CORAÇÃO DE CACHORRO (EUA, 2015) - Dir. Laurie Anderson
A artista multimídia Laurie Anderson, que iniciou sua carreira na década de 1960, apresenta em Coração de Cachorro, seu segundo longa para o cinema (o primeiro foi Home of the Brave, um registro de um show seu de 1986), uma colagem poética e abstrata sobre a vida e a morte de sua amada Rat Terrier, Lollabelle. Obviamente influenciada pela morte recente do marido, o músico Lou Reed, com quem se casou em 2008 e faleceu em 2013, em Coração de Cachorro Laurie Anderson pondera e divaga sobre vida, morte, filosofia, arte, sua própria biografia e o valor que cada experiência vivida nos acrescenta, por mais adversa que seja. Coração de Cachorro não é um documentário no sentido tradicional, mas não tem a intenção de sê-lo. É, na verdade, uma reflexão de Laurie, que em sua narrativa hipnótica que pontua todo o filme faz uma livre associação de ideias que às vezes, posteriormente, demonstram estar conectadas por algo subjacente, mas muitas vezes são puras divagações de uma mente excessivamente criativa em busca de algum sentido na morte e em uma justificativa para se viver a própria vida plenamente e compartilhar a vida dos outros - no caso, a de Lollabelle - com amor, afeto, admiração e companheirismo. O filme é um amálgama de imagens desfocadas, animações breves, reconstituições dramatizadas de eventos de sua vida (mas sem diálogos) e uma série de recortes de imagens e ilustrações cinemáticas que pontuam visualmente o que é narrado. Tal pontuação chega a ser didática em certos momentos, mas funciona perfeitamente como ilustração para um livro visual, uma experiência poética em prosa para se ver e ouvir que provoca reflexão e inspiração. Laurie muitas vezes começa a falar sobre algum tema para logo depois divagar noutra direção totalmente distinta, refletindo muito bem o processo de diálogo interno mental de todos nós. Tentando compreender o funcionamento da mente de Lollabelle, ela expõe como funcionam as mentes de todos nós - através de livres associações que passam por temas filosóficos (ela pergunta várias vezes "onde está a filosofia?"), budismo tibetano, arte, família, casos de sua vida (que podem ser verídicos ou não - na verdade não importa muito), fantasmas (reais e simbólicos) e, principalmente, o amor e o respeito pela sua amada companheira Lollabelle. Em Coração de Cachorro, Laurie Anderson mostra que seu estilo mudou pouco nas últimas décadas - contudo, continua eficiente e fascinante. Aproveitando ao máximo sua voz sedutora na narração, com pausas em momentos inesperados que atribuem um sentido diferente às frases e ilustrando visualmente o que diz com a delicadeza e a sensibilidade artística que lhe são características, Laurie faz uma ode à vida na qual valoriza o significado da morte, vista de modo tão negativo na sociedade e cultura ocidentais. Laurie Anderson é uma verdadeira livre pensadora que se deixa pensar livremente sem medo de ser considerada demasiadamente intelectualizada ou pretensiosa - é um deleite acompanhar seu fluxo de pensamento e mergulhar não apenas no coração de um cachorro, mas também no coração de Laurie.
MOONLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR (EUA, 2016) - Dir. Barry Jenkins
Vencedor do Globo de Ouro de melhor drama e de outros 140 prêmios internacionais, Moonlight, dirigido e escrito por Barry Jenkis baseado em uma história de Tarell Alvin McCraney, é um mistério. Pois é realmente um mistério como um filme tão estereotipado disfarçado de drama poético está sendo tão aclamado. Nem a fotografia primorosa de James Laxton, saturada de tons azuis sob o luar, redime o filme. Moonlight conta a história do jovem negro Chiron em três etapas de sua vida: na infância, na adolescência e na vida adulta, e como as experiências vividas em cada etapa influenciaram o garoto vítima de bullying constante na escola a se tornar o homem que emula o traficante de drogas de bom coração que o acolheu na infância. Sim, um traficante de bom coração. Em Moonlight, não há perversidade, exceto no personagem obrigatório do bully que não larga o pé de Chiron durante mais de dez anos. Fora isso, todos os personagens, por mais estereotipados que sejam, se redimem de uma forma ou de outra de seus erros e a mensagem que fica é a batida "all you need is love". Moonlight defende com unhas e dentes a bandeira do politicamente correto, constrangendo o espectador a ousar criticar ou ver algo de ruim nos personagens. Até a mãe de Chiron, viciada em crack, é mostrada com bons olhos, apesar dos abusos infligidos sobre o filho durante toda sua infância e adolescência. A redenção existe para todos, todos são inocentes e vítimas das circunstâncias - como o mundo seria melhor com um pouco mais de amor e compreensão, diz Moonlight - o que fica representado pelo amor gay entre Chiron e seu colega Kevin, que permanece platônico por mais de uma década, superando o envolvimento com o tráfico de drogas, prisões e as opções de vida dos personagens. Mas a realidade é bem diferente. O mundo real das comunidades pobres nos Estados Unidos não é tão clean quanto o filme mostra, as ruas vazias, as roupas imaculadamente brancas dos alunos em uma escola pobre com paredes igualmente reluzentes - é curioso que em um filme sobre negros o branco ofusque tanto os olhos do espectador. A compreensiva diretora da escola que acolhe Chiron, a afetuosa namorada de Juan (o excelente Mahershala Ali, único elemento que brilha no filme), o traficante de bom coração que acolhe o garoto, e o próprio Juan, são símbolos de uma fraterninade inexistente na realidade dura e crua das comunidades violentas infestadas por gangues, traficantes, prostitutas e criminalidade que corrompem os jovens sem perspectivas nem chances de um futuro melhor - mas nada disto existe em Moonlight. O que existe é a bondade no coração de todos, mesmo que efetivamente estejam fazendo o mal. O sucesso estrondoso de Moonlight é um enigma, pois o filme é claramente uma obra feita por encomenda para ganhar o Oscar que consagraria a era de Obama, atingindo o fanatismo extremista do politicamente correto às custas de qualquer indício de verossimilhança.
No mundo da música, existem os chamados "one hit wonders". Artistas que fazem uma música que é um enorme sucesso e nunca mais conseguem repetir a façanha. Talvez o termo não se aplique a Dennis Villeneuve, pois o diretor canadense continua sendo aclamado por suas obras mesmo após seu único filme realmente excelente, Incêndios (2010), certamente um dos melhores da última década. No entanto, Villeneuve deixou-se engolir muito rapidamente pela voracidade de Hollywood por artistas talentosos e inovadores e por transformá-los em marionetes dos grandes estúdios. Os filmes dirigidos por Villeneuve depois de Incêndios não são propriamente ruins, mas a maioria é, no mínimo, insatisfatória. Ele brincou com Saramago na tentativa Cronenbergiana de O Homem Duplicado (2013), promissor mas, no final das contas, no mínimo frustrante, realizou uma obra confusa sobre o combate ao narcotráfico na fronteira entre os Estados Unidos e o México com Sicario (2015) e arriscou no suspense com o quase bom Os Suspeitos (2013), que acabou comprometido por alguns furos imperdoáveis no roteiro. No entanto, Villeneuve seguiu em frente e realizou sua obra mais pretensiosa até agora com A Chegada - e não menos frustrante. Com roteiro de Eric Heisserer, baseado no conto "The Story of Your Life", de Ted Chiang, o filme começa com a chegada de doze objetos voadores não indentificados em doze partes distintas do planeta, o que leva o serviço de inteligência dos EUA a convocar a linguista Louise Banks (Amy Adams, em uma atuação inexpressiva, visto que seu papel não exige muito da personagem de qualquer modo) para decifrar a linguagem dos alienígenas a bordo de uma das naves e estabelecer um meio de comunicação com eles. Até aí, tudo bem, mas depois de uma hora de enrolação tediosa e sem qualquer teor dramático, quando a linguagem alienígena é finalmente decifrada como que por mágica, começa o apelo ao sentimentalismo barato que culmina com uma "mensagem profunda" sobre a relação entre tempo, existência e experiências de vida. O problema da comunicação entre humanos e seres extraterrestres já foi explorado de maneira muito mais poética e envolvente por Steven Spielberg em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), conquistando corações e mentes com os dramas pessoais dos personagens e um clima misterioso crescente que culmina em uma das mais belas cenas da história da ficção científica. Villeneuve não conseguiu se equiparar ao filme de Spielberg nem dramatica ou poeticamente. No caso de A Chegada, faltou humildade a Villeneuve. Na tentativa de misturar pseudo-ciência com filosofia metafísica em um ambiente militarista no qual os dois cientistas encarregados de decifrar a linguagem alienígena são os únicos com características remotamente humanas, ele realizou um filme frio, entediante, que pretende se sustentar somente na mensagem moral anti-militarista e filosófica que encerram o filme. Talvez Villeneuve devesse ter resistido um pouco mais ao apelo de Hollywood depois de Incêndios, ter afiado seu estilo e firmado sua mão como diretor para poder se comunicar com a plateia melhor do que os alienígenas de A Chegada.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 2016 além de diversos prêmios internacionais e dirigido pelo mestre do realismo britânico Ken Loach, com roteiro de Paul Laverty, Eu, Daniel Blake é, assim como muitos filmes de Loach, uma pequena obra-prima. Daniel Blake (Dave Johns) é um homem de meia-idade que, após sofrer um infarto no trabalho, tenta conseguir receber um auxílio doença até poder voltar a trabalhar. Enfrentando uma burocracia Kafkaniana e sem sentido, a qual gera indentificação com o público brasileiro pelo insondável labirinto de formulários e “especialistas” para receber um benefício que lhe é reservado, Daniel Blake fica cada vez menos otimista em relação à sua situação, totalmente perdido quanto ao que fazer para obter o que é seu por direito, ao perceber que nada é tão simples quanto parece ou deveria ser. Em um escritório de assistência social, Blake conhece a mãe solteira Katie que, com um casal de filhos pequenos, chega alguns minutos atrasada para seu encontro com uma “especialista” que analisaria seu caso e é expulsa pela segurança do estabelecimento. Uma amizade acaba se formando entre Daniel, Katie e seus filhos, a qual proporciona um pouco de afeto e amparo a todos eles, os desprivilegiados e excluídos da rica sociedade inglesa. Ken Loach já retratou com maestria a realidade dos párias ingleses e irlandeses, em filmes como “Meu Nome é Joe” e “Riff-Raff”, além de ter explorado os mesmos temas com um tom mais cômico em sua longa filmografia, com o delicioso “A Parte dos Anjos”, que trata dos outsiders da sociedade com um humor irresistível. Em Eu, Daniel Blake, Loach não recorre ao humor, apesar de certas cenas despertarem um riso nervoso no espectador – fruto da aflição, e não de recursos cômicos. O empenho de Blake em atender as exigências das agências de assistência social é autêntico, mas não menos frustrante, o que aos poucos corrói sua auto-estima e suas esperanças. O paralelo com a vida de Katie, que se encontra em uma situação ainda mais desesperadora do que a de Blake, mostra até que ponto se pode chegar para assegurar o mínimo que o governo diz prover aos cidadãos quando este fracassa em sua rede burocrática e cruel, um verdadeiro moedor de carne que tritura a resiliência e as esperanças daqueles que mais necessitam de assistência até que eles desistam por pura exaustão. As similaridades entre a burocracia incompetente do sistema de assistência social inglesa com o brasileiro são chocantes, pois imagina-se que na Inglaterra, um país rico e com uma sociedade supostamente igualitária, as coisas seriam mais fáceis para os necessitados. Mas não. Conseguir um auxílio doença ou um seguro desemprego por lá parece ser tão ou ainda mais complicado do que aqui. E é aí que está a grande sacada de Loach em Eu, Daniel Blake: a universalidade de um sistema que é feito para derrotar os desprovidos com seus intermináveis formulários, telefonemas e funcionários incompententes e totalmente desinteressados em auxiliar os que mais precisam deles.
Dirigido pelo americano Tate Taylor (Histórias Cruzadas), com roteiro de Erin Cressila Wilson baseado no romance best-seller de Paula Hawkins, A Garota do Trem é um suspense com aspirações Hitchcockianas que, apesar da premissa criativa, desanda rapidamente com um elenco fraco, recursos narrativos pobres e uma solução previsível e frustrante. Emily Blunt (Sicario, Looper, O Demônio Veste Prada) é Rachel, uma alcóolatra que todos os dias pega o mesmo trem de onde mora até Nova York, olhando pela janela e imaginando como seriam as vidas das pessoas que vê nas belas casas suburbanas ao longo da linha férrea. Rachel fica fascinada pela moradora de uma das casas, Megan (Haley Bennet), a qual vê todos os dias e para quem imagina uma vida perfeita de amor e felicidade com o marido. A jovem que povoa a imaginação de Rachel mora duas casas abaixo da casa na qual a própria Rachel morou um dia com seu ex-marido Tom (Justin Theroux), agora casado e pai de um bebê com sua segunda esposa, Anna (Rebecca Ferguson). Agindo erraticamente devido ao consumo excessivo de álcool, Rachel salta do trem quando vê Megan aos beijos com um homem que não é seu marido. Ela sofre um apagão de memória e desperta em casa ensanguentada. Seus lapsos de memória são frequentes desde quando era casada com Tom, e foram o que levaram ao término do casamento. Pouco depois de recobrar os sentidos, Rachel descobre pelo noticiário que Megan desapareceu e passa a ser investigada pela polícia como suspeita do suposto crime, mas é incapaz de dizer onde estava e o que fez quando Megan desapareceu. O que se segue é a empreitada de Rachel em desvendar o que aconteceu durante seu último apagão e também de outros sofridos ao longo do casamento com Tom. Talvez a história funcione bem no livro, mas no roteiro e sob a direção de Tate Taylor ela adquire tons forçados, com uma atuação especialmente careteira e canastrona de Justin Theroux (que está ótimo em Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, ambos de David Lynch) e inúmeras reviravoltas, todas proporcionadas por recordações de Rachel do que realmente ocorreu durante seus vários apagões. Ou seja, ao invés de criar uma trama na qual as interações entre os personagens ou o desenvolvimento dos mesmos tenha algum valor, o espectador fica esperando Rachel lembrar-se como que milagrosamente o que ocorreu de apagão em apagão, até montar as peças do quebra-cabeças diante dela em um clímax previsível e insosso. O que também chama a atenção é como Rachel para de consumir litros de álcool de uma hora para a outra. Ela vai a uma reunião dos alcóolicos anônimos e pronto – está curada! Essa visão simplista de um problema grave que aflige milhões de pessoas serve para demonstrar a superficialidade com a qual o diretor trata os elementos do filme, que depois dos primeiros vinte minutos promissores logo se torna mais um thriller hollywoodiano absolutamente descartável.
Star (Zvezda, no original), da premiada diretora russa Anna Melykian (que assina o roteiro em parceria com Andrey Migachev), é um retrato notável da rússia contemporânea e de como seus valores foram engolidos totalmente pelo imperialismo cultural do consumismo americano e do capitalismo. Masha (Tinatin Dalakishvili) é uma bela jovem com pouco talento determinada a se tornar uma grande estrela do cinema. Convencida de que tem um corpo imperfeito, trabalha para pagar as cirugias plásticas que acredita serem absolutamente necessárias para que consiga bons papeis: orelhas, seios, pernas, lábios, nada escapa da ambição de ter o corpo "ideal" para conquistar a fama. Rita (Severija Janusauskaite) é uma socialite casada por interesse com um multimilonário e que tenta engravidar a qualquer custo, mas descobre estar sofrendo de uma rara doença terminal. Kostya (Pavel Tabakov) é o filho do marido de Rita, mas rejeita a própria posição social realizando pequenos furtos, ausentando-se da escola e mantendo uma relação de rancor com o pai e a madrasta. Por acasos do destino, as vidas destes três personagens se cruzam, junto com suas ambições e anseios, mas o futuro não parece guardar coisas boas para nenhum deles. Nem o gélido pai de Kostya, com toda sua fortuna, sai imune do redemoinho provocado pela união improvável da esposa e do filho com Masha. Além de ser um drama envolvente, com personagens bem desenvolvidos, cada qual percorrendo sua própria jornada meio sem rumo nem objetivos concretos de encontro ao próprio destino, vítimas do acaso e das próprias futilidades e escolhas, Star é, acima de tudo, uma crítica à corrupção dos valores na sociedade russa, dominada por roupas e bolsas de grife, referências a ícones culturais tipicamente americanos (Mickey Mouse aparece casualmente em mais de uma cena), e a busca do corpo perfeito idealizado e pela fama a qualquer custo. A crítica ao mercado de arte contemporânea também é pungente, quando, entediadas, Masha e Rita cobrem os corpos de tinta e os pressionam contra telas em branco, posteriormente conseguindo expô-los em uma galeria de arte, que os compra sob a condição de que rita apresente um atestado de que realmente morrerá em três meses. Mas talvez a cena mais icônica de Star seja a de Rita, desesperada, rezando o Pai-Nosso na cama de Masha. Ao levantar a cabeça, ao invés de deparar-se com um crucifixo, ela encara uma foto de Johnny Depp caracterizado de Jack Sparrow com os braços abertos na posição tradicional do messias - até mesmo os ícones religiosos foram substituídos pelos ícones da cultura pop americana. Muito poderia ser discutido sobre Star, mas isto estragaria a experiência do espectador, que deve assistir ao filme sabendo o mínimo possível da história para que possa ser surpreendido pelas inúmeras surpresas que o aguardam.
