
Amo a arte do engano, da trapaça, da malandragem.
Me lembrei de Manoel de Barros que disse que "90% do que eu invento é falso. Só 10% é mentira"
Intimidade entre estranhos (2018) é um filme brasileiro de drama. Um filme retrata um casal composto por uma mulher em depressão e um ator fracassado morando em um apartamento administrado por um jovem. Maria tenta de todas as formas burlar a depressão mas seu companheiro está focado sempre na carreira de ator. As cenas dela na piscina pequena, o apartamento alugado, as conversas sobre os planos do namorado me fazem pesar sobre isso: viver uma vida limitada, uma vida que não é sua e querer desesperadamente uma saída disso. Ojovem inquilino é fundamental no emergir e nos afogamentos do desejo dela. Fiquei pensando em quanto nosso cinema brasileiro é maravilhoso, sensível. Nosso cinema é como essa atriz nadando numa minúscula piscina de plástico. Houvesse uma piscina maior, houvesse investimento, houvesse um interesse maior da nossa parte seríamos o melhor cinema do mundo. O melhor, o melhor. De certa forma já somos. Rafaela Mandelli está hipnotizante nesse filme.
Tonari no Totoro/meu amigo Totoro (1988) é uma animação japonesa que está no catálogo Netflix. Nela temos duas crianças, Satsuki e Mei, vivendo na região agrícola do Japão. Inquietas, elas transformam todo ofício em ato de brincar. O filme explora o mundo fantasioso e imaginário que elas criam. A infância é a fase mais inventiva da nossa vida. Freud dirá de um momento em que o espelho do mundo real/fantasia fala também de um espelhamento do eu com o outro indivíduo além de mim. Percebam que para entender o outro em algum momento precisamos criar esse indivíduo, criar esse mundo. A fantasia é sempre esse recurso que recorremos quando nosso mundo está insuportável: um escape e refúgio no fora. É por isso que em tempos difíceis sempre recorremos a essas narrativas e em tempos assim a fantasia sempre surge com muita força.
Enfim, uma qualidade inacreditável para uma animação de 1988. Estúdio Ghibli nunca decepciona.
The Prestige/O grande truque (2006) é filme britânico-americano de suspense. Nele temos a disputa de dois ilusionistas para desvendar os números um do outro. No contexto do filme, século XIX, temos como personagem Nikola Tesla que representa ali o surgimento da ciência moderna. O filme é ótimo para se pensar se a ciência anulou a mágica, a ilusão, o truque. A mágica é baseada em três movimentos: the pledge, the turn, the prestige (a promessa, a (revira)volta, o prestígio. Ou seja, um chamamento pela curiosidade, pelo desejo; algo inesperado acontece e por fim, ao revelar esse fator surpresa tem-se o momento de encantamento, de fascínio. Além disso, a mágica envolve também segredos. Uma vez que alguém descobre ou se revela o truque todo o valor da mágica se perde. A ciência viria com movimentos parecidos com o da mágica mas com uma diferença fundamental: é preciso que ela se torne conhecida, eliminar o fator de segredo, divulgar números e métodos e estar preparado para ser contestado. Retomo a pergunta: a ciência anulou a mágica? Eu diria que não. Talvez nunca estivemos um momento mais mágico da história que esse e isso está disponível ao nosso olhar nas coisas mais corriqueiras e talvez esse seja o fator segredo, ou a ausência dele.
Never rarely sometimes never (2020) é filme britânico-americano sobre a estupro e aborto. Gostaria de trabalhar uma ideia logo do início do filme em que a protagonista canta desafinada. Tolkien, escritor da série Senhor dos anéis, descreve a criação do mundo como um ato sinfônico, ou seja, as notas eram executadas e as coisas eram criadas. Porém, um ser (o satanás de Tolkien) resolve desafinar propositalmente e, assim, é criado as coisas más do mundo. Pensar na maldade como um desafino é algo sensível, algo que fere a musicalidade, algo que destoa, que arrasta os ouvidos, as sensações e o corpo para um lugar caótico - a diferença é que, em Tolkien, foi permitido que esse desafino, todavia, o estupro seria o maior dos males contra alguém já que toca no mais íntimo de alguém mas, diferentemente, sem a permissão dela. A partir daí nossa protagonista opta por aborto e com a amiga partem em busca de clínicas clandestinas. Never rarely sometimes always (nunca raramente as vezes sempre) pensa sobre isso: como é doloroso para uma mulher carregar na pele a dor de um abuso, os julgamentos de, mesmo sendo vítima, se torna culpada; e sobretudo como todos os dias inúmeros abortos acontecem em clínicas clandestinas que não dão nenhuma segurança para as meninas. O aborto, se nunca, se raramente, se as vezes ou se sempre seria uma possibilidade é algo que moralmente envolve um debate. Mas sinto que criminalizar joga essas meninas (pobres, como nossa protagonista) na marginalização desses processos enquanto meninas de classe média alta fazem esse mesmo procedimento em clínicas de alto padrão sem maiores problemas. Não quero aqui discutir em qual ocasião ou outra seria aceitável até por ser homem e acho que esse é um debate feminino. Que o objetivo seja sempre pensar nesse Outro e na segurança para que abortos clandestinos não sejam uma opção.
Soshite chichi ni Naru/Pais e filhos (2013) é um filme de drama japonês. Nesse terceiro filme na minha incursão na filmografia de Hirokazu Koreeda (já escrevi aqui sobre O terceiro assassinato e Boneca inflável) temos mais um filme belíssimo. A premissa é simples: filhos trocados na maternidade que vivem até os seis anos em famílias trocadas e passam por um processo de voltar à família "original". Fiquei pensando sobre até onde vão os laços de consanguinidade, até onde a família é mesmo sangue, o que ser "sangue do meu sangue" realmente significa. As trocas são problemáticas - contextos sociais e familiares diferentes deixam marcas nos meninos e, receber essa criança totalmente estranha mas ainda familiar (familiar que ressoa a ideia de família) se torna uma penosa tentativa de rearranjo. Se por um lado temos a ausência de um pai que trabalha muito e uma esposa submissa (foi Maurice Blanchot que nos falou de uma ausência tão forte que se torna uma presença) do outro temos pais inventivos, mas indisciplinados e sorrateiros. Assim, disciplina e ócio, respeito e afrontamento, afastamento e aproximação: essa troca revela, sobretudo, fissuras nas relações.
Emma (2020) é um filme baseado no livro de mesmo nome da escritora Jane Austen. O filme carrega algo que é peculiar de Jane Austen: personagens femininas fortes e marcantes. Emma é afrontosa, ardilosa, perspicaz, e mesmo não sendo uma leitora de romances (comum às mulheres da época), Emma é uma leitora do comportamento humano. Ela altera a vida de todos ao redor ao repensar o casamento, as instituições, as relações. O filme é majestoso-minimalista, intenso-delicado, expansivo-contemplativo. Dividido em estações do ano, as cores mudam, das vestes, as luzes. No outono cores terrosas, no inverno azuladas e sombrias, na primavera coloridas e floridas e no verão cores sedutoras. Um espetáculo de cores, figurinha, cenário, montagem e movimento de câmera. Anya Taylor-Joy (Emma) está estonteante.
O mundo, a mulher e a literatura após Jane Austen nunca mais foram os mesmos.
Midsommar (2019) é um filme americano de terror psicológico. O filme se passa num retiro espiritual numa seita secreta na Suécia. A direção opta por planos abertos para mostrar as paisagens simétricas e as dissimétricas/ assimétricas (o que nos dirá sobre o caráter cristal perfeito e o mais estado carvão bruto e irregular da religião). Tudo nessa seita é feita por meio de rituais, desde as coisas mais corriqueiras até o extraordinário, isto é, tudo é acompanhado de danças, cantorias, gestos, leituras, vestes apropriadas, silêncios e gritos (novamente o tonal e o atonal, o canto no tom e o ruído, o gesto sincronizado e o desengonçado o que deixa nenhum espaço para o espontâneo). Por último, outro tema que gostaria de ressaltar são as drogas alucinógenas, o limite entre o delírio e a lucidez.
A religião passa por todas essas instâncias, abusivas, libertárias, mais ou menos geométricas, equilíbrio e desequilíbrio, do sussurro e do berro, da sensatez e do estado de pura fantasia. A religião é assim por ser humana e nós somos inconstantes.
Um filme para quem quiser pensar a relação do homem com esse teatro dos vampiros que encenamos para, pretenciosamente dizer: o divino é isto que apreendi, é está a vontade de Deus sendo que, na verdade, nada sabemos sobre Deus de fato. Só projetamos na imagem dEle nossas inseguranças.
Mustang/Cinco graças (as distribuidoras de filmes no Brasil têm um inegável dom de traduzir os nomes dos filmes fazendo a pior escolha possível) é um filme turco de 2015. Nele temos 5 meninas órfãs vivendo com a avó e o tio numa Turquia marcada pelo patriarcado (não se animem pois veremos que aqui não é diferente).O que o filme debate é o casamento de meninas abaixo de 18 anos.
Trazendo para cá o debate, talvez seja revelador pra alguns mas nos dias atuais somos o quarto país do mundo com mais casamentos infantis e arranjados e cerca de 20% das meninas no nosso país se casam antes dos 18 anos. Temos nesse filme alguns perfis: meninas que querem se casar pra sair da casa da família, o sonho de construir sua própria família, a manutenção da "honra e pureza", a pressão social mas, temos resistência e isso é delicioso de assistir. O filme também discute erotização infantil e pedofilia.