Sugar Mountain é o quinto longa-metragem do diretor australiano Richard Gray (seus filmes anteriores permanecem inéditos no Brasil), com história e roteiro de Abe Pogos. A premissa do filme é promissora, com a história de dois irmãos, Liam e Miles (Shane Coffey e Drew Roy, respectivamente) à beira da falência que, inspirados em casos reais de pessoas que receberam indenizações milionárias por acidentes ou venderam os direitos de suas histórias por muito dinheiro, chegando a mencionar Aaron Ralston, que inspirou o filme 127 Horas, de Danny Boyle, resolvem simular o desaparecimento de um deles nas montanhas de Sugar Mountain, no Alaska, para depois ganhar uma grana em cima do drama "verídico". No entanto, a mentira é planejada às pressas e de cara as coisas começam a dar errado, conforme a polícia começa a suspeitar dos irmãos e segredos antigos da pequena comunidade começam a vir à tona. Sugar Mountain sofre de um grande problema: a uniformidade que domina todas as cenas do filme. Uma cena romântica tem a mesma intensidade que a de uma surra na cadeia, ou seja, nenhuma. O filme é tão gelado quanto as montanhas que circundam a cidade, e é impossível despertar qualquer empatia pelos personagens no espectador, que assiste a tudo impassivo. Além disso, o roteiro extende-se demais além do plano elaborado pelos irmãos, culminando em uma série de reviravoltas que atingem o auge em uma revelação digna de uma novela mexicana. Com atuações inexpressivas, personagens nada cativantes e um roteiro arrastado, Sugar Mountain é mais um caso de uma boa ideia desperdiçada. Tanto pelos irmãos trapaceiros quanto pelo diretor.
Der Nachtmar (O Pesadelo, em alemão), escrito e dirigido pelo alemão Achim Bornhak, que assina o filme como AKIZ, foi premiado como melhor filme internacional de 2016 no Festival Internacional do Filme Fantástico de Fantaspoa, e mesmo que talvez não mereça ser considerado o melhor filme fantástico do ano, vale a pena ser conferido por ser uma obra que desafia a mente do espectador sem se preocupar em oferecer soluções simples ou explicações rasteiras para o drama psicológico sofrido pela personagem principal. Tina (Carolyn Genzkow, em uma ótima atuação), tem dezessete anos e frequenta com as amigas festas regadas a música eletrônica pesada e drogas. Certa noite, em uma festa em um local isolado, aparentemente sofrendo de uma bad trip causada por alguma droga, Tina vê uma criatura estranha e entra em pânico. Depois de um momento que alude diretamente à obra de David Lynch, Tina vê a criatura novamente em casa. À medida que seus encontros com a criatura se repetem, a sanidade de Tina passa a ser questionada por ela própria, por seus pais e por seu psiquiatra. Mas quando a fronteira entre delírio e realidade é transposta, Der Nachtmar torna-se cada vez mais misterioso e angustiante, à medida que Tina se aproxima de um colapso mental total. Com um clima reminiscente das obras O Inquilino e Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski, com o isolamento progressivo de Tina abrindo portas para o questionamento de seu estado mental e da validade de suas visões, Der Nachtmar pode ser interpretado de diversas maneiras, e este é o grande mérito do filme. Se aceito simplesmente pelo que se vê na tela, o filme deixa muitas perguntas em aberto e pode parecer pretensioso. Mas se o espectador mais engajado se detiver para explorar as possíveis representações do que é apresentado e o lado subjetivo dos acontecimentos dentro e fora da mente de Tina, o filme adquire camadas abertas à especulação e debates que certamente resultarão em teorias interessantes sobre do que o filme realmente se trata. O conselho dado antes do filme deve ser seguido à risca: assista-o no volume máximo, e se possível em um cinema, ou em um ambiente bem escuro. A trilha sonora agressiva, que pontua a tensão interior de Tina e também contrasta com as cenas mais contemplativas, e a edição estroboscópica em certos trechos são elementos fundamentais do filme e não devem de forma alguma serem relevados a segundo plano. Quanto menos se souber a respeito de Der Nachtmar antes de assisitir ao filme, mais saborosa será a experiência. Assista ao filme de mente aberta que as recompensas oferecidas compensarão as poucas falhas no roteiro, agradando tanto ao público de filmes fantásticos em geral quanto àqueles que gostam de explorar e desenvolver suas próprias teorias sobre o que foi visto.
O prolífico diretor japonês Kiyoshi Kurosawa (nenhuma relação com o mestre Akira Kurosawa), responsável por filmes aclamados como Retribution e Pulse, nos apresenta em Creepy, seu filme mais recente, os dois possíveis lados da moeda de um filme de suspense: o quanto a construção de um clima envolvente é importante e o quanto um filme promissor pode descambar para o fracasso total na segunda metade, depois que os principais mistérios já foram revelados e o que resta é a mais pura estupidez dos personagens e furos no roteiro maiores do que uma cratera deixada por um meteoro. O ex-detetive da polícia Takakura (Hidetoshi Nishijima) muda-se com a esposa, Yasuko (Yûko Takeuchi) para uma nova vizinhança depois de abandonar a força policial. Como especialista em psicologia criminal e sua experiência em investigar casos de serial killers, Takakura passa a fazer palestras sobre sua área de especialização em uma universidade local. Pouco depois de começar a se adaptar à nova vida, Takakura é procurado por um ex-colega da polícia, que o instiga a retomar a investigação de um caso não resolvido ocorrido anos antes no qual uma família inteira desapareceu, exceto por uma das filhas. Enquanto Takakura torna-se cada vez mais obcecado com a investigação do caso sem solução, Yasuko tenta fazer amizade com os novos vizinhos, apresentando-se a eles com presentes, aparentemente uma tradição japonesa. Uma vizinha rejeita o presente, e outro vizinho, o sr. Nishino (Teruyuki Kagawa), recebe-a com frieza. Mas Nishino reserva surpresas para Takakura e a esposa, com um comportamento que se alterna entre o amigável e o extremamente bizarro, e o casal passa a suspeitar que possa haver algo de errado com a família de Nishino. Até aí, a primeira metade do filme, o suspense é construído meticulosamente, um verdadeiro thriller psicológico no qual um presságio agourento toma conta do espectador. Kurosawa conduz com maestria o clima misterioso, devendo muito à excelente atuação de Kagawa. A construção lenta da primeira metade do filme, apresentando gradualmente elementos que o tornam cada vez mais angustiante e ameaçador, desaba completamente na segunda metade, e o que restam são apenas os destroços de uma estrutura que não se sustenta. A partir da segunda metade do filme, os furos no roteiro pipocam como catapora na pele de um doente, com erros grosseiros cometidos pela polícia em várias instâncias, decisões inexplicavelmente burras tomadas por vários personagens, situações que só se tornam possíveis ou pela incompetência da polícia ou pela estupidez dos personagens, em um esforço monumental de explicar o mistério elaborado tão cuidadosamente na primeira metade do filme. Creepy é realmente arrepiante enquanto o espectador ainda não sabe muito bem o que está acontecendo. Mas, uma vez que as primeiras revelações são feitas, o filme despenca em um precipício de furos e mais furos de roteiro e de atos estúpidos que comprometem totalmente tudo que foi feito antes, tornando o filme uma total perda de tempo e um insulto à inteligência do espectador. Ah, e eu mencionei os furos no roteiro e o quanto os personagens são burros?
Closet Monster (exibido no Brasil no Festival do Rio 2016), longa de estreia do canadense Stephen Dunn, que também assina o roteiro, recebeu diversos prêmios em festivais internacionais, tanto nos voltados para filmes LGBT quanto nos mais convencionais. A história de Closet Monster já foi contada inúmeras vezes, mas talvez não com o estilo de Dunn. O jovem Oscar (Connor Jessup), um jovem tímido e talentoso traumatizado com a separação dos pais na sua infância, sonha em estudar em Nova York para escapar da cidadezinha onde mora com o pai. Vivendo praticamente isolado do mundo em sua casa no alto de uma árvore no seu jardim para se ver livre do pai cada vez mais intolerante, seus únicos companheiros são a amiga Gemma (Sofia Banzhaf) e seu hamster Buffy, com quem conversa, troca confidências e de quem recebe conselhos, dublado por Isabella Rossellini. Desde pequeno, Oscar questiona sua orientação sexual e, totalmente inexperiente neste aspecto, acaba se apaixonando por Wilder (Aliocha Scheinder), um rapaz com quem trabalha em uma loja de materiais de construção, incerto se seus sentimentos são correspondidos devido ao comportamento ambíguo do colega. Closet Monster tem todos os elementos clássicos das histórias sobre amadurecimento, com ou sem temática gay. A única amiga com uma paixonite por Oscar, os conflitos com o pai, o sentimento de abandono por parte da mãe, experiências com drogas, a primeira paixão e a tentação e o medo da exploração da sexualidade que desabrocha. Closet Monster é filmado com muito estilo e interpretado com honestidade pelos jovens atores, e o tom irônico que Isabella Rossellini atribui a Buffy é um tiro certeiro. No entanto, apesar da tentativa de Dunn de incrementar o filme com referências a David Cronenberg, incluindo elementos que beiram o fantástico, no final das contas é apenas mais um filme sobre amadurecimento, abordando a temática do questionamento da orientação sexual de Oscar com sensibilidade, mas sem originalidade. Closet Monster acaba sendo apenas mais um filme como tantos outros sobre os conflitos da adolescência, sem acrescentar nada de original ao tema. Ele pode agradar um certo nicho pela temática LGBT, sem levantar bandeiras, mas o filme teria o mesmo efeito se o personagem não questionasse a própria orientação sexual. Stephen Dunn é um diretor promissor e talentoso, quanto a isso não há dúvidas. Mas vamos aguardar por seu próximo filme para ver se a promessa apresentada em Closet Monster se concretizará de modo mais satisfatório.
Precipícios d’Alma (Sudden Fear, no título original) é um suspense elaborado dirigido pelo prolífico David Miller (Sua Última Façanha, Gentil Tirano), com roteiro de Lenore Coffee e Robert Smith, baseado no romance de Edna Shery. A famosa e rica dramaturga Myra Hudson (Joan Crawford, indicada ao Oscar de melhor atriz pelo papel), herdeira de uma grande fortuna deixada pelo pai, apaixona-se por um jovem ator desconhecido, Lester Blaine (Jack Palance, também indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante), durante uma viagem de trem. Em pouco tempo, Myra e Lester se casam e ela apresenta a ele uma vida até então desconhecida, repleta de glamor, luxo e grandes festas. Myra, bem mais velha do que Lester, está perdidamente apaixonada pelo marido, mas ele tem planos sinistros com a amante para matar Myra e ficar com sua fortuna. O que ele não contava era que Myra descobrisse suas intenções e elaborasse o que considerava um plano perfeito para se livrar de seus potenciais algozes. Joan Crawford está no auge de sua forma, com uma atuação magistral, passando de uma Myra totalmente apaixonada para uma mulher forte protegendo a própria vida. Seu desepenho é marcado pelas nuances e pela contenção evidente dos sentimentos perturbadores e conflitantes de Myra. Jack Palance está igualmente arrebatador, com um ar de facínora cínico que prova a competência de seu personagem como ator simulando com perfeição estar também apaixonado por Myra. E é justamente a interação dos dois que eleva Precipícios d’Alma acima da média dos filmes policiais da época. Em Precipícios d’Alma, Miller tentou emular um clima de suspense Hitchcockiano, mas foi prejudicado pelo roteiro que não carece de furos e poderia se beneficiar de um pouco mais de objetividade e simplicidade. O desenrolar da trama, que fica cada vez mais complicada e rocambolesca, sem falar em certos pontos que beiram o inverossímil, também carece de uma certa sutileza, mas não chega a comprometer o filme. Mesmo não sendo tão bem sucedido quanto o grande mestre, Miller realizou uma obra que, mesmo mais de sessenta anos depois de realizada, permanece suficientemente tensa para manter o espectador apreensivo e envolvido. Mesmo não sendo um clássico absoluto, Precipícios d’Alma é uma obra bastante representativa dos filmes do gênero policial da época em que foi realizada, e um de seus pontos fortes é que não há um mistério em torno de quem é o mocinho e quem é o vilão: as intenções dos personagens tornam-se claras em pouco tempo, mas isso não reduz em nada o suspense e a tensão para o espectador. E as atuações memoráveis de Joan Crawford e Jack Palance já valem, como se diria na época, o preço do ingresso.
O texano Tom Ford, que dirigiu e escreveu o excelente drama O Direito de Amar (2009), o qual rendeu inúmeros prêmios de melhor ator para o desempenho magistral de Colin Firth, além de receber diversos prêmios internacionais, voltou a chamar a atenção do público e da crítica em 2016 com o instigante Animais Noturnos, também escrito e dirigido por ele. Protagonizado por Amy Adams (A Chegada, Trapaça e também a eterna Giselle de Encantada, da Disney) em uma atuação intimista e Jake Gyllenhaal (Donnie Darko, O Abutre, Demolition), Animais Noturnos é uma experiência cinematográfica ousada que, mesmo não sendo totalmente bem sucedida no empenho de Ford de realizar um filme em três camadas, merece ser conferida pelas ótimas atuações (Michael Shannon rouba a cena no papel do policial Bobby Andes) e sua combinação de drama romântico e thriller. Susan (Adams) é dona de uma galeria de arte e vive em um casamento infeliz e sem afeto um empresário rico e distante. Certa manhã, ela recebe o manuscrito de um romace escrito pelo ex-marido, Edward, a quem abandonou quase vinte anos antes e com quem perdeu todo contato desde então. Com o marido fora de casa em uma viagem de negócios e enfrentando noites insones e uma crise de depressão, Susan começa a ler o romance de Edward – intitulado Animais Noturnos – o qual a perturba profundamente e a faz refletir sobre sua própria história com Edward e os atos e resoluções que a levaram a abandoná-lo. A partir daí, o filme se passa em três camadas distintas: o romance escrito por Edward, cujos personagens principais são obviamente inspirados nele prórprio e em Susan, o período insone durante o qual Susan lê o livro e reflete sobre seu passado, e flashbacks que narram o romance vivido entre Susan e Edward, vinte anos antes. O livro de Edward é o elemento central de Animais Noturnos, e por si só já seria um ótimo filme no melhor estilo dos irmãos Cohen ou de Sam Peckinpah, lembrando também Amargo Pesadelo, de John Boorman. Michael Shannon brilha no papel do policial fictício Bobby Andes e é o grande trunfo do filme. Ford ousou no roteiro, visando criar conexões subjetivas entre a história de vida de Susan e o livro de Edward, o qual ela interpreta como uma ameaça ou uma forma de vingança literária servida fria vinte anos depois. O elemento de vingança em potencial é explicitado quando Susan fica perturbada diante de um quadro na sua galeria que ostenta apenas a palavra vingança em letras garrafais. No entanto, o livro é tão mais envolvente do que os dramas de Susan que estes parecem mais interlúdios para preservar o suspense do que elementos narrativos legítimos que, se contados independentente do livro, não passariam de um drama romântico água com açúcar. No final das contas, apesar de suas muitas falhas e de um roteiro pretensioso, Animais Noturnos satisfaz pelas boas atuações e direção firme. Mas o filme não perderia muito se contasse somente a história do livro de Edward e assumisse de uma vez o thriller que realmente é.