Perguntas:
1) feministas: é correto falar de um feminismo oriental sendo que essa é uma concepção ocidental? 2) quando a religião vai atualizar o debate sobre sexo antes do casamento?
Tatuagem
4.2 923Tatuagem (2013) é um filme de drama brasileiro dirigido por Hilton Lacerda. Nele temos o cenário da ditadura de 64-84 e, em 78, no mundo pós AI-5 que censurava muitas apresentações e manifestações artísticas, um grupo de teatro que me lembra muito os Dzi-croquettes (há um documentário maravilhoso sobre no YouTube que eu indico fortemente) que é censurado.
Em meio a isso um jovem do exército se envolve com essa troupe teatral.
É um filme sobre a resistência pelo desejo do corpo, a descoberta da sexualidade, as barbáries da ditadura, a censura, o silenciamento.
Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa estão incríveis. Aqui temos o que há de melhor do nosso cinema na força expressiva do nordeste.
O nordeste se destaca como um cinema de resiliência, de narrativas sempre muito bem concatenadas e que merecem nossa atenção.
Vou Morrer Amanhã
2.6 60 Assista AgoraShe dies tomorrow (2020) é uma sátira norte americana. A premissa é inquietante: uma moça é tomada pela sensação de que irá morrer amanhã e inicia um ritual de se despedir de tudo e todos. Acontece que ao contar pra alguém, essa pessoa támbem de convence do mesmo - morreremos todos amanhã.
Por ser uma sátira é possível ler esse filme de muitas formas e eu listarei algumas: ansiedade, depressão, esgotamento das relações, fake news, fim da humanidade, brevidade da vida, incertezas, quarentena, delírio e histeria coletiva, etc.
A fotografia do filme é maravilhosa com experimentos de feichos de luz, a trilha sonora é maravilhosa e é um filme com mais silêncios que diálogos. É cíclico - e isso para mim lhe serviu bem - e não linear, ou seja, uma narrativa espiralar.
Kate lyn Shell, a protagonista, rouba o filme numa atuação que já vale o investimento dos 80 minutos do filme. Anote esse nome pois é uma atriz nova e promissora. Um projeto de amor por uma direção feminina corajosa.
Acampamento do Pecado
3.0 61Yes, God, Yes (2019) é filme estadunidense de drama. Nele temos Alice, uma moça de uma família católica que estuda em um colégio religioso e conservador.
O filme fala sobre a descoberta do sexo, a masturbação, o domínio da igreja sobre o corpo, o prazer e as incoerências da religião - as pessoas que querem controlar são as que mais escapam.
Gosto nesse filme o fato de ser dirigido por uma mulher: a masturbação aqui é algo sensível (diferente do que Natalie Portman foi exposta pela direção masculina em Black Swan/cisne negro).
O filme é curto e me fez lembrar um livro de Foucault sobre as anormalidades que reproduzirei no Stories a seguir. A arte também é isso: pensar sobre o tabu.
Natalia Dyer (Nancy de Stranger things) está ótima. O filme se passa no início da internet e é interessante sentir essa descoberta da internet junto com a protagonista que descobre o próprio corpo.
Estou Pensando em Acabar com Tudo
3.1 1,0K Assista AgoraI'm thinking of Ending things/Estou pensando em acabar com tudo (2020) está próximo de um drama psicológico. Próximo pois o filme deslisa, é escorregadio. Basicamente temos um casal que viaja para que o rapaz apresente-a para a família dele. Para nosso espanto, acontecem coisas totalmente sem sentido com eles. Gostaria de ressaltar: o projetar-se no outro, a sensação de imobilidade, conflitos de personalidade, depressão, suicídio, o limite entre realidade e o delírio, a descoberta da sexualidade, a vida como uma peça de teatro no auge do seu mais incrível fracasso.
Assisti esse filme com minha amiga e catalogamos pelo menos 6 leituras diferentes para esse filme. Ele exige ser assistido mais de uma vez - e recompensa o esforço.
Charlie Kaufman com uma direção sensível e melancólica, a fotografia é incrível, os movimentos de câmera estão um passo a frente de nós, Jesse Plemons está ótimo e Jessie Buckley me deixou fascinado.
Como Nossos Pais
3.8 444Este é um filme de drama brasileiro que pensa sobre ressignificar um passado, a busca pela origem e os conflitos entre relações monogamicas e poligamicas. Nossa protagonista escreve uma peça sobre se libertar de um casamento em decadência e, ao mesmo tempo, reflete sobre a persona do pai,como um alvo que ela inconscientemente procura: pai desajustado, pai ausente. Freud se deliciaria assistindo esse filme.
A mãe está embarcando em uma viagem sem volta e, ao contrário da filha, viveu uma vida entregue ao desejo. As filhas sempre são pontos de contato com a realidade, sempre são o fator que a fazem ponderar suas ações.
Ela questiona os padrões de relacionamento, sente que pode ir além, que merece mais.
Maria Ribeiro, Paulo Vilhena e Clarisse Abujamra estão maravilhosos, Jorge Mautner entrega um dos personagens mais deliciosos desta última década.
Um filme irretocável. Nosso cinema é belíssimo, não me canso de repetir
Uma Beleza Fantástica
3.7 289 Assista AgoraThis beautiful fantastic (2016) é um filme de romance britânico no catálogo Netflix. Temos uma escritora, Bella Brown (Jéssica Brown Findlay) que era extremamente metódica e racional mas entra em um processo de escrita do primeiro romance e da restauração do seu jardim. Esse processo inclui remover raízes mortas e ervas daninhas (traumas), cavar (fixar-se), regar (cuidado), selecionar plantas (experiências, memórias), plantar e replantar (adaptação e mudanças) - um jardim que fala muito sobre os personagens mas também sobre nós, ou seja, sobre qual o jardim que deixaremos.
Bella escreve três romances ao mesmo tempo: o dela, o do mestre jardineiro e do pássaro, as narrativas se misturam e formam um romance luno-solar, próximo do que Guattari chama de Caosmose (caos e osmose, caos e ordem).
A arte pra mim é justamente isso. Transformar a ordem do mundo em caos (algo mais próximo da ramificação, do arvoredo, da compostagem, do adubo, do verme) e transformar o caos do mundo em ordem (algo próximo da jardinagem, da floricultura).
Jessica Brown Findlay é linda e talentosa, Andrew Scott está incrível como é de se esperar.
Pensar a vida e a arte como um jardim natural - e é.
Escritores da Liberdade
4.2 1,1K Assista AgoraFreedom Writers (2007) é um filme de drama americano baseado em fatos reais. Nele temos uma professora em sua primeira experiência em sala de aula: a paixão pela profissão e o desejo de mudança. Ela se vê em uma turma problemática, campo de disputa - racial, de poder de gangues e, sobretudo, uma disputa pela sobrevivência. A turma é renegada, odiada pelos demais professores mas, na contramão, Hilary Swank (em uma atuação maravilhosa) - a professora, decide ouví-los, entender o que se passa com eles.
Quando eles falam e assim, ouvem a própria voz, percebem o quanto foram silenciados a vida toda, sentem as marcas na pele negra falar também - vozes, em meio ao choro, lindas vozes. Falar coloca a gente em contato com o outro e ouvir esse outro abre espaço para o afeto.
É pelo afeto que ela escolhe trabalhar sobre o Holocausto e sobre Anne Frank e seu diário de uma refugiada em meio a perseguição nazista.
Eles entendem, se identificam, encontram em Anne Frank a força que sempre tiveram mas que estava adormecida - escrever e resistir, é sobreviver - uma outra sobrevivência mais próxima da resiliência.
Escritores da liberdade pois uma vez, de lagarta a borboleta não se quer outra coisa que não seja...voar. Liberdade pois escrever é desatar, é traçar linhas - de escrita e linhas de fuga.
Esse filme só confirma o que meu coração já sente - ser professor é dar voz, é ouvir, se interessar pela narrativa do outro e incentivar o vôo.
A Assistente
3.3 198 Assista Agora2019 nos presenteou com pelo menos dois filmes sobre abuso de mulheres no ambiente de trabalho. Assisti Bombshell que mostrava a história real do CEO da Fox, Roger Ailes, envolvendo os vários abusos até que houve o grandioso movimento de denúncias por parte das mulheres.
Mas o segundo filme que assisti de 2019 com esse tema se chama The Assistant. Julia Garner interpreta a assistente e gostaria de iniciar elogiando a atuação dela: as emoções contidas, o desconforto no olhar, mas a vontade de romper pela força da ambição.
The Assistant escolhe mostrar a rotina da personagem de Julia Garner e o fato de ela trabalhar num escritório com vários homens e ter de serví-los o tempo todo, lavar as vasilhas de todo departamento, pedir a comida e levar café para eles, sendo que, teoricamente, todos do departamento estão no mesmo cargo. Nossa protagonista precisa trabalhar muito mais, precisa se provar o tempo todo, fazer constantes desvios de função e é curioso e abominável o quanto muitas dessas empresas gostam de colocar as mulheres em um papel de subserviência - algo da dominação masculina, do fetiche da empregada, do patriarcal.
Enfim, temos aqui um filme delicado, introspectivo, inteligente e muito bem montado. Espero que esse tema ainda renda bons filmes como esse. Necessário.