Sing: Quem Canta Seus Males Espanta, dirigido por Christophe Lourdelet e Garth Jennings (que também assina o roteiro), é uma animação que foge dos padrões aventurescos e explosivos de produtoras como Pixar e Dreamworks, tocando espectadores de todas idades com o carisma de seus personagens, as inúmeras referências musicais e cinematográficas e um roteiro bem construído e dramático, sem apelar para o sentimentalismo ou com a velha intenção dos desenhos animados de transmitir uma lição de moral no final da história. O koala Buster Moon é um apaixonado pelo palco desde a infância e dirige seu próprio teatro grandioso que se encontra em decadência total. Pressionado por seus credores, Buster tem uma ideia que considera brilhante: realizar o maior show de talentos jamais visto. Por um engano de sua secretária, a hilária iguana idosa e cegueta Miss Crawly, o prêmio para o vencedor é mudado de mil dólares para cem mil dólares, atraindo uma multidão de candidatos bizarros desejando o grande prêmio. Depois da seleção inicial dos candidatos que participarão do show, uma sequência divertidíssima de animais das espécies mais variadas apresentando seus números no mínimo estranhos, Buster Moon decide escolher cinco aspirantes a artistas para se apresentarem no grande show: uma porco-espinho punk, uma porca cantora com vinte e cinco filhos, um ratinho arrogante que toca jazz nas ruas, um gorila pianista e cantor envolvido com o mundo do crime e um grupo de gansos dançantes. Quando o grupo de gansos se separa por divergências criativas, Buster Moon se vê com um candidato a menos e aposta na tímida elefanta Meena, que tem uma voz maravilhosa mas morre de medo de cantar em público. O que se segue são os dramas pessoais de cada candidato, cada um com sua personalidade bem definida, todas muito bem trabalhadas no roteiro, alternados com os ensaios para o show de talentos. Em meio a isso, Buster Moon luta para conseguir financiamento para o prêmio anunciado, recorrendo à antiga diva do teatro Nana, uma clara referência a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. As referências musicais de Sing são das mais variadas, e formam uma espécie de jogo de adivinhação ao longo do filme, com trechos de clássicos de David Bowie com Queen, Leonard Cohen, John Coltrane, Elton John, Gipsy Kings e muitos outros artistas pop famosos, incluindo uma citação ao onipresente Garota de Ipanema e um trecho da célebre trilha de Ennio Morricone para o clássico Era Uma Vez na América, de Sergio Leone. A apresentação do ratinho jazzista cantando My Way, que se tornou um clássico na voz de Frank Sinatra, é um dos pontos altos do filme. A animação também merece destaque, pois todos os personagens são extremamente expressivos e tanto os movimentos de câmera quanto os enquadramentos ousados atribuem ao filme um ar contemporâneo que foge do tradicionalismo da maioria das animações atuais. No final das contas, Sing realmente pode ser considerado um filme para toda a família, satisfazendo desde os mais pequeninos aos adultos que se deliciam com as referências musicais e com os dramas envolventes passados por cada personagem, tratados com leveza e humor. Sing talvez seja o filme mais feel-good do ano e pode ser resumido em uma única palavra: cativante.
A Catedral é uma colaboração do lendário diretor italiano Dario Argento (Suspiria, Phantasm), autor do roteiro original – existe uma versão dublada em inglês com diálogos escritos por Nick Alexander – com o também italiano Michele Soavi, que assina a direção deste conto de horror. No século XII, um grupo de cavaleiros templários massacra uma aldeia inteira de hereges pacíficos, enterrando todas vítimas juntas em uma vala comum. Anos depois, uma catedral gótica é construída sobre o local onde os mortos foram enterrados, com o objetivo de manter o mal preso sob a casa de Deus. Oitocentos anos depois, no século XX, a catedral está ruindo e sendo restaurada por Lisa (Barbara Cupisti), quando o jovem Evan (Tomas Arana) assume o cargo de novo bibliotecário da catedral. Lisa encontra um pergaminho misterioso no subsolo labiríntico da catedral, o qual desperta a curiosidade de Evan, que se determina prontamente a decifrá-lo – o que leva a uma descoberta que ameaça despertar um mal demoníaco adormecido há séculos. Visualmente, A Catedral é fascinante. Tanto a fotografia quanto o trabalho de câmera sustentam um clima de tensão crescente durante a primeira metade do filme, enquanto Evan começa a sofrer os malefícios de ter decifrado o pergaminho e demonstra sinais de ter sido possuído por algo estranho e maligno. A segunda parte do filme coloca um grupo variado de pessoas presas dentro da catedral, que se lacra automaticamente devido a um dispositivo de segurança instalado pelo arquiteto que a projetou. O grupo é heterogêneo: um grupo de estudantes com sua professora, um casal de motociclistas, uma dupla de velhinhos comemorando suas bodas, os padres e o bispo da catedral, Evan, Lisa e um grupo realizando uma sessão de fotografia de moda. Aos poucos, todos sucumbem ao mal despertado por Evan, gerando um caos de violência e mortes. É justamente na segunda parte que o filme perde todo seu encanto. Enquanto na primeira metade o clima de tensão e mistério é cuidadosamente construído, depois que o grupo se encontra preso dentro da catedral o que sobra é um banho de sangue e uma série de visões de demônios (alguns dos quais beiram o ridículo), à medida que cada pessoa na catedral é possuída. O que começa como um exercício de tensão, mistério e e recursos de cinematografia instigantes termina como qualquer filme de terror barato: mortes e mais mortes pretensamente “criativas” e um final previsível e decepcionante. Dario Argento realizou duas grandes obras em sua carreira, nos idos da década de 1970: Suspiria e Phantasm. Depois disso, deitou nos louros de suas realizações e não conseguiu realizar mais nada que, nem de longe, se aproximasse da criatividade e riqueza visual destas duas obras. A Catedral não é uma exceção. O filme vale a pena até o momento em que as pessoas ficam presas dentro da catedral – depois, o espectador pode muito bem desistir do filme, que segue somente ladeira abaixo.
O diretor canadense Jean-Marc Vallée conquistou aclamação do público e da crítica com os filmes O Clube de Compra de Dallas, que rendeu o oscar de melhor ator a Matthew McConaughey, e Livre, que rendeu uma indicação ao Oscar para Reese Witherspoon. Seu filme mais recente, Demolition, com roteiro de Brian Sype, explora o mesmo tema dos dois filmes citados acima: personagens que sofrem um duro golpe que muda suas vidas e descobrem uma maneira de enfrentar a situação, cada um à sua própria maneira. Em Demolition, o financista Davis (Gyllenhaall), perde a esposa em um acidente de carro, no qual também estava envolvido, mas sobrevive sem um arranhão. Habituado com uma vida estéril, na qual lida com elementos abstratos no trabalho (números em computadores que representam dinheiro) na firma do sogro Phil (Cooper) e com um casamento sem amor, Davis reage de modo aparentemente impassivo à perda da esposa. Ao ter um problema com uma máquina de doces no hospital, ele resolve escrever uma carta para a empresa responsável pelas máquinas de vendas, na qual acaba abrindo seu coração impulsivamente. A carta é seguida por outra, e depois por mais outra. Certa noite, às duas da madrugada, ele recebe um telefonema de Karen (Watts), responsável pelo serviço de atendimento aos clientes da empresa, que diz ter ficado emocionada com as cartas cada vez mais reveladoras e íntimas de Davis, dando início a uma relação reminiscente do maravilhoso filme Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, de David Hugh Jones. Em pouco tempo, a comunicação entre Davis e Karen torna-se mais pessoal e eles resolvem marcar um encontro, o qual forja uma amizade entre duas pessoas que se identificam por viverem em um mundo sem amor. Davis, sempre contido enquanto casado, aos poucos começa a demonstrar um comportamento errático e uma compulsão por destruir coisas: uma geladeira com defeito, seu computador no escritório, o banheiro da firma onde trabalha, chegando até a pagar para trabalhar na demolição de uma casa. O impulso demolidor de Davis culmina na destruição total de sua própria casa, na companhia do filho rebelde de Karen, com quem forja uma aliança estranha sustentada pela honestidade de Davis com o jovem adolescente. Em certo ponto, no começo do filme, Davis reflete que tudo está se transformando em uma grande metáfora. Talvez seja essa a intenção de Vallée ao apresentar o comportamento destrutivo de Davis. Talvez Davis precise destruir seu passado para criar um novo futuro. Talvez seu ímpeto demolidor seja uma forma de externalizar suas emoções tão reprimidas durante tantos anos e de finalmente voltar a sentir algo. Mas o filme sofre de um grande problema: o relacionamento entre Davis e Karen, que deveria ser o ponto central do filme, é muito mal explorado. Karen chega a simplesmente desaparecer do filme durante quase meia-hora, enquanto Davis se envolve cada vez mais com o filho dela. É como se houvesse algo na cabeça do roteirista que ele não conseguiu transmitir apropriadamente para o texto, resultando em um filme desigual que, inevitavelmente, descamba para o melodrama apelativo. Vallée é realmente um grande diretor de atores, e as atuações de Jake Gyllenhaal, Naomi Watts e Chris Cooper são notáveis. A edição do filme é criativa e ousada, e merece ser destacada. Contudo, no final das contas, Demolition acaba fracassando onde os outros filmes de Vallée acertam em cheio. As motivações de Davis nunca ficam claras, a relação com Kate é mal explorada e a conclusão é frouxa e insatisfatória. Vallée já provou seu valor como diretor, mas deveria ter escolhido um roteiro melhor para filmar.
Otis (o estreante Bostin Christopher) é um gigante de quarenta anos com mais de dois metros de altura e 150 quilos, obcecado pelas coisas que nunca obteve na juventude: ser a estrela do time de futebol americano da escola e namorar a tão cobiçada cheerleader. Levando uma vida frustrante como entregador de pizza e sem qualquer objetivo, Otis sequestra jovens colegiais e as tranca em um quarto construído para elas em seu porão, onde, aos poucos, tenta convencê-las a aceitá-lo como seu namorado de escola, punindo-as quando se recusam a entrar na brincadeira. As tentativas frustradas de Otis com as garotas levaram-no a assassinar cinco “pretendentes”, espalhando partes de seus corpos por vários locais da cidade. Mas quando a sexta presa de Otis, RIley (Ashley Johnson) consegue escapar e revela à família onde Otis mora, os pais e o irmãos dela resolvem fazer justiça com as próprias mãos, depois de uma relação de atrito com o arrogante e inepto agente do FBI que conduzia a investigação do desparecimento de Riley. O filme do diretor Tony Krantz (que, surpreendentemente, produziu Mulholland Drive, de David Lynch), escrito por Erik Jendresen e Thomas Schnauz, é uma tentativa mal sucedida de criar uma obra de humor negro que lida com alguns clichês dos filmes de suspense americanos: a família semi-disfuncional, os ideais e aspirações dos colegiais, o serial killer entregador de pizza e a ineptude dos agentes da lei em obter qualquer pista sobre o suspeito. Infelizmente, Otis não satisfaz nem como um filme de suspense, tampouco como uma comédia mórbida. Sabe-se muito pouco a respeito dos personagens para que o espectador desenvolva o mínimo interesse por eles, seja pelo assassino ou pela vítima e sua família. Os diálogos são tiros que sempre erram o alvo e, no máximo, geram sorrisos amarelos ao invés de risadas. Otis não é um filme engraçado, nem suficientemente esquisito para compensar ficar 100 minutos diante da tela esperando que algo realmente interessante ou divertido aconteça. O único ponto forte do filme fica por conta do ator Jere Burns, que interpreta o asqueroso criminalista do FBI Ralph Hotchkiss, um narcisista insensível e completamente inepto que se considera um grande detetive. As melhores cenas do filme ficam por conta dele, mas não chegam a compensar as limitações cômicas do roteiro. Otis pode agradar uma faixa de público menos exigente e que se satisfaça com sua mistura de sadismo light e humor negro. Mas para um público que procura algo além de tentativas de piadas como “vamos cortar os dedos dele, bater no liquidificador e obrigá-lo a beber tudo”, com certeza Otis será frustrante.
Kill List, do diretor inglês Ben Wheatley, que escreveu o roteiro em parceria com Amy Jump, é um filme único. Jay (Neil Maskell) é um assassino de aluguel que está há oito meses sem trabalhar depois de uma misteriosa missão frustrada em Kiev. Com seu casamento com a sueca Shel (MyAnna Buring) ruindo aos poucos devido à resistência de Jay em aceitar novos trabalhos, gerando problemas financeiros para a família, Jay acaba sendo convencido por seu parceiro e amigo Gal (Michael Smiley) a aceitar um trabalho supostamente simples: uma lista com três homens que eles devem matar. No entanto, ao investigarem seu segundo alvo, eles descobrem que podem estar envolvidos em algo muito mais misterioso e sombrio, uma descoberta cujas consequências podem ser catastróficas. Quanto menos se souber a respeito de Kill List, mais intensa e satisfatória será a experiência de assistir o filme. Ben Wheatley dirige o filme com uma precisão meticulosa, sustentada por um roteiro que oferece poucas pistas do que está realmente ocorrendo e uma edição ousada, gerando um clima misterioso, aflitivo e intrigante à medida que Jay e Gal mergulham cada vez mais fundo em uma espiral de loucura, violência e suspense. Kill List não é propriamente um filme de terror no sentido tradicional. O filme poderia muito bem ser uma obra de Ken Loach pervertida e subvertida milimetricamente em algo profundamente aterrador e perturbador. Com elementos que remetem tanto ao ocultismo do clássico “O Homem de Palha” (1973), de Robin Hardy, quanto ao drama familiar realista de Loach, Kill List é um híbrido hipnótico destes dois gêneros, algo aparentemente improvável mas cujo resultado é extremamente bem sucedido. Apesar de deixar muitas perguntas no ar, o final do filme deixa um gosto amargo na garganta que compensa plenamente o mistério progressivamente mais insondável de certos aspectos do roteiro – uma intenção clara do diretor e não uma falha na narrativa. As interpretações do trio principal formado por Jay, Gal e Shel são precisas – alternadamente contidas e intensas, em perfeito acordo com cada momento da história – e constituem o coração do filme. Como parte dos diálogos é improvisada pelos atores, o tom realista do filme é ainda mais reforçado, chocando o espectador quando o terror começa a tomar conta e a fronteira entre a sanidade e a loucura fica borrada. Ao ser assistido pela terceira vez, Kill List tornou-se ainda mais fascinante e intrigante, uma prova de que a ousadia de Ben Wheatley em fundir estilos aparentemente tão incompatíveis foi mais do que bem sucedida: o diretor criou uma pequena obra-prima do suspense cuja originalidade raramente é igualada.
Scum, do diretor inglês Alan Clarke e com roteiro de Roy Minton, causou polêmica quando foi lançado na Inglaterra em 1979, por retratar brutalmente a vida em um borstal, um centro de detenção de infratores e criminosos com até 21 anos de idade. O filme começa centrado em Carlin (Ray Winstone, um dos atores ingleses mais prolíficos e conhecidos da atualidade), um jovem enviado para o centro de detenção por ter agredido um oficial em outra instituição na qual estava encarcerado. De cara, Carlin percebe que o borstal para onde foi enviado é diferente da outra instituição, sendo agredido verbal e fisicamente pelos diretores do borstal logo em sua primeira entrevista ao chegar lá. O tratamento brutal dos oficiais e coordenadores inclui uma espécie de bullying constante e intenso e rigorosas punições corporais, diante das quais os internos se vêem completamente indefesos e sem direito de resposta, comportamento que é refletido pelos jovens, que se enfrentam em brigas violentas constantes enquanto fazem de tudo para não chamar a atenção dos oficiais sádicos e absolutamente insensíveis. Scum critica o tratamento dado aos jovens delinquentes nos borstals na década de 1970, onde não há qualquer intenção de educar, reabilitar ou promover a reflexão dos internos, que são tratados como lixo (daí o título original) e reagem em explosões de fúria, agressões, estupros e suicídios. O grande problema de Scum é que, a partir da metade do filme, o personagem de Carlin é praticamente esquecido, e o que segue é uma sequência de cenas que estão mais para esquetes isolados cujo tema central são os maus-tratos constantes dos internos, que são enviados à solitária pela mínima infração, as quais muitas vezes não foram cometidas – ou seja, os infratores são vítimas constantes do sadismo dos coordenadores da instituição. O tratamento desumano dos internos e a violência praticada por eles são retratados com eficiência, mas o filme carece de um roteiro coeso que proporcione um fio narrativo atraente, resultando em um punhado de cenas sem conexão entre si e em uma exploração rasa dos dramas vividos pelos internos, sem qualquer insight psicológico por trás das motivações tanto dos coordenadores do Borstal quanto dos jovens delinquentes. O filme pode ter chocado o público e o establishment inglês na época do lançamento mas, quase quarenta anos depois de sua realização, apesar de permanecer impactante em sua brutalidade, não resistiu ao tempo por carecer de uma narrativa mais coesa.