Café com Canela
4.1 164Café com canela (2017) é um filme de drama brasileiro no catálogo da Amazon Prime. Esse filme me fez pensar tantas coisas que creio que seja preciso enumerar: 1) O fato de ser dirigido por uma mulher negra, com maioria dos atores negros o torna um filme interessante para pensarmos sobre as narrativas do nosso povo, sobre a Ancine, sobre o incentivo de produções brasileiras na política atual (esse filme com mais verba seria ainda melhor).
2) O filme fala sobre uma mulher que vê sua vida sendo resignificada pela ajuda de outra mulher - e esse filme faz isso, resignifica, remonta. Ele poderia muito bem ser um episódio de novela - mas nelas as comunidades são sempre envoltas em glamour. Aqui não - são retratos do dia-a-dia remontados na ótica de um povo negro da Bahia.
3) um filme que imageticamente fala de sororidade, de conexões, de resistência e também sobre a melancolia.
4) lindo ver o candomblé não feitichizado, visto como algo do corriqueiro.
5) a ideia de que nas comunidades, as casas de paredes ligadas uma na outra gera narrativas que formam uma rede, um crochê de histórias - tudo acontece ao mesmo tempo.
Enfim, um filme delicioso.
Corpus Christi
3.9 92 Assista AgoraCorpus Christi (2019) é um filme de drama polonês nomeado à categoria de melhor filme estrangeiro. O filme conta uma odisseia de um padre impostor.
O filme trabalha o confronto da fé católica conservadora dos moradores com a fé reformada do padre ou, pelo menos, da não-fé que quer muito acreditar.
Nosso protagonista está sempre nesse limiar ou nesse deslimite (pra usar uma palavra Manoelina) da crença e descrença, do outrora e o agora, da culpa e do alívio, do prazer e rendição e, sobretudo, da prisão e a liberdade - a fé pode estar em qualquer parte desse espectro.
Um filme maravilhoso para se pensar a relação do homem com a fé mais como um monólogo dele com ele mesmo.
O final do filme é estonteante.
O protagonista, Bartosz Bielenia, entrega uma das melhores atuações de 2019. Esse ano foi maravilhoso - para o cinema.
Yesterday: A Trilha do Sucesso
3.4 1,0KYesterday (2019) e um filme de comédia/romance britânico. Ele parte da premissa mais deliciosa possível: misteriosamente os Beatles foram apagados do mundo e só o nosso protagonista se lembra deles. Assim, o filme é sobre esse protagonista tentando recriar as músicas dos Beatles e, como há de se imaginar, o mundo vai amar reouvi-los pela primeira.
O que me fez pensar que algumas obras compõem o mundo de tal maneira que é inconcebível o mundo sem elas: eu não imagino o mundo sem os versos de Cantares ou do Bhagavad Gita, sem os evangelhos ou as peças de Shakespeare, sem a Capitu de Machado de Assis ou a Lucy das Crônicas de Nárnia, sem os Beatles, sem o The Wall ou, por fim, para acabar essa lista que poderia ser interminável, Sem Clarice, Guimarães Rosa ou meu amado Manoel de Barros.
O mundo depois deles é esse que agora está ressignificado por eles pois eles nos emprestaram o olhar.
Infelizmente o filme não se sustenta a premissa maravilhosa que ele tem.
Cães de Rua
3.5 3Sag-Haye Velgard/Cães de rua (2004) é um filme de drama do Afeganistão e minha segunda incursão nesse cinema. Se me perguntassem, e eu pudesse responder numa opinião precoce, eu diria que o cinema do Afeganistão é um cinema sobre ruínas (já conversamos aqui sobre o filme A pedra da paciência que é belíssimo).
O filme parte de dois irmãos em uma odisseia pelas ruínas de um país destruído e, ainda por cima, carregando um cachorro.
É inevitável não associar esse filme ao Mágico de Oz de 1939. Lá temos, da mesma forma, uma menina carregando o cãozinho Totó em busca da realização dos sonhos dela, do Leão, do homem de lata e do espantalho. Em mágico de Oz temos uma lição americana: a realização dos seus sonhos só depende de você pois a resposta está somente em você.
Já em Cães de Rua, o cão é perseguido, precisa sobreviver, precisa lutar pela vida todos os dias, é felpudo, embaraçado, sujo e ele fede ao pó dos escombros.
O sonho americano de que tudo está no seu esforço só serve àqueles que podem dormir e sonhar, só serve a Dorothy e seu Totó, só a Oz.
No mais, existem outros lugares que não é permitido, ao menos, sonhar.
Um filme maravilhoso.
18 Presentes
3.6 100 Assista Agora18 Regali fala sobre uma relação mãe e filha. Me lembrei de duas obras e uma frase e quero pensar por elas. Primeiramente, foi Freud que desenvolveu a teoria do complexo de Édipo, dito de forma simples: uma filha ama o pai, de uma forma desejante, enlouquecedora. A filha quer ser como a mãe para alcançar esse pai idealizado e esse filme fala sobre isso. Sobre a eterna busca dessa mãe, desse aconchego, desse refúgio, do lar.
Uma segunda associação, Maria Gabriela Lliansol escreveu um livro que amo cujo título é "Um beijo dado mais tarde" que fala sobre esse beijo que faltou, o afeto ausente, a vontade desse toque que ficou por vir, uma vontade de ter a atenção de uma pessoa que está e não está mais.
A frase que finalizo é do meu amado Roland Barthes "Quando 'escuta-me' quer dizer: 'toca-me, saiba que eu existo'"
Driveways: Uma Amizade Inesperada
3.6 20 Assista AgoraDriveways (2019) é um filme de drama estadunidense. Nele temos uma mulher indo visitar a casa da falecida irmã e descobre que ela era uma acumuladora de objetos. Enquanto isso, o filho faz amizade com o vizinho da falecida tia. O filme para mim fala sobre as coisas que ficam de quem vai embora e do vazio que fica.
Esse vizinho conta ao menino que perdeu a esposa e sente o peso da memória que a cada dia vai fazendo esse mesmo papel de esvaziar a casa, perder objetos de memória...
Sobre o vazio da mente, a cada dia nos esquecemos mais e vamos esvaziando cômodos e, sobre vazio de objetos, assisto esse filme em tempos de pandemia e penso que mais de vinte mil casas estão vazias, e por isso, milhares e milhares de objetos perderam o sentido pois estavam ligados a alguém...
É preciso pensar nas vidas pois a economia, os objetos, são significados por nós.
A Pedra de Paciência
4.2 96 Assista AgoraA pedra de paciência (2012) é um filme de drama do Afeganistão. Nele encontramos o cenário em escombros, ruínas. Constantes ataques, falta de água e alimentos, explosões - uma terra devastada. Em meio a tudo isso temos uma mulher sem nome (ninguém no filme tem o que nos aponta para o valor que a vida deles têm) lidando com um marido em coma profundo e duas crianças.
Quero focar no fato dela narra a vida dela, a dele, a dos dois juntos e, assim, formar uma colcha de retalhos. Digo retalhos pela história deles ser mais próxima do panejo, do retalho, do trapo, dos fiapos do que de um tecido propriamente. E mesmo assim ela narra. Me lembrei de Scheherazade nas mil e uma noites narrando uma história infinita pra manter-se viva. A mulher do filme narra para que as reminiscências, o que é possível trazer à luz da memória não se perca.
Esse filme me fez pensar no valor da vida. Em meio a tanta morte ao redor temos pessoas assim que querem muito viver e só tem escombros e os trapos para, tão somente e poderosamente, narrar suas estórias.
A fotografia do filme e a atuação de Golshifteh Farahani é impecável.
Um Sonho Sem Limites
3.5 185 Assista AgoraTo die for (1995) é filme de Mockmentary (documentário ficcional). Confesso que assisti esse filme pela Nicole Kidman. Desde jovem sou apaixonado por ela. Disse para uma aluna essa semana: As paixões de adolescência ficam, de uma forma ou outra. Pois bem, Nicole é minha paixonite dessa fase e ficou. Acho ela a atriz mais linda até hoje. Esse filme é dela. Ela altera tudo ao redor, os olhares, a presença dela incomoda.
Joaquim Phoenix é jovem nesse filme e posteriormente faria Joker.
Mas queria rapidamente falar sobre o fato de ela narrar o filme. Uma narradora sínica, perversa. Ela mente e nós sabemos. Ela sabe que nós sabemos e mesmo assim ela insiste em mentir.
Amo esses narradores que mentem. A arte é mais gostosa quando caminha para a mentira, para o falso, para a dissimulação.
Amo a arte do engano, da trapaça, da malandragem.
Me lembrei de Manoel de Barros que disse que "90% do que eu invento é falso. Só 10% é mentira"
Intimidade Entre Estranhos
3.0 36Intimidade entre estranhos (2018) é um filme brasileiro de drama. Um filme retrata um casal composto por uma mulher em depressão e um ator fracassado morando em um apartamento administrado por um jovem. Maria tenta de todas as formas burlar a depressão mas seu companheiro está focado sempre na carreira de ator. As cenas dela na piscina pequena, o apartamento alugado, as conversas sobre os planos do namorado me fazem pesar sobre isso: viver uma vida limitada, uma vida
que não é sua e querer desesperadamente uma saída disso. Ojovem inquilino é fundamental no emergir e nos afogamentos do desejo dela.