The Autopsy of Jane Doe, o novo longa do diretor norueguês Andre Ovredal (O Caçador de Troll, 2010), conta a história de Tommy Tilden (Brian Cox) e Austin Tilden (Emile Hirsch), pai e filho que trabalham como médicos legistas em uma pequena cidade no interior da VIrginia, nos Estados Unidos. Quando recebem um corpo intacto de uma bela jovem com a tarefa de determinar a causa da morte até o dia seguinte, os dois começam a perceber que o cadáver da não identificada Jane Doe (nome genérico dado nos Estados Unidos a pessoas e cadáveres não identificados do sexo feminino, o equivalente a John Doe para os do sexo masculino) representa um mistério muito maior do que qualquer caso que já analisaram. A premissa inicial do filme é interessante, com cada etapa da autópsia de Jane Doe – representadas com uma riqueza gráfica de detalhes que podem incomodar os de estômago mais fraco – oferecendo mais um elemento de um enigma misterioso, como um quebra-cabeças que, aos poucos, vai fascinando a dupla de legistas. No entanto, depois de alguns minutos intrigantes no decorrer da autópsia, The Autopsy of Jane Doe revela-se apenas mais um filme de terror repleto de clichês, com um roteiro sem sentido e uma explicação final nada satisfatória. A interpretação de Emile Hirsch, um dos grandes talentos de sua geração, é no mínimo sofrível, e é difícil imaginar por que motivo o ator aceitou este papel em um filme tão previsível e sem originalidade. Brian Cox também está inexpressivo no papel de pai e mentor de Austin – de modo que o filme, baseado exclusivamente na dupla de atores, é interpretado como se os eles não estivessem minimamente interessados em seus personagens ou na narrativa pobre. Não há muito mais a ser dito sobre The Autopsy of Jane Doe. Sustos fáceis e previsíveis, situações totalmente injustificadas e inexplicadas e uma conclusão decepcionante fazem deste filme apenas mais um da safra deprimente de filmes de terror que tem infestado as telas nos últimos anos.
No documentário S&MAN (leia-se Sandman), o diretor e roteirista J.T. Petty mergulha no universo dos filmes de terror underground em uma exploração do mito urbano dos snuff films (filmes com imagens reais de tortura e assassinatos produzidos visando lucro) e dos produtores e realizadores de filmes que adotam a estética snuff. Uma das limitações do filme de Petty é que ele entrevista apenas três realizadores de filmes pseudo-snuff: Fred Vogel (responsável pela infame trilogia August Underground), Bill Zebub (diretor de 45 filmes, a maioria pseudo-snuff) e Eric Rost (também conhecido como Eric Marcisak, produtor e diretor por trás da famosa série underground S&Man, na qual ele filma escondido mulheres durante semanas antes de abordá-las com a proposta para que aceitem ser mortas em seus filmes.) O filme também apresenta entrevistas com psicólogos e psiquiatras forenses, através das quais Petty explora a ligação entre o voyeurismo e o interesse do público por filmes extremamente violentos e explícitos que fazem o máximo para parecerem reais. Apresentando clipes curtos da série August Underground, uma trilogia absolutamente brutal, demente, pervertida e sádica, verdadeiramente difícil de assistir até mesmo para os maiores entusiastas dos filmes de horror, que faz com que os torture porns comerciais de Eli Roth e da série Jogos Mortais pareçam contos de fadas, trechos longos de vários episódios da série S&Man, cada vez mais realistas, e passagens de vários filmes de Bill Zebub, incluindo a filmagem de uma cena de uma de suas produções, Petty busca econtrar a motivação por trás dos realizadores destes filmes, mas as respostas são pouco satisfatórias. Tanto Fred Vogel quanto Bill Zebub e Eric Rost tem dificuldades em justificar as motivações por trás de suas produções. Eles não demonstram qualquer ambição artística, tampouco visam transmitir qualquer mensagem: seus filmes são colagens de sequências sem roteiro de violência, estupros, mutilações, torturas e assassinatos, alguns mais realistas do que outros, mas que atendem a um público específico, sedento por este tipo de material. Os insights proporcionados pelos psicólogos são pouco iluminadores, parecendo teóricos demais, sem se aprofundar na mente dos realizadores e do público de tais filmes. Mas talvez a maior falha de S&Man seja a falta de entrevistas com os fãs deste gênero extremo de cinema, as quais poderiam trazer à luz o porquê de tanto interesse pelo gênero pseudo-snuff e pela busca de experiências visuais cada vez mais próximas da realidade. Em 2008, Paul von Stoetzel dirigiu “Snuff: A Documentary About Killing on Camera”, que se aprofunda muito mais no universo snuff, com entrevistas muito mais esclarecedoras que, por si só, já são aterradoras, resultando em um filme muito mais bem sucedido. Para fãs hardcore deste gênero mais extremo de horror, S&Man pode satisfazer parte de sua curiosidade, mas o filme poupa demais o espectador, exibindo poucas cenas dos filmes citados – se bem que algumas ainda são perturbadoras. Para sentir na pele a experiência proporcionada por tais filmes, é mais recomendado assitir ao produto original, principalmente a trilogia August Underground – isso é, se você conseguir suportar mais do que alguns minutos.
Capitão Fantástico, o segundo longa do diretor americano Matt Ross, que também assina o roteiro, conta a história de uma família peculiar. O casal Ben (Viggo Mortensen) e Leslie (Trin Miller), criam seus seis filhos em uma propriedade isolada no meio de uma floresta no noroeste dos Estados Unidos. Rejeitando todas as normas e convenções da sociedade americana, Ben e Leslie adotam uma educação que combina um rigor quase militar, aprendizado de sobrevivência na floresta, caça de animais selvagens e exercícios de preparação e resistência física, concentrando-se também em cuidar da educação dos filhos através da leitura de livros, variando de clássicos da literatura à física quântica, visando estimular o pensamento crítico nas crianças. Quando Leslie é internada em um hospital devido a um caso de depresssão profunda e se suicida depois de três meses, Ben embarca em uma jornada através do país para comparecer ao funeral católico providenciado pela família de Leslie e realizar o último desejo da esposa, que era adepta da filosofia budista: cremar seu corpo e jogar suas cinzas em uma privada Apesar de estimular o pensamento crítico nos filhos, Ben parece ser incapaz de realizar qualquer autocrítica e perceber que seu ponto de vista e atitudes em relação à criação dos filhos é tão fanática e extremista quanto as religiões e o estilo de vida que tanto repudia. Em sua obsessão, Ben torna os filhos absolutamente incapazes de lidar com o mundo real, permanecendo inflexível mesmo quando a eficiência de seus métodos é colocada à prova durante a jornada rumo ao velório da esposa. Algumas questões surgem na cabeça do espectador: Ben cria os filhos desta maneira para protegê-los e educá-los de acordo com sus filosofia de vida ou, pelo extremismo de seu método, acaba abusando das crianças com as limitações e todo o rigor que impõe a elas? Esta questão não é explorada no filme, que infelizmente se limita a uma série de situações que se alternam entre exemplos da peculiaridade da família de Ben com momentos constrangedores quando as crianças não conseguem compreender o mundo real. Uma cena que contradiz particularmente a moral por trás dos ensinamentos de Ben é quando ele simula um ataque cardíaco em um supermercado para que os filhos possam roubar comida e fugir sem pagar. É difícil aceitar que isso se adeque à filosofia que o casal tenta transmitir aos filhos. A interpretação de Mortensen, um ator geralmente consistente e até mesmo sutil, é monocórdica e sem vida. A incapacidade de Ben de demonstrar afeto pelos filhos só reforça a visão de que ele os trata mais como cobaias do que como frutos de seu próprio sangue. Depois de um final que apela para o sentimentalismo barato, o que fica é a mensagem budista que Leslie, adepta desta filosofia oriental, deveria ter seguido desde o começo: que o melhor caminho a seguir é o caminho do meio.
Les Blessures Assassines (exibido em festivais no Brasil sob o título “O Caso das Irmãs Assassinas”), do diretor francês Jean-Pierre Denis, autor do roteiro baseado no livro de Paulette Houdyer, conta o caso real do famoso crime cometido pelas irmãs Papin, que mataram sua patroa e a filha na França na década de 1930. Christine Papin (Sylvie Testud) foi criada com a irmã Emilia em um orfanato administrado por freiras, rejeitadas pela mãe e pela tia. Léa, a irmã mais nova e a favorita da mãe, segue vivendo com a mãe enquanto estuda em uma escola católica. Emilia resolve seguir a carreira sacerdotal e seus laços com Christine se desfazem aos poucos, o que leva Christine a dedicar todo seu amor à caçula Léa, a quem visita regularmente, apesar do relacionamento conflituoso que mantém com a mãe. Christine trabalha como criada em várias residências de famílias ricas, mas sua insubordinação e aparente instabilidade emocional resultam em demissões sucessivas. Ela consegue um emprego em uma casa junto com Léa, que demonstra um interesse incestuoso pela irmã mais velha. Depois de serem demitidas mais uma vez, Christine finalmente consegue encontrar uma residência onde pode trabalhar novamente com Léa, para a felicidade de ambas. No entanto, Christine parece cada vez mais insubordinada e os anseios incestuosos de Léa se intensificam, até que Christine cede e as duas iniciam um romance secreto em seu pequeno sótão na casa onde trabalham. Cada vez mais obcecada pela irmã e insatisfeita com as condições de trabalho e com o tratamento recebido pelos patrões, Christine acaba perdendo o controle e, em uma explosão de raiva, mata brutalmente a patroa e sua filha. O filme de Jean-Pierre Denis tenta retratar o declínio psicológico de Christine, justificando-o com a infância no orfanato, a rejeição da mãe e da tia e os maus-tratos dos patrões. No entanto, ele falha por não se aprofundar no perfil psicológico de Christine – é impossível imaginar o que se passa na cabeça dela, de modo que, quando comete os assassinatos, o ato parece totalmente gratuito e impulsivo, enquanto fica subtendido que, na verdade, a explosão de violência de Christine é uma consequência do acúmulo de frustrações em sua vida. A atuação de Sylvie Testud é o ponto alto do filme, mas sua decadência psicológica não é bem explorada pelo roteiro, apesar do empenho da atriz em se mostrar cada vez mais atormentada e sofrida. No final das contas, Les Blessures Assassines não é bem sucedido como uma exploração psicológica do que motivou o crime brutal cometido por Christine, fruto de um roteiro que poderia ser mais coerente e subjetivo – uma boa oportunidade de explorar a mente de Christine que, infelizemente, acaba desperdiçada.
Em 1975, o lançamento de Tubarão, dirigido por Steven Spielberg e baseado no livro de Peter Benchley, inaugurou a era dos blockbusters. O filme atraiu multidões aos cinemas em todo o mundo, apavorando-as com o tubarão branco que marcou a história do cinema. A história do filme é conhecida: um tubarão branco gigantesco começa a matar banhistas no balneário da ilha de Amity. O novo chefe de polícia da cidade, Brody (Roy Scheider), decide interditar as praias até que o tubarão seja capturado, mas efrenta a resistência do prefeito da cidade, preocupado com a queda na receita do local, que depende dos banhistas que estão prestes a chegar no balneário para o feriado de quatro de julho. Depois de mais ataques, o prefeito se convence da necessidade de capturar o tubarão e contrata os serviços do lobo do mar Quint (Robert Shaw), experiente em caçar tubarões, e do biólogo marinho Matt Hopper (Richard Dreyfuss), especialista em tubarões, que se juntam a Brody. O trio então embarca em uma viagem de encontro ao monstro, determinados a matá-lo a qualquer custo. Em Tubarão, Spielberg executa com maestria um verdadeiro exercício de tensão, a qual se acumula até o quase insuportável, mesmo sem mostrar o tubarão durante a primeira hora do filme. A eficiência em atiçar a imaginação do espectador resulta em uma experiência muito mais aterrorizante e tensa do que a proporcionada pelos tantos torture porns de hoje que, com sua profusão de cenas explícitas, não deixam nenhum espaço para o medo do desconhecido dominar o espectador. No maravilhoso filme “The Pervert’s Guide to Ideology”, de Sophie Fiennes, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek oferece uma explicação para o significado de Tubarão, a qual justifica o sucesso enorme do filme: Todos sentimos medo de algo, e nossos medos são os mais diversos. Medo de catástrofes naturais, medo de imigrantes, medo de sermos vítimas de crimes, medo das grandes corporações, que podem fazer o que quiserem, e tantos outros. O grande trunfo do filme foi unificar todos estes medos em um único medo: o medo do tubarão, transformando temores abstratos em um medo concreto, real e palpável, comum a todos os seres humanos. Afinal de contas, quem não tem medo de tubarão? Zizek argumenta que esta mesma técnica foi aplicada pelo regime nazista na Alemanha na década de 1930, concentrando todos os medos da população alemã em um único inimigo em comum, os judeus, resultando na tragédia do Holocausto. Uma outra interpretação do filme vem de Fidel Castro, que era fã de Tubarão: o tubarão representaria o sistema capitalista, que devora e engole os cidadãos impiedosamente, triturando-os como uma máquina de moer carne. Seja qual for sua interpretação do filme, Tubarão, mesmo quarenta anos depois de sua realização, permanece um dos maiores feitos de Spielberg e merece seu lugar na história do cinema.
Buster Keaton, ao lado de Charlie Chaplin, foi o grande mestre da comédia na era do cinema mudo. Conhecido como “o homem que não ri”, Keaton permanecia praticamente inexpressivo em todos os seus filmes, mesmo diante das situações mais absurdas ou complicadas. Esse contraste entre a hilaridade do que se vê na tela com a impassividade de Keaton tornava as situações enfrentadas por seus personagens ainda mais surreais. Em The Navigator, o milionário Rollo Treadway (Keaton), frustrado por ter seu pedido de casamento recusado por Betsy O’Brien (Kathryn McGuire), filha mimada do também milionário John O’Brien (Frederick Vroom), resolve embarcar sozinho na viagem de lua de mel que desejava fazer para Honolulu com a mulher que o rejeitou. No entanto, por um infeliz acaso, Rollo acaba embarcando no navio errado, chamado Navigator, que se encontra totalmente vazio, sem passageiros nem tripulação. O Navigator, que acaba de ser vendido pelo pai de Betsy a uma nação inimiga, é alvo de uma sabotagem que o deixa à deriva pelos oceanos pouco depois de Rollo subir à bordo. Betsy, que se encontrava no píer com o pai no momento em que os sabotadores executam seu plano, acaba também a bordo do navio quando ele é desatracado, tornando-se sua segunda passageira. O que se segue é uma sequência de cenas absurdas que despertam gargalhadas a todo instante, com destaque para o desencontro entre Rollo e Betsy na primeira manhã no navio, um episódio noturno com a foto de um marinheiro que assombra Rollo e o ataque de canibais que tentam invadir o navio a qualquer custo. A incapacidade do casal de jovens mimados de preparar comida, abrir latas, fazer café ou até mesmo cozinhar ovos resulta em momentos de um humor impagável. The Navigator, dirigido por Keaton e Donald Krisp, é seu melhor filme, apesar de muitos aclamarem A General (1926) como sua obra mais importante. No entanto, a criatividade genial de The Navigator, presente em praticamente todas as cenas e gags do filme, demonstra todo o talento de Keaton para a comédia física, em situações que chegam a antecipar os desenhos animados realizados décadas depois e fazem com que o filme permaneça irresistível até hoje, quase um século depois de sua realização.
Coração de Cachorro
4.0 26CORAÇÃO DE CACHORRO (EUA, 2015) - Dir. Laurie Anderson
A artista multimídia Laurie Anderson, que iniciou sua carreira na década de 1960, apresenta em Coração de Cachorro, seu segundo longa para o cinema (o primeiro foi Home of the Brave, um registro de um show seu de 1986), uma colagem poética e abstrata sobre a vida e a morte de sua amada Rat Terrier, Lollabelle.
Obviamente influenciada pela morte recente do marido, o músico Lou Reed, com quem se casou em 2008 e faleceu em 2013, em Coração de Cachorro Laurie Anderson pondera e divaga sobre vida, morte, filosofia, arte, sua própria biografia e o valor que cada experiência vivida nos acrescenta, por mais adversa que seja.
Coração de Cachorro não é um documentário no sentido tradicional, mas não tem a intenção de sê-lo. É, na verdade, uma reflexão de Laurie, que em sua narrativa hipnótica que pontua todo o filme faz uma livre associação de ideias que às vezes, posteriormente, demonstram estar conectadas por algo subjacente, mas muitas vezes são puras divagações de uma mente excessivamente criativa em busca de algum sentido na morte e em uma justificativa para se viver a própria vida plenamente e compartilhar a vida dos outros - no caso, a de Lollabelle - com amor, afeto, admiração e companheirismo.
O filme é um amálgama de imagens desfocadas, animações breves, reconstituições dramatizadas de eventos de sua vida (mas sem diálogos) e uma série de recortes de imagens e ilustrações cinemáticas que pontuam visualmente o que é narrado. Tal pontuação chega a ser didática em certos momentos, mas funciona perfeitamente como ilustração para um livro visual, uma experiência poética em prosa para se ver e ouvir que provoca reflexão e inspiração.
Laurie muitas vezes começa a falar sobre algum tema para logo depois divagar noutra direção totalmente distinta, refletindo muito bem o processo de diálogo interno mental de todos nós. Tentando compreender o funcionamento da mente de Lollabelle, ela expõe como funcionam as mentes de todos nós - através de livres associações que passam por temas filosóficos (ela pergunta várias vezes "onde está a filosofia?"), budismo tibetano, arte, família, casos de sua vida (que podem ser verídicos ou não - na verdade não importa muito), fantasmas (reais e simbólicos) e, principalmente, o amor e o respeito pela sua amada companheira Lollabelle.
Em Coração de Cachorro, Laurie Anderson mostra que seu estilo mudou pouco nas últimas décadas - contudo, continua eficiente e fascinante. Aproveitando ao máximo sua voz sedutora na narração, com pausas em momentos inesperados que atribuem um sentido diferente às frases e ilustrando visualmente o que diz com a delicadeza e a sensibilidade artística que lhe são características, Laurie faz uma ode à vida na qual valoriza o significado da morte, vista de modo tão negativo na sociedade e cultura ocidentais.
Laurie Anderson é uma verdadeira livre pensadora que se deixa pensar livremente sem medo de ser considerada demasiadamente intelectualizada ou pretensiosa - é um deleite acompanhar seu fluxo de pensamento e mergulhar não apenas no coração de um cachorro, mas também no coração de Laurie.
Moonlight: Sob a Luz do Luar
4.1 2,4K Assista AgoraMOONLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR (EUA, 2016) - Dir. Barry Jenkins
Vencedor do Globo de Ouro de melhor drama e de outros 140 prêmios internacionais, Moonlight, dirigido e escrito por Barry Jenkis baseado em uma história de Tarell Alvin McCraney, é um mistério. Pois é realmente um mistério como um filme tão estereotipado disfarçado de drama poético está sendo tão aclamado. Nem a fotografia primorosa de James Laxton, saturada de tons azuis sob o luar, redime o filme.
Moonlight conta a história do jovem negro Chiron em três etapas de sua vida: na infância, na adolescência e na vida adulta, e como as experiências vividas em cada etapa influenciaram o garoto vítima de bullying constante na escola a se tornar o homem que emula o traficante de drogas de bom coração que o acolheu na infância.
Sim, um traficante de bom coração. Em Moonlight, não há perversidade, exceto no personagem obrigatório do bully que não larga o pé de Chiron durante mais de dez anos. Fora isso, todos os personagens, por mais estereotipados que sejam, se redimem de uma forma ou de outra de seus erros e a mensagem que fica é a batida "all you need is love".
Moonlight defende com unhas e dentes a bandeira do politicamente correto, constrangendo o espectador a ousar criticar ou ver algo de ruim nos personagens. Até a mãe de Chiron, viciada em crack, é mostrada com bons olhos, apesar dos abusos infligidos sobre o filho durante toda sua infância e adolescência. A redenção existe para todos, todos são inocentes e vítimas das circunstâncias - como o mundo seria melhor com um pouco mais de amor e compreensão, diz Moonlight - o que fica representado pelo amor gay entre Chiron e seu colega Kevin, que permanece platônico por mais de uma década, superando o envolvimento com o tráfico de drogas, prisões e as opções de vida dos personagens.
Mas a realidade é bem diferente. O mundo real das comunidades pobres nos Estados Unidos não é tão clean quanto o filme mostra, as ruas vazias, as roupas imaculadamente brancas dos alunos em uma escola pobre com paredes igualmente reluzentes - é curioso que em um filme sobre negros o branco ofusque tanto os olhos do espectador. A compreensiva diretora da escola que acolhe Chiron, a afetuosa namorada de Juan (o excelente Mahershala Ali, único elemento que brilha no filme), o traficante de bom coração que acolhe o garoto, e o próprio Juan, são símbolos de uma fraterninade inexistente na realidade dura e crua das comunidades violentas infestadas por gangues, traficantes, prostitutas e criminalidade que corrompem os jovens sem perspectivas nem chances de um futuro melhor - mas nada disto existe em Moonlight. O que existe é a bondade no coração de todos, mesmo que efetivamente estejam fazendo o mal.
O sucesso estrondoso de Moonlight é um enigma, pois o filme é claramente uma obra feita por encomenda para ganhar o Oscar que consagraria a era de Obama, atingindo o fanatismo extremista do politicamente correto às custas de qualquer indício de verossimilhança.
A Chegada
4.2 3,4K Assista AgoraA CHEGADA (EUA, 2016) - Dir. Dennis Villeneuve
No mundo da música, existem os chamados "one hit wonders". Artistas que fazem uma música que é um enorme sucesso e nunca mais conseguem repetir a façanha. Talvez o termo não se aplique a Dennis Villeneuve, pois o diretor canadense continua sendo aclamado por suas obras mesmo após seu único filme realmente excelente, Incêndios (2010), certamente um dos melhores da última década. No entanto, Villeneuve deixou-se engolir muito rapidamente pela voracidade de Hollywood por artistas talentosos e inovadores e por transformá-los em marionetes dos grandes estúdios. Os filmes dirigidos por Villeneuve depois de Incêndios não são propriamente ruins, mas a maioria é, no mínimo, insatisfatória. Ele brincou com Saramago na tentativa Cronenbergiana de O Homem Duplicado (2013), promissor mas, no final das contas, no mínimo frustrante, realizou uma obra confusa sobre o combate ao narcotráfico na fronteira entre os Estados Unidos e o México com Sicario (2015) e arriscou no suspense com o quase bom Os Suspeitos (2013), que acabou comprometido por alguns furos imperdoáveis no roteiro.
No entanto, Villeneuve seguiu em frente e realizou sua obra mais pretensiosa até agora com A Chegada - e não menos frustrante. Com roteiro de Eric Heisserer, baseado no conto "The Story of Your Life", de Ted Chiang, o filme começa com a chegada de doze objetos voadores não indentificados em doze partes distintas do planeta, o que leva o serviço de inteligência dos EUA a convocar a linguista Louise Banks (Amy Adams, em uma atuação inexpressiva, visto que seu papel não exige muito da personagem de qualquer modo) para decifrar a linguagem dos alienígenas a bordo de uma das naves e estabelecer um meio de comunicação com eles.
Até aí, tudo bem, mas depois de uma hora de enrolação tediosa e sem qualquer teor dramático, quando a linguagem alienígena é finalmente decifrada como que por mágica, começa o apelo ao sentimentalismo barato que culmina com uma "mensagem profunda" sobre a relação entre tempo, existência e experiências de vida.
O problema da comunicação entre humanos e seres extraterrestres já foi explorado de maneira muito mais poética e envolvente por Steven Spielberg em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), conquistando corações e mentes com os dramas pessoais dos personagens e um clima misterioso crescente que culmina em uma das mais belas cenas da história da ficção científica. Villeneuve não conseguiu se equiparar ao filme de Spielberg nem dramatica ou poeticamente.
No caso de A Chegada, faltou humildade a Villeneuve. Na tentativa de misturar pseudo-ciência com filosofia metafísica em um ambiente militarista no qual os dois cientistas encarregados de decifrar a linguagem alienígena são os únicos com características remotamente humanas, ele realizou um filme frio, entediante, que pretende se sustentar somente na mensagem moral anti-militarista e filosófica que encerram o filme. Talvez Villeneuve devesse ter resistido um pouco mais ao apelo de Hollywood depois de Incêndios, ter afiado seu estilo e firmado sua mão como diretor para poder se comunicar com a plateia melhor do que os alienígenas de A Chegada.
Eu, Daniel Blake
4.3 532 Assista AgoraVencedor da Palma de Ouro em Cannes de 2016 além de diversos prêmios internacionais e dirigido pelo mestre do realismo britânico Ken Loach, com roteiro de Paul Laverty, Eu, Daniel Blake é, assim como muitos filmes de Loach, uma pequena obra-prima.
Daniel Blake (Dave Johns) é um homem de meia-idade que, após sofrer um infarto no trabalho, tenta conseguir receber um auxílio doença até poder voltar a trabalhar. Enfrentando uma burocracia Kafkaniana e sem sentido, a qual gera indentificação com o público brasileiro pelo insondável labirinto de formulários e “especialistas” para receber um benefício que lhe é reservado, Daniel Blake fica cada vez menos otimista em relação à sua situação, totalmente perdido quanto ao que fazer para obter o que é seu por direito, ao perceber que nada é tão simples quanto parece ou deveria ser.
Em um escritório de assistência social, Blake conhece a mãe solteira Katie que, com um casal de filhos pequenos, chega alguns minutos atrasada para seu encontro com uma “especialista” que analisaria seu caso e é expulsa pela segurança do estabelecimento. Uma amizade acaba se formando entre Daniel, Katie e seus filhos, a qual proporciona um pouco de afeto e amparo a todos eles, os desprivilegiados e excluídos da rica sociedade inglesa.
Ken Loach já retratou com maestria a realidade dos párias ingleses e irlandeses, em filmes como “Meu Nome é Joe” e “Riff-Raff”, além de ter explorado os mesmos temas com um tom mais cômico em sua longa filmografia, com o delicioso “A Parte dos Anjos”, que trata dos outsiders da sociedade com um humor irresistível.
Em Eu, Daniel Blake, Loach não recorre ao humor, apesar de certas cenas despertarem um riso nervoso no espectador – fruto da aflição, e não de recursos cômicos. O empenho de Blake em atender as exigências das agências de assistência social é autêntico, mas não menos frustrante, o que aos poucos corrói sua auto-estima e suas esperanças. O paralelo com a vida de Katie, que se encontra em uma situação ainda mais desesperadora do que a de Blake, mostra até que ponto se pode chegar para assegurar o mínimo que o governo diz prover aos cidadãos quando este fracassa em sua rede burocrática e cruel, um verdadeiro moedor de carne que tritura a resiliência e as esperanças daqueles que mais necessitam de assistência até que eles desistam por pura exaustão.
As similaridades entre a burocracia incompetente do sistema de assistência social inglesa com o brasileiro são chocantes, pois imagina-se que na Inglaterra, um país rico e com uma sociedade supostamente igualitária, as coisas seriam mais fáceis para os necessitados. Mas não. Conseguir um auxílio doença ou um seguro desemprego por lá parece ser tão ou ainda mais complicado do que aqui. E é aí que está a grande sacada de Loach em Eu, Daniel Blake: a universalidade de um sistema que é feito para derrotar os desprovidos com seus intermináveis formulários, telefonemas e funcionários incompententes e totalmente desinteressados em auxiliar os que mais precisam deles.
A Garota no Trem
3.6 1,6K Assista AgoraDirigido pelo americano Tate Taylor (Histórias Cruzadas), com roteiro de Erin Cressila Wilson baseado no romance best-seller de Paula Hawkins, A Garota do Trem é um suspense com aspirações Hitchcockianas que, apesar da premissa criativa, desanda rapidamente com um elenco fraco, recursos narrativos pobres e uma solução previsível e frustrante.
Emily Blunt (Sicario, Looper, O Demônio Veste Prada) é Rachel, uma alcóolatra que todos os dias pega o mesmo trem de onde mora até Nova York, olhando pela janela e imaginando como seriam as vidas das pessoas que vê nas belas casas suburbanas ao longo da linha férrea.
Rachel fica fascinada pela moradora de uma das casas, Megan (Haley Bennet), a qual vê todos os dias e para quem imagina uma vida perfeita de amor e felicidade com o marido. A jovem que povoa a imaginação de Rachel mora duas casas abaixo da casa na qual a própria Rachel morou um dia com seu ex-marido Tom (Justin Theroux), agora casado e pai de um bebê com sua segunda esposa, Anna (Rebecca Ferguson).
Agindo erraticamente devido ao consumo excessivo de álcool, Rachel salta do trem quando vê Megan aos beijos com um homem que não é seu marido. Ela sofre um apagão de memória e desperta em casa ensanguentada. Seus lapsos de memória são frequentes desde quando era casada com Tom, e foram o que levaram ao término do casamento. Pouco depois de recobrar os sentidos, Rachel descobre pelo noticiário que Megan desapareceu e passa a ser investigada pela polícia como suspeita do suposto crime, mas é incapaz de dizer onde estava e o que fez quando Megan desapareceu.
O que se segue é a empreitada de Rachel em desvendar o que aconteceu durante seu último apagão e também de outros sofridos ao longo do casamento com Tom.
Talvez a história funcione bem no livro, mas no roteiro e sob a direção de Tate Taylor ela adquire tons forçados, com uma atuação especialmente careteira e canastrona de Justin Theroux (que está ótimo em Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, ambos de David Lynch) e inúmeras reviravoltas, todas proporcionadas por recordações de Rachel do que realmente ocorreu durante seus vários apagões. Ou seja, ao invés de criar uma trama na qual as interações entre os personagens ou o desenvolvimento dos mesmos tenha algum valor, o espectador fica esperando Rachel lembrar-se como que milagrosamente o que ocorreu de apagão em apagão, até montar as peças do quebra-cabeças diante dela em um clímax previsível e insosso.
O que também chama a atenção é como Rachel para de consumir litros de álcool de uma hora para a outra. Ela vai a uma reunião dos alcóolicos anônimos e pronto – está curada! Essa visão simplista de um problema grave que aflige milhões de pessoas serve para demonstrar a superficialidade com a qual o diretor trata os elementos do filme, que depois dos primeiros vinte minutos promissores logo se torna mais um thriller hollywoodiano absolutamente descartável.
Star
4.0 2Star (Zvezda, no original), da premiada diretora russa Anna Melykian (que assina o roteiro em parceria com Andrey Migachev), é um retrato notável da rússia contemporânea e de como seus valores foram engolidos totalmente pelo imperialismo cultural do consumismo americano e do capitalismo.
Masha (Tinatin Dalakishvili) é uma bela jovem com pouco talento determinada a se tornar uma grande estrela do cinema. Convencida de que tem um corpo imperfeito, trabalha para pagar as cirugias plásticas que acredita serem absolutamente necessárias para que consiga bons papeis: orelhas, seios, pernas, lábios, nada escapa da ambição de ter o corpo "ideal" para conquistar a fama. Rita (Severija Janusauskaite) é uma socialite casada por interesse com um multimilonário e que tenta engravidar a qualquer custo, mas descobre estar sofrendo de uma rara doença terminal. Kostya (Pavel Tabakov) é o filho do marido de Rita, mas rejeita a própria posição social realizando pequenos furtos, ausentando-se da escola e mantendo uma relação de rancor com o pai e a madrasta.
Por acasos do destino, as vidas destes três personagens se cruzam, junto com suas ambições e anseios, mas o futuro não parece guardar coisas boas para nenhum deles. Nem o gélido pai de Kostya, com toda sua fortuna, sai imune do redemoinho provocado pela união improvável da esposa e do filho com Masha.
Além de ser um drama envolvente, com personagens bem desenvolvidos, cada qual percorrendo sua própria jornada meio sem rumo nem objetivos concretos de encontro ao próprio destino, vítimas do acaso e das próprias futilidades e escolhas, Star é, acima de tudo, uma crítica à corrupção dos valores na sociedade russa, dominada por roupas e bolsas de grife, referências a ícones culturais tipicamente americanos (Mickey Mouse aparece casualmente em mais de uma cena), e a busca do corpo perfeito idealizado e pela fama a qualquer custo.
A crítica ao mercado de arte contemporânea também é pungente, quando, entediadas, Masha e Rita cobrem os corpos de tinta e os pressionam contra telas em branco, posteriormente conseguindo expô-los em uma galeria de arte, que os compra sob a condição de que rita apresente um atestado de que realmente morrerá em três meses.