Fiquei pensando em quanto nosso cinema brasileiro é maravilhoso, sensível. Nosso cinema é como essa atriz nadando numa minúscula piscina de plástico.
Houvesse uma piscina maior, houvesse investimento, houvesse um interesse maior da
nossa parte seríamos o melhor cinema do mundo. O melhor, o melhor.
De certa forma já somos.
Rafaela Mandelli está hipnotizante nesse filme.
Meu Amigo Totoro
4.3 1,3K Assista AgoraTonari no Totoro/meu amigo Totoro (1988) é uma animação japonesa que está no catálogo Netflix. Nela temos duas crianças, Satsuki e Mei, vivendo na região agrícola do Japão. Inquietas, elas transformam todo ofício em ato de brincar. O filme explora o mundo fantasioso e imaginário que elas criam. A infância é a fase mais inventiva da nossa vida. Freud dirá de um momento em que o espelho do mundo real/fantasia fala também de um espelhamento do eu com o outro indivíduo além de mim.
Percebam que para entender o outro em algum momento precisamos criar esse indivíduo, criar esse mundo.
A fantasia é sempre esse recurso que recorremos quando nosso mundo está insuportável: um escape e refúgio no fora.
É por isso que em tempos difíceis sempre recorremos a essas narrativas e em tempos assim a fantasia sempre surge com muita força.
Enfim, uma qualidade inacreditável para uma animação de 1988. Estúdio Ghibli nunca decepciona.
O Grande Truque
4.2 2,0K Assista AgoraThe Prestige/O grande truque (2006) é filme britânico-americano de suspense. Nele temos a disputa de dois ilusionistas para desvendar os números um do outro. No contexto do filme, século XIX, temos como personagem Nikola Tesla que representa ali o surgimento da ciência moderna. O filme é ótimo para se pensar se a ciência anulou a mágica, a ilusão, o truque.
A mágica é baseada em três movimentos: the pledge, the turn, the prestige (a promessa, a (revira)volta, o prestígio. Ou seja, um chamamento pela curiosidade, pelo desejo; algo inesperado acontece e por fim, ao revelar esse fator surpresa tem-se o momento de encantamento, de fascínio.
Além disso, a mágica envolve também segredos. Uma vez que alguém descobre ou se revela o truque todo o valor da mágica se perde.
A ciência viria com movimentos parecidos com o da mágica mas com uma diferença fundamental: é preciso que ela se torne conhecida, eliminar o fator de segredo, divulgar números e métodos e estar preparado para ser contestado.
Retomo a pergunta: a ciência anulou a mágica?
Eu diria que não. Talvez nunca estivemos um momento mais mágico da história que esse e isso está disponível ao nosso olhar nas coisas mais corriqueiras e talvez esse seja o fator segredo, ou a ausência dele.
Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre
4.0 215 Assista AgoraNever rarely sometimes never (2020) é filme britânico-americano sobre a estupro e aborto. Gostaria de trabalhar uma ideia logo do início do filme em que a protagonista canta desafinada. Tolkien, escritor da série Senhor dos anéis, descreve a criação do mundo como um ato sinfônico, ou seja, as notas eram executadas e as coisas eram criadas. Porém, um ser (o satanás de Tolkien) resolve desafinar propositalmente e, assim, é criado as coisas más do mundo. Pensar na maldade como um desafino é algo sensível, algo que fere a musicalidade, algo que destoa, que arrasta os ouvidos, as sensações e o corpo para um lugar caótico - a diferença é que, em Tolkien, foi permitido que esse desafino, todavia, o estupro seria o maior dos males contra alguém já que toca no mais íntimo de alguém mas, diferentemente, sem a permissão dela.
A partir daí nossa protagonista opta por aborto e com a amiga partem em busca de clínicas clandestinas. Never rarely sometimes always (nunca raramente as vezes sempre) pensa sobre isso: como é doloroso para uma mulher carregar na pele a dor de um abuso, os julgamentos de, mesmo sendo vítima, se torna culpada; e sobretudo como todos os dias inúmeros abortos acontecem em clínicas clandestinas que não dão nenhuma segurança para as meninas.
O aborto, se nunca, se raramente, se as vezes ou se sempre seria uma possibilidade é algo que moralmente envolve um debate. Mas sinto que criminalizar joga essas meninas (pobres, como nossa protagonista) na marginalização desses processos enquanto meninas de classe média alta fazem esse mesmo procedimento em clínicas de alto padrão sem maiores problemas.
Não quero aqui discutir em qual ocasião ou outra seria aceitável até por ser homem e acho que esse é um debate feminino. Que o objetivo seja sempre pensar nesse Outro e na segurança para que abortos clandestinos não sejam uma opção.