Mas talvez a cena mais icônica de Star seja a de Rita, desesperada, rezando o Pai-Nosso na cama de Masha. Ao levantar a cabeça, ao invés de deparar-se com um crucifixo, ela encara uma foto de Johnny Depp caracterizado de Jack Sparrow com os braços abertos na posição tradicional do messias - até mesmo os ícones religiosos foram substituídos pelos ícones da cultura pop americana.
Muito poderia ser discutido sobre Star, mas isto estragaria a experiência do espectador, que deve assistir ao filme sabendo o mínimo possível da história para que possa ser surpreendido pelas inúmeras surpresas que o aguardam.
Aventura Perigosa
2.4 35 Assista AgoraSugar Mountain é o quinto longa-metragem do diretor australiano Richard Gray (seus filmes anteriores permanecem inéditos no Brasil), com história e roteiro de Abe Pogos.
A premissa do filme é promissora, com a história de dois irmãos, Liam e Miles (Shane Coffey e Drew Roy, respectivamente) à beira da falência que, inspirados em casos reais de pessoas que receberam indenizações milionárias por acidentes ou venderam os direitos de suas histórias por muito dinheiro, chegando a mencionar Aaron Ralston, que inspirou o filme 127 Horas, de Danny Boyle, resolvem simular o desaparecimento de um deles nas montanhas de Sugar Mountain, no Alaska, para depois ganhar uma grana em cima do drama "verídico".
No entanto, a mentira é planejada às pressas e de cara as coisas começam a dar errado, conforme a polícia começa a suspeitar dos irmãos e segredos antigos da pequena comunidade começam a vir à tona.
Sugar Mountain sofre de um grande problema: a uniformidade que domina todas as cenas do filme. Uma cena romântica tem a mesma intensidade que a de uma surra na cadeia, ou seja, nenhuma. O filme é tão gelado quanto as montanhas que circundam a cidade, e é impossível despertar qualquer empatia pelos personagens no espectador, que assiste a tudo impassivo.
Além disso, o roteiro extende-se demais além do plano elaborado pelos irmãos, culminando em uma série de reviravoltas que atingem o auge em uma revelação digna de uma novela mexicana.
Com atuações inexpressivas, personagens nada cativantes e um roteiro arrastado, Sugar Mountain é mais um caso de uma boa ideia desperdiçada. Tanto pelos irmãos trapaceiros quanto pelo diretor.
Der Nachtmar
3.8 1Der Nachtmar (O Pesadelo, em alemão), escrito e dirigido pelo alemão Achim Bornhak, que assina o filme como AKIZ, foi premiado como melhor filme internacional de 2016 no Festival Internacional do Filme Fantástico de Fantaspoa, e mesmo que talvez não mereça ser considerado o melhor filme fantástico do ano, vale a pena ser conferido por ser uma obra que desafia a mente do espectador sem se preocupar em oferecer soluções simples ou explicações rasteiras para o drama psicológico sofrido pela personagem principal.
Tina (Carolyn Genzkow, em uma ótima atuação), tem dezessete anos e frequenta com as amigas festas regadas a música eletrônica pesada e drogas. Certa noite, em uma festa em um local isolado, aparentemente sofrendo de uma bad trip causada por alguma droga, Tina vê uma criatura estranha e entra em pânico. Depois de um momento que alude diretamente à obra de David Lynch, Tina vê a criatura novamente em casa. À medida que seus encontros com a criatura se repetem, a sanidade de Tina passa a ser questionada por ela própria, por seus pais e por seu psiquiatra. Mas quando a fronteira entre delírio e realidade é transposta, Der Nachtmar torna-se cada vez mais misterioso e angustiante, à medida que Tina se aproxima de um colapso mental total.
Com um clima reminiscente das obras O Inquilino e Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski, com o isolamento progressivo de Tina abrindo portas para o questionamento de seu estado mental e da validade de suas visões, Der Nachtmar pode ser interpretado de diversas maneiras, e este é o grande mérito do filme. Se aceito simplesmente pelo que se vê na tela, o filme deixa muitas perguntas em aberto e pode parecer pretensioso. Mas se o espectador mais engajado se detiver para explorar as possíveis representações do que é apresentado e o lado subjetivo dos acontecimentos dentro e fora da mente de Tina, o filme adquire camadas abertas à especulação e debates que certamente resultarão em teorias interessantes sobre do que o filme realmente se trata.
O conselho dado antes do filme deve ser seguido à risca: assista-o no volume máximo, e se possível em um cinema, ou em um ambiente bem escuro. A trilha sonora agressiva, que pontua a tensão interior de Tina e também contrasta com as cenas mais contemplativas, e a edição estroboscópica em certos trechos são elementos fundamentais do filme e não devem de forma alguma serem relevados a segundo plano.
Quanto menos se souber a respeito de Der Nachtmar antes de assisitir ao filme, mais saborosa será a experiência. Assista ao filme de mente aberta que as recompensas oferecidas compensarão as poucas falhas no roteiro, agradando tanto ao público de filmes fantásticos em geral quanto àqueles que gostam de explorar e desenvolver suas próprias teorias sobre o que foi visto.
Creepy
3.1 69 Assista AgoraO prolífico diretor japonês Kiyoshi Kurosawa (nenhuma relação com o mestre Akira Kurosawa), responsável por filmes aclamados como Retribution e Pulse, nos apresenta em Creepy, seu filme mais recente, os dois possíveis lados da moeda de um filme de suspense: o quanto a construção de um clima envolvente é importante e o quanto um filme promissor pode descambar para o fracasso total na segunda metade, depois que os principais mistérios já foram revelados e o que resta é a mais pura estupidez dos personagens e furos no roteiro maiores do que uma cratera deixada por um meteoro.
O ex-detetive da polícia Takakura (Hidetoshi Nishijima) muda-se com a esposa, Yasuko (Yûko Takeuchi) para uma nova vizinhança depois de abandonar a força policial. Como especialista em psicologia criminal e sua experiência em investigar casos de serial killers, Takakura passa a fazer palestras sobre sua área de especialização em uma universidade local. Pouco depois de começar a se adaptar à nova vida, Takakura é procurado por um ex-colega da polícia, que o instiga a retomar a investigação de um caso não resolvido ocorrido anos antes no qual uma família inteira desapareceu, exceto por uma das filhas.
Enquanto Takakura torna-se cada vez mais obcecado com a investigação do caso sem solução, Yasuko tenta fazer amizade com os novos vizinhos, apresentando-se a eles com presentes, aparentemente uma tradição japonesa. Uma vizinha rejeita o presente, e outro vizinho, o sr. Nishino (Teruyuki Kagawa), recebe-a com frieza. Mas Nishino reserva surpresas para Takakura e a esposa, com um comportamento que se alterna entre o amigável e o extremamente bizarro, e o casal passa a suspeitar que possa haver algo de errado com a família de Nishino.
Até aí, a primeira metade do filme, o suspense é construído meticulosamente, um verdadeiro thriller psicológico no qual um presságio agourento toma conta do espectador. Kurosawa conduz com maestria o clima misterioso, devendo muito à excelente atuação de Kagawa.
A construção lenta da primeira metade do filme, apresentando gradualmente elementos que o tornam cada vez mais angustiante e ameaçador, desaba completamente na segunda metade, e o que restam são apenas os destroços de uma estrutura que não se sustenta. A partir da segunda metade do filme, os furos no roteiro pipocam como catapora na pele de um doente, com erros grosseiros cometidos pela polícia em várias instâncias, decisões inexplicavelmente burras tomadas por vários personagens, situações que só se tornam possíveis ou pela incompetência da polícia ou pela estupidez dos personagens, em um esforço monumental de explicar o mistério elaborado tão cuidadosamente na primeira metade do filme.
Creepy é realmente arrepiante enquanto o espectador ainda não sabe muito bem o que está acontecendo. Mas, uma vez que as primeiras revelações são feitas, o filme despenca em um precipício de furos e mais furos de roteiro e de atos estúpidos que comprometem totalmente tudo que foi feito antes, tornando o filme uma total perda de tempo e um insulto à inteligência do espectador.
Ah, e eu mencionei os furos no roteiro e o quanto os personagens são burros?
O Monstro no Armário
3.7 237 Assista AgoraCloset Monster (exibido no Brasil no Festival do Rio 2016), longa de estreia do canadense Stephen Dunn, que também assina o roteiro, recebeu diversos prêmios em festivais internacionais, tanto nos voltados para filmes LGBT quanto nos mais convencionais.
A história de Closet Monster já foi contada inúmeras vezes, mas talvez não com o estilo de Dunn. O jovem Oscar (Connor Jessup), um jovem tímido e talentoso traumatizado com a separação dos pais na sua infância, sonha em estudar em Nova York para escapar da cidadezinha onde mora com o pai. Vivendo praticamente isolado do mundo em sua casa no alto de uma árvore no seu jardim para se ver livre do pai cada vez mais intolerante, seus únicos companheiros são a amiga Gemma (Sofia Banzhaf) e seu hamster Buffy, com quem conversa, troca confidências e de quem recebe conselhos, dublado por Isabella Rossellini. Desde pequeno, Oscar questiona sua orientação sexual e, totalmente inexperiente neste aspecto, acaba se apaixonando por Wilder (Aliocha Scheinder), um rapaz com quem trabalha em uma loja de materiais de construção, incerto se seus sentimentos são correspondidos devido ao comportamento ambíguo do colega.
Closet Monster tem todos os elementos clássicos das histórias sobre amadurecimento, com ou sem temática gay. A única amiga com uma paixonite por Oscar, os conflitos com o pai, o sentimento de abandono por parte da mãe, experiências com drogas, a primeira paixão e a tentação e o medo da exploração da sexualidade que desabrocha.
Closet Monster é filmado com muito estilo e interpretado com honestidade pelos jovens atores, e o tom irônico que Isabella Rossellini atribui a Buffy é um tiro certeiro.
No entanto, apesar da tentativa de Dunn de incrementar o filme com referências a David Cronenberg, incluindo elementos que beiram o fantástico, no final das contas é apenas mais um filme sobre amadurecimento, abordando a temática do questionamento da orientação sexual de Oscar com sensibilidade, mas sem originalidade.
Closet Monster acaba sendo apenas mais um filme como tantos outros sobre os conflitos da adolescência, sem acrescentar nada de original ao tema. Ele pode agradar um certo nicho pela temática LGBT, sem levantar bandeiras, mas o filme teria o mesmo efeito se o personagem não questionasse a própria orientação sexual. Stephen Dunn é um diretor promissor e talentoso, quanto a isso não há dúvidas. Mas vamos aguardar por seu próximo filme para ver se a promessa apresentada em Closet Monster se concretizará de modo mais satisfatório.
Precipícios d'Alma
4.2 44Precipícios d’Alma (Sudden Fear, no título original) é um suspense elaborado dirigido pelo prolífico David Miller (Sua Última Façanha, Gentil Tirano), com roteiro de Lenore Coffee e Robert Smith, baseado no romance de Edna Shery.
A famosa e rica dramaturga Myra Hudson (Joan Crawford, indicada ao Oscar de melhor atriz pelo papel), herdeira de uma grande fortuna deixada pelo pai, apaixona-se por um jovem ator desconhecido, Lester Blaine (Jack Palance, também indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante), durante uma viagem de trem. Em pouco tempo, Myra e Lester se casam e ela apresenta a ele uma vida até então desconhecida, repleta de glamor, luxo e grandes festas. Myra, bem mais velha do que Lester, está perdidamente apaixonada pelo marido, mas ele tem planos sinistros com a amante para matar Myra e ficar com sua fortuna. O que ele não contava era que Myra descobrisse suas intenções e elaborasse o que considerava um plano perfeito para se livrar de seus potenciais algozes.
Joan Crawford está no auge de sua forma, com uma atuação magistral, passando de uma Myra totalmente apaixonada para uma mulher forte protegendo a própria vida. Seu desepenho é marcado pelas nuances e pela contenção evidente dos sentimentos perturbadores e conflitantes de Myra. Jack Palance está igualmente arrebatador, com um ar de facínora cínico que prova a competência de seu personagem como ator simulando com perfeição estar também apaixonado por Myra. E é justamente a interação dos dois que eleva Precipícios d’Alma acima da média dos filmes policiais da época.
Em Precipícios d’Alma, Miller tentou emular um clima de suspense Hitchcockiano, mas foi prejudicado pelo roteiro que não carece de furos e poderia se beneficiar de um pouco mais de objetividade e simplicidade. O desenrolar da trama, que fica cada vez mais complicada e rocambolesca, sem falar em certos pontos que beiram o inverossímil, também carece de uma certa sutileza, mas não chega a comprometer o filme. Mesmo não sendo tão bem sucedido quanto o grande mestre, Miller realizou uma obra que, mesmo mais de sessenta anos depois de realizada, permanece suficientemente tensa para manter o espectador apreensivo e envolvido.
Mesmo não sendo um clássico absoluto, Precipícios d’Alma é uma obra bastante representativa dos filmes do gênero policial da época em que foi realizada, e um de seus pontos fortes é que não há um mistério em torno de quem é o mocinho e quem é o vilão: as intenções dos personagens tornam-se claras em pouco tempo, mas isso não reduz em nada o suspense e a tensão para o espectador. E as atuações memoráveis de Joan Crawford e Jack Palance já valem, como se diria na época, o preço do ingresso.
Animais Noturnos
4.0 2,2K Assista AgoraO texano Tom Ford, que dirigiu e escreveu o excelente drama O Direito de Amar (2009), o qual rendeu inúmeros prêmios de melhor ator para o desempenho magistral de Colin Firth, além de receber diversos prêmios internacionais, voltou a chamar a atenção do público e da crítica em 2016 com o instigante Animais Noturnos, também escrito e dirigido por ele.
Protagonizado por Amy Adams (A Chegada, Trapaça e também a eterna Giselle de Encantada, da Disney) em uma atuação intimista e Jake Gyllenhaal (Donnie Darko, O Abutre, Demolition), Animais Noturnos é uma experiência cinematográfica ousada que, mesmo não sendo totalmente bem sucedida no empenho de Ford de realizar um filme em três camadas, merece ser conferida pelas ótimas atuações (Michael Shannon rouba a cena no papel do policial Bobby Andes) e sua combinação de drama romântico e thriller.
Susan (Adams) é dona de uma galeria de arte e vive em um casamento infeliz e sem afeto um empresário rico e distante. Certa manhã, ela recebe o manuscrito de um romace escrito pelo ex-marido, Edward, a quem abandonou quase vinte anos antes e com quem perdeu todo contato desde então. Com o marido fora de casa em uma viagem de negócios e enfrentando noites insones e uma crise de depressão, Susan começa a ler o romance de Edward – intitulado Animais Noturnos – o qual a perturba profundamente e a faz refletir sobre sua própria história com Edward e os atos e resoluções que a levaram a abandoná-lo.
A partir daí, o filme se passa em três camadas distintas: o romance escrito por Edward, cujos personagens principais são obviamente inspirados nele prórprio e em Susan, o período insone durante o qual Susan lê o livro e reflete sobre seu passado, e flashbacks que narram o romance vivido entre Susan e Edward, vinte anos antes.
O livro de Edward é o elemento central de Animais Noturnos, e por si só já seria um ótimo filme no melhor estilo dos irmãos Cohen ou de Sam Peckinpah, lembrando também Amargo Pesadelo, de John Boorman. Michael Shannon brilha no papel do policial fictício Bobby Andes e é o grande trunfo do filme.
Ford ousou no roteiro, visando criar conexões subjetivas entre a história de vida de Susan e o livro de Edward, o qual ela interpreta como uma ameaça ou uma forma de vingança literária servida fria vinte anos depois. O elemento de vingança em potencial é explicitado quando Susan fica perturbada diante de um quadro na sua galeria que ostenta apenas a palavra vingança em letras garrafais. No entanto, o livro é tão mais envolvente do que os dramas de Susan que estes parecem mais interlúdios para preservar o suspense do que elementos narrativos legítimos que, se contados independentente do livro, não passariam de um drama romântico água com açúcar.
No final das contas, apesar de suas muitas falhas e de um roteiro pretensioso, Animais Noturnos satisfaz pelas boas atuações e direção firme. Mas o filme não perderia muito se contasse somente a história do livro de Edward e assumisse de uma vez o thriller que realmente é.
Sing: Quem Canta Seus Males Espanta
3.8 569Sing: Quem Canta Seus Males Espanta, dirigido por Christophe Lourdelet e Garth Jennings (que também assina o roteiro), é uma animação que foge dos padrões aventurescos e explosivos de produtoras como Pixar e Dreamworks, tocando espectadores de todas idades com o carisma de seus personagens, as inúmeras referências musicais e cinematográficas e um roteiro bem construído e dramático, sem apelar para o sentimentalismo ou com a velha intenção dos desenhos animados de transmitir uma lição de moral no final da história.
O koala Buster Moon é um apaixonado pelo palco desde a infância e dirige seu próprio teatro grandioso que se encontra em decadência total. Pressionado por seus credores, Buster tem uma ideia que considera brilhante: realizar o maior show de talentos jamais visto. Por um engano de sua secretária, a hilária iguana idosa e cegueta Miss Crawly, o prêmio para o vencedor é mudado de mil dólares para cem mil dólares, atraindo uma multidão de candidatos bizarros desejando o grande prêmio.
Depois da seleção inicial dos candidatos que participarão do show, uma sequência divertidíssima de animais das espécies mais variadas apresentando seus números no mínimo estranhos, Buster Moon decide escolher cinco aspirantes a artistas para se apresentarem no grande show: uma porco-espinho punk, uma porca cantora com vinte e cinco filhos, um ratinho arrogante que toca jazz nas ruas, um gorila pianista e cantor envolvido com o mundo do crime e um grupo de gansos dançantes. Quando o grupo de gansos se separa por divergências criativas, Buster Moon se vê com um candidato a menos e aposta na tímida elefanta Meena, que tem uma voz maravilhosa mas morre de medo de cantar em público.
O que se segue são os dramas pessoais de cada candidato, cada um com sua personalidade bem definida, todas muito bem trabalhadas no roteiro, alternados com os ensaios para o show de talentos. Em meio a isso, Buster Moon luta para conseguir financiamento para o prêmio anunciado, recorrendo à antiga diva do teatro Nana, uma clara referência a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder.
As referências musicais de Sing são das mais variadas, e formam uma espécie de jogo de adivinhação ao longo do filme, com trechos de clássicos de David Bowie com Queen, Leonard Cohen, John Coltrane, Elton John, Gipsy Kings e muitos outros artistas pop famosos, incluindo uma citação ao onipresente Garota de Ipanema e um trecho da célebre trilha de Ennio Morricone para o clássico Era Uma Vez na América, de Sergio Leone. A apresentação do ratinho jazzista cantando My Way, que se tornou um clássico na voz de Frank Sinatra, é um dos pontos altos do filme.
A animação também merece destaque, pois todos os personagens são extremamente expressivos e tanto os movimentos de câmera quanto os enquadramentos ousados atribuem ao filme um ar contemporâneo que foge do tradicionalismo da maioria das animações atuais.
No final das contas, Sing realmente pode ser considerado um filme para toda a família, satisfazendo desde os mais pequeninos aos adultos que se deliciam com as referências musicais e com os dramas envolventes passados por cada personagem, tratados com leveza e humor. Sing talvez seja o filme mais feel-good do ano e pode ser resumido em uma única palavra: cativante.
A Catedral
3.3 58A Catedral é uma colaboração do lendário diretor italiano Dario Argento (Suspiria, Phantasm), autor do roteiro original – existe uma versão dublada em inglês com diálogos escritos por Nick Alexander – com o também italiano Michele Soavi, que assina a direção deste conto de horror.
No século XII, um grupo de cavaleiros templários massacra uma aldeia inteira de hereges pacíficos, enterrando todas vítimas juntas em uma vala comum. Anos depois, uma catedral gótica é construída sobre o local onde os mortos foram enterrados, com o objetivo de manter o mal preso sob a casa de Deus.
Oitocentos anos depois, no século XX, a catedral está ruindo e sendo restaurada por Lisa (Barbara Cupisti), quando o jovem Evan (Tomas Arana) assume o cargo de novo bibliotecário da catedral. Lisa encontra um pergaminho misterioso no subsolo labiríntico da catedral, o qual desperta a curiosidade de Evan, que se determina prontamente a decifrá-lo – o que leva a uma descoberta que ameaça despertar um mal demoníaco adormecido há séculos.
Visualmente, A Catedral é fascinante. Tanto a fotografia quanto o trabalho de câmera sustentam um clima de tensão crescente durante a primeira metade do filme, enquanto Evan começa a sofrer os malefícios de ter decifrado o pergaminho e demonstra sinais de ter sido possuído por algo estranho e maligno.
A segunda parte do filme coloca um grupo variado de pessoas presas dentro da catedral, que se lacra automaticamente devido a um dispositivo de segurança instalado pelo arquiteto que a projetou. O grupo é heterogêneo: um grupo de estudantes com sua professora, um casal de motociclistas, uma dupla de velhinhos comemorando suas bodas, os padres e o bispo da catedral, Evan, Lisa e um grupo realizando uma sessão de fotografia de moda.
Aos poucos, todos sucumbem ao mal despertado por Evan, gerando um caos de violência e mortes.
É justamente na segunda parte que o filme perde todo seu encanto. Enquanto na primeira metade o clima de tensão e mistério é cuidadosamente construído, depois que o grupo se encontra preso dentro da catedral o que sobra é um banho de sangue e uma série de visões de demônios (alguns dos quais beiram o ridículo), à medida que cada pessoa na catedral é possuída. O que começa como um exercício de tensão, mistério e e recursos de cinematografia instigantes termina como qualquer filme de terror barato: mortes e mais mortes pretensamente “criativas” e um final previsível e decepcionante.
Dario Argento realizou duas grandes obras em sua carreira, nos idos da década de 1970: Suspiria e Phantasm. Depois disso, deitou nos louros de suas realizações e não conseguiu realizar mais nada que, nem de longe, se aproximasse da criatividade e riqueza visual destas duas obras. A Catedral não é uma exceção. O filme vale a pena até o momento em que as pessoas ficam presas dentro da catedral – depois, o espectador pode muito bem desistir do filme, que segue somente ladeira abaixo.
Demolição
3.8 447 Assista AgoraO diretor canadense Jean-Marc Vallée conquistou aclamação do público e da crítica com os filmes O Clube de Compra de Dallas, que rendeu o oscar de melhor ator a Matthew McConaughey, e Livre, que rendeu uma indicação ao Oscar para Reese Witherspoon.
Seu filme mais recente, Demolition, com roteiro de Brian Sype, explora o mesmo tema dos dois filmes citados acima: personagens que sofrem um duro golpe que muda suas vidas e descobrem uma maneira de enfrentar a situação, cada um à sua própria maneira.
Em Demolition, o financista Davis (Gyllenhaall), perde a esposa em um acidente de carro, no qual também estava envolvido, mas sobrevive sem um arranhão. Habituado com uma vida estéril, na qual lida com elementos abstratos no trabalho (números em computadores que representam dinheiro) na firma do sogro Phil (Cooper) e com um casamento sem amor, Davis reage de modo aparentemente impassivo à perda da esposa. Ao ter um problema com uma máquina de doces no hospital, ele resolve escrever uma carta para a empresa responsável pelas máquinas de vendas, na qual acaba abrindo seu coração impulsivamente. A carta é seguida por outra, e depois por mais outra. Certa noite, às duas da madrugada, ele recebe um telefonema de Karen (Watts), responsável pelo serviço de atendimento aos clientes da empresa, que diz ter ficado emocionada com as cartas cada vez mais reveladoras e íntimas de Davis, dando início a uma relação reminiscente do maravilhoso filme Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, de David Hugh Jones. Em pouco tempo, a comunicação entre Davis e Karen torna-se mais pessoal e eles resolvem marcar um encontro, o qual forja uma amizade entre duas pessoas que se identificam por viverem em um mundo sem amor.
Davis, sempre contido enquanto casado, aos poucos começa a demonstrar um comportamento errático e uma compulsão por destruir coisas: uma geladeira com defeito, seu computador no escritório, o banheiro da firma onde trabalha, chegando até a pagar para trabalhar na demolição de uma casa. O impulso demolidor de Davis culmina na destruição total de sua própria casa, na companhia do filho rebelde de Karen, com quem forja uma aliança estranha sustentada pela honestidade de Davis com o jovem adolescente.
Em certo ponto, no começo do filme, Davis reflete que tudo está se transformando em uma grande metáfora. Talvez seja essa a intenção de Vallée ao apresentar o comportamento destrutivo de Davis. Talvez Davis precise destruir seu passado para criar um novo futuro. Talvez seu ímpeto demolidor seja uma forma de externalizar suas emoções tão reprimidas durante tantos anos e de finalmente voltar a sentir algo.
Mas o filme sofre de um grande problema: o relacionamento entre Davis e Karen, que deveria ser o ponto central do filme, é muito mal explorado. Karen chega a simplesmente desaparecer do filme durante quase meia-hora, enquanto Davis se envolve cada vez mais com o filho dela. É como se houvesse algo na cabeça do roteirista que ele não conseguiu transmitir apropriadamente para o texto, resultando em um filme desigual que, inevitavelmente, descamba para o melodrama apelativo.
Vallée é realmente um grande diretor de atores, e as atuações de Jake Gyllenhaal, Naomi Watts e Chris Cooper são notáveis. A edição do filme é criativa e ousada, e merece ser destacada. Contudo, no final das contas, Demolition acaba fracassando onde os outros filmes de Vallée acertam em cheio. As motivações de Davis nunca ficam claras, a relação com Kate é mal explorada e a conclusão é frouxa e insatisfatória. Vallée já provou seu valor como diretor, mas deveria ter escolhido um roteiro melhor para filmar.
Otis: O Ninfomaníaco
2.7 78 Assista AgoraOtis (o estreante Bostin Christopher) é um gigante de quarenta anos com mais de dois metros de altura e 150 quilos, obcecado pelas coisas que nunca obteve na juventude: ser a estrela do time de futebol americano da escola e namorar a tão cobiçada cheerleader. Levando uma vida frustrante como entregador de pizza e sem qualquer objetivo, Otis sequestra jovens colegiais e as tranca em um quarto construído para elas em seu porão, onde, aos poucos, tenta convencê-las a aceitá-lo como seu namorado de escola, punindo-as quando se recusam a entrar na brincadeira. As tentativas frustradas de Otis com as garotas levaram-no a assassinar cinco “pretendentes”, espalhando partes de seus corpos por vários locais da cidade. Mas quando a sexta presa de Otis, RIley (Ashley Johnson) consegue escapar e revela à família onde Otis mora, os pais e o irmãos dela resolvem fazer justiça com as próprias mãos, depois de uma relação de atrito com o arrogante e inepto agente do FBI que conduzia a investigação do desparecimento de Riley.
O filme do diretor Tony Krantz (que, surpreendentemente, produziu Mulholland Drive, de David Lynch), escrito por Erik Jendresen e Thomas Schnauz, é uma tentativa mal sucedida de criar uma obra de humor negro que lida com alguns clichês dos filmes de suspense americanos: a família semi-disfuncional, os ideais e aspirações dos colegiais, o serial killer entregador de pizza e a ineptude dos agentes da lei em obter qualquer pista sobre o suspeito.
Infelizmente, Otis não satisfaz nem como um filme de suspense, tampouco como uma comédia mórbida. Sabe-se muito pouco a respeito dos personagens para que o espectador desenvolva o mínimo interesse por eles, seja pelo assassino ou pela vítima e sua família. Os diálogos são tiros que sempre erram o alvo e, no máximo, geram sorrisos amarelos ao invés de risadas. Otis não é um filme engraçado, nem suficientemente esquisito para compensar ficar 100 minutos diante da tela esperando que algo realmente interessante ou divertido aconteça.
O único ponto forte do filme fica por conta do ator Jere Burns, que interpreta o asqueroso criminalista do FBI Ralph Hotchkiss, um narcisista insensível e completamente inepto que se considera um grande detetive. As melhores cenas do filme ficam por conta dele, mas não chegam a compensar as limitações cômicas do roteiro.
Otis pode agradar uma faixa de público menos exigente e que se satisfaça com sua mistura de sadismo light e humor negro. Mas para um público que procura algo além de tentativas de piadas como “vamos cortar os dedos dele, bater no liquidificador e obrigá-lo a beber tudo”, com certeza Otis será frustrante.
Kill List
3.3 198Kill List, do diretor inglês Ben Wheatley, que escreveu o roteiro em parceria com Amy Jump, é um filme único.
Jay (Neil Maskell) é um assassino de aluguel que está há oito meses sem trabalhar depois de uma misteriosa missão frustrada em Kiev. Com seu casamento com a sueca Shel (MyAnna Buring) ruindo aos poucos devido à resistência de Jay em aceitar novos trabalhos, gerando problemas financeiros para a família, Jay acaba sendo convencido por seu parceiro e amigo Gal (Michael Smiley) a aceitar um trabalho supostamente simples: uma lista com três homens que eles devem matar. No entanto, ao investigarem seu segundo alvo, eles descobrem que podem estar envolvidos em algo muito mais misterioso e sombrio, uma descoberta cujas consequências podem ser catastróficas.
Quanto menos se souber a respeito de Kill List, mais intensa e satisfatória será a experiência de assistir o filme. Ben Wheatley dirige o filme com uma precisão meticulosa, sustentada por um roteiro que oferece poucas pistas do que está realmente ocorrendo e uma edição ousada, gerando um clima misterioso, aflitivo e intrigante à medida que Jay e Gal mergulham cada vez mais fundo em uma espiral de loucura, violência e suspense.
Kill List não é propriamente um filme de terror no sentido tradicional. O filme poderia muito bem ser uma obra de Ken Loach pervertida e subvertida milimetricamente em algo profundamente aterrador e perturbador. Com elementos que remetem tanto ao ocultismo do clássico “O Homem de Palha” (1973), de Robin Hardy, quanto ao drama familiar realista de Loach, Kill List é um híbrido hipnótico destes dois gêneros, algo aparentemente improvável mas cujo resultado é extremamente bem sucedido.
Apesar de deixar muitas perguntas no ar, o final do filme deixa um gosto amargo na garganta que compensa plenamente o mistério progressivamente mais insondável de certos aspectos do roteiro – uma intenção clara do diretor e não uma falha na narrativa.
As interpretações do trio principal formado por Jay, Gal e Shel são precisas – alternadamente contidas e intensas, em perfeito acordo com cada momento da história – e constituem o coração do filme. Como parte dos diálogos é improvisada pelos atores, o tom realista do filme é ainda mais reforçado, chocando o espectador quando o terror começa a tomar conta e a fronteira entre a sanidade e a loucura fica borrada.
Ao ser assistido pela terceira vez, Kill List tornou-se ainda mais fascinante e intrigante, uma prova de que a ousadia de Ben Wheatley em fundir estilos aparentemente tão incompatíveis foi mais do que bem sucedida: o diretor criou uma pequena obra-prima do suspense cuja originalidade raramente é igualada.
Scum
3.9 14Scum, do diretor inglês Alan Clarke e com roteiro de Roy Minton, causou polêmica quando foi lançado na Inglaterra em 1979, por retratar brutalmente a vida em um borstal, um centro de detenção de infratores e criminosos com até 21 anos de idade.
O filme começa centrado em Carlin (Ray Winstone, um dos atores ingleses mais prolíficos e conhecidos da atualidade), um jovem enviado para o centro de detenção por ter agredido um oficial em outra instituição na qual estava encarcerado.
De cara, Carlin percebe que o borstal para onde foi enviado é diferente da outra instituição, sendo agredido verbal e fisicamente pelos diretores do borstal logo em sua primeira entrevista ao chegar lá. O tratamento brutal dos oficiais e coordenadores inclui uma espécie de bullying constante e intenso e rigorosas punições corporais, diante das quais os internos se vêem completamente indefesos e sem direito de resposta, comportamento que é refletido pelos jovens, que se enfrentam em brigas violentas constantes enquanto fazem de tudo para não chamar a atenção dos oficiais sádicos e absolutamente insensíveis.
Scum critica o tratamento dado aos jovens delinquentes nos borstals na década de 1970, onde não há qualquer intenção de educar, reabilitar ou promover a reflexão dos internos, que são tratados como lixo (daí o título original) e reagem em explosões de fúria, agressões, estupros e suicídios.
O grande problema de Scum é que, a partir da metade do filme, o personagem de Carlin é praticamente esquecido, e o que segue é uma sequência de cenas que estão mais para esquetes isolados cujo tema central são os maus-tratos constantes dos internos, que são enviados à solitária pela mínima infração, as quais muitas vezes não foram cometidas – ou seja, os infratores são vítimas constantes do sadismo dos coordenadores da instituição.