Pais e Filhos
4.3 212 Assista AgoraSoshite chichi ni Naru/Pais e filhos (2013) é um filme de drama japonês. Nesse terceiro filme na minha incursão na filmografia de Hirokazu Koreeda (já escrevi aqui sobre O terceiro assassinato e Boneca inflável) temos mais um filme belíssimo. A premissa é simples: filhos trocados na maternidade que vivem até os seis anos em famílias trocadas e passam por um processo de voltar à família "original". Fiquei pensando sobre até onde vão os laços de consanguinidade, até onde a família é mesmo sangue, o que ser "sangue do meu sangue" realmente significa. As trocas são problemáticas - contextos sociais e familiares diferentes deixam marcas nos meninos e, receber essa criança totalmente estranha mas ainda familiar (familiar que ressoa a ideia de família) se torna uma penosa tentativa de rearranjo. Se por um lado temos a ausência de um pai que trabalha muito e uma esposa submissa (foi Maurice Blanchot que nos falou de uma ausência tão forte que se torna uma presença) do outro temos pais inventivos, mas indisciplinados e sorrateiros. Assim, disciplina e ócio, respeito e afrontamento, afastamento e aproximação: essa troca revela, sobretudo, fissuras nas relações.
Emma.
3.4 290 Assista AgoraEmma (2020) é um filme baseado no livro de mesmo nome da escritora Jane Austen. O filme carrega algo que é peculiar de Jane Austen: personagens femininas fortes e marcantes. Emma é afrontosa, ardilosa, perspicaz, e mesmo não sendo uma leitora de romances (comum às mulheres da época), Emma é uma leitora do comportamento humano.
Ela altera a vida de todos ao redor ao repensar o casamento, as instituições, as relações.
O filme é majestoso-minimalista, intenso-delicado, expansivo-contemplativo.
Dividido em estações do ano, as cores mudam, das vestes, as luzes. No outono cores terrosas, no inverno azuladas e sombrias, na primavera coloridas e floridas e no verão cores sedutoras. Um espetáculo de cores, figurinha, cenário, montagem e movimento de câmera.
Anya Taylor-Joy (Emma) está estonteante.
O mundo, a mulher e a literatura após Jane Austen nunca mais foram os mesmos.
Midsommar: O Mal Não Espera a Noite
3.6 2,8K Assista AgoraMidsommar (2019) é um filme americano de terror psicológico. O filme se passa num retiro espiritual numa seita secreta na Suécia. A direção opta por planos abertos para mostrar as paisagens simétricas e as dissimétricas/ assimétricas (o que nos dirá sobre o caráter cristal perfeito e o mais estado carvão bruto e irregular da religião).
Tudo nessa seita é feita por meio de rituais, desde as coisas mais corriqueiras até o extraordinário, isto é, tudo é acompanhado de danças, cantorias, gestos, leituras, vestes apropriadas, silêncios e gritos (novamente o tonal e o atonal, o canto no tom e o ruído, o gesto sincronizado e o desengonçado o que deixa nenhum espaço para o espontâneo). Por último, outro tema que gostaria de ressaltar são as drogas alucinógenas, o limite entre o delírio e a lucidez.
A religião passa por todas essas instâncias, abusivas, libertárias, mais ou menos geométricas, equilíbrio e desequilíbrio, do sussurro e do berro, da sensatez e do estado de pura fantasia.
A religião é assim por ser humana e nós somos inconstantes.
Um filme para quem quiser pensar a relação do homem com esse teatro dos vampiros que encenamos para, pretenciosamente dizer: o divino é isto que apreendi, é está a vontade de Deus sendo que, na verdade, nada sabemos sobre Deus de fato. Só projetamos na imagem dEle nossas inseguranças.
Cinco Graças
4.3 329 Assista AgoraMustang/Cinco graças (as distribuidoras de filmes no Brasil têm um inegável dom de traduzir os nomes dos filmes fazendo a pior escolha possível) é um filme turco de 2015.
Nele temos 5 meninas órfãs vivendo com a avó e o tio numa Turquia marcada pelo patriarcado (não se animem pois veremos que aqui não é diferente).O que o filme debate é o casamento de meninas abaixo de 18 anos.
Trazendo para cá o debate, talvez seja revelador pra alguns mas nos dias atuais somos o quarto país do mundo com mais casamentos infantis e arranjados e cerca de 20% das meninas no nosso país se casam antes dos 18 anos.
Temos nesse filme alguns perfis: meninas que querem se casar pra sair da casa da família, o sonho de construir sua própria família, a manutenção da "honra e pureza", a pressão social mas, temos resistência e isso é delicioso de assistir.
O filme também discute erotização infantil e pedofilia.
Perguntas:
1) feministas: é correto falar de um feminismo oriental sendo que essa é uma concepção ocidental?
2) quando a religião vai atualizar o debate sobre sexo antes do casamento?