O tratamento desumano dos internos e a violência praticada por eles são retratados com eficiência, mas o filme carece de um roteiro coeso que proporcione um fio narrativo atraente, resultando em um punhado de cenas sem conexão entre si e em uma exploração rasa dos dramas vividos pelos internos, sem qualquer insight psicológico por trás das motivações tanto dos coordenadores do Borstal quanto dos jovens delinquentes.
O filme pode ter chocado o público e o establishment inglês na época do lançamento mas, quase quarenta anos depois de sua realização, apesar de permanecer impactante em sua brutalidade, não resistiu ao tempo por carecer de uma narrativa mais coesa.
A Autópsia
3.3 1,0K Assista AgoraThe Autopsy of Jane Doe, o novo longa do diretor norueguês Andre Ovredal (O Caçador de Troll, 2010), conta a história de Tommy Tilden (Brian Cox) e Austin Tilden (Emile Hirsch), pai e filho que trabalham como médicos legistas em uma pequena cidade no interior da VIrginia, nos Estados Unidos. Quando recebem um corpo intacto de uma bela jovem com a tarefa de determinar a causa da morte até o dia seguinte, os dois começam a perceber que o cadáver da não identificada Jane Doe (nome genérico dado nos Estados Unidos a pessoas e cadáveres não identificados do sexo feminino, o equivalente a John Doe para os do sexo masculino) representa um mistério muito maior do que qualquer caso que já analisaram.
A premissa inicial do filme é interessante, com cada etapa da autópsia de Jane Doe – representadas com uma riqueza gráfica de detalhes que podem incomodar os de estômago mais fraco – oferecendo mais um elemento de um enigma misterioso, como um quebra-cabeças que, aos poucos, vai fascinando a dupla de legistas.
No entanto, depois de alguns minutos intrigantes no decorrer da autópsia, The Autopsy of Jane Doe revela-se apenas mais um filme de terror repleto de clichês, com um roteiro sem sentido e uma explicação final nada satisfatória.
A interpretação de Emile Hirsch, um dos grandes talentos de sua geração, é no mínimo sofrível, e é difícil imaginar por que motivo o ator aceitou este papel em um filme tão previsível e sem originalidade. Brian Cox também está inexpressivo no papel de pai e mentor de Austin – de modo que o filme, baseado exclusivamente na dupla de atores, é interpretado como se os eles não estivessem minimamente interessados em seus personagens ou na narrativa pobre.
Não há muito mais a ser dito sobre The Autopsy of Jane Doe. Sustos fáceis e previsíveis, situações totalmente injustificadas e inexplicadas e uma conclusão decepcionante fazem deste filme apenas mais um da safra deprimente de filmes de terror que tem infestado as telas nos últimos anos.
S&Man
3.1 6No documentário S&MAN (leia-se Sandman), o diretor e roteirista J.T. Petty mergulha no universo dos filmes de terror underground em uma exploração do mito urbano dos snuff films (filmes com imagens reais de tortura e assassinatos produzidos visando lucro) e dos produtores e realizadores de filmes que adotam a estética snuff.
Uma das limitações do filme de Petty é que ele entrevista apenas três realizadores de filmes pseudo-snuff: Fred Vogel (responsável pela infame trilogia August Underground), Bill Zebub (diretor de 45 filmes, a maioria pseudo-snuff) e Eric Rost (também conhecido como Eric Marcisak, produtor e diretor por trás da famosa série underground S&Man, na qual ele filma escondido mulheres durante semanas antes de abordá-las com a proposta para que aceitem ser mortas em seus filmes.)
O filme também apresenta entrevistas com psicólogos e psiquiatras forenses, através das quais Petty explora a ligação entre o voyeurismo e o interesse do público por filmes extremamente violentos e explícitos que fazem o máximo para parecerem reais.
Apresentando clipes curtos da série August Underground, uma trilogia absolutamente brutal, demente, pervertida e sádica, verdadeiramente difícil de assistir até mesmo para os maiores entusiastas dos filmes de horror, que faz com que os torture porns comerciais de Eli Roth e da série Jogos Mortais pareçam contos de fadas, trechos longos de vários episódios da série S&Man, cada vez mais realistas, e passagens de vários filmes de Bill Zebub, incluindo a filmagem de uma cena de uma de suas produções, Petty busca econtrar a motivação por trás dos realizadores destes filmes, mas as respostas são pouco satisfatórias.
Tanto Fred Vogel quanto Bill Zebub e Eric Rost tem dificuldades em justificar as motivações por trás de suas produções. Eles não demonstram qualquer ambição artística, tampouco visam transmitir qualquer mensagem: seus filmes são colagens de sequências sem roteiro de violência, estupros, mutilações, torturas e assassinatos, alguns mais realistas do que outros, mas que atendem a um público específico, sedento por este tipo de material.
Os insights proporcionados pelos psicólogos são pouco iluminadores, parecendo teóricos demais, sem se aprofundar na mente dos realizadores e do público de tais filmes.
Mas talvez a maior falha de S&Man seja a falta de entrevistas com os fãs deste gênero extremo de cinema, as quais poderiam trazer à luz o porquê de tanto interesse pelo gênero pseudo-snuff e pela busca de experiências visuais cada vez mais próximas da realidade.
Em 2008, Paul von Stoetzel dirigiu “Snuff: A Documentary About Killing on Camera”, que se aprofunda muito mais no universo snuff, com entrevistas muito mais esclarecedoras que, por si só, já são aterradoras, resultando em um filme muito mais bem sucedido. Para fãs hardcore deste gênero mais extremo de horror, S&Man pode satisfazer parte de sua curiosidade, mas o filme poupa demais o espectador, exibindo poucas cenas dos filmes citados – se bem que algumas ainda são perturbadoras.
Para sentir na pele a experiência proporcionada por tais filmes, é mais recomendado assitir ao produto original, principalmente a trilogia August Underground – isso é, se você conseguir suportar mais do que alguns minutos.
S&Man está disponível na Netflix brasileira.
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraCapitão Fantástico, o segundo longa do diretor americano Matt Ross, que também assina o roteiro, conta a história de uma família peculiar. O casal Ben (Viggo Mortensen) e Leslie (Trin Miller), criam seus seis filhos em uma propriedade isolada no meio de uma floresta no noroeste dos Estados Unidos. Rejeitando todas as normas e convenções da sociedade americana, Ben e Leslie adotam uma educação que combina um rigor quase militar, aprendizado de sobrevivência na floresta, caça de animais selvagens e exercícios de preparação e resistência física, concentrando-se também em cuidar da educação dos filhos através da leitura de livros, variando de clássicos da literatura à física quântica, visando estimular o pensamento crítico nas crianças.
Quando Leslie é internada em um hospital devido a um caso de depresssão profunda e se suicida depois de três meses, Ben embarca em uma jornada através do país para comparecer ao funeral católico providenciado pela família de Leslie e realizar o último desejo da esposa, que era adepta da filosofia budista: cremar seu corpo e jogar suas cinzas em uma privada
Apesar de estimular o pensamento crítico nos filhos, Ben parece ser incapaz de realizar qualquer autocrítica e perceber que seu ponto de vista e atitudes em relação à criação dos filhos é tão fanática e extremista quanto as religiões e o estilo de vida que tanto repudia. Em sua obsessão, Ben torna os filhos absolutamente incapazes de lidar com o mundo real, permanecendo inflexível mesmo quando a eficiência de seus métodos é colocada à prova durante a jornada rumo ao velório da esposa.
Algumas questões surgem na cabeça do espectador: Ben cria os filhos desta maneira para protegê-los e educá-los de acordo com sus filosofia de vida ou, pelo extremismo de seu método, acaba abusando das crianças com as limitações e todo o rigor que impõe a elas? Esta questão não é explorada no filme, que infelizmente se limita a uma série de situações que se alternam entre exemplos da peculiaridade da família de Ben com momentos constrangedores quando as crianças não conseguem compreender o mundo real.
Uma cena que contradiz particularmente a moral por trás dos ensinamentos de Ben é quando ele simula um ataque cardíaco em um supermercado para que os filhos possam roubar comida e fugir sem pagar. É difícil aceitar que isso se adeque à filosofia que o casal tenta transmitir aos filhos.
A interpretação de Mortensen, um ator geralmente consistente e até mesmo sutil, é monocórdica e sem vida. A incapacidade de Ben de demonstrar afeto pelos filhos só reforça a visão de que ele os trata mais como cobaias do que como frutos de seu próprio sangue.
Depois de um final que apela para o sentimentalismo barato, o que fica é a mensagem budista que Leslie, adepta desta filosofia oriental, deveria ter seguido desde o começo: que o melhor caminho a seguir é o caminho do meio.
O Caso das Irmãs Assassinas
3.4 28Les Blessures Assassines (exibido em festivais no Brasil sob o título “O Caso das Irmãs Assassinas”), do diretor francês Jean-Pierre Denis, autor do roteiro baseado no livro de Paulette Houdyer, conta o caso real do famoso crime cometido pelas irmãs Papin, que mataram sua patroa e a filha na França na década de 1930.
Christine Papin (Sylvie Testud) foi criada com a irmã Emilia em um orfanato administrado por freiras, rejeitadas pela mãe e pela tia. Léa, a irmã mais nova e a favorita da mãe, segue vivendo com a mãe enquanto estuda em uma escola católica. Emilia resolve seguir a carreira sacerdotal e seus laços com Christine se desfazem aos poucos, o que leva Christine a dedicar todo seu amor à caçula Léa, a quem visita regularmente, apesar do relacionamento conflituoso que mantém com a mãe.
Christine trabalha como criada em várias residências de famílias ricas, mas sua insubordinação e aparente instabilidade emocional resultam em demissões sucessivas. Ela consegue um emprego em uma casa junto com Léa, que demonstra um interesse incestuoso pela irmã mais velha. Depois de serem demitidas mais uma vez, Christine finalmente consegue encontrar uma residência onde pode trabalhar novamente com Léa, para a felicidade de ambas.
No entanto, Christine parece cada vez mais insubordinada e os anseios incestuosos de Léa se intensificam, até que Christine cede e as duas iniciam um romance secreto em seu pequeno sótão na casa onde trabalham. Cada vez mais obcecada pela irmã e insatisfeita com as condições de trabalho e com o tratamento recebido pelos patrões, Christine acaba perdendo o controle e, em uma explosão de raiva, mata brutalmente a patroa e sua filha.
O filme de Jean-Pierre Denis tenta retratar o declínio psicológico de Christine, justificando-o com a infância no orfanato, a rejeição da mãe e da tia e os maus-tratos dos patrões. No entanto, ele falha por não se aprofundar no perfil psicológico de Christine – é impossível imaginar o que se passa na cabeça dela, de modo que, quando comete os assassinatos, o ato parece totalmente gratuito e impulsivo, enquanto fica subtendido que, na verdade, a explosão de violência de Christine é uma consequência do acúmulo de frustrações em sua vida.
A atuação de Sylvie Testud é o ponto alto do filme, mas sua decadência psicológica não é bem explorada pelo roteiro, apesar do empenho da atriz em se mostrar cada vez mais atormentada e sofrida.
No final das contas, Les Blessures Assassines não é bem sucedido como uma exploração psicológica do que motivou o crime brutal cometido por Christine, fruto de um roteiro que poderia ser mais coerente e subjetivo – uma boa oportunidade de explorar a mente de Christine que, infelizemente, acaba desperdiçada.
Tubarão
3.7 1,2K Assista AgoraEm 1975, o lançamento de Tubarão, dirigido por Steven Spielberg e baseado no livro de Peter Benchley, inaugurou a era dos blockbusters. O filme atraiu multidões aos cinemas em todo o mundo, apavorando-as com o tubarão branco que marcou a história do cinema.
A história do filme é conhecida: um tubarão branco gigantesco começa a matar banhistas no balneário da ilha de Amity. O novo chefe de polícia da cidade, Brody (Roy Scheider), decide interditar as praias até que o tubarão seja capturado, mas efrenta a resistência do prefeito da cidade, preocupado com a queda na receita do local, que depende dos banhistas que estão prestes a chegar no balneário para o feriado de quatro de julho. Depois de mais ataques, o prefeito se convence da necessidade de capturar o tubarão e contrata os serviços do lobo do mar Quint (Robert Shaw), experiente em caçar tubarões, e do biólogo marinho Matt Hopper (Richard Dreyfuss), especialista em tubarões, que se juntam a Brody. O trio então embarca em uma viagem de encontro ao monstro, determinados a matá-lo a qualquer custo.
Em Tubarão, Spielberg executa com maestria um verdadeiro exercício de tensão, a qual se acumula até o quase insuportável, mesmo sem mostrar o tubarão durante a primeira hora do filme. A eficiência em atiçar a imaginação do espectador resulta em uma experiência muito mais aterrorizante e tensa do que a proporcionada pelos tantos torture porns de hoje que, com sua profusão de cenas explícitas, não deixam nenhum espaço para o medo do desconhecido dominar o espectador.
No maravilhoso filme “The Pervert’s Guide to Ideology”, de Sophie Fiennes, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek oferece uma explicação para o significado de Tubarão, a qual justifica o sucesso enorme do filme: Todos sentimos medo de algo, e nossos medos são os mais diversos. Medo de catástrofes naturais, medo de imigrantes, medo de sermos vítimas de crimes, medo das grandes corporações, que podem fazer o que quiserem, e tantos outros. O grande trunfo do filme foi unificar todos estes medos em um único medo: o medo do tubarão, transformando temores abstratos em um medo concreto, real e palpável, comum a todos os seres humanos. Afinal de contas, quem não tem medo de tubarão? Zizek argumenta que esta mesma técnica foi aplicada pelo regime nazista na Alemanha na década de 1930, concentrando todos os medos da população alemã em um único inimigo em comum, os judeus, resultando na tragédia do Holocausto.
Uma outra interpretação do filme vem de Fidel Castro, que era fã de Tubarão: o tubarão representaria o sistema capitalista, que devora e engole os cidadãos impiedosamente, triturando-os como uma máquina de moer carne.
Seja qual for sua interpretação do filme, Tubarão, mesmo quarenta anos depois de sua realização, permanece um dos maiores feitos de Spielberg e merece seu lugar na história do cinema.
O Navegador
4.2 15Buster Keaton, ao lado de Charlie Chaplin, foi o grande mestre da comédia na era do cinema mudo. Conhecido como “o homem que não ri”, Keaton permanecia praticamente inexpressivo em todos os seus filmes, mesmo diante das situações mais absurdas ou complicadas. Esse contraste entre a hilaridade do que se vê na tela com a impassividade de Keaton tornava as situações enfrentadas por seus personagens ainda mais surreais.
Em The Navigator, o milionário Rollo Treadway (Keaton), frustrado por ter seu pedido de casamento recusado por Betsy O’Brien (Kathryn McGuire), filha mimada do também milionário John O’Brien (Frederick Vroom), resolve embarcar sozinho na viagem de lua de mel que desejava fazer para Honolulu com a mulher que o rejeitou. No entanto, por um infeliz acaso, Rollo acaba embarcando no navio errado, chamado Navigator, que se encontra totalmente vazio, sem passageiros nem tripulação. O Navigator, que acaba de ser vendido pelo pai de Betsy a uma nação inimiga, é alvo de uma sabotagem que o deixa à deriva pelos oceanos pouco depois de Rollo subir à bordo. Betsy, que se encontrava no píer com o pai no momento em que os sabotadores executam seu plano, acaba também a bordo do navio quando ele é desatracado, tornando-se sua segunda passageira.
O que se segue é uma sequência de cenas absurdas que despertam gargalhadas a todo instante, com destaque para o desencontro entre Rollo e Betsy na primeira manhã no navio, um episódio noturno com a foto de um marinheiro que assombra Rollo e o ataque de canibais que tentam invadir o navio a qualquer custo. A incapacidade do casal de jovens mimados de preparar comida, abrir latas, fazer café ou até mesmo cozinhar ovos resulta em momentos de um humor impagável.
The Navigator, dirigido por Keaton e Donald Krisp, é seu melhor filme, apesar de muitos aclamarem A General (1926) como sua obra mais importante. No entanto, a criatividade genial de The Navigator, presente em praticamente todas as cenas e gags do filme, demonstra todo o talento de Keaton para a comédia física, em situações que chegam a antecipar os desenhos animados realizados décadas depois e fazem com que o filme permaneça irresistível até hoje, quase um século depois de sua realização.